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Brasil

Paulo Roberto de Almeida


Contribuição à obra: Brics e a Nova Ordem Internacional
(Jorge Tavares da Silva (coord.)
(Aveiro: Caleidoscópio-Mare Liberum, 2015,
p. 71-115; ISBN: 978-989-658-279-1).

Sumário:
1. O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar
2. O sistema político brasileiro e sua posição na geopolítica mundial
3. Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional
4. A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil
5. A política externa brasileira desde 2003 e sua atuação no âmbito do Brics
6. Conclusões: o que busca o Brasil nos Brics?; o que deveria, talvez, buscar?

Lista sequencial das tabelas e ilustrações:


Figura 1: A primeira divisão do mundo entre portugueses e espanhóis, 1493, 1494
Figura 2: A linha de Tordesilhas e o alargamento posterior do Brasil
Quadro 1: Constituições e regimes políticos no Brasil, 1824-2014
Tabela 1: Indicadores econômicos em duas fases do regime militar, 1970-1984
Tabela 2: Indicadores econômicos nos governos FHC: 1995-2002
Tabela 3: Indicadores econômicos nos governos Lula: 2003-2010
Tabela 4: Indicadores econômicos agregados para as presidências FHC e Lula
Tabela 5: Indicadores econômicos do governo Dilma Rousseff: 2011-2014
Figura 3: Brasil: taxas de crescimento médio anual cumulativo, 1995-2013
Quadro 2: Quadro SWOT para o Brasil
Tabela 6: Resultados do PISA 2012 para os países do Brics incluídos na avaliação
Tabela 7: Brics: receitas públicas em % do PIB, 2013
Quadro 3: Doing Business, 2013, países e indicadores selecionados
Quadro 4: Índice de Competitividade Global, 2014, países selecionados
Tabela 8: Poupança nos Brics, 2013
Figura 4: Índice de preços de todas as commodities, 2000-2014 (excluindo o petróleo)

Paulo Roberto de Almeida (São Paulo, 1949) é Doutor em Ciências Sociais (Université Libre
de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), e
diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de
Brasília, diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é
professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em
Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Como diplomata, serviu em diversos
postos no exterior e na Secretaria de Estado. É editor adjunto da Revista Brasileira de Política
Internacional e participa dos comitês editoriais de diversas publicações acadêmicas.
Seleção de livros publicados: Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa
brasileira em tempos não convencionais (2014); Integração Regional: uma introdução (2013)
Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da
globalização (2012); Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas
internacionais no Império (2001; 2005); Blog : http://diplomatizzando.blogspot.com/; Site:
www.pralmeida.org.

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1. O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar
Do ponto de vista do território e de sua população, em termos absolutos, o Brasil
se situa entre os cinco ou seis maiores espaços e demografias do mundo, e entre as dez
primeiras economias, pelo volume absoluto do seu PIB, elementos que constituíram,
justamente, as justificativas para sua inclusão no conceito original do Bric. Os
contrastes entre os membros inaugurais do Bric são, entretanto, notáveis: com 17
milhões de km2, a Rússia representa quase a metade do território global do grupo,
sendo que a China (9,3 milhões de km2) e o Brasil (com 8,5) praticamente se
equivalem. A Índia, por sua vez, parece pequena (dispondo de apenas 3,2 milhões de
km2) para abrigar a segunda maior população do mundo, terreno no qual o cenário se
inverte. Com efeito, China e Índia representam dois quintos da população mundial,
sendo que o país da Ásia do Sul deverá superar o seu vizinho do norte dentro de mais
alguns anos. A Rússia, por sua vez, exibe uma demografia declinante, o que pode
comprometer o seu futuro econômico de médio prazo. A África do Sul, integrada
posteriormente ao Brics, apresenta território e população bem mais modestos.
Em termos relativos, o Brasil representa quase a metade do território da América
do Sul e quase um terço de sua população total, perfazendo fronteiras com quase todos
os seus vizinhos, à exceção do Chile, transandino, e do Equador, transandino e
amazônico; com este último país, curiosamente, o Brasil chegou a negociar um tratado
preliminar de fronteiras, no início do século XX, uma vez que os limites amazônicos do
Equador ainda não tinham sido amputados pelos seus vizinhos maiores, a Colômbia e o
Peru, neste segundo caso motivo de uma disputa territorial que por duas vezes levou a
disputas armadas que foram justamente intermediadas pacificamente com a colaboração
do Brasil. Historicamente, o território brasileiro foi sendo ampliado significativamente,
ao longo do período colonial, pelas incursões de exploradores portugueses em várias
direções do imenso hinterland da América do Sul, em contraste com o porção bastante
diminuta de território atlântico que tinha sido atribuída ao reino de Portugal pelo
Tratado de Tordesilhas (1494), negociado com o reino da Espanha ainda antes do seu
descobrimento oficial (1500), ainda assim bem mais favorável, no sentido da longitude,
do que a divisão papal das novas descobertas que tinha sido feita pelo Papa Alexandre
VI, um ano antes do tratado, através da bula Inter Coetera. O mapa histórico abaixo
informa sobre onde passavam essas duas divisões preliminares do território brasileiro.

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Figura 1
A primeira divisão do mundo entre portugueses e espanhóis, 1493, 1494

Fonte: Google images; documento: Tratado de Tordesilhas/Etno (acesso: 20/07/2014)

O alargamento do território brasileiro, ainda durante o período colonial, foi o


fruto de uma circunstância histórica muito específica, ligada à ausência de um sucessor
dinástico na própria coroa portuguesa e à incorporação do pequeno território da
metrópole e de todas as suas colônias ao reino espanhol, e ao fato de que, durante toda a
duração da unidade dos dois reinos (de 1580 a 1640), aventureiros portugueses se
lançaram a devassar as imensas terras a oeste da linha de Tordesilhas, uma vez que esta
teria perdido, hipoteticamente, validade legal em face dessa circunstância. Depois da
reconstituição da autonomia portuguesa, sob nova dinastia, os portugueses mantiveram
as suas conquistas, fazendo-as se consolidar pelo tratado de Madrid (1750) que, a
despeito de mudanças subsequentes, manteve grosso modo as aquisições portuguesas
sobre a base do princípio do uti possidetis, utilizado largamente nas negociações
sucessivas com os vizinhos resultantes do desmembramento do império espanhol da
América do Sul; o mapa seguinte informa sobre a pequena dimensão do Brasil, caso
fosse mantida a linha divisória do tratado bilateral de 1494 e seus contornos quase
efetivos a partir de 1750 e projetados na modernidade

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Figura 2
A linha de Tordesilhas e o alargamento posterior do Brasil

Fonte: Google images; documento: Sueli/Tratado de


Tordesilha[sic]/profsu.pbworks.com (acesso: 20/07/2014)

O Brasil chegou à modernidade de sua história política tendo negociado


pacificamente todas as suas fronteiras com os seus vizinhos, sendo que a única guerra
importante de sua fase monárquica independente foi provocada pelo ditador Solano
Lopez, do Paraguai, de 1865 a 1870, como resultado de dissensões políticas ligadas ao
equilíbrio de poderes no Prata. Desde então ele nunca mais se envolveu em conflitos
com os vizinhos, por motivos territoriais ou outros, podendo se considerar um Estado
satisfeito com a sua geografia e a sua diplomacia.
Espaço e população sempre foram dois fatores relevantes na projeção mundial
de poder, desde que secundados por recursos mobilizáveis e tecnologias adequadas para
a exploração desses fatores primários de poder. Dos quatro países originais do Bric, o
Brasil parece ser o que apresenta a melhor relação, comparativamente aos outros três,
entre volume efetivo de recursos naturais (embora ainda pouco explorados) e uma oferta
potencial de alimentos e de energia capaz de, no futuro, pesar significativamente no
plano mundial, a despeito de deficiências tecnológicas ainda visíveis para a plena
mobilização desses recursos para fins produtivos. Esses dois fatores são, justamente, os
elementos primários do poderio econômico potencial, sem que eles sejam, no entanto,
determinantes; o que faz realmente a diferença é a qualidade do capital humano, como
se pode perceber no caso do Japão, país de reduzidíssimo território disponível para fins

