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por
Rio de Janeiro
2007
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Resultado: Aprovada.
AGRADECIMENTOS
orientação, desde a Graduação, pelo constante incentivo e por me guiar pelas mágicas
À Renata Souza, irmã escolhida pelo meu coração e que, com certeza, enxergará
as tempestades.
MUITO OBRIGADA!
5
SINOPSE
Cazuza∗
Octavio Paz∗∗
∗
Verso da canção “Bete Balanço”. Cazuza. O poeta está vivo. São Paulo: Som Livre, 2005.
∗∗
PAZ, 1994, p. 11.
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RESUMO
ABSTRACT
This dissertation presents the study of chronicle books written by Ana Paula
Tavares — an Angola writer whose poetic production has a great value to both African
literature. Considering the characteristics of the genre within the author’s work, the paper
focuses on the analysis of O sangue da buganvília (1998) and A cabeça de Salomé (2004).
One of the main goals of this study is to question how the language, beyond poetic words,
can also create images drenched in lyricism. It is the research’s intention to verify how the
chronicles catch Angola’s historical moments and how the texts travel across the memory
trails, the tradition and the art of telling stories. The reading is theoretically grounded on
essays on memory and story, bases on Todorov, Benjamin and Le Goff; on Hampaté Bâ
studies on oral tradition; and on Roland Barthes’s work, which relates idiom, language,
word, text and poetry. It also mentions some essays written by Lúcia Castello Branco, Ruth
Silviano Brandão, Rita Chaves, Laura Cavalcante Padilha, Carmen Lucia Tindó, among
others.
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ABREVIATURAS
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO...............................................................................................................11
5. CONCLUSÃO...............................................................................................................101
6. REFERÊNCIAS...........................................................................................................105
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1 INTRODUÇÃO
Autora angolana, reconhecida principalmente pelo valor estético de sua poesia, Ana
Paula Tavares também se entregou ao exercício da crônica em dois livros que serão corpus
editado em 2004.
versos “fresquinhos” do seu último livro de poesias, Manual para amantes desesperados,
publicado em 2007:
Há no poema um discurso pela busca da “face outra”, ou melhor, para que o outro
encontre, perceba as duas mulheres que contracenam nesse corpo de possibilidades. Assim,
é também a nossa busca por essa “outra” maneira de ler Ana Paula Tavares: desejamos
descobrir a cronista sob a face de poeta e a poeta escondida nas palavras da cronista. Suas
poesias, estudadas por tantos, inclusive por nós, em pesquisas acadêmicas da graduação, já
nos haviam seduzido. O jogo de imagens e palavras, a procura pela voz feminina do desejo,
o erotismo da linguagem e da tradição: tudo isso encanta todos que estudam a poesia da
autora.
saber como Paula Tavares estabelece uma relação com esse gênero que também se quer
perseguidas pela cronista? Quais as características dessa cronista que sempre percorreu o
poesia com as crônicas de Paula e indagar de que modo a linguagem, para além de palavras
Angola e como a cronista “repassa” esses instantes flagrados para seus leitores.
Estudaremos o viés da memória não só como meio de “revisitar” o passado, mas como
que também experimenta o caráter “entre” desse gênero, explorando tanto as virtualidades
refletem acerca do tempo, da história, da memória. Adauto Novaes, Ecléa Bosi, Alfredo
Rita Chaves, Laura Cavalcante Padilha, Carmen Lucia Tindó, entre outros. Nosso objetivo
maior, porém, é analisar as crônicas de Ana Paula Tavares, fruindo o prazer de desvendar o
Não temos a pretensão de estudar todas as crônicas de cada livro da autora, mas
procuraremos percorrer o gozo da arte de cronicar de Ana Paula Tavares, cujas crônicas se
afinal, o que nos ensina Barthes: O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que
entre” em que se convertem os textos das crônicas de Ana Paula Tavares, dividimos nossa
Ana Paula Tavares; em seguida, mostraremos como suas crônicas percorrem as trilhas da
sociedade que quer (re)erguer a coluna vertebral e continuar a contar e cantar suas
tradições, mulheres, sonhos, desejos e histórias por meio das palavras poéticas de seus
forma livre e pessoal, e que tem como temas fatos ou idéias da atualidade, de teor artístico,
CD-ROM).
escolhemos essas definições do Dicionário Aurélio para iniciarmos nossa reflexão acerca
desse gênero e ressaltamos que, ao longo da nossa pesquisa, percebemos que muitas
onde ela nasceu? Quais são suas características? Esse gênero pertence ao Jornalismo ou à
Literatura? Nenhuma das respostas, porém, é definitiva, o que revela ser a crônica um
gênero polêmico que, quando se faz assunto, sempre gera uma discussão a mais. Assim,
observamos que falar de crônica já é um ótimo motivo para fazer nascer uma crônica.
Este capítulo não tem a pretensão de lançar mais uma explicação que (in)determine
Procuraremos, aqui, entretanto, ser como uma crônica: “um leve tiro certeiro”, pois
determinante e determinada no seu assunto principal que, no nosso caso, é a crônica. Após
tentarmos definir esta forma narrativa, exemplificaremos com alguns cronistas brasileiros e
africanos.
Muito nos identificamos com certos autores de crônicas nesses tantos meses de
estudo. A arte de escrever é realmente admirável, contudo, muitas vezes, ingrata. Quantas
noites, em frente ao computador, “mil” idéias e... nenhuma linha escrita. O primeiro
parágrafo do texto “A última crônica”, de Fernando Sabino, retrata essa relação com o
verbo escrever e nos traz um certo “ar de conforto”, pois a identificação é imediata:
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao
balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me
assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do
pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um (SABINO, 2006, p. 37).
Lendo esse pequeno trecho do seu fiar narrativo, notamos que o cronista padece de
um momento “pré-crônica” e que o registro de fatos comuns — uma das definições para a
Isso ocorre, principalmente, com a crônica diária, aquela que faz com que o leitor troque o
simples “cafezinho com pão” de todas as manhãs pelo “cafezinho com crônica”.
Dessa pressa ingrata vive a crônica, o que não impede, entretanto, que ela se torne
uma “séria prosa fiada”. Vinícius de Moraes, no livro de crônicas e poemas Para viver um
grande amor, mostra que, ao contrário do que possa parecer, o texto redigido de forma livre
e pessoal (lançamos mão de mais uma das definições do Dicionário Aurélio para o verbete
crônica), que tanto nos proporciona o prazer da leitura, não é tarefa fácil:
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Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a
prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e
situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa
fia mais fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da
janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no
noticiário matutino, ou de véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa
injetar um sangue novo (MORAES, 2005, p. 17).
Percebemos que o escritor de crônica não dispõe da mesma liberdade ficcional dada
matéria das crônicas é o dia-a-dia. Nem sempre o cronista tem o tempo necessário para
principal veículo difusor: o jornal. Como esse nasce e morre em 24 horas, o cronista que
publica seus textos nos periódicos, necessita, como mostrou Vinícius de Moraes, “sentar-se
diante de sua máquina” e, para a felicidade de seu fiel leitor, cumprir a arte de cronicar.
que lê crônicas sempre tem a sensação de que está a conversar com um amigo próximo. Há
uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade, ensina Jorge de
gênero em questão, todavia, busca, através da palavra suave, breve, subjetiva, chegar bem
perto do leitor e esse, por sua vez, deixa aproximar-se. Vejamos um trecho de “Crônica”, de
Ferreira Gullar:
Abro esta crônica como uma janela – Bom dia – e nela me debruço para conversar
contigo, leitor casual. E nela me debruçarei, se Deus quiser, todas as quintas e
domingos, quer chova, quer faça sol. Essa disposição evidentemente não é minha,
que preferiria tomar o calor ou a chuva por desculpa para adiar a conversa...
(GULLAR, 2004, p. 15).
Uma reciprocidade marca o início da narrativa de Ferreira Gullar. Uma ação mútua
é realizada entre dois corpos: o do leitor e o do autor. O caráter intimista é tão forte que o
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poeta-cronista diz, como para um amigo: Bom dia. Deixa claro, sem pormenores, que
deseja conversar com o leitor. “Fala” para um leitor casual, pois sabe que esse “amigo”
Gullar a se entregar ao prazer desse gênero, quer chova, quer faça sol.
É claro que observamos que tal prazer anda lado a lado com as dificuldades do
com o circunstancial, etc. E, nesse texto que se quer ora jornalístico, ora literário (muito
mais literário do que jornalístico, na nossa opinião), Gullar lança mão da metalinguagem
para navegar entre as fronteiras tão tênues desse gênero, como um aluno a indagar: O
aprendiz se pergunta que diabo é a crônica e não sabe responder (Ibidem, p. 15).
Deixando a deliciosa crônica de Ferreira Gullar de lado (só por alguns instantes, ou
melhor, por algumas linhas), reforçamos essa relação íntima entre o cronista e o leitor,
analisando um dos caminhos narrativos de Mário Prata. Em 2004, esse autor assinou um
contrato com uma emissora de televisão e anunciou aos leitores que ficaria, por um tempo,
sem escrever suas crônicas semanais. Nessa despedida2, através da crônica “Até mais”, faz
questão de ter o leitor como protagonista e diz que gostava quando sentia que estava
falando no seu ouvido, como se estivesse ao seu lado. Mostra que o escritor não existe sem
o leitor, principalmente neste diálogo chamado crônica. Se você pensava no que eu iria
escrever, do lado de cá, eu ficava pensando no que é que você queria ler, ressalta Mário
Prata. E como acontece nas relações humanas e nas conversas com um amigo, a discussão
sempre é um “tempero a mais”. No caso dos cronistas, a discussão é sempre uma crônica a
mais e o autor registra que algumas vezes nossas idéias não bat[em].
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Disponível na Internet via www.marioprata.com.br (consulta feita em 22/10/2006, às 21:40h).
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enfatiza também essa relação de intimidade entre autor e leitor que o gênero em questão
tanto proporciona. O cronista leva aquele que lê a seguir o rastro de uma borboleta. Não
qualquer borboleta, mas uma amarela. Seduzido, o narrador conduz a um belo passeio por
ruas e paisagens do Rio de Janeiro: ruas México e Graça Aranha, avenida Rio Branco,
nariz no ar, atrás de uma borboleta amarela. E mais: mostra que o leitor se deixou guiar e
rumo tomado por tal inseto. Braga conta que recebeu telefonemas em que as pessoas
diziam: eu só quero saber o que vai acontecer com essa borboleta. Percebemos, então, que
o caráter intimista da crônica e a proximidade desta com o seu leitor são ingredientes
admitindo não saber precisar o ano em que a crônica nasceu, afirma que esse gênero
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a
probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas,
entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia.
Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer
ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar
das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito
morador, e ao resto, era coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem
da crônica (ASSIS, 2007, pp. 27-28).
Segundo Machado, a crônica nasce de um bom papo que se pretende trivial, mas
que muitas vezes vai além. Passa do jantar regado a ervas ao plantador destas. Do semeador
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à sua vida amorosa. Enfim, pode ir da trivialidade a uma conversa mais séria, porém
afirma Antonio Candido (CANDIDO, 1992, p. 20): a crônica pode dizer as coisas mais
sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente conversa fiada.
mostra crítico e preocupado com fatos históricos relativos ao momento de sua criação. A
relação da crônica com o tempo já vem de sua etimologia grega: Khronos – tempo
pelas crônicas, como nos ensina Carlos Reis, no artigo “O tempo da crónica”:
(...) essa dimensão temporal é aqui fundamental: ela refere-se não tanto à dinâmica
interna do texto cronístico – que não obedece, neste aspecto e forçosamente, ao
mesmo movimento de desenvolvimento temporal que encontramos num conto ou
num romance – mas antes à relação da crônica com o seu tempo, com o movimento
da história ainda em discurso, às vezes até com as incidências, com as figuras, com
os conflitos e com as motivações da pequena história quase sempre esquecida pela
historiografia como ciência e repositório da memória colectiva (REIS, 2005, p. 12).
Essa relação da crônica com o seu tempo, como movimento da história, indica que
aparente jornalista acerca da prática do nepotismo. O pretenso repórter indaga sobre tantas
nomeações em poucos meses e enfatiza que a fatia maior coube à família de V. Exa.
— Que é que tem as condições? A prova que elas resistem é que o meu sucessor fez
o mesmo que eu e o Estado não fechou. Então você acredita que eu ia colocar minha
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gente em qualquer empresa particular por aí, sem garantia de solvabilidade? Pensa
que sou algum palhaço? (Ibidem, p. 178).
Com um toque de humor (mais uma característica de grande parte das crônicas) e
com a leveza da arte de cronicar, Drummond estabelece um diálogo que assume um caráter
reflexivo, levando o leitor a especular acerca das questões políticas de seu país. O título da
parte em que o texto “É verdade?” está inserido denomina-se “Política mais ou menos”,
sugerindo que a crônica “pode” saltar o banal, mas nem sempre o deve fazer, pois, se esse
gênero, por um lado, deseja provocar a nossa reflexão, ele sabe que nunca deve dispensar
Ao jornal cabe divulgar acontecimentos, notícias de seu tempo acerca das pessoas e
leitor a par dos fatos globais. Para além da comunicação, a crônica, muitas vezes, aprofunda
a notícia, deflagra o acontecimento e até abre as cortinas para o que seria coadjuvante no
episódio principal. Disse Rubem Braga que os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma
coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida... (BRAGA, 1979, p. 149). E é essa a
A crônica também sabe “falar” de coisas sérias, mas insistindo no seu papel da
mais: ele mostra que o fato de a crônica não ser considerada “séria” é ótimo, pois seu
Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos uma idéia falsa de
seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que
conseqüentemente a leveza é superficial. Na verdade, aprende-se muito quando se
diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para
mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira faz
amadurecer a nossa visão das coisas (Ibidem, p. 19).
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citado, também abre-nos a janela para a seguinte discussão, já iniciada por Candido: será
que a crônica deve assumir um caráter cheio de seriedade? Será que só as coisas sérias
Dizem que agora a crônica é um gênero seríssimo, e isso me amedronta. Mas tudo
ficou, nesses últimos anos, extremamente sério: o próprio humor é olhado hoje com o
maior respeito. Isto é bom? É mau? Não sei. O que sei é que quanto mais sérios
formos, mais tristes ficamos, e é preciso, senhores, deixar na praia uma faixa,
pequena que seja, para o frescobol. Sim, porque há também os profissionais do verão
que vão para a praia e ali se sentam, gravemente, como se cumprissem uma
obrigação. E cumprem mesmo (Ibidem, pp. 15-16).
