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Triple-Aspect Monism: An Experiential Interdisciplinary Ontology and its Metaphysics View project
All content following this page was uploaded by Alfredo Pereira Junior on 30 November 2015.
Editorial
Artigo Alvo:
Comentários:
2. Reflexões sobre o Monismo de Triplo Aspecto – Sérgio Roclaw Basbaum (PUCSP) .............. 31
7. Notas sobre o Monismo De Triplo Aspecto – Vinicius Jonas de Aguiar (UNESP/Marília) ...... 62
8. Alfredo Pereira Jr. entre Damásio e Prinz: revisitando o Monismo de Triplo Aspecto – Nythamar
de Oliveira (PUCRS) .................................................................................................................. 68
10. Consciência como atributo cerebral: uma réplica a “O conceito de sentimento no Monismo de
Triplo Aspecto” – Armando Freitas da Rocha (USP) …............................................................. 88
Réplica:
1
Professor Adjunto do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual
Paulista – UNESP – Campus de Botucatu, e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília. E-mail: apj@ibb.unesp.br
O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto
1. Introdução
2. Sentimentos e Filosofia
2
Even if we refine means of observation and calculation enormously, and construct the most genial
experiments, everything will always be permeated by the fundamental limits for our discrimination: the
smallest discernable events as evolved in natural evolution, Whitehead’s atomic feels. Those events
certainly are not zero points in space-time; they must have some kind of size and duration to be felt. So, it
all, sense data as well as cognition, consist of feels […] Natural evolution has provided us with extremely
good instruments for detections and manipulations, but the instruments are not perfect, and their ultimate
imperfection, their graininess, cannot be completely overcome by cognitive and technical means...The
feels have distinct characteristics, acquired and inherited in perfectly ordered rich spectra in accordance
with their use and usefulness in performances and conservation of life. They are formed and rest as
potentials in our brains and can be actualized or not in a conscious experience.
A expressão “what it is like to be” usada por Nagel (1974) possivelmente seria a
mais apropriada para se referir ao domínio próprio à consciência, a chamada
“perspectiva de primeira pessoa”. Entretanto, esta expressão não é usada na linguagem
popular, enquanto os termos “sentir” e “sentimento” são frequentemente usados. Sugiro,
portanto, o uso de “sentimento” como abreviação para “what it is like to be”. Quando
Nagel pergunta “what it is like to be a bat?”, ele quer saber como os morcegos se sentem
- e como sentem o seu mundo percebido.
Tradicionalmente, e mesmo no âmbito neurocientífico, o conceito de sentimento
(feeling) está intimamente relacionado com o conceito de emoção. Uma distinção entre
ambos foi feita por Damasio (2000). Segundo Scaruffi (2000), para o neurocientista
português:
3
A feeling is a mental representation of the state of the organism's body, the perception of body state,
whereas an emotion is the reaction to a stimulus and the associated behavior (e.g., a facial expression). So
the feeling is the recognition that an event is taking place, whereas the emotion is the visible effect of it.
Emotions are bodily things, while feelings are mental things. Emotions are an automatic response. They
don't require any thinking. They are the fundamental mechanism for the regulation of life. Emotions
precede feelings, and are the foundations for feelings
a) Aspecto Físico: Se constitui do corpo vivo - que pode ser abordado tanto na
perspectiva da primeira pessoa (experiência vivida do corpo, pelo próprio
sujeito), quanto por terceiras pessoas (p.ex., profissionais da área de saúde) - e o
ambiente físico-químico-biológico-social com o qual o corpo vivo interage;
b) Aspecto Informacional: Se constitui dos conteúdos informacionais que se
associaram ao sujeito em sua história de vida - suas memórias (que ficam no
plano inconsciente, podendo eventualmente ser trazidas para a consciência) – e
das formas que são processadas em seu corpo, p. ex. as formas sensoriais que
são processadas p.ex. no córtex primário, ou as formas matemáticas que são
processadas p.ex. no córtex pré-frontal. Também este aspecto pode ser abordado
tanto na perspectiva da primeira pessoa quanto na perspectiva da terceira pessoa
(p. ex., por meio do eletroencefalograma pode-se detectar padrões de informação
presentes no cérebro);
c) Aspecto Consciente: Este aspecto depende da presença de sentimentos.
Apenas quando o conteúdo informacional dos processos cognitivos é sentido
ocorre a consciência. Os sentimentos são exclusivos à perspectiva da primeira
pessoa, porém - como se trata de um sistema uno, no qual os três aspectos estão
ligados - pode-se inferir (indutivamente) a presença de determinados
sentimentos a partir do aspecto físico (comportamento, processos fisiológicos)
ou informacional (p. ex. determinados tipos de ondas eletroencefalográficas).
De acordo com essa tríplice constituição do Eu, podemos conceber sua interação
com o mundo em termos de um ciclo funcional expandido. A ideia original do ciclo
funcional remonta a Jakob von Uexkull. Para este autor, um “mundo interno” ou
“mundo próprio” – presumivelmente, o aspecto consciente do ser vivo – se constituiria
a partir das interações com o ambiente por meio de efetores – responsáveis pelas ações
6. Considerações finais
Referências
Agradecimentos:
FAPESP, pelo apoio à pesquisa; Samuel Bellini-Leite, pela proposta deste número
especial da Kínesis; Dr. Jonas Coelho, pelo incentivo à melhor elaboração e discussão
do MTA, e a todos que contribuíram com sua atenção e/ou comentários.
Vinicius Romanini1
1
Professor da Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo São Paulo, USP. E-mail:
viniroma@gmail.com
Quão ontológico é o Monismo de Triplo Aspecto?
sensações. Mais importante ainda: por um ser um símbolo (ou seja, um hábito mental),
pode ser compartilhado no tempo, comunicando sensações e emoções experimentadas
em novos interpretantes. E aqui está a definição semiótica de consciência: a criação de
um sujeito (self) por um processo lógico e autocontrolado de síntese de predicados
regido por propósitos (ou causas finais). Estamos aqui no fundamento do chamado
“sentimentalismo lógico” de Peirce.
Faço esta pequena excursão - e talvez imprecisa devido à rapidez da formulação
– pela teoria peirceana do sentimentalismo lógico para mais uma vez chamar a atenção
para as consequências da adoção de um ou outro tipo de monismo. A filosofia de Peirce
é monista partindo de uma metafísica ontológica e assumindo um realismo extremo. No
entanto, Peirce a complementa com as doutrinas do falibilismo e do evolucionismo:
nossas crenças são falíveis e sujeitas ao desenvolvimento. A dúvida epistemológica é
assumida como parte de sua filosofia, e inclusive dá origem ao seu pragmatismo. A
informação, para Peirce, é justamente o crescimento dos símbolos que compõem nossas
consciências. A informação surge quando sentimentos são sintetizados em sensações,
dando origem ao processo semiótico. Por outro lado, a matéria é aquilo que dizemos de
todo o que não evolui, não pensa, não cresce e, portanto, se mantém sob as leis
chamadas naturais. O monismo de Peirce tem a mente como fundamento, e tudo o mais
como decorrência.
Parece-me que o MTA tenta articular a teoria dos sentimentos e emoções de
Damásio, a teoria da informação de Shannon e as teorias físicas dos sistemas
termodinâmicos integrando-os num mesmo paradigma, mas eu não estou convencido
que esses três componentes podem ser equacionados. Embora Pereira Jr. dê um
importante passo para sair da concepção reducionista de “marcador somático” que
Damásio atribui ao sentimento, colocando-o como estofo da consciência, não me parece
que esse passo seja o início de uma caminhada que coloque o sentimento como um
componente fundamental da realidade e, portanto, presente inclusive em processos que
atualmente não são considerados inteligentes, vivos ou conscientes pela ciência. Como
seria, enfim, “sentir-se” como uma rocha ou um curso d’água, se é que o MTA nos
permite formular uma tal questão? Gostaria que o professor Pereira Jr. explicitasse,
portanto, qual a narrativa “cosmogônica” (se há alguma) que sustenta seu monismo
ontológico.
