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ORIGENS E CONSOLIDAÇÃO
Rio de Janeiro
Março de 2014
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ORIGENS E CONSOLIDAÇÃO
Rio de Janeiro
Março de 2014
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ORIGENS E CONSOLIDAÇÃO
Examinada por:
___________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Antonio Carlos Secchin – UFRJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Alcmeno Bastos – UFRJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Monteiro de Barros Júnior – UERJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira – UFRJ
___________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Vera Lucia de Oliveira Lins – UFRJ
___________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Guimarães de Faria – UFRJ (Suplente)
___________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza – UERJ (Suplente)
Rio de Janeiro
Março de 2014
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RESUMO
RESUMÉ
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 10
1. INTRODUÇÃO
no caso do Simbolismo, tanto por volição dos próprios autores, quanto pelo descuido na
conservação de obras de pouca repercussão acadêmica ou editorial. Os simbolistas
afrontavam a massificação da vida e da arte, não só na fatura textual, mas também no
culto a pequenas tiragens, impressas por editoras obscuras, quando não custeadas por
eles mesmos, em tipografias amadoras, o que hoje demanda do estudioso devotado faro
bibliofílico, visitando bibliotecas e sebos ou contando com a benevolência de
colecionadores.
Acrescente-se ainda a complexa tarefa de, num rol vasto de autores e obras,
delimitar bem o corpus e, tendo-o feito, saber como estudá-lo: a natureza panorâmica da
proposta aumenta bastante o risco da má escolha – responsável pelo (não) descarte de
textos importantes – e o perigo de resvalar na superficialidade do inventário. No entanto,
a experiência adquirida com a dissertação, se não evitou, ao menos amainou tais
contratempos: a análise das Canções sem metro solicitou ampla gama de referências, cujo
acesso dificultoso conseguimos paulatinamente driblar, coletando saldo razoável de livros,
microfilmes e fotocópias nas principais bibliotecas do país (com destaque para a
Biblioteca Nacional, a Fundação Casa de Rui Barbosa – onde repousa o arquivo de
Andrade Muricy –, o Real Gabinete Português de Leitura e a Academia Brasileira de
Letras), em coleções particulares ou em sebos. Contamos ainda com pesquisas anteriores
(sobretudo as primorosas antologias de Andrade Muricy, Panorama do movimento
simbolista brasileiro, e de Cassiana Lacerda Carollo, Decadismo e Simbolismo no Brasil,
ambos em dois volumes, abrigando vasto manancial de textos raros) e com a recente
disponibilização virtual pela USP do acervo valioso de José Mindlin. Na verdade, o
levantamento desse material é anterior à própria dissertação, por constituir a época
estudada uma de nossas preferências literárias.
Nos dois anos iniciais de pesquisa, levantamos, apenas na produção antecedente ao
Modernismo, corpus extenso, abaixo apresentado em ordem cronológica:
Como acreditamos que um trabalho crítico valha mais pela consistência que pela
abrangência, decidimos reduzir o espectro cronológico da pesquisa, que passou então a
ser demarcada pelos anos de 1883 (publicação das primeiras “canções sem metro”, de
Raul Pompeia) e de 1898. Esta data revela-se significativa, tanto porque nela se
concentrou o maior número de publicação livresca de poemas em prosa no Brasil,
quanto porque corresponde ao ano da morte de Cruz e Sousa, considerado modelo por
muitos simbolistas. Conforme destaca Andrade Muricy (ver capítulo 12 da tese), o
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gênero distinto: não um híbrido a meio caminho entre prosa e verso, mas um
gênero de poesia particular, que se utiliza da prosa ritmada para fins
estritamente poéticos, e que lhe impõe por causa disso uma estrutura e uma
organização de conjunto, cujas leis devemos descobrir: leis não somente
formais, mas profundas, orgânicas, como em todo gênero artístico
verdadeiro. (Bernard, 1959: 434)
métrico e um limite sintático, uma pausa prosódica e uma pausa semântica” (Agambem,
2002: 142). Poético é o discurso em que o cavalgamento é virtualmente possível, já que
ele não pode ocorrer na prosa. Por isso, o verso é unidade centrada no próprio fim,
definindo-se “só no ponto em que finda” (2002: 143). Disso advém a impossibilidade de
o último verso de um poema ser verso, pois ele não comportaria enjambement.
Agamben se indaga se esse final não indicaria que o poema termina em prosa, mas busca
resolver o impasse defendendo que tal queda do poema nunca termina: “a dupla
intensidade que anima a língua não se aplaca numa compreensão última, mas se abisma,
por assim dizer, no silêncio numa queda sem fim” (2002: 149). O poema, forma
intrinsecamente aberta, está a postos contra a finitude e a conclusão: vive do devir e do
inacabamento. Essa “conclusão inconclusa” se aproxima do conceito romântico de
fragmento (ver nosso capítulo 2) e repercutirá em vários poetas da prosa simbolistas, com
destaque para Raul Pompeia.
No campo lusófono, constata-se a míngua, menos acentuada no Brasil do que em
Portugal. Embora seja de um português, João Barreira, uma das bíblias simbolistas,
Gouaches, a obra mereceu pouquíssima atenção crítica e nunca logrou reedição,
tornando-se quase um mito bibliográfico. Em Portugal, à exceção de poucos trabalhos de
pós-graduação1 e de alguns artigos esparsos, localizamos, até agora, apenas o importante
número 2 da revista Forma breve (2005), da Universidade de Aveiro, integralmente
dedicado ao tema. Todavia, a circulação restrita dessas publicações compromete seus
eventuais méritos.
1
Principalmente sobre Tristia e Além, de Antero de Figueiredo; Alva, de Alberto
Pinheiro Torres; Aguadas, de V. Ortigão Sampaio e Gouaches, de João Barreira.
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(Placer, 1962: 9). Flexibilidade, ritmo e lirismo constituiriam, portanto, as marcas formais;
a primeira e a última características se aproximam do conceito de gratuidade de Suzanne
Bernard; o segundo, ao de unidade orgânica, da mesma autora, conquanto não se fale
aqui na autonomia do gênero.
No âmbito do conteúdo, Placer percucientemente identifica o “estado de
disponibilidade, todo-alma, todo-percepções subjetivas, partindo embora muitas vezes da
bruta realidade” (Placer, 1962: 10), princípio aferível em vários textos de Cruz e Sousa,
por exemplo. Atualizando o conceito de brevidade, Xavier compara o poema em prosa
ao soneto, identificando em ambos “economia exigente de elementos para um fim alto”
(Placer, 1962: 10). Isso explicaria por que alguns poetas da prosa são exímios sonetistas;
caso mais significativo é novamente o de Cruz e Sousa, que, não por acaso, nos legou
Últimos sonetos (1905). Neste livro, o poema “O soneto” enfatiza a capacidade
transfiguradora e sintetizante dessa forma poética, elementos também valorizados nos
poemas em prosa do autor:
pitoresco. Não se é aqui preocupado senão do poema em si, isto é, do acordo das
palavras, das imagens, e de seu apelo mútuo e constante” (apud Placer, 1962: 17). Na
anglofonia, elenca John Perse, Oscar Wilde, William Blake e Tagore. No mundo
hispânico, menciona Ruben Darío, Ramón Del Valle-Inclan, Pio Baroja, Gabriel Miró,
Eugene D’Ors, Juan Ramón Jimenez, todos alocados no Modernismo hispano-
americano, contemporâneo ao Simbolismo brasileiro.
No Brasil, Placer defende que Noite na taverna e Macário constituem casos de
prosa poética, na esteira de Henri d’Offterdingen (1799), de Novalis. Atribui, sem
justificar, pioneirismo a Vitoriano Palhares. Confere posição destacada a Cruz e Sousa,
acusando a maioria dos simbolistas de imitadores. Cita Raul Pompeia, Adelino
Magalhães e vários autores modernistas, sublinhando aqueles que produziram “livro
exclusivo” de poemas em prosa.
A breve investida de Xavier tem o mérito de historicizar o gênero no Brasil. Seu
trabalho compõe sucinto inventário, mas não cumpre, com clareza, a promessa de
conceituar o poema em prosa. Primeiro opúsculo totalmente dedicado ao assunto, realça
antes o Modernismo do que o Simbolismo: dos 31 autores antologiados, 25 são
modernistas (um deles, o próprio organizador)...
Mais recentemente, destacam-se as pesquisas do professor e poeta (eventualmente
da prosa) Fernando Paixão, que, além de artigos publicados, prepara livro sobre o
gênero. Em “Poema em prosa: problemática (in)definição” (2013), o autor parte
basicamente de três estudiosos anteriores (Suzanne Bernard, Tzvetan Todorov e
Dominique Combe), recorrendo eventualmente a outros, como Jonathan Holder, Luc
Decaunes e Clive Scott. Segundo Fernando, o poema em prosa constitui gênero
autônomo caracterizado pela ambiguidade e pela ausência de modelo prévio (Paixão,
2013: 162), opondo-se à prosa poética. Esta, embora também opere deslocamentos na
expectativa do leitor, possui natureza extensiva, mesmo quando não inclui sequências
narrativas. Já o poema em prosa seria essencialmente breve, ainda que longo,
alicerçando-se no “desafio da concisão” (2013: 153). A brevidade se configura como
horizonte em que a experiência poética se consumaria com mais intensidade. Luc
Decaunes, citado por Fernando, indica a prosa poética como “alguma coisa de
aventuroso, de aberto, de inacabado” (2013: 154), avesso, portanto, ao fechamento do
poema em prosa, marcado por uma “sorte de avareza” (2013: 154). A compreensão
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Labirinto do espaço romanesco (1979), de Sonia Brayner. Este último e aquele primeiro,
sondando questões de maior largueza, tangenciam o gênero. À nossa pesquisa interessa
mais a contribuição de Massaud Moisés, tanto porque o autor matizou aspectos teóricos
importantes (como a distinção da prosa poética), quanto porque elencou muitos autores
a investigar, como Pedro Vaz (cf. nosso capítulo 12), não contemplado por Andrade
Muricy. Moisés é enfático ao não considerar o poema em prosa um gênero; consistiria
antes numa
livro que incide recorrentemente no assunto. Em 2008, além disso, a edição das obras
completas de Cruz e Sousa, pela Academia Catarinense de Letras, recolheu vasto acervo
dos poemas em prosa do Cisne Negro e, em outros títulos, os de simbolistas menos
conhecidos, como Oscar Rosas, Santos Lostada e Virgílio Várzea.
Sobre as investidas críticas, cabe realçar algumas facetas que ratificam a pertinência
de nosso trabalho. A maioria dos estudos brasileiros sobre o poema em prosa ocorreu
entre 1940 a 60, no justo momento em que o Modernismo produziu a maior safra de
livros no gênero2, como se, deparando-se com um filho sem pai, a crítica rastreasse a
genealogia do órfão. No entanto, a atenção ostensiva no rebento acabou descartando,
edipianamente, a placenta... Curiosamente, o gênero viveu novo esplendor na Geração
de 1945, possivelmente atraída pela “força organizadora” (Bernard, 1959: 219) do poema
em prosa.
Valida-se, portanto, a legitimidade de tese, que, modestamente, almeja ser uma
primeira pesquisa sistemática a conjugar enfoque documental e análise diacrônica da
implantação do poema em prosa no Simbolismo brasileiro, pois, se o espólio modernista
foi avaliado, pelo menos com estudos específicos sobre determinados autores, o período
compreendido entre 1880 e 1920 ainda carece de investigação mais detida. Afora isso,
nossa tese busca proposta descentralizada, tanto por solicitar autores banidos do cânone,
quanto por estudar obras esparsas no território nacional, deslocando-se para além da Rua
do Ouvidor.
Para executar tais objetivos, abastecemo-nos basicamente em fontes sobre quatro
tópicos: (1) modernidade e literatura; (2) Simbolismo/Decadentismo; (3) poema em
prosa; (4) fortunas críticas específicas. Na vertente (1), é inevitável recorrer a Hugo
Friedrich, compensando seu ângulo demasiado estruturalista (“estrutura” é a primeira
palavra do título) com autores que coligam análise do texto ao contexto de produção.
Nessa perspectiva, liderada por Walter Benjamin, alinham-se o Octavio Paz de Os filhos
do barro: do Romantismo à vanguarda e de O arco e a lira, o Alfonso Berardinelli de Da
poesia à prosa, o Michel Hamburger de A verdade da poesia.
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Eis uma amostragem dos autores contemplados na antologia de Xavier Placer, de 1962:
Murilo Mendes, Lêdo Ivo, Aníbal Machado, Jorge de Lima, Álvaro Moreyra, Vinícius de
Moraes, Mário Quintana, Deolindo Tavares, Paulo Mendes Campos, Paulo Hecker
Filho, José Francisco Coelho, Maria Isabel, José Paulo Moreira da Fonseca, Oswaldino
Marques, E. Carrera Guerra, Jorge Cooper, Paulo Corrêa Lopes, Homero Homem.
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Com efeito, é no século XIX que se vulgariza a ideia de gênero como cárcere, já
que, anteriormente, predominava o paradigma da imitação, segundo o qual a maestria do
escritor se definia pela capacidade de glosar os modelos. Nos oitocentos, a originalidade
se torna obsessão. No ensaio Uma defesa da poesia, escrito em 1821, Shelley preconiza
que “a divisão popular em prosa e verso é inadmissível” (Shelley, 2008: 32) e que “a
distinção entre poetas e prosadores é um erro vulgar” (Shelley, 2008: 36). Em 1827, no
prefácio a Cromwell, “Do grotesco e do sublime”, Victor Hugo insinua cobiçar verso “de
fato tão belo quanto a prosa” (Hugo, 1988: 69), conquanto não preconize efetiva abolição
dos gêneros.
O poema em prosa só se autonomiza na literatura pós-romântica, recebendo
inclusive nomenclatura independente. Por isso, costuma-se atribuir sua origem à
publicação de Gaspard de la nuit: fantasias à maneira de Rembrandt e de Callot (1842),
de Aloysius Bertrand, livro que, conjugando telas desses pintores com textos, confere
organicidade ao gênero, acordando cosmovisão plural à forma do mesmo jaez:
A arte tem sempre duas faces antitéticas, medalha em que, por exemplo, o
verso acusaria a semelhança com Paul Rembrandt e o reverso com Jacques
Callot. – Rembrand é o filósofo de barba branca que se encolhe em seu
reduto (...).– Callot, ao contrário, é o soldado fanfarrão e chulo que se
pavoneia em público, que faz barulho na taverna (...). (Bertrand, 2003: 31)
ininterrupta da vida. Agencia, para tanto, o conceito de ruína (também ostensivo em Raul
Pompeia); da obsolescência de gêneros anteriores brota um outro, pulsante e dinâmico:
O indicador é a sua mulher, virago seca como uma pescada, e que desde a
manhã anda às turras com a criada, de quem tem ciúmes, e acaricia a garrafa,
de que é amante.
E o canal onde a água azul tremula, e a igreja cujos vitrais de ouro flamejam, e
o balcão de pedra onde o linho seca ao sol, e os tetos, verdes como lúpulo;
Desejava prosa “musical sem ritmo e sem rima, suficientemente solta e contrastante para
adaptar-se aos movimentos líricos de uma alma, às ondulações do devaneio, aos
sobressaltos da consciência” (Baudelaire, 1995: 16). Entenda-se, porém, que Baudelaire
não ansiava escrever prosa como poesia ou vice-versa, mas ambas simultaneamente:
enfraquecendo a luz, atenuaria a centralidade do sol: “Outono já! – mas por que lamentar
um sol eterno, se estamos empenhados em descobrir a claridade divina, – longe dos que
morrem com as estações” (Rimbaud, 2007: 189). A passagem do conhecido à luz nova e
imortal, representação da alquimia do verbo, se revela nas obscuras marcações espaciais
do poema: de início, fala-se em “porto da miséria, a cidade imensa cujo céu se mancha
em labareda e lodo” (idem); ao fim, surgem “cidades esplêndidas” (ibidem, 191). A
alteração ratifica a urgência de originalidade no presente: “sejamos absolutamente
modernos” (idem). Tal pedido supera a afetação daqueles que ostentam falsa
modernidade, exigindo reflexão constante, expressa na feroz ironia que destrói o próprio
autor e sua forma de expressão até então preferida, o verso: “acreditei-me possuído de
poderes sobrenaturais. Pois bem! devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças!
Bela glória de artista e prosador que lá se vai!” (ibidem, 189).
Orientados por farol semelhante estão, dentre outros, os Cantos de Maldoror
(1868 e 1890), de Lautréamont, cuja estrutura parodia as epopeias clássicas, “degradando-
as” em temas apoéticos, e as Divagações (1896), de Mallarmé. Nestas, encarta-se o
decisivo “Crise de verso”, título antológico em que experimentalmente se “desempata (...)
o tratamento trazido ao cânone hierático do verso” (s/d)4, deflagrando “um motim, de
propósito, na vacância do velho molde fatigado”. O texto se abre com a descrição de
biblioteca fulgurante, com livros cintilando autonomamente, sem qualquer intervenção
organizadora do sujeito:
respiração perceptível no antigo sopro lírico ou a direção pessoal entusiasta da frase”. Por
isso, Mallarmé declara que “a literatura aqui sofre uma extraordinária crise,
fundamental”. Nesse clima geral de dissipação de consistências se insere a crise de verso,
representada pela morte de Victor Hugo:
O verso, creio, com respeito esperou que o gigante que o identificava com
sua mão tenaz e firmíssima de forjador, viesse a faltar; para, ele, quebrar-se.
Toda a língua, ajustada à métrica, recobrando seus cortes vitais, evade-se,
como uma livre disjunção de mil elementos simples; e, indicarei, não sem
semelhança com a multiplicidade dos gritos de uma orquestração, que
permanece verbal.
concorrendo com o ritmo total, este que seria o poema calado, feito de brancos;
apenas traduzido, de uma maneira, por cada pingente”.
Não obstante a literatura francesa seja a principal matriz para o poema em prosa
brasileiro, sofrendo, no entanto, a mediação portuguesa (ver item 12.2), devemos
mencionar que, na Inglaterra, Oscar Wilde lança os Poemas em prosa em 1894
(francamente seduzidos por Baudelaire) e oficializa o gênero na língua inglesa, abrindo
trilha depois palmilhada por James Joyce, Gertrude Stein e outros. Embora com
menor repercussão na literatura brasileira, contingente razoável de escritores hispano-
americanos praticaram o gênero na virada do século XIX, dos quais se destacam
Ruben Darío5, sobretudo com Azul (1888), e, não menos importantes, José Assunción
Silva, Ramón Del Valle-Inclan, Pio Baroja, Gabriel Miro, Eugene D’Ors, Juan Ramón
Jimenez e outros. Interessante notar que, no âmbito hispânico, o poema em prosa
surge já em domínio modernista, pois o que no Brasil é Parnasianismo-Simbolismo lá
se denominava Modernismo. Em Portugal, os maiores vultos foram João Barreira,
com Gouaches (estudos e fantasias) (1892), e, mais tarde, Almada Negreiros e
Fernando Pessoa.
Apesar de habitualmente se vincular o surgimento do poema em prosa ao colapso
do verso, importa ressaltar que a crise atingia todas as instâncias da literatura, advindo o
novo gênero do paroxismo generalizado. O romance, por exemplo, vinha passando por
progressiva esgarçadura das categorias tradicionais, desde o século XVIII, com Lawrence
Sterne, Henry James, Novalis e outros, o que desembocará, no século XX, nas aventuras
vanguardistas (sobretudo, dadaístas e surrealistas) e na experiência iconoclasta do
nouveau roman.
Na proa da crise da prosa do século XIX avulta Joris-Karl Huysmans, que, em Às
avessas (1884), encenou o espírito da época, diluindo o romance tradicional nesta obra
de indiscernível classificação, que agrega livremente comentários soltos sobre os mais
variados assuntos. O protagonista, o dândi des Esseintes, encarna as grandes aspirações
artísticas de então e, nesse sentido, é emblemática sua preferência pelo novo gênero: “De
todas as formas de literatura, a do poema em prosa era a preferida de des Esseintes.
Manejada por um alquimista do gênio, devia, segundo ele, encerrar em seu pequeno
tamanho, em estado de of meat, o poderio do romance, de que suprimia as demoras
5
Excelente amostragem da atuação do nicaraguense no gênero encontra-se na coletânea
860 da Colección Austral: DARÍO, Ruben. Poemas en prosa. 2.ª edição. Buenos Aires;
México: Espasa – Calpe Argentina, 1948.
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brilhais como líquida esmeralda”, “Serenai, verdes mares” (1965: 84), excertos do
primeiro capítulo do livro. A abundância de comparações, presentes nos discursos do
narrador ou de Iracema, aciona incessante dispositivo analógico. Daí, por exemplo, as
falas da virgem dos lábios de mel constituírem breves parábolas, organizadas em
estruturas bimembres unidas por símiles: “O amor de Iracema é como o vento dos
areais: mata a flor das árvores, suspirou a virgem” (1965: 107); “A juruti, quando a árvore
seca, foge do ninho em que nasceu. Nunca mais a alegria voltará ao seio de Iracema; ela
vai ficar como o tronco nu, sem ramas nem sombras” (1965: 109). O pendor à fanopeia
constituirá característica basilar do poema em prosa das décadas de 1880 e 1890. A ela se
associa certa melopeia, com o escritor se comprazendo em diluir significados em
pequenas ou extensas (sobretudo, no caso simbolista) sequências musicais: “Além, muito
além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema” (1965: 85, grifos
nossos).
A constituição lendária de Iracema igualmente imprime poeticidade à obra. Na
última frase citada, por exemplo, a imprecisão espacial, com vários marcadores de
distanciamento, lança o livro em terreno vago, quase mítico, oposto, portanto, às
limitações geográficas e patrióticas (conquanto, ao longo do livro, o território seja
nitidamente demarcado). Não apenas o espaço, também o tempo se desparticulariza em
Iracema, como se os personagens coexistissem na origem da vida (nacional). Apesar do
“argumento histórico”, que, disposto antes da narrativa, restringe cronologicamente as
figuras nele evocadas, deseja-se superar tal limitação, marcando o tempo mítico da
fundação. Não por outro motivo, Iracema está ausente desse argumento. Embora o
universalismo simbolista não se coadune ao nacionalismo alencarino, a superação dos
especificadores espaciais e temporais será comum aos poemas em prosa, mesmo
naqueles em que há eixo narrativo (cf. Dario Veloso e Júlio Perneta). Ademais, os
capítulos se iniciam com frases bastante gerais, envolvendo categorias quase arquetípicas
(o guerreiro, a virgem, o estrangeiro), o que, em certa medida, retira o matizamento
individual dos personagens. Na mesma direção, destaquem-se os abundantes epítetos
(“virgem do lábios de mel”, “filha de Araquém”).
Entretanto, não é apenas o tê-la chamado de lenda que converte Iracema em prosa
poética. Sim, sua estrutura difere da usual na maioria dos romances, centrados na história
de eventos específicos vividos por certos personagens no tempo e no espaço. Sim,
Alencar busca superar os tradicionais elementos narrativos pela mitificação poética.
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sobre Isaías de Oliveira), que, contudo, não se notabilizaram. Observa Edgard Cavalheiro
(Brito & Cavaleiro, 1961: 3) que “tendo sido o Romantismo essencialmente palavroso,
sobrepondo o sentimento à razão, o entusiasmo ao raciocínio, o subjetivismo ao
objetivismo, as generalizações imaginosas ao senso crítico, não oferecia mesmo terreno
propício ao conto, que impõe síntese, que requer concentração”. De qualquer modo, a
pequena extensão do conto, canhestro que fosse, aliou brevidade e lirismo, par
indissolúvel aos futuros poemas em prosa e também prefigurados, conforme logo
veremos, nos Noturnos (1872), de Luís Guimarães Júnior.
No entanto, a hipertrofia retórica nem sempre impediu a apropriação concisa e
apurada de elementos poéticos; é o caso de “Carlotinha da mangueira”, do maranhense
Gentil Homem de Almeida Braga. No conto, a repetição de expressões, frases e
parágrafos, advindas, insistimos, do domínio do verso, servem agora para realçar a inércia
da protagonista: “Onde vai a menina a estas horas tão só e pensativa, sem que se lhe dê
do ardor da calma, nem do vento cálido a lhe queimar o rosto? Que pensamento a dirige
para a sombra da mangueira coberta de amarelos e de vermelhos frutos?” (Brito &
Cavaleiro, 1961: 113). Como esse primeiro parágrafo, os dois subsequentes terminam,
ipsis litteris, com referência à árvore frondosa. A atmosfera ensimesmada também revela-
se na reiteração do sintagma “a menina”, quase nunca elíptico ou substituído por
pronomes, e no emprego ostensivo do presente do indicativo, pontuando ações
cotidianamente repetidas: “Nas noites de luar dorme sempre a menina ao relento em
uma esteirinha leve ao sopé de um jasmineiro. Nas noites escuras vela até alta madrugada
à luz de um antigo candeeiro” (1961: 113).
Refletindo a insatisfação da criança, a linguagem rebarbativa confere ritmo lento ao
texto; a descrição se sobrepõe à narração, obstando a progressão do enredo. Com efeito,
a narratividade de “Carlotinha da mangueira” é demasiado fortuita: num único parágrafo,
de sete linhas (em nossa edição), contam-se as causas da tristeza da personagem, diluída
por cinco páginas: o pai se suicidou, a mãe enlouqueceu, o irmão morreu em naufrágio,
ela passou a viver com a madrinha. Certamente, o que aí se apresenta, de um fôlego,
poderia rechear rocambulescas narrativas românticas... Portanto, o assunto não mudou,
mas a forma de apresentá-lo, sim. Não à toa, eventuais incursões narrativas, identificadas
pelo uso atípico do pretérito perfeito, logo descambam em digressões ou repetições,
distribuídas na prosa como o estribilho no poema:
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A rigor, as três ações – ver vaga-lume, ouvir canto de ave, banhar criança morta –
sequer compõem narrativa; trata-se antes de enumerações, de pequenos flashes que
desenham, progressivamente, o desânimo da menina, privada de signos de vitalidade (luz
dos pirilampos) e rodeada de elementos agourentos (canto de acauã) e fúnebres
(defunto). Em todo caso, o rápido registro dos fatos cede vez ao refrão sobre a sombra
das mangueiras. Note-se, porém, que houve modulação em relação às primeiras
ocorrências: de início, falava-se na “sombra da mangueira* coberta de amarelos e de
vermelhos frutos”. Agora, no ponto assinalado pelo asterisco, inclui-se a oração
explicativa “que enche os ares com a copa de sua folhagem viçosa”, prolongando o texto
tal como a enfadonha existência da menina, a cujo desânimo o viço das folhas se
contrapõe.