E é essa faixa na areia da praia que a crônica deseja deixar. Quer cumprir o seu
papel de “noticiar a vida”, como demonstrou Rubem Braga, a partir da sua brevidade e
leveza. Quer mostrar-se comprometida com o seu tempo, reflexiva, mas quer que esse
(DIMAS, 1974, p. 49), diz que se a literatura não precisa em princípio de nenhum
compromisso com a realidade histórica, o mesmo já não pode ocorrer com a crônica, cujo
motor de arranque é o cotidiano. O compromisso com a realidade histórica pode não fazer
Voltemos à crônica “Os jornais”, de Rubem Braga. Nela, o autor aponta claramente
simplicidade e lirismo, enquanto aquela é objetiva, conteudista e técnica. Ele diz que nunca
um jornal publicaria uma manchete do tipo Durante os três primeiros anos o casal viveu
imensamente feliz (BRAGA, 1979, pp. 148-149). Ao contrário, ele mostra que a impressão
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que a gente tem, lendo os jornais (...), é que “lar” é um local destinado principalmente à
A crônica não deseja aliar-se a essa “prática uxoricida” e, sim, se entregar a uma
sensibilidade especial que possa fazer com que ela capte com maior intensidade instantes
Rubem Braga, na crônica “O pavão” (BRAGA, 1979, p. 237), declara que este é o
luxo do artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. Isso ele diz ao
dissertar sobre o luxo do pavão. Este animal, explica o prosador, não possui todas aquelas
cores na pena. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se
mínimo de elementos, no caso de palavras, já que essa crônica é curtíssima, que o autor
Jorge de Sá (SÁ, 2005, p. 48) ressalta que o cronista não se limita a escrever o
objeto que tem diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria, buscando a sua essência
(...) É preciso ir mais longe (...) buscar exatamente aquilo que caracteriza a poesia: a
sentido profundo e faz com que o leitor mergulhe no seu tecer poético-narrativo, recriando
Começou a demolição. Passando pela rua, ele viu a casa já sem telhado, e operários,
na poeira, removendo caibros. Aquele telhado que lhe dera tanto trabalho por causa
das goteiras, tapadas aqui, reaparecendo ali. Seu quarto de dormir estava exposto ao
céu, no calor da manhã. Ao fundo, no terraço, tinham desaparecido as colunas da
pérgula, e a cobertura de ramos de buganvília – dois troncos subindo do pátio lá
embaixo e enchendo de florinhas vermelhas o chão de ladrilho, onde gatos da
vizinhança amavam fazer sesta e surpreender tico-ticos (Ibidem, p.74).
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Notamos que, como enfatizou Jorge de Sá (SÁ, 2005, p. 75), mesmo que o narrador
diálogo deve permanecer. E, nessa crônica de Drummond, isso acontece. Ele convida o
leitor a dialogar, a discutir acerca do que representa aquela imagem da demolição. Teria o
morador se desesperado perante a perda de seu lar? Teria sido justa aquela demolição?
Drummond, nesse texto, guia o leitor pelas suas veredas narrativas para levá-lo à
seguinte questão: não devemos nos prender à ilusão de permanência (ANDRADE, 1998, p.
76). Para defender tal posição, descreve o morador que, forte e tranqüilo, assiste ao
Nessa poesia que se quer prosa, na verdade uma crônica poética, Drummond
defende o valor da vida e a busca pelo novo, pela mudança que deve todo ser humano
almejar. A crônica também é assim: não se quer caducar, não quer ser uma forma cansada e
procura a sentença de liberdade, recitada por Drummond. Talvez por isso, permita-se
assinada pelo autor, que mostra a confluência entre a crônica e o conto. Sabino diz que,
com vários funcionários, mas esbarra sempre na hierarquia pública. Resolve, então, “furar”
o protocolo: o honesto cidadão dirigiu-se ao guichê onde recebera o dinheiro, fez da nota
de cem cruzeiros uma bolinha, atirou-a lá dentro por cima do vidro e foi-se embora
(Ibidem, p. 30).
ficcionais, num tempo também ficcional. A crônica desfaz os laços com o circunstancial,
com a realidade. Há uma só ação, um só foco temático, como é comum aos contos. O
narrador não se apresenta em primeira pessoa, como é freqüente nas crônicas e há uma
narrador é a voz do cronista, explica Jorge de Sá (SÁ, 2005, p. 29). O dialogismo não é
feito de forma direta. Há um diálogo nas entrelinhas, o que leva o leitor a uma reflexão.
realmente acreditamos que esse gênero se quer “entre”, porém, sempre entre amigos,
cotidiano o lirismo, o humor, o drama, os elementos ficcionais. Mostra que, por ser esse
gênero “entre”, a crônica, geralmente, deixa uma fresta aberta, enriquecendo a arte de
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cronicar, ou melhor, tornando possível o prazer de quem deseja percorrer o tecer narrativo e
Mas a janela está aberta e o dia balança suas folhas e suas toalhas nesta manhã de
Ipanema. Rubem Braga meteu na crônica as flores, as borboletas e, mais
recentemente, um pavão. Bandeira e Drummond, uma ironia fina, alegre e triste,
enquanto Fernando Sabino a tornou veloz e estonteante, cheia de casos, tudo com um
delicioso ar de mentira. São mestres, como outros, e os campeões da crase quando
erram ditam lei. Quer dizer, não erram. Tudo o que o velho Braga escreve é crônica!
Fico bobo de ver. E os outros também: no barbeiro, na praia, na própria Câmara
Federal, descobrem assunto, coisas que a gente lê como se comesse (GULLAR,
2004, p. 15).
A crônica é vento a balançar folhas pela manhã, contudo alguns escritores fazem
com que ela agite a vegetação das árvores diariamente. E mesmo não sendo escrita para
almejar a posteridade, às vezes deseja “saltar” o caráter passageiro dos jornais, rumo ao
ritmo duradouro dos livros. Dessa forma, ensina Antonio Candido que a crônica consegue
quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo (...) e quando passa do jornal ao
livro, verificamos meio espantados que sua durabilidade pode ser maior do que ela própria
Dos jornais para o livro, a crônica supera a transitoriedade e deixa de ser um mero
painel fragmentado das páginas jornalísticas, tornando-se eterna. Cabe ao autor de crônicas
selecionar com arte seus melhores textos, atribuindo-lhes uma seqüência temporal e
temática.
Segundo Jorge de Sá, quando a crônica se quer livro, a atitude diante do texto é que
muda (SÁ, 2005, p. 85), pois o público leitor será mais seletivo e não mais tão apressado
quanto é o dos jornais. Isso faz com que os leitores saboreiem as crônicas num tom mais
Fadada ao esquecimento ou não, a crônica, mesmo que por um instante, nos faz
pensar, refletir, discutir, dialogar com o nosso tempo. Há quem considere esse gênero
Autores africanos como Ernesto Lara Filho, Mia Couto, Manuel Rui, Germano
Almeida, José Eduardo Agualusa, Arnaldo Santos, entre outros, também lançaram mão
sobre a história da crônica em Angola através das linhas desenhadas por Artur Queiroz.
No período áureo das permutas com o interior e da escravatura, surge no país uma
imprensa combativa, na qual se destacaram vários angolanos como cronistas. Já no
período da queda da burguesia negra, essa imprensa ganha ainda mais combatividade
— perdiam-se rapidamente os privilégios — e surgem os ideais nacionalistas em
grande força. Os angolanos oriundos da burguesia, agora lançados no escol de
funcionários da administração colonial, não perdem a sua oportunidade de se
mostrarem alfabetizados, em oposição aos colonos que, na sua esmagadora maioria,
eram iletrados, não poucos criminosos de delito comum (alguns, presos políticos) e
por isso mesmo deportados. Surgem grandes jornalistas e grandes cronistas negros. A
crónica foi muito cultivada nesta época. E continuou a sê-lo ao longo dos tempos,
praticamente até a independência do país (QUEIROZ, 1990, p. 7 – prefácio).
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Constatamos, assim, que a crônica se faz presente nas literaturas africanas, sendo
estática. Artur Queiroz destaca o nome de Ernesto Lara Filho entre os grandes escritores da
crônica angolana, afirmando que o autor foi um esbanjador de talentos e que em seus textos
havia sempre o ideal nacionalista, embora por vezes de uma forma confusa (Ibidem, p. 8).
“entre”. Ernesto esteve entre o céu e o inferno, entre o sucesso e o desemprego, entre as
crônicas e a boemia, como ressalta o prefácio de Artur Queiroz. Porém, como este
destacou, Ernesto Lara Filho, foi um dos mais importantes poetas angolanos de todos os
Benguela” (LARA FILHO, 1967, p. 10), Ernesto Lara Filho percorre as trilhas
memorialísticas de seu passado, reinventando pela escrita o lugar onde nasceu e, como
afirma nessa crônica, onde deseja ser sepultado. Por meio de seu discurso lírico, saúda o
350º aniversário de sua terra e alerta para o fato de que sua crônica foi escrita com os
farrapos da saudade a tremular nos bicos mais altos do coração, com as reminiscências da
Apaixonado por sua terra, Ernesto Lara Filho sempre demonstrou seu apego a
Angola por meio de suas narrativas que espelharam a maneira de falar, pensar e sentir de
tantos outros irmãos, pois foi ele o primeiro angolano que conseguiu levar para as
primeiras páginas dos jornais a linguagem e a língua dos angolanos (...) escreveu sempre
prefácio).
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da literatura. Demonstrou saber que, para além de uma ferramenta crítica, o texto, no caso
seus leitores:
(...) O jornal está pronto. Vai seguir, apanhando comboios, aviões, camionetes,
carros, a pé, enfim, por todos os meios de transportes, para os quatros cantos de
Angola. Vai levar aos Chefes de Posto, isolados, das margens do Cunene a
mensagem de alegria, de vida. Vai levar aos comerciantes do Cubango, aos homens
que trabalham no mato, aos capatazes, da Ganda e Cubal, um pouco de leitura, de
paz e sossego e de interesse pelas coisas de espírito (LARA FILHO, 1990, p. 25).
Era por meio do jornal que Ernesto irradiava seu labor cronístico, levando aos seus
de sua terra natal. Essa proximidade, proporcionada pela crônica, levava, pela leitura, ao
de Ernesto para o trabalho, conforme ele mesmo afirmava: (...) não aprecio o trabalho.
Trabalho porque preciso de trabalhar para ganhar a vida. O pão. Mas, repito, não gosto
de trabalhar. (...) Eu gostava de ser lírio de campo (Ibidem, pp. 29-31). Consola-se o
cronista, entretanto, ao saber que, por meio de suas crônicas, tinha com quem dividir o
(...) Depois de Paris e Rio de Janeiro, depois de os visitar, irei morrer ao Hawai. Mas
ao «meu Hawai». Vocês não o conhecem? Fica aí a alguns quilómetros da cidade de
Luanda e algumas milhas da Ilha dos Padres. Também tem flores e coqueiros e
raparigas bonitas para a gente namorar. E depois fica perto de Luanda. Desculpa ter
ido tão longe buscar o assunto da crónica. (...) É assim. A gente bem procura libertar-
se. Mas quando menos dá por ela, lá vem o microbiozinho angolano roer as entranhas
de quem lá nasceu (Ibidem, pp. 34-35).
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domingos de Angola, cheios de paladar, cores e tradições de seu povo: Para mim, domingo
Quilengues. Domingo de Angola não tem rival no mundo. Começa na praia e termina na
Sentimos alívio ao detectar que, apesar das tristezas vividas pelos povos de Angola,
a alegria, marca inerente aos cidadãos desse país, faz com que a esperança seja renovada a
cada dia. Ernesto Lara Filho fez questão de retratar, em uma de suas crônicas, essa forma
de ser angolano:
A alegria é tradição. Só tem alegria o homem que tem dívidas. Por isso há em Angola
tanta gente alegre. Só tem alegria o desempregado, o infeliz, o ajudante da carrinha.
Que vêem na alegria a única resposta que podem dar ao mundo no meio de toda a
sorte dos seus azares. (...) Só tem alegria o génio que descobre no bolor imundo o
milagre da penicilina, o músico que faz a sinfonia na água-furtada e o guarda-
nocturno que abre a porta ao ébrio infeliz (Ibidem, p. 43).
O cronista também confessou seu amor ao Brasil e aos nossos escritores, tais como
Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Rubem Braga entre outros, cujos textos encantaram
Ernesto e fizeram dele um brasileiro também, como comprova o seguinte trecho: Sou uma
espécie de brasileiro. (...) Um português de Angola, que conhece melhor Érico Veríssimo,
José Lins do Rego e Graciliano Ramos do que Eça de Queiroz e Aquilino Ribeiro (Ibidem,
p. 61).
Num discurso altamente poético, apimentado pelo senso crítico, Ernesto Lara Filho
Na monumental floresta de cimento armado que é a vossa cidade, há-de florir uma
civilização. A beleza, a humildade, de um azulejo português.
Isso o que vos ofereço. É isso que vos dedico. Sinceramente. Humildemente. Nessa
data. Nessa hora. Azulejo de tons azuis, quase irreais, como o nosso, o vosso céu. (...)
Terás uns laivos de tristeza, de saudade, a saudade pungente das nossas letras de
fado. Saudade dos entes queridos. Saudade.
Tingido do sangue comum que verteu nas nossas costas, no martírio dos nossos
escravos dos porões das caravelas. Sangue dos nossos irmãos-negros, dos nossos pais
comuns, dos nossos soldados, das nossas noivas. Porque afinal, todos nós ajudamos o
Brasil a crescer.
Vai também um pouco do verde claro das nossas florestas. O perfume das nossas
flores de café. Para colorir a vossa bandeira.