A última parte do artigo “alvo” expõe uma série de descobertas recentes sobre o
papel das redes neuro-astrocitárias em processos de retroalimentação de informação e,
Referências
Ao propor sua teoria do Monismo de Triplo Aspecto (MTA), Pereira Jr. não se
furta à busca pela contrapartida biológica de seu modelo, os “correlatos neurais da
consciência”, o que lhe confere o lastro empírico; antes, o faz em sintonia com o que há
de mais recente nas pesquisas sobre a neurofisiologia do cérebro, insistindo, já há anos,
num movimento que está na vanguarda da pesquisa em termos globais: a importância
das células gliais, especialmente os astrócitos, e a intensa corrente de íons cálcio que
estes conduzem. Para se ter uma ideia do que representa tal passo, basta notar que um
livro bastante ousado em termos de sua modelagem do cérebro, que é Rhythms of the
Brain, de Gyorgy Buzsaky (2011) – este mesmo desafiando muitos pressupostos
frequentes da neurociência ainda vigente em 2015 –, não menciona as glias mais do que
três vezes. Assim, as pesquisas que sustentam o MTA, são aquelas que vêm desafiando
um paradigma neurossináptico que domina, desde Ramón y Cajal, pelo menos, as
pesquisas sobre o cérebro, e que resulta ainda, no mais das vezes, em investigações de
caráter localizacionista e funcionalista que Maira Fróes – outra pesquisadora que vem
trabalhando nos limites do paradigma presente – chamaria de neo-frenologismo. Além
disso, o modelo de consciência sustentado em seu artigo coloca em relevo aquilo que,
parafraseando Kant, chama mesmo de “revolução copernicana”, que é a primazia da
emoção na determinação das operações da consciência (PEREIRA JR., 2015, p. 20). Tal
virada inverte de maneira decisiva o movimento bottom-up, dos répteis ao homo sapiens
sapiens – grosso modo –, numa linha evolutiva que vai do sistema límbico ao
neocórtex, constituindo a razão como ponto mais alto da cadeia cognitiva ao menos
desde Platão. Afilhada da crise da razão e dos limites dos modelos computacionais da
mente, essa virada vem sendo realizada há duas décadas, ao menos: antes mesmo do
famoso livro de Damásio, publicado nos anos 1994, o neurologista Richard Cytowic,
num livro que trata da questão da sinestesia, cita um certo Dr. Ayub Ommaya, para
afirmar que “a consciência é um tipo de emoção” (CYTOWIC, 1998, p. 195, tradução
nossa)2. Mais ainda, Cytowic faz uma síntese surpreendente, que não desenvolverá mais
– uma vez que não é seu tema principal de pesquisa: “Talvez devêssemos parar de tentar
tocar com o dedo a consciência. Talvez não seja uma coisa, mas uma relação entre um
si mesmo e o mundo externo. Talvez, do mesmo modo que 'gravidade' descreve as
relações entre massas, talvez ‘mente’, ‘consciência’ e termos similares se refiram às
2
Consciousness is a kind of emotion.
relações entre organismo e seu ambiente”3 (CYTOWIC, 1998, p. 196, tradução nossa e
grifo do autor). Os insights surpreendentes de Cytowic servem aqui de veículo àquelas
que considero as virtudes e – em meu modo de construir meu pensamento sobre estes
temas – as dúvidas que tenho sobre o MTA.
Quanto às virtudes, estas são evidentes, e já foram apontadas acima: ousadia
conceitual, virada copernicana pela primazia da emoção; modelo consistente, suportado
tanto por um conhecimento amplo da história da discussão na filosofia, como por um
volume grande de dados empíricos publicados em artigos recentes, do ano de 2015,
inclusive. Tudo isso dá ao trabalho de Pereira Jr. um pé na história e um pé na
contemporaneidade, o que mostra o caráter abrangente da pesquisa. Sua revisão
histórica, que vai de Platão a Whitehead e Damásio é exemplar, enfatizando o caráter
“cognitivista” e os privilégios concedidos à razão durante a maior parte do percurso do
pensamento ocidental, à exceção de Spinoza, e do trio Kierkegaard, Schopenhauer e
Nietzsche – esses dois últimos incluídos na linhagem dos filósofos românticos alemães,
quem em geral desconfiaram do Iluminismo. Nessa revisão, didática, gostaria de notar,
porém, o uso do conceito de "ser humano", que parece datado, um tanto iluminista, e
não reflete a coragem da construção teórica em jogo. Nesse comentário, ousarei
substituí-lo por uma definição distinta: somos Entes Bioculturais Capazes de
Linguagem (EBCL). Como tais, somos definidos inescapavelmente como entes nos
quais biologia e cultura se entrelaçam, de tal modo que, como diria Merleau-Ponty
(1994, 250): “o mundo linguístico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós não o
distinguimos do próprio mundo”; já no perceber o EBCL é cultura e biologia
(BASBAUM, 2006), e a palavra cultura, deve-se notar é bem pouco cortejada pelo
MTA.
Há outra questão, entretanto: a revisão histórica deliberadamente ignora a
Fenomenologia de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, bem como as contribuições de
Maturana, Varela e, mais recentemente – dando continuidade às direções de pesquisa
deste último – Evan Thompson, e até mesmo Alva Noe. Não se entende as razões desta
recusa, já que, se o MTA entende o “Eu consciente” como “um ser situado e corpóreo”
(PEREIRA JR., 2015, p. 13), seria preciso reconhecer que, nestes autores, as relações
entre o EBCL e a sua circunstância encontra sua formulação mais ampla e radical, como
3
Maybe we should stop trying to put a finger on consciousness. Maybe it is not a thing, but a relationship
between oneself and the external world. Just as gravity describes a relationship between masses, perhaps
'mind', 'consciousness' and similar terms refer to relationships between an organism and its environment.
um ser-aí, ou como ente corporificado e situado. O leitor se pergunta pelo porquê dessa
recusa ou dessa escolha, que assume os pressupostos destes autores sem reconhecer seu
legado.
Entretanto, a questão que, em meu entender, é mais perturbadora no MTA, é sua
ambição totalizante. Pode-se, claro, compreender que a abrangência de uma teoria seja
resultado natural do amplo trajeto de pesquisa a que ela responde, como síntese e como
proposição. Mas o EBCL é objeto rico demais, e, como diria Latour (2009), não há
objetos puros, inequívocos na ciência. Me parece que, ao formular, pressupostos para
uma interpretação do problema da consciência, há pelo menos quatro questões de
caráter restritivo em relação a qualquer ambição totalizante. A primeira delas diz
respeito aos próprios limites cognitivos do EBCL: tal como um tigre tem seus limites,
certamente temos os nossos, e há certamente aspectos do real que sequer podemos
conceber; a segunda, diz respeito aos limites sócio-históricos – ou hermenêuticos, ou
epistemológicos ou paradigmáticos, como se queira –, as perguntas que não somos
capazes sequer de fazer no contexto de conhecimento de certa época, tal como não seria
possível que se pensasse num quadro cubista no século XVI (já tive essa discussão com
Pereira Jr.: não se deve supor uma pertença a um quadro de possíveis, antes que tal
possibilidade de fato exista – no caso do cubismo, no início do século XX); em terceiro
lugar, há os limites determinados ao pensamento pela própria linguagem, e o real
sempre será maior do que aquilo que a linguagem consegue dizer ou representar – em
termos estritos, o real não é computável e qualquer modelo deve assumir um
reducionismo necessário que é também o custo da metodologia científica; finalmente,
desde Gödel pelo menos, deve-se assumir que não é possível, em termos lógicos,
formalizar e comprovar a totalidade dos elementos do sistema. Dado, ainda, o caráter
transitório da verdade científica e sua inevitável pertença a um contexto paradigmático,
é preciso guardar um cuidado cético em relação a teorias totalizantes – mais ainda pelas
consequências sociopolíticas das verdades parciais da ciência (como notado ao início).
Entretanto, posso compreender e respeitar a ambição do MTA como consequência
necessária do projeto abraçado por Pereira Jr., que é de um diálogo estrito entre filosofia
da mente e neurociência visando a produção de um modelo da consciência. Para minhas
próprias direções, entretanto, entendo como virtude a proposição de estratégias
interpretativas mais abertas, capazes de descrever as miríades de sentidos da existência
dos EBCLs (essa fórmula mesmo é parte e exemplo de tal empenho). E dessa miríade
de sentidos, acredito, há de emergir um retrato mais fiel da potência e da riqueza
[...] aquilo que acontece [...] é transportado para nosso cérebro por
meio de sinais informacionais, e nosso cérebro (juntamente com a
totalidade de nosso corpo em interação com o ambiente físico e social)
interpreta o significado o significado da informação e reage ao
conteúdo da mesma com um sentimento.