Além da madrinha, a menina dispõe apenas de um boneco azul, com barrete
dourado na cabeça. Entretanto, nos pesadelos de Carlotinha, o brinquedo se transfigura
em ente mefistofélico, prometendo-lhe riqueza, caso ela consiga desentranhar do casco
de mangueira um anel de ouro para presenteá-lo. Como se vê, o sonho se torna
compensação às carências da menina, oferecendo riqueza, atenção, diálogo. Acordada, a
criança volta a se lastimar, e o texto retoma o ritmo modorrento, pródigo de interrupções
interrogativas: “Carlotinha, Carlotinha; por que não te alegras com as meninas da
vizinhança (...)?” (1961: 116); “Carlotinha, Carlotinha; por que não choras como aqueles,
que sofrem, e no pranto encontram alívio às mágoas do espírito e do coração?” (1961:
116). A última da parte do texto encena, pungentemente, a morte da menina, ainda à
sombra da árvore, primeiro e derradeiro abrigo:
poder encantatório dos sons e dos signos do que com o dinamismo das peripécias. Trata-
se de obras desconhecidas de autores renomados (Meditação, de Gonçalves Dias, e O
livro de Fra Gondicário, de Álvares de Azevedo) ou olvidados, como Vitoriano Palhares
e Luís Guimarães Júnior. Passemos agora a examinar, cronológica e brevemente, os
quatro nomes.
Escrito em 1846, Meditação só foi publicado postumamente, após o naufrágio do
navio onde se encontrava Gonçalves Dias, que, no entanto, havia trazido a lume, no
mesmo ano, trecho do livro no periódico Guanabara (Blake, 1883, I: 183). A obra se
destaca pela temática (abolicionismo) e pela forma (fragmento). Embora haja laivos
antiescravistas no Gonçalves de Magalhães de Suspiros poéticos e Saudades (1836), a
libertação dos escravos se torna problema mais urgente em nossa literatura a partir de
1860, na passagem da segunda para a terceira geração romântica, com Fagundes Varela,
Castro Alves e outros. Geralmente, o nome de Gonçalves Dias, como o da maioria dos
autores do primeiro Romantismo, é associado à fatura indianista e ao verso
(eventualmente ao teatro). Com efeito, a prosa gonçalvina ainda é pouco difundida: quem
comenta os ensaios, como Brasil e a Oceania, ou os trabalhos linguísticos, a exemplo do
Vocabulário da língua tupi? A divulgação restrita dessa parcela de sua obra acaba
corroborando o vínculo equivocado entre indianismo e verso, abrindo-se exceção à prosa
poética, conforme Iracema. Salvo a produção alencarina, o índio migra para a prosa
sobretudo com intenção paródica, como em “Jupira”, de Bernardo Guimarães. Parecia
mesmo haver certo acordo tácito entre idealização indígena e preferência pelo verso,
indiciando que temas elevados demandariam formas de mesmo jaez.
Curiosamente, no entanto, o negro também foi cantado em versos, de intenção
abolicionista ou, vertente menos comentada, em textos de faceirice sedutora, aferível na
esquecida poesia campesina do Romantismo; é ler “A mucama”, de Bittencourt Sampaio.
Entretanto, a dicção predominante é a reivindicativa, estabelecendo elo entre escravidão e
protesto. Mesmo em Castro Alves, o negro é enfocado como ser social, em discurso,
como sabemos, inflamado e tonitroante.
Em Meditação, Gonçalves Dias mantém a perspectiva coletiva, mas adota forma
diferenciada: em vez de versos grandiloquentes, opta pela prosa econômica, fragmentada,
de assunto nebuloso, afastando-se da clareza indignada da poesia tipicamente
abolicionista. Da prosa poética advém a incorporação de recursos do verso, sobretudo a
anáfora, presente em todos os três capítulos remanescentes da obra (boa parte se
51
E diante dos meus olhos se estendeu uma corrente de luz suave e colorida,
como a luz de uma aurora boreal.
literatura do antigo Oriente Médio, a não ser Jó 31, 15, que apela ao humanitarismo
comum” (McKenzie, 1984: 290). Não por acaso, Jó comparece na epígrafe ao capítulo II,
condenatória da submissão humana: “Vir vanus in superbiam erigitur, et tanquam pullum
onagri, se liberum natum putat” (21) [Um homem vaidoso é pródigo em orgulho e, como
potro de jumento selvagem, pensa que nasce livre].
Enquanto, no discurso bíblico, Deus é a verdade, única e intransferível, Gonçalves
Dias a concebe dialética e múltipla, haurida na variedade de experiências: “entre a
severidade do velho e o devaneio do mancebo – está a verdade” (1909: 24); “a vida
também é uma alternativa de dor e de prazer – de luz e de trevas – de esperança e
desesperação” (24). Mais ao fim do livro, o mancebo confirmará a tendência fusionista:
traduziu A noiva de Messina, de Schiller (em boa hora reeditado pela Cosac & Naify), e
que, em Viagem pelo rio Amazonas, confessou a inclinação germânica: “E a musa alemã?
/ Lá vai uma profissão de fé que julgo e creio” (1909: 143).
Ademais, a concisão do fragmento se harmoniza ao tom simultaneamente incisivo e
poético (semelhante ao de Adorno de Minima moralia) que imprime à causa
abolicionista, criando estrutura quase aforística. O intercâmbio entre intelecto e
sensibilidade – “o clarão do relâmpago do choque de duas nuvens carregadas de
eletricidades opostas” – é a base da meditação, forma correlata do fragmento que o
maranhense elegeu para nortear o livro. É o ancião da cor branca quem explica o
propósito:
“Meu filho, a verdadeira ciência não se colhe dos livros: ela vem com a
meditação.
“A meditação – essa filha do céu que desce sobre o coração do solitário, tão
silenciosa e docemente como orvalho noturno sobre o cálix de uma flor.
“Rainha grave e madura, que não traja o ouropel da imaginação, que não se
adorna com pedrarias, porque ela é sublime na sua simplicidade, majestosa
no recolhimento do seu porte.
“Esse livro d’alma, que vós outros mancebos não consultais, porque é austero
e cheio de rigidez nos seus ditames, e porque não vos fala a linguagem
acalorada e veemente das paixões. (1909: 28)
nacionalista, inicialmente louvada pelo mancebo, que dela abdica conforme descobre sua
verdadeira terra:
Mas grande parte da sua população é escrava – mas a sua riqueza consiste nos
escravos – mas o sorriso – o deleite do seu comerciante – do seu agrícola – e
o alimento de todos os seus habitantes é comprado à custa do sangue do
escravo! (1909: 10)
Menos indisposta com a natureza imperfeita do livro, Manuella Miki Souza Araújo,
no artigo “A forma fragmento em O livro de Fra Gondicário” (Revista da USP, 2009),
analisa irregularidade e lacuna textuais, à luz do conceito de fragmento romântico
teorizado por Friedrich Schlegel. A comparação prova o que antes defendemos: o
vínculo entre poema em prosa e Romantismo alemão. É claro que a expressão
“fragmento” pode aludir, tanto em Gonçalves quanto em Álvares, ao fato de as duas
obras serem inacabadas; mesmo assim, o aspecto inconcluso e aberto não deixa de se
afastar da coesão prototípica da prosa ficcional oitocentista, devendo por isso ser
estudado. A improvisação é tal que Homero Pires, organizador das Obras completas de
Álvares de Azevedo (em 1942, quando também se publicou a primeira edição d’O livro),
destaca pequeno lapso pleonástico: “Agarrou-o com a destra pelos cabelos e com a mão
direita tentou tirar-lhe o punhal do peito...” (Azevedo, 1942, II: 236).
O texto demora a começar: há longo prólogo, em verso, com poemas de Álvares, a
maioria em versos decassilábicos, e epígrafes de poetas ingleses (Shakespeare, Byron,
Cowper, Shelley), franceses (Victor Hugo, Musset, Théophile Gautier) e portugueses
(Serpa Pinheiro). Aliás, epígrafes, prólogo, alusões, citações engendram rica
intertextualidade, cuja função, além de atribuir polifonia à obra, é estender sua feição
esquiva: ceder voz a outrem permite o adiamento do discurso próprio. Nessas “Páginas
iniciais”, o sonho se configura inicialmente como alento, utopia da realização amorosa,
sucedendo dolorosa desilusão, que dá tom ao início do livro.
No primeiro capítulo, “Oásis”, sobram evocações repetitivas e anafóricas à cidade-
chave da obra: “Ó Veneza”, “E eu sonhei-te”, “Sonhei-te”, “Eu sonhei-te”, “Sonhei-te”,
“Veneza” (1942, II: 177-8). Entretanto, o espaço não é apenas cenário ou ambientação,
pois a cidade aqui plasmada não é a real, mas a sonhada: “Veneza de meus sonhos, eu te
amo” (1942, II: 178). Na proposta de valorização onírica, o narrador se dirige a um
mancebo, a uma donzela e a um velho pensador, buscando persuadi-los de que o sonho
é inevitavelmente sedutor. A obsessão se traduz em linguagem rebarbativa e fortemente
imagética, criando arabescos beletristas pouco aferível na poesia em verso do autor:
Quem te não viu nas nuvens de um doirado esmaginar avultando sob teu
manto de alabastro a erguer-te donairosa do azul das águas do Adriático, a
desenhar o rendado e as agulhas de tuas catedrais, os teus arvoredos folhudos
e lustrosos no seu verdegai – as soteias de mármore de teus palácios cujas
escadarias brancas se banham no chamalote das águas, como as plantas níveas
e nuas da virgem de Ischia e Prócida adormecida na rocha solitária? (1942,
II: 180)
assume estrutura poemática” (Muricy, 1973: 228). Com efeito, o livro reduz-se a
esquematismo facilmente aplicável a toda personagem romântica. Divide-se em três
capítulos: I) A noite do êxtase; II) A noite do assombro; III) A noite do delírio. No
primeiro, a virgem reza; no segundo, apaixona-se; no terceiro, casa. Ao arrepio das
heroínas e heróis do período, a protagonista não é nomeada, lacuna rompedora do pacto
catártico com o leitor, visto que a maioria dos personagens folhetinescos eram
comumente conhecidos pelos antropônimos, chegando, muitas vezes, a intitular as obras
que protagonizavam (A escrava Isaura, Iracema, Lucíola, Helena). Aqui, apenas uma
denominação genérica (“a virgem”) no título. Veremos que a diluição da catarse embasará
o poema em prosa simbolista.
Se os românticos cultuavam a liberdade imaginativa, faziam-no sobretudo em
relação a si, mas quase nunca ao leitor: o escritor devaneava; porém, elucidava as nuvens
da obra (como em Álvares de Azevedo), revelando mistérios da narrativa, desfazendo
quiprocós, encenando anagnórises, desembaraçando peripécias, o que, por fim, deixava
pouco ou nenhum terreno baldio para coparticipação. Lembre-se, por exemplo, O filho
do pescador, de Teixeira e Sousa, cujo narrador afirma: “o fio de minha história deveria
levar-vos a essas consequências, que há muito devíeis ter infalivelmente aguardado”
(Sousa, 1997: 122). Vitoriano Palhares também postula a imaginação como princípio
poético: “Escrevi estas páginas sob a impressão de um sonho, de um desses sonhos de
acordado, em que a mocidade sente às vezes o espírito librar-se no arroubo das ilusões”
(Palhares, 1906: 9). Enquanto os poemas de Gonçalves de Magalhães oscilavam
conforme a paisagem externa (“é um Livro de Poesias escritas segundo as impressões dos
lugares” (Magalhães, 1859: 11)), As noites da virgem vacilam de acordo com o sonho,
aproximando-se mais do “Kubla Khan”, de Coleridge, e a metáfora do sonho acordado
encaixa-se bem à natureza do poema em prosa, pois lhe apreende a natureza
simultaneamente patética e reflexiva (cf. capítulo sobre Júlio Perneta). Entretanto,
Vitoriano extrapola a teorização e confere potencial imaginativo à obra; observe-se o
capítulo VI, em que se insinua, e só se insinua, a perda da virgindade da protagonista, o
que, a rigor, constituiria o clímax de livro intitulado As noites da virgem:
59
E isso mais de uma década antes do machadiano “O velho diálogo de Adão e Eva”,
de Memórias Póstumas de Brás Cubas...
Prefigurando a economia do poema em prosa, a redução ao essencial desdobra-se
ainda na abundância do presente do indicativo, no emprego ostensivo do plural, nos
períodos curtos, de feição aforística, e em afirmações categóricas do tipo “O mundo é
assim” (1906: 37) ou “É sempre assim” (1906: 59). Esbanjam-se, ademais, momentos de
forte musicalidade e de ritmo compassado, quase metrificado: “É a hora da melancolia,
porque tudo é pálido; é a hora da poesia, porque tudo é vago; é a hora do coração,
porque tudo é saudoso; é a hora da alma, porque tudo silencia” (Palhares, 1906: 14);
“Brilha: tem o poder de seduzir. Fala pelo sorriso: tem o condão de encantar. Sorri pelos
olhos: tem o dom de assombrar” (1906: 18). Justifica-se, portanto, o que João Batista
Regueira Costa diz a Vitoriano Palhares em carta-posfácio ao livro: “O teu estilo é um
estilo-lira” (apud 1906: 74), o que, aliás, poderíamos igualmente afirmar sobre Raul
Pompeia.
Acrescem ainda as constantes generalizações que atravancam o andamento da
narrativa já de si nevoenta. Não bastasse desviarem de clímaces, As noites da virgem
fartam-se de digressões como “O poder de Deus é tão grande que se torna às vezes
desconhecido; essa alcova está no mundo, mais por baixo dela é que fica a terra” (1906:
60
Álvares e Vitoriano pela adesão irrestrita ao texto curto: nos outros autores, a brevidade
estilística compunha gênero maior (novela ou romance), ainda que incompleto ou
inusitado. Agora, estatui-se vínculo entre breve extensão textual e lirismo, oferecendo,
talvez pioneiramente, a base para nossos primeiros poemas em prosa (avaliamos mais
detidamente a questão no capítulo dedicado a Isaías de Oliveira). De fato, será essa
configuração prevalecente nas Canções sem metro, de Raul Pompeia, e nos Tropos e
fantasias, de Cruz e Sousa e Virgílio Várzea.
Noturnos é prefaciado por José de Alencar, com comentários sobre a obra e,
inusitadamente, com texto ficcional. A escolha do cearense como prefaciador atesta o viés
poético que se deseja imprimir à prosa, como se Guimarães buscasse filiação à linhagem
de Iracema. Curiosamente, a introdução alencarina se afasta de suas preocupações mais
urgentes; o autor de O guarani (apud Guimarães Júnior, 1872: V) abdica do assunto
nacionalista em favor da pesquisa subjetiva: “neste país o pior defeito de qualquer
homem, seja político ou literato, é a mania da nacionalidade”; “ter um eu próprio, ser
uma individualidade bem caracterizada, foi sempre o padrão para os homens superiores,
como para os povos de eleição”. Enfatizando a subjetividade, Alencar capta a índole de
Noturnos: descrições associativas em detrimento da causalidade narrativa. Para se
harmonizar com o livro, o cearense apresenta a ficção “Lembra-te de mim”, texto
“noturno, melancólico e terno” (apud 1872: VI). Por um lado, a historieta confirma a
tonalidade sofrida de Noturnos (a começar pelo título), por outro lhe antecipa
parcialmente a forma: Alencar também se seduz pelos capítulos curtos e pela melopeia
descritiva: “O arroio corria trepido e gárrulo, pelo regaço da campina, entre as pedrinhas
vermelhas que matizavam o leito de branca e fina arreia” (apud 1872: VII). No entanto,
ainda se prende demasiado ao enredo; ele próprio diz “Eis a história” (apud 1872: VII): a
romântica e interiorana Nila se apaixona por garboso passante. Entre flores, frutas, moitas
e casebres, a donzela avista Camilo com outra mulher, morre, entregando-lhe uma flor e
exclamando: “Lembra-te de mim”, nome com que Alencar passa a designar certa espécie
de rosa. O draminha tem singelo quê de mítico e alegórico na explicação da etimologia
floral, tendência localizável nos poemas em prosa da década subsequente, sobretudo em
Colatino Barroso, Dario Veloso e Júlio Perneta, embora em cosmovisão bem menos
edulcorada.
O primeiro texto de Guimarães em Noturnos, “Serenata do rio”, sintetiza a
idiossincrasia formal da obra. Exaustivo no livro, o tema é a desilusão amorosa associada
63
à morte, par que proliferará no poema em prosa (nesse sentido, Luís é autor de texto
homônimo e muito semelhante a Cruz e Sousa, “Seráfica”). Divide-se em nove partes
curtas, algumas com apenas duas linhas. Como nos outros românticos, o decalque de
recursos poemáticos comparece nas construções anafóricas, no paralelismo rítmico-
sintático dos parágrafos e na abundância imagética:
A homologia entre verso e prosa se deixa entrever em títulos como “O poema das
lágrimas” e “O canto dos sabiás”. Este remete não à “Canção do exílio” gonçalvina, mas a
texto homônimo de Fagundes Varela, publicado em Cantos do ermo e da cidade (1869),
em que o eu-lírico devaneia sobre a ave canora para, enfim, constatar sua própria solidão.
Para melhor compreensão, justapusemos trechos de Varela e de Guimarães:
São os sabiás que cantam nas laranjeiras da várzea. (Guimarães Júnior, 1872:
78)
cantor do Cântico. Se há arrojo em imitar em prosa o que foi tão maviosamente dito em
verso, perdoe-me o poeta, e perdoem-me os críticos” (1872: 222). Havia, portanto, o
desejo de imitação, diríamos melhor, de transferência da poesia para a prosa, como se os
parágrafos aliviassem a compressão do verso. Não integrava o programa estético construir
forma simultaneamente diferente do verso e da prosa; tratava-se antes de alterar a
apresentação, não a essência. Por isso, no Romantismo, os protótipos do poema em
prosa não forjaram “terceira entidade, diversa de cada uma [da poesia e da prosa] em
particular e só existente como a soma harmonicamente dialética de ambas” (Moisés,
1967: 220). Todavia, isso em nada decresce a contribuição romântica; musicalidade,
riqueza imagética, endosso da imaginação, fuga ao narrativo, inovações ensaiadas de 1840
a 1870, se desenvolverão plenamente no poema em prosa do último quartel do século
XIX.
69
Em 1881, Pompeia, até então morador do Rio de Janeiro, passa a viver em São
Paulo, e estuda na famosa Faculdade de Direito, onde desenvolve amizade com, entre
outros, Luís Gama, grande incentivador de seu ânimo abolicionista. Começa a colaborar
72
7
As partes do livro virão entres aspas e em itálico, para diferenciar-se dos títulos de
poemas.
73
natureza, tão aludida neste primeiro poema. Em “Vibrações”, o homem vive em franca
harmonia com o meio ambiente (em “Vermelho, guerra”, por exemplo, a mãe “lê” no
crepúsculo a notícia da morte do filho). A simbiose é confirmada pela epígrafe pinçada
no soneto “Correspondências”, de Baudelaire, em que a natureza se configura como
“tenebrosa unidade”, “floresta de símbolos” cujos sinais o homem deve interpretar.
Na seção inicial, homens, animais, plantas e minerais se relacionam de maneira
cordial com o cosmo, podendo todos integrar o mesmo “poema”. Entretanto, a relação
humana com a natureza altera-se radicalmente, uma vez que o homem se transforma em
farejador de matéria-prima (ver “Indústria” e “Comércio”). Fratura-se a harmonia natural
(estampada nas estações do ano que encabeçam a segunda parte do livro, “Amar”) em
nome do lucro. Tal exploração predatória reflete-se na estrutura crescentemente
esquartejada das Canções sem metro: “Vibrações” contém, conforme dissemos, texto
único. Já “Amar”, composta de cinco textos, adianta a quebra da união, ainda mais
comprometida pelo sonho apocalíptico inserido em seu poema final, “Ilusão renitente”.
Os oito textos do terceiro bloco, “O ventre”, agravam o dilaceramento, culminando em
“Vaidades”, com nove poemas, e “Infinito”, com dez.
Em 1888, Pompeia republica integralmente na folha curitibana A Galeria Ilustrada
os dez poemas encartados, cinco anos antes, no Jornal do Commercio, com o adendo
das ilustrações.
74
Era desejo seu publicar os poemas numa edição luxuosa e ricamente ilustrada, o
que infelizmente não ocorreu. No jornal, os desenhos ocupam o canto superior esquerdo
da página, estando o restante da folha preenchido pela linguagem verbal. Essa disposição
reforça a continuidade entre imagem e palavra, típica do poema em prosa. Em artigo
publicado no mesmo ano, Pompeia endossou a importância da fanopeia:
desenhista e, como Aloysius Bertrand, amiúde ilustrava seus textos (veja-se O Ateneu),
arriscando-se, ademais, na caricatura. Infelizmente, não se incluíram na edição definitiva
(e póstuma) das Canções sem metro as vinhetas elaboradas simultaneamente ao
burilamento dos poemas, contentando-se o leitor de hoje com os desenhos reproduzidos
por Elói Pontes em A vida inquieta de Raul Pompeia (1935) e por Afrânio Coutinho no
volume X das Obras do autor. Rememore-se que também foi capista e ilustrador de
livros alheios, oferecendo o pincel a, dentre outros, Aluísio Azevedo (Casa de pensão),
Lúcio de Mendonça (Vergastas), Rodrigo Otávio (Pâmpanos) e Pedro Rabelo (Opera-
lírica), todos disponíveis em Obras X. Além disso, ilustrou dez das “Canções sem metro”
no periódico curitibano A Galeria Ilustrada.
Se, em Pompeia, “as ilustrações se integram no corpo do texto; não são mera
redundância ou ornamento, mas acrescentamento de significado, principalmente no nível
das conotações” (Paes, 1985: 54), também as descrições, sobretudo nas Canções sem
metro, ultrapassam o ornamento e contaminam-se pelo predominante enfoque subjetivo,
avizinhando-se antes do Impressionismo do que do Parnasianismo: o parnasiano recorta
uma fatia do mundo com cinzel e pousa-a placidamente no poema, ao passo que o
impressionista irriga a paisagem; suas descrições tendem mais aos Goncourt do que a
Flaubert (confiram-se os poemas “A floresta”, “Verão” ou “Deserto”). Em artigo
publicado na Gazeta de notícias de 13 de agosto de 1888, o autor louvaria a inflexão
subjetiva das descrições: “São os parênteses da personalidade, nos momentos dramáticos
da narração, ou nos trechos de pitoresco descritivo, que constituem a vida das páginas de
estilo” (Pompeia, 1991: 56).
A compreensão epidérmica da plasticidade descritivista levou críticos do porte de
Manuel Bandeira e de Péricles Eugênio da Silva Ramos a incluir Raul Pompeia em
antologias do Parnasianismo: respectivamente, Antologia dos poetas brasileiros da fase
parnasiana (1938) e Panorama da poesia brasileira – O Parnasianismo (1959).
Ironicamente, selecionaram poemas de inflação subjetiva pouco ou nada parnasiana...
Bandeira escolheu “Negro, morte”, “Rosa, amor”, “Há também nas almas o incolor
diáfano do vidro”, “A noute”, “Esperança” e “Rumor e silêncio”; Péricles Eugênio,
“Rosa, amor”, “Verão”, “A floresta”, “História de amor”, “Deserto” e “Os continentes”.
O juízo parece herdado de Venceslau de Queirós, para quem as Canções são:
para o livro de 1900, será rebatizada de Irene (do grego, “paz”), prefigurando no nome a
temática do poema.
Naturalmente, no intervalo transcorrido entre as publicações no Diário Mercantil e
n’A Galeria Ilustrada – entre 1884 e 1888, portanto –, Pompeia não renunciou ao
projeto. Nesse ínterim, transferiu-se para a Faculdade de Direito do Recife, onde as ideias
libertárias, encabeçadas por Tobias Barreto, fervilhavam mais intensamente do que na
academia paulista, cujos professores, de formação ultramontana, eram bastante
coercitivos. Na capital pernambucana, escreveu a novela Alma morta, fronteiriça ao
ensaio; o hibridismo de gênero e o pessimismo, aguçado pela leitura de filósofos como
Schopenhauer e Max Nordau, vazariam para alguns dos poemas que redigia
concomitantemente, conquanto só os publicasse na virada de 1885 para 1886, na coluna
“Uma Seção”, do jornal carioca A Gazeta da Tarde.
Na segunda metade da década de 1880, as canções proliferam em periódicos do
Sudeste e do Sul, difundindo-se não só pelo Rio de Janeiro (A Gazeta da Tarde, Treze
de Maio, A Semana, A Rua, A Vida Moderna) e por São Paulo (A Província de S. Paulo,
O Estado de S. Paulo), como também por Juiz de Fora (Diário de Minas), Espírito Santo
(A Província do Espírito Santo) e, conforme mencionado, Curitiba. O incremento das
contribuições funciona como sismógrafo do crescente estreitamento entre literatura e
jornalismo no século XIX. Os escritores tornavam-se homens de letras, passando a
encarar a literatura como profissão, pela qual recebiam pagamento mediante publicação.
Muitos literatos fundavam folhas particulares, lançando textos próprios ou de amigos. O
caso de Pompeia é bastante eloquente: formado em Direito, nunca atuou na área,
extraindo renda da literatura ou do magistério. Chegou a criar alguns pequenos
periódicos, como o efêmero A Rua. Nascendo com Pompeia no jornal, o poema em
prosa brasileiro contaminou outros gêneros com os quais dividia página, como o conto e
a crônica (cf. Conclusão).
Em A Gazeta da Tarde, Raul publica mais de vinte canções, que, com pouca ou
nenhuma alteração, abasteceriam a terceira, a quarta e a quinta partes do livro. Trata-se
de textos combativos, de todo condizentes com o perfil de A Gazeta: pertencente a José
do Patrocínio, amigo de Pompeia e como ele republicano e abolicionista, o jornal atacava
violentamente o Imperador. As canções aí publicadas censuram a fome de lucro, a qual,
conforme antes apontado, altera a relação humana com a natureza.
78
Por outro lado, na contemporânea A Semana, folha mais literária, dirigida pelo
também amigo Valentim Magalhães, Pompeia introduz textos líricos, meditativos e
metalinguísticos, posteriormente modificados e injetados em diferentes partes do livro:
“Rugidos do Mar” (1885), “A Arte” (1886), “Hebe Imortal” (1888) e “Espectro
Sentimental”, contendo quatro poemas, I – “Frutos Verdes”; II – “A Vigília de Oiro”; III
– “A Origem das Rosas” e IV – “Extrema Unção” (1895). Agora viceja alguma utopia, em
certa medida compensatória da desesperança predominante nas canções de A Gazeta da
Tarde. A diferença atesta o potencial redentor e sublime que o escritor atribuía à
natureza e à arte: se aquela é louvada em “Rugidos do mar” e em “Espectro sentimental”,
esta chega a intitular um dos poemas de A Semana.
