Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
EID&A
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
ISSN 2237-6984
Editores
Eduardo Lopes Piris
Moisés Olímpio Ferreira
Editores
Eduardo Lopes Piris • Moisés Olímpio Ferreira
Comitê Científico
Ana Zandwais (UFRGS) • Anna Flora Brunelli (UNESP) • Carlos Piovezani (UFSCar) • Christian
Plantin (ICAR/CNRS) • Cristian Tileaga (U.Loughborough) • Eduardo Chagas Oliveira (UEFS) •
Emília Mendes Lopes (UFMG) • Eugenio Pagotti (UFS) • Fabiana Cristina Komesu (UNESP) • Galia
Yanoshevsky (U.Tel-Aviv) • Guylaine Martel (U. Laval) • Helena Nagamine Brandão (USP) • John
E. Richardson (U.Newcastle) • Lineide Salvador Mosca (USP) • Luciana Salazar Salgado (UFSCar) •
Luciano Novaes Vidon (UFES) • Manuel Alexandre Júnior (U.Lisboa) • Marc Angenot (U.MacGill) •
Maria Alejandra Vitale (UBA) • Marianne Doury (CNRS) • Marie-Anne Paveau (U.Paris XIII) •
Marisa Grigoletto (USP) • Ricardo Henrique Resende de Andrade (UFRB) • Rui Alexandre Grácio
(U.Nova de Lisboa) • Ruth Amossy (U.Tel-Aviv) • Ruth Wodak (U.Lancaster) • Sheila Vieira de
Camargo Grillo • Sírio Possenti (UNICAMP) • Sophie Moirand (U.Paris III) • Soraya Maria Romano
Pacifico (USP) • Valdemir Miotello (UFSCar) • Valdir Heitor Barzotto (USP) • Vânia Lúcia Menezes
Torga (UESC) • Viviane Cristina Vieira Sebba Ramalho (UnB) • Viviane de Melo Resende (UnB) •
Wander Emediato de Souza (UFMG) • William M. Keith (U.Wisconsin)
Tradutores
Inglês: Elaine Cristina Medeiros Frossard • Flávia Sílvia Machado • Kelly Cristina de Oliveira •
Laurenci Barros Esteves • Paulo Roberto Gonçalves Segundo
Francês: Carlos Albeto Magni • Flávia Sílvia Machado • Maria Helena Cruz Pistori • Moisés Olímpio
Ferreira • Silvana Gualdieri Quagliuolo Seabra
Espanhol: Cristina do Sacramento Cardôso de Freitas • Ludmila Scarano Coimbra
Revisores
Denise Gonzaga dos Santos Brito • Mirélia Ramos Bastos Marcelino • Moisés Olímpio Ferreira •
Roberto Santos de Carvalho
Capa e logotipo
Laurenci Barros Esteves
Diagramação
Eduardo Lopes Piris
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
Marc Angenot2
1
Referência do texto-fonte desta tradução: ANGENOT, Marc. Nouvelles propositions pour l’étude de l’argumentation
dans la vie sociale.Texte, n. 45/46: Carrefours de la Sociocritique, p. 47-66, 2009.
2
Docente da Universidade McGill, Canadá. E-mail: marc.angenot@mcgill.ca.
3
Marc Angenot foi convidado, em outubro de 2008, a pronunciar, na Université Libre de Bruxelles, a conferência de
abertura do colóquio “A argumentação no centro do Direito”, que ocorreu durante as jornadas organizadas pelo Centro
Perelman de Filosofia do Direito, com o objetivo de comemorar o quinquagésimo aniversário da publicação do Tratado
da argumentação: a Nova Retórica, de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (1958). A presente exposição
deriva daquela conferência, em que ele homenageou seu mestre, expondo sua própria concepção da retórica e do lugar
que ela retoma nas ciências humanas e formulando “novas proposições para o estudo da argumentação”.
4
N.T.: “apta a sugerir para muitas mentes uma associação das ideias de declamação vazia e de artifício desonesto”.
5
N.T.: No original: “la première des lycées”. A classe de première, na França, corresponde ao segundo dos três anos do
ensino médio brasileiro: seconde, première e terminale.
6
N.T.: “O discurso do presidente Bush foi longo em retórica e curto em substância”.