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produtivos e de população comparativamente menor, em face de outros membros do
Bric, mas que todavia foi, durante muitos anos, a segunda potência econômica mundial.
O Brasil e a República Popular da China sempre foram países de enormes
dimensões, dispondo igualmente de vastos recursos naturais; ambos, contudo, exibiam
populações paupérrimas até algumas décadas atrás, sem contar significativamente na
escala mundial de poderio econômico. A China, que até o final do século XVIII,
representava a primeira economia planetária – pelo menos em termos brutos – só
deslanchou verdadeiramente a partir dos anos 1990, quando as reformas econômicas
empreendidas por Deng Xiao-ping começaram a dar frutos, depois de mais de uma
década de reformas econômicas iniciadas pela agricultura – desmantelamento das
unidades coletivas, e retorno às propriedades privadas de base familiar, com a
possibilidade de venda livre nos mercados das colheitas – e prolongadas nas zonas
econômicas especiais, depois com abertura mais ampla aos investimentos estrangeiros.
O Brasil, por sua vez, conseguiu consolidar seu processo de industrialização e
preparou as bases da modernização de sua agricultura ainda nos anos 1970, o que lhe
permitiu dar um salto considerável em termos de PIB, passando a ocupar os primeiros
postos da economia mundial, ainda que a renda per capita tenha acompanhado muito
lentamente esse avanço no produto total, em virtude da uma taxa igualmente vigorosa
de sua natalidade. Desde então, ele oscilou entre as primeiras dez ou quinze posições
mundiais pela importância do PIB, dependendo de suas taxas de crescimento e do valor
nominal do câmbio. Em termos de paridade de poder de compra – índice que leva em
conta o custo real de fatores para cada uma das economias nacionais – o Brasil se situa,
ao início da segunda década do século XXI, entre o 6o e o 8o lugar mundial no que se
refere ao PIB (muito embora a paridade cambial possa influenciar a posição exata).
Como elemento distintivo para sua importância futura na ordem econômica
mundial, relatórios prospectivos de agências multilaterais – como a FAO, por exemplo
– ou de organismos regionais – entre eles a OCDE – colocam o Brasil como um dos
países mais capazes, junto com os Estados Unidos, de aumentar a oferta alimentar (em
grãos, lácteos ou carnes, entre vários outros produtos), num contexto de aumento ainda
relativamente importante da população mundial. Os dois países do hemisfério ocidental
serão responsáveis por quase a metade, ou por pelo menos dois quintos, da oferta
alimentar suplementar destinada aos 2 bilhões de habitantes adicionais que o planeta
deve ainda abrigar até meados deste século; os dados para a energia – e aqui depende da
composição futura da matriz energética mundial – são menos claros a este respeito, mas
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ambos os países, igualmente, prometem manter uma base diversificada em suas
respectivas matrizes nacionais, com grandes chances de impactar positivamente a matriz
energética mundial (Almeida, 2014). Os Estados Unidos estão em meio a uma pequena
revolução no que concerne os combustíveis fósseis – petróleo de xisto, gás – ao passo
que o Brasil tem grandes chances na produção de petróleo off shore – a grande
província petrolífera do pré-sal – e também nos renováveis (etanol e biodiesel).
Por vezes, mais importantes do que os números absolutos – de território, de
população ou de recursos – são as dinâmicas respectivas de cada país no que se refere a
tendências estruturais de suas formações sociais ou sistemas econômicos. A China, por
exemplo, praticamente não mais dispõe de terras agricultáveis, e as disponíveis, na
atualidade, enfrentam sérios problemas de erosão e de ressecamento, devido a uma
gestão irresponsável dos recursos hídricos no passado. A Rússia, na sua conformação
pós-soviética, perdeu, justamente, grande parte das terras agricultáveis, concentradas
nas planícies da Ucrânia e da Bielo-Rússia. A Índia tem menor disponibilidade de
terras, mas os problemas principais parecem derivar de uma população rural pouco
dotada, socialmente falando, de capacitação técnica e de capitalização suficientes para
modernizar o setor primário da economia em bases intensamente capitalistas.
O Brasil, desse ponto de vista, é um privilegiado como poucos outros países no
planeta, pois a disponibilidade de água – fator relevante num futuro de médio prazo – é
uma das maiores do mundo, ainda que a taxa de desperdício (na origem e no tratamento
ulterior) e uma gestão igualmente incompetente das fontes possam comprometer uma
boa parte desses recursos hídricos; água e espaços agricultáveis não devem faltar ao
Brasil no futuro previsível. A modernização tecnológica da agricultura começou a ser
feita nos anos 1980, e pode beneficiar-se, tanto de ganhos de escala quanto da redução
da intervenção governamental nos mecanismos de formação de preços, o que estimulou
tremendamente o setor a partir dos anos 1990.
Na sua dimensão espacial, a ocupação de terras empregadas na agricultura e na
pecuária, atualmente, representa apenas um quinto do que ainda pode ser incorporado às
atividades primárias (excluindo-se totalmente a Amazônia desse tipo de contabilidade).
A disponibilidade de terras no Brasil não é apenas extensiva, pois é razoável esperar que
a produtividade da agricultura continue a crescer significativamente, a partir de aportes
tecnológicos e de ganhos de produtividade, inclusive empurrada pela própria demanda
mundial; na pecuária será possível aumentar substancialmente a oferta de carne sem
expandir proporcionalmente a ocupação de novos espaços de superfície, apenas pelo
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adensamento dos rebanhos de todos os tipos de herbívoros e melhorando as rações
destes e de todas demais espécies animais. Para todos os efeitos práticos, e mesmo
independentemente da qualidade de suas políticas econômicas, o Brasil continuará
sendo um grande ofertante de excedentes alimentares, devido à pujança já adquirida
pela sua agricultura capitalista. No terreno das energias, sua capacidade de influenciar a
futura matriz mundial – cuja conformação pode ainda sofrer alterações sensíveis, em
função tanto da composição dos recursos naturais quanto das inovações tecnológicas –
dependerá bem mais das políticas econômicas do que propriamente da disponibilidade
de recursos naturais, que parecem existir potencialmente, tanto do lado dos fósseis,
quanto pelo lado dos renováveis (com ênfase mais na biomassa do que propriamente na
eólica ou solar). A política energética brasileira, nas últimas décadas, tem sido moldada
muito mais em função de uma grande estatal – a Petrobras – do que propriamente pelas
forças de mercado, que costumam ser contrariadas por políticas econômicas de índole
nacionalista e de corte estatizante (inclusive na geração de energia elétrica).
Ressalvadas, portanto, as incertezas ainda pendentes na área energética, o Brasil
já faz, e continuará fazendo, uma enorme diferença na oferta alimentar mundial, com
base numa diversidade de possibilidades naturais e de origem tecnológica que poucos
países podem exibir. Os EUA, por exemplo, o outro grande fornecedor mundial de
alimentos, já não dispõem, como o Brasil, de fronteiras agrícolas a serem incorporadas à
sua atual base produtiva espacial, devendo a oferta adicional de alimentos depender de
ganhos de produtividade. A Índia, por sua vez, ainda não empreendeu, de verdade, uma
necessária revolução agrícola – ou seja, a da capitalização e a da concentração de terras
– tarefa que é dificultada pela existência de algumas centenas de milhões de
camponeses pobres e da baixa disposição de suas elites políticas em dar início a essa
radical transformação da paisagem humana e econômica daquele imenso subcontinente.
A China, como já referido, deverá depender cada vez mais da importação de
energia e de alimentos, tanto para a sua população, quanto para os seus rebanhos
(sobretudo o porcino e o aviário). A Rússia, finalmente, não parece estar em condições
de aumentar sua oferta agrícola, tanto por razões demográficas quanto climáticas,
embora transformações com base em adaptações movidas a incrementos tecnológicos
sempre sejam possíveis, desde que ela se liberte da extrema dependência atual em
recursos fósseis (petróleo e gás) e em minérios. China e Índia, ainda que em proporções
diversas, continuarão a depender de fontes altamente poluentes de energia – fósseis,
portanto, mas carvão de baixa qualidade, por exemplo – e por isso um esforço especial
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de desenvolvimento de fontes renováveis é extremamente importante para ambas, o que
a China já vem empreendendo com algum sucesso no plano tecnológico. O Brasil
também poderá aumentar de modo relativamente satisfatório sua oferta total de energia,
tanto a de origem fóssil (petróleo e gás), quanto a proveniente da biomassa, mas tudo
depende de políticas econômicas adequadas nesses dois terrenos, o que não foi o caso
registrado na última década e meia, quando vários erros foram cometidos em ambas as
frentes. Mas, como para os alimentos, as possibilidades de desenvolvimento energético
são promissoras, à condição que as políticas setoriais corretas e um grau ampliado de
inovação tecnológica estejam presentes nos anos à frente.
A dinâmica demográfica do Brasil foi positiva até aqui, embora nem tudo esteja
caminhando de maneira adequada na atualidade, em vista dos desafios que irão surgir
no próximo quarto de século. Tendo passado de 150 milhões de habitantes a quase
duzentos milhões no último meio século, o Brasil já atravessou, desde os anos 1980, o
fenômeno conhecido como transição demográfica, ou seja, a passagem de altos níveis
de fecundidade, de natalidade e de mortalidade (sobretudo infantil), para níveis
reduzidos dos três indicadores, exibindo atualmente uma taxa de natalidade que o
aproxima dos índices registrados em alguns países desenvolvidos (certamente não os
declinantes, porém, como Japão e Itália). A taxa de fecundidade ainda é importante em
regiões menos desenvolvidas – como no Norte e no Nordeste, inclusive por deficiências
de educação e de políticas adequadas de natalidade – mas permanece importante nas
zonas rurais e em estratos pobres e marginais das metrópoles, o que é justamente
preocupante no plano social e da marginalidade urbana.
O maior desafio demográfico do Brasil, porém, tem a ver com a rapidez relativa
de sua transição para um perfil “desenvolvido”, ou oblongo, de sua distribuição etária;
em outros termos, as faixas etárias mais avançadas estão deformando para baixo a
pirâmide demográfica, o que representa um duplo problema para o Brasil, um imediato
e o outro de médio prazo. No plano imediato, os déficits previdenciários – que estão
sendo potencializados pela ausência de reformas substantivas na última década, e
mesmo ameaças de retrocesso nos limitados ajustes feitos por iniciativa do governo
anterior – devem crescer até alcançar proporções não administráveis, lembrando-se
ainda que o Brasil já gasta, com o sistema de aposentadorias e pensões, um volume
proporcionalmente maior do PIB do que vários países desenvolvidos, com populações
idosas bem maiores do que a atual proporção do Brasil. Agregue-se a esses gastos,
aqueles comprometidos, cronicamente, com um generoso sistema universal de saúde,
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que promete tratamento de qualidade a todos e a cada um, e cujos custos devem crescer
geometricamente, tanto pelo aumento dos idosos, quanto pela má administração (estatal
e privada) de todo o sistema.
No médio prazo, o Brasil tem um desafio ainda maior, que é representado pelo
fim do chamado “bônus demográfico” – que representa a melhor proporção entre ativos
e dependentes no conjunto da população – num espaço de tempo (no máximo 25 anos)
no qual o baixo crescimento econômico manterá a renda média brasileira em níveis
insuficientes para sustentar o aumento dos dependentes a cargo das contas públicas. De
fato, o crescimento da renda é medíocre no Brasil, em virtude de parcos ganhos de
produtividade (devidos à má educação geral da população) e de um nível insuficiente de
poupança doméstica para sustentar taxas mais elevadas de investimento produtivo, o
que prenuncia um futuro preocupante para os atuais entrantes no mercado de trabalho.
A taxa de crescimento econômico do Brasil – que antes da crise da dívida externa de
1982 se situava acima da média mundial – tem sido persistentemente mais baixa do que
a média mundial e três vezes inferior à dos países emergentes mais dinâmicos; ela tem
se situado sempre no patamar inferior dos Bric, a ponto de vários estudiosos indagarem
se o Brasil não estacionou num patamar permanente de baixo crescimento econômico, o
que agravaria ainda mais o cenário do fim do “bônus demográfico”.
A despeito desses enormes desafios nos planos da demografia, do crescimento e
da perda de oportunidades na exploração de seus recursos naturais, o Brasil é, dentre os
Brics, o país que melhor se situa se situa num índice de “progresso social” lançado em
2014 (ver no link: http://www.socialprogressimperative.org/). Ainda que ocupando um
modesto sétimo lugar na região (depois do Uruguai, do Chile, de três outros países
menores, e da Argentina), o Brasil se situa bem à frente dos demais Bric nos três
grandes critérios incluídos no índice: necessidades humanas básicas, fundamentos do
bem estar e oportunidades (cada um com componentes objetivos, mensuráveis, como
nutrição, saneamento, educação e saúde, direitos individuais, etc.).
Com efeito, situando-se em 46o lugar no cômputo geral (com 69,97 pontos), o
Brasil antecipa-se em 30 posições à frente do segundo, a Rússia (80o lugar, com 60,79
pontos), em 44 posições antes da China (90o lugar, com 58,67 pontos) e bem acima da
Índia (102o lugar e 50,22 pontos), o que não é surpreendente. Dados desagregados, em
ordenamentos setoriais, poderiam deixar o Brasil em posições menos confortáveis, mas
é inegável que, pelo grau de liberdades democráticas já alcançado, tanto quanto pela sua

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economia de mercado consolidada, o Brasil dispõe de um ambiente humano, social e
político relativamente mais satisfatório do que seus colegas do Bric.
A questão seria saber como transpor essa posição relativamente mais positiva no
plano do bem estar social para o terreno da influência internacional e da projeção de
poder nos assuntos globais; ou seja, quais seriam os requerimentos efetivos para que o
país possa contribuir para moldar a agenda mundial nos diversos itens que a compõem?

2. O sistema político brasileiro e sua posição na geopolítica mundial


A história republicana brasileira, nos primeiros cem anos do regime – aliás
instalado por um golpe militar em 1889 –, foi caracterizada por uma alta instabilidade
econômica e, sobretudo, por inúmeras mudanças políticas, todas intermediadas por
sucessivas intervenções militares no cenário político-governamental. Nada menos do
que sete cartas constitucionais se sucederam, a intervalos variáveis, num processo
altamente errático que atravessou pelo menos dez mudanças do sistema político e não
menos do que oito regimes monetários diferentes, ao ritmo de acelerações inflacionárias
que chegaram, em algumas fases, à casa dos três dígitos. Mesmo que processos ainda
mais virulentos de inflação tenham sido registrados ocasionalmente em outros países,
nenhum outro parece ter conhecido oito padrões monetários no espaço de três gerações.
Até a última década do século XX, o jogo político foi dominado por oligarquias
tradicionais ou, até 2003 pelo menos, por representantes de novas elites em ascensão. A
República original, depois chamada de “velha”, foi a mais longa de todas, mas dirigida
pela classe dos proprietários de terras ou por tribunos das elites urbanas, com partidos e
eleições obviamente controlados por caciques corruptos e desafiados por contestadores
frustrados. Essa é a origem das turbulências e intervenções dos militares, na verdade
jovens tenentes, típicos representantes das classes médias que aspiravam a um regime
menos corrupto e menos oligárquico. Depois de várias tentativas nos anos 1920, eles
finalmente chegam ao poder em 1930, para se instalar por 15 longos anos, sob a
liderança de Getúlio Vargas. Depois de um governo provisório, e uma nova república
extremamente breve – e conturbada por uma tentativa de putsch comunista –, o Brasil
conhece o seu Estado Novo, talvez ainda mais corporativo do que o seu modelo e
equivalente português, em todo caso mais militarizado. O quadro abaixo sintetiza os
diferentes regimes políticos e as sete constituições que se sucederam desde 1824.

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Quadro 1
Constituições e regimes políticos no Brasil, 1824-2014
Constituições Tipo de instituição Características
1a.: 1824 Outorgada; longa Pedro I dissolve a Constituinte; quatro poderes,
duração, 65 anos de inclusive o Moderador, exclusivo do imperador,
regime parlamentar podendo dissolver a câmara; voto censitário;
2 a.: 1891 Promulgada; Regime republicano federativo, autonomia dos
emendada, eleições estados; presidencialismo de 4 anos, sem reeleição;
fraudadas voto restrito aos alfabetizados; Estado laico;
3 a.: 1934 Promulgada; Centralização, nacionalismo econômico; direitos
representação sociais e laborais; direito de voto às mulheres;
corporativa analfabetos continuam excluídos;
4 a.: 1937 Outorgada; fecha o Autoritária, inaugura o Estado Novo: fechamento do
Congresso congresso, dissolução dos partidos; centralização
5 a.: 1946 Promulgada por Tensão entre a maioria presidencial e o Congresso,
Assembleia de base proporcional, fragmentado pelo aumento do
Constituinte número de partidos e coalizões heteróclitas;
Emenda: 1961 Regime Crise política de substituição presidencial contornada
Plebiscito: 1963 parlamentar; Volta por um governo de gabinete: instabilidade; plebiscito
ao presidencialismo opera retorno ao presidencialismo; novas crises;
Golpe 1964; Ato Primeiro Ato (sem Regime autoritário iniciado com golpe militar em
Institucional número), seguido 1964; novo ato dissolve os partidos políticos;
de outro: 1965 eleições indiretas para presidente e governadores;
a
6 .: 1967 Outorgada; Decretos-leis diretamente aplicáveis; eleições para
Comissão Juristas presidente por colégio eleitoral: generais presidentes
Emenda: 1969 Outorgada por Novas restrições no sistema político, por meio de
Junta Militar atos institucionais outorgados pelo regime militar;
a
7 .: 1988 Promulgada: 315 Retorno ao regime democrático, descentralização;
artigos, 573 parag. voto do analfabeto; extremamente prolixa;
Plebiscito Tipo de regime e Previsto nas disposições transitórias da CF-1988:
consultivo: 1993 forma de governo confirma governo republicano e presidencialismo;
Emenda: 1997 Reeleição Cargos majoritários; mandato presidencial de 4 anos.
1988-2014 81 emendas Acréscimos e correções; detalhamento excessivo.
Elaboração: Paulo Roberto de Almeida (atualizada até 20/07/2014).

Os militares foram personagens centrais em todos os episódios de mudanças de


regimes desde o início da República, ao sabor de golpes e de retomadas do processo
democrático, inclusive a própria derrubada do Estado Novo e nas crises políticas vividas
pela República de 1946. Os mesmos militares que tinham frequentado as academias
durante o Estado Novo, e que se engajaram nas turbulências dos anos 1950 e do início
da década seguinte, foram os que, finalmente, deram o golpe em março de 1964, dessa
vez dispostos a “limpar o terreno da corrupção”, inaugurando o longo regime militar das
duas décadas seguintes. Eles foram ativos modernizadores, e conseguiram completar a
obra de industrialização do país que tinha sido iniciada sob o Estado Novo e acelerada
no decorrer dos anos 1950. Também conseguiram construir um Estado tecnocrático
bastante eficiente no plano da gestão econômica e da infraestrutura, mas provavelmente

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exageraram no superaquecimento da máquina produtiva, ao tentar fazer o Brasil
ascender rapidamente ao status de grande potência.
Os dois choques do petróleo, em 1973 e em 1979 – quando o Brasil dependia à
razão de 80% da importação do produto –, e a crise da dívida externa em 1982 – em
grande medida provocada por aqueles choques – deram o golpe de misericórdia nesse
projeto, embora os militares tenham logrado colocar o país entre as grandes economias
do planeta. A fase final do regime militar, cujo início data da crise da dívida externa em
1982, desenvolve-se numa atmosfera de graves turbulências econômicas e políticas,
marcada entre outros elementos pelo movimento em prol de eleições diretas para a
presidência da República. Nesse período, foi nítido o contraste entre os principais
indicadores macroeconômicos (crescimento, taxa de inflação, contas externas) da fase
final com aqueles que tinham caracterizado o período do “milagre econômico”, como
evidenciado por meio dos indicadores para os anos selecionados na tabela 1.