De fato, apesar de o pessimismo se sobressair no livro, o último poema,
“Conclusão”, contém suspiro utópico, ao sintetizar no céu (logo, na natureza) a
moralidade da vida, como se, retornando a ela, o homem lograsse redenção: palco dos
“múltiplos aspectos cambiantes das existências” (Pompeia, 1900: 77), o firmamento é a
metonímia do “vivo contraste” (ibidem).
Assim, a proliferação de canções no biênio 1888/1889 responde à coetânea
efervescência sociopolítica do Brasil, agitado por questões muito caras a Raul Pompeia: a
libertação dos escravos e a proclamação da República. Além de lançar canções em A
Gazeta da Tarde, o poeta retoma poemas de “Vibrações”, republicando-os em A Galeria
Ilustrada ou retocando-os, em 1889, no periódico Treze de Maio, onde as canções
alcançam praticamente forma definitiva. De modo sintomático, o último fragmento de
“Vibrações”, antes intitulado “Noutes pretas”, é de patente abolicionismo: “Tiraram-lhe a
pátria, a companheira, votaram-lhe à morte os filhos, as filhas à torpeza; deram-lhe em
compensação… Mostrava a face preta, o sangue a correr. Quem são os teus algozes? / –
Os homens brancos” (Pompeia, 1900: 13). Os poemas da futura primeira seção do livro
aparecem também em A Província de S. Paulo, em 1889, e em O Estado de S. Paulo, em
1892, mas, curiosamente, em versões anteriores às publicadas em Treze de Maio, as
quais, insistimos, migram quase sem alteração para a brochura.
Ao contrário dos anos 1880, a década de 1890 assinala progressiva desaceleração
na publicação dos poemas em prosa. O afrouxamento justifica-se tanto devido à iminente
conclusão do livro em fins do decênio anterior, quanto ao crescente envolvimento do
autor com a vida política. Após a Revolta da Armada, o apoio incondicional de Pompeia
às tiranias do marechal Floriano custou-lhe uma série de oposições, inclusive de antigos
79
lembramos que O Ateneu foi publicado em 1888, mesmo ano das Poesias, de Olavo
Bilac.
Se a explícita valorização da naturalidade dificulta o vínculo do autor das Canções
sem metro com o Parnasianismo, o entendimento da arte como “educação do instinto
sexual” talvez pudesse acenar ao Naturalismo, uma vez que a escola de Zola, na esteira da
medicalização da vida, delegava à literatura o papel de higienizadora social, imputando-
lhe as missões de “regular a vida, regular a sociedade, resolver com o tempo todos os
problemas do socialismo, e, sobretudo, trazer bases sólidas para a justiça” (Zola, 1982:
29). A tarefa de sanar as patologias conferia “utilidade prática” e “elevada moral” (Zola,
1982: 48) ao discurso e tornava os escritores “os operários mais úteis e mais morais do
trabalho humano” (Zola, 1982: 29), convertendo suas penas em vetores do progresso.
Todavia, o pragmatismo e a moralidade da arte, avizinhando-a da ciência e da indústria,
encontram franco combate em Raul Pompeia: “Além de inútil, a arte é imoral”
(Pompeia, 1981: 163). Por outro lado, como os naturalistas, ele reconhece percurso
evolutivo no âmbito artístico; é preciso distinguir, porém, o que cada um compreende
por evolução.
Os discípulos de Spencer, desdobrando a seleção natural darwiniana, dilataram o
struggle for life, a fim de convertê-lo em princípio válido tanto no campo biológico,
quanto no social. A utopia da transformação, correlata da evolução biológica,
desenvolveu assim a sedução pelo progresso, atenta à investigação e à propaganda de um
conjunto de medidas providenciais, aptas a curar as degenerescências modernas e, assim,
conduzir a sociedade a estágio superior de organização e bem-estar.
A ficção naturalista, em especial a francesa, erigiu o tablado para encenação dos
postulados científico-filosóficos, ainda que, por vezes, incorresse em deturpações teóricas.
Transformada em ciência aplicada, a literatura comprometia-se em dramatizar a urgência
dos avanços. A estratégia dominante para isso era o estudo de casos patológicos, ardil
posteriormente cristalizado em cacoete narrativo. O teatro do darwinismo social, via
literatura, focava mais as sequelas do que as benesses da evolução, atualizando em certa
medida a tática barroca da catequese pelo impacto, com a diferença de agora se poder
substituir a palavra “Deus” por “Ciência” ou “Progresso”. Essa nosografia literária
estabelecia um nexo determinante entre as nevroses e a supremacia do instinto,
endossando a necessidade de controle da bête humaine em favor do aperfeiçoamento
84
No polo oposto, temos a estética parnasiana, que, a despeito de ansiar pelo produto
com fisionomia natural, mensurava a qualidade pela transpiração: “Mas que na forma se
disfarce o emprego do / Do esforço” (Bilac, 1952: 315); “Não se mostre na fábrica o
suplício / Do mestre. E, natural, o efeito agrade, / Sem lembrar os andaimes do edifício”
(Bilac, 1952: 315).
Ao privilegiar a naturalidade, Pompeia afere duas outras características da arte: (a) a
inutilidade: sem o encargo de direcionar a humanidade, a criação “inútil como o
esplendor corado das pétalas sobre a fecundidade do ovário” (Pompeia, 1981: 162-3),
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mescla imagens de alto e baixo, exterior e interior: “Vibra o abismo etéreo à música das
esferas; vibra a convulsão do verme, no segredo subterrâneo dos túmulos. Vive a luz, vive
o perfume, vive o som, vive a putrefação. Vivem à semelhança os ânimos” (1900: 9). A
substituição de “vibrar”, presente nas duas primeiras orações, por “viver”, nas duas
últimas, reforça a ligação entre ambos: o imbricamento entre vibração e vida é tal que
mesmo a putrefação vive.
Prolongamento entre as vibrações e os ânimos, o segundo parágrafo vincula
sentimentos a formas poéticas:
explicação lírica do vínculo entre verde e esperança, como se o poeta pudesse flagrar a
primeira vez em que se estabeleceu tal associação:
Sobre o leito, o cheiro mau das chagas era como uma antecipação da morte.
Descamava-se a pele em crostas ásperas sobre o grude do pus. Ela morria,
alcançada pelo sorteio inexorável da Peste. À porta, o anjo negro da
maldição; longe, a espavorida caridade.
Ali, na parede, havia flores adornando um retrato de moço. Simples
lembrança da Páscoa, flores da aleluia, colhidas numa escapada de amantes.
Amor não faz quaresma... cobertas de ouro as árvores... Ela também
triunfante; ouro sobre o esplendor adorado do sexo... Agora fitava as flores
secas. Junto dela, o filho, pequeno animal sem vontade, sem vida, que lhe
chegava aos lábios um copo d’água.
Sobrara-lhe um filho nos desperdícios do passado, para vigiar-lhe a agonia.
Ninguém mais, ninguém mais, nem Deus com ela: apenas as flores do
desespero e aquele copo d’água de vez em quando, que ela sorvia como uma
medicina amarga de lágrimas... (1900: 10-1)
aos queridinhos. Ver-me-ás também. Como se fica velho neste ambiente de pólvora
queimada!”.
Irene indaga a paisagem observando o entardecer, como se o nascimento do dia
anunciasse a morte do filho. Desmonta-se a simbologia cristalizada do amanhecer
auspicioso e do crepúsculo melancólico, com o fito de demonstrar que a cor não se aloca
apenas no exterior, mas também na retina:
atmosfera, a protagonista é “criança pensativa” (1900: 49) que assiste extasiada ao voo de
duas pombas brancas. Observando-as, a “cismadora criança experimenta a vertigem do
azul e a alma escapa, sedenta de amplidão, e voa ao encalço das estrelas” (1900: 14). O
desejo de congraçamento e de expansão fazem-na entregar-se ao azul. Dessa forma, os
azuis de “Rosa, amor” e o de “Azul, ciúme” se diferenciam por quem os contempla:
enquanto neste a protagonista sepulta a cor na pálpebra morta, esterilizando a
possibilidade de se expandir, naquele a criança se arremessa. Do ponto de vista físico-
químico, portanto, a cor é a mesma, mas a experiência sentimental varia conforme o
sujeito.
A crescente subjetivação das cores dificulta a delimitação entre elas: defrontando-se
com o inominável, desparecem os subtítulos que identificam cor e sentimento e surgem
fragmentos separados por curto traço, como se apenas o branco expressasse o
inexprimível. Até aqui também se podiam aferir semelhanças com o espectro físico das
cores; doravante, as faixas cromáticas rompem de vez com a lógica newtoniana. O
penúltimo segmento, por exemplo, trata da ausência de cor, a que corresponde a carência
da linguagem: “Há também nas almas o incolor diáfano do vidro” (1900: 14). O excerto
detém outra marca inédita, a intervenção explícita do enunciador:
Veio de longe, muito longe, mísero! Teve outr’ora um céu, uma pátria,
muitas afeições, a cabana da aldeia. Agora só tem o ódio. O ódio mora-lhe no
peito, como um tigre na furna. Tiraram-lhe a pátria, a companheira, votaram-
lhe à morte os filhos, as filhas à torpeza; deram-lhe em compensação...
Mostrava a face preta, o sangue a correr. Quem são os teus algozes?
– Os homens brancos.
Ele odeia os homens brancos; odeia a torre aguda, ao longe, como um
punhal voltado contra os céus: odeia o trem medonho de fogo e ferro, que
muge e passa, troando, escândalo do ermo. (1900: 15)
Como se vê, as cores desenham parábola da trajetória existencial, cujo ápice se situa
em “Rosa, amor”: são marcos da subida a esperança, o desespero, o ciúme, a tristeza, a
guerra, a paz e a morte; a queda registra-se nos dois segmentos finais, que, segregados dos
anteriores, assinalam suplantação da utopia e desequilíbrio entre homem e cosmos,
desmantelando a unidade da natureza e do poema. Ironicamente, no desfecho de
“Vibrações”, vibra a máquina, não a vida, sendo emblemático o fato de o trem mugir ao
final do poema.
Retratando as estações do ano, “Amar”, segunda parte das Canções sem metro,
radicaliza o prenúncio da destruição da natureza, a começar do poema “Inverno”,
inaugurando a desesperança da seção:
Mas esquecia Hermínia que também lhe era vedado o gozo das primaveras;
havia também um céu que em vão a chamava, havia um mundo de expansões
que lhe reclamavam a alma ardente de donzela.
Entre as expansões primaveris e o seu espírito interpunha-se a vontade dos
homens, rude e fria, como uma grade de ferro. Não lhe pertencia a
formosura do corpo nem a vida da alma – pobre escrava!
E andava, tola! a protestar contra a escravidão dos canários. (1900: 22)
Ser amada assim! suspirava a selvagem Ruth, meiga e aérea criança, no fundo
misterioso do sangue.
Amor de verão!
Viver a intensidade mortal da vida, arder, arder e morrer, como o fogo que
cresce, cresce e de si mesmo morre, enfermo do seu triunfo. (1900: 23)
talvez saber para que nasce o inocente grelo matricida do destroço pútrido de um fruto.
Querem saber a que voraz conviva aproveita o banquete opíparo do outono” (1900: 24).
Como o fruto se alimenta da árvore, o “grelo matricida” resume a polaridade natural,
definhando as mães para a saúde das crianças.
O último poema de “Amar”, “Ilusão renitente”, prevê o extermínio generalizado:
Quando não houver mais trigo para os pães, faremos pães de ouro; quando o
planeta, exausto, fragmentar-se no vácuo, um novo planeta, de ouro, dará
refúgio à humanidade expatriada, mas triunfante!
Um astro procura o outro para submetê-lo, não para irmanar-se a ele, ampliando a
contenda a nível cósmico: se antes equilíbrio significava integração cooperativa, agora
pressupõe destruição. Iniciada nas esferas, a sequência persecutória é extensiva a todas as
instâncias da natureza e da sociedade: homem, fauna e flora. Semelhante à cadeia
alimentar, a disputa se reflete, isomorficamente, na anadiplose (“rio” e “nuvem”), com a
última palavra de uma frase iniciando a seguinte. Entretanto, o efeito perpetuador da
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Chamamos treva à noute – a noute que nos revela a subnatureza dos homens
e o espetáculo incomparável das estrelas. (1900: 43-4)
abismar-se no tempo ao clarão desse facho!” (1900: 49-50). O mito grego de Hero e
Leandro narra a história de amor dos dois jovens separados pelo Helesponto, estreito
entre a Europa da Ásia, hoje estreito de Dardanelos. Leandro, asiático, atravessava o mar
para encontrar Hero, que, na margem europeia, acendia tocha no farol da torre, para
orientar o nado do amante. Certa noite, forte tempestade apagou a iluminação, e
Leandro, desorientado, afogou-se e morreu. As águas levaram o corpo até Hero, que,
desesperada, lançou-se ao mar. É o efeito eternizador do mito de Leandro que Pompeia
agencia para metaforizar a imortalidade artística, desdobrada também na inversão dos
elementos: se, na narrativa grega, a água destruía o fogo, no mito e na arte, o fogo resiste a
ela, o farol “domina impávido o naufragar das eras”. O final do poema corrobora a
capacidade continuadora: o “clarão” artístico é a brecha contra a escuridão do sepulcro.
Não podendo fugir à miséria, o homem recorre à arte como conquista imaginada da
infinitude.
A valorização da subjetividade, tentando refrear a reificação predominante em “O
ventre”, reaparece em “História de amor”. O poema começa no diapasão da
cumplicidade: “Viviam sob os céus, doudos de amor, o Homem e a Onda” (1900: 52).
Grafados em maiúsculas, Homem e Onda se transformam em categorias arquetípicas. O
retorno à ancestralidade recupera algo da amplidão cósmica:
E o Homem disse:
“Eu amo a Onda; amo-a em seus lânguidos folguedos com Anfítrite e as
Nereidas; amo-a na sua inconstância, nas traições, nas femininas iras de
tormenta. Extasio-me a vê-la nadando, nua, no mar manso, cabeleira
flutuante, estrelada de ardentias, o luar vestindo-lhe em fina prata as níveas
espadas e os flancos; ou na batalha, altiva, bela guerreira! atacando em grita
com as irmãs, os atrevidos penedos do litoral durante a aspérrima invernia.
(1900: 52)
ondas encantavam pelo dinamismo, agora atraem pelo poder de revelação, e a crescente
coesão entre Homem e Onda demarca paulatina renaturalização dele. Paralelamente, os
componentes restabelecem a relação especular, latejando em cada parte a frequência do
todo: no mar, refletem-se terra (“jardins fantásticos”) e céu (“as aves do céu”); no fundo
do mar encontram-se índices de riqueza da civilização (“tesouros secretos”, “paços
suntuosos”), como se esta pagasse tributo à natureza. O Homem não só reconhece, mas
venera a cumplicidade cósmica entre mar e céu, desejando retribuir o afeto à Onda:
olímpico visita-me primeiro com os seus eflúvios virgens, antes de dar aos
campos a manhã. (1900: 53)
mim”, “redor de mim”, “fazem-me”, “visita-me”); o único pronome reto, que poderia lhe
conferir certa autonomia motora, é elíptico, retraído pelo esplendor da posse: “Tenho”.
Já A Pedra do Alicerce não só emprega o “eu”, como o associa à mobilidade (“se eu me
agitar”).
Enquanto A Pedra do Alicerce sustava o discurso de A Alta Métopa, A Pedra
Lavrada incita-o à continuidade:
Como se vê, as Canções sem metro se organizam em sintaxe especular, cujo eixo,
“O ventre”, as divide em duas frações enaltecedoras do “vibrar, viver”, princípio efetivo,
antes de “O ventre”, e hipotético, depois do parto industrial. O primeiro conjunto
(“Vibrações” e “Amar”) se situa numa atemporalidade primordial, regida pelos ciclos
naturais; já no terceiro segmento (“Vaidades” e “Infinito”), o imediatismo dissocia o
homem de suas idiossincrasias. A partir de “Vaidades”, os textos oscilam entre censura da
desumanização e sinalização de alternativas contra ela.
A sondagem respeitosa do mundo se consuma em “Ontem”. Nele, valoriza-se a
carga psíquica depositada nas pedras e, em consequência, estatui-se o tempo como
instância plural: “Uma pedra, um epitáfio, é cada página da história. Embaixo dessas
inscrições os séculos dormem. Poeira vil e saudades” (1900: 65). Admitindo a
sobreposição temporal, fenece a cronologia, segundo a qual cada momento suplanta o
anterior: para Pompeia, os efeitos do tempo se decantam uns sobre outros, cabendo a
nós despertar as vozes empilhadas: “Todas as alegrias de ontem e todas as lágrimas,
conquistas e decepções, louros e espinhos, apoteoses e martírios, misérias, grandezas,
fortunas, maldições, tudo reverteu em nosso proveito” (1900: 65).
Ao teorizar sobre a alegoria, Benjamin destaca que, na obra de arte, “a função da
forma artística é a de transformar em conteúdos de verdade filosóficos os conteúdos
materiais históricos” (Benjamin, 2004: 198). Alega ainda que essa transformação “faz do
declínio da força de atração original da obra, que enfraquece década após década, a base
de um renascimento no qual toda a beleza desaparece e a obra se afirma como ruína”
(Benjamin, 2004: 198). Ou seja: o tempo como ruína ganha maior potencial de
renovação e de revelação, já que em seus matizes se acumulam diferentes épocas; a ruína
nunca morre porque sempre renasce, daí a pluralidade suscitada pelo conceito. Desse
modo, a obra de arte tornada ruína está liberta do circunstancial, atualizando-se a cada
nuance que se lhe sobrepuser. As Canções sem metro não só conformam cosmovisão
arruinada, mas também se configuram como ruína, uma vez que em suas dobras
adormecem questões sempre revigoráveis. Em artigo de jornal, Pompeia endossa essa
criticidade permanente: “uma das grandes faculdades artísticas é obter a expressão
espontânea e poder, sem prejuízo da espontaneidade, criticá-la longamente, para que não
degenere, como é comum nos casos da solta inspiração” (apud Coutinho, 1980, II: 665).
A flutuação temporal ecoa nos dois últimos parágrafos do poema, em que a mescla
de tempos verbais indicia a artificialidade cronológica: “Fostes! / Vindouros somos nós!”
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(1900: 64). O sujeito poético flexibiliza novamente sua consciência, desta vez no que diz
respeito à compreensão do tempo. Nota-se, assim, que “Infinito” visa enferrujar as
“Vaidades”.
Nas Canções sem metro, o sujeito multifacetado detém o privilégio de se deslocar
sobre o tempo, para, gozando de superioridade, advertir a humanidade. Destarte, a
sequência dos poemas “Ontem”, “Hoje” e “Vulcão extinto” é bastante significativa: se os
dois primeiros respeitam a cronologia, o terceiro, supostamente intitulado “Futuro”,
desmonta o arranjo lógico em nome da ênfase na destruição. De fato, “Vulcão extinto”
constata o término da vida. Inicialmente, porém, descreve o nascimento de um vulcão,
elo entre o magma desconhecido e a clarividência do exterior: “Rasga-se a cratera à
sombra do píncaro mais alto. Precipícios sem fundo; vai-se-nos a imaginação pelas fragas,
a perder-se embaixo, impenetrável noite” (1900: 67). Guardião da noite, o vulcão permite
que apenas a imaginação afunde em sua escuridão enigmática. Repentinamente, porém,
cessa atividade:
Antes de tombar sobre o vulcão este silêncio pesado, quanta vez tremeram as
rochas ao rugido da lava fervente! Tentara o gigante em outros tempos
incendiar a amplidão: o século o puniu.
Nada mais ficou dos grandes dias além das escarpas calcinadas, o velho
esqueleto informe. Caíram para sempre os castelos de chamas que se
erguiam sobre a cratera; extinguiram-se de vez as cenografias satânicas da
conflagração; pereceu a memória das erupções triunfais!
Tudo agora está findo.
satânicas” e das “erupções triunfais” cessam a ebulição vital, o instinto, o desejo, o caos,
traços intrínsecos à mais genuína humanidade, antes ejaculados pelo vulcão. O
perecimento do fogo, elemento animador da existência (cf. “Verão”), parece representar
Eros emparedado pela civilização. Como “as alegorias são, no reino dos pensamentos, o
que as ruínas são no reino das coisas” (Benjamin, 2004: 193), o orifício do vulcão extinto
é alegoria do recalque do absurdo, da afonia imposta à noite.
“Os continentes” aprofundam o motivo do esfacelamento da vida. Clamando
“Atlântida! Atlântida!”, continente submerso, o poema sedimenta o perecimento
universal:
Eu creio no astro onipotente, criador dos dias e das cores. (1900: 70)
julgava conhecedor do mundo. Enaltecer o “criador dos dias e das cores” corresponde a
cultuar o tempo do trabalho (observe-se o emprego irônico da palavra “jornada”) e o
desvelamento do mundo. Contentando-se com sol, o homem exibe a cegueira do
materialismo que não carece de “buscar mais alto”: afinal, a diferença ontológica entre os
deuses e o sol é a manifestação material deste, em oposição à diluição misteriosa
daqueles. Trata-se, portanto, de procedimento irônico, em que o escritor critica
compactuando e compactua criticando. O mascaramento irônico se patenteia ainda na
sutil oposição entre o plural do título e a predominância do singular a partir do subtítulo,
afrontando a onipotência luminosa com a pluralidade inquietante e noturna do mistério.
Em função disso, apesar da ostensiva convicção disseminada nos pontos de exclamação,
“a interrogação permanece”: “Que estranha potestade és tu, glorioso sol que me
deslumbras?!”.
Pompeia se empenha progressivamente em ruir o império da razão e,
complementarmente, em enaltecer a impenetrabilidade do cosmos. Em “Transit”, por
exemplo, o salmo XVIII aparece na epígrafe louvando a magnitude celeste: “Os céus
contam a glória de Deus, / e o firmamento proclama a obra de suas mãos” (apud 1900:
71). Contraponto da hosana sálmica, o poema se ambienta em cenário sombrio e
mortuário: “À beira do agreste atalho um túmulo. Os cães visitaram-no; a cruz caiu. Fora
da cova, de envolta com a terra, uma caveira parece intencionalmente voltada para o
infinito. O osso recortado da face afeta o riso áspero e impertinente, a ironia fixa de todas
as caveiras” (1900: 71). Procede-se à desritualização da morte: queda da cruz, visita dos
cães, caveira fora da cova, osso recortado. Se ao ritual cabe apaziguar a inexistência de
sentido, fazendo da morte uma passagem, eliminar o invólucro simbólico da sepultura
exuma o conteúdo perturbador, o “riso áspero e impertinente”, já entrevisto em “Negro,
morte”. Daí a “ironia fixa de todas as caveiras”, escarnecendo da pretensão malfadada; na
agonia, a caveira ergue os braços para o infinito.
A morte se reveste, portanto, de denúncia (político-social, inclusive), confrontando
a impotência da razão perante o absurdo. Por isso, no último parágrafo de “Transit”,
zomba-se da insignificância humana: “Infinito coro longínquo das estrelas findas! / Salve,
Século!” (1900: 72). Desse modo, o título “Transit” apela à ultrapassagem (para o
infinito?): da vida, da vaidade, da consciência, do conhecimento, da razão.
Na escala crescente de condenação das vaidades, aparece “Solução”: “Para que
mais, insensato?! Aqui venho eu da grande derrota. (...) Sondei, sondei, sondei! Desafiei
114
Serena o mar...
Torna também o firmamento à limpidez da bonança. Ao mar, aos homens,
reapareceu, sem mácula, a amplidão do azul.
Sem mácula!
Pode vir de novo a coorte dos nimbos travar o drama da tempestade.
Pode vir a estrela e prosseguir a jornada nômade que leva!
Venha, prossiga a neve, flameja o astro. Para a nuvem, risonha ou trágica,
sombria ou luminosa, pejada de raios ou penetrada de luar, lá está o cenário
franco. Para o astro, impassível, lá está o rumo das órbitas desimpedido!
Estrela, nuvem – nuvem que passa, estrela que arde. (1900: 76)
No quarto onde ela morria, por uma janela aberta, aromas penetrantes e
fortes de verduras florescentes, entravam.
Além, árvores enormes, impelidas por um vento glacial, cortante,
balançavam-se.
Do quarto fugiam choros profundos, abafados.
E na imobilidade fria do ar, uma tristeza imensa... (16)
Técnica similar empregava Raul Pompeia nas primeiras “canções sem metro”,
publicadas em jornal na mesma época em que se editou Tropos e fantasias. Cotejem-se o
trecho anterior e este, das Canções:
Uma simpatia boa acariciava por fora, a casinha alva, muito alva, encarapitada
no cimo da colina.
Dentro morrera o Gigi, uma criança, um beijo cristalizado, um sonho dos
colibris; e as esperanças dos pais imergiam, pela sombra melancólica das
mágoas, como pombas, pombas tristes, tristes... (41)
o amor que ri com a esposa e soluça com o filho, o amor que mostra a
camisa rota do operário, o arado do aldeão, mas que à noite, nas suavíssimas
126
O ABUTRE DE BATINA
puros alexandrinos, todos iguais, corretos, com os acentos indispensáveis,
com aquele tic da sexta – tipo elzevier, papel melado – e ofereço-to, dou-to.
Prescindo dos meus direitos de autor e tu o assinas!... (62)
No terceiro fragmento, Cruz e Sousa baliza sua censura aos catarinenses novamente
com “É curta a piedade dos homens”, para, em seguida, inserir no início e no fim do
último bloco uma frase de sua autoria: “O poeta vos pede pouco, muito pouco”, cujo
emissor, ambiguamente, pode ser ele próprio ou Margarida. O discurso do poeta é tão
solidário que ele fala pelos outros e com os outros (Eça de Queirós).
Retomando a orgia sonora do primeiro texto de Tropos e fantasias, o último,
“Sabiá-rei”, privilegia as imagens inusitadas (“refrangibilidade prismática”, “venábulos
cintilantes”) e, sobretudo, a musicalidade expressiva: “O sabiá ruflava as asas pardas e
amplas, sempre que fazia explosir, como uma girândola no ar inefável e translúcido, a sua
escala cromática de gorjeios claros e espontâneos, pela saleta de uns tons violáceos com
filetes e cinzeladuras douradas” (68). Note-se, no início da passagem, que a assonância do
/a/ acompanha a expansão da ave no ar, e seu canto suave se estende à subsequente
aliteração do /s/.