Referências
1
Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
saulo.araujo@ufjf.edu.br
O sentimento no monismo de triplo aspecto: problemas e incertezas
2
As referências que apresentam apenas a numeração de página dizem respeito ao artigo de Alfredo
Pereira Jr. que é objeto de comentário nessa edição da Kínesis.
pela própria informação que ele processa, então fica difícil sustentar a tese de que todo
sentimento é consciente, pelo menos no nível mais básico das sensações e do
processamento de informação. A psicologia cognitiva experimental e a neurociência
cognitiva têm mostrado evidências empíricas convincentes, através do método do
priming, de que existe um nível inconsciente de processamento e interpretação da
informação que afeta as operações materiais do sistema (OCHSNER, CHIU, &
SCHACTER, 1994; FROUFE, 1997; SCHMIDT & VORBERG, 2006). Essas
evidências empíricas colocam em dificuldade a tese da identidade entre sentimento e
consciência, tal como estabelecida pelo MTA.
Ainda em relação à definição de sentimento, há no texto um equívoco lógico,
quando Pereira Jr. afirma que “um evento é transportado para nosso cérebro por meio de
sinais informacionais, e nosso cérebro [...] interpreta o significado da informação e
reage ao conteúdo da mesma com um sentimento” (p. 8). Ora, se levarmos em
consideração a própria afirmação seguinte do autor, segundo a qual “os sentimentos são
exclusivos à perspectiva de primeira pessoa” (p. 13), fica claro que na primeira
passagem há uma confusão entre o cérebro e a pessoa. Afinal, é a pessoa que interpreta
e sente as coisas, não o cérebro (ARAUJO, 2012). Em outras palavras, trata-se aqui de
uma falácia mereológica, tal como definida por Bennett e Hacker (2003).
Isso nos leva à terceira dificuldade conceitual: a ausência de uma discussão
sobre o lugar dos processos volitivos no MTA. Se o sentimento é o elemento definidor
da consciência, então seria de se esperar que os processos volitivos fossem tratados
como derivações secundárias dos processos afetivos. No entanto, na classificação dos
sentimentos apresentada no texto não há qualquer menção à dimensão volitiva da
consciência. O leitor se vê, então, diante de uma incerteza: ou o MTA pretende deslocar
os processos volitivos para a esfera do inconsciente ou ele aceita a existência de
processos volitivos conscientes. No primeiro caso, ele terá que apresentar uma outra
explicação para as evidências empíricas trazidas pela psicologia cognitiva
contemporânea, como, p. ex., aquelas relativas aos estudos do raciocínio e da tomada de
decisões (EYSENCK & KEANE, 2005; STERNBERG, 2010). No segundo, ele terá que
reduzir os processos volitivos aos afetivos ou então abandonar a tese da identidade entre
o sentimento e a consciência. Seja como for, será necessário abordar esse problema no
futuro.
O último aspecto que eu gostaria de ressaltar é o da relação da teoria dos
sentimentos no MTA e os dados empíricos da neurociência contemporânea. Pereira Jr.
cita uma série de evidências recentes sobre o papel das células gliais na atividade mental
como um todo. Mais adiante, afirma que “na perspectiva sugerida por estes resultados,
os correlatos da consciência devem ser identificados no domínio das interações neuro-
astrocitárias (p. 17, itálicos no original). Ora, se as células gliais estão envolvidas nas
atividades mentais como um todo, não há motivo para buscar nelas os correlatos
específicos da consciência. Além disso, não fica claro em que sentido o MTA depende
dessas evidências neurocientíficas para se manter como teoria da mente, uma vez que
em nenhum momento da caracterização dos sentimentos houve uma indicação de como
essa teoria deveria se relacionar com os dados empíricos da neurociência.
Em suma, eu penso que o MTA, no seu estado atual, é uma hipótese ousada, que
pode impulsionar um programa de pesquisa. No entanto, para que os dados empíricos
possam ter relevância teórica, é preciso que o MTA se desenvolva teoricamente, no
sentido de apontar claramente suas implicações empíricas. As questões aqui levantadas
são apenas alguns exemplos de problemas a serem enfrentados no futuro por uma teoria
mais amadurecida no plano conceitual. Há outras, que certamente já estão no horizonte
de Pereira Jr, mas que as limitações de espaço me impedem de desenvolver aqui. Seja
como for, o futuro do MTA depende de seu sucesso nesse processo de amadurecimento
enquanto uma teoria da mente.
Referências
Cláudia Passos-Ferreira1
1
Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
E-mail: cpassosferreira@gmail.com
Comentário sobre “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto”
2
Como a tradução para o português (ver nota 2) dessa expressão é problemática, optei por manter a expressão
no original.)
3
A expressão é ‘what-it-is-like’ particularmente dominante em inglês, contudo, sua tradução para o português
– como Pereira chama atenção – e mesmo para outras línguas, não é tão simples. A tradução para o português
é problemática. Usualmente, traduzimos as frases ‘what-it-is-like’ em outras expressões como, por exemplo,
‘como é ser’ ou ‘como é se sentir’. Essas expressões em português estão intimamente relacionadas a frases em
que figuram o adverbio interrogativo ‘como’ (‘how’) em inglês, tal como ‘como se sente’ (‘how does it feel’).
sugeridas por Pereira; elas permanecem, portanto, não explicadas pela teoria de Pereira.
Alguns outros aspectos também permanecem não esclarecidos na teoria de Pereira.
Não está claro como uma teoria afetiva pode ser combinada com o Monismo de Triplo
Aspecto (MTA). Pereira afirma que estar consciente é ‘sentir o significado da informação’,
e que ‘os conteúdos da informação são conscientes quando são sentidos’. Mas o que é ‘o
significado da informação’? Seria uma representação mental? Também não está claro o que
significa ‘sentir o significado’. Significaria que um estado informacional é consciente
quando um sentimento é associado a ele? Seria a informação um processo consciente
quando ela tem um significado particular associado a ela em contextos específicos? Estas
ideias ainda carecem de esclarecimentos futuros.
Referências
Depois de ler o artigo de meu colega e amigo Alfredo Pereira Jr não poderia
deixar de ter algumas dúvidas. Afinal, é um texto muito instigante e com um estilo
muito elegante. Não tenho questões a formular, mas apenas algumas provocações.
Minha questão é saber até que ponto a ideia de sentir e de sentimento realmente
resolve o problema da consciência. A questão das relações mente-corpo foi reformulada
e reeditada na Filosofia da Mente contemporânea e passou a ser chamada de problema
do hiato explicativo. Ele é a última versão do problema que nos foi herdado de
Descartes: como reunir o mundo subjetivo e o objetivo depois de tê-los separado tão
radicalmente?
A expressão hiato explicativo foi criada pelo filósofo americano Joseph Levine,
em 1983. O hiato explicativo enuncia que entre os neurônios e a consciência subjetiva
há um abismo intransponível, gerado pela incapacidade da neurociência de representar a
passagem entre o físico e o mental. Os neurônios podem ser canais para muitos
fenômenos eletroquímicos, mas eles próprios não são elementos que compõem o
pensamento. Não há como representar a fronteira entre a subjetividade, sempre descrita
em primeira pessoa, e o mundo objetivo da neurociência, sempre em terceira pessoa.
Será que a ideia de sentir cumpre essa tarefa? Ou será que ela fica reservada ao sentir
consciente? Como sentir sem ter consciência do que está sendo sentido? Neste caso,
estaríamos andando em círculos, não apenas em relação ao problema do hiato
explicativo como também do hard problem de Chalmers (1996). Penso que o hard
problem é apenas uma charada filosófica. Você concordaria com isso?
Referências
1
Professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. E-
mail: jteixe@terra.com.br
Provocações ao artigo “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto”
1
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail:
samuelcblpsi@gmail.com
Explicação metafísica, causação e interações neuro-astrocitárias
A única metafísica da consciência que temos nesse paragrafo é “um evento”, mas
evidentemente essa expressão sozinha não tem o menor poder explicativo.
Na verdade, apesar do modelo de dualismo de substância ser falso, ele é um dos
poucos que realmente têm poder explicativo para a camada da consciência. Consciência é
entendida como alma, uma substância a qual tem propriedades como a de ser sem extensão,
individual, indivisível, dentre outras. Essa é uma descrição não redutiva, entretanto, ela
também propõe uma nova substância. Acredito que a camada da consciência deva ter a
mesma simetria que a camada informacional tem em relação à física. A informacional é ao
mesmo tempo explicada em termos da física, como é em si mesma. O primeiro passo falta
ao dualismo e o segundo passo falta ao MTA.
