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O ESPÍRITO DA DÁDIVA
v.5, n.2, jul./ dez. 2014
ISSN: 1982-5447 The World of the Gift
www.cgs.ufba.br
El Espíritu de la Dádiva
Revista do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento
e Gestão Social - CIAGS & Rede de Pesquisadores em
Gestão Social - RGS Jeany Castro dos Santos (UFT)*
Fernanda Rodrigues da Silva (UFT)**
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CADERNOS GESTÃO SOCIAL
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e o não-dito” Godbout (1999, p.13) e, a mesma utiliza-se de uma subdivisão da obra. Na primeira
só acontece e pode ser percebida por meio do parte, intitulada “os lugares da dádiva”, formada
vínculo social que ocorre normalmente entre pelos capítulos de 1 a 6, o autor procurou
três grupos: as pessoas com as quais se deseja identificar a dádiva em diferentes contextos que
relacionar, as que são suportadas e por último envolvem a relação social, uma vez que ela tem
aquelas que não se deseja relacionar, portanto como prerrogativa os vínculos sociais. No que se
para o autor “dádiva serve, antes de mais refere aos vínculos, o autor elucida os aspectos
nada, para estabelecer relações e uma relação que motivam as pessoas a se relacionarem
sem esperança de retorno (por parte daquele a mutuamente, bem como as motivações que os
quem damos ou de outra pessoa que o venha a levam a adotarem atitudes de reciprocidade.
substituir), uma relação de sentido único, gratuita Na esfera doméstica, o autor elenca a
nesse sentido e sem motivo, não seria uma relação entre camaradas, amigos e familiares,
relação” (GODBOUT, 1999, p 16). os dois primeiros compreendem as escolhas do
Godbout por meio dessa obra explana indivíduo, o mesmo não acontece na família,
que a dádiva ainda existe para as pessoas uma vez que independe de sua escolha. Outra
pelas quais se deseja relacionar. Essa busca por proposta do autor foi eleger três promotores
relacionamentos pode se dar de três formas: das relações sociais: Estado, mercado e dádiva.
criar, recriar e manter o vínculo social que Considerando que os três assumem papéis
pode acontecer por meio de bens e serviços centrais na vida em sociedade e em alguma
cujo valor financeiro não é contabilizado e que medida são responsáveis por proporcionar o
necessariamente resultam em uma obrigação bem-estar entre as pessoas. O que difere entre
desobrigada, baseada na convivência entre as os três são as concepções de valores.
pessoas, “é assim que nos expomos não só a Enquanto o mercado se constitui nas
obrigar como a nos tonar obrigados”(GODBOUT, relações institucionais e o relacionamento se
1999, p. 21). Pode parecer um contrassenso, dá mediante a retribuição financeira, o Estado
quando o autor expõe na sequência que a dádiva visa promover a igualdade, solidariedade e
não é gratuita, no entanto, essa afirmativa se dá redistribuição por meio de intermediários em
em virtude da mesma necessitar da reciprocidade uma relação institucional formalizada. Já a
para se constituir “assim, ou a obrigação de dádiva por sua vez se distingue do mercado e
retribuir é assumida, e então se estabelece um do estado na sua essência, uma vez que seus
círculo de relações de pessoa a pessoa, dentro do princípios são permeados pela afinidade, ligações
qual os bens alimentam a ligação, ou é recusada privilegiadas e relações personalizadas, que não
através de uma contradádiva monetária imediata” apenas a caracteriza por definição nas relações
(GODBOUT, 1999, p. 19). pessoais, como também pela responsabilidade
Como bem demonstrou Godbout (1999, p. dos vínculos. O autor apresenta situações em que
24),“a dádiva forma um sistema que constitui a poderia ser problematizada a presença da dádiva,
trama das relações sociais interpessoais”. Quando são elas: doação de sangue e órgãos, grupos como
uma tentativa de aproximação é negada, duas os alcoólicos anônimos, as empresas e o mercado
atitudes podem ser adotadas: tentar novamente da arte composto pelo artista, a obra e o amador
ou finalizar as tentativas em valor de outros de arte, comumente denominado de cliente. Nos
relacionamentos, passando pelos contatos de vários contextos explorados foram elencadas as
amizade, camaradagem ou de vizinhança, em que seguintes tipologias de dádiva, são elas: dádiva
a relação não se constitua por meio das relações unilateral, dádiva desconhecida, dádiva moderna,
mercadológicas. dádiva primitiva e dádiva recebida.