O amarelo ouro da nossa amizade. Amizade cor de marfim-velho. Fraternidade
(Ibidem, pp. 62-63).
crônica, podemos nos sentir um pouco cidadãos angolanos, já que delas brotam o amor, a
angolana.
crônicas “ernestianas”, relembrando também que Lara Filho foi leitor de grandes nomes da
crônica brasileira:
Gosto de fazer isto — como diz o poeta — soltar pombas, por entre as grades das
palavras (LARA FILHO, 1990, p. 32), afirmou Ernesto Lara Filho. E, pelas asas de suas
pombas vestidas de crônicas, esse escritor se tornou um prosador de primeira água, que
32
arrebatou para as nossas cores um frescor admirável, digno da melhor atenção (MESTRE,
1997, p. 15).
do livro Crónicas ao sol e à chuva, de Arnaldo Santos, João Melo disserta acerca das
funções que a crônica pôde e pode cumprir a partir das mãos dos jornalistas e escritores de
Angola:
“Profissão de fé” (SANTOS, 2002, p. 19), o escritor leva o leitor angolano a refletir sobre
seu papel de cidadão na construção da história de Angola e na busca pela paz. Nas
pequenas atitudes e no seu simples dia-a-dia, os angolanos poderiam contribuir, assim, para
É é [sic], pois, com esse sentimento gentílico e a sempre irresistível utopia da criação
desse mundo novo – (onde será que eu já li isto?) – que eu me ateimo aqui em me
querer reencontrar com todos aqueles que acreditam que ainda podem fazer a história
deste país. Vivendo suas estórias pequeninas, com dignidade e respeito por si
próprios, na roda do nosso fogo comum (Ibidem, p. 20).
33
desabafou: Essa Alta autoridade que nos prometeram, faz já muito tempo, está embora
discurso, demonstrando que acreditar nas autoridades do país já não era possível e que a
Alta Autoridade talvez jamais viesse a existir: Foi prometida há um ror de tempo, (...) é a
Alta Autoridade contra a Corrupção, designação que só por si fez palpitar nos corações
Angola: os jovens. Em “...e assim foi como veio a ser da maneira como será” (Ibidem, p.
45), Arnaldo Santos mostra que, apesar de ainda não votarem, a juventude que possui
menos de dezoito anos não pode ser ignorada como uma parte inexistente do país, pois
indica como será o amanhã de Angola: Ignorar essa geração de menos de dezoito anos é
subestimar sua existência. Impossível, porque eles são centenas de milhar, e também
porque eles é que dão significado à expressão, que assim foi como veio a ser da maneira
Elas demonstram que da mera “conversa” podem brotar importantes críticas e reflexões,
escreveu crônicas disfarçadas de cartas (ou vice-versa) para narrar o cotidiano da pseudo-
autora, Maninha, que assina as missivas endereçadas às suas queridas primas. Essa
personagem descreve, por exemplo, como foi o seu domingo ao lado do tio: O domingo
34
aqui é assim. O tio ficou a giboiar uma funjada e eu fui numa volta com o profe [sic] na
Como o próprio título do livro nos diz, são cartas optimistas e sentimentais,
necessárias em tempos tristes, tempos de guerra (os textos foram escritos entre 1992 e
Redigidas sob títulos bem sugestivos, como “É bom, é nacional!”, “Viva o petróleo
reflexões e histórias importantes. E por que não falar do interesse mais importante, a paz? E
As primas disseram que viram nessa televisão uma surra que os bimbitas levaram na
Katabola? eu não vi nem ouvi mas assim é melhor até no dia em que lhe acabarem
com a guerra que às vezes até fico a pensar como é que deve ser viver em paz porque
nasci já na guerra e sempre com a guerra e aí vocês já devem saber essa maneira de
viver a paz mas olhem que devia ser proibido pessoas da nossa idade viverem na
guerra que isso só devia ser uma maka dos mais-velhos mas vamos fazer mais como
se eles é que inventaram a guerra mas assim podia nos dar também só um cochito de
paz mesmo que fosse a pagar em Kwanzas que em dólares também era demais e um
beijo cheio de paz desta vossa (Ibidem, p. 197).
cotidiano, do povo angolano, as alegrias dos instantes líricos e subjetivos. Crônicas que não
de falar das crônicas do escritor moçambicano Mia Couto. Seus livros Cronicando e O país
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crônica “Mulher roxa em vestido laranja” (COUTO, 2002, p. 73), Mia Couto emprega uma
abordar cenas do dia-a-dia. Em primeira pessoa, o cronista adverte, afirmando: (...) esta
história eu que inventei (...) Ficção e realidade são as gémeas e convertíveis filhas da vida
(Ibidem, p. 73).
O texto “O jardim marinho” se inicia com a expressão Era uma vez (Ibidem, p. 53).
Usando também esta expressão própria dos contos infantis, reafirmamos e ousamos
continuar: “Era uma vez uma crônica que não desejava ser só crônica, queria ir além. Casou
com o conto, tendo as parábolas e estórias como parentes próximos”. Pronto. Essa é uma
por linhas repletas de imaginação, lirismo e reflexão, como em “Balões dos meninos
velhos”. Nesse texto, alerta-nos sobre a situação dos mais velhos em Moçambique, muitos
indiferença e a falta (de tudo) em que esses cidadãos se encontravam. Ao fim, uma das
personagens diz: Senhor director, não será que podemos ter mais Natais, muitas vezes cada
crônicas, com exemplos delas próprias. Crônicas de autores brasileiros e africanos que
cotidiano, uma forma textual bastante importante para a Literatura. Um gênero digno de ser
analisado, sim!
36
Entre muitos cronistas, africanos ou não, Ana Paula Tavares também deixa que suas
crônicas fiquem mais perto de nós, leitores, e estabelece, por meio de seus textos, um
compromisso com a condição de mulher da sua terra, com seu tempo, com a história e as
tradições das etnias do sudoeste angolano, onde nasceu e cresceu. Traz profundidade de
significação às suas crônicas, sem perder a leveza inerente a esse gênero, fazendo com que
o leitor sinta o gozo de cronicar, ou seja, de se deliciar com as histórias tradicionais dos
povos da Huíla, ao mesmo tempo que apreende as reflexões sobre a história de Angola,
brotadas das entrelinhas dos textos da autora . Artífice da poesia, Paula imprime forte carga
poética em seus textos de prosa, o que amplia o prazer de suas narrativas, conforme
demonstraremos nos capítulos adiante. É isso, em suma, que desejamos comprovar com
Sino
é como começa
este falar das palavras
e o livro de horas da minha avó.
liberdade nas décadas de 60 e meados de 70, surgiu, paralelamente, nos anos 70 e 80, uma
poesia que já não tinha como foco principal questões referentes à coletividade social, mas,
sim, indagações existenciais, inerentes ao “eu / individual”. Essa nova poética inseriu-se
num paradigma de desencanto. As promessas feitas durante as lutas pela independência não
haviam sido totalmente cumpridas. Uma das únicas utopias que restou foi a poesia como
espelho de reflexão. Esse novo lirismo, muitas vezes, denunciou a corrupção do poder, mas
não foi só esse o seu objetivo. Desejou também saudar o amor, a mulher, a vida, a oratura,
os mitos africanos, o erotismo, por meio de um fazer poético-narrativo que primou pelo
Vejamos um poema de Paula Tavares, poetisa que vem-se destacando desde 1980.
No poema a seguir, o sujeito lírico busca recuperar traços da memória dos mumuílas, etnia
do sudoeste angolano, através do ritual de passagem de uma menina que se torna mulher:
Dessossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
∗
TAVARES, Paula. Ex- votos. Lisboa: Caminho, 2003, p. 12.
38
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
Sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro que me lembre
mal existe
VOU
para o sul saltar o cercado
Tavares retrata uma mulher de tradição mumuíla que deseja subverter sua situação social,
mostrando-se rebelde ao romper com algumas práticas ancestrais de seu povo. Como uma
artesã, tece, reinventa o feminino vivenciado por fêmeas sofridas em razão da guerra, da
quebrar o silêncio que envolvia, em grande parte, a figura feminina, a poeta instaura um
grito libertador da mulher, ao dizer, em caixa alta: VOU para o sul saltar o cercado.
No poema, a mulher quer ser agente de sua história, relacionar-se com seu corpo
livremente, cantar o amor. Não é a visão do amor romântico em cenário natural edénico,
3
Essas idéias de transgressão, de “saltar o cercado” já foram amplamente estudadas em artigos, teses e
dissertações. Entre os estudiosos de Paula Tavares lembramos para só citar alguns: Laura Padilha, Benjamim
Abdala, Inocência Mata, Rita Chaves, Carmen Tindó, Érica Antunes, Cláudia Fabiana de Oliveira Cardoso,
entre outros.
39
de harmoniosa convivência com o sujeito, ressalta Inocência Mata (MATA, 2001, p. 119),
mas o amor sexual, pois seu corpo está aceso e consegue por isso deixar de ser sombra,
Na prosa, a poetisa se assina Ana Paula Tavares. Suas crônicas são, como já
“salta” as fronteiras literárias e dialoga com a história de seu país, de modo crítico e
Teve criação portuguesa, mas dava para ver à volta, e à volta existia uma sociedade
Panorama, em 2000. Formada em História, com Doutorado também nessa área e com
Mestrado em Literaturas Africanas, em alguns de seus textos, Ana Paula Tavares reflete
edificação social de Angola, pois é (..) uma literatura permanentemente em busca do seu
É por esse caminho que segue obra marcante de Ana Paula Tavares. Após Ritos de
para serem lidas em programa da Rádio da Difusão Portuguesa. Não houve decepção para
da buganvília nos levam também à fonte do gozo estético. E continuamos a beber nessa
fonte quando Ana Paula publica seus demais livros: O lago da lua (poesia-1999); Dizes-me
(crônica-2004), também corpus de nossa pesquisa; Os olhos do homem que chorava no rio
(poesia-2007).
Tanto os textos de prosa da autora, como os de poesia buscam recriar ritos e práticas
O lago da Lua
No lago branco da lua
Lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
Voltaria a cada mês
Para lavar
Meu sangue eterno
A cada lua
feminino. Mistura seu sangue ao barro de sua terra, consolidando suas raízes e sofrendo
junto com Angola. Preserva por meio de suas palavras o que é tradicionalmente angolano.
do sudoeste angolano onde nasceu. Tradições muitas vezes esquecidas devido ao contexto
41
histórico conturbado por diversas guerras. Carmen Tindó, estudiosa da obra de Paula
Tavares, ressalta que a poesia de autora se faz também guardiã da palavra e da memória
ancestrais (SECCO, 2003, p.177), pois reinventa mitos, rituais, costumes de sua terra. Seus
sensualidade de fêmea.
Há, nos textos de Paula Tavares, uma sede infinita de liberdade que a mulher sente,
uma vez que se encontra consciente da situação atual de sua sociedade. Não renega sua
condição amarga, mas passa a beber os sonhos de fêmea e cidadã, tendo em vista assumir
Alfredo Bosi nos ensina que nostálgica, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu
caminho caminhando (BOSI, 1983, p.145). No seu caminho, Paula Tavares usa a palavra
como instrumento transmissor dos costumes de sua terra, ao mesmo tempo em que
inaugura uma linguagem mais próxima do corpo e da voz feminina, fazendo também
feminino, é marca da fertilidade da mulher que se quer fecunda não só biologicamente, mas
em seus sonhos e desejos. As palavras de Paula Tavares mostram que sua lavra, sempre a
receber cuidados de mulher, é fértil e dela se pode obter abundante colheita (PADILHA,
2000, p. 294), como ensina Laura Padilha, outra estudiosa da obra de Paula Tavares.
E colhendo os frutos desse terreno fértil, percebemos uma imagem de mulher que
deseja ser reguladora de seu próprio tempo e destino. Não bebe somente a amargura, mas o
mel dos dias claros. Pinta os ritos africanos em seu corpo e nos dos poemas, mostrando-se
responsável pela preservação memorialística de sua terra. Salta o cercado para se relacionar
de maneira livre com sua própria sensualidade e com sua sociedade. Seus textos unem
42
poesia e erotismo, uma a complementar o outro, relação consolidada, conforme nos explica
Octavio Paz:
A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o
primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de
uma oposição complementar. A linguagem – som que emite sentido, traço material
que denota idéias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz evanescente: a
sensação. Por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia,
representação. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o
agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em
cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora (...) a poesia erotiza a linguagem
e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo. (PAZ, 1994,
p. 12).
Paula, tanto nos poemas, como nas crônicas, opera com a sedução do próprio texto.
No prefácio de O sangue da buganvília, João Nuno Alçada nos instiga os olhos e ouvidos,
tempo através das crônicas. Para além da leitura, somos surpreendidos pelos espaços
compromisso, já estabelecido através de suas poesias, com o seu tempo, com a história de
formação, faz o relato dos fatos históricos; contudo, como testemunha de sua sociedade e
dedicação à poesia.
Essa subjetividade inerente à crônica, mesmo sendo expressa por uma historiadora,
quer-se necessária, pois faz com que um fato aparentemente comum ganhe o sabor da
experiência indispensável para que não caia no esquecimento. Destacamos a seguir o que
tentação do bem:
Vimos, assim, com Todorov, que nenhum discurso está livre do posicionamento de
mostrar sua postura crítica frente aos mesmos. Ela, na crônica “O prazer do historiador”,
com que o texto tenha uma aparente espontaneidade que seduz o leitor. Há um dialogismo
44
estabelecido pela narrativa de Ana Paula Tavares que deixa a efemeridade das crônicas para
trás.
capítulo anterior, possui um caráter transitório, passageiro. Porém, os livros de Ana Paula
Tavares abandonam a “falsa” simplicidade de um texto que envelhece a cada 24h, como
ocorre com o jornal, e nos faz ler levantando a cabeça, conforme ensinou Roland Barthes:
Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura, não por
desinteresse, mas ao contrário, por afluxo de idéias, excitações, associações? Numa
palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça? É essa leitura, ao mesmo
tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volte e dele se
nutre, que tentei escrever. (BARTHES, 2004, p. 26).