142
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
O descrédito moderno pareceria total se não do discurso sem a ver. Elas não possibilitaram
considerássemos que a reflexão sobre a identificar senão coisas desencarnadas que
argumentação pública e sobre o discurso chamavam, segundo o caso, de “ideias”, de
persuasivo não poderia verdadeiramente “pensamentos” e, para as pessoas e para as
desaparecer, que alguns dos grandes livros que massas, de “mentalidades”, de
falam dela, no século XIX, não são aqueles de “representações”, de “atitudes” (todos
retores e de autores de manuais, mas de conhecem esses conceitos irremediavelmente
homens políticos como Jeremy Behtham, cujo fluidos de historiadores recentes!), sem jamais
Book of Fallacies, de 1824, é um escrito ver, nem decifrar as palavras, as frases, as
penetrante, divertido e de interesse sempre figuras, os encadeamentos de proposições, de
atual, ou, ainda, de um filósofo e economista maneiras de sustentar uma opinião e
como John Stuart Mill, cujo System of Logic, comunicar – ou, de preferência, passando
de 1843, mantém ainda sua pertinência atual1. através deles como se, de fato, tudo fosse
A filosofia moderna, assegura-se, teria se transparente, sem problema e unívoco.
desviado da retórica. Isso seria verdadeiro se a
retórica não fosse concebida, por Nietzche, Chaïm Perelman e o “retorno” da retórica
como a própria essência da filosofia.
Nietzsche, que começa seu curso de ensino da Em 1958, com duas obras pioneiras, o
retórica em Bâle pela banal constatação de que Tratado da Argumentação, de Chaïm
“nos tempos modernos essa arte é objeto de Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, e Os usos
um desprezo geral”, vai, no entanto, colocar a do Argumento, de Stephen Toulmin e, ainda,
retórica no centro de sua reflexão filosófica. um pouco mais tarde, com o tratado de Charles
Sua Darstellung der antiken Rhetorik, que Hamblin (1970) sobre as Falácias, que
antecipa a nossa época, formula em uma buscava substituir uma antiga taxonomia dos
proposição-chave a reviravolta fecunda da sofismas por uma teoria moderna das falhas de
reflexão sobre a linguagem: “Não há raciocínio, tratado que terá uma grande
absolutamente naturalidade não-retórica na influência no mundo anglo-saxão, a retórica
linguagem”(NIETSZCHE, 1971). repentinamente retornou com força. O papel
de Chaïm Perelman foi decisivo nessa
reviravolta da situação no mundo francofone.
A argumentação na vida social Tanto Toulmin como Perelman queriam
Seja como for, a retórica, depois de um libertar a lógica, tirá-la da “pura” lógica
longo período desfavorável (mas não formal, levá-la para a argumentação ordinária.
integralmente), depois de um eclipse de quase Todos os dois queriam fazer da lógica,
dois séculos, retornou com força ao mesmo restabelecendo relações com a retórica, uma
tempo na filosofia, nas ciências sociais e nas ciência prática próxima da realidade social.
ciências da linguagem por volta da metade do Perelman rompe, então, com o positivismo
século XX. Nesse meio tempo, o estudo do lógico que lhe havia sido ensinado na
raciocínio tinha se tornado, entre os filósofos, juventude; ele se dirige a outra forma de
estritamente formal e quase algébrico. Quanto racionalidade que lhe parecia merecer toda a
às ciências sociais e históricas, elas passaram atenção filosófica, aquela do discurso
através do “arquivo”, através da materialidade ordinário, aquela do jurista, do político, do
ensaísta etc. Ele a chamava, diz Michel Meyer,
1
“o campo do razoável”, em oposição àquele do
A System of Logic, Ratiocinative and Inductive
racional (MEYER, 2004, p. 10).
(1843). Em francês: Système de logique deductive et
inductive: exposé des principes de la preuve et des
méthodes de recherche scientifique (1866).