A importância do canto é tal que altera o ambiente ao redor. A contaminação
subjetiva do espaço, aproximando sujeito e objeto, é recorrente no poema em prosa,
também por solicitação de sua natureza dialética. Baudelaire chegou a falar em “vida
sonambúlica” das coisas (Baudelaire, 1995: 23). Não é diferente o que lemos em todo
“Piano e coração”, bem como em “Alegros e surdinas”: “Nos objetos parecia haver
também a reticência da dor” (40). Em “Sabiá-rei”, o canto da ave ecoa não apenas na
camada fônica (sobretudo nos fonemas vibrantes), como também no espaço doméstico:
Dentre os autores estudados nesta tese, Isaías de Oliveira talvez seja o mais
negligenciado pela historiografia literária brasileira: está ausente da História da literatura
brasileira, de Sílvio Romero, e do título homônimo de José Veríssimo, de A literatura no
Brasil, de Afrânio Coutinho, da História da inteligência brasileira, de Wilson Martins,
dentre muitas outras obras. A lacuna se confirma mesmo em publicações mais
específicas: o autor não comparece na Obra crítica de Araripe Júnior, na Obra crítica de
Nestor Vítor, em Simbolismo e Penumbrismo, de Rodrigo Otávio Filho, em O
Simbolismo no Brasil e outros ensaios, de Tavares Bastos, no Panorama do movimento
simbolista brasileiro ou em O Símbolo à sombra das araucárias, ambos de Andrade
Muricy, tampouco nos volumes Decadismo e simbolismo no Brasil, organizados por
Cassiana Lacerda Carollo. Também não consta de O Simbolismo, de Massaud Moisés.
Sacramento Blake é o primeiro a romper, precariamente, a omissão: no terceiro
volume (1895) do Dicionário bibliográfico brasileiro, declara: “Conheço este autor
somente pelo seguinte livro que escreveu: – Blocos: poesias. Rio de Janeiro, 1893”
(Blake, 1895: 287). Causa espécie tal carência de informação num compilador em geral
exaustivo. Em A vida literária no Brasil – 1900, Brito Broca alude a um episódio de 1911
em que o jornal A Imprensa, de Alcindo Guanabara, realizou plebiscito com intelectuais
brasileiros para decidir quais seriam os membros de uma Academia dos Novos. Dentre
os selecionados para o pleito estava Isaías de Oliveira (Broca, 1975: 47), o que demonstra
sua visibilidade na época. No segundo volume da Enciclopédia de literatura brasileira,
Afrânio Coutinho e Galante de Sousa (2001: 1182) informam que o escritor nasceu em
Aracaju, a 8 de julho de 1864, e que, além de Blocos (1893), teria publicado os livros de
poesia Relíquias (1900), Estelário (1904), Lírica (1909) e Inventivas (s/d).
Com esse repasse crítico, não desejamos coroar Isaías de Oliveira de louros que,
em verdade, não possui: ele é, sim, injustiçado, mas merece um resgate que reconheça
suas limitações. Trata-se de autor menor, hesitante entre as lágrimas românticas e a ascese
simbolista e que, como tal, incorpora o que há de mais ostensivo em cada linhagem. De
qualquer modo, é nessa arraia miúda que, em geral, se sinalizam tendências
contemporâneas ou posteriormente consagradas por artistas de maior envergadura. No
âmbito do poema em prosa, se Blocos incorpora muitos traços das Canções sem metro,
132
À medida que o Romantismo entra em agonia, o romance não sai de cena, mas
eleva-se o número de livros de narrativas curtas, haja vista o caso de Machado de Assis.
A partir dessas considerações, percebemos a importância, discreta embora, de
livros como Blocos, ao emprestarem à prosa aspectos então predominantes no poema,
como a brevidade formal ou a interdependência entre os textos. É tal a preocupação de
Isaías em elaborar um todo coeso que, no “LIVRO ÍNTIMO”, não bastasse a enumeração
dos segmentos, ele os organiza quase em anadiplose, isto é, o final de um trecho inicia,
nem sempre literalmente, o seguinte: o bloco II, por exemplo, se encerra com “Vamos,
Amarília – a felicidade chama-nos” (17), começando o III com “Vem, meu amor, o dia
hoje convida ao prazer” (19). Veremos que, com Missal, os livros de poema em prosa
passarão a se estruturar não pela linearidade temático-formal, antes por certa
136
Vamos, Amarília – é dia claro. O sol – pandeiro de ouro suspenso – vai alto
no céu. A paisagem encanta – os campos enchem-se da dourada messe do
estio; os campinos vibram os instrumentos, cujos sons dolentes repercutem
os bosques, e vão, os alegres campinos, estrada afora, festivos, deleitados pelo
ar puro da manhã, conduzindo as manadas que vão pastar nos frescos vales
distantes. (15, grifos nossos)
Desponta aí uma das qualidades estilísticas que aproximam Isaías de outros poetas
da prosa da mesma década: a imagística inusitada. A forma arredondada do sol faz que
seja associado a um pandeiro, cujo ritmo festivo e sincopado rege as frases subsequentes,
interrompidas por várias vírgulas, dispostas, sintaticamente, de modo a criar percussão: as
sílabas tônicas aproximadas emprestam certo batuque ao trecho. Nesse espaço de
plenitude, paz e amor, há predisposição à transcendência e à poesia, posteriormente
problematizadas: “Tudo aqui eleva um cântico às alturas”, “Há todo um poema no
lânguido arrulho da rola” (16).
O bloco III mantém a exaltação à natureza, cabendo a IV e a V introduzir a nota
carnal ao livro. Paulatinamente, a amada se sobrepõe ao esplendor natural: “Sem ti não
há júbilo possível – um lençol de mágoa cobre tudo quanto ri e canta; abafa os gorjeios,
empana o brilho da luz” (22). O sujeito deixa então de convocar Amarília a observar a
natureza para, diretamente, solicitar seu contato com o corpo dele (recurso menos
evidente em Tomás Antônio Gonzaga): “Vem – dileta imagem dos meus sonhos;
aconchega-te ao meu peito, une ao meu o teu débil corpo de criatura paradisíaca. Infiltra-
me dessa santa luz radiante do teu olhar, onde se arqueia o céu com todos os
estrelejamentos e todas as glórias eternas” (23). A equação homem-natureza é de todo
transformada em VI (no livro, registra-se IV...), em que as belezas naturais se rendem ao
amor humano: “Inveja-nos tudo quanto nos cerca – as estrelas em cima e os pássaros na
ramada; as águas que correm e os cânticos que soam” (26).
Pondo fim ao éden vivido nos seis primeiros blocos, no fragmento VII, Amarília
parte, desbancando a euforia anterior. O estilo se torna lacônico: “Partiu. Partiu, levando-
me todas as esperanças, todos os gozos que pude fruir no passado já morto” (29). Essa
constitui a única passagem narrativa do novo movimento semântico do “LIVRO ÍNTIMO”.
137
Doravante, até a seção XVI, há apenas derivações imagéticas e sonoras dessa tristeza, cuja
causa está desde logo objetivamente relevada. A ausência de progressão temática também
comparecerá na maioria dos poemas em prosa do decênio.
O vazio deixado por Amarília opera uma fissura na natureza e naquele estado
primordial a que aludimos. Curiosamente, a superação do tempo edênico corresponde à
queda de formas poéticas fixas, sintonia que também repercutirá na década: “Estalou a
fibra que vibrava todos os sons, cantava todos os hinos e todas as epopeias, e com ela
derruiu-se uma montanha de sentimentos, revoltas heroicas e paixões incomensuráveis”
(30). Como, romanticamente, o passado encarna a perfeição, o enunciador assume: “Sou
hoje o espectro de mim mesmo, sou a viva recordação do que fui” (34). Decaído do
paraíso, desenvolve uma “imaginação doentia” (35) que transfigura a realidade,
esmaecendo signos antes alegres: “Os rios parecem-me serpentes, as montanhas
assemelham-se monstros terríficos que estão prestes a devorar-me. O cicio das folhas
ressoa como um gemido moribundo” (35).
Almejando compensar liricamente a falta de Amarília, em IX o poeta a transmuta
em estrela. A presença inarredável das melodias naturais – “Tudo canta aqui” (41) –
passam a pontuar, em X, a solidão e o silêncio, apenas interrompido pelo coração,
“agitando-se tumultuosamente”, com as aliterações do /t/ e as nasais evocando o
batimento cardíaco. Mesmo a luz, tão exaltada no início, se torna inconveniente em XI:
diante do amanhecer, Máximo demanda o desaparecimento do sol: “Por que tanta luz?
(...) E, pois, sol venturoso, deixa-me só com os pesares, a tua luz vai fundo em
minh’alma, penetra-a qual lâmina de arma homicida” (45). Implorando, sem sucesso, o
retorno de Amarília, o trecho XII assim começa:
E não vem.
Vãs as minhas queixas, infrutíferos os meus rogos. A minha voz perde-se no
espaço sem repercussão, como um vagido de infante ao desabrochar da vida.
(47)
culminar na imagem do “vagido”, cujo /i/, por sua vez, repercute em “infante” e “vida”,
prolongando sonoramente a extensão do isolamento. O gosto pelo significante se
encontra em outras passagens de Blocos, reduzindo-se, às vezes, a mero jogo de palavras:
“E Máximo, antes vencido do que convencido, resolveu partir” (7). Essa tendência
musical, talvez o traço mais pronunciado do poema em prosa oitocentista, explica a
recorrência, em Blocos, de imagens hauridas no campo da música: “De cada folha uma
volata; soam, por cima, as mágicas canções dos gênios aéreos”(19); “Ergamos um duo
soberbo, vibrante, eterno” (20). São, por exemplo, as canções entoadas pelos
camponeses que, em XII, assinalam a melancolia do personagem, a qual envolve todos
os momentos do dia, da aurora à noite:
Dirijo-me pelas tardes cálidas aos sítios distantes, para ver a leva dos
campônios que voltam das coivaras, ruidosos e satisfeitos, enchendo os ares
de suas melodias dolentes.
E essas cantigas tristes inundam-me a alma de funda melancolia, despertando
os ecos que preciso amortecer, para não desrespeitar a dor à vista dos
indiferentes. (48)
O mesmo dispositivo anafórico estrutura o bloco XVI, que, não por acaso, é
simétrico ao XIV, sendo ambos intermediados por XV, que encena um sonho com a
mulher amada. No décimo sexto fragmento, os cinco primeiros parágrafos começam pelo
imperativo “Vinde” (61) dirigido a vocativos naturais: “seres alados”, “auras da manhã”,
“todos os aromas”, “estrelas fulgurantes” (61), “tudo” (62). Retorna a euforia generalizada
– “Vibrem nos ares as sinfonias de Ariel, por toda a parte ecoe o brado da alegria
universal” (62) –, porque Amarília regressou, consoante a premonição sonhada em XV.
Amarília volta como foi: sem explicitar causa, lugar ou tempo. Tal carência de
especificidade vai de encontro à maioria da prosa de ficção oitocentista (ver capítulo
sobre Dario Veloso), o que ratifica o objetivo dos primeiros poemas em prosa de
esvaziarem a narratividade da prosa para preenchê-la com elementos então
predominantes no verso.
Como cada bloco reinterpreta subjetivamente a natureza, XVII encerra o “LIVRO
ÍNTIMO” com a mesma dicção melancólica expressa na partida de Amarília: “Noite
pavorosa – um largo manto de tristeza cobre a face do céu e envolve a terra toda” (65).
Agora se lamenta a morte da amada, cujo esquife, na compensação transfiguradora de
Blocos, sobe ao céu “vagarosamente, conduzido por gênios aéreos, contrastando a
brancura de seus véus soltos ao vento com o negror da noite pavorosa” (67). O amor
interrompido pela morte não é original – tanto no Romantismo, quanto no Simbolismo.
Neste, entretanto, o falecimento do cônjuge ultrapassa a esfera individual para se tornar
um índice da Dor humana (é o que avaliaremos no capítulo dedicado a Júlio Perneta, por
exemplo). Desse modo, a matéria dos Blocos manifesta pouco ou nenhuma inovação,
mas sua expressão de contornos líricos merece exame crítico.
A segunda parte do livro, “ASPECTOS”, busca superar a marca confessional da
seção anterior. Uma vez que esta se encerra com a indicação “Fim do LIVRO ÍNTIMO”
corações”), quadros naturais (“A primavera”, “Inverno”, “Ao mar”, “Manhãs”, “Maio”,
“Aleluia”) e diatribes contra o mundanismo (“Carnaval”, “Nostálgico” e “Poetas”, “O
palhaço”).
É significativo que o primeiro conto de “ASPECTOS” se intitule “Desilusão”, que,
embora não seja o texto inaugural, deflagra uma sequência de breves narrativas sobre
fracassos afetivos. A rigor, “A primavera” inicia ASPECTOS num discurso lírico bastante
semelhante ao do “LIVRO ÍNTIMO”, com a celebração da vida e da natureza, recorrendo
ostensivamente à descrição. A narração surge, em “Desilusão”, justo quando decai o
estado eufórico, como a indicar que ao “poético” se devem reservar as parcelas mais
elevadas da vida. Realmente, apesar de os poemas em prosa incipientes tentarem abolir a
fronteira entre os gêneros, alguns ainda reincidem na segregação entre temas poéticos e
apoéticos. Como, porém, a diagramação do poema em parágrafos já não é suficiente para
diferenciá-lo da prosa, recorre-se frequentemente a uma distinção tipológica: quanto mais
descritivo (neste caso, isso significa imagético e musical), mais poético, valendo o inverso
para os textos narrativos.
A despeito de na tese voltarmos regularmente a este aspecto, importa desde logo
frisar que, para a maioria dos simbolistas, a poesia nasce da natureza, daí decorrendo que
poético é tudo aquilo que é capaz de criar uma síntese que nos devolva ao estado natural,
pré-civilizado (é o que se lê em “Nostálgico”: “poesia infinita dos primeiros anos” (96)). A
palavra “síntese” é fundamental, pois pressupõe a superação das circunstâncias em favor
de conceitos universais. Por isso, ao afirmarmos que o poema em prosa prefere a
descrição como artifício poético, queremos dizer que ela lhe parece mais apropriada ao
papel sintetizador da arte, uma vez que o narrativo é mais comumente empregado para o
desenrolar de fatos específicos no tempo e no espaço. Questionáveis ou não, os poetas da
prosa acabam incutindo certa atemporalidade à descrição. Todavia, é preciso bom-senso
para não sermos radicais: obviamente, os textos mesclam sequências narrativas e
descritivas; trata-se aqui de predominâncias. Ao estudar a prosa do período, Andrade
Muricy corrobora a ideia:
A apresentação da mulher se faz por subtração, o sujeito elenca aquilo que ela não
possui. Há carência de traços humanos (movimento, carne, voz), indicativa, à primeira
vista, da indiferença da personagem. Tal desumanização, contudo, tem causa mais
objetiva: Cordovil ama uma escultura, para a qual canaliza sua frustração amoroso-sexual.
O objeto se torna um símbolo (daí o título) da repressão sofrida por ele na infância:
“Fora duramente constrangido a obedecer a uns preceitos rudes de educação que o
isolavam, que o encarceravam nas céulas do seu próprio eu, debatendo-se para sair pelos
impulsos do temperamento, mas sofreado tenazmente pela severidade dos princípios”
(120). Ecoando o binômio amor-medo do Romantismo, castrações desse tipo geram um
comportamento de fascínio e terror pela figura feminina – “Tanto mais desejava-as,
quanto mais fugia das mulheres” (121) –, o qual também se vai prolongar à maioria dos
poemas em prosa (cf. capítulos ulteriores).
Encena-se o repúdio às convenções não apenas na escala privada (como nos contos
supracitados), mas também no âmbito coletivo, atacando-se, principalmente, a futilidade
social e o aburguesamento das relações humanas. Hostilizado por quase todos os
simbolistas, o Carnaval, em poema homônimo, representa a festa da besta humana,
desprovida de intelecto e de sensibilidade e reduzida à luxúria: “loucura”, “demência”,
“nudez”, “desvario” e “bacanal” (78) são palavras com que Isaías define o período, do
qual deseja a extinção: “Morra!” (81). Além de desprezar a alma, o frenesi carnavalesco
impediria que os foliões sorvessem, calma e profundamente, as belezas naturais, diluindo
na celeridade grupal possíveis sutilezas sensoriais. Na passagem abaixo, por exemplo,
opõem-se, plasticamente, os “fios de prata” da lua aos “flocos diáfanos” das mulheres,
como se um empanasse a visão do outro:
E vão em revoada, como nuvens acossadas pelo vento, o bando azul das
ilusões de outrora, quando rebentavam da alma os cristalinos veios sonoros
das estrofes, facetadas como rubis, rutilantes como auroras; quando acendia a
imaginação o tropel fantástico das ideias, cheias do vigor verde dos verdes
anos e da luz suavíssima das esferas...
146
em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros, veem-se fundas e exensas valas
cavadas de fresco, onde alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos mineiros,
andam colocando largos tubos de barro para o encanamento das águas da cidade” (352).
“A janela” se divide em dois momentos, demarcados pela construção de um muro
na frente da janela de onde uma jovem contemplava o mar. No início, imperava a
atmosfera expansiva e sonhadora, em que “tudo gozava e sentia além viver a janela”
(348), e a moça projetava seu congraçamento amoroso. A camada fônica procurava
reproduzir essa suavidade:
Pela manhã, aparecia à janela, como um lindo sol feminino, uma bela
mulher, forte, alta, loura, de flavos cabelos, talhada dum golpe numa quente e
perfumosa massa de luz e de sangue, clara da epiderme macia e clara dos
rendados vestidos em fofos e folhos que lhe afogavam soberbamente a
garganta bourbônica, arrematadas por fitas de azul leve e doce graciosamente
enlaçarotadas sobre o sedoso colo oválico. (349)
Em Missal, há poema enquanto houver luz. Por isso, a maioria dos textos se baliza
pelo nascimento e pela morte do sol. Mesmo em poemas noturnos, como “Fulgores da
noite”, surgem frestas luminosas, na lua ou nas estrelas. A única exceção está em
“Umbra”, em que, conforme apontamos, a escuridão ratifica o desrespeito à natureza.
153
Não é gratuita a aproximação com a pintura, pois estão em Missal muitos dos
quadros literários que emoldurarão futuros poemas em prosa, o que se pode verificar nas
frequentes comparações com as artes plásticas: “emprestando a essas paragens o
pitoresco tom da vida de um desenho quente e colorido de leque chinês” (297), “dando
às verdejantes campinas a frescura e a nitidez de uma gouache encantadora” (298). A
relação entre as duas linguagens se aprofunda em “Esmeralda” (326), poema que, de
início, descreve objetivamente um quadro – “No fundo verde da tela avulta em claro uma
Cabeça macilenta, dolorosa, como que envolta num albornoz branco” –, para, em
seguida, preenchê-lo com a imaginação do poeta: “E descendo da boca aos seios alvos de
lua, a imaginação vai fantasiosamente compondo todo o corpo de Esmeralda e despindo-
o à proporção que o vai compondo, despindo-o e gozando a carne cor de papoula”.
Como na tela as tintas vivem da “impressionabilidade artística que um pincel de mão
original e nervosa lhes infiltrou”, o sujeito se interessa não apenas pelo registro das
nuances cromáticas, mas principalmente pela captação (imaginada) das emoções
envolvidas na criação e na recepção da tela. É como exercício de subjetividade que Cruz
e Sousa pendura tantos quadros em Missal. Em “Angelus”, por exemplo, quando batem
as seis horas, escutam-se não os sinos de uma igreja, mas um canto feminino que se
irradia pelo espaço, obrigando-nos a reinterpretar o sentido do título.
Na mesma vertente de “Paisagem”, “Campagnarde” apresenta a jornada de
trabalho de uma moça no campo. A aurora e o entardecer também delimitam o
expediente, a que Cruz e Sousa empresta forte conotação sexual, simbolizando na
passagem do dia o amadurecimento feminino, aferido em imagens de úmida
fecundidade:
Mas, agora que de lá chegas, vens florescente como a vinha verde, dum sabor
de uva branca, inundada do palpitante pólen dourado da antera dos vegetais,
das emanações revigorativas da planturosa paisagem (...), como se o teu
imaculado torso inteiriço irrompesse, brotasse da Natureza no mesmo
veemente e original impulso das árvores e rios (366-7.)
Há, contudo, em ti, algum calor, que não é inteiramente a vida, mas que
suaviza os apunhalantes regelos da neve; que não é o sol da tua carne, a
chama do teu corpo, mas um quente raio d’estrela, a estrela do teu olhar
aceso como velas místicas no recolhido e sagrado santuário de uma Capela.
O luar seja contigo, seja contigo o luar emoliente e lascivo, este luar
equatorial que não é dia nem noite, mas uma doce penumbra velada do sol
do teu sorriso – como se sobre o sol do teu sorriso, para dulcificar a
intensidade do foco da sua luz, quanto tu eras astro inflamado, que ardias,
força latente, matéria animada e pulsante, se houvesse colocado um
transparente abat-jour verde, branco, azulado e amarelado, conforme é, às
vezes, a refração luminosa da Lua. (378)
riquezas táteis. Sua sensibilidade leva o sujeito a imaginar que seu corpo esconde uma
mulher. Certo dia, a mascote é adotada por uma dama, e o poeta idealiza a suave
intimidade entre ambas, numa sequência de sibilantes: “passando-lhe os íntimos
alvoroços do seu sangue de Virgem – como se a gata fosse um profundo seio de afagos a
que ela confiasse todos os seus mistérios e segredos de Noiva” (337). Nesse e em outros
poemas, as pequenas narrativas aparecem para pontuar as etapas de uma ascese sensorial;
neste caso, contar que a gata foi adotada por uma moça delicada apenas potencializa a
sensibilidade do animal.
O sujeito, mais uma vez, retorna da rua em “Ritmos da noite...” e, na solidão do
quarto, investiga a transfiguração noturna do real: “Ah! Por que será que na hora dos
estrangulamentos supremos, quando a Dor nos alanceia e torna velhos, os objetos têm
todos, para nós, uma feição singularmente diversa da que têm sempre – ou sinistra, ou
agressiva ou piedosa?” (368). No poema, o esforço de apreender no espaço os matizes
revelados pela noite se traduz, formalmente, em derivações bizarras da palavra
“impressão”, tais como “impressionisticamente” ou “impressionabilidade” (369). Essa
atividade analítica e intelectual passa a chamar-se “Psicologia”, opondo-se à frivolidade
“da Vida, do Mundo e dos Homens” (370). Epifânica, a noite se converte em experiência
intelectual.
“Manhã d’estio” se diferencia de outros textos ao construir sinestesias a partir de
elementos concretos como “maçã rosada”, “bronze florentino”, “primorosa safira” (375).
Paralelamente, o artista ganha corpo, consumindo seus “glóbulos rubros” (376) em prol
da expressão artística. Essa materialidade aviva a força da Natureza, já que
“germinamente só ela nos sabe dar à alma e ao corpo esta nobre saúde, estas estoicas
atitudes épicas” (376). Pulsando dos astros aos glóbulos, Pandora lança uma “religiosa
bênção panteísta” que “desce consolativamente sobre as coisas” (376), e são esses sinais
que o poeta deve sugerir, sobretudo no estrato fônico da obra. Em decorrência disso,
Cruz e Sousa arremata o texto com breve teoria sobre a composição sonora do poema a
partir da natureza: tratar-se-ia de um “fenômeno acústico da recepção e transladação dos
sons, como em placas fonográficas” (377).
A par dos ciclos celestes, o mar também proporciona ensinamentos estéticos: “a
ideia da Arte surge-me, alvorece-me no espírito, diante das ondas” (355). É claro que toda
poesia sempre esteve encharcada de mar, em geral tomado como terreno aberto à
imaginação e às confissões do poeta. A novidade de Cruz e Sousa consiste em mimetizar
157
“Modos de ser” e “Oração ao mar”, último poema do livro, são as marinhas que
mais desenvolvem o raciocínio metapoético. O primeiro, sugestivamente intitulado no
plural, destaca o efeito multiplicador das águas, que sempre elevam e ampliam a
realidade, mediante o incentivo à imaginação. Por isso, o mar aguçaria o “sentimento
indutivo das coisas”, a “amplidão das ideias”, a “emanação virginal, salutar”, aspectos
emocionais a que se juntariam o “vigor do pensamento” e as “impressões estéticas”.
Portanto, o mar estimula os sentidos e o intelecto, o devaneio e a reflexão, pares que,
conforme desenvolvido no item 7.3, embasam o projeto criativo simbolista. Não é
gratuito que seja este um dos primeiros poemas a explicitar um paralelismo entre a forma
poética e a ductilidade marítima:
Mas de que modo executar tal projeto? A resposta vem ao final do texto, quando
Cruz e Sousa, após elogiar Huysmans, equipara o mar a outros estimulantes do
inconsciente, como a morfina e o ópio, alegando que todos se duplicam artisticamente na
“tortura da prosa, no funambulesco cabriolar do estilo, na acre violência das palavras”
(355). Destarte, agressividade e movimento constituem os dois atributos marítimos mais
incorporados ao texto, que, mimetizando o vaivém das ondas, ganha sonoridade álacre e
se torna menos discursivo. Embora de maneira ainda incipiente, a prosa já se apresenta
como suporte menos imperfeito e mais livre para a produção de ritmos e de sugestões,
tema bastante explorado em Evocações.
Ainda em “Modos de ser”, sintetiza-se, chamemo-lo assim, o estado de espírito do
sujeito poético de Missal: a “Serenidade de Campo e Mar” (354). A despeito das agruras
(também enfatizadas em Evocações), predomina um sentimento de satisfação perante a
159
vida e a natureza, atenuando, por exemplo, o desejo de morte, tão constante nos versos
de Cruz e Sousa. No âmbito biográfico, a calmaria reflete a esperança do escritor
iniciante, recém-chegado ao Rio de Janeiro, e não exatamente as amarguras do homem
doente e frustrado de 1898. Em termos literários, a tranquilidade se justifica por ter o
sujeito retornado a um espécie de estágio-zero da humanidade (ou Nirvana, no
vocabulário simbolista), em que, desbastadas as vaidades, a vida se oferece em
componentes pulsantes e matriciais; por isso, o enunciador de “Modos de ser” se sente
“como se agora mesmo brotasse, em flor, da terra” (354). Sentimento semelhante anima
o quadro “Serenidade”, do esquecido simbolista francês Henri Martin:
Na tela, a integração dos personagens com a natureza é tal que eles parecem
continuá-la, como se a estivessem auscultando, e a presença de elementos artísticos, como
a harpa, assegura a origem natural da criação artística. Da esquerda para a direita,
desenha-se um movimento ascendente, reforçado pelas vestes claras, leves e folgadas, que
culmina na harpa, que assim parece um condutor para as alturas. Na esteira da “floresta
de símbolos” baudelairiana, o artista de Missal também se define como intérprete
privilegiado dos signos naturais: “Com o espírito livre, em asa aberta, eu procuro arrancar
das vozes mudas, inexprimíveis da Natureza, significações” (354).
