Vous êtes sur la page 1sur 10

Marilena C. D. V.

Corrêa, Maria Andréa Loyola

REPRODUÇÃO E BIOÉTICA. A REGULAÇÃO DA

DOSSIÊ
REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO BRASIL

Marilena C. D. V. Corrêa
Maria Andréa Loyola

INTRODUÇÃO ma de reprodução humana e social que se apóia, e


cada vez mais, na biologia, na medicina, e na
A reprodução assistida (RA) foi introduzida biotecnologia (Corrêa; Loyola, 1999).
no Brasil, a partir dos anos 80, em um contexto
pobremente regulado, o que se deve, em grande
parte, à forte concentração dessa tecnologia no se- O QUE É A REPRODUÇÃO ASSISTIDA
tor privado da medicina (Corrêa, 1997). Essa situ-
ação fez também do mundo da RA uma realidade Inicialmente, é necessário definir alguns

CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005


bastante opaca à abordagem tanto pela saúde pú- aspectos, como o significado do próprio termo re-
blica quanto por estudos sociais e pela própria produção assistida (RA). Essa expressão foi cunhada
bioética. Na mídia, ao contrário, ela recebeu amplo no campo da medicina reprodutiva para descrever
espaço, de onde provém, aliás, o “conhecimento” um conjunto de técnicas para tratamento paliativo
que se tem sobre a aplicação dessa tecnologia no da infertilidade. Em sua origem, a aplicação da RA
país. Não obstante tratar-se de uma atividade que esteve ligada ao impedimento da procriação gera-
libera células reprodutivas e embriões humanos do por quadros medicamente bem definidos, como
no ambiente, que pode colocar em risco a saúde o da chamada esterilidade tubária (na qual as trom-
de mulheres e bebês, e que ainda gera perplexida- pas, local do corpo feminino onde normalmente
des no plano da parentalidade e da família, convi- se dá a fecundação biológica, estão obstruídas,
vemos, por cerca de vinte anos, com a impossibi- impedindo a fecundação por vias naturais).1 Diz-
lidade de monitoramento, o mais elementar, des- 1 Outros casos medicamente delimitados são: infertilidades
sas práticas e, em conseqüência, com uma fraca hormonais (problemas ligados à função ovariana); pro-
blemas ligados aos chamados fatores masculinos como
regulação. Regulação que se torna tanto mais im- uma contagem baixa ou nula de espermatozóides, ou
ainda espermatozóides de mobilidade inadequada, im-
portante quando consideramos seus efeitos políti- potência, entre outros. Existem ainda as infertilidades
medicamente definidas como idiopáticas ou seu causa
cos e sociais, entre outros, o reforço de um siste- aparente.

103
REPRODUÇÃO E BIOÉTICA. A REGULAÇÃO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO BRASIL

se tratar-se de um tratamento paliativo, porque a Propomos, assim, que a fertilização in-vitro


condição de infertilidade da mulher (homem ou (FIV) seja considerada como um acontecimento
casal) que se submete à RA subsiste após o trata- sociotécnico, isto é, como um acontecimento que
mento. Em outras palavras, não existe cura para a socializa material reprodutivo, uma vez que com
condição de base – a infertilidade – que levou à ela embriões e gametas humanos passam a existir
busca de atendimento médico. fora do corpo de homens e mulheres. De fato, ele-
Em segundo lugar, é importante diferenciar mentos humanos de origem biológica, originalmen-
as técnicas que compõem o conjunto da RA, em te restritos à individualidade do corpo, passam a
função do fato de a fecundação ocorrer dentro ou circular no ambiente de clínicas e laboratórios, fi-
fora do corpo da mulher. No primeiro caso, temos cando sujeitos à manipulação por parte de profis-
a inseminação artificial (IA), uma técnica muito mais sionais – biólogos, técnicos, médicos – que se en-
antiga que veio a ser inserida no conjunto da re- contravam, até então, senão excluídos, ao menos
produção assistida, e que consiste na introdução afastados dos projetos individuais de reprodução.
do sêmen no aparelho reprodutivo feminino. No Mesmo considerando que a medicina já portava
segundo caso, temos as técnicas que têm por base um discurso sobre o embrião em desenvolvimen-
o procedimento de fertilização in vitro (FIV) pro- to (embutido em normas de cuidado pré-natal e
priamente dito, nos quais a fertilização do embrião nas formas atuais de aconselhamento genético), o
ocorre fora do corpo da mulher.2 espaço de atuação de especialistas amplia-se con-
O mesmo conjunto de técnicas que com- sideravelmente com a exposição das células
põem a reprodução assistida veio a receber uma reprodutivas e do embrião in vitro. Análises gené-
outra denominação: novas tecnologias reprodutivas ticas, seleção de embriões com base genética, ou
(NTR) e novas tecnologias reprodutivas e em função de critérios como o de viabilidade (para
conceptivas e genéticas (NTRc), expressões mais reprodução), fazem com que embriões sejam “des-
comumente encontradas no debate feminista ou viados” para um tipo de pesquisa que pode ser de
no debate sobre os desdobramentos do emprego difícil controle.3
das biotecnologias em geral. Cabe lembrar que, no ciclo FIV, submete-se
Além disso, o acesso a técnicas procriativas a mulher a uma hiperestimulação hormonal, com
acabou por não estar restrito a casos medicamente vistas à produção de um grande número de óvu-
caracterizados como patológicos. O fato de pesso- los e, em seguida, de embriões, de modo a obter
CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005