2. Causação simplificada
Pereira Jr. (2013) propõe que entre cada nível, no mesmo estado, não há causação,
justificando assim um dos elementos que tornam esta proposta um monismo. Se cada
camada é um aspecto de si própria não faz sentido falar em causação entre elas em um
mesmo momento. Entretanto, um elemento físico em tempo 1 pode causar outro elemento
Figura B – Simplificação do modelo causal do MTA. Cada estado pode ser entendido como um bloco
monista composto dos três aspectos que causam outros blocos monistas.
Figura C – Mesmo se um estado não tiver os três aspectos esse será causal, pois o físico sempre está
presente. A Figura representa como abordar de forma simples o explanandum dos “sensitive feelings”. O
mesmo poderia ser feito para os “affective feelings” apenas trocando os estados de lado.
2
Toda marcação em negrito significa ênfase de minha autoria.
algo”3. Pereira Jr. concordou com esses termos na época possivelmente pela passagem ser
pouco clara. O artigo alvo seria ideal para Pereira Jr. aprimorar os conceitos relacionados à
afetividade. Entretanto, como mostrei, a atual elaboração não está satisfatória. A citação
acima está pouco clara, mas a compreendi como afirmando que estados afetivos podem ser
estados emocionais – quando inconscientes – e estados de sentimento – quando
conscientes. A rede astrocitária, portanto, se trata de uma rede afetiva, quando sozinha,
instancia emoções, não sentimentos. Os sentimentos e a consciência são instanciados no
momento em que ocorrem interações entre redes neuronais e rede astrocitárias.
Podemos notar que essas sugestões não atrapalhariam outras definições, por
exemplo, a de sentimentos emocionais. Esses ocorreriam quando o conteúdo do processo
cognitivo está focado na emoção e esta é consciente. Novamente visando a verdadeira
interação das redes, nesses casos de sentimentos emocionais os processos cognitivos podem
ser entendidos como sendo sobre os eventos da rede astrocitária.
Ainda, mesmo no artigo alvo, o próprio exemplo da relação com ondas é de um
estado emotivo: “pode-se encontrar uma correlação estatisticamente significativa entre a
ocorrência do medo e um determinado tipo de forma de onda que caracteriza a atividade
cerebral durante a experiência do medo” (PEREIRA JR., 2015, p.19-20). Em contraste, que
tipo de onda estaria relacionada com Sentimentos perceptivos? e Sentimentos cognitivos? É
difícil imaginar. Se é que existe relação entre ondas e estados afetivos, essa parece estar
entre ondas e estados emocionais.
Nessa reformulação, portanto, o sentimento não seria instanciado por redes
astrocitárias, mas pode ser concebido como um produto emergente da interação entre redes
neuronais – as quais realizam processos cognitivos – e redes astrocitárias – as quais
realizam processos emotivos.
3
Affective states can be understood here as emotional, but also as qualitative ones, expressed as ‘the feeling’
of something.
4. Considerações Finais
Não apresentei solução para o problema da primeira seção como fiz para os das
seções seguintes. Isso porque não há resposta simples, clara ou mesmo filosoficamente
formulada para tal. Mas acredito que a metafísica da consciência precise lidar com a
metafísica da virtualidade. Algo como a descrição de um espaço virtual seria a metafísica
adequada para a consciência. A linguagem para descrever essa camada pode ser a de um
universo emulado, com propriedades específicas, seu próprio espaço, próprio tempo,
qualidades como cor, sons, aromas. Algumas propriedades desse universo emulado já são
descritas (em minha ótica) por teorias da psicologia cognitiva e da psicofísica, como o
tempo que leva para uma imagem sumir deste universo, a quantidade de itens que ele
suporta, como funciona o foco da atenção sobre esses objetos, o grau de rotação possível de
um objeto nesse universo (em Miller, 1956; Kosslyn, Thompson & Ganis, 2006, Sternberg,
2008).
Também já existem projetos na direção da virtualidade (Revonsuo, 1995,
Metzinger, 2003, 2009), entretanto, Metzinger adota a postura de que a virtualidade não é
real, na linha de Dennett (1991) e Revonsuo não é claro sobre a ambiguidade do virtual.
Uma metafísica da virtualidade ainda é necessária, mas desconheço projetos que trilham
afundo nesse caminho.
Referências
1
Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista –
UNESP – Campus de Marília. E-mail: viniciusjonass@gmail.com
Notas sobre o Monismo de Triplo Aspecto
como referência o problema da relação entre uma obra de arte e o material que a
constitui – problema comum na filosofia da arte – poderemos notar claramente a
precisão dos conceitos do MTA em explicar um dado objeto de forma abrangente e sem
reduzir parte da sua composição a um só elemento. Uma estátua grega, como a Vênus
de Milo, é composta obviamente por uma base material muito bem delimitada: o
mármore. Além disso, ela possui traços específicos que a identificam como a Vênus de
Milo ao invés de outra estátua qualquer; ou seja, Vênus de Milo é não só matéria
(mármore), mas também uma forma (seus traços). O mesmo é facilmente notável na
música: O Réquiem de Brahms é, sem dúvida, composto por certos tipos de sons (sons
da orquestra); mas não só isso, pois tais sons estão organizados de maneira a soarem
como o Réquiem de Brahms e não como o Réquiem de Mozart. O que esses exemplos
apresentam é a relação de não necessidade que existe entre certos elementos, como os
sons ou o mármore, e a organização que eles irão assumir, como música X ou Y,
escultura X ou Y, etc.. É nesse sentido que o MTA propõe os primeiros dois
componentes ontológicos da Natureza que, em sua essência, são irredutíveis um ao
outro.
Quanto à irredutibilidade do segundo aspecto ao primeiro é no mínimo difícil
encontrar exemplos que mostrem o contrário. Resta saber se o aspecto da forma é
atualizado a partir de processos envolvendo a auto-organização de elementos materiais
essenciais da realidade, o que dá origem à informação quando os padrões formais são
transmitidos de um meio material para outro, ou se as formas possuem uma realidade
ideal, como queria Platão (2005). Dado o interesse em andar lado a lado com conceitos
filosóficos e científicos atuais, o MTA opta por entender e explicar as formas e trocas de
informação à luz das teorias de Boltzmann (1964, 1965) e Shannon e Weaver (1949).
Slavoj Žižek (2013) coloca a teoria de Platão como central na história da
filosofia ocidental pelo fato de boa parte das teorias posteriores tentarem corroborar ou
invalidar a tese das ideias platônica. Nesse contexto, o MTA assume uma posição
intermediária que diverge da teoria do mundo das ideias ainda que seja simpática a parte
daquela teoria. A distinção entre o mundo das ideias platônico e a realidade das ideias
no MTA reside no caráter de “ideia atualizada em outro plano”, correspondente à tese
de Platão, e a “ideia existente em estado potencial na Natureza”, presente no MTA.
Como exemplo imediato de aplicação dessa constatação, podemos citar a superação da
dicotomia entre criação e descoberta, que ocorre se adotarmos a noção de “atualizar
formas potenciais” (sobre a relação entre os conceitos de informação e forma adotados
por Pereira Jr., ver ALEKSANDER, MORTON, 2011), o que não é só criação, nem só
descoberta.
Ainda sem incluir a descrição do terceiro aspecto, é válido destacar o
embasamento que o MTA proporciona à noção de interdisciplinaridade. Assumindo a
distinção entre a constituição material e a formal de qualquer objeto ou fenômeno,
torna-se necessário o uso abordagens e terminologias diferentes para descrever um
mesmo objeto de estudo. Pela descrição proposta no MTA, investigando, por exemplo,
somente a constituição dos sons e fazendo descrições cada vez mais precisas das suas
características, não poderíamos entender o conceito de acorde maior, e muito menos o
que é um quarteto de cordas ou uma sinfonia. Para tal, devemos passar do plano do som
para as relações entre os sons.
Aliás, falar sobre como percebemos uma música ou qualquer fenômeno/objeto
externo a nós passa não só por descrever uma constituição material e formal, mas
também descrever como essa informação atinge nosso sistema cerebral (e outros
subsistemas do corpo) e, finalmente, é experienciada em primeira pessoa. E é aqui que
entramos no domínio do terceiro aspecto. O que justifica, de acordo com Pereira Jr.,
postular a existência de um aspecto nem material, nem formal, mas sim da ordem do
sentimento, típico das experiências fenomenológicas que temos, é a impossibilidade de
derivar daqueles dois aspectos o feeling, característico do terceiro aspecto. Esse ponto
pode ser ilustrado, mais uma vez, com a música. Os dois primeiros aspectos
constituintes daquele fenômeno podem, e são hoje em dia, facilmente transferidos de
um meio para outro – os padrões de ondas sonoras executados por uma orquestra podem
ser captados por microfones e transformados em bits no HD de um computador ou de
um pen-drive. Essa transmissão da informação musical, contudo, não envolve em
momento algum a experiência fenomenológica por parte do microfone ou do aparato
digital para o qual a informação musical é transferida. Na interpretação de Pereira Jr., o
cérebro funciona da mesma forma: padrões de informação externos e internos são
transmitidos para o cérebro que os codifica em padrões de disparo neuronal. Disso o
autor conclui que, se o mesmo processo ocorre em outros meios sem incluir a
consciência, deve haver no sistema cerebral algo a mais, algo que não seja da ordem da
matéria e da informação, já que tais aspectos não trazem, necessariamente, a experiência
do sentimento. Logo, o sentimento, característico das experiências conscientes, deve ser
mais um aspecto da Natureza que é atualizado no sistema cerebral.