Encerrando Missal, “Oração ao mar” reincorpora temas desenvolvidos em “Oração
ao sol”, conquanto enfatize aspectos distintos daquele poema. Já que o sol abria o livro, a
ele se pediu sobretudo originalidade para o que se produziria; no final, roga-se ao mar
que eternize o que se produziu: “Lá, nessas ignotas e argentadas areias, estas páginas se
eternizarão, sempre puras, sempre brancas, sempre inacessíveis a mãos brutais e
160
esforço de criar um eterno feminino, Cruz e Sousa tenta, com bastante frequência, filiar
suas personagens a representações arquetípicas das mulheres, como quem rearruma
cartas marcadas. É assim que, em “Astro frio”, surge a freira enclausurada e, em “Lenda
dos campos”, uma figura folclórica é descrita como “a deusa fantástica, a visão encantada
dos antigos palácios medievais de vidraçaria gótica”, a “monja das ameias dos castelos
feudais” (306). Por outro lado, em “Visões”, malgrado o título algo evanescente, o sujeito
clama pelo corpo feminino, também estereotipado na imagem de uma “peregrina e
fugidia sereia”: “que as harmonias deliciosas da tua carne não sejam como são,
misteriosas para mim como a Via-Láctea” (347). O desejo aqui é de se aproximar da
amada, movimento oposto ao declarado em “Mulheres”, que privilegiava a investigação
intelectual.
De viçosa a doente, “Tísica” mantém o clichê, a tal ponto que o texto não passa de
pequeno conto de enredo trivial, dividido em quatro partes separadas por asteriscos: (1)
apresentação da moça, ainda saudável, tocando piano; (2) descrição do inverno; (3)
digressão sobre a tuberculose; (4) morte da personagem. Conquanto as sequências (2) e
(3) constituam breves (e fracos) poemas em prosa, (1) e (4) são essencialmente narrativos,
o que, em Missal, representa um retrocesso. Basta cotejar “Tísica” com “A Papagaio”, de
Tropos e fantasias, e verificar que quase não há diferenças na representação das
enfermas. Em todo caso, “Tísica” desempenha um importante papel estrutural no livro
de 1893: por ser o penúltimo poema de Missal e conter uma história de morte, o texto
enfatiza a importância de o artista se eternizar pela obra, mensagem central do poema
subsequente, “Oração ao mar”.
No gineceu do livro, apenas uma flor tem nome: a também pianista “Sofia”, cuja
compleição em nada foge ao molde simbolista: “Era alta, de uma brancura de hóstia,
como certas aves esguias que os aviários conservam e que aí vivem num grande ar dolente
de nostalgia de selvas, de matas cerradas, de sombrios bosques” (374). Quase todas as
mulheres de Cruz e Sousa são altas, talvez para estarem mais próximas do céu. No
entanto, o poeta as compara a aves feridas (como em “Aparição da noite”, de Missal) ou
presas, impossibilitadas de alcançar as alturas. Não estaria aí a falha da idealização
feminina, pela lembrança acintosa de que a mulher/ave é um corpo?
A maioria também é branca, o que, descontado o decalque europeu, lhes realça a
pureza. A única e louvável exceção se encarna em “Núbia”. Associando o adjetivo “núbil”
e a região africana de Núbia, a personagem é uma noiva negra. Embora inusitado, o
163
poema não foge à plasticização da mulher, observada, neste caso, no contraste entre a
roupa branca e a pele negra: “Amar essa núbia – vê-la entre véus translúcidos e florentes
grinaldas” (330, grifo nosso).
Entretanto, a matriz africana parece permitir uma sensualidade mais explícita do
que a das personagens brancas. Não por acaso, a Núbia o sujeito deseja “amar
espiritualmente e carnalmente amar” (330). De início, predomina a atração corporal,
sentida sem culpa: “amar essa carne deliciosa de Núbia, ansiar por possuí-la, não constitui
jamais sensação exótica, excentricidade, fetichismo, aspiração de um ideal abstrato e
triste, gozo efêmero, afinal, de naturezas amorfas e doentias” (330). Apesar dessa
declaração, Cruz e Sousa vê a mulher negra com certo exotismo (“esquisita e rara, esse
lindo âmbar negro, azeviche da Islândia” (330)), associando-a a lugares remotos, quase
todos europeus, como Armênia, Escócia e Irlanda.
Pele branca, máscara negra, Núbia não foge, todavia, à regra comum do artista,
interessado em “possuí-la para a Arte, tê-la como uma página viva, veemente, da paixão
humana, vibrando e cantando o amor impulsivo e franco, natural, espontâneo, como a
obra d’arte deve vibrar e cantar espontaneamente” (330) – a propósito, o vínculo entre
espontaneidade e criação será novamente associado à cor negra em Evocações, livro em
que as sequelas raciais são muito mais salientes. Em contrapartida ao estereótipo,
ressurge no final do poema a lascívia de Núbia, como se, à revelia do esforço do poeta,
ela não se adequasse ao modelo esfumaçado e pálido das virgens brancas:
lâmpada [que] fulgurava” (295), assim como o ritmo do texto se acelera, deixando as
frases longas e repetitivas em prol de pequenos sintagmas nominais. Esse aumento
luminoso e rítmico culmina no assomo do desejo, fazendo com que o choque entre a
convenção e a luminosidade, ambas crescentes, sublinhe o conflito entre alma e corpo.
Assim, ao contemplar os santos, o sujeito sente “sob aquelas rígidas carnes mortificadas,
frêmitos vivos do sangue envenenado e demoníaco do pecado” (295), percepção
suficiente para fazê-lo ver Nossa Senhora descendo do altar. Por fim, ele reinterpreta a
experiência mística, conscientizando-se de que, na verdade, ele vira a amada:
novo e formoso” (344). Cabeça, olhos, lábios, postura: tudo nele é esplêndido e
magnético. Chegado há pouco de Roma, o rapaz, cônscio de que atrai as mulheres,
“exagera o Rito, afetadamente” (345), transformando a missa numa encenação
provocante do desejo, a tal ponto que é comparado a um acrobata. O aspecto físico torna
o personagem satânico: “Realmente, na sua carne, que os incensos perfumam, circula o
sangue em labareda de instintos sexuais e a sua cabeça primaveril, que a Arte da Religião
abençoou em Roma, tem o encanto, a fascinação diabólica, satânica, da venenosa cabeça
da Serpe bíblica” (345). Realçando o corpo do padre, o verdadeiro artista sacro, Cruz e
Sousa passa a refletir no sacerdote as angústias de todos os artistas.
O apogeu de voluptuosidade corresponde ao abandono da convenção católica: “É
o ateniense das formas católico-romanas, triunfando no idealismo de um gótico, de um
medieval” (346). Mais uma vez, as referências clássicas ganham um ranço embolorado, a
que só a modernidade ou o passado anticlássico (Idade Média, por exemplo) pode
compensar. Colando-se à figura do padre, o poeta prevê que uma visão feminina o
transformará: “vivas expressões carnais que o transfiguram e humanizam” (346).
Conquanto pouco ou nada fujam aos modelos femininos instituídos pelo século
XIX, as mulheres de Missal se tornam projeções dos conflitos internos do sujeito poético,
os quais poderíamos sintetizar na inconciliação de dois desejos: um estético e outro
corporal. Se aquele exige o isolamento, o segundo saliva pelo contato com o outro.
Espelhando o duelo entre idealização e realidade, entre reflexão e paixão, as figuras
femininas oferecem ao poema em prosa simbolista caracteres tão ambíguos quanto o
gênero, revelando-se simultaneamente poéticas e prosaicas, no sentido mais elementar de
ambos os termos.
sem metro, Missal amplia o espectro da discussão teórica, uma vez que Raul Pompeia se
restringiu a proclamar a arte como salvação. Não é diferente a opinião de Cruz e Sousa,
mas ele enfatiza, com mais veemência, os percalços enfrentados pelo artista, tanto para
produzir, quanto para se estabelecer no meio literário.
No âmbito dos textos metalinguísticos, há, em Missal, alguns que divulgam os
postulados simbolistas da Religião da Arte e do artista solitário, dotado de atilada
percepção do mundo; como se vê, pouco ou nada diferem dos poemas em verso.
Contudo, existem outros, em menor quantidade, que apresentam reflexões mais
sofisticadas, arriscando-se a sistematizações teóricas sobre o processo criativo.
Comecemos pelo primeiro grupo.
Como muitos outros poemas dedicados aos artistas, “Dolências...” se estrutura no
diálogo com um “Tu” indefinido, sobre o isolamento do criador. Retrata-se aqui o vate
renegado, a quem o enunciador, como um oráculo, serenamente oferece premonições e
consolos: “Tu, na emoção desse encanto doloroso e acerbo da Arte, te sentirás, um dia,
velho, fatigado, como um peregrino que percorreu ansiosamente todas as vias-sacras
torturantes e perigosas” (292). O poema enfatiza a deterioração física do artista – “ficarás
então como se estivesses morto – sem cabelos, sem dentes, sem nariz, sem olhos” (292) –
para realçar a imortalidade da obra, simbolizada pela cor da torre: “E tu, velho embora,
na torre verde d’esmeralda, ficarás egrégio, vencedor, imortal, eterno, só e sereno, ao
alto, sob as estrelas eternas...” (293).
Em “Noctambulismo”, o artista se aparta da vida social porque a considera
mesquinha e tacanha. Por isso, todos os esforços de Cruz e Sousa (organização sonora,
seleção lexical e sintática, ordenação rítmica) se voltam contra o mundo exterior, salvo,
evidentemente, a natureza. É de se destacar o primeiro parágrafo do texto, infestado pelo
burburinho do Carnaval, que tanto o artista repudia: “Enquanto, fora, na noite, gralha,
grasna e grulha o Carnaval em fúria, vai, Mergulhador, rindo para o espaço a tua aguda
risada acerba” (307, grifos nossos).
A solidão artística, apregoada já em “Oração ao sol”, é contrabalançada por uma
espécie de cumplicidade entre os renegados (e o poeta é um deles), o que justifica, por
exemplo, a estrutura dialógica desses poemas, embora, em verdade, só tenhamos acesso à
voz do sábio enunciador. Procura-se compensar a solitude pelo contato intenso com a
natureza; daí poemas como “Bêbado”, sobre um homem ébrio à beira do mar e de quem
o sujeito lírico se compadece. O texto também ganha relevo ao apresentar o álcool como
168
curioso que, em “Noctambulismo”, o artista prefira a noite ao Sol, pois, enquanto este
“põe tudo num relevo brusco”, a sombra “esbate os aspectos claros, esfuminha os longes,
turva e quebra a linha dos corpos” (307). Conquanto as opiniões pareçam contraditórias,
ambas privilegiam o caráter sugestivo e evocador do real. Em termos musicais, diríamos
que são temas antagônicos para expressar a mesma ideia. Significativamente, “Som” é
outro poema que ausculta o poder sugestivo da música: “E começo, após um
engolfamento de sons profundos, a ter penetrabilidades intensas, estranhas emoções que
me despertam infinita série de fatos já gelados no tempo, como passadas fases da lua”
(335).
Conforme comentamos no item anterior, o artista simbolista é agudamente
sensível aos estímulos externos, disso advindo, por exemplo, as tantas comparações entre
seu corpo e os instrumentos musicais: “como se o meu corpo fosse um harmonioso
teclado de cristal vibrando as sonoridades mais delicadas” (309). Essa hipersensibilidade,
instigando o pensamento a depurar as emoções, não raro se configura como doença ou,
consoante a moda da época, nevrose: “um sentimento melancólico ao qual o pensamento
dá uma expressão de enfermidade psicológica” (316). Assim, o mais ínfimo contato com
a realidade pode desencadear cascatas sensoriais. Em “Emoção”, por exemplo, encostar
em um ombro deflagra um êxtase alucinógeno:
porque negas a infalível, a absoluta correção das Formas perfeitas e consagradas” (315).
Como se vê, a feiura se associa à novidade e ao questionamento, dois atributos essenciais
do poema em prosa, que, problematizando a categorização dos gêneros, busca nova
forma de expressão. Desse modo, “Psicologia do feio” sintetiza alguns preceitos do
gênero, cuja natureza dual, aberta ao sublime e ao grotesco, também fica simbolizada na
roupa assimétrica do personagem. Ademais, Cruz e Sousa rasura a fronteira entre o
nobre e o baixo ou, se quisermos, entre o poético e o prosaico, ao reconhecer, por
exemplo, que o sapo tem a “repelente correção própria do sapo” tanto quanto a estrela
tem “a serena e sidérea correção própria d’estrela” (316), demonstrando que as formas
literárias não se legitimam pela “pureza”, mas pela coerência.
Profundamente identificado com o feio, o enunciador deseja vagar com ele num
“Nirvana de dúvida até à suprema aniquilação da Morte”, “numa seda negra d’Arte,
vestidos de negro” (316). Normalmente, o Nirvana corresponde a um estágio de
completude e de conhecimento, não havendo espaço para a dúvida. Aqui, no entanto, ele
se vincula à hesitação (“Nirvana de dúvida”). Queremos ver nesse paradoxo o núcleo
dialético do poema em prosa, que aspira, frustradamente embora, à destruição das
classificações literárias, sugeridas pela “suprema aniquilação da Morte”. A imagem
fúnebre e, sobretudo, o vestido negro remetem, cromaticamente, ao Orango do início do
texto, representando todos a escuridão ancestral, ainda não segmentada e classificada pela
razão. Assim, pela teorização oblíqua e algo cifrada das novas formas de escrita,
“Psicologia do feio” desempenha em Cruz e Sousa o papel que “Adeus” executa na prosa
de Rimbaud (cf. Introdução).
“Página flagrante” encena a flânerie de dois artistas em dia ensolarado (aliás, é
frequente seres marginalizados caminharem em Missal; a deambulação reflete suas
inquietações interiores). Conforme praxe, a dupla experimenta uma “sensação aguda de
espiritualidade”, um “eletrismo de ideias” (320) perante a Natureza, impactos emocionais
a que se conjuga uma investigação intelectual. Importa destacar que este é o primeiro
poema a sumarizar, explicitamente, os componentes impulsionadores do ato criador: “a
verve esfuziava, mentalizada pela Análise, pela Abstração e pela Síntese” (321).
Os elementos se dispõem gradativamente, da emoção (“verve”) à síntese, processo
que se consuma pela análise e pela abstração, ambas executadas pelo intelecto. Analisar
antes de abstrair corrobora a importância da decomposição (análise: do grego, quebra)
dos sentimentos e impressões em diversas camadas, posteriormente redirecionadas a
172
constantes universais e metafísicas: o contato dos amigos com a Natureza, por exemplo,
leva-os a considerações sobre a eternidade estética, e o dia ensolarado em que a cena se
desenrola lhes oferece o calor necessário à alquimia desses agentes criativos.
Quanto à Arte queriam que a expressão, que a frase vivesse, brilhasse, sonora
e colorida, como um órgão perfeito. Que tudo o que dissessem ficasse
imperecível, eterno, perpetuando no Espaço e no Tempo, com os sons que
os circundavam, a cor, a luz, o aroma que os atraía.
As palavras deveriam ser, para se eternizarem, cravadas no ar límpido, como
num forte cristal de rocha.
Era a ânsia dos requintes supremos, a exigência das formas castas, que os
fascinava, que os seduzia, tentava como nudez formosa de mulher virginal.
Tudo, enfim, na Arte, deveria ficar luminoso e harmonioso, como um cantar
d’astros. (322, grifos nossos)
insistimos, foi ele o primeiro livro brasileiro de poemas em prosa, gênero que,
comparado a outros, pouco alcançou o formato de brochura.
A despeito dos nítidos avanços em relação a Tropos e fantasias, demonstrados
neste capítulo, a metalinguagem praticada em Missal privilegia aspectos gerais da criação e
do papel do artista, carecendo de reflexões específicas sobre o gênero por meio do qual
se expressa, lacuna preenchida com Evocações. Nesse sentido, é inquietante o fato de
Missal ser publicado no mesmo ano de Broquéis, livro que, abordando os mesmos temas
básicos do outro, é escrito em versos, às vezes com poemas de mesmo título. Isso revela
que, no caso de Cruz e Sousa, o poema em prosa nunca significará a eliminação do
metro (basta lembrar que o autor ainda escreveria Faróis e Últimos sonetos). Ao
contrário, o poeta entende, na esteira de Mallarmé, que o verso é uma espécie de célula
formal mínima, podendo tanto se concretizar em metros e estrofes, quanto em prosa.
Trata-se, portanto, de uma ressignificação do verso, compreendido como forma de
expressão concreta da abstrata Poesia. Além disso, comparado a Tropos e fantasias,
Missal procedeu a um maior esvaziamento das categorias de enredo e de narrador,
fazendo com que o enunciador dos poemas se aproxime mais de um sujeito lírico,
empenhando-se não em contar algo, mas em projetar seus sentimentos e impressões no
mundo para, no reflexo, aprender algo de si e do universo.
175
8.1. PROJETO
Em 1900, João Andréa fez publicar em livro a versão definitiva das Canções sem
metro, do amigo Raul Pompeia. Na empreitada, contou com o auxílio de dois outros
homens de letras, também admiradores de Pompeia: Américo Moreira e Colatino
Barroso. Este, nascido em 1873 em Vitória, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde se
aproximou da primeira geração simbolista (cf. “A safra de 1898). Fundou a revista
176
Tebaida (1895), que, apesar de restrita a dois exíguos números, com cerca de 20 páginas,
constitui um dos mais importantes periódicos de nosso Simbolismo. Nesse sentido,
também se destaca a efêmera mas consistente revista Vera-Cruz.
Como outros simbolistas avessos às convenções parnasianas, Colatino explorou
novas estratégias tipográficas e textuais, com o fito de introduzir doses de anarquia poética
em nosso anódino campo literário, repleto de enfadonhos diluidores do Parnasianismo
(os neoparnasianos que Manuel Bandeira atacaria em “Os sapos”, de 1917). No âmbito
editorial, atuou intensamente na execução de projetos, digamos, marginais. Em vez de
livros pomposos, com encadernações luxuosas adornadas com encômios de críticos
renomados, optou por tiragens bastante reduzidas, impressas em pequenas tipografias,
quase domésticas, lançando magras plaquetes que mal alcançavam 50 páginas. Obras que
contavam com a própria sorte, ou, pior, com o próprio azar, destinadas a restrito grupo
de leitores. A despeito dos poucos recursos disponibilizados à impressão, os livrinhos
apresentavam requintes editoriais. Destaque-se a riqueza de algumas capas, ilustrações e
vinhetas:
177
se entre eles um texto inserido na Revista de Arte e Filosofia, periódico fundado em 1902
por Colatino, auxiliado pelo esquecido conterrâneo Ulisses Sarmento.
Por que e como a concepção artística desenvolvida por Colatino Barroso elegeu o
poema em prosa como forma ideal? Resposta mais sistemática se encontra em seus dois
últimos livros, na verdade, duas conferências na Biblioteca Nacional, nas quais sintetiza
aquilo que, uma década antes, tentou realizar em Anátemas e, possivelmente, em Jerusa,
que infelizmente não localizamos.
Comecemos pelo ex-libris do escritor, de autoria de Correia Dias, estampado nos
dois livros ora examinados.
Vive-se hoje da Música como um Pão branco (...). O período deve ser
escolhido no diapasão acorde, nem de mais nem de menos. A palavra deve
ser escolhida para soar aos ouvidos com o ritmo de sílabas de ouro e as
sílabas manda a nevrose que se lhes faça a seleção entre as letras que tivessem
harmonia entre si, ajustadas como a gama e a melopeia de um violino ilustre.
A suprema Arte próxima nos arraiais do século XX não se distinguirá, entre
duas de suas manifestações, a poesia e a música – por traços diferentes.
Encarnar-se-ão, confundir-se-ão, adaptar-se-ão e tão bem, que Wagner vivo
seria o primeiro prosador e poeta deste século moribundo. (apud Carollo,
1980, II: 337)
Lá vai cortando, célere, a água iluminada um peixe. Da prata viva das suas
escamas arranca o sol irradiações e dentro de uma palpitação de chamas,
como se num mar de nafta o incêndio lavrasse, o peixe tem a agitação de
uma agulha de aço que um ímã, manejado em várias direções, buscasse atrair,
prender. Lá vai agora, despido do brilho intenso em que chamejava,
mergulhando no abismo profundo. Sob a pesada massa de água, recortam-se
as formas várias das górgonas, das astérias, dos cefalópodos colossais, de toda
a fauna prodigiosa do fundo do mar. Medusas passam flutuando. Desce o
peixe mais e mais. A luz aqui, refrangida, espectraliza-se. Acesa numa
iluminação fantástica, uma flora estupenda de algas entrança os ramos da sua
arborização estranha, parecendo formar rendilhados pórticos de uma
maravilhosa catedral de Sonho. Erra no silêncio do abismo uma claridade
difusa, dentro da qual as anêmonas deslizam. (1917: 36)
poema em prosa do capixaba. Desse modo, como em grande parte dos simbolistas, é
mais acertado concluir que, no último Colatino, há sequências de poemas em prosa, sem
que constituam efetivamente gênero autônomo. Trata-se talvez do anúncio de segunda
fase do poema em prosa no Brasil (a partir de 1898), quando, já consolidada, esta forma
literária se torna outro gênero, suscetível a misturar-se com outros existentes.
8.2. EXECUÇÃO
desmente sua utilidade, textos assim seriam apenas bajulação literária. Não à toa, Colatino
compara prefácios a cães que lambem o dono (autor) e mordem o visitante (leitor).
Destemidamente, o escritor se assume em contramão, atribuindo mérito à má qualidade
da obra:
incêndio” (15). O incêndio cósmico promoveria casamento da Treva com a Luz, do qual
nasceriam o homem, a mulher e as estrelas. Desconstrói-se a imagem edulcorada dos
corpos celestes, e a humanidade não sai mais das mãos de Deus trabalhador e
complacente; é agora “espermatozoide, que a mentira da alma animou – ser incompleto e
falho – arcabouço de argila” (15). A paródia bíblica ressurge em “Iscariote”, nas figuras de
Eva e Adamus (sic), representantes do Paraíso perdido. Ao contrário da usual bendição
do ventre de Maria, o rebento de Eva é amaldiçoado, em frases curtas, uma em cada
parágrafo, com a brevidade linguística intensificando a indignação do enunciador: “A
lágrima de Eva irisou-se, tornou-se flor. / Da flor gerou-se o fruto. / Maldita flor! / Maldito
fruto!” (58).
Confirma-se a tendência material em “Lúcifer”, também ambientado em igreja.
Como em Cruz e Sousa, a visita a templos é não apenas experiência místico-religiosa,
mas, sobretudo, aventura do desejo. Entretanto, diferentemente das fugidias mulheres e
da leve sensualização de cenários e ícones religiosos de Missal, o sujeito de Anátemas,
sozinho à noite, opera várias anamorfoses que humanizam Jesus e Madalena, enlaçados
em provocante contato amoroso:
O espaço do Bem passa a abrigar o Mal, fazendo com que a iluminação também se
apimente.
Aliando-se ao tom escandaloso, a materialidade excessiva é característica indicadora
de incidências naturalistas em Colatino Barroso. Com efeito, seu desencanto com o
homem é análogo à insatisfação com a matéria, aproximando-se, por exemplo, da
subjetividade cientificizante de Augusto dos Anjos. Como o eu-lírico de Eu, o sujeito de
Anátemas se revela hipocondríaco, observando em tudo sintomas de doença e
deterioração. É ler o autoexplicativo “Enfermo”, dedicado a moribundo em leito de
hospital, cuja fria assepsia prefigura morte iminente. A incompatibilidade com o corpo
187
única: “A amizade – uma virtude? Esta não espera que o favor lhe seja prêmio. / Quando
muito aquela será interesse, que os amigos compram-se com a própria amizade” (61). O
ceticismo em alto grau leva à celebração festiva da morte, como sempre, única salvadora:
“Salve, grandioso festim de Tanatos! Salve, rememoração da Grécia pagã! Salve, dia dos
mortos! Que de esplendores no teu culto, Deusa Serena!” (62).
A estrutura bimembre de “Jesus”, “Ícaro e Prometeu”, “Lúcifer” – a primeira parte
saúda certa atmosfera elevada (no caso, templos), desestabilizada pela segunda - também
comparece em poemas que incidem na questão do desejo, como “Fogos fátuos”. O texto
se ambienta em cemitério descrito triunfante e luminosamente, à Cruz e Sousa: “luar de
almas”, “agulhas dos mausoléus”, “iluminação fantástica para um bródio colossal”,
“pulverizações de cinza”, “umbela do céu”. Separado desse primeiro segmento por linha
tracejada, o segundo é de crueza radicalmente oposta, comprovando o predomínio da
verve decadentista de Colatino Barroso:
Extrair significado dos sonhos parece insanidade aos outros, não ao sujeito de
“Histórias loucas”, para quem a loucura é alternativa contra o egoísmo e o orgulho.
“Dizem que sou louco. Não concordo!” (21), alega o enunciador, ao quê o anotador
responde: “Verdadeira autobiografia. / Os Anátemas provam, mas o autor é tão modesto,
que finge não compreender” (21). A postura do leitor se altera bastante em relação ao
início do livro, passando da adesão ao deboche e daí à recusa, intuída devido à suspensão
das notas a partir de “Enfermo”, décimo primeiro dos 21 textos do livro. No começo do
193
volume, ainda havia complacência: quando, no “Pórtico”, Colatino disse que a crítica
achava o livro “Uma doidice, uma insânia! Uma obra sem valor” (8), ele escreve “Não
apoiado”. A mudança de comportamento comprova que Anátemas logrou o incômodo
almejado.
A intenção provocativa do livro também aparece no ataque às preferências e
convenções literárias: “Histórias loucas” ironiza, por exemplo, a facilitação lírica que as
comparações oferecem aos escritores, atacando, obliquamente, o Bilac de “Ora direis
ouvir estrelas”:
Colatino descamba na denotação rasteira justo para alfinetar o clichê poético. Pelo
mesmo motivo, condena o progresso, que, ao invés de promover a evolução das cidades,
se reduz ao “sibilar estrídulo de máquinas de fábrica” (24) e à “imbecilidade em trejeitos
símios” (24) das vitrines e da guerra. Esse período de “anarquia mental” (25), replicado
na forma ziguezagueante do texto, reafirma o desejo de morte: “Morro de tédio... Se não
tivesse sempre esse aparato – espetáculo de uma alegria convencional! /Se ao menos
viesse a Dor – esplêndido funâmbulo – cabriolar ante mim!” (26). Desse modo, morte e
demência se tornam cúmplices na resistência à ordem estabelecida. A elas recorre o
sujeito de “História loucas” para que “insólitos canalhas” (26) não apreendam sua
consciência. Ela foge deles rapidamente, como simboliza a sílaba curta: “O meu nome –
trato de encurtá-lo, para que a posteridade o possa pronunciar num monossílabo” (27). A
brevidade silábica é correlata à textual, confirmando que a rapidez psíquica do
enunciador não se adequaria ao diapasão monótono e lenta.