143
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
144
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
colocar um fim à crise do sujeito e da razão da vida. O mundo do direito fixou, por um
que assombrou o século XX, crise essa que se labor secular altamente convencional, todos os
esgotou ao querer estabelecer, como elementos que estão ausentes das condições
fundamentos da abordagem filosófica, a correntes de discussão, de contendas e de
necessidade e a universalidade, ou ao arruinar litígios: um código de procedimento explícito,
esse fundamento “sucumbindo” (como se dizia uma lógica fundada sobre a coerência
antigamente nos manuais de filosofia) a um jurisprudencial, e instituiu alguém, o Juiz, que,
ceticismo sem fundamento (CARRILHO, por sua função, deve decantar do discurso da
1992). defesa o pathos para dele extrair o logos e
decidir entre duas argumentações
Retórica e pragmática argumentativa do contraditórias. Sei bem que o advogado assim
Direito como o juiz de nossos dias passam maior parte
do tempo em conciliações, em arbitragens, em
Neste contexto geral, eu me proponho a “acordos extrajudiciais”, do que na situação de
submeter – de maneira necessariamente tribunal a proferir ou a escutar defesas. Aquilo
sumária – uma série de proposições ou, de que eu quero destacar, contudo, é que existe,
preferência, de contraproposições em relação há um longo tempo, um tipo-ideal de
àquilo que se refere ao estudo da pragmática de tribunal e outro do tipo
argumentação e dos debates na vida social, particular de persuasão - que é a forma
particularmente na esfera pública. judiciária-, que contribuem para ofuscar, a se
Partirei de uma evidência talvez muito interpor na tela entre o analista e a observação
patente, muito bem conhecida por estar da argumentação corrente na vida social. Esse
aprofundada, já que ela deu origem a tipo normativo pôde, assim, incitar certos
consequências decisivas que, por vezes, têm analistas da vida pública a buscar normalizar e
apresentado efeito perverso: a teorização normatizar a argumentação corrente, enquanto
retórica - desde os longínquos tempos de faltou, sobretudo, escutar as disputas e os
Córax e Tísias, passando pelo eloquente intercâmbios de “razões”, buscar compreender
Cícero, pelos tratados clássicos do Abade as divergências de abordagem e os
Bretteville e de outros, até Chaïm Perelman intermináveis dissensus sobre as próprias
inclusive - foi tema tratado principalmente por pretensas normas. Os teóricos holandeses da
gente do direito, de pensadores do direito, pragmadialética de inspiração habermasiana se
gente para quem a lógica jurídica e a esforçam para fixar normas do debate como
argumentação do pretório – que são dois um conjunto finito, claro e distinto,
objetos – formavam os objetos centrais de sua indiscutível, apodítico2. Alguma coisa como
reflexão. Ora, a pragmática jurídica, tanto a direitos e deveres dos argumentadores que se
antiga como a de hoje, sob sua forma ideal e restabeleceriam da evidência. Meu sentimento,
típica, não é diferente, mas exatamente o como se verá, é completamente contrário:
oposto da pragmática ordinária da discussão. penso que tais normas são quiméricas.
Ela constitui, desde a Antiguidade, um Ora, nós sabemos que Perelman, que
“superego” social cujos procedimentos deveríamos reconhecer talvez, antes de tudo,
regrados e as ficções persuasivas contrastam como um grande filósofo da justiça e do
com as vias tortuosas, os mal-entendidos e os
fracassos frequentes da argumentação 2
van EEMEREN, F; HOUTLOSSER, P.; GERRITSEN,
“ordinária”, um tipo de superego dialético S.; GARSSEN, B.; van REES, A.; FETERIS, E. T.
ideal que contradiz, em todos os pontos, a (2001); van EEMEREN, F; GROOTENDORST, R.;
prática humana nas circunstâncias ordinárias KRUIGER, T. (1987); van EEMEREN, F;
GROOTENDORST, R. (1992)
145
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
direito, contribuiu também para extrair a – isso se ele não quiser que a disputa se torne
letargia dessa lógica jurídica à qual ele um cataclismo conjugal.