Esse levantar a cabeça acontece nas crônicas de Ana Paula Tavares e nos faz
seduzidos por elas. Nós percebemos que são narrativas de enredo determinado: o povo
Apesar da limitada extensão permitida a uma crônica, a autora cria um sutil elo
entre a linguagem realista existente nesse tipo de narração, a poesia e arte de contar. Além
transcriam “estórias” e tradições dos povos da Huíla, como demonstra o seguinte trecho da
crônica “As madrinhas”: A história contava-se bem, enquanto numa vasilha de barro
esmaltado, com uma colher de pau, se tiravam, às gemas e ao açúcar, a leveza dos bolos
de vinte e quatro ovos para servir aos domingos à hora do chá (TAVARES, 2004, p.90).
são traços marcantes na obra de Ana Paula Tavares. Assim como as oleiras moldavam no
seu ofício de narrar, também perpetua esses ensinamentos. Além da presença dos
provérbios como epígrafes dos seus textos, vemos a importância desses elementos
Tal como outros valores culturais, o sistema dos provérbios assenta num patrimônio
de conhecimento facilmente reconhecível pela comunidade, que o aprende integrado
num sistema de ensino baseado no aproveitamento da singularidade do indivíduo,
enquanto parte de um todo comunitário, onde a solidariedade é cultivada como dado
adquirido a não perder. (Ibidem, p.27).
presentes nos livros de crônicas de Ana Paula Tavares que também ressaltam uma
A figura feminina é sempre representada por linhas banhadas de lirismo e erotismo que a
Numa sociedade em que o homem saiu para lutar, participou de guerras que muitas
vezes não o deixaram voltar, a presença da mulher se fez indispensável, já que era dela a
Num doce narra de histórias, Ana Paula nos apresenta Dona Beba, numa crônica
que leva como título esse mesmo nome, a exaltar a ternura daquelas que se mostravam
mães, mulheres, guerreiras. Tudo narrado pelas lembranças de uma criança. Cito um trecho
dessa narrativa:
Salvou-nos Dona Beba com suas mãos de veludo. Umas mãos impossíveis para
quem há oitenta e nove anos as usa a segurar a vida de quem precisa. Cuida dos
doentes, ampara os presos, seca o peixe das viagens.
Abriu-nos as portas da sua casa secreta, desvendando a verdadeira história do
Tarrafal (Ibidem, p.10).
46
Vemos que, por vezes, as crônicas de Ana Paula Tavares se assemelham a contos,
ficando na fronteira entre os dois gêneros. Além das lembranças femininas, a autora
dos ovos dourados”, a autora desenha a travessia inerente ao corpo feminino: a passagem
de menina à mulher. O sangue que vem batizar esse ritual cíclico é apresentado pela mãe,
personagem da crônica: Agora tens por dentro ovos de sangue prontos para cair, um em
cada tempo, de vinte e vinte oito dias (Ibidem, p.72). A delicadeza das palavras cantadas
por Ana Paula Tavares torna poético esse estar maduro de uma mulher que ainda se quer
menina: O que eu queria era parar no centro da vida e plantar-me árvore, para os ovos
Nessa crônica, assim como em toda obra de Ana Paula Tavares, a cultura tradicional
da região onde a autora nasceu, o sudoeste angolano, desabrocha: tábuas eylekessa, panelas
da tradição, bois, todos símbolos da tradição regional. O primeiro fluxo de uma menina é
comemorado por seu povo, como enfatiza as linhas narradas: À volta, a festa começou. A
mãe da mãe das raparigas apresentou o penteado, o pai do pai das raparigas chamou os
passagem, que era necessário à mulher um perder-se entre seus desejos, conscientemente,
descoberto (TAVARES, 1985, p.21). Sobre esse desequilíbrio ligado ao erotismo, explica-
Já disse que, aos meus olhos, o erotismo é o desequilíbrio no qual o ser coloca a si
mesmo em questão, conscientemente. Em um sentido, o ser se perde objetivamente,
mas então o sujeito identifica-se com o objeto que se perde. Se for necessário, posso
dizer que no erotismo EU me perco (BATAILLE, p. 48).
No cenário erótico que Ana Paula Tavares constrói, em “A menina dos ovos de
ouro”, a mulher é colocada em questão e mostra que quer uma relação livre com o seu
corpo, metáfora de seus desejos e de sua sede de liberdade. Para isso, salta o cercado das
convenções e diz: Fechei-me no quarto mais pequeno da casa antiga, pendurei na porta
minha voz de menina, preparei-me para fugir, saltar o cercado (...) (TAVARES, 2004,
p.72).
comprometida com seu papel de cidadã engajada socialmente e diz: Não fui capaz (Ibidem,
p. 72). Apesar da repressão, de ter sido uma mulher criada ainda dentro de “cercas”,
metáfora da tradição rígida de uma sociedade, essa fêmea também é mãe e terra, uma a
poeticamente do livro Ex-votos e foram recriadas para essa crônica: Estou selada na ilha do
meu corpo e, se me deito no chão, é para que o coração da terra bata por mim e me encha
menina, agora mulher, misturando seu sangue ao barro de sua terra, consolidando suas
raízes. Notamos, ao longo da obra de Ana Paula Tavares, que a temática feminina é algo
recorrente, assim como a recriação das tradições das etnias do sudoeste angolano onde
Para além do cercado, o texto de Paula Tavares quer nos fazer também “saltar”, já
que nos “obriga” a refletir sobre a luta, a opressão, a sensualidade e os sonhos da mulher
48
Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez
até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor,
a consciência dos seus gestos, dos seus gostos, dos seus valores e das suas
recordações, faz entrar em crise a sua relação com a linguagem (BARTHES, 1973,
pp. 20-21).
sensibilidade feminina que deseja, que sonha e que quer cumprir a função de transmissora
narrações presentes em suas crônicas. Assim, as palavras saltam e vêm à tona para nos
fazerem refletir, poeticamente, sobre os caminhos percorridos por Angola em relação à sua
Tradição
Segundo Ana Paula Tavares, o recurso à história surge como lugar onde se instala
“lugares saturados de tempo nos podem devolver” (TAVARES, 2001, p. 25). Testemunha
de seu tempo, a autora lança um olhar crítico sobre a história de seu país. Repensa o
passado, pois sabe que é preciso interpretá-lo para reconhecer o que deveras foi importante,
século XX, discute relações entre história e memória no contexto social do século passado,
mas que são fundamentais para todos os tempos. Mostra que, num mundo capitalista em
eliminação das lembranças com igual rapidez. No seu discurso, o autor não pretende
defender a utilização da memória, porém refletir sobre o seu essencial papel. Explica que o
passado deixa seus vestígios tanto no mundo, sob a forma, por exemplo, de cartas, decretos,
quanto na mente humana. Quer queira ou não, o outrora vem sempre à tona, afirma o autor:
∗
TAVARES, Ana Paula. Ex-votos. Lisboa: Caminho, 2003, p. 13.
50
Quer lamentemos ou não, não podemos escolher entre lembrar e esquecer. Não
adianta fazer de tudo para repelir certas lembranças; elas voltam a assombrar nossas
insônias. Os antigos conhecem bem essa impossibilidade de submeter a memória à
vontade; segundo Cícero, Temístocles, famoso por sua capacidade de memorizar,
queixava-se: “Eu retenho até mesmo o que não desejo reter, e não consigo esquecer o
que desejo esquecer” (TODOROV, 2002, p. 142).
mútua entre esses dois termos. Por isso destaca: A reconstituição integral do passado é
muitas situações, alguns evocaram o passado com o objetivo de garantir o papel de herói,
de vítima ou de moralizador (Ibidem, p. 206). O teórico nos leva a entender que a memória
pode tornar-se uma tentação do mal, pois quando se ouvem esses apelos contra o
(Ibidem, p. 206). Devemos ter consciência de que o bom uso da memória é aquele que
serve a uma justa causa, e não aquele que se contenta com reproduzir o passado (Ibidem,
p. 204).
Esse “bom uso” da memória é encontrado na narrativa de Ana Paula Tavares. Por
que caminha em busca de uma possível ação voltada para um tempo novo.
51
sangue da buganvília, Ana Paula Tavares tece considerações acerca de literatura e história,
refletindo sobre o papel do historiador. Reflexões já anunciadas pela epígrafe por ela
[...] Uma vez que a criação artística é sempre governada pelas forças sociais
dominantes, a invenção situa-se quase por inteiro entre o que foi modelado para
glória de Deus, para o serviço dos príncipes e para o prazer dos ricos. Partir das
obras-primas é um percurso obrigatório e não é um mau percurso. Com a condição de
nunca perder de vista o que as rodeia, nem a diversidade obscura, fecunda sobre que
elas pairam [...] – Georges Duby (TAVARES, 1998, p. 16).
A citação incorporada ao texto chama atenção para o fato de que a arte se mostra
muitas vezes elitista e que a história também pode ser vista sob o olhar do herói, da classe
dominante. O trecho ressalta, porém, que as obras-primas, e por que não a ciência histórica,
podem, para além do herói, desvelar o outro lado da moeda, ou melhor, não só o lado coroa,
mas o lado cara, o dos vencidos, pois o sujeito do conhecimento histórico é a própria
importância do olhar crítico em relação aos fatos históricos numa sociedade em (re)
construção como Angola. Já ultrapassado o tempo das utopias libertárias, é necessário abrir
Sem princípio nem fim, a nossa história tem as costas largas e tem-se constituído
chão fértil para o lançamento da dúvida, mas também das certezas de quem não quer
perder a oportunidade de deixar seu nome, mais do que seu rosto, inscrito numa
modernidade, em construção, feita da procura dos grandes sentidos da história e do
seu avesso, compadecendo-se pouco com um quotidiano que, sem que nenhum de
nós o suspeitasse, era história a constituir-se em simultâneo com a terra que
inventávamos na região da utopia (TAVARES, 1998, p. 16).
52
Testemunha do silêncio que muitas vezes foi tão ou mais perturbador que a guerra,
a cronista deseja que a situação vivida pelos indivíduos angolanos não cale também a
Vêm estas considerações a propósito das estranhas relações entre ruído e silêncio,
que alternadamente se impõem sobre momentos da história como se o sobressalto, a
moda repentina, a universalidade da discussão fossem mais importantes do que o
documento, o monumento, a tradição oral. (ibidem, p. 16).
Laura Padilha explica que os textos de Paula Tavares representam uma espécie de
de preencher tal silêncio, de qualquer modo e com muita urgência (PADILHA, 2000, p.
288). E esse grito se dá nas palavras de quem deseja, como explicou Benjamim, escovar a
enxergou a história do cotidiano, embora escrevesse para agradar os que estavam no poder:
Tavares, no presente, também reflete sobre as guerras civis; a autora retrata a situação das
cidades africanas, na crônica “Viver nas cidades” (SB), inundadas pelos problemas sociais
A epígrafe desse texto denuncia o que a crônica acusa ser a situação de muitos
africanos: fugitivos dentro de sua própria terra. A citação é retirada de um livro do escritor
Mia Couto e destaca: [...] Fica, tu não sabes o que é andar, fugista por terras que são dos
Terras dos outros sim, pois essas cidades fotografadas pelo cronicar de Ana Paula
Tavares não são as desejadas e sonhadas pelos angolanos, porque nelas sobreviver
melhores, porém, não é extinta da sofrida realidade. No final da crônica, a autora nos saúda
Vivia ali, o mais velho, estendendo as mãos aos passantes, sem palavras excessivas
apenas com um sorriso de eternidade fixado entre os lábios.
À recusa de um pedaço de pão, normal entre os passantes, respondia sempre com a
ternura dos seus muitos anos:
— Está bem, obrigado, hoje não como, mas amanhã, quem sabe? (Ibidem, p. 43).
tradição ainda tão cheia de passados mais recentes, como afirmou Ana Paula Tavares, em
“As cidades do sol” (SB). Nesta crônica, há um desejo pela preservação do passado e dos
costumes angolanos:
As cidades e o povo têm o sol como testemunha da degradação social vivida não só
por alguns países africanos, mas pela humanidade em geral e essa conclusão pode ser
dominante nos textos da cronista que sabe que o dom de despertar no passado as centelhas
independência e, sim, o da guerra civil entre o MPLA e a UNITA. A maioria das crônicas
que compõem essa obra foram escritas entre 1996 e 1998. Refletir sobre o rumo tomado
pelo país pós-independente e repensar caminhos trilhados e por trilhar era necessário e o
cronicar de Ana Paula Tavares sabia disso, como bem demonstra a crônica “Os dias da
mãe que deu à luz não apenas sonhos, mas pesadelos que insistem em assombrar a história
de Angola. A epígrafe dessa crônica, versos de José Luís Mendonça, enfatiza o quanto é
duro perceber que as mãos que derramaram o próprio sangue pela independência são as
da nação recém-libertada. A história de um país que buscava a igualdade e a justiça não era,
portanto, remota, contudo revelava um presente que transbordava uma liberdade ambígua,
(...) A história armadilhou o dia a dia e a sua imagem actual não corresponde à
imagem do sonho antigo.
Os actos cometidos em nome da mudança do mundo são agora postos em causa por
várias gerações, que não só viram essa mudança como vivem presentes envenenados
sem esperanças. Os amanhãs perderam a voz (Ibidem, p. 71).
56
A poetisa historiadora tem consciência de seu papel na sociedade e sabe que, para
além dos fatos, “as verdades das verdades” precisam ser questionadas. História e memória a
favor (ou não!) da sociedade, mesmo que esse exercício memorialístico não seja assim tão
prazeroso, pois afirma que o historiador transformou-se no dono da verdade, que nem
O duro cotidiano criado por anos e anos de combate armado é flagrado pelas
crônicas de Ana Paula Tavares que revela um tempo que muitos desejariam esquecer. Um
tempo a definhar o sonho de um futuro próspero para aqueles que construiriam um país
A guerra, o abandono e a fome são o pano de fundo de seres que a terra mãe nem
sempre adoptou como devia. Seres crescidos antes do tempo e, se desenvolvem a
meio caminho entre uma improvável chegada ao mundo dos adultos e a imprevisível,
porque assente numa longa combinação de imponderáveis, construção do dia que
passa.
O rosto mais visível da devastação e da guerra tem olhos de criança, tão grandes e
espantados como os símbolos solares das pinturas rupestres antigas.