Com certa frequência, Barroso extrai efeito expressivo da velocidade estilística,
operando importante reconfiguração do poema em prosa. De fato, inspirado pela dicção
caudalosa de Cruz e Sousa, o gênero preferiu frases e parágrafos de média a longa
extensão, embora eventualmente estampados em poucas páginas. Tratava-se de brevidade
antes tipográfica do que estilística, haja vista o pleonasmo rebarbativo (cf. “A safra de
1898”) de muitos poemas em prosa oitocentistas. Colatino, por outro lado, alia à
194
pequenez da mancha gráfica certa agilidade discursiva, de tal modo que, mesmo em
textos longos, o conjunto parece sucinto. Presente em “Histórias loucas”, o esquema se
repete em “Viagem à Dor”, espécie de alegoria da morte.
No poema, o sujeito cego proclama: “Vou viajar pela Dor” (65). A cegueira
desempenha papel dramático, pois lhe permitirá ver pela primeira vez, como se a morte
possuísse dom de revelar. De fato, no percurso de fenecimento, verdades e belezas se vão
esvaindo – esperança, pureza feminina, beleza natural:
Por fim, o amor: “é o Tédio... O amor termina aqui” (67). Após tomar consciência
de que a vida é enganosa, o personagem mergulha num caleidoscópio alucinatório, cujo
primeiro passo é o desconhecimento de si: “Sombras deslizam... / Já me não conheço. /
Parece-me que sou a própria sombra... / Vermes de desejos – o meu sangue?” (68).
Dispondo cada frase em um parágrafo, Colatino imprime celeridade aos pensamentos
fervescentes durante a morte. A viagem se desacelera ao final, depois de algumas linhas
pontilhadas, consumando o falecimento:
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
Silêncio... sombras... coaxo de rãs... rangido de mandíbulas, estagnação da
lagoa dormente.
Corações presos às fibras, cabeças, de cabelos desgrenhados, boiam na
corrente lutulenta – floração exótica de um paul letífero.
Longe o luar escorre – areia finíssima de ampulheta...
Um relâmpago rasga-se na treva e fecha-se logo após, como num cérebro
demente uma fulguração de gênio.
Nada mais!
Onde está o Sol!?... Onde está o Sol!?... (69)
195
lágrimas dos querubins”, Alberto, um pequeno pastor, pergunta à mãe o que eram as
pedras nas mãos do conde e da condessa; ela responde que são lágrimas de anjos caídas
do céu. Num dia de trabalho, o menino contempla o firmamento à busca das joias e é
surpreendido por um padre; o homem lhe revela que o pranto dos anjos está no seu
coração de criança. “Estrelas duplas”, o outro poema de “Miragens”, associa o voo de
dois colibris fugindo do inverno à origem dos dois corpos celestes listados no título.
Observe-se que, de “Idílios” a “Estrelas duplas”, os personagens humanos foram
substituídos por animais, atestando o pendor alegórico da obra.
Por se ambientarem num tempo-espaço desparticularizado, como se se situassem
na origem da vida, esses textos destoam da especificidade requerida pela narrativa
burguesa (sobretudo, o romance), em que, a partir do século XVIII, “o caso individual e
particular logicamente é definido com relação a duas coordenadas: espaço e tempo”
(Watt, 2010: 27). Não afirmamos que a indefinição espácio-temporal inexista na prosa
oitocentista anterior ao Simbolismo; enfatizamos, na verdade, que ela se intensificou
nesse período, principalmente nos poemas em prosa entre 1880 e 1890, interessados em
driblar os componentes mais ostensivos da narrativa, ainda que lhe tomassem a forma
mais usual, a prosa. Por isso, Esquifes se inicia numa prosa poética que, pouco a pouco,
vai perdendo traços narrativos, como se, utopicamente, desejasse alcançar o poema em
prosa puro.
A consciência de que a poesia pode se manifestar na prosa embasa o segmento
“Madrigais”, que, não por acaso, empresta ao parágrafo signo mais comumente cedido ao
verso. Justo nessa seção, há um texto – em prosa, é claro – intitulado “Poema de amor”.
Nela também avultam peças curtas, no esforço, já comentado em outros autores, de
replicar a brevidade do verso lírico em frases e parágrafos. Os poemas desse bloco
mantêm a discrição amorosa típica dos madrigais, também herdando dos versos certo
paralelismo formal e o hábito de se referir à mulher amada por designações genéricas,
quase arquetípicas, como “Querida”. Tal convencionalismo, como em Isaías de Oliveira,
se assemelha ao código árcade, em que os poemas costumavam louvar a mesma mulher,
como Anarda, Marília, Nise e outras. Progressivamente, no entanto, o sentimento, sem
perder a fumaça idealizante, incorpora a chama carnal, o que, no platonismo de Dario
Veloso, compromete a pureza do amor, provocando a melancolia que transpira nos
últimos poemas de “Madrigais”.
199
A dimensão da dúvida se alarga num Polvo que, de tão grande, recebe portentosa
maiúscula que lhe distende o potencial nocivo. A metáfora do cérebro emaranhado e
indeciso é o gatilho para a imagem dos tentáculos do molusco: assim como eles abatem
suas vítimas, o crepúsculo e o outono caem sobre a paisagem. De fato, as três imagens
sugerem o aniquilamento do outro. A escala crescente do agressor – polvo, crepúsculo,
outono – corresponde a um ataque em espaços decrescentes – “eterna dor”, “Alma”,
“Coração –, contraste de perspectivas que intensifica a acuidade da dor. Não fossem essas
apropriações em prosa de elementos do verso, “Excelsior” e “Dúvida” pouco seriam
além de duas corriqueiras confissões amorosas.
200
Noivado:
Místicos enamorados dos vales de Meschacebê, aonde [sic] suspira a
profunda melancolia das florestas virgens, – Chactas, ingente guerreiro, Atala,
meiga donzela, quem vos ensinou a irresistível poesia dos idílios do Coração,
a música celeste dos violinos da Alma?
Ainda hoje as tribos americanas celebram vossos amores, ainda hoje os
trovadores das selvas repetem vossas carícias. (43)
I
PARÁGRAFOS INICIAIS (50) PARÁGRAFOS FINAIS (51)
Noite. Trevas...
Ciprestes ciciando misteriosos queixumes. Silêncio...
Cruzes, braços abertos sobre o mármore, Ciprestes ciciando misteriosos queixumes.
fitando tristemente o Céu.
II
PARÁGRAFOS INICIAIS (51) PARÁGRAFOS FINAIS (51)
Luar. Música de serenatas...
Brisas ciciando embriagantes idílios... Música de beijos...
Amor de Bardos e das Julietas... Brisas ciciando embriagantes idílios...
III
PARÁGRAFOS INICIAIS (51) PARÁGRAFOS FINAIS (51)
Firmamento... Eternidade...
Silêncio... Silêncio...
Estrelas espiando o Azul... Estrelas espiando o Azul...
203
A ereção das árvores, simbolizando vitalidade, começa a se abalar com a queda das
folhas e a chegada do outono. Confirma-se a passagem do tempo em direção à morte na
imagem da linfa que se infiltra na terra inclinada; esta, não gratuitamente, chega a um
desaguadouro, traçando um percurso descendente e inestancável, “sem solução de
continuidade”. O desejo de superar a finitude se confirma na segunda metade do
parágrafo, em que alguns signos arruinados (“Ocaso”, “velhos alfarrábios poeirentos”,
“traças”) são redimidos por uma espécie de utopia alquímica que os retire da limitação da
matéria e os conduza à eternidade de uma pedra filosofal. Contudo, a salvação se frustra:
o enunciador e a amada Adélia vagam num esquife; durante a viagem, a moça lhe conta a
vida voluptuosa, motivo por que o texto se conclui com a iminência de seu suicídio.
Como se vê, a matéria não possui nenhum atributo positivo: é reduto do tédio (título de
um dos poemas), do pecado e da morte. Não é por outro motivo que “Meditação”
finaliza com a assertiva de que “só a Morte não ilude; só ela! – que, sob aspecto fúnebre e
austero, é, talvez, o prenúncio de uma outra existência” (68). A crença na vida post-
mortem explica os suicídios recorrentes no livro, entendidos como atalhos para a
cobiçada eternidade. Em “Nostalgia do céu”, por exemplo, o angustiado Otávio também
se mata para encontrar Leonor, e a morte se lhe afigura como um paraíso artificial
(reforçado pela menção a Baudelaire), repleto de prazer e de delicadeza:
Frise-se, por fim, que “Satânica” encenava não o assassínio, antes o suicídio da
forma. Com isso, Dario Veloso, como o faria Mallarmé, desloca o problema da
precariedade expressiva do artista para a forma: a obra sempre é frustrada não apenas
porque não reflete a real inspiração do artista, mas também porque toda expressão é, em
si, falha. É significativo, nesse sentido, que o sujeito poético esteja morto em “Sonho de
um espectro”. Deliberadamente ou não, Veloso indica que o próprio poema em prosa,
almejando superar as limitações formais, não deixa de ser uma forma limitada, ainda que
essencialmente libertária e transgressora. A rigor, é uma utopia, horizonte em que se
confundem as fronteiras entre os gêneros e se diluem as imperfeições expressivas. Por
isso, insistimos, o poema em prosa se apresenta como projeto, ocupando, mais
ostensivamente, o desfecho de Esquifes, tal miragem. Entretanto, é no desfecho do livro
que aparece o maior número de mortes, o que, a nosso ver, ratifica, analogicamente, a
“falência” do projeto.
211
nunca escuta(ou) suas lamúrias: “o céu sempre deserto, como um escárnio colado à
minha dor imensa” (6). Portanto, a perda paterna assinala a passagem da crença ao
“ceticismo terrificante que esmaga, mas que consola também” (8). O senso crítico
advindo da descrença constitui modo de resistir à falta de sentido da vida, carente de um
guia, seja Satã ou o pai: “Hoje, como o desgraçado Jó, arrasto uma existência pútrida. De
que me serve viver se a luz do teu olhar me falta, a luz bendita que, como uma estrela, me
conduzia pela escabrosidade tétrica da ziguezagueante estrada da Vida?” (6-7). Sem o pai
eterno, todos os atributos que dignificam a existência de Jesus são transferidos ao sujeito
órfão: é ele quem amarga o “calvário aspérrimo da Vida”, a “negra Cruz de dolorosa
orfandade” (5), a “cortante lâmina do Destino” (6).
Com “Ironias da mágoa” se inicia a morte do amor, que se prolonga até o fim do
livro. Deste terceiro poema ao sexto, a figura central é Sílvia, amada morta do
atormentado Orlando. Esses personagens comparecem não só em diversos textos de
Bronzes, como em obras posteriores de Júlio (é ler Malditos, de 1909). Possivelmente,
isso aponta uma intenção desestabilizadora de gêneros literários. É claro que, em muitos
casos, a confusão entre conto, prosa poética e poema em prosa reflete a indecisão do
próprio escritor; em alguns, porém, há como que uma disposição trapaceira na
classificação dos textos, semelhante ao Guimarães Rosa de Corpo de baile (1956), cujos
contos e novelas são também denominados de romances, poemas e parábases. Embora
Júlio Perneta designe como contos os textos de Esquifes, “Ironias da mágoa”, que
inaugura um nicho narrativo no livro, é chamada de “fragmento”. Além do gosto
zombeteiro, a denominação sugere a incompletude do texto: com efeito, a história
amorosa de Orlando e Sílvia se vai completando ao longo de outros fragmentos de
Bronzes. O casal aparece, por exemplo, em “Lira de ouro”, “Dentro de um sonho”,
“Olhos vazios” e “Funeral das lágrimas”. A reiteração dos protagonistas também se
coaduna à proposta simbolista de alcançar a síntese: não se mudam os personagens,
porque, na verdade, eles não representam indivíduos, e sim traços de toda a humanidade.
Nesse sentido, Perneta radicaliza a prática insinuada em Isaías de Oliveira e desenvolvida
em Dario, conquanto este seja formalmente mais experimental: em Esquifes, havia
número maior de personagens a transitar no livro; agora, um só casal ocupa cinco dos
quinze títulos da obra, fora Juvêncio, presente em dois textos. Além disso, Bronzes
permite que a mesma entidade ficcional seja ora personagem narrado, ora narrador
personagem: Orlando, por exemplo, aparece, em “Ironias da mágoa”, no discurso de um
214
magno das grandes alegrias” (16). Como em Dario Veloso, os impactos emocionais, sem
o contrapeso racional, são em geral combatidos pelos simbolistas, sobretudo no âmbito
estético (insistimos na leitura de “Capro”, de Evocações). Em Júlio Perneta, esse
desequilíbrio não é comentado no domínio artístico, mas, do ponto de vista existencial,
ele se configura como causa primeira das angústias vividas por Orlando, enfatizadas em
outros poemas: “o coração é o profeta das grandes desgraças” (26). Todavia, mesmo em
“Ironias da mágoa”, se entrevê a associação algo irônica entre poesia lírica e
sentimentalismo, sugerindo, sub-repticiamente, a afetação anacrônica de ambos: “num
desses momentos mórbidos da existência, em o qual o coração num sentimentalismo de
poesia lírica, sobrepuja a razão, Orlando, o analista frio e impassível, sentia-se vencido,
cobardemente vencido, sem vontades que não fossem as de invocar lembranças que se
prendessem à pessoa amada” (14).
O laço entre escrita e ceticismo se apura em “Lira de ouro”, em que a mesma Sílvia
promete presentear o amado com uma lira bordada de ouro. Reincidindo sobre a
associação algo gasta entre poesia e riqueza/luz, o mimo materializaria a convenção lírico-
amorosa, detectável nas analogias entre Sílvia e formas poéticas: “estrofe fluida de balada”
(19), “ela, como Minerva, a deusa da sabedoria, passava indiferente, ritmando canções na
metrificação do seu andar, descrevendo parábolas de ironias em cada um dos sorrisos”
(19), “a mitológica deusa da poesia” (27). Note-se como a companheira mantém alguns
traços de femme fatale, já havendo, no entanto, incorporado características menos
nocivas e mais delicadas, o que acarreta mudança comportamental no sujeito, de
rancoroso a complacente e daí a saudoso. A suavização da imagem feminina culmina em
sua morte, em cujo ensejo também se sepulta a última esperança do sujeito de Bronzes: o
amor, antes reputado capaz de livrar sua “alma de vagabundo de todas as mágoas, de
libertino de todas as dores, da orgia dos revoltados deste fim de século nevropata” (21).
Também em “Funeral de lágrimas”, ele designa o fim do sentimento como as “exéquias
da minha última esperança” (57). De fato, o falecimento de Sílvia, na esteira do culto a
Satã e da orfandade, chancela o fim da Idade de Ouro (simbolizada pela lira), rasgando
no livro um não acabar de relacionamentos adúlteros e trágicos. A perda desse estado de
plenitude, sintetizada no ouro, parece explicar um epíteto com que o sujeito
recorrentemente se define: “Prometeu da Tortura” (5 e 44), como se, ao sair da caverna,
perdesse não a tocha, mas a “LIRA DE OURO; a invocação perpétua de um passado
esquecido no sepulcrário de uma desilusão!” (30).
216
pelo vento: “O silêncio profundo, o grande silêncio austero dos sepulcros, como um
fantasma pávido dos séculos, arrostava pelo castelo feudal da morte o seu longo manto
esburacado, trapejando, às vezes, ao sopro célere do vento que passava plangenciando
uma soturna elegia de soluços” (32).
Imerso na ruína, o sujeito se habilita a descamar os tempos ali acumulados. Assiste
a um desfile de espectros. De uma das lápides, sai o esqueleto de Sílvia. Malgrado a
aparição fantástica, Orlando declara, com sobriedade, que a “via perfeitamente,
nitidamente” (32). O estado ambíguo entre o sono e a vigília, resumido na reincidente
expressão “vidente do Sonho” (33 e 44), exerce o mesmo papel do sonambulismo e da
insônia: franquear a apreensão intelectual do desconhecido. Por isso, no poema em prosa
simbolista, é menos comum que os personagens vão ao além; em geral, este vem até eles,
por meio de visões e sonhos, o que lhes permite manter algum lampejo de racionalidade.
Desse modo, o contato com o incognoscível é sempre epifânico; Sílvia, por exemplo,
relata a “profunda e dolorosa revelação” (35) de que a crise causadora de sua morte
decorreu de um sonho em que ela supunha ser traída por Orlando. A acusação de
adultério, a ela imputada pelo amante em “Ironias da mágoa”, é agora revertida,
hipoteticamente, contra ele, demonstrando que o verdadeiro nó amoroso estava no
ciúme, sentimento constantemente citado em Bronzes. No código simbolista, o ciúme é
hostilizado porque fere a liberdade do elevado e sincero pacto amoroso: como Júlio
Perneta (leia-se “Múmia do inferno”), Cruz e Sousa também é detrator contumaz dos
“alucinamentos do ciúme” (Sousa, 2008, II: 511). É essa a grande conclusão de Orlando,
que então confere força sintetizadora às declarações da mulher morta: “E o salmo
recitado por Sílvia parecia ter encontrado o eco da mesma angústia em os peitos vazios
dos esqueletos, como se ele traduzisse a dor com que um dia a existência os
anatematizara” (36).
Retomando a primeira pessoa do discurso, “Olhos vazios” consiste numa elegia a
esse recorte do corpo de Sílvia. Grafa-se o título em letras arredondadas e gotejantes, com
vazios internos, lembrando olhos em lágrimas:
218
outro gênero, sendo impossível, para não dizer impertinente, a alocação confortável num
único rótulo. Além disso, no domínio simbolista, mesmo as narrativas tout court já
possuem predisposição poética, aferível, por exemplo, nas digressões lírico-meditativas e
nos jogos sonoros que se mesclam regularmente ao enredo. Não bastasse dificultar a
categorização genérica, essa inclinação poética nos obriga a uma leitura diferenciada do
volume: ainda que, por vezes, sejam narrativas bastante distintas, os textos dialogam
transversalmente, como variações do mesmo tema, fazendo da obra espécie de caixa de
ressonância. Daí o título Bronzes, cuja sílaba tônica, insinuando o som do metal quando
batido, parece indicar que, no livro, uma parte ecoa outra, o que talvez explique as
repetições de frases, parágrafos e personagens. Em um dos quatro artigos publicados
sobre Bronzes no Club Curitibano, Dario Veloso ratifica a proposta musical do amigo:
(91). Novamente, a mulher é adúltera, engraçando-se por um vizinho louro, o que leva o
ciúme doentio do homem matá-la canibalmente: “E o meu ciúme ainda rugia numa
insaciabilidade de fera. Estraçalhei-lhe as carnes com os dentes, mordi-a num canibalismo
sensual e trágico de loucura” (84). Se a punição de Orlando fora o remorso, o homicida
de “Múmia do inferno” vai para cadeia e daí ao hospício. É no espaço da loucura que
Orlando encontra o máximo de lucidez e de questionamento. Depois de se indagar se é
de fato louco por ser criminoso, ouve de um velho mentecapto blasfêmias a seu ver de
todo pertinentes:
É curioso que a heresia, o anátema, o satanismo, enfim todo acinte ao dogma, seja
associado, no Simbolismo, à inteligência e à maturidade, o que explica por que muitos
blasfemos possuem idade avançada (cf. “Anjos rebelados”, de Cruz e Sousa). Além dos
idosos, os artistas e os apaixonados são particularmente capazes de resistir às convenções.
“Noivado místico”, por exemplo, aborda o relacionamento entre Ele, “artista simples e
modesto” (59), e Ela, “uma princesa cheia de encantos e púrpuras” (59), casal afastado
por entraves sociais, motivo recorrente em Bronzes: são eles o estopim da separação de
Orlando e Sílvia em “Lira de ouro”, como o serão do afastamento de um amigo em
“Plínio da Silva”, retirado para uma fazenda por um “preconceito estulto e parvo desta
sociedade lorpa” (65). Não podendo se casar, os noivos místicos vão à igreja, postam-se
diante de Cristo e, em vez das juras cerimoniais, consagram o amor em beijos, não numa
aliança: “Beijos cristalizados, beijos brancos como a hóstia sagrada, beijos de amor que
até hoje ressoam pelo espaço alveolado do Templo...” (61). Ironicamente, o título do
poema vem grafado em letras e vinhetas semelhantes aos convites de casamento:
221
Cristo, a tua doutrina até hoje não foi compreendida pelos que se proclamam
teus ministros.
As tuas parábolas, tão cheias de nobres ensinamentos, agonizaram contigo no
Calvário.
A humanidade segue, guiada pela igreja, para o abismo pavoroso de todas as
descrenças.
Ninguém mais crê, a fé fugiu, apavorada, de todos os corações.
Cristo, de nada valeu o teu grande e nobre sacrifício. (54)
privação visual: “catarata da morte” (64), “morte estrábica” (64-5). Na mesma linhagem
de “Plínio da Silva”, aparece, também ao entardecer, “O funeral” de um soldado
defensor da República. Cria-se um descompasso entre a energia bélica da vida do rapaz e
a monotonia do cemitério, pontuada pela repetição de frases como “silêncio fúnebre,
infinita soledade, silêncio religioso de ruína, paira geladamente por todo o cemitério” (74)
ou “a tarde descia envolta num crepusculejamento de saudade” (75). A mesmice
descritiva se interrompe quando a mãe do jovem chega ao enterro e deseja abraçar o
filho. Seu sentimento, no entanto, não é de luto, mas de satisfação por ter o filho
combatido pela causa republicana: “quero abraçá-lo... eu sinto prazer na minha dor... ele
morreu defendendo a República” (78). Mais do que a ideologia política de Júlio Perneta,
a postura materna revela dois aspectos importantes: a crença num ideal (político, neste
caso) e a abnegação diante da morte. Se o sujeito cético de Bronzes se afasta do primeiro
ponto, é totalmente afim ao segundo. Por isso, prefere compactuar com a opinião da mãe
de que o soldado morto detinha “incontestado valor de Brasileiro defendendo o pavilhão
constelado da República” (79).
“Tragédia da vida” e “Agonia” arrematam a sequência de defuntos. Na verdade, só
há falecimento no segundo poema, mas o personagem que aí fenece, o poeta Juvêncio, é
apresentado no primeiro. A começar do título, “Tragédia da vida” possui estrutura
teatral, com rubricas e descrição de cenários: “Gabinete de estudo modestamente
mobiliado. Retratos de vultos célebres suspensos na parede. Juvêncio, sentado junto à
mesa de trabalho, cisma; tons violáceos de uma luz funérea esbatem-se-lhe no rosto
cadaverizado. Três espectros embuçados em longos sudários cruzam-se ao fundo da
cena” (67). A diagramação do título, levemente arredondada, típica dos programas
teatrais da belle époque, se choca com o conteúdo trágico e a indicação “último ato”.
características formais da “Oração a Satã”, já que, para o cético, morte e Satã se igualam
na função redentora:
Morte, morte piedosa, consoladora dos aflitos, irmã de caridade dos que
sofrem, ouve, escuta, trasgo forasteiro das vontades absolutas do céu, escuta,
escuta este salmo, este réquiem de aflições que passa soluçante por meus
lábios enfebrecidos, num tropel angustioso de desespero e voa para ti, numa
ascensão edênica de súplicas. (97)
escavar latências do real, objetivo que também se concretiza, por exemplo, nas ligeiras
aparições de gnomos e duendes (ver capítulo dedicado a Antônio Austregésilo).
Com efeito, em Evocações, tudo pode ser sugestivo, desde o céu até um nome.
“Vulda”, por exemplo, celebra o antropônimo mencionado no título. Ele conduziria a
imaginação do poeta ao
E que a tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante como forja em
brasa, santuário sombrio das transfigurações, câmara mágica das
metamorfoses, crisol original das impurezas, fonte tenebrosa dos êxtases, dos
tristes, espasmódicos suspiros e do Tormento delirante da Vida; que a tua
vulva, afinal, vibrasse vitoriosamente o ar com as trompas marciais e
triunfantes da apoteose soberana da Carne! (449)
dor e prazer. Então, o sujeito santifica o ventre conjugal, como se estivera qualificando o
materno: “templo majestoso e santo daquele belo ventre”, “ventre precioso e bom”,
“ventre venerando e divino”, “ventre gerador e poderoso”, “Olimpo glorioso”, “Ventre
obscuro e carinhoso”, “Ventre de afetivas sublimidades” (402-3). Por outro lado,
referências como “penetrada”, “fluidos corporais”, “penetrantes e frementes os beijos” e,
sobretudo, “torturante pecado” (403) trazem novo alento físico ao texto. Para compensá-
lo, o poeta eleva o ângulo para a face da parturiente, onde divisa “excelsas Divindades
espirituais”, “a Entidade das Abstrações dos reclusos místicos” e “Aparição imortal”
(403).
O espelhamento entre pai e filho, paralelo à fusão esposa-mãe, leva o adulto a
projetar a vida do infante, já assinalado pela “absoluta e primitiva Culpa humana”,
remorso que ricocheteia no marido. Apesar de querer sempre “ir além” (404), na
esperança de uma vida menos carnal e mais metafísica”, o destino de ambos é o mesmo
de Édipo (daí talvez a alusão à morte materna, no início e no final do poema).
Significativamente, as previsões paternas incidem em aspectos voluptuosos, sugeridos nas
frases entrecortadas: “que frêmitos de desejo convulsionariam essa boca ainda tão
impoluta, sã, ainda sem laivos visguentos; que luxúria intensa e nova inflamaria, acenderia
centelhas nessa boca úmida, fresca, viçosa, apenas entreaberta já num indefinido anelo,
sedenta, inquieta, impaciente, ávida já da instintiva volúpia do leite...” (405). Coroando as
frases de ritmo ofegante, o leite final não seria apenas materno...
Como o pai, depois do princípio do prazer, o filho experenciará a dor:
“Vilipêndio”, “medíocres conquistas do Mundo”, “conclamadores Anátemas”,
“lancinamentos inconcebíveis”, “taciturnidades melancólicas”, “Requiem solene” (406).
As diferentes manifestações do sofrimento partilham traços de saudade, de insatisfação e
de ruptura, elementos inevitavelmente envolvidos na transformação de filho a homem.
Em decorrência disso, o choro da criança (e, por extensão, do pai) não se configura
genesíaco, mas destruidor (do cordão umbilical e da pureza): “tudo, tudo o que chora
d’alto, profunda e apocalipticamente” (406).
A figura materna também se revela problemática em “A sombra”, cuja epígrafe, do
próprio Cruz e Sousa, menciona a “Dor das Origens milenárias” (581), aqui entendida
como a sofredora permanência da mãe no inconsciente do filho, intensificada pela
repetição da frase: “E a sombra buscava-me, caminhava para mim, resolutamente” (582).
234
sufocante, tornando-se mais um índice da aspereza existencial. Não é por outro motivo
que a protagonista de “Sensibilidade” era martirizada pela “inclemente ação cáustica da
luz, parecia convulsionar-se, contrair-se, contorcer-se espiralmente em eletrismos
ardentes de serpes ébrias de cio, encolher-se, murchar como planta esquisita e
melindrosa que a chama cresta, devora...” (463).