as sozinhas, homossexuais, por exemplo, também material reprodutivo “de sobra” para os ensaios
reivindicarem sua utilização dificulta a delimita- de fertilização que se seguirão. Isso porque há per-
ção meramente técnica (médica) da (in)fecundidade, das e falhas, até o momento incontroláveis, entre
que não dá conta do fenômeno em questão. A pro- as diferentes etapas do processo – hiperestimulação
dução de bebês por via técnica e tecnológica – be- hormonal, coleta de óvulos, fertilização in vitro,
bês de proveta, clonagem – indica estar em jogo transferência de embriões para o útero, implanta-
mais uma vez, um processo de intervenção nos ção, gravidez clínica e nascimento. O aumento da
processos reprodutivos humanos que ultrapassa produção de óvulos (via hiperestimulação
sua dimensão biológica. hormonal) e, na etapa seguinte, de embriões tem
2
Existem variantes técnicas da FIV, como a ICSI (injeção sido a forma comumente utilizada para contornar
intracitoplasmática de espermatozóides), que consiste aquelas falhas. Com o mesmo objetivo de melho-
em injetar um único espermatozóide diretamente no
óvulo; a heteroplasmia mitocondrial, ou rejuvenescimen- rar a performance da RA, admite-se também, como
to de óvulos, como ficou conhecida popularmente, que
consiste na mistura de material genético de origem boa prática médica e como eticamente adequada, a
mitocondrial de duas mulheres visando também à
melhoria da performance da FIV em casos de mulheres 3
Na prática, já tivemos experimentos não controlados
em idade reprodutiva mais avançada, que receberiam parte ética e socialmente, como nos casos anunciados na
de material genético de mulheres jovens; entre outras mídia, a posteriori, de clonagem de embriões humanos
técnicas. (ainda que não totalmente comprovados cientificamente).

104
Marilena C. D. V. Corrêa, Maria Andréa Loyola

transferência múltipla de embriões (três, quatro, DESDOBRAMENTOS DA REPRODUÇÃO


ou mais embriões), o que pode ocasionar gesta- ASSISTIDA
ções múltiplas, uma situação de risco para a saúde
de mulheres e bebês, problema que foi e continua A tecnologia reprodutiva representa, por-
a ser objeto de controvérsia no próprio campo da tanto, muito além de que uma alternativa
biomedicina. reprodutiva para indivíduos e casais desejosos de
Técnicas ditas complementares integram, procriação, e, por isso, sua aplicação ficou ampla-
ainda, o conjunto da RA: congelamento de embri- mente sujeita à abordagem de análises bioéticas e
ões, diagnóstico genético, doação de sêmen, óvu- mesmo da regulamentação pela lei (mais ou me-
los, embriões, útero. Quando combinadas à doa- nos estrita, nos diferentes contextos). Retomando
ção, as técnicas de FIV são chamadas de os eixos apontados ao final da seção anterior, os
heterólogas; no caso contrário, de homólogas. Nes- seguintes aspectos têm sido objeto de análise e de
tas, há coincidência entre os genitores, que forne- regulação:
cem os gametas (o material biológico e genético), e a) Riscos para a saúde de mulheres e bebês ligados
os futuros pais (que demandam pelo bebê). Nas ao fato de não existir, do ponto de vista científi-
técnicas heterólogas (IA-D, FIV-D), que envolvem co, um verdadeiro domínio do processo, desde
o recurso à doação, não existe coincidência entre a a fertilização dos óvulos in-vitro até a transferên-
origem da demanda por reprodução (os chamados cia do embrião, sua implantação, e o nascimen-
“pais sociais”) e a origem dos gametas (os “pais e to. Como não se sabe fazer 1 bebê de proveta a
mães biológicas”), o que pode resultar em uma va- partir de apenas 1 embrião, recorre-se ao proce-
riada possibilidade de combinações “parentais”. dimento mencionado de várias tentativas, o que
Assim, ao intervir sobre a fecundidade hu- passa pela hiperestimulação hormonal da mu-
mana, essa tecnologia procriativa, com base no lher, a produção e transferência de número ele-
procedimento de fertilização in-vitro, produz em- vado de embriões. Essa prática tem um custo
briões in-vitro que, transformados em bebês, virão importante para a saúde mental e física das pes-
a integrar uma família. Mas, como as técnicas de soas que se submetem a esse processo: no pri-
FIV, como apontado também, são responsáveis pela meiro caso, ligado às sucessivas tentativas fra-
produção de embriões em um número que ultra- cassadas; e, no segundo, aos riscos e efeitos
passa o dos projetos reprodutivos das pessoas, o colaterais das manipulações nas diferentes eta-

CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005


destino dos embriões da reprodução assistida não pas do ciclo FIV. Entre esses, são mais freqüen-
é apenas este. Esses embriões, que ficaram conhe- tes e importantes aqueles ligados à medicação
cidos como excedentes ou supranumerários, po- hormonal e às gestações múltiplas que ocorrem
derão, entre outros destinos, ser usados em pes- em uma taxa muito mais elevada do que a en-
quisa. contrada na procriação por relações sexuais.
Criam-se, portanto, dois eixos complexos Além de riscos para a saúde das mulheres, os
de regulação: o dos embriões (pesquisa, interven- bebês nascem prematuramente, necessitando de
ção, seleção, descarte, clonagem etc.)  e o do aces- cuidados intensivos neonatais, em função do
so à reprodução assistida. O último se desdobra, baixo peso, do desenvolvimento incompleto do
por um lado, no problema da vida familiar, a sistema respiratório, entre outros problemas que
filiação e o parentesco, e, por outro, nos proble- afetam sua saúde. O que se tem proposto, em
mas intrinsecamente ligados à própria aplicação normas médicas, bioéticas ou mesmo na lei (em
da tecnologia, como os riscos para a saúde de determinados contextos), é a limitação do nú-
mulheres e recém-nascidos, inerentes às manipu- mero de embriões transferidos, devendo os em-
lações biomédicas. briões excedentes serem congelados, doados, ou
descartados.