A sua trajectória fez-se em câmara lente num filme de terror com duração igual e
consciente com suas próprias vidas (Ibidem, p. 93).
anterior mocidade também manchada pelo conflito armado. Antes, uma guerra pela
independência. Depois, uma liberdade que busca, no confronto, a sua própria libertação,
pois o seu conceito foi deturpado como se lê em “Filhos do clã de novembrino”, mais uma
Eram anjos descalços e errantes, num país minado pelo petróleo, diamantes, uma
indefinição geográfica e várias condenações políticas. Com as suas próprias mãos de
anjos reinventaram a guerra e envelheceram os jovens à força das promessas de fazer
a guerra para acabar coma guerra (Ibidem, p. 77).
57
pendurados nas árvores como pássaros doentes (Ibidem, p. 77). Aves impossibilitadas de
alçar vôo, suas asas não suportaram o peso da tristeza, da dor, da fome, da miséria e,
demonstram o comprometimento da autora que se preocupa com futuro de sua terra natal.
Apesar da triste realidade vivida por Angola na década de 90, há no exercício das crônicas
da autora o desejo por tempos melhores, após tantas tempestades, conforme deixa evidente
Ana Paula Tavares assume um discurso firme e consciente de quem não se pode
Anda por aí muito silêncio a transformar palavras em medo. Andam muitas bocas
com coisas por dizer e no entanto amordaçadas pela indiferença, que por esta altura
já cresceu tanto que se tornou difícil de romper.
(...) Faz falta a palavra grito a crescer por cima desse silêncio todo, construída
livremente, com o respeito antigo pelo lugar, mas trazendo as novas do tempo, dos
participantes e das promessas (Ibidem, p. 33).
58
está ligada a superficialidade da mensagem, neste caso ciosa do seu dever e seu direito de,
em certa medida, transformar o meio, conforme afirma Rita Chaves, no texto “A palavra
livro, representa o quanto a “palavra grito” se mostra forte perante o silêncio criado pela
nesse texto:
As crônicas de Ana Paula Tavares, assim como Angola, desafiam a dura realidade
regada por sangue e desigualdade, mostrando que também da terra nascem flores em meio a
ervas daninhas: De uma coisa estou certa, venha quem vier, mudem as estações, parem as
chuvas, esterilizem o solo, nós somos cada vez mais como as buganvílias: a florir em
em sangue”, pois, além de repensar momentos difíceis da história de Angola, faz surgirem e
Salomé, vem para ratificar essa nossa percepção e a própria arte de cronicar da autora.
4
Disponível na Internet via www.fflch.usp.br (consulta feita em 12/04/2007, às 16:40).
59
Ana Paula Tavares dá asas às palavras, deixando que do alto possam, para além do
Eduardo White
sonhar, como instiga a autora: Todos nós temos um tempo de voar. É quando participamos
do absoluto, nos nascem penas e simplesmente voamos pelos caminhos da infância, a asa
aberta e folha solta, sem mãos, sem pés e sem destinos (Ibidem, p. 30).
60
Engana-se quem pensa que há no texto uma fuga da realidade. Ao contrário: há uma
a demonstração de que a infância é algo passageiro e de que o crescimento faz com que
deixemos para trás as asas: A cor do medo aprende-se mais tarde, nesse longo processo de
Apesar de aparadas as asas, sabemos que um dia fomos capazes de voar e quem
guarda essa lembrança não perde a confiança diante de ventos fortes que não mais
permitem o alçar vôo. Ecléa Bosi afirma: A memória aparece como força subjetiva ao
mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, E., 1994, p.
47).
algo seja feito, que Ana Paula Tavares quer despertar no dia-a-dia de cada pessoa, no
registro de fatos de cada um, nas “efemérides”: Poucas coisas ficam resolvidas, os
problemas de África não se resolvem num dia, agravam-se todos os dias, mas ainda é bom
ver as pessoas com a cara de anjos malucos, que é a que todos temos quando somos novos
função da memória nas crônicas dessa poetisa: Nas revisitas ao passado, desmancha-se a
atmosfera nostálgica para que a recordação, colhida em jogo dinâmico, venha iluminar o
www.fflch.usp.br).
Por intermédio dos dois livros de crônicas de Ana Paula Tavares, revisitamos e
características marcantes nas obras dessa autora que sabe que o cronista que narra os
que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história
temos acesso. Passamos a também percorrer, por meio da experiência da autora, as trilhas
fazem com que nos tornemos “viajantes-aprendizes” das tradições e costumes de diversas
etnias angolanas.
(TAVARES, 1998, p. 19). Ela conta-nos as histórias, muitas vezes narradas por contadores
Assim as histórias das viagens antigas. Começavam sempre um pouco antes nas
azáfamas de uma preparação meticulosa oficiada pela voz sacerdotal do meu pai e a
capacidade de multiplicação do tempo da minha mãe. Depois era uma lenta descida
pelos rios interiores da antecipação: o rememorar de conhecimentos que nos tinham
ficado escondidos na alma pelos contadores de histórias que, de serviço, aos serões
de um tempo sem televisão e com uma rádio rigorosamente controlada, nos
gravavam uma sede expectante sobre a alma dos lugares (Ibidem, p. 19).
Tavares. O trecho citado reitera o que Rita Chaves, em trabalho já anteriormente referido,
ressalta e que perceberemos ao longo da dissertação: (...) o leitor, atento, vai percebendo
www.fflch.usp.br).
guiados pelo palavrear do contador de histórias que, para além dos recursos técnicos da
comunicação, permitia que as asas do sonho e da poesia (não nos esqueçamos do tempo de
paisagens, sons, cheiros, gostos e vozes, de modo semelhante ao usado pelos contadores de
histórias: Mais tarde eu própria oficiei esse tempo solene de preparação, quase todas de
jeep em busca do país cultural, que é uma forma como qualquer outra de ir deixando a
É feita nessa narração uma espécie de “releitura” dos relatos ouvidos na infância. A
distração infantil impede a retenção de várias das informações e imagens sugeridas pelos
contadores. Ocorrida a experimentação dos fatos, a história passa a ser “refeita” e não
situação em que se desenvolve a releitura, teremos de reconhecer que não é isso que
se dá. Parece que estamos lendo um livro novo ou, pelo menos, um livro
remanejado.(...).
A diferença maior, e inevitável, está no teor das idéias e das reflexões sugeridas pela
nova leitura (BOSI, E, 1994, p. 57).
E é sobre esse “novo livro” de experiências que Ana Paula Tavares continua a nos
demarcado por culturas que muito anteriormente tinham atravessado e modificado a nação
Diante dessa releitura, a cronista nos apresenta suas reflexões e conclusões acerca
dos bens culturais que sua terra deixava marcados para sempre naquela que por meio da
palavra seria também uma guardiã das tradições e histórias descortinadas por sua própria
vivência:
Ana Paula Tavares demonstra, em suas crônicas, que não é fácil assumir o
compromisso de preservar as heranças dos muitos povos de seu país. Não há como fugir de
sua própria história, de suas íntimas lembranças, de tudo aquilo que a fez crescer,
assumindo o seu papel de também contadora de histórias de sua região, seja por onde for:
(...) uma espécie de viagem ao contrário, onde o importante é chegar e mascarar uma
sobre os múltiplos sentidos dessa lavra e para que serve ela. Assim, Ana Paula Tavares vai-
nos guiando pelos fios narrativos de suas crônicas, conjugando também a mestria de saber
Os poetas têm sobre o comum dos mortais a grande vantagem de poder cultivar, na
sua grande lavra de palavras, passados intactos que visitam e tratam para depois
distribuir por pequenos trabalhos que nos devolvem a um mundo mais-que-perfeito e
entretanto perdido. (Ibidem, p. 48).
dos danos difíceis causados pela guerra. Palavra e memória: uma necessária à outra, como
pelo narrar da nossa cronista que conclui: Não surpreende assim que seja pela mão das
palavras que se pode fazer o regresso à casa da mãe, às distintas cores da infância e aos
Angola, os leitores aprendem que a palavra é um pacto com o tempo. Mesmo que seja um
65
tempo fissurado entre realidade e sonho, entre vivido e por viver, entre ruído e silêncio
(Ibidem, p. 49).
águas longínquas, possíveis por intermédio do fio condutor que une algumas das ricas
tradições de Angola, Ana Paula Tavares, suas crônicas e nós, leitores: a palavra. E essa
desvela como a língua se mostra essencial nesse processo de preservação cultural. Para que
cada palavra possa ser pronunciada, ela tem por fundo a língua inteira como sistema de
significação que reflete nossos valores, costumes, tudo o que constitui o mundo da nossa
cultura, ensina Adauto Novaes a respeito da importância das línguas como formas de
munido apenas de sua língua o colonizado é um estrangeiro dentro do seu próprio país
Percebemos que não foi possível ao colonizado a posse única de sua língua, pois,
acrescenta: (...) o bilingüismo colonial não pode ser confundido com qualquer dualismo
se do idioma do colonizador naquilo que se fez necessário e preservou a que era única,
Angola, muitos assimilados adotaram a língua portuguesa e seus filhos já tiveram o idioma
66
português como língua materna. Portanto, os escritores de países que foram colônias devem
Ana Paula Tavares assume seu papel social como escritora e sabe servir-se da língua
portuguesa, seu idioma materno. Isso fica claro em sua crônica “Língua materna” (SB),
desde as epígrafes escolhidas por ela: “[...] Português, irmão, é difícil mas não custa
(Lourentinho, personagem de um livro de José Luandino Vieira)” e “Pela voz da mãe eles
crítico da autora que começa por dizer: Há nas nossas relações com a língua materna um
certo efeito almofada que, como a mão fresca das mães nas nossas infâncias febris,
da literatura, Ana Paula Tavares explica o sentido lato da língua e a disponível volubilidade
desta para que lhe sejam asseguradas uma efetiva comunicação e propagação, de modo que
sinfonia literária:
terreno fertilizado. Corpo que se quer semeado, grávido, eterno gerador dos signos que
Memmi discute ainda que a língua do colonizado é aquela nutrida por suas
sensações, suas paixões e seus sonhos, aquela pela qual se exprimem sua ternura e seus
espantos, enfim a que contém a maior carga afetiva (MEMMI, 1977, p. 97). E na crônica
em questão a autora também aponta os laços indissolúveis (e que se querem assim) da sua
(...) a língua materna vai connosco [sic] à escola e aprende a domesticar-se e a fingir-
se. Assimilada, calçada e de bata branca durante certas horas do dia, solta-se
selvagem e descalça na hora do pontapé, do futebol e da pancada. Pode lá disparatar-
se sem ser em língua materna?
Enfim, a língua é uma espécie de segunda pele, impressão digital, única, pessoal,
contagiosa poderia mesmo dizer-se (TAVARES, 1998, p. 14).
maternas para realizarem as tarefas de Deus, a transmutação do corpo em voz e, uma vez
voz, repetir o murmúrio da tradição que assim se transforma em pedra de tanto durar
(Ibidem, p.14). E toma para si essa responsabilidade de transmissora das questões culturais
de seu país, ao assemelhar-se ao contador de história, quando diz: Os poetas também sabem
desses ofícios (Ibidem, p. 14). E sabem que pela língua e pela palavra podem reinventar
passados, revisitar lugares, viajar por entre a(s) cultura(s) e trapacear tempos de dor: À
força de voz e no meio da língua fundamos o nosso lugar e inventamos a utopia quando
pretérito e do presente, que se mostram espelhos das relações dos indivíduos com a língua.
Ensina-nos que silêncio também é verbo, ou melhor, é dele que todas as coisas nascem,
silêncio que antecede a linhagem, que perpetua um tempo para lá da eternidade, antes do
O texto se constrói por intermédio de um discurso maduro de quem sabe que falar a
silêncio e saber sobre o outro é também aprender a escutar, bem mais do que falar:
justamente pela descoberta das diferenças, pela observação do outro, do novo, da beleza da
língua e da linguagem, da percepção daquilo que o silêncio e o falar têm de tão diferentes e,
Conta-nos, porém, a autora que a magia pela descoberta das línguas, das palavras,
do outro, se perdeu e que, desde então, o silêncio foi banido das terras Lunda. Os tambores
anunciam as falas. Toda a gente fala a mesma língua mas ninguém se entende (Ibidem, p.
113).
angolana por meio das inferências da cronista que faz de sua escrita uma vibração, força
vital. Amadou Hampâté Bâ construiu reflexões, no texto “Palavra Africana”, que vão ao
encontro do sentido que Paula Tavares atribui às palavras em seus textos, pois ele nos
que desta, como demonstrou Amadou Hampâté Bâ, surge a força, a vida: (...) todas essas
forças de que o homem é herdeiro jazem nele como forças mudas, em estado estático, entes
que a palavra as venha pôr em movimento. Graças à vivificação da palavra divina, tais
artesãos são considerados linguagem plena. Cada produção do tecelão e do ferreiro se inicia
por meio de palavras pronunciadas em típicos rituais, que tecem, assim, a arte por meio da
Sobre o nascimento do verbo, “fala-nos” mais uma crônica da nossa também tecelã
intitulado “A cor das vozes” (CS), metaforiza o mistério da criação tecido pelas mãos de
uma mulher:
A senhora das mãos de seda colocou no cesto da tradição, por ordem, as tintas
antigas. Amassou com dedos finos, tacula e lápis-azul, moídos sem pressa com
gestos longos nos dormentes esquecidos das antigas casas da aldeia. O pó dos
alfabetos (latim, éfik, desenhos geométricos em carapaças de tartaruga) foi misturado
em cuidadas operações com óleos, vegetais, minerais e perfumes.
A senhora das mãos de seda amarrou o sopro das vozes dentro do cesto de
adivinhação e inventou o mundo a partir das relações entre os diferentes sons.
Aprendeu a olhar uma por uma e a cobrir de panos as palavras nuas da história.
(TAVARES, 2004, p. 115).
testemunhamos o respeito pela palavra e pela tradição existentes nas crônicas de Ana Paula
Tavares, cujos ensinamentos são, entre outros, os de que experimentar a palavra é também
Para conhecer e distinguir as diferentes notas das vozes, a senhora das mãos
experimentou tudo: a escrita das pedras, a escrita na areia, o alfabeto grego, a escrita
tifinagh e a revelação dos sonhos transcrita directamente dos símbolos mais perfeito.
Aprendeu a bordar tapetes showa, veludos do Congo, esteiras com provérbios
inscritos. Coleccionou as fibras de toda as espécies vegetais, mesmo as
aparentemente desaparecidas dos mapas mais à mão (Ibidem, pp. 115-116).
