Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Celso Mangucci
Investigador do Centro de História da Arte e Investigação
Artística da Universidade de Évora (CHAIA)
Frontispício do Compromisso da Irmandade de São Lucas
Eugénio de Frias, 1609
Museu Nacional de Arte Antiga
“…não me deis credito, se não for texto expreço da scriptura.”1
18
O programa inicial para o tecto da Ericeira, com menor correspondência doutrinal, previa a representação das Obras
de Misericórdia Corporais e Espirituais complementadas com a representação parcial dos Sete Pecados Mortais e as
armas da confraria. Realizado por dois inexperientes pintores nesta especialidade, uma queda acidental do andaime
provocou a morte de Sebastião Carvalho. Ver: Manuel Luís Violante Batoréo, A pintura e os pintores da Santa Casa da
Misericórdia da Ericeira, Arte e património (Ericeira: Mar de Letras, 1998), 28–49. O pintor de azulejos Manuel António
de Góis (1730-1790) depois de um segundo trabalho na Ericeira, para a capela-mor da Igreja de São Pedro, voltará aos
azulejos e a Lisboa, com uma curta passagem pela Real Fábrica do Rato, para depois abandonar a Arte, por volta de
1771, desgostoso com o clima conflituoso que culminou no despedimento do primeiro director, Tomás Brunetto. Ver:
Cirilo Volkmar Machado, Collecção de memórias, relativas às vidas dos pintores, e escultores, architetos, e gravadores portuguezes, e
dos estrangeiros, que estiverão em Portugal (Lisboa: Imprensa de Victorino Rodrigues da Silva, 1823), 318–19.
Uma outra forma de utilização das imagens, também com objectivos didácti-
cos, foi a elaboração de uma narrativa, entendida não como a simples disposição
de eventos segundo uma ordem tradicional, mas como a criação de um discurso
novo de interpretação dos diversos níveis de significados da palavra sagrada. Uti-
lizando os preceitos da nova escolástica, a narrativa transforma-se num discurso
erudito, organizado como uma peça de Oratória, com um objectivo persuasor
mais vasto, de revelar o conhecimento dos significados literais, alegóricos, tropo-
lógicos e anagógicos expressos na Bíblia.
O tecto do Hospital Real de Todos os Santos, da autoria do pintor régio
Fernão Gomes19, desaparecido na sequência do malfadado incêndio de 1601, mas
que conhecemos através do projecto intitulado “As estórias deste desenho são tiradas
do testamento, novo E velho aplicadas ao ospital”, é uma das primeiras narrativas com
representações alegóricas das Obras de Misericórdia Corporais20.
O conhecimento alegórico21, no sentido particular atribuído pela exegese
bíblica, de entender e decifrar os significados da palavra sagrada, manifesta-se
expressamente no título descritivo do desenho, atribuindo uma chave de corres-
pondência entre o Antigo e o Novo Testamento, em que os episódios da história
do Arcanjo Rafael, e dos patriarcas Abrahão e Lot, são articulados, em paralelo,
como pré-figurações das acções misericordiosas de Cristo.
As pinturas do tecto organizavam uma narrativa com episódios de histórias
diversas que, distribuídos em três fiadas longitudinais, agrupando-se pelos temas
da Salvação, da Hospitalidade e da Cura, procurava revelar os fundamentos bíbli-
cos e sagrados para o programa de acção do Hospital22, entidade tutelada, desde
1564, pela Misericórdia de Lisboa23.
Todo o processo de interpretação alegórica tem como fim último manifestar
a mensagem espiritual do tema representado, ou para utilizarmos a terminologia
19
Sobre a obra do pintor Fernão Gomes (1548-1612) e particularmente sobre a obra em questão veja-se: Dagoberto
L. Markl, Fernão Gomes um pintor do tempo de Camöes: a pintura maneirista em Portugal (Lisboa: Comissão Executiva do IV
Centenário da Publicação de «Os Lusiadas», 1973); Vítor Serrão, ed., A pintura maneirista em Portugal: a arte no tempo de
Camões (Lisboa: C.N.C.D.P., 1995).
20
Do extenso programa iconográfico da igreja do Hospital de Todos os Santos, fazia parte uma galeria retratos régios,
obviamente representados como beneméritos do Hospital e da Misericórdia de Lisboa, e ainda um programa alegórico
para o tecto da capela-mor, sob o tema da Virtude da Misericórdia, realizado pelo pintor Francisco Venegas, talvez de
poucos anos antes, de que subsiste um desenho preparatório, agora nas colecções do Museu Nacional de Arte Antiga
(inv. 666). Vítor Serrão, A pintura maneirista em Portugal.
21
Para uma ampla descrição do conceito de alegoria cristã, informada pela doutrina escolástica e distinta da alegoria retórica
clássica, veja-se: Henri de Lubac, Exégése médiévale: les quatre sens de l’Ecriture (S. l.: Cerf DDB, 1993), vol. IV, 125-144.
22
Apoiamo-nos, no essencial, nas informações históricas e a leitura iconográfica publicadas por Vítor Serrão e
Dagoberto Markl, «Os tectos maneiristas da Igreja do Hospital de Todos os Santos (1580-1613)», Boletim Cultural da
Assembleia Distrital de Lisboa, n. 86 (1980): 161–215.
23
Para uma reconstituição arqueológica e histórica do edifício veja-se: Ana Cristina Leite, ed., Hospital Real de Todos-
os-Santos: séculos XV a XVIII catálogo (Lisboa: Câmara Municipal, 1993).
41
A expressão revela o interesse genuíno pela pintura da época e o conhecimento do vocabulário artístico do período,
utilizado para descrever a representação pouco definida dos limites das formas e das cores, termo que seria também
utilizado, por exemplo, no Trattato dell’arte de la pittura, scoltura et architettura, de Paolo Lomazzo, publicada em Milão,
dois anos depois, em 1584.
42
Gabriele Paleotti, Discorso intorno alle imagini sacre et profane, cap. XIX, p. 63-64. Nossa tradução.
43
O pintor Francisco João foi recebido como irmão em 1563, tendo sido mordomo em, 1567, 1579, 1583 e 1584 e 1591.
Ver: Túlio Espanca, «A obra do pintor Francisco João», A Cidade de Évora XII–XIII, n. 37–83 (1955-1956): 183–200.
44
Vítor Serrão, O fresco maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança (1540-1640) (Fundação Casa de
Bragança, 2008), 155.
45
Para um exame e uma reavaliação do corpus da obra do pintor Francisco João veja-se: Helena Ferreira dos Santos,
«O pintor Francisco João (act. 1563-1595). Materiais e técnicas na pintura de cavalete em Évora na segunda metade do
século XVI» (Universidade Católica Portuguesa, 2012).
Redimir os captivos
João Gresbante, 1640-1649
Misericórdia de Faro
67
Ibid., vol. I, 783-793.
68
Metáfora mencionada e explicada por Diego de Yepes, Discursos de Varia Historia, que tratam de Las Obras de
Misericordia, y otras materias morales (Toledo: Pedro Rodriguez, 1592).
72 Maria do Rosário Salema Carvalho, «A iconografia das Obras de Misericórdia em Arraiolos. Azulejos e Gravuras»,
em Iconografia e Fontes de Inspiração. Imagem e memória da gravura europeia. Actas do III Colóquio de Artes Decorativas (Lisboa:
Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva e Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, 2006).