Em “Sonambulismos”, numa noite de verão, o sujeito se espanta com a lua, que,
conforme praxe em Cruz e Sousa, é apresentada com imagens de leveza e de liquidez,
agora, contudo, também afetadas por traços doentios:
que ele passa a ouvir “enlevado, em arroubos íntimos” (567). Ouvir essa canção indica
que apenas descamando a realidade se pode alcançar alguma transcendência.
A índole decadentista culmina em “No inferno”, com direito a enxofre, fumaças,
deuses caprinos e chamas que se alastram em fonemas chiantes: “Era no esdrúxulo,
luxuoso e luxurioso parque de Sombras do Inferno” (527). Trata-se de um dos únicos
poemas ambientados fora do mundo: nos demais, o sujeito sempre vê e deseja o “lá”,
mas sem nunca sair do “cá”. O diabo se personifica em Baudelaire, em quem o poeta
vislumbra garras e asas. No entanto, ao contrário do furor com que se costumam pintar
seres infernais, o francês é sereno e silencioso, como uma esfinge incitando à reflexão:
“estava mudo, imóvel, com o seu perfil suavemente cinzelado e fino” (527). De fato,
como Virgílio a Dante, Baudelaire ensina ao enunciador, sem, todavia, emitir uma
palavra. Além disso, “No inferno” inverte os papéis de outros diálogos artísticos: com
grande frequência, o enunciador se revestia de sabedoria elevada, dirigindo-se a um
interlocutor supostamente inferior e obediente; aqui, ainda é ele quem fala, todavia para
aprender com alguém superior. Esse perfil professoral acaba, satanicamente embora,
deificando o poeta francês, clamado em forma de oração: “Ó Baudelaire! Ó Baudelaire!
Ó Baudelaire! Augusto e tenebroso Vencido! Inolvidável Fidalgo de sonhos de
imperecíveis elixires! Soberano Exilado do Oriente e do Letes! Três vezes com dolência
clamado pelas fanfarras plangentes e saudosas da minha Evocação!” (530).
A estada no inferno representa o contato com as forças matriciais da existência,
zona inconsciente de onde nascem as obras de arte. Por isso, a viagem descensional
constitui etapa indispensável à criação estética, gerada a partir do choque de elementos
antagônicos, como luz e sombra, razão e inconsciente, “fazendo fugitivamente pensar no
primitivo Caos donde lenta e gradativamente se geraram as cores e as formas...” (527). A
valorização dos componentes noturnos explica por que as flores do mal, de onde
escorrem os Meditativos e os Sonhadores (531), estejam plantadas no Inferno.
O desejo de (re)encontrar o desconhecido provoca, no sujeito de Evocações, a
frequente saudade de um tempo primordial, sentimento que, em muitos casos, compensa
a amargura terrena em favor de uma utopia transcendental. Espécie de saudade do
porvir. Em “Ídolo mau”, por exemplo, declara-se que o homem só voltará a ser “uma
afirmação, um estado de existir” (544), quando se espiritualizar:
alma seja mais eterna do que a luz, mais forte do que os bronzes, mais etereal
do que os astros.
Alma, alma, mais alma, mais alma, muita alma, muita alma, toda, toda a alma,
toda a infinita alma! (543-4)
pessoa seja mais narrador do que o de primeira, mas que, naquele caso, sua imanência é
marcada com maior força.
Evocações se abre com epígrafe de Villiers de L’Isle-Adam, destacando a
sensibilidade apurada dos artistas: “Les seuls vivants méritant le nom d’Artistes sont les
créateurs, ceux qui éveillent des impressions intenses, inconnues et sublimes” (388) [Os
únicos seres dignos do nome de artistas são os criadores, os que despertam impressões
intensas, desconhecidas e sublimes (tradução nossa)]. Inaugurando a vocação reflexiva do
livro, o primeiro poema, “Iniciado”, também começa com uma epígrafe, do próprio Cruz
e Sousa. Nela, a par da intensidade sensorial, institui-se o doloroso lavor artístico como
indispensável à confecção de uma obra eterna: “Desolado alquimista da Dor, Artista, tu a
depuras, a fluidificas, a espiritualizas, e ela fica para sempre, imaculada essência,
sacramentando divinamente a tua Obra” (388). A dor se torna atributo tão decisivo que,
na (in)felicidade de não sofrê-la, o artista deve clamar por alguma: “Se não tens Dor, vaga
pelos desertos, corre pelos areais da Ilusão e pede às vermelhas campanhas abertas da
Vida e clama e grita: quem me dá uma Dor, uma Dor para me iluminar!” (391). Para
alcançar a Arte branca, isto é, total, original e sincera, o artista deve sair da “Esfera do
mero instinto para a Esfera reabilitadora, pura e radiante do Pensamento” (393).
Também merece exame a requintada orquestração imagética de “Iniciado”, a qual
ecoará em outros textos no livro. O primeiro parágrafo do poema acumula imagens da
natureza para registrar tudo aquilo a que o artista renunciou para viver a ascese estética:
sanguínea permitirá que o vulcânico artista veja tudo em vermelho, decompondo variados
matizes dessa cor, o que, textualmente, fica representado numa sequência de sinônimos
cromáticos: “ensanguentamento”, “vermelhos”, “rubros”, “escarlates”, “rubores”,
“sulferina coloração”, “vinhos” (408). Listagem semelhante registra a canina riqueza
olfativa do artista, capaz de sentir “cheiros”, “emanações”, “exalação”, “aroma”, “odor”,
“fartum”, “hircismo”, “estimulante de fermentação”, dentre outros.
A intensidade dessas experiências sensoriais provoca, como de resto em Missal, a
nevrose, mantendo o artista em estado permanente de sobre-excitação: “Era como se
saísse de andar em volta de vasta coivara a arder e viesse dela aquecido, com o sangue
esporeado, as veias latejando em febre, numa sensação intensa de produtividade” (409).
Entretanto, essa incandescência não logra sair do corpo do poeta e chegar ao papel em
branco, pois o artista é desprovido da “força de concentração, de generalização e de
síntese” (414). Sua angústia aumenta conforme ele percebe a iminência da morte,
lançando-se ao álcool e às prostitutas. A sexualidade desenfreada e os vícios são sintomas
da incapacidade de escrever, já que a liberação do instinto decorreria da falta de análise,
chamada ironicamente de “impotência conceptiva” (414).
A incontinência subjetiva impede a conexão do entendimento e do sentimento,
fazendo com que inexista a “correspondência direta e rítmica” entre as “correntes
psíquicas do seu cérebro e su’alma” (415). Reduzido à besta humana, o personagem
morre pela hipertrofia instintiva, simbolizada nos pés de cabra com que o enunciador o
imagina, ao vê-lo no caixão. Importa destacar que, na sintaxe de Evocações, “Capro”
sucede a “Mater”, ambos demonstrando caminhos de se lidar com pulsões e desejos.
Note-se, por fim, que “Capro” se organiza numa sequência narrativa que poderia
aproximá-lo do conto, mas a ausência de clímax, por exemplo, relativiza essa
possibilidade: a morte do personagem não é o ponto alto do texto, servindo apenas para
abrilhantar a imagem caprina. Do mesmo modo, o emprego abundante do pretérito
imperfeito confere certa atemporalidade ao texto, de temática difusa e de organização
ziguezagueante, opondo-se ao relato de uma experiência singular vivida num tempo e
num espaço específicos, como sói ocorrer nos contos.
Não diferindo de Missal, Evocações mescla textos metalinguísticos a outros que,
sem necessariamente discutir a criação literária, traçam perfis de artistas, nos quais
pulverizam certas concepções estéticas. Assim são “Triste” e “Espelho contra espelho”. O
título do primeiro sumariza o retrato do personagem: esteta, melancólico, desprezado e,
244
por fim, morto. O poema se destaca por concatenar uma série de imagens sufocantes
(que vão culminar no “Emparedado”):
Tenho que tragar tudo e ainda curvar a fronte e ainda mostra-me bem
inócuo, bem oco, bem energúmeno, bem mentecapto, bem olhos arregalados
e bem boca escancadoramente aberta ante a convencional banalidade. Sim!
suportar tudo e cair admirativamente de joelhos, batendo o peito, babando e
beijando o chão e arrependendo-me do irremediável pecado ou do crime
sinistro de ver, sonhar, pensar e sentir um pouco... Suportar tudo e
obscurecer-me, ocultar-me, para não sofrer as visagens humanas. Encolher-
me, enroscar-me todo como o caracol, emudecer, apagar-me, numa modéstia
quase ignóbil e obscena, quase servil e quase cobarde, para que não sintam as
ansiedades e as rebeliões que trago, os Idealismos que carrego, as
Constelações a que aspiro... Recolher-me bem para a sombra da minha
existência, como se já estivesse na cova, a minha boca contra a boca fria da
terra, no grande beijo espasmódico e eterno, entregue às devoradoras
nevroses macabras, inquisitoriais, do verme, para que assim nem ao menos a
respiração do meu corpo possa magoar de leve a pretensão humana. (439-40)
Homero, contra este espelho – Virgílio. Sempre este espelho – Shakespeare, contra este
espelho – Balzac, ou contra este espelho – Dante, ou contra este espelho – Hugo” (555).
Na esfera dos hiperestesiados estão, além dos artistas, os loucos, todos reféns de
suas ferventes subjetividades. Alguns desses personagens, e só desse grupo, são
nomeados, detalhe que, unido a pequenos enredos, gera contos que, apesar de breves,
correspondem à maior porcentagem narrativa do livro. Nomear os protagonistas revela o
esforço de individualização e de humanização, livrando-os do estereótipo de “o louco”.
Os casos de loucura constituirão o principal interesse da ficção simbolista em contos
(Horto de mágoas, de Gonzaga Duque) e romances (No hospício, de Rocha Pombo). O
vínculo entre doença mental e narrativa (tão estudado fora do Simbolismo) oferece
recursos cênicos ao escritor simbolista que, obcecado pela plasticidade, tira grandes
efeitos da doença. Quase sempre, um narrador externo onisciente descreve como a
mente insana desfigura a realidade, em tomadas de feitio expressionista.
Assim é “A nódoa”: Maurício, atormentado e boêmio, chega bêbado da rua e, no
quarto, examina a palma da mão e nela avista uma nódoa, inicialmente pequena, mas
depois gigante a ponto de preencher todo o espaço circundante. Cruz e Sousa elabora
uma microscopia dramática para acompanhar a visão do personagem: unhas, falanges, “o
cabalístico M letal” (533), entrevistos pela meia-luz de uma vela bruxuleante, o que desde
logo confere imprecisão à cena. A mancha nasce de um sujeito “sem centros harmônicos
de um objetivo ideal, sem pontos de apoio, girando fora das órbitas das unidades dos
sentidos” (532). Por isso, ela simboliza a procura da identidade perdida, anseio
confirmado por Maurício se ver desfigurado e duplicado no espelho.
“O sonho do idiota” narra a história de um homem que, angustiado, entra num
templo (observe-se que não é mais o enunciador que visita a igreja, mas um personagem).
Lá, ajoelha-se perante a imagem de Cristo e vê uma bela mulher passar. Tenta
inutilmente reencontrá-la; o altar se apaga, e a igreja fecha. Trancado, percebe que a
passante era, na verdade, a estátua de uma santa loura. Então, começa a ver répteis verdes
se espalhando pela nave e, “como um monstruoso réptil verde, sentiu-se subdividido,
multiplicado infinitamente em milhões e bilhões de réptis verdes de todos os aspectos e
formas” (578). A paranoia se desfaz quando o personagem se arrasta até a porta do
templo e percebe que está sonhando. Mais uma vez, a loucura se vincula a lacunas de
desejo e de identidade.
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E outro soluço, outro soluço para encher o cálix daquele Horto, outro
soluço, outro soluço.
E todos esses soluços parecia-me subirem para a lua, substituindo
miraculosamente as estrelas, que rolavam, caíam do Firmamento, secas, ocas,
negras, apagadas, como carvões frios, porque sentiam, talvez! que só aqueles
obscuros soluços mereciam estar lá no alto, cristalizados em estrelas, lá no
Perdão do Céu, lá na Consolação azul, resplandecendo e chamejando
imortalmente no lugar dos astros. (548)
método cartesiano de racionalizar o que, em tese, não é lógico nem concreto: “a perfeita
verdade da Vida na sua alta e pura essência, não é tangível – é intangível. Para apanhá-la
não se faz mister uma visão direta, uma observação imediata, muito perto dos fatos,
muito em cima dos tipos, nem um psicologismo científico sistemático” (485).
Segundo Adorno (2003: 30), é próprio da natureza ensaística proceder
“metodicamente sem método”, promovendo “conexões transversais” e desentranhando
latências. Além disso, o ensaio constituiria um gênero essencialmente dialógico, já que
exige a “interação recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual”, de
modo que “o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso, os vários
momentos se entrelaçam como num tapete” (ibidem: 30-1). Essa flexibilidade, adequada
à resistência simbolista à Convenção, se prefigura em “Intuições” no fato de os
personagens discutirem enquanto caminham, demonstrando como a experiência
interfere na intelecção. Além disso, a diferença etária entre eles – um é jovem ex-
seminarista; o outro, um velho artista – intensifica a importância do debate e da troca
mútua. Não por acaso, a cena se desenrola à tarde, momento também fronteiriço entre o
dia e a noite.
A natureza dialética tenta azeitar os limites de três pares opositivos: real x ideal;
observação x imaginação e prosa x verso, teses e antíteses que se querem reprocessadas
numa Síntese, o âmago da estética simbolista. No primeiro caso, alega-se que “a vida é
real e é ideal, é ideal e é real” (485), repetições que atestam a concomitância de ambos os
aspectos. A realidade deixa de ser puramente empírica e passível de apreensão intelectual
para se tornar um terreno pantanoso, permeado de frequências desconhecidas: “o real é
cheio de brumas de sobrenatural” (483). Desse modo, o real não é apenas algo
formatado exteriormente, mas, ao contrário, é permanentemente construído pela
interação entre objetos, fatos e sujeitos, cujos sonhos e desejos também são constitutivos
da realidade.
A cumplicidade entre sujeito e objeto transforma, no âmbito artístico, o conceito de
mimese, já que a obra de arte não é mais verdadeira ou natural quando o artista busca
representar imparcialmente a realidade externa. Sua verdade está na coerência entre a
maneira como o sujeito vivencia o real e como ele apresenta tal percepção na obra. Por
isso, o inconsciente estaria na base da criação artística, pois interfere na própria
construção da realidade, inevitavelmente encharcada das pulsões do sujeito: “as suas
249
Obras que nascem sempre por um movimento de meia inconsciência conceptiva, para
serem mais fortemente vivas e mais transcendentemente sensacionais” (485).
O adjetivo “meia” pressupõe um complemento intelectual, a que poderíamos
chamar de consciência, responsável pela busca de um ritmo e de um estilo capazes de
sugerir e organizar as manifestações inconscientes: “que não haja, no modo de reproduzir
essa verdade vista pela Imaginação, uma completa hipertrofia sensacional e sim, de certa
forma, um fundo lógico, rítmico, harmonioso e equilibrado, até mesmo no próprio
Absurdo” (484). Já em “Iniciado” falava-se num estado de “meio-inconsciência, meio-
névoa” (393). Com isso, a ideia de verossimilhança também se altera, deixando de
significar adesão ao factual para se tornar sinônimo de coerência: por mais absurda ou
ilógica que pareça, a manifestação artística é sempre coerente e verdadeira quando
sintetiza possíveis configurações da realidade:
E, quanto a mim, se me fosse dado organizar, criar uma nova forma para essa
transmissão, certo que o teria feito, a fim de dar ainda mais ductilidade e
amplidão ao meu Sonho. Nem prosa nem verso! Outra manifestação, se
possível fosse. Uma Força, um Poder, uma Luz, outro Aroma, outra Magia,
outro Movimento capaz de veicular e fazer viver e sentir e chorar e cantar e
eternizar tudo o que ondeia e turbilhona em vertigens na alma de um artista
definitivo e absoluto. (492-3)
Por um lado até mesmo parece que não deveria ser esse o seu nome; não por
não abranger o pretendido sentimento e forma especiais, particulares, da
prosa, mas por ultrapassar, por superiorizar-se, por tomar outra elasticidade,
outras vibrações, outras modalidades que a prosa convencional e feita sob
moldes estabelecidos jamais comporta. (494)
Tal forma, carente de nome preciso para não ser comparada nem ao verso nem à
prosa, se apresenta como um anseio (“se me fosse dado”), o que desde logo parece
atestar sua inexequibilidade: por mais que deseje rompê-la, por mais que se queira um
“homem flagrantemente nu entre outros homens inteiramente apertados numa espécie
de espartilho de convenção intelectual” (495), o artista sempre estará emparedado por
251
relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer corar o diletantismo das
suas ideias” (622).
Na civilização, o homem se limita a “Esperar! Esperar! Esperar!” (612), sempre
postergando a realização de seus desejos. Por isso, é um emparedado:
Porque a Forma, a Forma é esse ansiar para o alto, esse fremente rufiar e
abrir largo d’asas impulsionadas na Luz, na refulgência das Estrelas, de onde,
a música, a harmonia para a Arte, serena e ritmalmente canta...
Mas, essa Forma que abre, cinzelada em astro flamejante, essa mesma Forma
sai pontuada de lágrimas, como um relicário onde eternamente ficassem
guardadas as hóstias impoluídas de um amor sideral infinito. (468)
255
de sonho, que já não é mais propriamente poesia em prosa, e ainda não chega à prosa
impressionista” (Muricy apud Coutinho, 1959, III: 200). Essa trajetória apaziguadora
também ocorre em relação ao verso livre, de início hostil à metrificação, mas
posteriormente favorável a sua presença, a ponto de um mesmo livro e até um mesmo
poema abrigar as duas tendências (basta ler A rosa do povo, de Carlos Drummond de
Andrade).
Como José Vicente Sobrinho e Pedro Vaz produziram livros com mais contos do
que poemas em prosa (este denomina seus textos de contos), fora outras semelhanças
temáticas e formais, a eles dedicaremos seção inicial e menor neste capítulo. Tal
linhagem de transformação, não de ruptura, da herança de Cruz e Sousa se agrega uma
segunda tendência, continuadora das práticas de Evocações, aqui representada por
Antônio Austregésilo e Oliveira Gomes, tratados no segmento final do capítulo.
Faz hoje cinco meses que, por uma nublada e triste manhã de inverno
deixava eu a casa paterna, e fazia-me caminho desta capital que hoje habito.
O céu coberto de nuvens, o ar parado, as árvores sem folhas, – pareciam
participar da grande mágoa que me oprimia o coração.
A cada passo do animal que montava, sentia crescer a distância que me
separava do meu ninho amado, bem como aumentar a tristeza que inundava
toda a minha alma. (63)
258
conquista, quê de majestade e de tristura não exprimes, venerável epônimo dos campos!”
(Arinos, 1998: 43). Entretanto, Afonso não será convocado à tese, pois nele o gosto pela
narrativa sobrepuja eventuais incursões pelo poema em prosa.
Contudo, a descrição extrapola a documentação regionalista quando Pedro Vaz
desenha pequenos quadros naturais, à moda do Cruz e Sousa de Missal. Nesses casos, a
ausência de coordenadas geográficas ou de datas acusa aspiração generalizante mais
próxima do Simbolismo. Não por acaso, aí mais se sente a contaminação estilística do
movimento, como em “Vitória de Eva”:
Põe-se o sol.
O crepúsculo da tarde começa. Na profundeza do céu uma ampla e ignota
saudade; no cimo dourado dos montes, no fundo misterioso dos vales, uma
paz imensa, incomensurável.
O descanso, o repouso vai invadindo tudo... Os pássaros à beira dos ninhos
concertam o derradeiro canto... Obedientes, à voz do pastor que os segue,
descem os rebanhos vagarosamente, o declive alcatifado das colinas,
deixando após si um rastro de perfumes das flores que esmagam no moroso
caminhar.
Ouve-se a voz melodiosa das raparigas que cantam ao pé da fonte enquanto
as bilhas se enchem.
O crepúsculo agoniza. A sombra cresce, avoluma-se a cada badalada do
“Angelus” que geme pelo espaço.
(...)
Hora do sonho!... Hora do Amor... De ao pé da fonte, que espalha em
derredor um murmúrio flébil, um frêmito de beijos sôfregos se eleva, arroja-
se no espaço, como uma multidão de pássaros acordados em sobressalto.
E o luar da meia-noite que vinha surgindo, branco, de uma brancura
imaculada de neve, pode ver a cabeça gentil de Nazareno, encostada ao colo
seminu de Madala...
Píton vencera Eva; Eva triunfava do Eterno. (67-8)
O seio arfava-lhe com ânsia como o colo de uma garça cansada de voar: é
que sua alma percorrera todo o domínio do invisível. Assim, pálida,
arrebatada no grande voo da prece, era mais loira, mais formosa, tão pura
261
como a Rosa Mística de Judá, que lhe sorri num carinho afetuoso dentre as
luzes vacilantes do altar.
A orquestra prorrompera numa fortíssima explosão de vibrações sonoras: os
sinos anunciavam o fim da solenidade. (20)
textos vazados numa linguagem translúcida justifica o segundo termo do título da obra”.
Com efeito, ao predomínio de contos na primeira seção sucedem agora as fantasias, de
configuração distinta, insistimos, da verificada em Tropos e fantasias e em outros livros de
fatura simbolista. A começar pela linguagem, muito mais distensa e coloquial em José
Vicente Sobrinho, provavelmente pela natureza epistolar dos textos. Além disso, ele
procede à inversão qualitativa de narração e imagem: se, nos poemas em prosa até então
examinados, esta se sobrepõe àquela, fazendo o enredo derivar em cadeias fanopaicas,
agora as imagens estão a serviço da história contada. Queremos com isso dizer que a
imagem, aqui sinônima de trabalho da imaginação, age como motor da narrativa: é justo a
capacidade associativa dos narradores que os incita a continuar contando.
Isso se concretiza, em “Cartas à minha irmã”, pela habilidade de o remetente
elaborar enredos mais ou menos mirabolantes para cada local de onde a irmã, em lua de
mel pela Ásia, lhe escreve. Aliás, observa Massaud Moisés (1967: 225), os Contos e
fantasias se destacam pelo orientalismo, apenas entrevisto em outros poemas em prosa e
praticamente ausente da ficção da época. Na primeira missiva, uma folha seca encontrada
no dicionário aciona o exercício imaginário; o escrevente se indaga quem o terá posto ali.
Concluindo ter sido a irmã, Helena, passa a conjecturar sobre o país onde ela está, o
Japão:
Basta este nome – Japão – breve e empolado como um beijo sensual, para
me trazer à mente uma miragem que se estende em frente de uma planície
branca de plantações de arroz, batidas de um sol valente, que se pendura no
céu, alumiando a região esquisita do Japão.
E eis que volta este nome em que as duas únicas sílabas rebentam cantantes e
cheias. Traz-me agora a vontade do amor excêntrico de uma japonesa catita,
chamada, por exemplo Mei-Ho, que por mim se apaixonasse e que eu
raptasse ao pai, um velho impossível de nariz adunco, e lá nos fôssemos em
fuga para a China próxima, numa barcaça, eu a beijar-lhe a boca perfumada
de essências, por sobre o falar zangado e contínuo das águas e ensuflado pela
brisa marinha, que desmancharia à japonesa catita o tufo dos cabelos
enrolados no alto da cabeça pequenita e redonda, enquanto ao longe,
muitíssimo ao longe, mui ao longe, se perdem as costas e se afundam as casas
de tetos afilados do encantado país do Japão. (75)
explica como sonho ou devaneio. Ademais, a imaginação de Sobrinho cria narrativas, não
as bloqueia; o procedimento se estende a outros espaços orientais: China, Ceilão,
Cingapura, Honolulu, Taprobana. Pequim se destaca, pois, nas seis páginas da carta VII
(98-104): a cidade é terreno baldio para o transbordamento do escritor, que, a partir de
notícias triviais da irmã, inventa o personagem Hong-Fó, lançando-o numa festa de
recepção ao vice-rei do Tibet, onde encontra a amada Li-Li! Na carta III, “A República
do Japão”, a fantasia envolve o próprio escritor, que, nomeado “ministro das letras” (82)
pelo imperador Mikado, viajaria ao Japão para encontrar o cunhado, tornado presidente
com a repentina queda da monarquia japonesa, e a irmã, então primeira-dama.
A fantasia desabrida chega ao Brasil, onde está o remetente, e a pátria é
enfadonhamente louvada, na base de um estado por parágrafo, para criar contraponto ao
possível desabrigo sentido pela irmã no exterior. Acumulam-se, nas dez páginas da carta
VIII (104-115), lembranças pessoais, fatos históricos e elogios patrióticos em avalanche
quase ininterrupta: “Maranhão! Belo nome sonoro... Pelas planícies vai mugindo o gado
forçudo e o vaqueiro corre ‘Eh! Ou! Eh! Ou!...’ e o dia agoniza numa paixão dourada,
num sofrimento de coral, infinitamente melancólico, espalhando o vago medo misterioso
do crepúsculo...” (106); “Pernambuco com a excursão a Nazaré num dia de festa de
igreja e de fogo de artifício; com o passeio a Jaboatão; com a fazenda Lacerda, trabalhada
por escravos e cheia da garrulice e desembaraço das filhas do fazendeiro” (112). Tal
confessionalismo se assemelha ao de Pedro Vaz (o mesmo ocorre na carta IV, intitulada
“Página íntima”).
Desse modo, a acepção de fantasia de José Vicente Sobrinho configura retrocesso
mesmo quando comparada a experiências românticas. Em O livro de Fra Gondicário,
por exemplo, as digressões imagéticas de Álvares de Azevedo buscavam estancar o
derramamento imaginativo. José assume a “mente fantasiosa” (77), mas reconhece a
“originalidade falsa da pena” (85). Por outro lado, o engate de enredos derivantes
aproxima-o, parcialmente, de experiências transgressoras, como o Là-bas, de Huysmans,
embora no francês digressões e histórias acessórias, de todo apartadas do eixo central,
pretendam driblar a sequencialidade narrativa do romance. No paulista, em
contrapartida, o motor delirante mais enriquece do que compromete a linearidade
discursiva.
Pautados pela prodigalidade imaginativa, pelo confessionalismo familiar e pela
descrição regionalista de cenas provincianas, Pedro Vaz e José Vicente Sobrinho se
265
distanciam um pouco do legado simbolista, conquanto lhe incorporem, aqui e ali, células
temáticas e procedimentos formais. O interesse dos autores recai sobre o conto, gênero
mais propenso a expressar, às vezes simultaneamente, as características apontadas. A
fantasia, na condição de gênero difuso e indefinido, se torna acessória nos livros e, com
ela, toda iniciativa de poema em prosa esmorece perante o vigor narrativo. Mesmo as
descrições perdem bastante do encantamento sonoro e do gozo imagético para apenas
plasmarem cenas e hábitos do passado saudoso. É dessa linhagem, remissiva, insistimos,
ao Romantismo, que se desdobra, no século XX, o filão regionalista da ficção pré-
modernista, com Afonso Arinos, Alcides Maia, Hugo de Carvalho Ramos, Valdomiro
Silveira, Simões Lopes Neto, todos praticantes preferenciais de formas breves como o
conto. Para um exemplo cabal, cite-se A bico de pena: fantasias, contos e perfis (1904),
de Coelho Neto, em que pequenos textos misturam imaginação caudalosa e investigação
regionalista.