Esse trecho ratifica a idéia de que tudo é palavra que tomou corpo e forma
(HAMPÂTÉ BÂ, 1993, p. 16). A cronista mostra-se como a “senhora das mãos de seda”,
em formas, cheiros e sons: De cada vez que uma voz se mexia, ela ficava uns momentos
71
quieta a descobrir-lhe as cores, os silêncios, os cheios, os vazios, enquanto nas voltas que
Amadou Hampâté Bâ ressalta a sabedoria daquele que deseja aprender a arte e fazê-
la seu ofício: O aprendiz não deve fazer perguntas. Deve apenas observar e soprar. Essa é
ritmos cada vez mais complexos, que têm, todos eles, um significado (HAMPÂTÉ BÂ,
1993, p. 19).
palavra, somos guiados pelo cronicar de Ana Paula Tavares que, assim como “a senhora
das mãos” em “A cor das vozes”, tem uma luz espalhada na alma que, às vezes, empresta
às palavras quando estas se repetem, são pouco polidas, ou aparecem nuas e ásperas como
Ana Paula Tavares escreve sobre o tempo de histórias difíceis, sobre o exercício da
memória, sobre a arte da palavra. E, sob o sopro de sua pena, registra o circunstancial, o
presente, para, a partir desse, interpretar o passado, pois a história é bem contemporânea,
interesses, o que não é só inevitável como legítimo (LE GOFF, 1990, p. 51).
o essencial da crônica: a leveza do gênero. Seu tecer narrativo não desfaz os laços com sua
formação poética, embalando suas crônicas num ritmo marcado pelo lirismo e pela força
vital da palavra. Rita Chaves ressalta essa relação “poético-narrativa” nas crônicas de
Paula:
72
A lâmina da poesia tem sido uma ferramenta adequada para penetrar em câmaras
fechadas, em cantos escuros, por isso a ela a cronista se apega e seus textos atestam
que a opção pela prosa, e pela prosa curta, não postulam uma ruptura com o lírico.
Ao contrário, através dos textos, vamos percebendo que a intimidade com a poesia
manifesta-se de modo vivo, uma comunhão materializada no inesperado das
imagens, na busca pelo insólito para falar do desconcerto do mundo (CHAVES,
www.fflch.usp.br).
estarmos a ouvir notícias tristes, narrativas obscuras que não se mostram capazes de utilizar
(Ibidem, p. 135), pois, como ensina Barthes: Se leio com prazer essa frase, essa história ou
essa palavra, é porque foram escritas no prazer (BARTHES, 2004, p. 9). E continuaremos
a sentir esse prazer, no narrar de Ana Paula Tavares que dança, canta e toca os tambores do
capítulo seguinte.
73
explícita essa característica e evocam o leitor, proporcionando com este um diálogo claro.
Há crônicas que sugerem essa conversa de uma maneira velada, porém não menos íntima,
afinal só para amigos (ou para quem deseja sê-lo) contamos nossas histórias e lembranças.
Para Ruth Silviano Brandão o texto, literário ou não, exige uma extrema delicadeza
para ser analisado, tocado, invadido em sua interioridade. Texto é o lugar onde o sujeito
necessita ser atento e cuidadoso ao “escutar” o que o texto desejou contar, ou melhor, o que
O autor almejou não apenas escrever sobre algo, ou acerca dele mesmo, mas se
inscrever, deixando marcas e traços de uma escrita própria, perpetuando-se a cada curva
textual. Assim, também se quer o cronista: a cada instante flagrado deseja mostrar-nos o
Da mesma forma, as crônicas de Ana Paula Tavares. Seus textos querem dividir as
experiências, histórias, lembranças, narrações com aquele que lê. Aspiram tanto à invasão
por parte do leitor que não se contentam com as folhas diárias do jornal, quanto sua difusão
por meio do rádio. Querem-se livro. É a partir desse contar, desse modo de “conversar”, ou
∗
TAVARES, Paula. Manual para amantes desesperados: poemas. Luanda: Editoria Nzila, 2007, p. 9.
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melhor, “cronicar”, que nos deixamos levar pelas narrações da autora, cujas constantes
beleza e a arte, no ofício daquele que, assim como o poeta, tem por objetivo, para além do
Durante muitos anos vi-o na sua forma sólida, um pouco curvada, mas sempre
discreta, passear pelos lugares num estudo minucioso dos materiais.
Era a um tempo estranho e familiar observar a figura alheada do pintor, longe da
azáfama dos anos de brasa, procurando meditar e ressuscitar para a vida as coisas
simples do chão, os imperceptíveis ruídos da terra (TAVARES, 1998, p. 54).
busca o sentido das coisas, o significado dos tons, na tentativa de representar a simplicidade
dos gestos através da mestria de colorir. E para apreender a fugacidade dos segundos, faz-se
Seus olhos filtravam do chão, de terra batida, sabedorias antigas de encontrar o ocre,
o branco e o negro, cores da vida e da morte.
O seu olhar sobre as coisas era tão quieto e tão atento que parecia ouvir mais do que
ver, o jogo de transparência e sombra reflectido nos grandes silêncios da terra o nos
ruídos do mar (Ibidem, p. 54).
terra a cor da vida, a pigmentação da poesia. Seu olhar de cronista atenta permite que o
leitor experimente os gestos do pintor, sendo também guiado pelo ritmo desse artesão que
busca não apenas o sentido das cores, mas as cores dos sentidos. Palavras a pincelar com
Uma procura pelas cores, pelos sentidos é clara na escrita da cronista que também
revela, nesse texto, a sedução pela palavra, ou melhor, pelos caminhos que leva sua palavra
É do chão, da terra que brota a inspiração para os temas inscritos nas narrações de
Ana Paula Tavares. Textos que, inundados de palavras preenchidas por tintas de tons
vibrantes, despertam a atenção do leitor que deseja continuar a conversar com as crônicas e
sobre estas, viajando, assim, pelas histórias contadas pela cronista. Histórias, às vezes,
escola 60” (SB) que reflete sobre os espaços marcados pelas descobertas do crescimento.
imagens-lembrança (BOSI, E., 1994, p. 53). E essa alomorfia da palavra em imagem nos é
Era uma escola pequena, de bairro, quase portátil, entalada entre a oficina de
automóveis “Auto Reparadora da Huíla”, a casa vazia do antigo Odeon-Cine-Teatro
e o Parque Infantil.
Dois enormes jacarandás invadiam o pátio com suas raízes de tronco e a festa dos
tapetes deixados pelas suas flores roxas, em Setembro, quando a escola reabria
(TAVARES, 1998, p. 60).
76
Assim como a crônica “O pintor”, também “A escola 60” se deixa inundar pelas
cores, imagens e gestos que vestem a roupagem das palavras gravadas no papel por Ana
Paula Tavares. E as ações tipicamente infantis vêm à tona num discurso que se mostra
À oficina de automóveis ia-se tarde roubar rolamentos que, juntamente com as tábuas
dos caixotes das lojas da esquina, serviam para elaborados carrinhos guiados a alta
velocidade, encostas abaixo pelas ruas das cidades.
Os mais inaptos (nabo era a palavra), aqueles que mal conseguiam a proeza de
manobrar tão sofisticadas máquinas, eram nomeados penduras, encargo que
significava normalmente carregar às costas o carro dos mais hábeis na condução e na
pancada (Ibidem, pp. 60-61).
O velho Odeon era um espaço misterioso escurecido de dia e de noite, com metros de
película abandonada e mágicas caixinhas vazias com rótulos comidos pelo tempo,
onde ainda se podia ler “CLEÓPATRA”, parte dois, que recuperávamos e enchíamos
de novos tesouros (papéis, ossos, asas de salalé e gafanhotos, pedaços de cabelo da
pessoa amada) e enterrávamos no jardim das casas dos avós e dos vizinhos, não sem
antes ter elaborado complicados mapas do tesouro impossíveis de ler para todo o
sempre (Ibidem, p. 61).
Enterrado, porém, não ficou o senso crítico da autora que revela o quanto sensível é
o coração infantil que, desde novo, aprende a discernir a crueldade em alguns adultos e em
Ana Maria, loira e de olhos azuis que, nos teatros da escola, desempenhava sempre
os papéis de nossa senhora, enquanto às nossas peles escuras estavam reservados os
lugares menores de criados, o que mesmo sendo criado de Nossa Senhora,
decididamente não nos agradava. Nos anos de sorte e no Natal alguns de nós
77
puderam representar os reis magos, o que significou uma certa promoção (Ibidem, p.
61).
reflexões críticas. Sempre, porém, acompanhado de um bom “papear”, o cronista conta com
a figura de um amigo que o “ouça” do outro lado da página, que lhe empreste o ouvido para
os temas “sérios” e também para as trivialidades. Afinal, alguns escritores conseguem fazer
Também compartilhamos dessa matéria-poesia nos textos de Ana Paula Tavares que
trava um aparente “papear” da crônica com aquele que a lê. Às vezes, certos cronistas
invocam claramente esse leitor, outros assumem o lugar “entre” da crônica e preferem o
chamamento mais velado, implícito, contudo, não menos, convidativo, pois demonstra que
seu texto (literário, não nos esqueçamos!) se quer fazer desejar, que deseja ser lido e que se
textos de Ana Paula Tavares não há referência explícita ao leitor, mas nem por isso suas
crônicas deixam de exigir o comparecimento deste na abordagem do tema, uma vez que
dissertam sobre questões dignas de serem conversadas, discutidas e, como nos diálogos, há
uma relação entre duas ou mais pessoas. No caso da crônica, acirra-se esse vínculo entre o
leitor e o texto literário; sendo assim, o leitor sublinha, recorta, seleciona, pontua,
Roland Barthes nos ensina que ler é fazer o nosso corpo trabalhar (...); ao ler, nós
também imprimimos certa postura ao texto, e é por isso que ele é vivo (BARTHES, 2004,
78
p. 29). E nosso corpo responde aos apelos da crônica, pois refletimos e tecemos
comentários acerca daquele instante flagrado pelo cronista, mesmo que estes fiquem
guardados no texto da nossa mente. Não vivenciamos o ocorrido, mas, assim como fazemos
com nossos amigos, sentimo-nos no dever de também esboçarmos a nossa postura diante
do fato. Poderíamos até fazer nascer uma outra crônica daquela já lida.
lembranças das nossas próprias histórias da infância, das nossas aventuras entre amigos,
dos nossos anos escolares, colocam-se frente aos nossos olhos. Afinal, quem nunca se
flagrou contando seus contos, suas narrações, ou melhor, quem nunca se surpreendeu
cronicando?
ficamos a ouvir as narrações de Ana Paula Tavares. Viagens, recordações, história, Angola,
Huíla, infância, língua: a diversidade temática é grande e a palavra é sempre utilizada como
ferramenta condutora por entre essas trilhas que nos levam a viajar e refletir.
Nas linhas desenhadas por Paula, há muitas histórias e muito a se capturar com a
alma, conforme a própria autora ressalta em “Recensões críticas” (SB): Dizem-me os sábios
cabinda [sic] que isso é mesmo assim e que a história resulta da hábil conservação de
segredos, daqueles que nunca são revelados a não ser aos iniciados na linguagem secreta
crônica “Chão das ilhas” (SB) que discorre acerca de Cabo Verde. Sabe a cronista que
muitos leitores não conhecem o território cabo-verdiano, não obstante cumpre o papel de
Demorei muito tempo a perceber esta deambulação fascinada por uma terra
desconhecida, embora muito frequentada pelo recurso às literaturas e outras músicas
chegadas de lá e com morada certa no coração das gentes.
Talvez não seja preciso conhecer as ilhas para adivinhar a sua pequena extensão
plantada no meio do atlântico, atravessando em súplica a sua solidão de seca,
fazendo de intérpretes entre o mar e o continente, entre o continente e o resto do
mundo (Ibidem, p. 80).
assunto. Ao contrário, busca, através da poesia, mostrar o encantamento das ilhas e das
águas. Fala-nos das línguas, da musicalidade no cantar e falar dos habitantes de Cabo
Verde. Os pedidos por chuva se transformam em sensíveis canções dentro do peito de quem
Só essa experiência pode explicar o granulado das vozes falando uma língua
suavemente encaracolada, uma língua feita para sentir e, portanto, forte e, ao
mesmo tempo, capaz de se fazer cicio na oração pela chuva passada de boca
em boca durante a “estação das brisas”, que dura de Dezembro a Junho e às
vezes se eterniza o ano inteiro (Ibidem, p. 80).
Num texto inundado pela sinestesia, as palavras se ligam por uma musicalidade
poética sussurrada em nossos ouvidos. Como em uma “morna”, a típica canção popular dos
cabo-verdianos, as palavras cantam a dor e a saudade daqueles que suplicam pelas águas
pluviais e por aqueles que saíram das ilhas, mas deixaram suas almas nelas inscritas. A
Os deuses vagueiam inquietos e habitam essa zona de espera entre Agosto e Outubro.
Tentam controlar os ventos e cumprem estranhas profecias, entre as quais o hábito de
olhar a multidão e com ela apreender a leitura dos lábios da linguagem antiga e aos
caracóis que é, a um tempo, voz poética e instrumento que molda todos os sentidos e
os convoca na auscultação dos segredos da terra e do céu (Ibidem, pp. 80-81).
80
Vozes, línguas, bocas, lábios, olhares, águas, canções, letras inundadas de poesia e
seduzem, gesticulam, assumem vida dentro de um discurso que se quer sedutor perante um
leitor que se deixa seduzir pela aparente simplicidade de uma crônica. Mínimas palavras
linguagem, conforme explicou Lúcia Castello Branco ao falar sobre poemas de Drummond,
o que pela associação com a poeticidade do discurso de Paula Tavares, nos permite tal
incorporação:
isto é, o circunstancial típico das crônicas, que realiza essa relação de intimidade com o
leitor que se mostra conduzido pelo sopro poético de letras dramatizadas em forma de voz a
relação de sedução e toque, pois, como teoriza Roland Barthes acerca do erotismo das
palavras,
entre a cronista e o leitor, Ana Paula Tavares deixa aflorar histórias, narrações, personagens
corpo do leitor que se inquieta em meio às narrações; afinal, a arte de narrar é uma relação
alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana (BOSI, E.,
1994, p. 90). Alma para sentir o que para além das palavras está escrito e dito, o que para
além do narrar foi vivido e experimentado pelo corpo e pela mente por entre viagens e
Olho para fotografar as paisagens dentro do coração e da memória. Para não apenas
ver, mas enxergar o que a alma do território tem a mostrar, as cores inusitadas a
A primeira vez é sempre uma surpresa: a cor da terra batida, um trilho insuspeito de
um viajante anterior, o verde-acastanhado de um capim teimoso, a pequena depressão
da memória de um rio, agora inexistente, o perigo de uma mão cheia de areia
estendida pelo deserto até a orla da floresta.