Tabela 1
Indicadores econômicos em duas fases do regime militar, 1970-1984
Anos Crescimento do PIB Balanço Dívida Dívida Taxa de
% ano Per capita Pagam. Externa % PIB Inflação
1970 10,4 7,2 -562 5.295 12,5 19,5
1971 11,3 8,6 -1.307 6.622 13,3 20,3
1972 12,1 9,4 -1.489 9.521 16,3 17,3
1973 14,0 11,3 -1.688 12.572 15,9 14,9
(…) (…) (…) (…) (…) (…) (…)
1981 -3,1 -5,3 -11.734 61.411 23,3 109,9
1982 1,1 -1,2 -16.310 70.198 25,8 95,5
1983 -2,8 -5,0 -6.837 81.319 39,4 154,5
1984 5,7 3,4 45 91.091 43,1 220,6
Fonte: IBGE; Valores: US$ milhões

A aceleração inflacionária e os desequilíbrios externos se somaram aos protestos


políticos para confirmar o encerramento do ciclo militar em 1985, não sem ocorrer a
consolidação de um Estado centralizador no plano tributário e disfuncional no plano da
representação política, com uma proporcionalidade deformada, repercutindo de forma
negativa na estruturação da federação. Desde a fase final do regime militar, a economia
atravessou um longo período de estagnação com inflação alta, que se prolongou durante
todo o processo da redemocratização e especialmente nas primeiras eleições diretas para
presidente desde 1960, realizadas apenas em 1989. Diversos planos de estabilização
macroeconômica foram implementados na “nova República”, a maioria frustrados, sem
que o país tivesse conseguido retomar as altas taxas de crescimento do passado. Quando

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se conseguiu, finalmente, escapar da voragem inflacionária, a partir do Plano Real, em
1994, a renda per capita se encontrava no mesmo patamar conhecido em 1980. O título
que o período ganhou, de década perdida, se justifica plenamente, portanto.
A reconstitucionalização do país, em 1988, reduziu apenas parcialmente a
centralização tributária, mas a multiplicação exagerada dos municípios desde então –
provocada artificialmente por uma classe política predatória – voltou a colocar o
Executivo federal no centro das barganhas políticas. A primeira tentativa de controle da
inflação, no seu governo, deu-se mediante um tratamento de choque, o Plano Cruzado
(fevereiro de 1986), caracterizado pelo congelamento de preços, tarifas e câmbio e pela
troca de moeda. Ele foi seguido, oito meses depois, pelo plano Cruzado 2, já num
contexto de aumento de tarifas e de reajuste generalizado de preços, com a consequente
reindexação da economia e a criação de um gatilho salarial (cada vez que a inflação
superasse 20%, o que passou a ser frequente). Novo plano em junho de 1987, chamado
de Bresser (do novo do novo ministro das finanças), traz novo choque cambial e
tarifário, com novo congelamento de preços, salários e aluguéis: ele tampouco
estabilizou a economia.
Desde a redemocratização, em 1985, o Brasil vem consolidando um sistema
político relativamente resistente às pequenas crises das transições governamentais, mas
marcado por imperfeições derivadas do período militar, entre elas a deformação referida
na representação congressual. O sistema ainda padece de várias contradições sistêmicas
e de falhas conjunturais, em função da coalizão de forças predominantes no Congresso e
no Executivo, nem sempre convergentes no plano da representação proporcional da
população ou da maioria presidencial, de base majoritária, de conformidade com a
norma presidencialista. Curiosamente, o processo constituinte de elaboração de uma
nova Constituição tinha sido inicialmente concebido para um regime parlamentarista,
mas terminou confirmando o presidencialismo tradicional no Brasil, a despeito de
diversos outros dispositivos tendentes a reforçar o papel do poder legislativo no sistema
de poder. A tensão entre os dois poderes tem sido uma constante desde então, sempre
com o predomínio do Executivo, que domina as alavancas do poder econômico.
Historicamente, a contradição entre a maioria congressual – estabelecida com
base no voto proporcional, mas deformado em virtude de limites mínimos e máximos
para os diferentes estados da federação – e a maioria presidencial, que emerge do voto
majoritário, eventualmente em dois turnos, sempre esteve na origem das crises e da
instabilidade crônica do processo político. Essa diferença de maiorias e o caráter
13
parcialmente atomizado do sistema político-partidário obrigam o chefe do Executivo a
negociar, cada vez, o apoio das forças políticas por todos os meios disponíveis, legais
ou heterodoxos. Esse estado de negociações permanentes entre os dois poderes, sempre
permeado por barganhas financeiras paroquiais, foi ainda reforçado pela instituição do
princípio da reeleição para cargos majoritários, aumentando o caráter fisiológico da
conquista de espaços de poder e de retribuições materiais em troca de apoio político. O
chamado “presidencialismo de coalizão”, como foi chamado esse sistema de
negociações constantes em torno de projetos parlamentares fragmentados, minimiza a
viabilidade de grandes lideranças nacionais e potencializa o poder dos interesses
setoriais e das representações corporativas, estilhaçando ainda mais o sistema político-
partidário. O Brasil constitui, possivelmente, uma das grandes democracias do mundo
emergente a apresentar um leque partidário extremamente disperso, com um número
crescente de legendas de ocasião e de partidos basicamente oportunistas: o Tribunal
Eleitoral registra mais de três dezenas de partidos regularmente constituídos, sendo que,
dentre as duas dezenas presentes no parlamento, vários subsistem unicamente devido à
ausência de cláusulas de barreira para vetar partidos de aluguel.
Um intenso processo de reformas marcou as duas administrações de Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), tanto no âmbito do Estado (reformas administrativa, da
previdência social etc.), como no ambiente regulatório de vários setores da economia,
infraestrutura e comunicações, em especial. Mudanças organizacionais importantes
ocorreram no plano das funções do Estado. Não obstante sua capacidade de liderança na
implementação das reformas, seus mandatos foram fortemente perturbados pelos dois
ou três ciclos de crises financeiras internacionais que tiveram início no México, no final
de 1994, prolongaram-se pela Ásia a partir de meados de 1997, atingiram um ápice na
Rússia em julho de 1998, terminando por atingir igualmente o Brasil em setembro desse
ano; finalmente, a crise final do regime de conversibilidade cambial na Argentina, em
2001, e as próprias eleições presidenciais no Brasil, no ano seguinte, obrigou o governo
a negociar diversos planos de sustentação com o FMI entre 1998 e 2002. A grave erosão
da situação cambial determinou uma completa mudança nos fundamentos da política
econômica, com a passagem da âncora cambial vigente até então para um regime de
flutuação cambial. Todos esses percalços redundaram numa taxa de crescimento pífio
para o segundo mandato, com queda no valor em dólares do PIB e o crescimento do
desemprego, como se pode constatar nos indicadores do período.

14
Tabela 2
Indicadores econômicos dos dois governos Fernando Henrique
Cardoso: 1995-1998 e 1999-2002
PIB, valor e crescimento Poupança Taxa Taxa
Ano US$ milhões % real % PIB inflação Desemprego
1995 705,4 4,2 20,3 21,9 4,4
1996 775,5 2,6 18,0 9,1 5,2
1997 807,8 3,2 17,7 4,3 5,1
1998 787,5 0,1 17,2 2,5 7,2
1999 529,4 0,8 16,0 8,4 7,3
2000 588,0 4,3 17,7 5,2 7,6
2001 503,9 2,5 19,2 9,4 6,4
2002 504,3 2,7 18,2 12,5 11,7
Fonte: IBGE

Este era o cenário político no Brasil até a eleição de Luís Inácio Lula da Silva,
em 2002, para o início de dois mandatos sucessivos, como permitido pela reforma
constitucional introduzida por Fernando Henrique Cardoso no curso do seu primeiro
mandato, em 1997; reeleito para mais um mandato em 2006, Lula logrou nova vitória
em 2010 para a mesma coalizão partidária sob hegemonia do Partido dos Trabalhadores.
O que caracterizou basicamente a administração Lula, no plano institucional, foi a
exacerbação de algumas das características mais negativas da política brasileira, como a
chantagem recíproca entre Executivo e Legislativo em torno da distribuição de recursos
federais, a fragmentação dos programas orçamentários e a permanente construção de
maiorias parlamentares de ocasião para a apreciação e aprovação de projetos de lei.
Em 2006, o “presidencialismo de coalizão” se aproximou perigosamente de um
“presidencialismo de Mensalão”, quando os líderes do partido hegemônico, conduzidos
pelo “primeiro ministro” do Governo Lula, e líder virtual do PT, José Dirceu, decidiram
literalmente comprar o apoio de parlamentares como garantia de votos favoráveis. Esta
foi a origem de um dos maiores escândalos da política brasileira, desvendando
comportamentos que existiam potencialmente no sistema político-partidário; não parece
ter havido mudanças significativas desde então.
Paradoxalmente, essa deterioração institucional ocorrida desde 2003 coincidiu
com uma notável projeção internacional do Brasil, obtida por uma conjunção de
tendências estruturais e de fatores contingentes. Os primeiros emergem como resultado
dos anos de ajustes macroeconômicos e de reformas institucionais efetuadas durante os
dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que prepararam o terreno
para o bom desempenho econômico registrado durante as duas administrações seguintes
(sob Lula, de 2003 a 2010). O fim da inflação, a estabilidade macroeconômica então

15
conquistada, a volta dos investimentos estrangeiros, e as amplas reformas conduzidas
sob FHC – a despeito das crises financeiras ocorridas durante seu segundo mandato –
ofereceram a Lula o melhor ambiente possível para se beneficiar da nova fase de
crescimento mundial que ocorreu na primeira década do século XXI.

Tabela 3
Indicadores econômicos dos dois governos Luis Inácio Lula da Silva:
2003-2006 e 2007-2010
PIB, valor e crescimento Poupança Taxa Taxa
Ano US$ milhões % real % PIB inflação Desemprego
2003 552,4 1,1 16,5 14,7 12,8
2004 663,7 5,7 18,8 6,6 11,2
2005 882,2 3,1 17,8 6,8 9,4
2006 1.088,9 3,9 16,7 4,1 10,6
2007 1.366,8 6,1 18,4 3,6 9,5
2008 1.653,5 5,2 18,9 5,6 8,1
2009 1.620,1 0,3 16,3 4,3 8,0
2010 2.143,0 7,5 18,0 5,9 6,7
Fonte: IBGE, Banco Mundial, Economy Watch (www.economywatch.com).

Quanto aos fatores contingentes, eles são representados pelas iniciativas


diplomáticas, pelas decisões dos líderes que estavam à frente dos países no final dos
anos 2000. A despeito de intensos contatos com todos os principais líderes do G7, e de
ter desenvolvido contatos com dirigentes progressistas da chamada “Terceira Via” –
como Bill Clinton e dirigentes socialistas europeus –, FHC não conseguiu colocar o
Brasil no mais alto patamar de coordenação internacional, e as razões disso se prendem
tanto ao caráter ainda recente dos ajustes efetuados (depois de décadas de alta
instabilidade macroeconômica), quanto às turbulências financeiras enfrentadas durante
praticamente quase todo o seu governo, começando com a crise do México, passando
pelo turbilhão de quebras asiáticas, a moratória russa, a debacle argentina e os próprios
surtos de instabilidade acarretados pela ascensão de Lula ao poder, em 2002. Poucos
presidentes tiveram tantos desafios como os enfrentados por FHC durante oito anos.
A situação se inverte para um cenário bastante positivo durante praticamente os
dois mandatos de Lula. A própria criação da sigla Bric, em 2001, junto com a afirmação
internacional da personalidade exuberante do novo presidente, dá início a um ciclo
virtuoso de elevação contínua do status do Brasil no plano mundial. Os contatos que
tinham sido tecidos cuidadosamente por FHC, por meio de sua diplomacia presidencial,
frutificam de modo amplamente exitoso sob Lula, que acrescenta ao menu diplomático
um número impressionante de viagens internacionais, sobretudo em direção do Sul e de

16
um seleto número de parceiros estratégicos “não hegemônicos”: Índia e África do Sul,
com os quais é rapidamente constituído o grupo Ibas, e China e Rússia, que completarão
o quadro das alianças estratégicas do Brasil na construção tentativa de uma “nova
ordem internacional” (ou uma “nova relação de forças” e uma “nova geografia do
comércio internacional”, como seguidamente repetido pelo presidente e seu chanceler).
Ainda que mantendo taxas modestas de crescimento em relação ao resto do mundo, os
indicadores de expansão do PIB, sob Lula (4,5% ao ano na média), quase dobram o
ritmo que vinha sendo observado na década anterior (de apenas 2,5% ao ano).