Referências
Nythamar de Oliveira1
1
Pesquisador do CNPq e Professor de Ética e Filosofia Política na PUCRS, onde coordena um Grupo de
Pesquisa em Neurofilosofia no Instituto do Cérebro (InsCer), juntamente com o Prof. Dr. Jaderson da Costa.
2
As referências indicadas apenas com número refere-se ao artigo de Alfredo Pereira Jr. foco do comentário.
Alfredo Pereira Jr. entre Damásio e Prinz
De resto, Damásio assume que as bases filosóficas e cognitivas das decisões morais
estão no centro das discussões sobre a natureza humana, na medida em que a moralidade
evolui como um dos elementos que diferenciam os seres humanos dos outros animais,
como tem sido argumentado por autores com propostas tão diferenciadas quanto
Aristóteles, Hume e Kant. As decisões morais têm, afinal, um papel central na definição do
ser humano; ela está no cerne de tomadas de decisão que nos definem em relação a
questões culturais, questões de relacionamento pessoal e de escolhas políticas e cotidianas
que, por fim, ajudam a definir o self em relação aos outros e dentro de um milieu específico.
Assim como estabelece a correlação entre razão prática e emoção, Damásio associa a
consciência à noção de tomada de decisão, bem como ao planejamento em diferentes
escalas de tempo, criação de possibilidades de interação com o meio e seleção de cursos de
ação – sendo todas as etapas do processo interligadas. Damásio logra, assim, articular
processos sociais, intersubjetivos, e processos neurobiológicos, que explicam a evolução do
cérebro humano e a emergência da consciência, do “eu”, da memória, da linguagem, da
subjetividade e suas representações e construções criativas e portadoras de significado: “Se
a consciência não se desenvolvesse no decorrer da evolução e não se expandisse em sua
versão humana, a humanidade que hoje conhecemos, com todas as suas fragilidades e
forças, nunca teria se desenvolvido também” (DAMÁSIO, 2011, p. 17). Trata-se de evitar,
por um lado, as idealizações a priori do dualismo cartesiano que persistem em modelos
tradicionais da teoria da escolha racional (rational choice), e por outro lado, o relativismo,
o niilismo e o decisionismo morais de posturas culturalistas que rechaçam qualquer
possibilidade de embasamento racional ou normativo em processos decisórios. Segundo
Damásio, a observância de convenções sociais e regras éticas previamente adquiridas
poderia ser perdida como resultado de uma lesão cerebral, mesmo quando nem o intelecto
de base nem a linguagem mostravam estar comprometidos, como era o caso de Phineas
Gage, em quem apenas o comportamento social parecia ter sido afetado (DAMÁSIO, 1994,
p. 31). Ainda de acordo com os experimentos de Damásio, a escolha de uma decisão
qualquer ou de um curso de ação referente a um problema pessoal em que o sujeito está
devidamente inserido em seu meio social (complexo, mutável e incerto), requer dois
elementos: 1) amplo conhecimento de generalidades e 2) estratégias de raciocínio que
operem sobre este conhecimento. Assim, não podemos reduzir os processos decisórios a
uma suposta racionalidade pura, sem levar em conta as emoções, os sentimentos e o
contexto sociocultural.
Quando identifica uma base emotiva natural para os sentimentos e juízos morais, o
naturalismo inerente a abordagens analíticas e hermenêuticas da filosofia da mente não
poderia destarte excluir nenhum nível axiológico ou normativo de autocompreensão. Tal
abordagem naturalista ainda prescindiria, neste caso, de uma justificativa para a
sobreposição valorativa da normatividade com relação a estados de coisas encontrados ou
até mesmo socialmente construídos da realidade. A persistência de uma crítica ao
naturalismo consiste precisamente em reconhecer que mesmo que admitamos a
“sobreveniência” (supervenience) de valores morais com relação a fatos, eventos ou
propriedades naturais, físicas ou biológicas, ainda assim não seria possível reduzir
propriedades morais a tais estados de coisas. Segundo a concepção integrada de emoções e
valores normativos em Damásio, um naturalismo mitigado equivale a reconhecer que,
embora sejam socialmente construídos, valores morais, práticas, dispositivos e instituições
como família, dinheiro, sociedade e governo, não podem ser reduzidos a propriedades
físicas ou naturais, mas também, por outro lado, prescindem das mesmas na própria
constituição de seus elementos intersubjetivos de autocompreensão – daí o adjetivo
“mitigado” (weak) para diferenciá-lo de um naturalismo reducionista (fisicalismo) e de um
construcionismo subjetivista, relativista ou pós-moderno. Assim como Damásio o mostrou,
nível também representam objetos, mas de uma forma independente de ponto de vista. É a
representação de nível intermediário que, de acordo com a hipótese AIR, seria a
representação consciente. Embora nem todas as representações de nível intermediário
sejam conscientes, é através delas que alguém pode se tornar consciente (PRINZ, 2012, p.
1145).
Com efeito, em seu primeiro livro, Furnishing the Mind, Prinz (2002, p. 149)
argumenta que:
3
[…] all (human) concepts are copies or combinations of copies of perceptual representations.
(S1) Tese Metafísica: Uma ação tem a propriedade de ser moralmente certa (errada)
apenas no caso que provoca sentimentos de aprovação (desaprovação) em
observadores normais sob certas condições.
(S2) Tese Epistêmica: A disposição para sentir as emoções mencionadas no S1 é
uma condição de posse sobre o conceito normal de CERTO (ERRADO).
Trata-se, portanto, de construir uma teoria moral que preserva o princípio humeano
de que não podemos derivar o que deve ser (ought) do que é (is) endossando um
naturalismo moral. Podemos usar premissas descritivas para derivar fatos prescritivos
(como sugeriu, de forma provocativa, John Searle). Fatos prescritivos relacionados a
conceitos como “bem e mal”, “moralmente certo e errado”, devem necessariamente
envolver sentimentos e são essencialmente subjetivos. A análise de nossos conceitos morais
está fortemente conectada a nossas respostas subjetivas. A psicologia moral acarreta fatos
sobre a ontologia moral. A moralidade depende de nossos sentimentos e varia no tempo e
no espaço, ou seja, varia histórica e culturalmente. Segundo o emocionismo forte de Prinz,
as emoções são a base da moralidade, pois os sentimentos criam os sistemas morais.
A primeira meta é fornecer um suporte empírico para uma teoria que foi
inicialmente desenvolvida a partir de uma poltrona. O segundo objetivo é
adicionar alguns detalhes para a teoria de Hume, incluindo um relato dos
sentimentos que sustentam nossos juízos morais, e uma conta da ontologia
que resulta de levar uma visão sentimentalista a sério. O meu terceiro
objetivo é mostrar que esta abordagem conduz ao relativismo moral.
Hume resistiu ao relativismo, e eu argumento que ele não deveria. Eu
também investigo a origem dos nossos sentimentos morais, e sugiro que a
abordagem genealógica de Nietzsche à moral tem muito a contribuir aqui.
A história resultante é metade humeana e metade nietzschiana, mas eu
faço a parte nietzschiana se encaixar naturalmente na parte de Hume.