Depois, são os sons a dar notícias da existência de bichinhos a contar sobrevivências,
milhões de anos antes de nós. A impossibilidade dos insectos, uma jibóia distraída, a
correria das capotas, o barulho pouco educado dos grous (Ibidem, pp. 23-24).
82
Mão para escrever e descrever o que foi inscrito na alma e registrado pelos olhos, já
que, em “Peregrinações”, narração para ser lida em voz alta, a combinação da voz com os
gestos é fundamental, pois pode-se falar de uma verdadeira relação entre os gestos e o
referida crônica:
O meu amigo não é um viajante, nem um guia, nem uma daquelas pessoas cheias de
sentenças. É, apenas, um coleccionador de rotas, que degusta, fotografa e descreve,
com o deleite de quem procura o caminho da perfeição, mas sabe encontrar o seu
próprio tempo em qualquer lugar.
Dele me lembrei, quando no outro dia contava histórias africanas a alguns meninos
europeus. Quase todos gostaram muito das histórias, dos estranhos nomes, dos
percursos complexos, dos animais de nomes sonantes a encher as histórias, nem
sempre com um final feliz.
Um dos miúdos, no entanto, disse-me: «Não gostei nada, mas lá que o medo, como
todos os caminhos, é um rio que se atravessa molhado, é verdade. » (Ibidem, pp. 24-
25).
Mia Couto, é a frase utilizada como epígrafe dessa crônica e incorporada ao discurso do
texto. Muitas referências a outras leituras e a provérbios inerentes à cultura popular são
utilizados nas crônicas de Ana Paula Tavares, tanto em O sangue da buganvília, quanto em
A cabeça de Salomé.
aventuras textuais e, como enfatiza Ruth Silviano Brandão, sobre a relação do leitor com o
texto literário: as citações são as marcas de quem escreve, de suas escolhas, de suas
viagens por outros textos, e por meio delas o leitor constrói seu trabalho de leitura/
83
escritura, reescrevendo seu próprio texto interno no texto alheio (BRANDÃO, 1995, pp.
21-22).
depoimento de uma mulher africana que desabafa: Não conheço uma família em que o
marido limpe a casa, olhe pelas crianças, faça as compras etc. É possível que exista mas
Há nessa crônica, como em quase toda a obra de Ana Paula Tavares, o olhar de
quem escreve e reflete sobre a situação das mulheres, principalmente da mulher angolana, e
sobre o importante papel que essa desempenha na sociedade. Como assinala Rita Chaves no
artigo “A palavra enraizada de Ana Paula Tavares”, a autora não fala pelas mulheres de sua
terra ou de outras, fala com elas, abre-lhes o lugar que elas já ocupam. É essa uma das
maneiras de denunciar uma das muitas injustiças dos tempos que não param de correr
(CHAVES, www.fflch.com.br).
Essa crônica de Paula nos apresenta a cidade de Kinshasa e questiona a vida das
mulheres nessa sociedade opressora, inserida num contexto histórico machista e silenciador
das vozes e vontades femininas. Nesse texto, há um diálogo claro “com” as mulheres para
que reflitam sobre sua condição de cidadãs e, por assim serem (e terem de ser!), gozadoras
seres sem vontade expressa. Essa crônica cumpre o papel de registrar esse abuso contínuo
do dia-a-dia e que perdura por gerações. Retomando a crônica “A escola 60” (SB),
percebemos que, desde pequeno, o homem aprende o valor da mulher “em casa”, mas, nas
entrelinhas, a cronista sugere que a figura feminina pode saltar para além dos serviços
domésticos e realizar a arte de ser mulher-fêmea, não incorporando apenas o papel de mãe:
A cronista aborda não só os abusos contra as mulheres, porém a força que brota
silêncio. Mas não é da privação do falar que se apropria a palavra de Paula na crônica
“Silêncio, sacrifício e serviço” (SB). O discurso tem voz de mulher, de cronista a denunciar
A vida quotidiana das mulheres, o seu contributo para a construção do passado, o seu
verdadeiro papel na história do continente africano não consta da tradição oral,
escapou, com as excepções já referidas, à pena dos cronistas africanos, europeus, de
todos os lados do mundo.
A história tem passado ao lado de quem nove meses por ano se agarra à terra e dela
cuida, rasgando, semeando, colhendo, protegendo, enquanto ainda arranja forças para
sustentar o corpo inchado e pôr cá fora uma nova criança, para alimentar a linhagem,
para crescer a vida e enganar a própria morte (Ibidem, p. 103).
As mulheres são um dos grandes assuntos da pena dessa cronista que reconhece a
importância feminina na construção da história de seu país e, por que não, também da
história mundial. Palavras, mãos e corpos femininos estão inscritos na obra dessa autora
85
que nos abre os olhos para as trilhas percorridas por mulheres, assim como ela: As mãos
que tecem o tempo, moldam o barro, já imprimiram na face da história a sua impressão
vividas, experimentadas pela cronista e também por outras personagens, muitas delas
sacrifício de fêmea a oferecer-nos palavras que, assim como Salomé, dançaram um ritual
importância de personagens femininas. Esse livro nos conta sobre o sangue derramado nas
guerras, sobre a luta pela sobrevivência necessária em meio a tempestades e também sobre
ao leitor: a existência pelo barro, o viver sentido, tocado, degustado pela mulher tão dona
versículo 7, relata que o Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou
no seu rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma (pessoa) vivente (BÍBLIA, 1990,
p.26). Na crônica de Paula, também vemos o barro associado à geração da vida, do homem,
à recriação da tradição pelas mãos femininas das oleiras e pelas linhas da poetisa que
artesãos e ressaltou que os gestos do tecelão que trabalha em seu tear (assim como os
(Hampâté Bâ, 1993, p. 18). Na crônica, de Ana Paula, a ação do criar é feita a partir da
união dos elementos naturais com as palavras da mulher artesã que, ao “soprá-las”, torna o
Depois são as operações de limpeza: estendem o barro no chão sobre uma esteira, ou
qualquer outra superfície polida e esmagam-no grão a grão. Acrescentam água e
amassam adicionando, com a sabedoria de quem domina linguagens antigas, outros
elementos que dão consistência aos barros magros ou diminuem o peso dos barros
excessivos (TAVARES, 1998, p. 62).
As mulheres “esmagam” a argila para que esta passe de matéria à vida, uma vez que
gerações descendentes como fonte de sabedoria. A argila é, assim, uma verdadeira metáfora
Todas essas operações se fazem com umas mãos que parecem asas e que escondem,
pela rapidez dos movimentos, a força necessária à transformação da matéria em vaso,
repetindo gestos de criação que de certeza nos sobram do tempo dos dedos de deus
(Ibidem, p. 63).
O exercício do “tocar” também é cumprido pelo poeta que com suas mãos tece o
corpo do texto e a este acrescenta vida e alma, ou melhor, como as oleiras, “esconde” seu
coração em suas criações para que estas possam encantar aqueles que as experimentem: Só
os poetas descobriram como é que as oleiras enterraram o coração no barro e desde aí lhe
O coração é o órgão do desejo (o coração se dilata, falha, etc., como o sexo), tal
como ele é retido, encantado, no campo, do Imaginário. O que é que o mundo, o que
é que o outro vai fazer do meu desejo? Essa é a inquietude que reúne todos os
movimentos do coração, todos os problemas do coração (BARTHES, 1981, p. 60).
crônicas, fazendo desse anseio o seu desejar, o seu gozar. E nesse jogo da sedução do texto,
há a presença fundamental das mulheres que têm, para além de um coração de barro, um
coração cheio do barro da vida. A figura feminina é exaltada no final dessa crônica de
“[...] Esta mulher é minha e eu amparo, oh povo, para poder vê-la a modelar o pó. Os
seus dedos, oh povo o ar é que os governa, assoprado pelo nó do coração quando o
seu gênio, oh povo confunde a terra e a carne e a cor dos instrumentos, e a água vem
render à mesma massa, oh povo, a terra e a carne que um tempo antigo modelou
primeiro. É o vento que vem, é a terra que está, é a água que rende, é o fogo que
coze, é a forma que nasce [...]” (CARVALHO, R. D., In: TAVARES, 1998, p. 63).
região da Huíla. O sopro poético das palavras é sentido pelos leitores que são visitados
88
pelas narrações líricas das crônicas de Paula Tavares, já que estas, muitas vezes, se fazem
Aquele que narra doa um pouco de sua vida, de suas experiências, de suas vivências
aos leitores. Assim ocorre, em geral, nas crônicas, pois os seus autores mostram-se atentos
objetivo da crônica. Mas, Paula narra, muitas vezes, como se contasse uma história, um
conto.
O narrador é um mestre do ofício que conhece o seu mister: ele tem o dom do
conselho. A ele foi dado abranger uma vida inteira.
Seu talento de narrar lhe vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor;
sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo.
Uma atmosfera sagrada circunda o narrador (BOSI, E., 1994, p. 91).
Como esse narrador, também, Ana Paula Tavares narra suas experiências e
passadas à cronista. E esta continua a cumprir a tradição de repassá-las, no caso, para nós,
Muitos ensinamentos e muitas histórias as crônicas de Ana Paula Tavares têm a nos
contar, como ocorre, por exemplo, no texto “Funge de sábado” (SB) que focaliza o
tradicional hábito angolano de saborear as receitas oriundas do milho aos sábados. Receitas
Algumas mulheres mais velhas (nota-se que esta designação ⁄ estatuto “mais velhas”
comporta um universo de mulheres de idades tão variadas como as que ainda
freqüentam há pouco tempo o lugar dos trinta até àquelas mulheres de origens
remotíssimas, árvores de grande porte onde o tempo entrou, e se perdeu, e que têm
das suas origens e nascimentos uma vaga noção – “nasci no ano dos ratos”, “quando
era pequena houve a sétima praga de gafanhotos”)
Mas, dizia eu, transportam estas mulheres a secreta ciência dos sabores, patrimônio
ciosamente guardado, pessoal e intransmissível, exercido com a eficiência dos
longamente iniciados...intransponível.
São elas que inventam o sábado, num amanhecer de todas as cores, transformando
cada sábado num dia único irrepetível, para ser vivido devagar.
Antigas viagens do milho e da mandioca são trazidas de volta, nas intermináveis
buscas e nas cerimônias de prova e compra dos melhores produtos (TAVARES,
1998, p. 50).
guardam as tradições como a do “funge de sábado”. Passam esse e outros costumes umas às
uma disponibilidade destas mulheres em cultivar o hábito cultural de “bater o funge”, tão
freqüente em Angola. A crônica, passo a passo, descreve essa prática ancestral e mostra a
A panela do funge é uma instituição em cada casa. É aquela e mais nenhuma, sendo
que as verdadeiras apresentam uma pátine reveladora das marcas do tempo, numa
estratigrafia que corresponde aos segredos da família, como a terra, a árvore secreta,
as malas dos panos, as rugas das faces (Ibidem, p. 51).
90
A panela funciona como metáfora das trilhas culturais de Angola e das famílias
angolanas que vêem nela seus próprios traços, suas histórias e seus segredos. E são também
as mulheres que, nas linhas narrativas de Ana Paula Tavares, nos apresentam a “panela” de
O livro A cabeça de Salomé inicia sua contação de histórias nos apresentando Dona
Beba, personagem principal que dá título a uma das crônicas. Num retorno ao passado, a
cronista narra a experiência do encontro com essa mulher de louvável memória. E tudo
apropriadas, tudo oriundo de ensinamentos repetidos por tantos outros que vivenciaram os
experimentação da vida. O olfato estimula a memória das sensações, sendo o sentido mais
O narrador deixa sua posição de observador, comum aos narradores das crônicas
tradicionais, e realiza o desejo de também sentir, viver o que é narrado. Como ressalta
Ecléa Bosi, (...) seu talento de narrar vem da experiência (BOSI, E., 1994, p. 91), e nossa
contadora de histórias mergulha nessa aventura do viver, ver, tocar, perceber por meio dos
sentidos:
91
barco, a cada casa, a cada palavra e a cada silêncio. Em meio a tantas surpresas, diante
desses viajantes, surge Dona Beba,viúva de nho Papacho, a tocá-los pelas mãos e histórias:
Salvou-nos Dona Beba com suas mãos de veludo. Umas mãos impossíveis para quem há
oitenta e nove anos as usa a segurar a vida de quem precisa. Cuida dos doentes, ampara os
ensinamento, e não do descanso, pois “mesmo que o corpo dos velhos desfaleça, seu
E Dona Beba não descansa e não cansa de mostrar sua sabedoria. Sua morada
também contribui para o cenário mágico das contações de histórias. Paredes cheias de
aqueles que as escutam; afinal, como afirma Laura Padilha, o contador, ou seja, um ser que
pelos que escutam a viúva de nho Papacho, os aventureiros e nós, leitores dessa crônica:
As narrativas de Ana Paula Tavares vieram para “tomar conta” dos nossos ouvidos e
mentes ao reinventarem a tradição de contar histórias. O livro Entre voz e letra, de Laura
Cavalcante Padilha, disserta entre outros textos acerca dos missossos. Sobre essas
narrativas da tradição oral, Laura Padilha ressalta que o prazer está, algumas vezes, menos
no que se conta do que no como se conta (PADILHA, 1995, p. 28). E as crônicas de Ana
Paula, ao narrarem as histórias, além de fixarem os olhos dos ouvintes no que está inscrito
nas palavras, instigam os ouvidos daqueles que as escutam pela maneira como são
contadas. Essa proximidade dos textos de Paula com a oralidade é também enfatizada num
Somos envolvidos pela “artimanha” da escritura de Ana Paula Tavares que encanta
sedução. Desse modo, mais uma vez, as crônicas se revelam um lugar “entre”: entre a
palavra escrita e a palavra oral, ambas a tocar a pele do leitor, a estabelecer mais uma
possibilidade de aproximação com aquele que, ao ler, se deixa seduzir. Sobre a “escritura
em voz alta”, Barthes chama atenção para o erotismo e a musicalidade das palavras e dos
fonemas:
(...) o que ela procura (numa perspectiva da fruição) são os incidentes pulsionais, a
linguagem atapetada de pele, um texto em que se pode ouvir o grão da garganta, a
pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne
profunda (...) Uma certa arte da melodia pode dar uma idéia desta escritura vocal;
mas, como a melodia está morta, é talvez hoje no cinema que a encontraríamos
facilmente (...) o corpo anônimo do ator na mina orelha: isso granula, isso acaricia,
isso raspa, isso corta: isso frui. (BARTHES, 2004, p. 78).