105
REPRODUÇÃO E BIOÉTICA. A REGULAÇÃO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO BRASIL

b) A aceitação das limitações técnicas acima men- brido de norma profissional e norma bioética, sur-
cionadas tornou-se, efetivamente, responsável giu apenas em 1992, portanto após mais de dez
pela constituição de uma população de embri- anos de atividade de fertilização in-vitro (FIV) no
ões congelados em clínicas de RA (dos quais, Brasil.4 Trata-se de uma resolução do Conselho
no caso brasileiro, desconhece-se o número ou a Federal de Medicina (CFM), instância máxima de
situação). A ela vão estar ligados desdobramen- controle do exercício da medicina no País, que tam-
tos ainda mais controversos, como pesquisas e bém concentra atividades no campo da bioética. A
intervenções sobre embriões; possibilidade de Resolução 1.358 (CFM, 1992) define-se como uma
análises genéticas e seleção; intervenções no curso norma bioética e, reconhecendo a legitimidade do
da vida individual por suspensão da mesma por anseio de superar a “infertilidade humana, pro-
congelamento, e na própria espécie, tanto no blema de saúde com implicações médicas e psico-
sentido da preservação ou de alterações mais ou lógicas”, reafirma os princípios gerais da
menos arbitrárias de características genéticas, inviolabilidade e da não comercialização do corpo
quanto no da possibilidade de criação de qui- humano, da gratuidade do dom e do anonimato
meras (mistura de diferentes espécies vivas), da doação. Indica a necessidade de observação do
como de clonagem, etc. A liberação no ambien- consentimento formal dos sujeitos participantes
te, fora do corpo de homens e mulheres, de em- de programas de FIV e estabelece regras para dimi-
briões e células reprodutivas, permite sua trans- nuir a possibilidade de incesto inadvertido. Sem
formação em material biológico disponível, e o mencionar a sexualidade, o documento aceita que
surgimento de propostas de apropriação de ele- mulheres solteiras possam ter acesso às técnicas
mentos humanos vivos para aplicação de de RA, bem como à doação temporária do útero
tecnologias experimentais, como as novas (barriga de aluguel), práticas que possibilitariam o
tecnologias de células tronco de embriões. Estas acesso de homossexuais as NTRc. No caso da do-
propostas se desdobram na possibilidade de ação temporária de útero (ou barriga de aluguel), é
patenteamento de células, tecidos, seqüências preconizado, ainda, que ela ocorra dentro da famí-
genéticas, o que evidencia interesses comerciais lia, entre irmãs, cunhadas, tias, etc.
e financeiros na matéria viva e nos processos No que diz respeito ao acesso – e, em de-
vitais. corrência, ao tipo de família que se constituiria a
d) Finalmente, formas de organização das famíli- partir das técnicas procriativas – ele vem sendo
CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005

as, da filiação e do parentesco, e das gerações regulado na própria prática, isto é, em função do
podem decorrer das diversas possibilidades aber- poder aquisitivo dos solicitantes, uma vez que,
tas pelas técnicas de RA e das técnicas ditas com- como dito, a quase totalidade das clínicas de FIV
plementares, como doação de sêmen, de óvulos, concentra-se no setor privado da medicina e está
de útero, e de embriões humanos (sejam elas fora de qualquer tipo de controle oficial. Os raros
utilizadas por homossexuais ou heterossexuais); serviços implantados, nos últimos anos, em hos-
doação a partir de células e embriões congelados pitais públicos (e universitários) não oferecem a
de pessoas mortas (inseminação, fertilização post- integralidade dos procedimentos de RA, cabendo
mortem); ou ainda de um só indivíduo aos clientes custear medicamentos, exames e ma-
(clonagem). terial, todos de altíssimo custo, o que exclui, por
razões de ordem econômica, larga parcela da po-
A REGULAÇÃO DA RA NO BRASIL pulação.

Para regular todas essas eventualidades, 4


Cabe lembrar que o primeiro bebê de proveta brasileiro
contamos, até hoje, com um único documento ofi- nasceu em 1984, mas que, desde o início da década de
1980, são publicadas comunicações científicas sobre ten-
cial de normatização da RA. Esse documento, hí- tativas de FIV sem sucesso.