Tabela 4
Indicadores econômicos agregados para as presidências FHC e Lula
Médias anuais em cada governo FHC Lula
Crescimento do PIB real 2,6 3,4
Inflação (deflatores do PIB) 9,2 5,79
Participação da indústria na formação do PIB 18 13
Fonte: IBGE

Lula não apenas passa a ser convidado a acompanhar as reuniões do G8 – a


primeira logo em 2003, em Evian, a convite do presidente Chirac – como empreende ele
mesmo algumas iniciativas que iriam marcar suas duas presidências, ainda que com
resultados modestos, ao final: cúpulas separadas entre os chefes de Estado da América
do Sul, de um lado, e os líderes africanos e os de países árabes de outro. Muitas dessas
iniciativas, como suas muitas viagens a países africanos e sul-americanos, foram
tomadas com o único objetivo de realçar sua personalidade e sua imagem internacional,
ainda que com alguma repercussão diplomática e econômica para o Brasil. O trabalho
publicitário construído em torno da figura de Lula de fato elevou a postura política e o
reconhecimento diplomático do Brasil no cenário mundial, tornando mais evidente a
busca, por seu governo, de uma elevação formal desse novo status pela conquista de
uma cadeira permanente para o país no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
No plano regional, a ambição do presidente de ser reconhecido como líder da
América do Sul foi apenas parcialmente realizada, já que nem a Argentina, nem a
Colômbia, e muito menos a Venezuela de Chávez, permitiriam tal preeminência ao
Brasil, em detrimento de seus interesses nacionais no jogo diplomático ou do prestígio
pessoal e individual de seus líderes. Nenhum deles apoiou, por exemplo, a liderança
brasileira no projeto mais ambicioso lançado por Lula: a constituição de uma
Comunidade Sul-Americana de Nações. Depois de muitas voltas e contravoltas, a nova
entidade – que tinha por finalidade expressa, mas não explícita, o afastamento dos
17
Estados Unidos dos assuntos regionais – foi constituída sob os auspícios de Chávez
como União das Nações Sul-Americanas, com secretariado em Quito, e não no Rio de
Janeiro, como pretendia o líder brasileiro.
No final do governo Lula, a crise econômica iniciada nos Estados Unidos criou
uma nova oportunidade de realce diplomático para o Brasil, ao suscitar a convocação,
em 2008, do G20 financeiro, um foro alegadamente dedicado à coordenação econômica
mundial, no qual o Brasil depositava alguma esperança de ter ali um apoio à sua
pretensão de reformar as instituições de Bretton Woods, no sentido de dar mais peso ao
Brasil nesses mecanismos de estabelecimento de regras para a governança econômica
global. Lula participou de dois desses encontros – no segundo já levando sua sucessora
eleita – ao mesmo tempo em que o Bric dava início à sua existência diplomática formal,
por meio da reunião ministerial (em 2008) e da de cúpula (em 2009), ambas realizadas
na cidade russa de Ecaterimburgo. A partir daí, as reuniões ministeriais e de cúpula
passaram a se suceder, primeiro a quatro, depois, a partir de 2011, a cinco países, com a
adjunção da África do Sul ao grupo, adesão formalizada um ano antes e oficializada na
reunião de cúpula de Sanya, na China, em grande medida pela ação e vontade deste
país, que possui grandes interesses no continente africano.
Grande parte da ação diplomática do Brasil, desde 2003, se deu no quadro da
chamada diplomacia Sul-Sul, a exemplo da criação da Unasul, do seu Conselho de
Defesa, bem como de diversos grupos de trabalho voltados para temas específicos, no
âmbito do Ibas, no contexto da América do Sul, ou especificamente sob o signo mais
valorizado, ulteriormente, do Brics. Em 2009, foi assinado em Buenos Aires, por sete
países sul-americanos, o tratado para a constituição do Banco do Sul, com absoluta
igualdade de poder decisório para todos eles, independentemente do montante de sua
participação no capital; no entanto, ele não entrou em vigor, provavelmente em função
de dificuldades operacionais vinculadas à crise econômica e política da Venezuela, na
sequência da enfermidade e falecimento do caudilho Hugo Chávez.
No âmbito econômico interno, a situação também conhece nítida deterioração a
partir dessa época. O governo Dilma Rousseff (2011-2014) teve início por alguns
números auspiciosos: crescimento de 7,5% no ano anterior, redução do desemprego a
níveis historicamente baixos e promessas de grandes fluxos de investimentos privados,
em vistas das grandes obras de infraestrutura que deveriam estar prontas para o final de
seu governo – Copa do Mundo de Futebol em 2014 – ou no começo do próximo (as
Olímpiadas do Rio de Janeiro em 2016). De fato, o que se viu foi um retorno às taxas de
18
crescimento persistentemente baixas como sob as duas décadas perdidas das crises
inflacionarias e da dívida externa. A despeito de um comportamento favorável no plano
do emprego formal, a inflação continuou a desafiar o governo e a desestimular as
perspectivas de investimentos produtivos (nacionais ou estrangeiros), como se pode
constatar na tabela 5. A figura 3, por sua vez, evidencia o retorno das taxas de
crescimento econômico aos padrões conhecidos no período da breve aceleração
permitida pela grande demanda chinesa de produtos brasileiros de exportação.

Tabela 5
Indicadores econômicos do governo Dilma Rousseff: 2011-2014
PIB, valor e crescimento Poupança Taxa Taxa
Ano US$ milhões % real % PIB Inflação Desemprego
2011 2.492,9 2,7 17,6 6,4 5,9
2012 2.395,9 0,8 14,6 5,8 5,5
2013 2.256,6 2,5 16,1 6,1 5,4
2014 e 2.481,2 0,1 17,0 6,4 4,8
Fonte: IBGE; Economy Watch; e = estimativas

Figura 3
Brasil: taxas de crescimento médio anual cumulativo, 1995-2013

Fonte: Mansueto de Almeida, economista do Ipea, 2014.

19
3. Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional
No plano econômico, as diferenças, e mesmo as divergências, entre os Brics são
tão importantes quanto seus interesses comuns nos planos político e diplomático. Se é
verdade que a justificativa e a legitimidade do grupo no contexto internacional foram
dadas por um economista de banco de investimento – e esta é provavelmente a primeira
vez na história que um bloco diplomático é constituído a partir de mera sugestão de um
observador externo, aliás amador em assunto de política internacional –, cabe examinar
o conteúdo econômico da participação do Brasil nesse bloco, tanto em termos de
potencialidades, quando em termos de dinâmicas estruturais.
Não é preciso remontar a história econômica de cada um deles, ao longo dos
séculos precedentes, para apresentar, ou explicar, os traços econômicos dominantes na
contemporaneidade, embora algum retrospecto sumário seja importante, para bem situar
o contexto macroestrutural da formação econômica brasileira ainda presente em certas
características de sua economia atual, notadamente a especialização nas exportações
primárias e o grau relativamente modesto de seu capital intelectual, o que influencia sua
capacidade de inovação tecnológica. Diferentemente dos outros três Bric – e a história
da África do Sul, o quinto Brics, é ainda mais única e original –, o Brasil é a única
formação nacional que não deriva de uma civilização anterior, de povos longamente
estabelecidos num determinado território, e constituídos enquanto Estados a partir de
sua própria dinâmica interna, mas enquanto “importação” feita no período colonial.
Com efeito, o Brasil é um caso clássico de criação colonial – característica que
ele não partilha com nenhum outro Bric – e de lenta constituição de uma economia
diversificada, no quadro de uma construção estatal mais afirmada e bem sucedida. De
fato, o Brasil teve um Estado unificado – e centralizador – antes de ter uma economia
integrada nacionalmente ou positivamente integrada à economia mundial. Esse Estado
não construiu a nação de modo exclusivo, mas representou, mais tarde, um poderoso
elemento indutor na construção de uma economia industrializada e relativamente
moderna para os padrões usuais dos países “periféricos” ou em desenvolvimento.
O país, mais bem o território, foi mantido em sua função colonial de provedor de
produtos primários durante mais de três séculos, condição o que marcou e ainda marca
determinadas estruturas produtivas e a situação social de parte de sua mão-de-obra.
Exportador de cana-de-açúcar durante os seus quinhentos anos de existência, ainda hoje
é possível encontrar, ao lado de estruturas produtivas mais modernas e capitalizadas, os
mesmos padrões que existiam no começo dos tempos: corte de cana no facão, por uma
20
mão-de-obra quase análoga à do período do trabalho servil. Certos traços dessas velhas
estruturas econômicas também podem ser encontrados na Índia – como a concentração
da propriedade fundiária, a miséria de algumas populações rurais, o mandonismo
político associado a essas características econômicas – mas o antigo e o moderno se
confundem tanto regionalmente, quanto socialmente.
Independentemente do peso das tradições e das velhas estruturas no seu sistema
econômico atual, cabe registrar que o Brasil sempre foi uma economia de mercado,
ainda que insuficientemente desenvolvida no conceito capitalista da expressão. Ele
nunca atravessou décadas de socialismo centralizador – e totalitário – como nos casos
das experiências ainda recentes da Rússia e da China, e tampouco exibiu os exageros do
planejamento estatal conhecidos na Índia nos primeiros quarenta anos de sua existência
enquanto Estado independente moderno. Em todos eles, porém, o Estado assumiu um
papel preeminente no processo de desenvolvimento econômico, o que é uma evidência
de primeiro plano na formação das estruturas econômicas e das instituições políticas, o
que explica em grande medida a busca de entendimento recíproco e de convergência
relativa que esses países possam ter, no confronto com as típicas democracias de
mercado que formam o G7 e boa parte das economias avançadas de tradição capitalista.
De fato, o estatismo inerente às mentalidades dos dirigentes respectivos dos Bric
(e agora dos Brics) faz com que, no terreno das políticas econômicas, eles estejam mais
propensos a apoiar soluções estatais para desafios típicos das sociedades modernas –
como o tratamento da educação, da ciência e tecnologia, da inovação, do provimento de
serviços públicos, das comunicações e logística, e de um sem número de atividades que,
nas economias liberais de mercado, são justamente entregues à competição privada – e
defendam tais orientações nos foros globais de coordenação econômica e financeira.
Essa característica é importante de ser retida, pois ela vai influenciar poderosamente a
maior parte das iniciativas diplomáticas tomadas pelos Brics.
Em todo caso, a melhor avaliação quanto ao papel do Brasil no contexto dos
Brics ganha muito se auxiliada visualmente com uma estrutura tipo SWOT (sigla em
inglês para os conceitos de forças, fraquezas, oportunidades e ameaças), tal como
reproduzida abaixo. Seria possível traçar um SWOT para o conjunto dos Brics, mas a
comparação entre eles aparece como problemática, em virtude das enormes diferenças
que existem entre os quatro (agora cinco) países, tanto em elementos estruturais, quanto
em fatores contingentes, ou de políticas econômicas e de orientações diplomáticas.

21
Quadro 2
Quadro SWOT para o Brasil
Ambiente Fatores Positivos Fatores Negativos
Grande território; diversidade e Exploração predatória dos recursos
abundância de recursos naturais; fontes naturais; baixa capacidade tecnológica
diversificadas de energia (renováveis, de transformação; matriz energética
em grande parte); demografia favorável sendo “poluída” por novos recursos em
Interno (bônus, alta proporção de ativos); fósseis; mercado interno ainda de baixa
regime democrático; expansão da renda; crescimento acelerado do número
economia de mercado; população de velhos; altos custos previdenciários e
receptiva à globalização; talentos de gastos com saúde; sistema político
individuais disponíveis; unidade disfuncional e democracia de baixa
cultural, mesma língua, sem conflitos qualidade; altos níveis de tributação
religiosos; federalismo atuante; regressiva; aumento da delinquência,
estabilidade econômica; riscos sociais dos particularismos culturais, raciais e
moderados; flexibilidade adaptativa da de gênero; gastos públicos elevados;
população e grande tolerância nos baixa produtividade pela má educação;
costumes e modos de vida. burocracia estatal ineficiente.
Enorme capacidade para expandir a Uso extensivo, mais do que intensivo,
oferta de produtos básicos, sobretudo dos recursos naturais; políticas setoriais
alimentares; agricultura capitalizada, (industrial e comercial) incompatíveis
produtividade garantida por P&D e com aumento da oferta externa; má
Externo administração conectada a mercados; infraestrutura de exportação; baixo
lições das crises financeiras e da dívida coeficiente de abertura externa;
externa trouxeram menor dependência e poupança interna insuficiente; oferta
altas reservas internacionais; atração de externa de baixo valor agregado, baixa
IED, pelas oportunidades de mercado; elasticidade; mão-de-obra protegida,
mão-de-obra sendo formalizada; prêmio cara; baixa competitividade externa;
de risco reduzido atualmente, ranking inserção reativa na globalização;
com grau de investimento; diplomacia volatilidade das políticas econômicas
profissional qualificada, convivendo externas, defensivas; política externa
com a atual diplomacia partidária. “anti-hegemônica”, esquerdista.
Elaboração: Paulo Roberto de Almeida, 03/03/2014