O fato, porém, é que o livro de João Barreira causou grande impacto em nosso
meio literário, seduzindo diversos escritores que, oblíqua ou ostensivamente,
compactuavam com seus ideais finisseculares. A publicação raríssima – 6 exemplares
impressos fora do comércio – tornou-se algo mítica. Andrade Muricy chega a dizer que
nossos simbolistas se ajoelhavam para ler a obra, convertida assim numa espécie de Bíblia
poética. A devoção um pouco exagerada talvez não se explique pela qualidade intrínseca
do volume, por vezes inferior a outros títulos contemporâneos, mas, possivelmente, por
ser ele o primeiro, em língua portuguesa, a efetivar livro inteiro de poemas em prosa:
Raul Pompeia só teria as Canções sem metro publicadas postumamente, em 1900, e o
Missal, de Cruz e Sousa, só viria a lume em 1893, portanto um ano depois do lusitano.
Desse modo, os Gouaches sintetizavam os anseios de muitos dos nossos ainda tímidos
simbolistas: o ideal do poeta-profeta, o “panteísmo literário”, o poder transcendental da
arte, a solidão do artista etc. Não por acaso, na folha de rosto do livro aparece a máxima
baudelairiana Spleen et ideal, citação que, de resto, reforça o empenho português na
distribuição da herança francesa.
Como se sabe, o poema em prosa insurge-se contra a rigidez das regras de
versificação, no Brasil particularmente alimentada pelo apogeu do Parnasianismo. E não
só: combate, de maneira geral, o cerceamento da criatividade, daí resultando um gênero
“contrabandista”, que, observa Suzanne Bernard, se caracterizava inicialmente pela
brevidade estilística, que, em certa medida, confrontava a concisão do verso lírico. Tal
enxugamento aparece em Aloysius Bertrand e Baudelaire. Nesse momento,
representativo da crise de verso, o poema em prosa carregou as tintas prosaicas,
incindindo em temas antes rechaçados pela poesia; poemas de Baudelaire como “A
perda do halo”, “O brinquedo do pobre”, “Os olhos dos pobres” ou “Espanquem-se os
pobres” comprovam essa tendência. Posteriormente, a economia estilística é
comprometida em favor do discurso caudaloso, fortemente imagético e sonoro; é o que
temos em Rimbaud, Láutreamont e no último Cruz e Sousa, por exemplo. A
transformação parece sugerir que, superando o embate com o verso tradicional, o poema
em prosa poderia circular nas mesmas esferas da poesia lírica, conquanto em linguagem
mais solta, desobediente às imposições do metro. Agora, ao gênero transgressor
interessava mais fugir da narratividade, pois a mancha gráfica da prosa poderia,
equivocadamente embora, atrelá-lo às regras do conto e da novela, por exemplo. Por
isso, verificamos nesses autores um esforço contumaz em driblar as sequências narrativas,
267
que, em tempos de folhetins e peripécias, seduziam a maioria dos leitores. Tal cuidado
justifica a reaparição da “fantasia”, conforme apontamos, termo vago que alude a tudo o
que, escrito em prosa, tem pouco de prosaico, muito de poético e nada de metrificado.
“Fantasia” é designação que resume o empenho de fugir tanto do poema quanto da
prosa, ânimo que a expressão “poema em prosa” não deixa transparecer tão
intensamente. O escape do narrativo produz escrita não linear, afastada o máximo
possível de eixo de causalidade que a pudesse tornar sequencial ou previsível. O
encadeamento lógico é rompido em favor do flagrante do indizível; isso conduz a
literatura às fronteiras da pintura e das artes plásticas, pois a aproximação entre a pena e o
pincel atende ao exercício de uma escrita despegada da lógica cartesiana, como a tinta
derramando-se na aquarela.
Assim se justificam, em João Barreira, devotado estudioso das artes plásticas,
inclusive com livros publicados sobre as artes grega e portuguesa, o título Gouaches, e o
subtítulo, “Estudos e fantasias”. Sintomaticamente, no poema “A máscara”, o escritor
acompanha pari passu as pinceladas de um pintor, irmanando-se a ele: “E eu olhava-as
[máscaras] então como a surpreender-lhes a fisiologia da sua alma, enquanto o pintor
meu amigo lançava as primeiras manchas de uma antiga paisagem vivida” (1892: 79).
De maneira muito semelhante à barreiriana, tal escambo entre letra e tela se
atualiza na obra do brasileiro Antônio Austregésilo, hoje lembrado como importante
médico psiquiatra, obscuro membro da Academia Brasileira de Letras ou ainda como tio
de Austregésilo de Athayde, presidente da mesma instituição por mais de 30 anos.
Todavia, Antônio publicou dois livros de poemas em prosa, posteriormente renegados:
Manchas: fantasias (1898) e Novas manchas: contos e fantasias (1901). A rigor, ele
incluiria, com algumas modificações, textos de ambos os volumes em Perfis de loucos
(1943), indiciando que o médico matou o escritor. A julgar pelos títulos, é patente a
sombra de João na obra de Antônio, fato confirmado pelo brasileiro em conferência
localizada por Andrade Muricy:
Não podemos negar que a maior influência nos veio de Portugal, como João
Barreira, Eugênio de Castro, e Antônio Nobre. João Barreira havia publicado
um livrinho de prosa, Gouaches, que impressionou vivamente os simbolistas
brasileiros. Cruz e Sousa quedou-se encantado com o escritor lusitano.
“Diálogo outonal”, “Monólogo de um crânio”, “A rosácea da capela gótica”
eram repetidos como salmos da nova orientação literária. (apud 1973: 663)
268
No portal de nuvens, há um luar, que, por sua vez, ilumina gruta onde nadam
vozes! O abismo de imagens trava o andamento da narrativa, fazendo-a marcar passo. A
microscopia labiríntica comparece em outras passagens de “A crucificada”, quase sempre
a serviço da suspensão do entrecho:
270
E quando o estorcegar das suas carícias escorria sangue, ela tinha um riso
demente em que passava a corrente de arrepios sarcásticos olhando a chaga
viva, – incendiavam-se no seu olhar os clarões explosivos de um sol
esfaqueado em gritos de lacre, como se na sua pupila uma esponja de gnomo
saltitante fosse espremendo, gota a gota, a dissolução colorida de um enorme
rubi liquefeito. (1892: 113)
Sabes? Uma noite, já tarde, ia tombando para as bandas do mar uma lua de
ocre, arrastando por uma pálida paisagem de epidemia um luar maligno, à
hora neutra em que os noctâmbulos, deixando prender as asas de morcego,
recitam o Amém da sua prece fatalista e ziguezagueante de enigmas, senti
esboçar-se cá dentro do meu tumulto esta bizarra concepção: (...) (1892: 28).
de luar em trevas absolutas” (1898: XXXI, grifo nosso). Parece-nos que, como os
parnasianos que “iniciavam” o soneto pela chave de ouro, alguns poetas da prosa
simbolista guardavam na manga rol de comparações, a ser generosamente distribuídas
pelos parágrafos...
A obstrução da sequência narrativa surge também na fixação exaustiva de tipos
(herança mais de Baudelaire do que de João Barreira). O primeiro parágrafo de “Velhas”
corrobora a escavação arqueológica da realidade: “Lembrar que as velhas já amaram, que
tiveram seus momentos d’holocausto das paixões é ver através de cinzentas nuvens a
paisagem dum éden perdido pelo esgotamento dos anos” (1898: XXI). O olhar-
palimpsesto é prerrogativa para o encaracolado labirinto imagético. A objetivo
semelhante serve outra tônica das Manchas: a personificação, a sondagem dos “mistérios
infinitos das coisas”. Tentando rastrear vida em seres inanimados, “a vida sonambúlica
das coisas”, nas palavras de Baudelaire, Austregésilo renuncia ao movimento em favor da
auscultação detida dos objetos que o cercam. Assim, em “A alma do serrote”, a
animização da ferramenta cria corrente sinestésica:
Queria apenas conversar comigo, comigo sim, por que quem melhor
compreenderia o meu amor magoado do que eu? eu, o alegre para o mundo
e triste para mim, para os meus momentos egoísticos de dor e de pesar?
(Austregésilo, 1898, p.XLVI)
A tua boca é uma riquíssima flor de mentiras, tão atraentes que até parecem
beijos d’amor. Não temo mais o vírus porque convalesci da tua dentada
perfumosa e amorosa, e agora fujo ao ver a cicatriz em meu coração.
Teus cabelos são a miragem dos desertos onde só a areia existe, e engana ao
beduíno julgando-a oiro em pó.
Sou beduíno, mas não me enganarei mais com essas areias d’oiro.
Repugna-me a tua frescura e beleza d’agora: me pareces pântano cristalino e
todo florido à tona e baboso ao fundo, onde o lodo é a excelsa glória. (1898:
LXLV)
Como se vê, a escuridão é majoritária, não exclusiva, cedendo, por isso, brechas à
luz, ainda que esta seja mal-vinda, conforme explicaremos. Com efeito, temas frequentes
em outros poetas da prosa, como o amor, aparecem aqui com enfoque ambíguo, entre
esperançoso e descrente. Ainda no “Argumento”, Gomes destaca que “no fundo, pois,
dos nossos sofrimentos ainda palpita, doirada e inapagável, essa flama da Fé, pouco
importa seja ela religiosa ou não. A descrença é ainda uma forma da Fé. Ainda se espera
e crê, desesperando e descrendo” (10). Nesse sentido, a ideia de nuance é importante,
porque indica não apenas o hábito da decomposição cromática das paisagens, mas
também o matizamento de sensações, criando verdadeiro espectro de cores e
sentimentos.
274
doiradas”, “oiro”, “luz”, “prata”. A esses signos se juntam outros, de grande fluidez,
mesclando traços líquidos e calorosos para afrontar a glacialidade anterior; aparecem
agora “beirais de rios”, “vinho vermelho”, “derramar de rubis”, “palpitar d’ondas leves
feridas de sol”, que sugerem a consumação do desejo, ratificada pela anuência das
mulheres “que abrem os seios de seda” e pela consagração final da imagem
“engrinaldadas d’oiro”.
A cromática simbólica, até então mobilizando basicamente o branco e o vermelho,
agrega também o azul, para representar plenitude e satisfação. Por isso, o sonho se
constrói no Azul, a ele se prendendo por “débeis fitas d’oiro que se partiram e o
precipitaram”. Novamente, finda a Idade do Ouro: a luz se esbate, e o sonhador tomba
na realidade, caracterizada por vazios e ausências, conforme atesta a metáfora da “mãe
que perdeu o filho”. Constatado o fracasso, retornam as frotas “triunfantes, cheias de
risos e alaridos doirados de trompas vitoriosas”, com “flâmulas a tremular”, atacando o
sujeito com todos os atributos inicialmente ostentados por ele. Há sadismo no
movimento das esquadras, pois elas recuam ou aparecem apenas para reforçar a
impotência do observador. Como se vê, as breves narrativas de Oliveira Gomes almejam
à “poesia pura” – lírica, alegórica e infensa à causalidade –, aproximando-se da autonomia
e da gratuidade arrogadas ao poema em prosa por Suzanne Bernard, conforme
descrevemos no início da tese. Com a incineração exibida no primeiro poema, as cinzas
se espalham por todo livro.
Em oposição ao ceticismo afetivo, encontram-se, todavia, poemas menos
incompatibilizados com o amor. Neles, o sentimento se intensifica à proporção que
fenece, pela morte iminente ou efetiva do amante (“N’agonia”), da amada (“Dolores”,
“Flor do pecado”, “Evocação”) ou de ambos (“Crepuscular”). “N’agonia” se passa na
mente do moribundo, debruçado na “misteriosa linha que orla a Vida” (37). Flagrar
instantes assim, de semiconsciência, realisticamente inapreensíveis, é uma constante do
poema em prosa; basta lembrar o texto quase homônimo de Júlio Perneta, “Agonia”,
retratando o processo mortuário de Juvêncio. Em Bronzes, todavia, o registro acontecia
de fora, na ótica dos amigos do personagem, ao passo que Oliveira Gomes, muito
introspectivo, prefere observar de dentro, até o falecimento do sujeito. O enfermo se fixa
nos olhos lacrimosos da amada, indagando-lhe, mentalmente, a razão do pranto: “Ouço
preces, soluços... Há quem chore nesta noite feliz! Para que preces? Para que eu volte?
para que eu não vá?” (39). Os verbos em itálico situam o enunciador em zona
278
Mais uma vez, a morte é pacificadora, mas, obsessivo pela originalidade, Oliveira
problematiza certo lugar-comum do Simbolismo: “Por que fizeram da cor branca o
símbolo da Paz? A Paz é negra; negra e fria. Mora num palácio sem luzes, sem brilho,
sem rumores, num país deserto. Vou viver com ela, na rigidez dos mármores, no seio
tranquilo do Mistério” (40-1). Por isso, ao final do poema, o morto alcança a acolhedora
escuridão: “Ah! como é doce o silêncio!... A Paz aí vem, linda velhinha de cabelos negros
e bondade angelical!...” (41). Encontro semelhante ocorre no último texto do livro, “Ao
meu coração”, em que o emissor dialoga com o órgão citado no título: em linguagem
familiar e distensa – “Vamos lá, ó meu amigo!” (125), “Vamos lá, entanto!” (127) –,
convida o coração à morte, “uma mulher amável e compassiva, a única que não nos
repelirá, a única que nos compreenderá e consolará” (127).
O eufemismo das designações “Paz” ou “Mistério” desaparece quando morre a
amada, materializada não apenas na parceira conjugal (“No pó da vida”), mas também
em frágeis mulheres de quem o sujeito se compadece (“Dolores” e “Flor do pecado”).
Neste caso, a doença das figuras femininas decorre da prostituição, porém não há
qualquer condenação de suas extravagâncias materiais, como sói ocorrer em outros
simbolistas (lembre-se a recorrente censura ao carnaval). A dignificação da meretriz é
realçada pelas metáforas florais, em geral indicativas de pureza: “camélia mordida pelos
moscardos de todos os desejos” (44), “pobre flor emurchecida” (44), “inditosa magnólia
da volúpia” (45), “Dolores, desfolhada e fria” (46), “camélia emurchecida pelo amor e
279
pela doença” (46), “doce-amarga flor da Luxúria” (56), “flores de singeleza e meiguice”
(59) são termos colhidos em “Dolores” e em “Flor do pecado”, com título de mesmo
campo semântico. Invertendo outro símbolo frequente do Simbolismo, Oliveira Gomes
se aproxima daquilo que Oswald de Andrade (1991: 40) realizaria em vários textos de O
santeiro do Mangue e outros poemas, como a “Oração do Mangue”: “Flores horizontais /
Flores da vida / Flores brancas de papel / Da vida rubra / De Bordel”. É evidente que
inversos desse jaez são herdeiras d’As flores de mal, de Baudelaire, não por acaso
convocado no “Argumento” de Terra dolorosa, concebida como “fenecentes flores da
Dor e do Mal” (10).
Empregam-se outros recursos tipográficos e poéticos respeitosos às prostitutas, a
começar pelas vinhetas delicadas, como claraboias em “Dolores” –
tão incômoda quanto sua permanência (cf. “Cinerário”). O texto procede à trivial
beatificação da mulher adoentada, que, temendo a morte, pede perdão ao marido, ao
que ele resignadamente retruca: “Fomos malditos e desgraçados. Queres o meu perdão,
Alma arrependida. Dois corações que sofrem não podem odiar-se. O meu amor foi tão
grande que nunca deixou d’abençoar-te, Fonte clara, Palmeira umbrosa, Pálio imáculo,
Santa, Santa!” (77).
O envelhecimento comparece em outros dois poemas: “Crepuscular” e “Última
crença”. Neste, um ancião procura rejuvenescimento no zelo extremado à filha pequena:
“Medo e afeto! – os fios alvinegros com que armei a teia em que te enredo” (117),
emaranhado sugerido também pela vinheta:
“Mudamente nos pedíamos beijos, todas as carícias, e as minhas mãos – mãos de cego
sonhando – esfolhavam-lhe os cabelos, empoeirando-se d’oiro” (98).
Se a companheira estava na iminência da morte em “No pó da vida” ou em
“Crepuscular”, ela falece de vez em “Evocação”, poema aliás consecutivo ao primeiro,
traçando fúnebre sequência. A desmaterialização da mulher é etapa imprescindível para
torná-la arquétipo do eterno feminino, representado em “Evocação” por “Ela”: “Ela!...
Nem o seu nome, Leonor ou Beatriz, Madalena ou Desdêmona, nem outro!... Só essa
Palavra, doce como a sua graça, clara e harmoniosa, breve como um suspiro, cantante
como um beijo ou como um olhar que se choca noutro olhar” (80). O poema acumula
sinônimos e paráfrases, esboçando, na forma, desejo de prolongamento do amor após a
morte: o texto se repete, tal como se quer a amada viva, mesmo depois de morta. A única
maneira de lograr o objetivo é a evocação (“a doce, misteriosa vida das Evocadas” (81)),
capaz de resgatar a amada no túmulo, sugerido na vinheta pétrea –
Ela!... esta ideia é uma chama criadora que reaviva um monte de cinzas e
brilha e deslumbra. Nesse cinerário há uma cruz espetada como uma espada
esquecida numa dor... A cruz – espada de mármore entre flores que A
denunciam – reveste-Lhe o espírito, a alma translúcida de Ave e abre os
braços para a noite, a chamar-me, a algemar-me a uma saudade infinita. (80)
Que a recordação ressuscita fica nítido na chama renascida das cinzas; sutil, porém,
é a imagem da cruz, que, embora presa ao chão, conduz o sujeito ao céu, simbolizando
concomitantemente o sepultamento da amada e sua eternização pela saudade.
Ressalte-se, a propósito, que a nostalgia, item comum aos repertórios romântico e
simbolista, também se insinua no projeto gráfico do livro. A formatação da capa em
284
então representativa do desejo: “Ah! por que têm os Astros tanta luz?... Apagai, Senhor,
tod’essa luz que sensualiza os Astros; tirai às Estrelas tod’essa voluptuosidade que os [sic]
embriaga. Basta o Luar, Senhor, basta o Luar, frio, imponderável e imaculado. As
Estrelas são doidas qu’andam nuas ateando luxúrias” (23). O final do poema solicita que
se transfira a excessiva luminosidade sideral para os cegos, portadores de “olhos que não
sonham, olhos que não guiam” e que “pensam no amor como numa coisa vedada” (25).
Claro está que a simpatia pelos deficientes se estabelece pela cumplicidade: como os
cegos, o sujeito é afetivamente incompleto. Desse modo, pedir a dissipação da luz é rogar
contra um estado de coisas estabelecido e consagrado, contra um símbolo óbvio e cruel
da perfeição e da completude que só se realizam no outro, nunca em si. Daí o apelo à
lua, incluída no poema como velhinha que teve “hirtos os seus desejos” (22).
Se “Cegos” brada pela destruição estelar, “À noite”, na mesma direção, apregoa o
prolongamento do período noturno, também concebido como parceiro dos proscritos (o
interesse pelos renegados leva o poeta a entoar “Ode ao vinho”, bebida que ameniza as
agruras da vida): a noite é “boa rainha dos Desolados, doce Amiga d’Infortunados” (33).
Toda manifestação luminosa carreia sofrimento e desilusão, mesmo a aurora, tão louvada
por outros simbolistas. O sol, “pobre Rei sem pomares em flor, sem fontes amenas onde
apague o braseiro de seus desejos”, transfigura negativamente a paisagem, provocando
“cores chorosas e perfumes amargos” e, por isso, é destronado pela rainha noturna.
Observe-se que o fato de o sol não ter onde apagar seus desejos o torna correlato ao
sujeito poético de Terra dolorosa, aprisionado em pulsões, conforme vimos em
“Cinerário”. Disso decorre a antipatia solar, pois a estrela-mor ostenta aquilo de que o
sujeito é carente.
A simetria se aclara em “Ronda das lágrimas”, em que o emissor, não
gratuitamente, se apresenta como rei perseguido pelas “guardas rútilas e silenciosas do
castelo da Mágoa”, munidas de “sete gládios sinistros” (62). Elas de nada o acusam, mas o
atormentam a tal ponto que ele se sente culpado não sabe de quê: “A minha vontade
aniquila-se, a minha consciência treme e duvida de si mesma” (64). Então, o fidalgo
questiona a legitimidade de suas posses, já que passa a se sentir usurpador do amor, da
alegria e das riquezas alheias, solicitando, por fim, a ablação de seus olhos, para que “eles
não mais cobicem” (65). Portanto, a visão, sentido mais vinculado à luz, é novamente
associada à tentação e ao pecado, precisando ser eliminada.
287
Imagens de corações que já morreram e não têm um caixão nem uma cova e
erram pela vida aos atropelos da multidão, batidos pelos olhares cruéis dos
que são felizes e não choram e não sabem apiedar-se...
Imagens dos risos que murcharam e rolaram da jarra de coral duma boca de
mulher que amou e foi traída e abandonada...
Imagens dos olhares saudosos das mães que perderam os filhos e o marido e
ficaram a envelhecer sozinhas, sem terem ao seu lado a velhice amiga do
esposo nem a mocidade carinhosa dos filhos...
Imagens da mágoa infinita dos que na vida desfraldaram o lábaro das suas
aspirações e o viram arrancado das suas mãos e roto e pisado...
Imagens dos nossos dias, das nossas horas torturantes d’Artistas, de
Sonhadores a quem o destino traçou uma estrada azul e infinita por onde os
nossos pés marcham ensanguentados, feridos nas estrelas!... (110-1)
13. CONCLUSÃO
Com efeito, o autor das Canções sem metro (1900) supera o paradigma da
transferência (Álvares falava em “ritmo de poesia em prosa”) pelo da fusão, elegendo a
descrição como tipologia predominante. Seus textos não se limitam a formatar em
parágrafos recursos provenientes do verso, pois os conjugam de tal modo à plasticidade
que a fanopeia e a melopeia não se tornam empecilhos à fluência discursiva, como se
Pompeia não refugasse parecer prosador em vez de poeta da prosa. Ritmo, imagens,
narração e descrição formam amálgama inextrincável, arrematado pelas reflexões críticas
e teóricas do autor. Essas características também se encontram, por exemplo, em O
Ateneu (1888), distinto das Canções sem metro por nelas sobressaírem o descritivismo e
a fragmentação. Além disso, conforme demonstrado no capítulo 4, Pompeia é o primeiro
a conferir cerrada unidade a um livro de poemas em prosa, já que Guimarães Júnior
timbrava por certa aleatoriedade na compilação. Tal rigor se espelha no extremado
burilamento do livro, sempre à procura da “eureka! da forma, depois da agonia do
trabalho e da tentativa ingrata” (Pompeia apud Coutinho, 1980: 666). Por último, mas
não menos importante, está a harmonia isomórfica das Canções sem metro, cuja forma
plural se coaduna ao endosso da multiplicidade natural, ratificando que o apego à
Natureza é denominador comum entre românticos e simbolistas.
Tropos e fantasias (1885), de Virgílio Várzea, e Blocos (1893), de Isaías de
Oliveira, trazem à baila vago mas prolífico conceito de fantasia: ancorada na imaginação,
conquanto pouco devota à peripécia, a fantasia sanciona o emblema da poetização da
narrativa, desobrigando-a, porém, das limitações métricas e rítmicas. Desse modo, os dois
livros, com diferentes rentabilidades estéticas, atestam a porosidade do poema em prosa,
essencialmente receptivo a outras formas breves (como o conto, a crônica e a novela)
com as quais passa a dividir livros e jornais. Tal escambo é digno de nota, pois será
decisivo na reconfiguração de vários gêneros literários no século XX: a crônica, por
exemplo, abandonará gradualmente o fait divers (França Júnior, Joaquim Manuel de
Macedo, Humberto de Campos) em favor da apreensão lírica do cotidiano (Manuel
Bandeira, Rubem Braga), mudança, a nosso ver, estimulada pela convivência com o
poema em prosa. Do mesmo modo, o conto deslocará a atenção do relato para a
experiência, do passado para o instante, do desfecho para o “final aberto” (Piglia, 2004:
111), da causalidade para a “estrutura em caleidoscópio” (idem).
A temática feminina, esboçada nesses dois livros, atinge o ápice nas mulheres santas
e/ou fatais de Missal (1893), cujas idiossincrasias formais e estéticas se potencializam em
291
em nosso país com Alberto Ramos e, logo em seguida, com Adalberto Guerra-Duval, no
livro Palavras que o vento leva...” (Ramos, 1979: 239).
O estudo pormenorizado do poema em prosa evidencia que a liberdade formal
comumente associada ao Modernismo estava já plantada no Simbolismo
(contemporâneo, lembremos, ao Modernismo hispano-americano), embora aquele
movimento a tenha disseminado e, em certa medida, oficializado: “Isoladamente, houve
verso livre antes do Modernismo, em pleno domínio dos simbolistas; como expressão
coletiva, só se imporia com o Modernismo” (ibidem, 238); “existiu verso livre no Brasil, e
definitivamente livre, antes do movimento modernista” (ibidem, 239). No Modernismo
conviverão o poema em prosa, explorado particularmente pela vanguarda surrealista e
pela Geração de 45, tão diferentes quanto tão rico é o gênero, e o verso livre, conquanto
este tenha agregado maior valor na cotação poética. Destaque-se, porém, que, no poema
em prosa modernista, há recuo da dicção crítica em favor da percepção lírica do
cotidiano (Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes), bem como o predomínio da livre
associação (Aníbal Machado, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Murilo Rubião) e da
propensão memorialística (Lêdo Ivo).
Ser uma das primeiras experiências da estética do fragmento, praticada até a arte
contemporânea9, bastaria para justificar o estudo do poema em prosa, mas nossa
pesquisa, visando promover a socialização de gênero pouco divulgado, oferece
perspectivas futuras de trabalho, tais como a reedição de obras importantes, a confecção
de antologia do poema em prosa no Brasil, a investigação da penetração do gênero em
periódicos, franqueando a oportunidade de posteriormente esquadrinharmos este
panorama em investidas menores, ao longo de nossa carreira acadêmica.
9
Na França, há Francis Ponge; em Portugal, Luís Miguel Nava, com O céu sob as
entranhas (1989); no Brasil, Exercício de ser criança (1999), de Manoel de Barros, os
Relâmpagos (2003), de Ferreira Gullar, este na linhagem do poema-ensaio, dentre outros.
295
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