consagrou um livro não menos constantemente
Tomemos ainda o caso do campo filosófico
reeditado, Logique Juridique, publicado pela
e da intrusão de um não-filósofo. Digamos de
Dalloz3. Ele mostra que existe um arsenal de
início: o discurso filosófico se ergue em bloco
raciocínios específicos para o jurista,
e em detalhe na persuasão, quaisquer que
bricolagem secular comportando muitas
sejam as pretensões de certos filósofos a
convenções e fundada sobre axiomas-ficções
“demonstrar”; filosofar é argumentar4. No
dos quais tudo que se pode dizer é que são entanto, acontece que, da mesma forma como
sustentados por “boas razões”, isto é, que há uma idiossincrasia retórico-jurídica, existe
assentam no razoável, mas não certamente no
uma retórica filosófica muito particular que se
racional (por exemplo, que a lei é clara, que opõe ao incompetente que está de fora, de
ela não é contraditória, que tudo que pode
fortes regras internas fixadas por séculos de
acontecer no mundo sublunar está previsto em
raciocínio e de disputas intermináveis entre
lei etc.). Chaïm Perelman, apaixonado pela
filósofos. (Nós o sabemos; os filósofos são
justiça, amava o espírito procedimental do suscetíveis de se apegar às suas posições
direito, o que não é uma crítica negativa. Ele durante muito mais tempo e mais
buscou, por exemplo, justificar as convenções obstinadamente do que a média da
do raciocínio jurídico, do raciocínio humanidade). Se mesmo eu, um simples
jurisprudencial, com seus “precedentes” (tipo mortal, pretendo refutar Leibniz, “tudo
de raciocínio que seria absolutamente excluído acontece para o melhor no melhor dos mundos
da ciência e seria julgado sempre frágil na vida possíveis”, invocando as guerras, os
cotidiana). genocídios e as fomes, mostro somente que
não sou filósofo e que eu faria melhor me
Campos argumentativos e idiossincrasias calando. O não-filósofo achará divertido, se
Lembro aqui outra evidência com vistas a assim o quiser, que “fatos” jamais consigam
buscar e chegar a proposições heurísticas: a vir a perturbar a serenidade dos sistemas
razão, a racionalidade, é considerada a coisa filosóficos, mas é uma constatação: só se pode
mais bem compartilhada no mundo, mas contestar um sistema filosófico do interior, e
nossas táticas e nossas práticas de raciocínio os filósofos ao ficar na defensiva sempre
variam segundo os campos em que operamos. evitam invocar dados extraídos do mundo
A partir daí, nós mudamos no decorrer de um empírico. Então, me diriam vocês, a filosofia é
mesmo dia sem que nem mesmo nos uma logomaquia solipsística? Duas palavras
apercebamos disso. Qualquer um que observe pomposas e empoladas para sugerir que ela faz
um campo de práticas do exterior de suas ver seu tipo de singularidade retórica pela
convenções argumentativas fica regra da exclusão argumentativa que nela
inevitavelmente chocado com os tipos de prevalece.
raciocínios extravagantes que não lhe viriam à Há várias outras regras próprias da
mente. E qualquer um que saia de seu campo discussão dos filósofos, de modo algum
profissional muda inconscientemente de tática defensáveis em si mesmas, mas que não são
lógica: um jurista, que discute com sua aplicáveis ao mundo ordinário em razão de seu
mulher, não estaria bem inspirado se utilizasse
argumentos tipicamente jurídicos, como se 4
É o que diz Daniel Cohen (2004, p. 25). Argumentar
aventurou a utilizá-los no mesmo dia na Corte
cortesmente em princípio, mas há em todo filósofo um
guerreiro erístico desde o momento em que se sente
3
N.T.: No Brasil, pela Martins Fontes. “atacado”.
146
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
custo excessivo: a épochè cética e a dúvida Logique des sentiments, Ribot que
cartesiana, aplicadas a uma discussão política, precisamente desconfiava da lógica dos
irritariam rapidamente e com razão. A lógicos e das retóricas normativas e apathique.
regressio ad infinitum, a objeção por meio da “Lendo os tratados de lógica”, ele observava,
regressão ao infinito (que remonta a Platão), “pareceria que o raciocínio regular, exceto a
não prova nada se invocada nas discussões no contradição, é inerente ao homem; que as
restaurante Café do Comércio. formas viciosas não adaptadas só se produzem
como desvio ou anomalia. É uma hipótese sem
Ora, é o mesmo no direito – não quando
fundamento” (RIBOT, 1904, p. viii). As
abordado em si e do interior, mas em relação
ao mundo extrajurídico; o observador exterior motivações de pathos, as “verdades do
sentimento”, não formam uma categoria à
ficará, por exemplo, chocado pelo
encerramento do raciocínio na positividade da parte; elas não formam uma categoria isolada e
suspeita, não são separáveis dos esquemas
lei. Os juristas ingleses (extraio essa
observação de um manual de lógica jurídica cognitivos e das cadeias de raciocínio que
sempre, fora do puro espírito de geometria e
britânica) lembram que o Juiz chefe
da pura lógica jurídica, tiveram uma dimensão
(presidente da Corte), em Hale, em 1676,
afetiva. A “lógica dos sentimentos”,
formulou doutamente um raciocínio
memorável que nos faz sorrir estridentemente inseparável da lógica dos interesses na vida
(já que o jurista raciocina sempre social e, a partir disso, para a análise histórica
perfeitamente como ele). Esse raciocínio tirava e sociológica, é toda a lógica.