106
Marilena C. D. V. Corrêa, Maria Andréa Loyola

Com relação aos destinos dos embriões, a do CFM não faz referência à necessidade de se
Resolução do CFM citada delimita em 14 dias o criar algum tipo especial de licença para regular o
tempo máximo de desenvolvimento de um em- funcionamento das clínicas de RA ou algum siste-
brião humano fora do corpo feminino, em conso- ma para monitorar os resultados dessas técnicas,
nância com as normas e recomendações bioéticas o que também contraria a tendência observada nos
internacionais que se seguiram ao Warnock Report países dos quais o Brasil importou essa tecnologia.6
(Warnock, 1985). Com relação à pesquisa, ela é Esse quadro poderá ser alterado a partir de
bastante econômica: “proíbe a fecundação de iniciativas provenientes do próprio meio profissi-
ovócitos humanos, com qualquer outra finalidade onal. Desde os anos 2000, associações profissio-
que não seja a procriação”. Como o abortamento é nais da área da medicina reprodutiva brasileira,
considerado crime no Brasil, a Resolução não aceita sob a liderança da Sociedade Brasileira de Repro-
nem a destruição de embriões supranumerários, dução Assistida (SBRA), desenvolvem um movi-
nem a redução embrionária (em casos de gestações mento pela acreditação das clínicas e pela cons-
de múltiplos fetos), embora admita como eticamen- trução de um cadastro nacional das atividades de
te aceitável a transferência de até quatro embriões FIV. Caso tenha êxito, esse empreendimento nos
por tentativa de gravidez. Sob esse aspecto, a nor- permitirá conhecer a localização das clínicas, as
ma contraria a tendência de limitação desse núme- técnicas empregadas, sua eficácia, o perfil das
ro, sugerida pela literatura especializada internaci- infertilidades, o número de embriões congelados
onal e pelo relatório da Organização Mundial da existentes no país, o tempo de congelamento, as
Saúde (Who, 2001), que propõe que apenas um características das gestações, dos recém-nascidos
embrião seja transferido por ciclo FIV. Finalmen- e assim por diante, dados ainda não disponíveis e
te, o congelamento e a doação de embriões, desde de grande importância para o debate bioético e sobre
que autorizados, são admitidos. a regulação da RA.7
As gestações múltiplas – e seus efeitos dele- A partir de meados do anos 1990, surgem
térios para a saúde de mulheres e bebês – foram e projetos de lei específicos sobre a RA (Corrêa; Diniz,
continuam sendo fonte de preocupação e debate 2000; Diniz, 2003). Os primeiros projetos pratica-
na literatura médica.5 Essa discussão focaliza prin- mente reproduzem a norma do Conselho Federal
cipalmente o problema da baixa eficiência das de Medicina e, por serem todos eles de autoria de
NTRc e os procedimentos “paliativos” propostos parlamentares médicos, encontram-se permeados

CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005


na medicina reprodutiva: uso de medicação por argumentos clínicos, predominando, assim, a
hormonal em altas doses, produção de embriões idéia de que, na regulação da reprodução assistida
supranumerários, congelamento de embriões, ges- no Brasil, a autoridade técnica deveria prevalecer
tações multifetais, etc. Entretanto, até o momento, sobre valores e crenças. Entretanto, essa tendência
ela vem tendo pouco impacto no debate bioético, de “legalização” da norma do CFM acabou por al-
o que indicaria que este vem funcionando, não
obstante esses problemas, principalmente em nome
6
Nos países mais desenvolvidos, foram estabelecidos re-
dos projetos reprodutivos (ou, como para alguns, gistros periódicos fundamentais ao monitoramento e
em nome do “desejo de filhos”), ou seja, no senti- avaliação da aplicação das técnicas de RA. Nos EUA, os
da American Society for Reproductive Medicine (ASRM);
do de produzir normas que viabilizem e legitimem na Europa, a European Society for Human Reproduction
and Embriology (ESHRE) e o European IVF Monitoring
aquelas práticas. Program (EIM); na França, o Fivnat; no Reino Unido, o
HFEA, entre outros.
Finalmente, cabe lembrar que a Resolução 7
No plano regional, e há mais tempo do que a iniciativa da
SBRA, a Red Latino-Americana de Reprodução Assisti-
da (Red LaRA), que atua de forma persistente também
5
Cf. Angel et al. (1999); Annas (1998); Baird et al. (1999); sobre os profissionais e suas associações nos diferentes
Bergh et al. (1999); Craft et al. (2000); Fitzsimmons et países, tem contribuído para estimular a coleta e conso-
al. (1998); IFFS (1999); Te Velde et al. (1998); Van lidação de bases de dados sobre as atividades de RA na
Steirteghem (1998). América Latina.

107
REPRODUÇÃO E BIOÉTICA. A REGULAÇÃO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO BRASIL

terar-se fortemente ao longo do processo legislativo, ra de um termo de consentimento livre e esclareci-


em função das temáticas do acesso, da reprodução do) de todos os participantes. A doação deve ser
de homossexuais, dos efeitos sobre a família e da gratuita, secreta, e cada pessoa só pode doar uma
pesquisa com embriões, ligadas à RA.8 Todos os vez. Com relação à filiação, os beneficiários
projetos de lei proíbem a clonagem, mas silenciam (solicitantes) deverão ser considerados os pais da
sobre a pesquisa com embriões. criança, não cabendo qualquer tipo de parentesco
desta com o doador ou sua família. Mas o PL 1.184
prevê a possibilidade de acesso a essas informa-
PROJETOS PARA UMA LEI BRASILEIRA DE RA ções, nos casos em que o indivíduo gerado (bebê
de proveta) manifeste interesse em conhecer o pro-
Em 2003, o projeto de lei da RA atualmente cesso que o gerou, sua origem e identidade bioló-
em tramitação, PL 1.184,9 foi aprovado em todas gica, e não apenas nos casos “médicos”, como na
as Comissões do Senado e passou à Câmara Fede- identificação de doadores para transplantes (futu-
ral, indicando que, no plano do Legislativo, esta- ros). Ele proíbe, entretanto, a gestação de substi-
ríamos próximos à adoção de uma lei da RA no tuição (“barriga de aluguel”).
país. O espectro de problemas tratados nos oito No que diz respeito aos embriões, é possí-
capítulos desse projeto de lei é bastante amplo: o vel interpretar que um dos objetivos principais
acesso é limitado à mulher sozinha ou ao “casal” dessa lei é abolir os embriões excedentes e os em-
(como a norma do CFM) que apresente uma pato- briões congelados e, por essa via, a possibilidade
logia diagnosticada (sem que seja feita qualquer de pesquisa com os mesmos. Vários dispositivos
referência à sexualidade). Caso essa patologia não são previstos nesse sentido: permitir a produção
possa ser detectada após investigação clínica (como de no máximo dois embriões por tentativa (ciclo
nos casos medicamente definidos como FIV), admitir apenas transferência a fresco, e proi-
infertilidades idiopáticas, ou sem causa aparente), bir explicitamente o congelamento de embriões. Os
deve ser respeitado um prazo, variável em função embriões atualmente congelados em clínicas de RA
da idade da mulher, antes da aplicação das técni- podem ser destinados à doação, com consentimen-
cas. Quando há recurso à doação, a mulher to dos responsáveis (desinteressados em se repro-
beneficiária é dita “receptora”. Todos esses atores duzir), mas apenas para fins reprodutivos (de ou-
devem ser legalmente capazes, sendo exigido tam- tras pessoas). Em suas disposições finais, o proje-
CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005