(PRINZ, 2004, p. 2)
Assim, o Monismo de Triplo Aspecto permite uma articulação profícua entre uma
tese naturalista de realismo científico e uma tese neurofenomenológica sobre a
irredutibilidade de instâncias da primeira pessoa, dada a co-constituição de mundo e
subjetividade em processos cognitivos reflexivos. Como em John Searle, o problema
mente-cérebro teria destarte uma solução simples, compreendendo um naturalismo
consistente com uma concepção do senso comum sobre os estados mentais, na medida em
que tais estados são características do cérebro causados por processos neurofisiológicos,
mas cuja experiência de primeira pessoa e seu caráter qualitativo-fenomenal na consciência
não poderiam ser redutíveis a algoritmos, assim como a própria semântica seria irredutível
a uma sintaxe. Assim como o problema da ontologia poderia ser articulado em termos
naturalistas, por exemplo, de um fisicalismo mitigado, não-reducionista, evitando teses
behavioristas e intelectualistas, o problema da consciência poderia nos remeter aos
sentimentos e processos de se tornarem conscientes quando seus conteúdos disposicionais –
que, segundo Damásio, são sempre inconscientes e existem de forma dormente – são
apropriados pela narrativa, rememoração ou simples pensamento de quem pode “falar” na
primeira pessoa (DAMÁSIO, 2002, p. 401). Interessantemente, o ponto de desacordo entre
Pereira Jr. e Damásio consiste precisamente na distinção entre sentimento e emoção, sendo
que o segundo favorece uma leitura mecanicista de fenômenos de retroativação com
sincronização temporal [time-locked retroactivation] para captar um mecanismo capaz de
dar coerência no espaço e no tempo às atividades necessariamente fragmentadas de nosso
cérebro, permitindo falar de sentimentos inconscientes como formas possíveis de
representações mentais. Com efeito, Damásio reconheceu os limites da sua terminologia,
tanto no que diz respeito às imagens e representações como na própria concepção de um
mapeamento cerebral, que não apenas reflete o ambiente que o circunda mas “constrói
mapas desse ambiente usando seus próprios parâmetros e sua própria estrutura interna”
(DAMÁSIO, 2002, p. 403). O que caracteriza a experiência fenomenal ou dos qualia é que
seja própria de um único mapeamento criativo de tais fenômenos, de quem os experiencia e
está consciente de tais e tais sentimentos e emoções. Segundo Damásio (2002, p. 398):
Assim como Pereira Jr., Damásio adota uma leitura fenomenológica ao insistir
sobre a instância irredutível de primeira pessoa de quem percebe, experiencia ou sente algo.
É simplesmente impossível ter a mesma experiência de consciência de outra pessoa. Em
última análise, o diferencial da consciência provém da “ligação eficaz que ela estabelece
entre o mecanismo biológico de regulação da vida do indivíduo e o mecanismo biológico
do pensamento” (DAMÁSIO, 2002, 385). Assim como Prinz, Pereira Jr. evita o
mecanicismo damasiano e procura explicitar em que consiste a linha divisória entre
sentimentos e emoções, apontando para a emergência da consciência em correlatos neurais
das experiências perceptuais e de primeira pessoa, que são precedidas de processos
cognitivos inconscientes. Tais processos informacionais contendo mapeamentos,
representações e signos, assim como “suas dimensões sintática e semântica formal, podem
ocorrer de modo inteiramente inconsciente, como na operação de um computador digital”
(p. 3). A visualização concêntrica dos três aspectos em pauta favorece, ademais, a leitura
espinosista adotada por Damásio e vários neurocientistas em busca de alternativas
naturalistas ao dualismo de substância e suas variações funcionalistas. A “virada
sentimental” proposta por Pereira Jr. parece muito próxima da concepção prinziana de
revisitar pelo relativismo cultural concepções tradicionais da ética (teleológicas, utilitaristas
e deontológicas) de forma a revisitar nossos hábitos sentimentais e os fatores culturais que
constituem a nossa identidade pessoal.
Referências
______. E o cérebro criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Original
em inglês: Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain. New York: Pantheon,
2010).
PEREIRA JR., A. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis,
Edição Especial – Debate”, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015.
PRINZ, J. Furnishing the Mind: Concepts and Their Perceptual Basis. MIT Press, 2002.
______. Gut Reactions: A Perceptual Theory of Emotion. Oxford University Press, 2004A.
______. The Emotional Construction of Morals. Oxford University Press, 2004b.
______. The Conscious Brain: How Attention Engenders Experience. Oxford University
Press, 2012.[Kindle edition]
1. Introdução
1
Professor Associado da Faculdade de Engenharia Elétrica e Computação da Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP. E-mail: gudwin@dca.fee.unicamp.br
Uma visão alternativa ao monismo de triplo aspecto
Para dar sequência à análise crítica aqui preconizada, vamos elaborar uma
4. Conclusão
modelar. Em primeiro lugar, seria necessário justificar o apelo a uma parte da realidade
que se estenderia além do físico, pois uma proposta puramente fisicalista, apresentada
aqui na forma de uma hipótese alternativa baseada na semiótica de Morris,
aparentemente possui um poder explanatório similar ao MTA, sem ter que apelar para
um monismo de múltiplos aspectos e suas dificuldades metafísicas (lembremos da
navalha de Ockham). Em segundo lugar, seria importante trazer maiores evidências da
associação da onda de cálcio nas células gliais com a noção de sentimento. Reduzir uma
à outra talvez seja uma hipótese forte demais. Precisamos lembrar que outras coisas
ganham acesso à consciência, além da percepção, tais como episódios oriundos da
memória episódica, ou imaginações ou planos para o futuro. É importante ressaltar aqui
que qualquer critério que seja utilizado para selecionar o que vai para a consciência
envolve uma avaliação (e, portanto, um valor ou signo apraisivo), o que seria um
sentimento em nossa visão alternativa. Talvez existam de fato implicações entre as
ondas de cálcio e sentimentos, implicações essas que a visão alternativa da semiótica de
Morris possa até ajudar a esclarecer. E, finalmente, talvez esclarecer melhor a questão
da constituição e operação do “self”, que nem o MTA, nem a proposta de Baars, e nem a
visão alternativa baseada na semiótica de Morris dão conta ainda de explicar.
Referências
1. Introdução
1
Pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Diretor Científico da EINA -
Estudos em Inteligência Artificial e Natural. E-mail: armando@enscer.com.br
Consciência como atributo cerebral
Nessa visão, o autor assume que o sentimento não é uma representação mental,
mas sim uma experiência vivida interpretada como o significado da informação gerada
por um evento e combinada com a totalidade de nosso corpo. Nesse contexto, assume
que “focos” formados por representações e respectivos sentimentos constituem
episódios conscientes. Ao se estabelecer o feedback endógeno do sentimento sobre a
informação, é gerada a consciência.
3. Os comentários
A primeira observação a ser feita se refere ao fato do autor não ter feito nenhuma
referencia a trabalhos anteriores (ROCHA et al, 2001, 2005), no qual foi co-autor, nos
quais se correlacionou processamento quântico, Ca2 e processo consciente. A
consequência é que Pereira Jr (2015) acaba enfrentando algumas dificuldades
desnecessárias como a definição extremamente abstrata de episódios conscientes, acima
ressaltada.
Outra dificuldade se refere a exigir que apenas processos cognitivos que afetam
o corpo possam ser conscientes. Essa exigência leva, por exemplo, a problema do tipo
discutido a seguir. O controle da frequência cardíaca é feito o partir de informações
colhidas por sensores de pressão e pulsação e manipulação do simpático e
parassimpático. É um processo cognitivo? Ou é como qualquer outro processo de
controle por retroalimentação, que pode ser instalado, inclusive por meios hidráulicos.
Além disso, é um processo inconsciente durante a maior parte da vida do indivíduo,
embora afete o corpo continuamente. Mas pode ser “conscientisável” como palpitações
em condições patológicas ou emocionais.
Nem todos os processamentos cerebrais são conscientes. O controle
neurovegetativo, por exemplo, é fundamentalmente realizado a nível inconsciente.
Referências
1
Professor Adjunto do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual
Paulista - UNESP – Campus de Botucatu. E-mail: apj@ibb.unesp.br
Réplica aos comentários
afirmar que tudo o que existe é possível; todo aspecto da realidade vivenciada aqui e
agora (por exemplo, aparelhos sem fio propiciando “informação à distância”, de modo
semelhante à “ação à distância” atribuída à força gravitacional) deve ser considerado
como possível desdobramento dos princípios fundamentais da realidade. Embora não
tenhamos condições de conhecer todas as possíveis combinações, podemos inferir, a
partir da realidade vivenciada, quais seriam os princípios mínimos necessários para que
estas vivências ocorram (parafraseando Kant, podemos investigar as “condições de
possibilidade” da realidade vivenciada).
É nesta perspectiva que – contrariando um uso indiscriminado da “navalha de
Ockham” – são postulados três aspectos fundamentais da realidade. O que se está
sustentando é que sem um destes três aspectos a nossa existência não seria possível do
modo como ela acontece. Feita esta afirmação, cabe provar, ou argumentar de modo
convincente, em prol da necessidade destes aspectos, na composição da realidade
vivenciada (e seu respectivo conceito) na contemporaneidade.