conclusão do pressuposto da existência legal Persuadir psico-logicamente ou convencer
“É bem necessário que haja feiticeiras, já que racionalmente; essa alternativa é forçada e não
existem leis contra elas”5. arbitrável. No entanto, ela atravessa com
suspeição toda a história da retórica. Pascal
Descartando o pathos testemunha uma ambivalência clássica que se
combina com a censura moral. “Deveríamos
Sublinhamos este fato impressionante: admitir tão-somente as verdades
filósofo da retórica, Chaïm Perelman, demonstradas”, ele coloca, mas acrescenta:
simplesmente descartou o pathos e o raciocínio “[...] já que os homens são quase sempre
emotivo sobre o qual nenhum levados a crer não pela prova, mas pelo
desenvolvimento extenso se encontra em seu consentimento”. De modo que a arte de
famoso tratado. É nesse ponto que ele mais se persuadir “consiste tanto em consentir quanto
distancia desse espírito concreto e prático que em convencer”. Ele constata isso, mas ao
foi Aristóteles. Perelman amava e sentia mesmo tempo o censura, porque ninguém o
justificada - mas isso apenas pode ser em sua admite verdadeiramente: “Esse ponto de vista
própria esfera - a ficção jurídica que afirma é baixo, indigno e estrangeiro, tanto que todo
que o Juiz deve reprimir suas paixões e seus mundo o desaprova. Cada um confessa crer e
interesses assim como lhe cabe ignorar as mesmo amar apenas aquilo que ele sabe que é
paixões das partes. merecedor” (PASCAL, 1864).
Se, ao contrário, quisermos encontrar o que Em suma, a situação de Tribunal é, na vida
seria o enfoque adequado para observar e social, diametralmente oposta à maneira como
analisar o discurso social, proponho exumar o as coisas se passam na vida ordinária, já que é
pensamento de um filósofo esquecido da Belle integralmente convencional. Ela contradiz em
Époque, Théodule Ribot, autor de uma sutil todos os pontos o curso ordinário das trocas,
frequentemente desagradáveis e frustrantes, de
5
Frase posta em destaque por H. Palmer (1985).
147
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
supostas “boas razões” que se produzem fora regra, eu penso – de um espanto frente a essa
de seu quadro. A pragmática do tribunal faz definição rotineiramente recebida, mesmo
com que o universo jurídico pareça não apenas sendo evidentemente insustentável. Nós lhe
como diferente do modo como as coisas se oporemos algumas objeções elementares: os
passam, do debate ideológico à querela homens argumentam constantemente,
doméstica, e desta, à polêmica filosófica ou naturalmente, e em todas as circunstâncias,
teológica, mas também como a exata mas é evidente que eles se persuadem bem
contraface desse modo, sempre lamentável e pouco reciprocamente e, sobretudo, raramente:
inconclusivo, em que se desenvolvem os do debate político à querela doméstica, e desta
esforços de persuasão nos diferentes mundos à polêmica filosófica, em todo caso é a
extrajurídicos. impressão constante que temos, supondo que
vocês são como eu. Essa constatação coloca
Contraproposições uma questão impeditiva a esta ciência secular
da retórica: não podemos construir uma
Eu me limitarei a esquematizar algumas ciência partindo de uma eficácia ideal, a
proposições que acredito fundamentais para persuasão, que se apresenta somente de modo
abordar a discussão argumentada e os debates excepcional.
de ideias na vida pública. Acabo de publicar
um tratado de retórica que intitulei Dialogues Quando os “sujeitos falantes” se engajam
de sourds (ANGENOT, 2008). Essa obra, em numa situação de comunicação, eles buscam
sua problemática, seus conceitos e seus alcançar seu objetivo – que é o de comunicar.