bém o consentimento formal (através da assinatu- to recomenda que se incitem os poderes públicos
a realizar campanhas alertando as pessoas inférteis
para a possibilidade de “adoção” desses embriões.
8
Os três primeiros projetos de lei mais importantes e As mudanças ocorridas no texto do projeto
abrangentes foram: PL 3.638/93 (do deputado Luis
Moreira); PL 2.855/97 (do deputado Confúcio Moura); de lei ao longo de sua tramitação em muito o afas-
PL 90/99 (do senador Lúcio Alcântara). E, em um se-
gundo momento, o PL 120/2003 (da deputada Maninha) taram da norma do CFM, levando os especialistas
e o PL 2.061/2003 (do deputado Roberto Pessoa), os dois
últimos focados na questão da filiação e no direito de em RA a considerá-lo muito controlista. Para eles,
conhecer as origens individuais e a “identidade biológi- a proibição do congelamento de embriões, a restri-
ca” (Diniz, 2003). A informação e o acompanhamento
de PL estão disponíveis nos sites da Câmara e do Senado ção ao máximo de dois embriões por transferên-
Federal.
9
O atual PL 1.184 tramitou como PL 90/99 e teve como cia, a proibição da gestação de substituição e a re-
relatores o ex-senador Roberto Requião e o senador Tião dução embrionária praticamente inviabilizariam a
Viana. Como é comum no processo legislativo, a ele
foram apensados os demais projetos citados na nota prática da RA. A derrota dos médicos, nessa eta-
anterior (exceto o PL 3.638, de Luis Moreira, aquele que
permaneceu mais próximo da norma do CFM, mas pa, corresponde a uma vitória (ao que tudo indica
“engavetado”). Apesar de diferenças substantivas entre
eles, dificilmente se chegaria a examinar dois projetos de provisória) das igrejas e das bancadas religiosas,
lei sobre uma mesma matéria como a RA, cabendo a fortemente representadas no Legislativo.
proposição de emendas e destaques durante a tramitação,
até o momento da votação. De fato, ao final do ano de 2002, o Ministé-

108
Marilena C. D. V. Corrêa, Maria Andréa Loyola

rio da Saúde mobilizou-se para criar um “grupo de universalista foi o princípio do qual decorreu a
trabalho sobre reprodução humana assistida”, para aceitação das diferentes técnicas – doação de sê-
discutir os rumos da regulação da RA no âmbito men, óvulos, barriga de aluguel, etc – entendidas
do Legislativo, que lhe pareciam indicar a cons- como arranjos para se atender a qualquer deman-
trução de obstáculos maiores para a aplicação das da de reprodução por pessoas sozinhas ou uni-
técnicas de reprodução assistida no País.10 Como das, independentemente de seu sexo ou sexuali-
resultado, foi produzida uma nota técnica em tor- dade. Por outro lado, a garantia do direito ao Pla-
no dos pontos considerados mais sensíveis no texto nejamento Familiar é desafiada, no caso da repro-
do projeto de lei 1184, no sentido de “garantir o dução assistida, pela necessidade de se harmoni-
acesso e evitar abusos”: o acesso universal, ou seja, zar direito à prole e direito à saúde (tal como pre-
garantido a pessoas solteiras, casadas ou unidas, visto na mesma lei), o que nem sempre é evidente
independentemente de sua sexualidade; o consen- nessa área, visto que a aplicação das técnicas
timento livre e esclarecido para a aplicação de to- procriativas comporta riscos para mulheres e be-
das as técnicas, obrigatoriamente exigido para to- bês, a partir de uma situação não necessariamente
dos os participantes; a decisão quanto ao número patológica – a ausência involuntária de filhos –
de embriões transferidos, que deve ser definido mas que é efetivamente redescrita como tal pelas
em cada caso; o restabelecimento da possibilidade próprias técnicas de reprodução assistida (Becker;
de congelamento de embriões; a possibilidade de Nachtigall, 1992; Becker, 1994).
acesso à identidade genética dos doadores em nome
do direito de o indivíduo conhecer suas origens (o
que pressupõe a quebra do sigilo sobre a doação, A REGULAÇÃO DA RA E SEUS PARADOXOS
mas sem efeitos no âmbito do parentesco); a ad-
missão da gestação de substituição (para possibili- A regulação da reprodução assistida é, de
tar o acesso igual para homens e mulheres soltei- fato, uma questão particularmente complexa, por-
ras); a necessidade de uma instância oficial de fis- que envolve interesses muito variados e cujos efei-
calização e controle da RA no Brasil. tos apresentam-se, muitas vezes, como paradoxais,
Para o momento, é difícil explicar comple- tanto no caso do acesso às técnicas (eligibilidade)
tamente o que determinou essa primeira quanto no caso das pesquisas com embriões. O
mobilização por parte do Ministério da Saúde na acesso às técnicas reprodutivas, visto como uma

CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005


área da RA que resultou em uma proposta de aces- ameaça ao modelo de família cristã, deve, portan-
so universal às NTRc. De qualquer forma, um ponto to, ser limitado para a Igreja Católica, e como
a ser destacado foi a importância que a Lei de Pla- universalizável em nome dos direitos reprodutivos
nejamento Familiar, em suas disposições gerais, para os juristas e algumas feministas, é pratica-
conferiu a essa proposta. Como suscitado no de- mente irrelevante para os médicos que, até o mo-
bate dentro do GT, essa lei menciona, em sua in- mento, as vêm aplicando sem maiores problemas,
trodução, ações de regulação da fecundidade tanto segundo o modelo tradicional de reprodução com
para limitação quanto para aumento da prole, pelo base biológica que essas tecnologias vêm claramente
homem, mulher ou casal. Tal perspectiva reforçar. Para esses últimos, um dos pontos mais
importantes da RA, na atualidade, parece ser o da
10
Este GT foi constituído por antropólogos, sociólogos,
disponibilização de embriões supranumerários, o
juristas, sanitaristas, bioeticistas, médicos especialistas que confere maior eficiência a essas técnicas e per-
em RA, geneticistas, entre outros. Parte desses pesqui-
sadores integravam o Projeto Ghente Estudos das impli- mite, ainda, a pesquisa com embriões, em particu-
cações sociais, éticas e legais do estudo dos genomas na
área da saúde, grupo que já havia acumulado vasta e lar, o desenvolvimento da tecnologia de células-
consistente experiência em torno dos temas da reprodu- tronco.
ção e da genética. A nota técnica produzida pode ser
obtida no site do projeto: http://www.ghente.org Sem levar em conta a maior ou menor acei-

109
REPRODUÇÃO E BIOÉTICA. A REGULAÇÃO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO BRASIL

tação, do ponto de vista bioético, das possibilida- no sentido que essas técnicas foram concebidas
des de acesso às técnicas, deve-se reconhecer que para “ajudar” casais heterossexuais infertéis a rea-
os efeitos sociais e simbólicos da dissociação entre lizar seus projetos reprodutivos, o mais proxima-
genitores (de gametas) e pais sociais não constitui mente possível do modelo “natural”. Mas, em se-
uma decorrência do uso das técnicas biomédicas guida, a ampliação do acesso às NTRc é reivindi-
de procriação. Ao contrário, o surgimento e a difu- cado também por homossexuais e pessoas sozi-
são da reprodução assistida deram-se em um con- nhas, o que lhes permite reproduzirem-se biologi-
texto histórico-social marcado pela tensão entre, camente. Tal demanda permite supor a generaliza-
por um lado, o ideal de uma paternidade e de uma ção do desejo por filhos biológicos, o que não dei-
maternidade “completas”, ou seja, aquelas que xa de ser paradoxal nos caso dos homossexuais
unem procriação (biológica), filiação (nome), sexu- que lutam pelo reconhecimento social e jurídico
alidade (heterossexual) e prazer, e, por outro lado, de uma vida comum e familiar fundada em laços
a existência efetiva de práticas heterogêneas no afetivos, fora do modelo familiar justificado pela
plano da filiação e da família, da sexualidade e das diferença biológica entre os sexos e a
formas de união entre os sexos, tais como divórcio heterossexualidade.
e recomposições familiares, famílias monoparentais, A aplicação das NTRc só encontraria limi-
união homossexual, adoção, etc. E, ainda mais tes no desejo oposto, ou seja, no “desejo” explíci-
recentemente, pela proposição, no plano jurídico, to de não se reproduzir. De fato, sem desejo de
de diretivas favoráveis à reprodução de homosse- filhos não existe infertilidade e, em conseqüência
xuais – adoção, casamento homossexual (Bélgica, reprodução assistida (Corrêa, 1997; 2001). O bebê
Holanda, Espanha) ou de dispositivos equivalen- de proveta tem de ser desejado como tal, e esse
tes (como o Pacto Civil de Solidariedade, na Fran- desejo tem de ser afirmado para que se possa co-
ça, Inglaterra, e países escandinavos, entre outros meçar a definir – investigar e diagnosticar – a
países da Europa). infertilidade. Sem essa demanda, a infertilidade
De fato, o debate bioético sobre a RA, desde não existe e nem seu tratamento pela reprodução
suas origens (Warnock, 1985), vislumbra a ligação assistida. Sem ela, como justificar social e moral-
direta entre o tratamento das infertilidades e a cri- mente a produção de embriões da qual a prática
ação de famílias, e coloca explicitamente a neces- da RA se tornou um lócus privilegiado, senão pela
sidade de discutir suas implicações. Este texto leva existência de uma ordem social biologicamente
CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005

em consideração ainda, de forma original e preco- justificada ? (Loyola, 2003; 2005)11


ce no campo da bioética, a possibilidade de uso Esse ponto nos leva ao outro eixo da
das técnicas de RA por pessoas sozinhas e ho- regulação, que diz respeito ao uso de embriões
mossexuais, ou seja, do “tratamento” das humanos em pesquisa. Nossa primeira lei de
“infertilidades” não patológicas (o que não impli- biotecnologia, Lei 8.974 de 1995, em seu artigo 13,
cou, contudo, parecer favorável nesse sentido, definia como crime a produção, armazenamento
naquela época). ou manipulação de embriões humanos destinados
Assim, é possível indagar em que medida a servirem como material biológico disponível para
as técnicas de RA vieram reforçar aquele ideal de a pesquisa; proibia experiências com embriões,
parentalidade “completa”, bem como a naturaliza- células reprodutivas e material genético, bem como
ção do papel social de homens e mulheres, o que atividades com os chamados OGMs, organismos
termina por reduzir as representações sobre a ma- geneticamente modificados (plantio e
ternidade e a paternidade e sobre todo o processo
reprodutivo às suas dimensões exclusivamente 11
Se a pesquisa com embriões vier a se tornar uma reali-
biológica e genética. Sem dúvida, em um primeiro dade tecnicamente justificável, social e eticamente
incontornável, a reprodução assistida poderá dirigir-se
momento, a RA veio reforçar essas representações unicamente para a produção de embriões com esse fim.