Também nós, leitores, nos deixamos levar pelo fruir dos textos de Ana Paula
Tavares, crônicas que narram em voz alta e ultrapassam o limite do gênero, assumindo sua
condição “entre”, perante a sagacidade das palavras a nos desvelarem múltiplas faces e
sentidos. As crônicas da autora se avizinham das narrativas orais pela sedução da palavra e
arte de narrar histórias pelo viés do prazer5. Elas se “apropriam” dessas características
afirma Lourenço Rosário sobre a tradição oral, (...) através da narrativa, a memorização se
torna mais fácil por causa da curiosidade e do prazer (ROSÁRIO, 1989, p. 48).
5
Nossa dissertação usa conceitos de Hampâté Bâ acerca da tradição oral que se assenta na crença da palavra
africana vinculada à idéia de energia vital.
94
Ana Paula Tavares preserva a tradição de narrar histórias sem, entretanto, abrir mão
do comprometimento com a literatura marcada pela escrita. Como ela mesma chama
atenção, a
«construção da literatura» angolana, tendo em conta os seus legados, faz-se num jogo
de alternância entre tradição e modernidade de fronteiras nem sempre bem definidas.
Entre oralidade e escrita, pese embora o facto de existirem poucos trabalhos de
análise sobre estes problemas, resistem jogos de formas, estruturas, toda uma
simbólica que remete para a sobrevivência da tradição com as suas marcas próprias,
no interior dos géneros e das escolas que definem a modernidade (TAVARES, 2001,
p. 109).
realizarem a arte de narrar, abrem mão do pacto com a realidade imediata e tangenciam o
gênero conto, utilizando personagens ficcionais para realizarem o gozo, a arte de contar e
cronicar histórias.
pelos cronistas:
Angola, já que esses textos da autora focalizam as datas em que os mesmos foram escritos
pela cronista. O trabalho com a linguagem poética também não foi esquecido: Nessa
95
incursão pelo gênero narrativo projeta-se a familiaridade com a poesia (...), ressalta Rita
alquimia de gêneros, como podemos perceber, em “Os ovos do arco-íris” (SB), já pela
epígrafe escolhida: “[...] Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é fumo, leve
demais para se prender na vigente realidade [...] – Mia Couto” (TAVARES, 1998, p. 64).
Na referida crônica, Paula acaba por estabelecer um diálogo com o conto e sobre o conto:
Uma viagem ao mundo acidentado dos contos é uma viagem guiada a uma
arqueologia de saberes, rigorosamente ordenada de forma a servir de manual de
ensinamentos úteis e práticos para a vida.
Sua absoluta dimensão de verdade enfeita-se, por vezes, da matéria dos sonhos, mas
não é assim que são feitas todas as verdades?
Tudo isto parece confundir os especialistas que, desde há pelo dois séculos, se
afadigam na recolha, dissecação e classificação meticulosa de um património que se
destinava a servir um momento e depois se perder ou ganhar uma nova dinâmica,
sobre outras cores das palavras (TAVARES, 1998, p. 64).
histórias, preservando, desse modo, grande parte do patrimônio cultural de Angola. Ela
característica da tradição oral; por isso, suas crônicas, muitas vezes, se esmeram na arte de
contar:
que seduzem o leitor pela “marca original” da autora Ana Paula Tavares: o colorir da
poesia e a arte de contar, de cronicar histórias. São crônicas que vão além do tempo factual.
Textos que transportam o leitor ao tempo da experiência da cronista, aos momentos vividos
por esta, às histórias ouvidas pela autora, como ocorre em “O meu encontro, à porta
fechada, com a beleza...” (CS). Essa crônica, narrada em primeira pessoa, relata uma
experiência “real” (ou que deseja ser) do narrador que nos apresenta uma personagem
especial, o homem-ovo:
adaptação aos tempos que sempre mudam. Seus vários nomes se alteram de acordo com
suas características e situações vividas. Assim também as crônicas de Ana Paula Tavares
vestem diferentes roupagens, segundo as situações que desejam narrar. O que os textos da
autora desejam é fazer nascer o colorido das palavras, conforme ocorre com o “homem-
ovo”. Ele conta o seu segredo ao narrador da crônica que fica a ouvir atentamente, pois
sabe que a proximidade com esse homem é também o encontro com a beleza das palavras:
«Sabe, o que eu choco realmente são palavras, textos secretos, fórmulas de entrar no
97
paraíso das cidades. Um dia, vou virar finalmente a Mãe Natal e pôr meus ovos de Beleza
Walter Benjamin ensina que a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a
narradoras das crônicas de Paula contam-nos suas experiências vividas e ouvidas. Muitas
dessas histórias parecem ter sido oriundas de outras histórias escutadas cuidadosamente
pela cronista. Vozes que ecoam nos textos dos livros e que são, como mostra Ruth Silviano
Cada um de nós tem seu texto interno, complexo, composto de vozes recentes ou
vozes arcaicas, vozes representadas, fantasmáticas. Texto consciente e ⁄ ou
inconsciente – escrituras produzidas por outras leituras ⁄ escrituras, por mitos
familiares, por vozes que não se distinguem umas das outras, avós, mães ou filhas
umas das outras, confundidas, entretanto, no espaço familiar (BRANDÃO, 1995, p.
21).
Dessas vozes “fala” Ana Paula Tavares, mas estas também “falam” ao mesmo
tempo em que a cronista narra as histórias, desvelando personagens que circundam suas
lembranças e suas linhas narrativas. O texto “As mais-velhas” (CS), por exemplo, é
tipo: «Os teus chifres são agudos e direitos como uma azagaia: / Quando ferem alguém,
este morre sem ter tido doença. (...)» (TAVARES, 2004, p. 79).
Também, nós, leitores, somos “feridos” pelas palavras que nos apresentam essas
personagens femininas que são “mães, mulheres, irmãs” e “guardadoras de palavras”, pois
vivem a soprar “histórias, provérbios, adivinhas”, num viver poético, rico de tradições,
Nunca sabem a idade, porque nasceram antes do tempo das sementes, num qualquer
ano da praga dos gafanhotos ou epidemia da varíola. (...) Crescem sob o signo das
sobreviventes, com a testa marcada pela estrela em brasa das vacas eleitas para serem
mães, mulheres, irmãs.
(...) Por vezes e sem que se note muito param, entre o dia e a noite, um momento,
para passar, em forma de história, provérbio ou adivinha, as fórmulas de
sobrevivência, lições de parentesco, lugares de culto, os nomes do caminho. São
livros de marinharia que trazem escritos dentro da memória e, em segredo, libertam
do esquecimento.
Quando isto acontece, acontece um momento de milagre em que esquecem sua
condição de formiga e acendem a voz, soprando as palavras até que o fim do dia
apague a trémula chama de um ritual de cacimbo bem afinado (Ibidem, p. 80).
parentesco”, como a contada em “As madrinhas” (CS) que começa com a seguinte epígrafe:
«O passado também nos devora» – Maria Concepción García Sáiz (Ibidem, p. 89).
Falo de um passado que ainda existe, com a casa ali de esquina, espreitando o fim da
rua, marcada de crianças de vozes fortes e canções tristes e de um tempo a escoar-se
em lentíssimas tranças, amaciadas a pente e óleo de nompecke.
Construo a fala de um pedaço e céu em tecto azul, noites de veludo cozidas pelo frio,
aberto (Ibidem, p. 90).
As vozes “faladas” por Ana Paula Tavares em suas crônicas permitem ao leitor o
acariciar das histórias feitas de reinvenção das experiências vividas e ouvidas pela poetisa-
99
cronista. Assim, conhecemos uma maneira de cronicar, que se tece também das cores da
poesia.
Salomé. Esta, segundo a História, foi uma mulher envolvente que fez de sua capacidade de
sedução sua “armadilha” maior. Ao dançar, encantou Herodes e o fez jurar que tudo o que
ela desejasse seria concedido. Usou o erotismo de seu corpo para conseguir a cabeça de
João Batista, ofertada numa bandeja de prata. A crônica de Paula mostra os ritmos
dançados pela beleza das palavras e pela oferta que a cronista faz aos leitores, quando nos
espaços rurais da Huíla. No livro de Paula que leva o mesmo nome dessa crônica, a doação
da mulher nos é oferecida por palavras poéticas, criadoras de imagens, sons, vozes, cores e
histórias desenhadas pela autora. A cabeça de Salomé metaforiza, assim, uma escrita que se
Ao procurar novos caminhos para a escritura de suas crônicas que travam uma
grande aproximação com os leitores, Ana Paula Tavares domina a arte de cronicar,
descortinando diversas faces e vozes desse gênero. Para contar a História e as histórias, a
autora estabelece diálogos com os leitores, entregando-se às conversas sobre “oásis, lábios
e sede” que permitem o dançar das palavras num autêntico ritual de narrações da vida.
Afinal, como afirmou a própria autora, é necessária a introdução do novo naquilo que é
(...) a tradição, longe de constituir um legado imóvel e fixo, pronto para ser
transmitido de geração em geração, a tradição é também mudança e sinônimo de um
quadro dinâmico longamente entretecido entre o indivíduo e o grupo, que alimentam
o antigo e estabelecem a necessária ponte entre o velho e o novo (TAVARES, 1998,
p. 52).
poéticas, inseridas num discurso que transita pelas trilhas da memória, da história e da
tradição. Enfim, por meio das crônicas de Ana Paula Tavares, a nossa “conversa” , como a
5 CONCLUSÃO
texto” literário, um espaço tecido, sobretudo, a partir da linguagem, que se utiliza das
artimanhas da língua, das palavras para estabelecer um “jogo de sedução” com o leitor:
bem o gênero escolhido para estudo nesta dissertação: a crônica. Quem lê um texto desse
gênero sabe que este veste diversas “roupagens” para cumprir sua matéria diária de narrar o
circunstancial. Vestes constituídas de palavras que atraem o leitor, que o seduzem pela
bem observou Ruth Silviano Brandão, por conhecerem o “lugar desse gênero”, ou melhor,
o “entrelugar”, tendo em vista que tais textos ocupam um espaço intermediário, vizinho da
poesia e do conto.
de um “lugar outro” de que se faz a crônica, gênero multifacetado, que, por assim ser, nos
chamou a atenção e nos encorajou nesta aventura literária em busca de captar o prazer da
arte de cronicar.
102
a considere uma forma típica do jornalismo; outros, uma vertente própria à literatura.
Preferimos entendê-la como um lugar “entre”: ora utilizada como ferramenta jornalística,
Percebemos, então, que esse jogo de poder transitar entre vários lugares da escritura
é o que torna a crônica tão sedutora. A liberdade própria desse gênero faz dele um dos
jornais. Quem a produz conhece a capacidade que a crônica tem de penetrar o dia-a-dia
tanto dos leitores que dispõem de tempo para a prática da leitura, como para os que, entre
pela sua “pequena extensão”. O que a torna fascinante é sua capacidade de estabelecer um
diálogo, uma conversa franca e direta com os “amigos” leitores que com ela se dispõem a
papear.
Esse caráter intimista próprio da crônica estabelece com o leitor um certo “grau de
amizade” e essa relação permite ao cronista uma liberdade maior para contar fatos do
O prazer desse gênero é sentido por todos os que se dispõem à aventura diária ou
eventual de mergulhar nas linhas narrativas da crônica. Por meio de sua leitura, observamos
possível, assim, reconstruir imagens que parecem fotografadas pelo artífice que sabe
Esse prazer se encontra na linguagem, no jogo das palavras que também “brincam”
flutuar entre os gêneros, aparecendo diante de nós, leitores, vestindo a roupagem do conto,
com personagens ficcionais, situadas em tempo não real. O que concluímos, porém, é que o
“entrelugar” da crônica nos fascina por ser também o “entrelugar” da palavra poética.
Nesse jogo, nunca se perde, ao contrário, ganham todos: o autor, ao seduzir fiéis amigos, e
E essa arte vimos que incorporou, com mestria, Ana Paula Tavares, cujos textos de
histórica de Angola, levando o leitor a refletir acerca dos caminhos percorridos por esse
país. Tais crônicas são mais próximas das características “tradicionais” desse gênero, pois
contextos históricos em que a maioria dos textos foram escritos. Mas, o “pacto” com o
circunstancial não deixou de lado as marcas poéticas do estilo de Ana Paula Tavares.
gênero crônica pode assumir. Paula encena, nesses textos, narrações de histórias a partir de
inundadas de lirismo.
A autora revela em seus livros de crônicas, assim como em toda sua obra, um
culturais característicos das etnias de sua terra natal, a região dos mumuílas, no sudoeste
104
angolano. Como marca predominante de seus textos está o exercício da linguagem poética
Por meio das crônicas da autora, percorremos, desse modo, as trilhas da história, da
memória e das tradições de Angola. Desfrutamos, assim, do prazer do texto, do sabor das
palavras, do sentido da linguagem e da poesia das narrações que Ana Paula Tavares, com
mergulhado no estudo das crônicas de Ana Paula. E, por termos feito um rápido painel
desse gênero dentro da literatura angolana, nasce a idéia (que deixamos aqui registrada) de
nossa futura tese de Doutorado: “Percursos da crônica literária em Angola”. Fica, assim,
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