Os traços econômicos mais relevantes do Brasil contemporâneo, tanto pelo lado


de suas vantagens relativas, quanto pelo lado das limitações percebidas, estão por
demais evidentes no quadro acima para merecer elaboração mais detalhada. Algumas
considerações adicionais são porém relevantes para ilustrar os argumentos de natureza
econômica que cabe ressaltar para o Brasil, não apenas no contexto dos Brics, mas
também no que se refere à sua inserção na economia global. Elas têm a ver, justamente,
com as limitações estruturais mais evidentes, que dificultam os passos que o Brasil
precisaria dar para conseguir galgar patamares mais altos de crescimento econômico e
de desenvolvimento social, bem como para lograr uma inserção mais afirmada do país
no sistema global de nações avançadas: elas são, a inovação tecnológica e a educação da
população, provavelmente na ordem inversa.
O Brasil tem sido um fornecedor altamente competitivo de produtos que se
inserem plenamente em suas vantagens ricardianas permanentes, ou seja, os bens
22
derivados das atividades de exploração de seus recursos naturais abundantes, o que
promete continuar pelo futuro indefinido. De fato, o Brasil é um grande ofertante de
todos os produtos que correspondem à sua matriz secular de economia extrativa e de
base agrícola, mas tem enormes dificuldades para se inserir nos mercados de produtos
de maior valor agregado, como os da eletrônica avançada, os da química fina e, de
forma geral, produtos intangíveis, ou da inteligência. São poucas as exceções a esse
quadro, e elas se situam na exploração de petróleo em altas profundidades, por uma
empresa estatal, a Petrobras (mas aberta a contratos com fornecedores privados), e na
indústria aeroespacial, com o único exemplo da Embraer (uma ex-estatal, privatizada e
aberta totalmente à integração produtiva com quaisquer companhias estrangeiras).
Os problemas não se situam, simplesmente, na falta de engenheiros capazes de
registrar patentes e, portanto, de distinguir o país no plano tecnológico, mas sim na falta
mais elementar de pessoas razoavelmente educadas para aumentar a produtividade geral
da economia. Ainda que o Brasil esteja melhor posicionado do que os demais Brics na
escala do “progresso social”, ele se situa, com exceção de Índia e África do Sul, bem
atrás no que tange o simples indicador de alfabetização, na verdade um índice grosseiro
que não mede o analfabetismo funcional de um número significativamente maior de
cidadãos incapazes de compreender um texto simples. Estatísticas relativas ao
desempenho escolar, consolidadas no PISA – o programa da OCDE de avaliação
internacional de estudantes de 15 anos – confirmam para o Brasil os últimos lugares,
não apenas nas comparações gerais (relativas ao domínio elementar da língua nacional,
de matemáticas e de ciências), mas igualmente no raciocínio requerido para resolver
problemas simples da vida prática: os estudantes brasileiros ficaram no 38o lugar, entre
44 países, com apenas 28% de capacidade para resolver questões elementares, para uma
média de 45% nos países da OCDE (Ocde, 2014). Os resultados, na avaliação feita em
2012, colocam o Brasil na posição 53a. entre 58 países, como visto na tabela 6.
Quaisquer que sejam as evidências estatísticas relativas à educação universal,
independentemente dos dados baseados em simples acúmulo quantitativo nas diversas
fases da escolarização, o fato é que a qualidade da educação no Brasil, em todos os
níveis, tem declinado miseravelmente e de maneira perceptível, comprometendo o
futuro da nação.

23
Tabela 6
Resultados do PISA 2012 para os países do Brics incluídos na avaliação
Posição dos Matemática Leitura Ciências
Países Posição % Piores % dos Mudança Resultado Mudança Resultado Mudança
geral resultados Melhores anual geral anual geral anual
Média OCDE 494 23,1 12,6 -0,3 496 0,3 501 0,5
1. Xangai 613 3,8 55,4 4,2 570 4,6 580 1,8
34. Rússia 482 24,0 7,8 1,1 475 1,1 486 1,0
53. Brasil 391 67,1 0,8 4,1 410 1,2 405 2,3
Fonte: OCDE, Pisa 2012 Results (disponível: http://www.oecd.org/pisa/keyfindings/pisa-2012-results.htm)

A baixa escolaridade geral da população brasileira é um elemento diversas vezes


apontado por todos os especialistas como um dos fatores responsáveis pela baixa
capacidade de inovação, o que se reflete não só nas estatísticas tecnológicas relativas ao
patenteamento, por exemplo, mas também na proporção de pesquisadores trabalhando
para empresas ou para o governo (ou seja, em laboratórios universitários), estes
dominantes no perfil brasileiro. O outro problema associado à baixa capacidade de
inovação do sistema produtivo brasileiro é que, a despeito do aumento progressivo e
regular da produção científica vinculada às instituições universitárias, a transposição
desse conhecimento para o chão das fábricas é marginal, a todos os títulos, o que leva as
empresas a depender da importação fechada de soluções tecnológicas acabadas.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a situação geral da economia
brasileira conhecia uma melhora progressiva – na estabilidade monetária, na contenção
fiscal, na menor dependência financeira externa, no declínio da desigualdade – em
função de todas as reformas efetuadas no governo de FHC, a posição competitiva do
país no contexto global se deteriorava sensivelmente, com perda de mercados e o
afastamento de suas indústrias de grandes mercados tradicionais. Tal deterioração se
explica em virtude dos problemas anteriormente focalizados, ou seja, baixa educação
geral da população, deficiências de infraestrutura e baixo desempenho na capacidade de
inovação; mas esta é apenas uma parte dos problemas: os mais importantes estão
vinculados ao próprio peso do Estado sobre o setor produtivo, em especial a carga fiscal
e o ambiente regulatório particularmente hostil no plano microeconômico.
Com efeito, o peso dos tributos – diretos e indiretos – cobrados das empresas e
dos cidadãos brasileiros tem crescido continuamente ao longo das últimas décadas, e
não apenas em função dos dispositivos especificamente econômicos da Constituição
promulgada em 1988, mas também como resultado de constantes demandas emanadas
da sociedade, no sentido de maiores benefícios nas áreas tradicionais de educação e
saúde e de um conjunto de novos direitos coletivos, todos eles atribuídos ao Estado
(Almeida, 2013). Em consequência, a carga fiscal do Brasil, já relativamente mais alta
24
para os padrões de países emergentes comparáveis, alcançou níveis típicos dos países
desenvolvidos: situando-se na média dos países da OCDE, ela se situa dez pontos acima
dos outros países em desenvolvimento, para uma renda per capita cinco ou seis vezes
inferior à da média dos países da OCDE.

Tabela 7
Brics: receitas públicas em % do PIB, 2013
Países Receitas Públicas: % do PIB
Brasil 37,0
Rússia 36,2
África do Sul 27,8
China 22,1
Índia 19,4
Fonte: Economy Watch (http://www.economywatch.com/economic-
statistics/economic-
indicators/General_Government_Revenue_Percentage_GDP/)

Mais grave ainda, a selva de regulamentos burocráticos impostos sobre as


empresas coloca o Brasil numa posição insatisfatória em classificações aplicadas ao
mundo dos negócios, em especial no que se refere aos procedimentos aplicáveis em
matéria de recolhimento de impostos, ou seja, o tempo dedicado a essa finalidade.
Segundo o relatório anual Doing Business do Banco Mundial (que coloca o Brasil em
122o lugar numa lista geral que comporta 189 países em 2014), não apenas o
empresário brasileiro suporta uma das mais altas cargas do mundo em desenvolvimento
(de quase dois quintos de seu faturamento corrente), como tem de empregar um tempo
absurdamente elevado para cumprir suas obrigações: ocupando a 159a posição nesse
quesito, o empresário brasileiro tem de “consumir” 2.600 horas por ano para ficar em
ordem em face das autoridades fiscais, quando a média nos países da Ocde é de apenas
175 horas, ou seja, quinze vezes menos do que no Brasil, e de 370 horas na própria
América Latina, ou sete vezes menos (IFC-World Bank, 2014; dados para o Brasil em:
http://www.doingbusiness.org/data/exploreeconomies/brazil/#paying-taxes). O quadro 3
transcreve alguns dos dados disponíveis para os Brics e para alguns outros países,
segundo critérios selecionados, na classificação efetuada em 2013 pelo Banco Mundial.
Os indicadores selecionados, dentre vários outros que compõem os critérios de
avaliação retidos pelo Banco Mundial constituem, justamente, os principais fatores que
estão fazendo o Brasil retroceder igualmente na escala da competitividade mundial tal
como medida pelo World Economic Forum: no seu relatório relativo a 2013-2014, o
Brasil ocupou a posição 56o, entre 148 países, mas em recuo sensível desde a posição
48, dentre 144, no relatório anterior (Schwab, 2014: 68).

25
Quadro 3
Doing Business, 2013, países e indicadores selecionados
Economias Facilidade Iniciando Registrando Proteção do Pagando Comércio
Selecionadas Negócios Empresa Propriedade Investimento Impostos Exterior
Hong Kong 2 5 89 3 4 2
Portugal 31 32 30 52 81 25
Chile 34 22 55 34 38 40
África do Sul 41 64 99 10 24 106
México 53 98 150 68 118 59
Itália 65 90 34 52 138 56
Rússia 92 88 17 115 56 157
China 96 158 48 98 120 74
Brasil 116 123 107 80 159 124
Argentina 126 164 138 98 153 129
Índia 134 179 92 34 158 132
Fonte: World Bank, Doing Business 2013 (disponível: http://www.doingbusiness.org/rankings)

Os quesitos mais relevantes a contar na classificação negativa do Brasil foram o


peso da regulação governamental (na qual ele recua para o lugar 147), o número de dias
para iniciar um negócio (lugar 144) e a carga fiscal aplicada à mão-de-obra (139); foram
também considerados na pesquisa o estado da infraestrutura, a regulação e o peso dos
tributos. A posição geral dos países do Brics, comparados com alguns outros, está
refletida no quadro 4, que efetua uma agregação de vários indicadores pesquisados para
o relatório.

Quadro 4
Índice de Competitividade Global, 2014, países selecionados (entre 148)
Posição geral do Pontuação geral: Requer. básicos Eficiência Inovação
país de 1 a 7 Posição relativa Posição relativa Posição relativa
1 Suíça 5,67 3 5 1
7 Hong Kong 5,47 2 3 19
12 Taiwan 5,29 16 15 9
25 Coreia do Sul 5,01 20 23 20
29 China 4,84 31 31 34å
34 Chile 4,61 30 29 45
49 Itália 4,41 50 48 30
51 Portugal 4,40 41 46 38
53 África do Sul 4,37 95 34 37
56 Brasil 4,33 79 44 46
60 Índia 4,28 96 42 41
64 Rússia 4,25 47 51 99
104 Argentina 3,76 102 97 98
Fonte: World Economic Forum, The Global Competitiveness Report, 2013-2014, p. 16-17.

Esses fatores apresentam especial impacto para as indústrias manufatureiras,


diminuindo absoluta e relativamente suas chances de competir internacionalmente, ao
passo que o setor do agronegócio, a despeito do chamado “custo Brasil”, tem logrado

26
manter sua presença internacional, graças aos avanços tecnológicos, das vantagens
naturais de que goza o Brasil e dos investimentos feitos em inovação (Mota, 2013: 96).

4. A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil


Desde a crise da dívida externa, em 1982, atravessando a longa turbulência dos
planos de estabilização econômica dos anos 1980 e 90 e as crises financeiras do final do
século XX, o Brasil havia oscilado entre vinte primeiras posições na economia mundial.
O Plano Real, ajustado em sua componente cambial em 1999, e combinado às muitas
reformas empreendidas sob os dois mandatos de FHC, preparou as bases da retomada
do crescimento na primeira década do século XXI, ainda que a um ritmo bastante
modesto, no contexto dos demais emergentes dinâmicos. Esse posicionamento é em
grande parte devido à paridade nominal do câmbio, assim que ele pode ser alterado
rapidamente em virtude de mudanças nessa frente: em 1999, por exemplo, a crise
cambial do Real fez com que o PIB brasileiro fosse nominalmente reduzido em
praticamente um terço de seu valor, pela desvalorização então registrada.
Da mesma forma, os efeitos da demanda chinesa sobre os preços dos produtos
brasileiros de exportação, o afluxo de investimentos estrangeiros, com a consequente
valorização da moeda, fizeram com que a economia brasileira conhecesse um grande
salto desde o início da presidência Lula, com a multiplicação por cinco do valor
nominal do PIB (que passou de US$ 550 bilhões a US$ 2,5 trilhões, entre 2003 e 2013,
o que reflete igualmente a valorização da moeda brasileira), com uma redução
concomitante das taxas de inflação e de desemprego (ambas parcialmente subestimadas
no período recente, tanto em função de medidas de política econômica, que congelaram
diversas tarifas públicas, quanto por razões metodológicas, com uma pesquisa apenas
parcial do mercado de trabalho). No plano externo, o governo Lula foi bafejado pela
forte demanda da China por produtos primários, cuja voracidade pelas matérias-primas
exportadas pelo Brasil beneficiou duplamente o país: pelo volume exportado e,
especialmente, pelos preços valorizados; tal tipo de estímulo pode ter contribuído com
um terço do crescimento registrado durante a maior parte dos dois mandatos.
As taxas de poupança interna, em todo caso, continuam em patamares inferiores
ao que seria necessário para sustentar taxas mais vigorosas de crescimento econômico,
mesmo em presença de fluxos satisfatórios de investimento direto estrangeiro, o que
pode ser visualizado na tabela 7.