Para aprofundar tais abordagens, o autor O intuito do autor foi, portanto, elucidar
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a essência da dádiva, para tanto a definiu como circuito da dádiva”, formado pelos capítulos 11
sendo o ciclo dar-receber-retribuir, bem como e 12, no qual estabelece, inicialmente, os limites
diferenciou-a de outros atos. O universo da dádiva entre a dádiva e o mercado. Para o autor “a
compreende o ato de perder para ganhar, não se dádiva conserva o vestígio dos relacionamentos
dá apenas para receber, mas essencialmente para anteriores, para além da transação imediata. Ela
que o outro se permita dá, nas palavras do autor: tem memória, ao contrário do mercado, que só
“como é que se pode ao mesmo tempo querer conserva do passado o preço, memória do vínculo
um fim (receber) e usar normalmente de um entre as coisas, e não do vínculo entre as pessoas”
meio para atingir o fim (dar), e ao mesmo tempo (GODBOUT, 1999, p.148). Apesar dessa máxima,
não considerar que se trata de um meio, sendo tanto o mercado quanto o Estado são promotores
esta a condição para alcançar o fim” (GODBOUT, da circulação das coisas entre estranhos,
1999, p.119). mecanismo importante no estabelecimento do
Na parte seguinte, o autor aprofunda sua vínculo entre as pessoas e premissa básica para
discussão por meio da explanação “da dádiva manutenção do estranho circuito da dádiva.
primitiva a dádiva moderna”, formada pelos Assim, o autor finaliza o seu texto com a seguinte
capítulos de 7 a 10, apresentando diversas frase: “A grande luz do ‘ser absoluto’ clareia e
contribuições teóricas para fundamentar e penetra cada pérola, que reflete não apenas a luz
contrapor estas duas modalidades de dádivas. de todas as outras pérolas da rede, mas também
Godbout (1999, p. 124) infere que “as sociedades o reflexo de cada um dos reflexos do universo”
primitivas e tradicionais tenham optado pela (GODBOUT, 1999, p.235).
prudência, preferindo tornar a espontaneidade a A teoria da dádiva, conforme apresentada
mais obrigatória possível e reconhecer, detalhar e na obra, propõe um estabelecimento de um
nomear seus mais recônditos meandros”. vínculo infinito entre os sujeitos por meio da
No intuito de fundamentar suas tríade dar-receber-retribuir. Apesar da inerente
proposições, o autor utiliza-se de exemplos da abstração contida na abordagem da dádiva,
dádiva primitiva, o potlatch dos índios do noroeste até mesmo considerada messiânica, a volta a
americano; a kula enquanto dádiva circular e os esses valores e princípios ainda representa uma
Argonautesdu pacifique occidental. Tais exemplos possibilidade para reconstrução da vida social.
levam o autor à seguinte proposição “a moeda Endossando esta proposição, a teoria da dádiva
primitiva não mede o valor das coisas, e sim compreende um importante mecanismo para
das pessoas [...] A moeda primitiva representa explicar a construção dos vínculos sociais, como
a cristalização das pessoas nas sociedades que também propõe uma avaliação crítica relativa aos
não conhecem indivíduos, mas onde só existem rumos que as relações sociais contemporâneas
pessoas [...]” (GODBOUT, 1999, p.138-140). Na têm proporcionado.
diferenciação entre tais dádivas fica claro que “os
homens das sociedades primitivas não trocam,
mas dão” (GODBOUT, 1999, p.148). O cerne desta REFERÊNCIAS
distinção é abordado no capítulo 8. Godbout
utiliza-se das contribuições de M. Mauss (1966, CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo
p.272) e cita um de seus célebres pensamentos: caminho. – 10ª Ed. – Rio de Janeiro: Civilização
“o homem foi, durante muito tempo, outras Brasileira, 2008. 236 p.
coisas, e não faz muito tempo que ele é uma
máquina, acrescido de uma máquina de calcular”. GODBOUT, Jacques; CAILLÉ, Alain. O espírito da
Na parte subsequente da obra, o autor dádiva. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio
finaliza sua proposta com foco no “estranho Vargas, 1999. 272 p.
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