110
Marilena C. D. V. Corrêa, Maria Andréa Loyola

comercialização de plantas, com exceção das práti- dução (soja transgênica, animais transgênicos para
cas de pesquisa em ambiente confinado). A nova laboratório) com aqueles ligados também à repro-
lei – conhecida agora como Lei de Biossegurança dução humana (embriões para a pesquisa).
(PL 2401/ 2003) – que acaba de ser aprovada no De fato, esses desenvolvimentos nos levam
Congresso Nacional e aguarda a sanção presiden- a interrogar sobre os problemas relacionados ao
cial, constitui, na verdade, uma revisão da antiga patenteamento da matéria viva em geral e de ele-
lei de biotecnologia de 1995. Ela altera profunda- mentos vivos (biológicos, genéticos) do corpo hu-
mente esse quadro, assim como o mundo da ferti- mano, passíveis de serem cristalizados no plano
lização in vitro, uma vez que, se sancionada, tor- da lei, em um contexto de discussão ainda pobre,
nará possível a captação de embriões oriundos das como no caso brasileiro.13 A apropriação da maté-
clínicas de RA para pesquisa, em particular para a ria viva de seres humanos por um instrumento de
aplicação experimental da tecnologia de células- propriedade como a patente é algo que atinge dire-
tronco. Ela impõe, ainda, uma rediscussão do Pro- tamente o único bem que universaliza o direito de
jeto de Lei 1.184 sobre RA (que tramitou paralela- propriedade (ou que torna a propriedade um di-
mente à lei de biossegurança no Congresso Nacio- reito universalizável): o corpo humano. O cami-
nal, nos últimos dois anos).12 nho a ser trilhado no plano do debate bioético so-
A sensação de perplexidade gerada pela bre essa questão não poderá ignorar as pressões
votação, aparentemente muito rápida, desse novo macroeconômicas favoráveis à apropriação do ser
texto está relacionada, primeiramente, ao fato de o vivo, que já podem ser bem identificadas no caso
debate público sobre a biotecnologia ter avançado de plantas e de animais. Nesses, como no caso de
pouco, ou talvez mais lentamente do que o deseja- elementos do corpo humano, a apropriação
do (ao contrário do processo de tramitação e vota- indiscriminada de inovações biomédicas e de bens
ção da lei). Mas também porque ele inverte com- para a saúde pode resultar em situações de exclu-
pletamente o sentido da lei anterior, liberando tudo são, como se verifica para medicamentos, equipa-
o que estava até então proibido em termos de enge- mentos etc. Em diversos países, existem pedidos
nharia genética no país. E, sobretudo, pelo que foi de patentes (algumas concedidas) relativos a teci-
identificado na mídia como a “incompreensível” dos, células, moléculas, genes, células-tronco de
mistura, numa mesma lei, de aspectos ligados à animais (para comercialização e uso em experiên-
biotecnologia verde (apropriação de sementes ve- cias), o que poderá acontecer, também, com as li-

CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005


getais) e à biotecnologia vermelha (semente animal, nhagens celulares humanas avaliadas como “pro-
de humanos e não-humanos). E, ainda, pela mis- missoras” por cientistas, cujas pesquisas são apoi-
tura de interesses ligados apenas à esfera da pro- adas por firmas de biotecnologia que investem fi-
nanceiramente nessa área. Mas, como no caso da
12
Mais ainda incompreensível é a fragmentação, no plano regulação da circulação – em nome da saúde – de
legislativo, da problemática da reprodução e da genética,
ou seja, a forma estratégica como certos temas, ainda
que pertinentes, vêm sendo sistematicamente evitados.
Esse é o caso do aborto por anomalia fetal incompatível 13
Em período anterior, tivemos a criação da Comissão
com a vida ou de outras anomalias muito graves, Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), em 1996, que
identificadas em função do próprio avanço da tecnologia normatiza e controla a pesquisa envolvendo sujeitos
biomédica. Mas, por abordarem temas considerados ta- humanos, o que não deixa de estar em relação com uma
bus – como o aborto –, acabam deixando de ser conside- maior sensibilização no país, pelo menos no meio espe-
rados em sua totalidade. Não deixa de ser paradoxal a cializado, relativamente ao avanço da bioetcnologia de
convivência de técnicas de diagnóstico genético e de di- modo geral. Mas o debate público que se segue, impulsi-
agnóstico por imagens altamente sofisticadas, capazes onado pela mídia, concentrou-se principalmente sobre
de definir esse tipo de patologia, e sua não resolutividade acontecimentos que se deram no plano internacional,
no plano jurídico e institucional. Da mesma forma, é como o anúncio da clonagem da ovelha Dolly (1997), o
paradoxal que cientistas e parlamentares se preocupem destino de embriões “abandonados” em clínicas de FIV
com a obtenção de embriões para o desenvolvimento de na Inglaterra (2000), e o avanço do Projeto Genoma
tecnologias de células-tronco – considerada uma “vitó- Humano, em detrimento de problemas extremamente
ria da razão” – de forma totalmente independente de importantes no plano interno como, por exemplo, os
uma palavra sobre o direito de interrupção da gestação interesses que determinam a opção pelo plantio da soja
naqueles casos. transgênica nesse momento.