27
Tabela 7
Poupança nos Brics, 2013
Países Taxa de Poupança: % do PIB
China 49,7
Índia 30,2
Rússia 28,8
Brasil 16,2
África do Sul 13,4
Fonte: Economy Watch
(http://www.economywatch.com/economic-statistics/economic-
indicators/Gross_National_Savings_Percentage_of_GDP/ )

Com a manutenção dos elementos centrais da política econômica anterior – o


sistema de metas de inflação, a flutuação cambial e, parcialmente, a responsabilidade
fiscal – os frutos foram colhidos sob a forma de taxas mais vigorosas de crescimento, de
2005 a 2008, comparativamente ao período anterior (como já registrado na tabela 4).
Com efeito, embora o governo Lula tenha conhecido taxas de crescimento
econômico ligeiramente superiores àquelas registradas sob os dois mandatos de FHC
(que enfrentou crises financeiras sucessivas) e pressões inflacionárias mais moderadas,
essa situação foi lograda com base num ambiente internacional extremamente favorável,
quando os preços das commodities exportadores conheceram picos jamais igualados nas
séries históricas anteriores, com base numa demanda chinesa que definiu padrões quase
coloniais de especialização produtiva. Seja por indução externa ou por inação interna,
os dois processos identificados com o governo Lula – e objeto de intenso debate entre
os economistas e os empresários nacionais – respondem aos conceitos de primarização
(commoditization) e de desindustrialização, embora ambos os termos necessitem ser
devidamente qualificados para não se prestarem a equívocos conceituais ou práticos.
A primeira caracterização se refere, basicamente, ao aumento da participação
dos produtos primários na pauta de exportação, ainda que as atividades agropecuárias,
estrito senso, e as de mineração, continuem ocupando peso relativamente menor no
conjunto da economia. Esse aumento é devido à valorização geral das commodities na
primeira década do século 21, para picos jamais alcançados na história do comércio
internacional (ver figura 6). Ainda que o movimento tenha sido parcialmente revertido
desde a crise de 2008, esses preços continuam a manter-se em patamares historicamente
elevados, o que deve garantir, pelo futuro previsível, receitas satisfatórias para as
empresas engajadas na atividade primária e de extração mineral no Brasil.

28
Figura 6
Índice de preços de todas as commodities, 2000-2014
(excluindo o petróleo)

Fonte: IMF Commodity Prices (http://www.imf.org/external/np/res/commod/Charts.pdf).

Levando-se conta o grau de modernização já logrado pelo agronegócio, deve-se


considerar na atividade toda a cadeia envolvida no setor, com tecnologia e serviços de
alta qualidade, o que aumenta o seu peso geral na formação de valor; por outro lado, a
modernização tecnológica do setor mineral, inclusive o processamento realizado por
empresas avançadas como a Vale (a pelotização, por exemplo), também contribuem
para a agregação de valor nesse ramo, o que permite relativizar o conceito e o processo
real de primarização. De forma geral, tanto as atividades agrícolas e pecuárias, como as
minerais, mantêm alto grau de integração com o setor industrial e com todos os serviços
de logística e de comercialização que lhes são associados, inclusive em áreas inovadoras
como a pesquisa biotecnológica, e constituem, portanto, fatores reais de avanço, não de
atraso tecnológico ou de redução do valor agregado para o conjunto da economia.
No caso da desindustrialização, trata-se de um fenômeno complexo que não se
resume apenas à perda de peso da indústria de transformação na composição do PIB,
processo que vem ocorrendo em todas as economias relativamente sofisticadas, nas
quais se observa o crescimento do terciário em detrimento dos dois outros setores. No
Brasil, porém, pode estar acontecendo um processo de desindustrialização precoce e um
outro de terciarização precária, caracterizada por trabalhos de baixa remuneração numa
gama extremamente ampla de serviços. Os fatores estão menos relacionados com a
concorrência chinesa em produtos manufaturados, ou com problemas cambiais – ainda
que a valorização tenha realmente existido – e mais com os velhos problemas do “custo
Brasil” e novas dificuldades criadas pela política do governo de valorizar continuamente
29
o salário mínimo, reduzindo a competitividade num insumo estratégico para a indústria.
Uma consulta aos relatórios anuais do Banco Mundial sobre o ambiente de negócios
pode confirmar a origem dos problemas que afetam a indústria, que tem a ver mais com
o quadro regulatório interno do que com desafios externos (IFC-World Bank, 2014).
É um fato que os termos de troca da economia brasileira, entre os anos 1990 e a
década seguinte, melhoraram sensivelmente, mas especialmente entre os anos 2001 e
2008, como resultado da enorme demanda chinesa pelos seus produtos de exportação.
As alavancas desses valores em alta nada tiveram a ver com políticas de governo, e sim
com os mercados de matérias primas, totalmente independentes da ação dos governos
ou de empreendedores. Esse crescimento foi praticamente exponencial e, desde 2009, a
China ultrapassou os EUA como o principal parceiro comercial do Brasil, posição que o
gigante norte-americano tinha ostentando durante mais de um século. As exportações
cresceram muito mais em valor do que em volume, gerando enormes fluxos de divisas
que contribuíram inclusive para valorizar a moeda brasileira, o que está parcialmente na
origem de algumas das referidas dificuldades da indústria nacional.
A partir desse fluxo ampliado de recursos externos o governo passou a acumular
reservas em divisas internacionais em volume exageradamente superior às necessidades
geralmente apontadas como suficientes para enfrentar eventuais problemas de balanço
de pagamentos, equivalente a 3 meses de importações. Ao mesmo tempo em que tal
medida forneceu garantias na frente cambial, ela criou um custo fiscal extraordinário
para as despesas governamentais, equivalente ao diferencial de juros entre os títulos da
dívida pública emitidos internamente para financiar a compra de dólares – a uma taxa
superior a 11% aproximadamente – e os juros recebidos pelas aplicações do Tesouro
brasileiro em Treasury bonds, que exibem níveis praticamente irrelevantes em termos
reais. Simultaneamente, como já registrado na tabela 4, ocorreu um processo gradual de
esvaziamento da oferta industrial no valor agregado da produção anual, mas a oferta
chinesa tem pouco a ver com esse fenômeno, bem mais atribuível ao chamado “custo
Brasil” e a todos os demais fatores já examinados anteriormente. A inflação tem se
mantido teimosamente no limite superior da banda fixada pelo Conselho Monetário
Nacional (de 6,5%), ao lado da elevação do custo do trabalho em patamares superiores
aos do custo de vida e do crescimento da produtividades, o que também reforça a falta
de competitividade da indústria.
A despeito desses fatores, o Brasil se converteu em credor externo – pelo menos
nominalmente, uma vez que os swaps contratados pelo Banco Central consomem, em
30
princípio, uma boa parte das reservas em divisas – e passou a figurar nos rankings
internacionais numa posição por vezes mais favorável que vários outros membros do
G20 financeiro, ou mesmo do G7. O crescimento do crédito interno, a contínua atração
de capitais internacionais – motivados por juros persistentemente altos – e os níveis
aparentemente modestos de desemprego formal (porém contrapostos a fenômenos
potencialmente nefastos do ponto de vista dos mercados de trabalhos, como o Bolsa
Família), ademais do grau relativamente moderado do endividamento público (também
disfarçado por uma “contabilidade criativa”, o que já chamou a atenção das agências de
classificação de risco), fizeram do Brasil um país apreciado pelos investidores externos,
mantendo-o com uma boa imagem nos foros internacionais, apesar de fragilidades
notórias em várias áreas macro e microeconômicas e de infraestrutura.
O que realmente impulsionou a imagem do Brasil no cenário internacional foi
uma diplomacia extremamente ativa, empreendida pessoalmente por Lula e por seu
chanceler, secundada pela máquina profissional do serviço exterior e por uma intensa
campanha de publicidade concentrada na figura do chefe de Estado, que já beneficiava
de uma imagem bastante positiva nos meios de comunicação, em função de sua história
de certa forma inédita para os padrões de líderes políticos eleitos de forma democrática.
Ademais das iniciativas tomadas no âmbito da América do Sul e da África, Lula e seu
chanceler deram ênfase ao fortalecimento de laços com grandes parceiros estratégicos
que a diplomacia partidária, implicitamente antiocidental, considerava como sendo de
emergentes “não-hegemônicos”. Entre eles figuravam a Índia e a África do Sul, com os
quais o Brasil constituiu o Ibas (em 2003), após o que Lula se dedicou a unir a América
do Sul em torno de sua planejada Comunidade Sul-Americana de Nações, que deveria
ser um foro destinado a manter a região “fora da tutela” do “império”, como várias
vezes repetido pelos promotores da ideia. O empreendimento sul-americano de Lula,
criado formalmente no final de 2004, não saiu exatamente como encomendado, uma vez
que Chávez, já em competição com Lula pelo papel de líder da região, manipulou para a
ela se transformasse, em 2008, na União das Nações Sul-Americanas (Unasul), com um
secretariado estabelecido na capital do seu aliado bolivariano, em Quito.
A sugestão do Bric, que começou a circular com maior intensidade nos meios de
informação em meados da década veio bem a calhar para elevar ainda mais o status do
Brasil no plano internacional. Os entendimentos iniciais foram feitos pelos chanceleres
da Rússia e do Brasil, ambos decididos a transformar um bloco virtual em um grupo
político-diplomático, dotado da vocação implícita para servir como contrapeso ao G7,
31
ou talvez até com a pretensão (não explícita) de oferecer a esse grupo tradicional uma
concorrência de potências emergentes não centrais. Esse perfil servia inteiramente às
novas lideranças políticas brasileiras, bastante confortáveis nesse papel de contestador
moderado da velha ordem hegemônica das antigas potências imperiais. A despeito de
uma identidade inicial construída em torno dois componentes objetivos – dimensão das
economias e dinâmica de crescimento – o fato é que o Brics tem buscado afirmar-se
como uma alternativa às respostas de ordenamento mundial que vinham sendo
patrocinadas até aqui pelos líderes do G7, considerados como pouco representativos das
novas tendências mundiais (Mazower, 2012).