métodos, toma sistematicamente o contrapé do Mas quando as pessoas, mais especificamente,
que se tem escrito, desde sempre, em matéria se colocam a argumentar, o que é uma
de discurso argumentado. Considero, a título subcategoria maior da comunicação, a
de observador do discurso social, de transmissão da “mensagem” raramente passa
historiador das ideias que observa, na vida e na bem: elas descobrem muito rapidamente que a
história moderna, a troca caótica de “razões”, parte adversa não apenas não conclui da
de convicções e de opiniões, e os debates e as mesma maneira que elas e fica estranhamente
disputas, que as categorias admitidas e o inacessível às provas a que são submetidas,
quadro geral secular do que se designa como mas que ela raciocina, por sua vez, de través,
“retórica” são inadequados; que, para analisar ou não respeita certas regras fundamentais que
o discurso social, convém, em relação à maior tornam o debate possível. Temos, então, a
parte dos temas, levar em consideração o impressão – isso forma a grande questão que
contrapé, e que é necessário também introduzir pretendo aprofundar – de que, quando a
um número de noções e de abordagens que os persuasão falha, quando o debate se torna um
manuais ignoram. diálogo de surdos, isso não se deve unicamente
ao conteúdo dos argumentos, mas à maneira
Meu tratado elabora, contrariamente à de tomá-los, ao modo de proceder e de seguir
tradição, uma retórica dos mal-entendidos em as regras da “lógica”.
torno da hipótese em que aprofundo rupturas
cognitivas e argumentativas reparáveis na Meu objeto não é o simples desacordo. Eu
doxa (como dizia Aristóteles), nos discursos me detenho não nos casos em que os
da esfera pública. Os manuais definem interlocutores permanecem em desacordo,
classicamente, em quatro palavras, a retórica tudo bem ponderado, sobre uma proposição
como “a arte de persuadir”; tal definição se dada, mas naqueles em que não se pode aceitar
aceita apenas se não nos detivermos nela. a maneira adversa de sustentar sua tese, em
Dialogues de sourds parte – como é de boa que não se consegue seguir o fio da
148
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
149
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
regras não forem as mesmas em toda parte e discursos como fatos históricos, variáveis pela
não se impuserem a todo mundo. Ora, todas as natureza das coisas. A retórica forma parte
normas argumentativas que encontramos nos essencial deles, central. De fato, nada é mais
tratados e nos manuais são e foram, em todos específico aos estados de sociedade e aos
os tempos, submetidas à discussão; elas são grupos sociais em conflito do que o
válidas para uns, mas não para outros – o que argumentável que neles predomina. É
não impede os humanos de discutir, mesmo particularmente revelador para o estudo das
que jamais estejam perfeitamente de acordo sociedades, de suas contradições e de sua
sobre elas, mas que torna vã a vontade de fixar evolução, estudar as formas do dizível e do
normativamente ou de não trair senão um tipo persuasível, os gêneros e os topoi que nelas se
de angústia pedagógica frente à confusão legitimam, nelas circulam, concorrem,
irredutível da dialética. Nenhum argumento emergem ou se marginalizam e desaparecem.
dialético, nem mesmo aqueles que Chaïm O retórico, como analista do discurso, deve se
Perelman classificava como “quase-lógicos”, é fazer, a esse respeito, ao mesmo tempo, de
logicamente rigoroso, nem necessário em suas historiador e sociólogo – com seus objetos e
conclusões, nem aplicável em todas as abordagens particulares, próximos, contudo,
circunstâncias. Nós nos contentaremos, daqueles do historiador de ideias, do sociólogo
discutindo e debatendo, em articular o de opinião, de crenças, do crítico das
provável ao provável, não porque amemos ideologias políticas, do politicólogo. Aquilo
ficar na dúvida, mas porque pensamos que que se diz e que se escreve não é jamais
raciocínios imperfeitos e a dúvida parcial aleatório nem “inocente”. Um conflito
valem mais que a escuridão total. doméstico tem suas regras e seus papéis, sua
Proponho, como tarefa primordial da tópica, sua retórica, sua pragmática, e essas
regras não são aquelas, com certeza, de uma
retórica renovada, o estudo das divergências
das maneiras de raciocinar e das rupturas pastoral episcopal, de um editorial da imprensa
financeira ou da profissão de fé de um
argumentativas em toda a sua diversidade. Isso
não é uma questão especulativa, mas um candidato a deputado. De tais regras não
derivam o código linguístico. Elas formam um
problema empírico que reclama uma multidão
de estudos de terreno e de avaliações concretas objeto particular, autônomo, essencial ao
estudo do homem em sociedade. Esse objeto é
dos desvios e dos graus de mal-entendidos. A
a maneira pela qual as sociedades se conhecem
meu ver, pertence à retórica objetivar e
falando e escrevendo, a maneira pela qual, em
interpretar as heterogeneidades “de mente” e
uma conjuntura dada, o homem-em-sociedade
os diálogos de surdos constatados, caracterizar
narra e argumenta a respeito de si mesmo.