No capítulo de livro em que o MTA foi originalmente apresentado, elaborei um
argumento para sustentar esta tese, com base no que podemos chamar de “método
filosófico-interdisciplinar”. Não se trata de um argumento metafísico, mas pragmático
(na linha de BROWNING, 1990; este autor distingue três acepções da Teoria do Ser: a
metafísica convencional, que busca por princípios não-físicos da realidade; a “ciência
universal” dos positivistas, e a ontologia de orientação pragmática, por ele defendida).
Na elaboração do conceito de realidade, além de se usar com bom senso o senso
comum, assumo a necessidade de se levar em conta os resultados de testes empíricos e
demonstrações teóricas considerados adequados pela comunidade científica, assim
como as terminologias científicas especializadas e os conceitos a ela subjacentes. Nesta
perspectiva, os argumentos filosóficos sobre a realidade devem estar aterrados em
modelos científicos. Não devemos elaborar hipóteses sobre a realidade apenas por meio
de princípios ‘a priori’ – nem mesmo sobre nossas próprias capacidades cognitivas: a
Teoria do Conhecimento filosófica deveria, nesta abordagem, estabelecer diálogo com
as Ciências da Cognição.
No que tange aos três aspectos, procurei naquele capítulo argumentar que os
conceitos fundamentais das ciências físicas, químicas e biológicas não possibilitam - no
presente ou como perspectiva futura – reduzir, ou mesmo explicar de modo satisfatório,
os fenômenos do segundo aspecto (forma/informação) ou do terceiro
(sentimento/consciência). Para entender os segundos, precisamos da Teoria da
Neurociência por Francis Crick e Cristof Koch, quando formularam o “problema da tela
e do espectador” e adotarem como solução provisória o “homúnculo metodológico”
(CRICK e KOCH, 2003). Em que consiste tal problema? Não bastaria, para a
neurociência, explicar como se formam os conteúdos mentais no cérebro (a “imagem”
projetada na “tela mental”), pois para haver consciência seria ainda necessário
considerar a atividade de um receptor destes conteúdos (o “espectador”). Entretanto,
dentro do cérebro do espectador seria necessário existir um espectador ainda menor, e
assim teríamos a indesejável progressão a um infinito de homúnculos (a qual os
medievais possivelmente conceberiam em termos de uma progressão de anjos até Deus,
que seria o receptor final do processo consciente).
Apesar de recusarem assumir uma postura filosófica, e de desconhecerem a
história desse problema, Crick e Koch tiveram que enfrentá-lo, assumindo a hipótese do
“homúnculo metodológico”, que seria uma ficção provisória à espera de progressos da
neurociência que possibilitassem uma abordagem científica do problema. De fato,
algum progresso neste sentido aconteceu nos últimos 20 anos. O leitor já deve ter
antecipado que minha proposta de duas redes biológicas que dialogam entre si na
dinâmica consciente (a rede neuronal e a rede astrocitária) tem como alvo a estrutura
dialógica da consciência de Husserl (vide também MITTERAUER, 2013).
Tendo articulado as ferramentas conceituais acima, posso agora ter alguma
chance de responder satisfatoriamente à rica gama de questionamentos e críticas
apresentadas pelos colegas que se dispuseram a comentar a proposta. Vou citar e
numerar os comentários que requerem resposta, e tratar todos os colegas como “Prof.”,
independentemente de suas titulações.
Vinicius Romanini
-“O professor Pereira Jr., e por conseguinte o MTA, parecem estar alinhados
com a corrente da neurociência liderada por Damásio, e que coloca a emoção
como a expressão corpórea do processamento de informação que ocorre no
cérebro, e o sentimento como um estado mental que nada mais é do que um
subproduto das emoções [...] Eu discordo desta posição porque para mim, como
um pensador próximo à filosofia e à semiótica de Peirce, a ordem de
determinação é inversa [...] A informação surge quando sentimentos são
sintetizados em sensações, dando origem ao processo semiótico. Por outro lado,
a matéria é aquilo que dizemos de todo o que não evolui, não pensa, não cresce
e, portanto, se mantém sob as leis chamadas naturais. O monismo de Peirce tem
a mente como fundamento, e tudo o mais como decorrência”.
100 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
Réplica aos comentários
Para existir consciência é preciso que haja sistemas com uma estrutura
equivalente à proposta por Husserl, ou seja, contendo um sub-sistema cognitivo que
101 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
Réplica aos comentários
-“Outro ponto difícil para mim é a relação praticamente direta que Pereira Jr.
parece fazer entre “ondas iônicas” propagadas no cérebro e o aspecto do
sentimento/consciência. Essa formulação permite vislumbrar a possibilidade de
simular o sentimento e a consciência pela produção artificial de ondas iônicas
em certos sistemas de processamento de informação. Estaria aí a chave para a
verdadeira inteligência artificial? Seria possível que o projeto conexionista de
reproduzir a mente humana a partir em processadores de informação (algo que
hoje parece menos promissor do que há 20 anos) possa ser recondicionado para
um projeto que una a simulação de ondas analógicas semelhantes às produzidas
na interação entre neurônios e astrócitos?”.
102 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
Réplica aos comentários
103 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
Réplica aos comentários
Não concordo que o MTA tenha ambição totalizante no sentido de Hegel. Sua
ambição é sistemática no sentido de Aristóteles, quando este formulou a Teoria das
Quatro Causas. O conhecimento destas causas possibilitaria explicar filosoficamente
todo fenômeno natural, no sentido de se identificar os fatores (causas eficiente, formal,
material e/ou final) que concorreram para sua geração. Entretanto, estas explicações não
seriam totalizantes, como no determinismo laplaciano ou nos atuais esforços no sentido
da elaboração de uma “Teoria de Tudo”. As últimas se baseiam no modelo da física
moderna, no qual o conhecimento das leis da natureza juntamente com o que os físicos
chamam de “condições iniciais e de contorno” possibilitaria prever com precisão
qualquer evento futuro ou retroceder a qualquer evento passado.
104 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
Réplica aos comentários
Sem dúvida o MTA, assim como toda teoria filosófica e científica, está
constrangido pelos limites da linguagem. Entretanto, como se sabe, a linguagem natural
(felizmente) não é tão precisa a ponto de só podermos nos referir àquilo para que temos
um termo único. No caso dos sentimentos, por exemplo, com o termo “alegria”
podermos nos referir a um vasto espectro de sentimentos. Deste modo, os limites da
linguagem não são impeditivos de uma rica elaboração ontológica, ou são impeditivos
apenas para aqueles (como o primeiro Wittgenstein) que só pretendiam falar daquilo
para o que dispunham de termos unívocos. Quanto à não-computabilidade (e/ou
incompletude) do MTA, não identifico nisso problema algum, pois não se trata de um
modelo computacional ou de uma teoria formal da qual se pretendesse deduzir
teoremas.
-“O aspecto que me parece mais difícil de acolher é que a emoção seja, adotando
a terminologia peirceana, um primeiro [...] Se, por um lado, numa chave
fenomenológica é preciso assumir a consciência como acontecimento, como um
aí [corpo-mente-mundo], é somente em tal acontecência que há existência
consciente, e nesse acontecer brota o mundo para mim, onde se mesclam
emoção, percepção, linguagem, cultura, as pulsões e as intenções”.
105 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
Réplica aos comentários
Como discutido com o Prof. Romanini, para o MTA a ordem dos eventos é a
inversa da estabelecida por Peirce. Isso significa que para o MTA o sentimento não é o
primeiro, e sim o último evento de processos que começam no plano físico, e avançam
no plano informacional. Este tipo de processo poderia ser considerado compatível com a
fenomenologia existencial de Merleau-Ponty, pois o sentimento emerge quando já
acontece uma relação pré-reflexiva entre o corpo e o mundo.
-“Há uma simplificação histórica excessiva, que pode induzir o leitor a uma
compreensão equivocada das investigações anteriores sobre o tema [...] Por
exemplo, Watson, Tolman e Skinner, cada um à sua maneira, estudaram
sistematicamente as emoções [...] É bem verdade que a psicologia cognitiva,
baseada no modelo do processamento de informação, teve enormes dificuldades
para lidar com o problema dos processos afetivos e sua ligação com a
106 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
Réplica aos comentários
consciência [...] mas isso não significa que as emoções tenham sido
negligenciadas enquanto tais na psicologia como um todo”.