5. A política externa brasileira desde 2003 e sua atuação no âmbito do Brics


Como típico partido esquerdista latino-americano, a “política internacional” do
PT sempre foi marcada por um anti-imperialismo instintivo e por um antiamericanismo
infantil, o que sempre o colocou do lado dos adversários do grande irmão hemisférico,
quaisquer que fossem eles. Também fazia parte dessa postura um apoio de princípio às
“lutas dos povos oprimidos” contra as “potências hegemônicas”, e um compromisso de
forma e de substância com os autoproclamados regimes progressistas ou de esquerda, na
região e fora dele. Deve-se igualmente considerar os laços íntimos mantidos por vários
dos seus dirigentes, saídos da guerrilha contra o regime militar, com os dirigentes
cubanos, além de diversos outros vínculos cultivados com partidos e movimentos de
esquerda ao redor do mundo, mesmo quando fossem ditaduras que de outro modo
sufocavam os direitos dos trabalhadores que o partido dizia defender no Brasil.
Antes mesmo de assumir o poder, Lula e o PT já prometiam conduzir uma
política externa alinhada com essas teses típicas dos movimentos esquerdistas dos anos
1960 e 70, mas que tinham sido restauradas e colocadas sob um novo formato depois da
queda do muro de Berlim, entre outros mecanismos através do Foro de São Paulo,
criado em 1990, sob a iniciativa aparente do PT, mas de fato controlada totalmente
pelos dirigentes comunistas cubanos. Tendo visitado a China um ano antes de sua
vitória eleitoral de 2002, Lula prometia estabelecer, de modo preventivo e unilateral,
uma aliança estratégica com a República Popular, que ele imaginava que viria a ser o
grande parceiro das causas políticas internacionais do PT no governo. Aliás, antes
mesmo de se instalar no comando do Estado, Lula já movimentava a diplomacia
brasileira em apoio a seu amigo Chávez, que enfrentava grandes dificuldades com a
oposição política a seu modelo socialista, requerendo, e obtendo, do governo FHC um
32
navio inteiro carregado de combustíveis, para romper uma longa greve dos funcionários
da companhia estatal venezuelana de petróleo. Não admira, assim, que todas as demais
iniciativas diplomáticas de seu governo tenham sido no sentido de apoiar esse tipo de
regime, na região e no mundo, e de se contrapor, numa linha coincidente com o regime
comunista cubano, à maior parte das políticas inspiradas ou sustentadas pelos Estados
Unidos, na região ou alhures (como no caso da invasão do Iraque, por exemplo).
O primeiro mandato do presidente Lula foi marcado, no plano externo, por seus
esforços intensos para criar mecanismos exclusivamente sul-americanos de coordenação
política – os quais resultaram na criação da Unasul, embora não no formato talvez
desejado pela diplomacia do seu governo – e por iniciativas tomadas no âmbito da
chamada diplomacia Sul-Sul: criação do grupo Ibas, as cúpulas presidenciais entre sul-
americanos e chefes de Estado e de Governo dos países árabes e africanos, além da
busca de parcerias estratégicas com um número seleto de atores “não-hegemônicos”,
tidos como suscetíveis de responder a acenos no sentido de “mudar a relação de forças
no mundo” e de criar uma “nova geografia do comércio internacional”. O mesmo
determinismo geográfico marcou a maior parte de suas viagens ao exterior, repetidas
dezenas de vezes no contexto sul-americano e uma dúzia de vezes em direção do
continente africano, além dos parceiros estratégicos na Ásia e em outras regiões.
As iniciativas tinham como propósito reforçar o atingimento dos três principais
objetivos diplomáticos do governo Lula, como tais proclamados desde o primeiro dia do
seu primeiro mandato: a) o primeiro e o mais obsessivo era o de conquistar uma cadeira
permanente no Conselho de Segurança da ONU (pretensão, aliás, que nunca figurou nos
documentos políticos do partido, tendo sido mais bem impulsionados pelos diplomatas
que serviam ao seu governo); b) reforçar e ampliar o Mercosul, fazendo dele o núcleo
de um espaço econômico integrado na América do Sul, e secundariamente uma espécie
de fortaleza antiamericana nos planos político, comercial e estratégico; c) concluir as
negociações comerciais da Rodada Doha, num sentido favorável às teses brasileiras, ou
seja, obter uma ampla liberalização dos mercados agrícolas (o que sempre figurou na
agenda da diplomacia profissional), ao mesmo tempo em que se afirmava a necessidade
(já em consonância com a ideologia econômica do partido) de preservar a “soberania
econômica” do país e assegurar “espaços de liberdade para a tomada de decisões sobre
políticas nacionais de desenvolvimento” (Almeida, 2012).
O projeto de se constituir o Bric “diplomático” sequer entrou em cogitação
durante o primeiro mandato de Lula, embora a sigla estivesse “à disposição” desde 2001
33
e que as relações com seus integrantes designados já estavam sendo impulsionadas nos
planos bilateral e plurilateral. Com efeito, paralelamente a essa consolidação das
parcerias estratégicas (previamente definidas), a diplomacia de Lula deu enorme
importância, durante o primeiro mandato, às ações desenvolvidas no âmbito do Ibas,
embora com objetivos mais vinculados ao desenvolvimento e a cooperação trilateral –
ademais de certa coordenação na agenda multilateral – do que propriamente à grande
ambição de estabelecer uma competição com o grupo hegemônico no ordenamento
mundial tradicional. A ideia do Bric foi amadurecendo lentamente, à medida que o
bloco virtual recebia a atenção dos investidores internacionais, a partir, justamente, dos
fatores selecionados na sua atratividade de origem: as oportunidades de retornos
ampliados com base nas dimensões demográficas e nas dinâmicas de mercados em
crescimento rápido. O Brasil não se caracterizava especialmente por taxas elevadas de
crescimento econômico, tanto quanto um ambiente de negócios desimpedido era apenas
parcialmente válido no caso do Brasil, mas a forte personalidade de Lula, e sua ativa
diplomacia, compensavam os magros resultados apresentados pelo país em termos de
crescimento e de abertura aos investimentos.
Quando a iniciativa finalmente frutificou, já no segundo mandato de Lula, com a
plena aceitação do acrônimo Bric e sua rápida apropriação política pelos chanceleres da
Rússia e do Brasil, a diplomacia do governo Lula se movimentou rapidamente para
consolidar o que, até então não era apresentado nem como grupo, nem como bloco, mas
como um simples foro de conversações e de convergência política em direção de
objetivos comuns no plano da agenda mundial. Essa convergência, justamente, se
revelou mais complicada do que as promessas iniciais. Diferentemente do Ibas, mas
animado por propósitos semelhantes, os quatro membros do Bric, no que se refere à sua
primeira agenda de trabalhos, em nível ministerial, buscavam uma coordenação para um
posicionamento comum em relação a diferentes temas em debate no cenário mundial,
em especial no terreno econômico, que era o elemento pelo qual eles foram distinguidos
pelo economista do banco de investimentos que propôs a sigla, ou seja, a capacidade de
serem grandes mercados emergentes, suscetíveis de acolher oportunidades de ganhos
ampliados para os investidores globais.
Para a diplomacia de Lula, os objetivos principais eram de natureza política, a
exemplo do não obscuro e pouco discreto desejo de conseguir uma cadeira permanente
no CSNU. Nesse terreno, não houve, porém, unidade de propósitos no Bric no tocante à
reforma da Carta da ONU e à ampliação de seu Conselho de Segurança, para a grande
34
frustração dos dois candidatos a cadeiras permanentes, o Brasil e a Índia. Os quatro
Brics tampouco obtiveram perfeita coordenação econômica no que se refere a temas
inscritos na agenda das reuniões técnicas, ministeriais ou de cúpula do G20 financeiro,
entre eles o da reforma das instituições de Bretton Woods ou as medidas a serem
adotadas com relação a questões sensíveis para certos países, mas de interesse de alguns
membros do Bric, como por exemplo o da chamada “guerra cambial”, terreno no qual
nunca foram registrados resultados tangíveis, inclusive em virtude de uma oposição não
coincidente dos dois membros mais poderosos do G20, os EUA e a China. Essa
coordenação parece se afigurar ainda mais problemática a partir da incorporação, um
ano depois da primeira cúpula, da África do Sul, com o que o grupo passou a ser
conhecido como Brics. O Brasil não era, a princípio, favorável a essa nova adesão,
preferindo preservar uma diferenciação do Bric em relação ao Ibas, mas teve de se
dobrar aos interesses da China nesse particular.
As relações com a China, aliás, seja no âmbito do Brics, ou bilateralmente,
parecem ter acumulado alguns motivos de frustrações – não reconhecidas – para o
governo de Lula e do PT, uma vez que o gigante asiático nunca demonstrou dar a
mesma prioridade à substância desse relacionamento que o atribuído por Lula
pessoalmente ou por sua diplomacia. Não apenas pela falta de apoio na questão da
pretensão brasileira a uma cadeira permanente no CSNU, mas também pela falta dos
vultosos investimentos diretos esperados pela parte brasileira, essas relações foram
sendo marcadas por certa dose de unilateralismo chinês – nas questões do comércio de
grãos e de minérios, por exemplo – ou na concretização de acordos de cooperação
bilateral nos terrenos econômico e tecnológico. Mesmo um acordo antigo e já testado,
como a parceria para o lançamento de satélites brasileiros por veículos chineses –
conhecido pela sua sigla CBERS –, sofreu diversos contratempos, entre eles o fracasso
no posicionamento do CBERS-3 e o desinteresse prático da China por um CBERS-4.
A Rússia, por sua vez, tem a sua própria agenda de política internacional, bem
mais voltada para seus interesses estratégicos, regionais e geopolíticos, para se dedicar
intensamente a um grupo que teoricamente procurava fazer o contrapeso ao outro clube
ao qual ela pertencia desde o final dos anos 1990, o G8, ainda que neste, bem mais nos
seus vetores políticos do que nos econômicos e financeiros. Em todo caso, a Rússia não
fez nenhuma concessão aos interesses econômicos brasileiros quando negociava sua
adesão à carta da OMC e aos compromissos econômico-comerciais do Gatt e dos
demais acordos administrados pela organização de Genebra. O Brasil não conseguiu
35
obter cotas concessionais, nem foi beneficiado por tarifas que facilitassem o seu acesso
aos mercados da Rússia e da CEI para seus principais produtos de exportação.
Da mesma forma, no caso da Índia e de seus interesses regionais e mundiais,
enquanto Estado nuclear e economia fortemente inserida nos mercados de tecnologias
de informações e de comunicações, a interface com a diplomacia do governo Lula não
era muito extensa, e sempre ficou limitada a posicionamentos defensivos no quadro das
negociações na OMC e outras questões típicas de uma era praticamente ultrapassada, a
do tratamento diferencial e mais favorável para países em desenvolvimento, princípio
ao qual os dois países se aferram quase religiosamente, numa fase de grandes avanços
na diferenciação do bloco outrora mais unido do Terceiro Mundo. Tanto quanto a China
e alguns outros países em desenvolvimento supostamente aliados da diplomacia lulista,
a Índia tampouco aderiu a todas as teses brasileiras mesmo fazendo parte do G20
comercial, uma vez que pretendia manter – em contradição com seu apoio ao fim de
todos os subsídios agrícolas por parte dos países desenvolvidos – não apenas níveis
arbitrários de subvenções internas e de protecionismo comercial, como também o
direito de barrar importações ou de suspender exportações em caso de desequilíbrios
comerciais repentinos nos mercados de alimentos. Em outros termos, nenhum dos
demais membros do Brics – inclusive a África do Sul, que ensaiou impor sanções
antidumping contra produtos alimentícios brasileiros – partilha verdadeiramente dos
objetivos brasileiros de liberalização agrícola, embora todos eles comunguem da mesma
oposição de princípio a “excessos” de liberalização no comércio de manufaturados.
Independentemente dessas contradições em questões tópicas ou em temas
setoriais, é um fato que a diplomacia do PT se sente mais à vontade no âmbito do Brics
do que no diálogo com as potências do G7, embora o primeiro grupo tenha tido um
desempenho modesto na promoção de uma agenda alternativa à oferecida pelos países
avançados, mais concentrados na liberalização ampliada dos mercados, na defesa de
regras mais estritas para propriedade intelectual e para investimentos e fluxos
financeiros, e em meio ambiente, do que nas questões do desenvolvimento, do acesso à
tecnologia e na abertura (mas seletiva) dos mercados agrícolas, como pretendem os
países em desenvolvimento, em primeiro lugar o Brasil, a Índia e a África do Sul.
Dentre os temas do G20 financeiro, tem havido certo consenso no seio dos Brics –
exceto pela questão cambial – quanto à reforma de foros e instituições dessa área, como
o poder de voto nas organizações de Bretton Woods, bem como a preservação da
soberania nacional nos fluxos financeiros (como controles de capitais e intervenções
36
cambiais, por exemplo). Esta é, provavelmente, uma das poucas áreas em que pode
existir convergência entre os Brics, a despeito de diferenças notórias em várias outras.
De fato, os Brics possuem, na economia mundial, um peso bem maior do que o
seu poder de voto conjunto nas instituições de Bretton Woods, embora estas considerem
outros critérios, que não apenas o PIB – como a participação no comércio e nas reservas
internacionais –, para fins de cálculo do volume de cotas requeridas nas tomadas de
decisão. Esta é provavelmente a razão essencial para que, por ocasião da cúpula de
Fortaleza, realizada em julho de 2014, tenha sido aprovada a criação de um banco dos
Brics (com capital autorizado de US$ 100 bilhões, subscrito à razão de 50%, dividido
igualmente entre eles) e de um fundo contingente de reservas destinado a empréstimos
emergenciais (pelo valor total de US$ 100 bilhões, com quase a metade integralizado
pela China). A rigor, nenhum dos Brics necessitaria, por motivos estritamente
econômicos, dos recursos dessas duas novas instituições, a menos que seja para
contornar os requerimentos técnicos mais exigentes para os projetos que são financiados
pelo Banco Mundial e para aceder a uma nova fonte de capitais não condicionados a
políticas de ajuste no modelo do FMI; em ambos os casos, trata-se, fundamentalmente,
de uma decisão política, que tem a ver com o prestígio internacional dos Brics, e com a
utilização do banco para projetos de desenvolvimento em direção de países que talvez
não possam ser adequadamente assistidos pelas instituições de Washington.
O poder econômico real e a capacidade financeira de alavancagem operacional
desses dois novos instrumentos, que confirmam certa consolidação institucional do
Brics, residem evidentemente na China, que deverá moldar a maior parte das regras de
gestão e de mobilização de capitais segundo seus próprios interesses nacionais. De toda
forma, vários países da América Latina – e um número expressivo deles na África – têm
na China um grande, em muitos casos o maior, parceiro comercial, posição que vai se
estendendo igualmente aos terrenos financeiro e de investimentos. Assim, seja no caso
do Brasil, seja no de outros países, que buscam compreensivelmente apresentar a
parceria com a China como constituindo um relacionamento igualitário, tanto a direção,
quanto a forma e o conteúdo da agenda de relacionamentos são determinados em grande
medida pelo país asiático. Tal realidade também se reflete no plano plurilateral do Brics.