e classificar as lógicas divergentes que
subentendem as assim chamadas ideologias. Falta conceber uma história retórica; ela
seria o estudo da variação histórica e cultural,
Acabar com as retóricas intemporais da historicidade dos tipos de argumentação,
dos meios de prova, dos métodos de
As rupturas, a que me refiro, são ainda mais persuasão. Essa história do persuasível não foi
patentes quando abordamos uma nem mesmo esboçada, mas existem migalhas
argumentação com o recuo do tempo, mesmo dela aqui e lá. Eu me referirei a um pequeno
que, às vezes, esse recuo seja muito breve. Os livro sobre a variação histórica do razoável e
tratados de retórica intemporais tiveram sua daquilo que o autor, historiador da
época. O objeto de pesquisa a que me dedico Antiguidade, discípulo e amigo de Michel
ao longo dos anos é o estudo dos discursos que Foucault, chama de “programas de verdade”:
se cruzam num estado de sociedade, dos falo do ensaio de Paul Veyne, Les Grecs ont-
150
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
151
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
152
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
tudo, que tenham sido necessários vinte “mídias”, mas também à literatura e às
séculos para que ele se tornasse persuasivo. ciências como dignos de meditação e de
exame. A hegemonia se apresenta aqui como
Retórica e análise do discurso social uma temática, com os saberes vulgares e os
saberes de aparato, os “problemas”
Proponho deter-me aqui, tendo traçado um parcialmente pré-construídos, os interesses
programa elementar e delimitado uma ligados aos objetos, cuja existência e a
axiomática. Esse programa não é isolável de consistência não parecem levantar dúvida até o
uma teorização do discurso social7, repertório momento em que todo o mundo trate deles.
do tematizável e do provável num estado de Tocamos aqui naquilo que é o mais perceptível
sociedade, e repertório das regras válidas de numa conjuntura, naquilo que espanta ou
inferência. O discurso social de uma época aborrece mais o leitor de outro país ou de outra
comporta temas recorrentes, “temas época: de todos esses “objetos” que
obrigatórios”, como se diz no liceu, sobre os nomeamos, que valorizamos, que descrevemos
quais todo mundo - os intelectuais, e comentamos, quantos não aparecem mais
principalmente - se debruça, como as ideias da como objetos conhecíveis, mas, com o recuo
moda, os lugares-comuns, os efeitos de do tempo, são reduzidos ao estatuto de
evidência e tudo que é “normal”. Todo debate “abolidos e inúteis bibelôs sonoros”. Para
público, por mais ásperos que sejam os aquele que está imerso no discurso de sua
desacordos, supõe um acordo prévio sobre o época, as árvores escondem a floresta. Quando
fato de que o tema “existe”, que ele “merece” se assiste aos debates encarniçados na política,
ser debatido, que um denominador comum aos confrontos estéticos antipáticos uns aos
serve de base para as polêmicas. Régis Debray outros, quando se percebe as especializações e
lembra isso muito justamente: as especificidades, os talentos e as opiniões, a
pressão da hegemonia permanece escondida.
Não há necessidade de esposar as mesmas
ideias para respirar o mesmo ar. É Aquilo que está escondido é o sistema
suficiente que concordemos em torno disto subjacente e é necessário que esse sistema seja
ou daquilo como real: o que é digno de ser calado para que os discursos tenham seus
debatido. É por meio dessa escolha prévia, encantos e sua credibilidade.
tão espontânea quanto inconsciente, que se
opera o essencial, a divisão entre o que é
decisivo e o que é acessório (DEBRAY, Referências
2000, p. 82). AMOSSY, R. L’Argumentation dans le
discours, discours politique, littérature d’idées,
Aquilo que chamamos de “cultura” fiction. Paris: Nathan, 2000
compõe-se de senhas e de assuntos que se
põem, de temas sobre os quais há espaço para ________. L’image de soi dans le discours: la
dissertar, sobre os quais é necessário se construction de l’ethos. Lausanne: Delachaux &
informar e que se oferecem não somente às Niestlé, 1999.
153
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
154
ANGENOT, Marc. Novas proposições para o estudo da argumentação na vida social. Tradução de Maria Helena Cruz
Pistori. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.3, p. 142-155, nov. 2012.
155