111
REPRODUÇÃO E BIOÉTICA. A REGULAÇÃO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO BRASIL

cohort study. Lancet, [S.l.], n. 354, p. 1579-1585, 1999.


tecidos renováveis (sangue) ou não-renováveis
CFM – Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM
(rins, fígado etc.), a tecnologia de células-tronco 1.358/92. São Paulo. CFM, 1992.
deve ser submetida ao mesmo tipo de CORRÊA, Marilena C. D. V. A tecnologia a serviço de um
questionamento, ou seja: até que limites e em que sonho. Um estudo sobre a reprodução assistida no Brasil.
1997. Tese (Doutorado) – Rio de Janeiro: Instituto de
bases a pesquisa com células-tronco deve prosse- Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Ja-
neiro.
guir? A constituição de bancos privados de célu-
CORRÊA, M. C. D. V. Novas tecnologias reprodutivas. Li-
las-tronco, matéria-prima para a indústria mites da biologia ou biologia sem limites. Rio de Janeiro:
Ed. UERJ. 2001.
biotecnológica, deve ou não ocorrer?
CORRÊA, M. C. D. V.; DINIZ, D. Novas Tecnologias
Diante da ousadia da inovação e da pesqui- Reprodutivas no Brasil. In: CARNEIRO, Fernanda;
sa biomédica e biotecnológica, que envolve cada EMERICK, Maria Celeste. (Orgs.). Limite. A ética e o deba-
te jurídico sobre acesso e uso do genoma humano. Rio de
vez mais e de forma até há pouco tempo impensa- Janeiro: 2000. p. 103-112.
da a manipulação de seres humanos, podemos CORRÊA, M. C. D. V.; LOYOLA M-A. Novas tecnologias
reprodutivas: novas estratégias de reprodução? Physis
indagar a quem caberia direcionar e (ou) colocar Revista de Saúde Coletiva, [S.l.], v. 9, n. 2, p. 209-234,
1999.
limites a esses “avanços”. Podemos considerar a
CRAFT, I.; GORGY, A.; PODSIALDLY, B.; VENKAT, G.
bioética (seu discurso e suas práticas) como a legí- Limiting multiple births. Lancet, [S.l.], n. 355, p. 1103-
1104, 2000.
tima portadora da última palavra com relação aos
DINIZ, D. Tecnologias reprodutivas conceptivas: o estado
dilemas morais na área da saúde, da medicina, e da arte do debate legislativo brasileiro. Jornal Brasileiro de
da preservação da vida ? Certamente, muitos des- Reprodução Assistida, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3. p. 10-19,
2003.
ses dilemas se constituem em outras áreas e para
FITZSIMMONS, B.; BEBBINGTON, M.; FLUKER, M.
outras áreas serão também encaminhados. Mas, Perinatal and neonatal outcomes in multiple gestations:
assisted reproduction versus spontaneous conception.
sem dúvida, a bioética tornou-se o espaço legíti- American Journal of Obstetrics and Gynecology, [S.l.], n.
179. p. 1162-1167, 1998.
mo, por assim dizer, a ante-sala por onde devem
IFFS – International Fertility and Sterility Society.
necessariamente passar todos os conflitos médi- Surveillance 1998. Fertility and Sterility, [S.l.], n. 71, p.
co-tecnológicos, donde a importância estratégica S1-S34, 1999. Supl. 2

que ela assume na atualidade. LOYOLA, M.A. Sexualidade e medicina: A revolução no


Século XX. Cadernos de Saúde Pública, [S.l.], vol. 19 n.
4, jul-ago. p.875-899, 2003.
LOYOLA, M.A. (Org.) Bioética, reprodução e gênero na
(Recebido para publicação em fevereiro de 2005) sociedade contemporânea. Uma introdução. In:
(Aceito em março de 2005) BIOÉTICA, reprodução e gênero na sociedade contempo-
rânea. Campinas: ABEP Brasília: Letras Livres, 2005. p.
15-26.
CADERNO CRH, Salvador, v. 18, n. 43, p. 103-112, Jan./Abr. 2005

REFERÊNCIAS TE VELDE, E.; VAN BAAR, A.L.; VAN KOOIJ, R.J.


Concerns about assisted reproduction. Lancet, [S.l.], n.
351. p. 1524-1525, 1998.
ANGEL, J.; KALTER, C.S.; MORALES, W.J.; RASMUSSEN,
C.; CARON, L. Aggressive perinatal care for high order VAN STEIRTEGHEM, A. Outcome of assisted
multiple gestations. Does good perinatal outcome justify reproductive technology. New England Journal of
aggressive assisted reproductive techniques? American Medicine, [S.l.], n. 338, p.194-195, 1998.
Journal of Obstetrics and Gynecology, [S.l.], n. 81, p. 253- WARNOCK, M. A question of life - The Warnock Report
259, 1999. on Human Fertilization and Embriology. London:
ANNAS, G. The shadowlands – secrets, lies and assisted Blackwell, 1985.
reproduction. New England Journal of Medicine, [S.l.], WHO – World Health Organization. Current practices and
n. 339, p. 935-939, 1998. controversies in assisted reproduction report of a meeting.
BAIRD, D.; WICOX, A.J.; KRAMER, M.S. Why might Genebra: WHO, 2001.
infertile couples have problem pregnancies? Lancet, [S.l.],
n. 353, p. 1724-1725, 1999.
BECKER, G. Metaphors in disrupted lives: infertility and
cultural constructions of continuity. Medical
Anthropology Quarterly, [S.l.], v. 8. n. 4, p. 383-410, 1994.
BECKER, G.; NACHTIGALL R. D. Eager for Medicalization:
the social production of infertility as a disease. Sociology
of Health and Illness, [S.l.], v. 14, n. 4, 1992.
BERGH, C. et al. Deliveries and children born after in-
vitro fertilization in Sweden 1982-1995: a retrospective

112

Vous aimerez peut-être aussi