6. Conclusões: o que busca o Brasil nos Brics?; o que deveria, talvez, buscar?
Esta é uma pergunta que não pode ser respondida com esse sentido unitário, ou
nacional, que está subentendido pelo conceito de país (ou de Estado). Como é o caso de
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grande parte das, senão de todas as, iniciativas de política externa tomadas no âmbito da
diplomacia brasileira desde 2003, não se pode dizer, exatamente, que elas tenham sido
concebidas por seu staff diplomático, ou que elas correspondam a um determinado
consenso nacional em torno das opções escolhidas, das políticas adotadas, das ações
empreendidas, em âmbito regional, bilateral, pluri ou multilateral. Não; elas são
claramente o resultado de escolhas do partido hegemônico, superficialmente temperadas
por alguns formalismos diplomáticos, mas profundamente impregnadas por conceitos,
objetivos e metodologias diretamente produzidas a partir da Weltanschauung partidária
do PT, expressando, basicamente, suas concepções políticas (em alguns casos, até, suas
práticas semiclandestinas, que se desdobram paralelamente à ação do Estado brasileiro.
Esta é uma constatação que pode ser feita a partir de uma análise do discurso e da
prática da diplomacia brasileira desde 2003, ainda que elas tenham sido elaboradas
basicamente – por vezes até inteiramente – no âmbito institucional das relações
exteriores oficiais, mas elas expressam um profundo sentido partidário, como jamais
ocorreu antes no Brasil.
É sob essa perspectiva que cabe interpretar a participação do Brasil no Brics,
bem como as modalidades adotadas para definir políticas puramente diplomáticas, ou de
natureza econômica, ou ainda com certo sentido social ou cultural, conforme seja o caso
dos temas na agenda. Seria possível conceber o Brasil no Brics sob um outro tipo de
governo? Provavelmente sim, ainda que as escolhas, os discursos e as opções políticas e
diplomáticas pudessem ser outros, parcialmente ou totalmente diferentes das iniciativas
que foram sendo tomadas desde meados da década passada, e que se materializaram no
tipo de participação que o governo do PT vem imprimindo à ação do Brasil no Brics. As
alternativas às políticas efetivamente adotadas no Brics, eventualmente tomadas por um
governo diferente – de inspiração liberal clássica, possivelmente, ou mesmo social-
democrática da vertente reformista capitalista – talvez não fossem tão radicalmente
diferentes quanto as preferidas por um governo declaradamente socialista (como ainda
se pretende o PT), mas uma última reflexão sobre o sentido do Brics, o que ele
representa no mundo, e sobre os países que o integram, pode oferecer uma plataforma
conceitual para algumas reflexões conclusivas sobre o papel do Brasil no Brics.
A primeira constatação a ser feita é que o grupo, ou bloco, ou foro, é tão
desigual, ou “assimétrico”, quanto parece ser o Nafta, o acordo de livre comércio da
América do Norte, com a diferença que o Nafta aspira apenas a ser o que ele é, um
acordo de livre comércio, e não um instrumento para a coordenação de posições no
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plano internacional. A China – como parece ser o caso dos EUA no Nafta – representa,
de certo modo, “metade” dos Brics para os componentes mais relevantes desse grupo
(economia, finanças, crescimento, investimento, etc.), ainda que Rússia, por um lado, e
Índia e Brasil, por outro, tenham certo peso na conformação dos temas e formato das
agendas dos encontros ministeriais e de cúpula, tanto quanto nos termos das declarações
aprovadas. Esta é uma realidade que se coaduna com a presente fase de nova “guerra
fria econômica”, em substituição à velha Guerra Fria geopolítica que existia na era
bipolar (Almeida, 2011). Pode-se dizer do Brics algo semelhante ao que Nixon havia
dito ao ditador brasileiro, quando de sua visita a Washington em 1972: “Para onde se
inclinar o Brasil, se inclinará a América Latina”. Exagerado, certamente, mas não é
difícil concluir, igualmente, que o Bric dificilmente poderá escapar do que se poderia
chamar de “sobredeterminação chinesa”.
A diplomacia do PT no governo tem procurado fazer do Brics uma grande
alavanca de sua presença internacional, talvez como compensação por algumas
frustrações no plano regional da América do Sul, onde sua liderança nunca foi acolhida
de forma consensual; ao contrário, ela sofreu a oposição velada, mas concreta, da
Argentina, bem como de outros países, mesmo aqueles considerados aliados no terreno
das simpatias ideológicas, como poderia ser o caso da Venezuela ou da Bolívia. Embora
a consulta e coordenação de posições nos Brics tampouco seja isenta de fricções e de
interesses diferenciados, o grupo tem procurado mostrar ao mundo uma frente comum
que busca se apresentar como uma alternativa à velha preeminência econômica e
diplomática do G7 (que talvez volte ao seu formato anterior, em vista dos percalços da
Rússia no G8, como resultado de suas ações no entorno imediato, em especial no caso
da crise política da Ucrânia).
A questão relevante para a diplomacia brasileira, não suficientemente discutida
seja no âmbito profissional do seu corpo de servidores do Itamaraty, seja no plano da
opinião pública responsável (mídia, academia) ou da sociedade, de modo geral, é a de
saber se as iniciativas do governo petista atendem a todos os critérios, constitucionais
inclusive, que deveriam pautar as relações exteriores do Brasil no âmbito multilateral e
no quadro de suas relações bilaterais. Dois componentes importantes dentre o conjunto
de valores e princípios pelos quais o Brasil se deve guiar em suas relações externas –
mas regularmente e consistentemente “esquecidos” ou obscurecidos pelo Brics, em suas
reuniões e declarações – são as dimensões dos direitos humanos e da democracia, temas
que muito marcaram a sociedade brasileira na sua longa trajetória de saída do regime
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autoritário dos militares (1964-1985) para a igualmente lenta consolidação de sua
democracia política, mas que é ainda muito frágil no respeito aos direitos humanos, ou a
simples direitos elementares dos seus muitos cidadãos de condição social modesta.
Democracia e direitos humanos são moeda corrente nos encontros do G7, como
de resto nos foros euro-atlânticos, de modo geral, mas são bem mais raros, se por acaso
aparecem, nos encontros do Brics. Dos quatro integrantes originais do Bric, os dois ex-
socialistas apresentam características autoritárias, resultado de um legado de séculos de
tradição totalitária, e que ainda não evoluíram para democracias de verdade (e talvez
demorem a fazê-lo). Os outros dois apresentam trajetórias democráticas mais ou menos
consolidadas, ainda que com deficiências de funcionamento e de justiça social, mas
também são as economias de mercados que mais se aproximam dos padrões capitalistas
de organização. O quinto membro, já no quadro do Brics, emergiu há menos de uma
geração de uma longa história de segregação racial e de Apartheid social, que ainda
parecem pesar no seu processo de desenvolvimento e de construção de uma nova
institucionalidade; no plano social, ele parece longe do ideal de uma sociedade
inclusiva, de características multirraciais, como é, por exemplo, o Brasil.
O Brasil, de todos eles, era o que possuía as estruturas capitalistas mais
avançadas, embora a China venha fazendo enormes progressos nessa direção, podendo
ser considerada, atualmente, e sob certos aspectos, mais “capitalista” do que o próprio
Brasil. No plano do seu ordenamento social, o Brasil ostenta a mais moderna dentre as
sociedades do Brics: inclusiva, multirracial, religiosamente diversa e tolerante, e aberta
a todos os influxos externos da globalização capitalista. O Brasil também parece ser a
sociedade mais integrada – nos planos linguístico, cultural, étnico e, talvez, religioso – o
que permite, em princípio, melhores formas de administração política, sem rupturas
institucionais, com condições mais favoráveis para a continuidade de sua modernização.
O grau relativamente avançado de democratização social – a despeito dos enormes
defeitos de sua superestrutura política, excessivamente marcada pela corrupção – pode
tornar mais lento o ritmo de crescimento econômico e os processos de adaptação aos
novos ambientes globais, mas isso também pode contribuir para uma maior coesão em
torno dos objetivos nacionais (Almeida, 2009). Infelizmente, a educação de qualidade
ainda não parece fazer parte desses objetivos nacionais prioritários, e é isso que torna
mais lento o crescimento do Brasil, por representar uma enorme bola de ferro amarrada
aos vetores dos ganhos de produtividade.

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Pode o Brics, enquanto grupo, enquanto organização que parece tender a maior
grau de formalização, contribuir para o avanço político, econômico, social, espiritual, de
seus membros, individualmente, ou em conjunto? Talvez, mas conviria receber com
algum ceticismo sadio tais pretensões, que não parecem fazer parte da “ideologia” dos
Brics, se algo desse gênero existe como substrato “filosófico” aos objetivos políticos e
diplomáticos desse novo foro de consulta e coordenação relativamente sui generis. Todo
foro de consulta e coordenação política é, por princípio, positivo nas diversas dimensões
sobre as quais ele atua, uma vez que reforça laços de cooperação e diminui, no mesmo
plano de inserção internacional, os pontos de fricção que porventura possam existir
entre eles, ou entre eles, como bloco, e outros membros da comunidade internacional.
Mas cabe reconhecer igualmente que a aproximação entre os Brics, e sua atuação
enquanto grupo, não se deu exatamente em torno de uma grande plataforma comum de
objetivos e valores voluntariamente compartilhados – como podem ter sido, por
exemplo, em suas respectivas esferas, a aliança atlântica e a integração europeia – mas
em razão de ganhos políticos e diplomáticos, de cálculos de oportunidade que foram
feitos pelos dirigentes dos países membros, em função de uma determinada conjuntura
da ordem internacional e de alguns traços estruturais de suas próprias sociedades, de
suas economias e de suas formações políticas. O que une os Brics, portanto?
O que parece unir todos os membros do Brics – ou pelo menos seus dirigentes
atuais – numa mesma plataforma comum de ação são duas características contingentes,
que talvez possam ser alteradas num futuro de médio prazo. No plano interno, eles
parecem partilhar da crença que os poderes do Estado são capazes de corrigir ou, caso
necessário, até a se contrapor a tendências ou ao fluxo “natural” dos comportamentos
dos mercados. Em outros termos, existe uma aposta implícita no sentido de que seus
próprios governos encontram-se em condições de influenciar decisivamente a ação dos
agentes primários dos mercados, o que pode, talvez, ser verdade para suas respectivas
empresas nacionais, mas se torna especialmente problemático no caso de grandes
empresas transnacionais, em especial considerando-se a natureza da interdependência
econômica contemporânea e dos circuitos da integração produtiva e comercial.
No plano externo, eles têm a pretensão de contrapor sua própria interpretação do
que seja a democratização das relações internacionais e o tratamento da agenda mundial
de assuntos correntes de forma diferente, em alguns casos oposta, ao que vem sendo
oferecido pelas tradicionais potências do G7, consideradas, implícita ou explicitamente,
como potências “hegemônicas”. A declaração emitida ao final do primeiro encontro de
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cúpula (2010) estabelece claramente que os chefes de Estado estão comprometidos com
“o apoio a uma ordem mundial multipolar mais democrática e justa, baseada no
primado do direito internacional, da igualdade, do respeito mútuo, da cooperação, na
ação coordenada e na tomada de decisão coletiva de todos os Estados.” Além disso, eles
“reiteram seu apoio aos esforços políticos e diplomáticos para resolver pacificamente as
controvérsias nas relações internacionais”.
Trata-se, obviamente, de uma declaração tipicamente diplomática, que poderia
ser igualmente subscrita pelos países membros do G7, ou por quaisquer outros grupos
regionais. Observe-se, porém, a não referência a elementos que poderiam aparecer em
declarações do G7, como por exemplo a defesa dos direitos humanos, das liberdades
democráticas, ou de uma economia aberta à interdependência global. Como pode ficar
evidente pelas ações dos governos atualmente responsáveis nos membros do Brics,
nenhum desses países pode ser considerado, na superfície ou nos seus fundamentos
profundos, uma democracia liberal de mercado, e todos eles partilham de uma crença
comum que a economia deve, sim, ser submetida a regras de ordenamento, ou de
regulação, que contenha tendências “naturais” de mercado que são, de uma forma ou de
outra, consideradas “nefastas” do ponto de vista dos objetivos políticos ou sociais que
seus dirigentes pensam dever implementar para salvaguardar seus objetivos enquanto
Estados ativos na definição das políticas nacionais de desenvolvimento que seus líderes
pensam impulsionar internamente.
Este parece ser o “código secreto” dos Brics, não explicitamente revelado em
suas ações e muito menos em suas declarações, mas implicitamente compreendidos nas
iniciativas diplomáticas que eles tomam, conjuntamente ou individualmente. Poderia ser
diferente? Talvez, mas seria preciso supor outros tipos de governança na China e na
Rússia, principalmente, e secundariamente na Índia e no Brasil, subsidiariamente na
África do Sul, para conceber uma ação conjunta dos Brics de forma ligeiramente ou
radicalmente diferente da que vem sendo adotada pelo grupo desde sua emergência
formal enquanto foro de coordenação política e diplomática. No que se refere ao Brasil
atual, sob a hegemonia do Partido dos Trabalhadores e da figura de Lula, a participação
do Brasil no Brics parece corresponder ao que vem sendo feito em outras esferas e
outros contextos, nos planos regional, bilateral ou multilateral. O sentido do Estado
como “corretor” dos desequilíbrios dos mercados, o papel dirigente da vanguarda
esclarecida a organizar a sociedade e guiar os passos dos cidadãos no emaranhado da
burocracia estatal (mas controlada pelo partido), a suposição de que o mundo é
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composto por interesses conflitantes em face dos quais algumas iniciativas devem ser
tomadas com algum sentido de exclusão – como numa concepção econômica
equivalente ao chamado jogo de “soma zero” – todas essas características cabem no
sentido da ação diplomática tomada pelo governo do PT para sua participação no Brics
e também para diversas outras iniciativas de caráter regional ou plurilateral.
O Brics, na verdade, é uma das poucas iniciativas adotadas, ou “incorporadas”,
pelo governo do PT, não resultando diretamente de seu planejamento político, pelo
menos não diretamente. Mas ele corresponde inteiramente ao que partido teria feito se
lhe fosse dada oportunidade de conceber uma forma de ação diplomática que melhor
expressasse sua concepção do mundo e determinadas iniciativas políticas no âmbito
internacional. Se o Brics não foi feito para o PT, precipuamente, o PT se encaixa muito
bem no espírito político e diplomático do Brics, pelo menos em seu formato político
atual, com a “ideologia” que lhe é implícita nas declarações e ações de seus dirigentes.
Pode ser que o mundo esteja, efetivamente, no limiar de uma nova ordem
internacional, que se pretende multipolar, democrática, respeitadora das soberanias
nacionais, com total autonomia dos Estados sobre suas jurisdições respectivas (e
algumas até mais além). Se este é o caso, a História de fato não terminou, e o mundo
ainda conhecerá novas astúcias da razão a guiar os passos dos dirigentes políticos das
novas potências emergentes. Será o Brasil uma delas? Talvez, mas a História justamente
não terminou...

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Referências:

Almeida, Paulo R. (2014). “Géoéconomie du Brésil: un géant empêtré?”, Géoéconomie,


n. 68, p. 102-115.
_______ (2013). “A Constituição brasileira contra o Brasil: dispositivos constitucionais
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(org.): 25 Anos da Constituição Federal de 1988: uma comemoração crítica.
Brasília: Uniceub, p. 55-81 (disponível:
https://www.academia.edu/attachments/32701652/download_file).
_______ (2012). Relações Internacionais e Política Externa do Brasil: a diplomacia
brasileira no contexto da globalização. Rio de Janeiro: LTC.
_______ (2011). “A economia política da velha Guerra Fria e a nova ‘guerra fria’
econômica da atualidade: o que mudou, o que ficou?”, Revista da Escola de
Guerra Naval, vol. 17 n. 2, Dezembro, p. 7-28 (disponível:
https://www.egn.mar.mil.br/arquivos/revistaEgn/novaRevista/pagina_revista/n1
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43
_______ (2010). “O Bric e a substituição de hegemonias: um exercício analítico
(perspectiva histórico-diplomática sobre a emergência de um novo cenário
global)”, In: Renato Baumann (org.): O Brasil e os demais BRICs: Comércio e
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Relação de Originais n. 2600; Publicados n. 1162.


[1a versão: Hartford, 16 de Abril de 2014;
2a versão: Hartford, 21 de Julho de 2014;
Revisão formal: 16 de Janeiro de 2015]

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