Eu bem sei que estes autores estudaram as emoções, porém o artigo discutido
enfoca o conceito de sentimento, que é proposto como sendo radicalmente diferente do
conceito de emoção que encontramos na história da psicologia. Este último conceito é
referido a estados somáticos e comportamentais, enquanto o proposto conceito de
sentimento seria um fenômeno instanciado no cérebro/mente, independente de
manifestações somáticas ou comportamentais (podendo ser relacionado ao
“comportamento coberto”; neste sentido, talvez o Skinner maduro e os colegas que
deram continuidade a seu “behaviorismo radical” tivessem algo a acrescentar ao
conceito de sentimento). Relativamente às correntes psicológicas tal como são
classificadas nos livros introdutórios, pode-se dizer que o conceito de sentimento que
proponho seria mentalista, porém compatível com uma concepção de realidade que
abranja este tipo de fenômeno como decorrente de seus princípios elementares.
Atualmente esta concepção tem sido chamada de Pan-Proto-Psiquista; a Natureza teria
potencialidade para a emergência de mentes conscientes, dependendo da satisfação de
determinadas condições. Esta concepção se distingue do Pan-Psiquismo, posição que
sustenta que já existiria algum grau de atualização da consciência em qualquer sistema
natural.
-“A valorização dos sentimentos como cerne da vida mental e como base das
ações humanas não é algo raro na tradição filosófica ocidental. Antes e depois de
Espinosa, muitos filósofos defenderam a autonomia da vida afetiva em relação à
razão. Basta lembrar aqui a célebre frase de Hume, segundo a qual ‘a razão é, e
deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além
de servir e obedecer a elas’”.
107 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
Réplica aos comentários
Realmente não discuti o emergentismo neste artigo, mas o fiz em outro lugar
(projeto de pesquisa financiado pela FAPESP, sobre o MTA, cujo produto deverá sair
na forma de livro). Eis aqui o parágrafo que, se não convenceu o arguto parecerista do
projeto, deve tê-lo vencido pelo cansaço: O conceito de emergência adotado no MTA é
‘forte’, estrutural e diacrônico no sentido de Stephan. Entretanto, não me parece ser
conveniente adotar todos os pressupostos filosóficos utilizados na abordagem deste
autor. Ao caracterizar o Monismo, ele entende que a natureza seria constituída por
sistemas compostos de “partes materiais”. Neste caso, a informação e a consciência
derivariam de uma evolução diacrônica, cujos produtos seriam imprevisíveis com base
no conhecimento de tais partes e a elas irredutíveis, uma vez que propriedades mentais e
conscientes, por pertencerem a diferentes categorias conceituais, não poderiam se
derivar de propriedades materiais. Entretanto, se partirmos de uma ontologia de matiz
aristotélica, para a qual a realidade é constituída não só de matéria como de formas
(atuais e potenciais), os aspectos emergentes (a saber, o aspecto informacional e o
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Esta questão, que é sem dúvida importante para a viabilidade da proposta, foi
discutida em outras publicações, voltadas para uma apresentação geral do MTA.
Resumo abaixo a posição por mim adotada, para tal utilizando a teoria das quatro causas
aristotélica. Sustento que os conceitos de causa eficiente e material só se aplicam a
relações temporais “horizontais” no âmbito do primeiro aspecto (físico), ou seja,
relações temporais entre eventos físicos. No âmbito das relações temporais
informacionais “horizontais” (entre eventos informacionais) opera a causação formal.
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Nas relações temporais conscientes, opera um outro tipo de relação, que não se encaixa
na teoria aristotélica, mas bem pode servir para se reinterpretar seu conceito de causa
final (como feito, em parte, por AUBENQUE, 1960); é uma relação de busca de
satisfação (ou maior perfeição), que poderia se aproximar do conceito de “desejo” em
Hegel, ou melhor, de G. Deleuze e F. Guattari no livro “O Anti-Édipo”. Esse é um
assunto que demanda um esforço concentrado, ao qual ainda não consegui me dedicar;
seria interessante discutir uma possível relação entre a ousada interpretação de
Aubenque e os rumos da filosofia da psicanálise que conduzem de Freud a
Deleuze/Guattari. Respondendo finalmente à pergunta, é preciso especificar como
seriam as relações temporais “verticais” entre o primeiro aspecto (físico) e o terceiro
aspecto (consciente). Esse tipo de relação não pode ser senão por meio da causação
formal, pois é o segundo aspecto que media o primeiro e o terceiro, em ambos os
sentidos. Vou fornecer um exemplo para cada: (a) Para a causação formal entre um
estado consciente e um estado físico: recebo uma notícia cujo significado me induz um
sentimento de tristeza (estado consciente), e então choro (estado físico). Como ocorre a
causação formal? O sentimento de tristeza é instanciado em uma onda iônica que
modula sinapses com neurônios que controlam glândulas endócrinas. A forma do
sentimento (tristeza) induz uma padrão de modulação (reforço de determinadas
sinapses, inibição de outras) que ativa neurônios que geram potenciais de ação por meio
de axônios que estão conectados com tais glândulas, ao invés de ativar, por exemplo,
movimentos faciais do riso; (b) Para a causação formal entre um estado físico e um
estado consciente: piso em um prego que perfura a palma do meu pé. Os axônios dos
neurônios nociceptivos periféricos enviam um sinal ao meu cérebro cuja forma ativa
uma assembleia neuronal que induz uma onda iônica que instancia um sentimento de
dor (ao invés de, por exemplo, cócegas).
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variante do termo que os filósofos da mente inventarem). Isso não significa que o MTA
não seja uma teoria geral da consciência. É importante notar que os sentimentos não
ocorrem no vácuo, mas como respostas a padrões informacionais resultantes de
processos cognitivos do sistema. Na figura 7 do artigo em discussão é exposta a ideia de
que a atenção consciente advém de uma conjunção de processos cognitivos e
sentimentais. Como a consciência de acesso nada mais parece ser que um segundo
nome para a atenção consciente que propicia a realização de determinadas ações, ela
seria, portanto, um tipo de consciência fenomenal, e não uma categoria de consciência
adicional.
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-“Há no texto um equívoco lógico, quando Pereira Jr. afirma que “um evento é
transportado para nosso cérebro por meio de sinais informacionais, e nosso
cérebro [...] interpreta o significado da informação e reage ao conteúdo da
mesma com um sentimento”. Ora, se levarmos em consideração a própria
afirmação seguinte do autor, segundo a qual ‘os sentimentos são exclusivos à
perspectiva de primeira pessoa’, fica claro que na primeira passagem há uma
confusão entre o cérebro e a pessoa”.
Não concordo com a suposta existência do problema, pois entendo que o cérebro
é o subsistema da pessoa onde os sentimentos são instanciados em ondas iônicas de
alcance global. Este subsistema satisfaz às condições de conectividade para propagar os
efeitos do sentir para todo o corpo. Um músculo também pode gerar tais ondas
(utilizando o mesmo íon de cálcio), mas estas ficam restritas a sua estrutura, tendo a
função de coordenação da contração das fibras musculares que geram os movimentos
corporais. Para que as ondas iônicas musculares participem dos episódios conscientes, é
preciso que seus eventos sejam transmitidos ao cérebro. Caso haja uma lesão muscular,
mas os nervos (que comunicariam este evento ao cérebro) estejam anestesiados, não se
sente a dor muscular. Hoje sabemos que existem outros sistemas nervosos além do
cerebral, isto é, o cardíaco e o gástrico. Entretanto, não há evidências de que eventos
nestes sistemas gerem sentimentos independentemente de sinalização para o sistema
nervoso central; se eventualmente a possibilidade de gerarem sentimentos
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-“O leitor se vê, então, diante de uma incerteza: ou o MTA pretende deslocar os
processos volitivos para a esfera do inconsciente ou ele aceita a existência de
processos volitivos conscientes”.
Há de fato uma lacuna a este respeito no artigo, porém minha posição (a ser
melhor desenvolvida no futuro) é compatibilista. Na neurociência, é relevante o
trabalho de Benjamin Libet, mostrando que a experiência consciente envolvida no ato
volitivo ocorre 500 milissegundos após o potencial neuronal de prontidão, o qual
corresponde ao processamento inconsciente da decisão. Pode-se generalizar este achado
na proposição de que todos os processo conscientes começam como processos
inconscientes, mas não se esgotam neles. No caso da volição, quando se forma o
sentimento é possível vetar ou reforçar os processos inconscientes em curso, conforme a
valência do sentimento (se nos sentimos bem reforçamos o processo inconsciente em
curso, se nos sentimos mal o inibimos). Fisiologicamente, isso ocorre por meio da
modulação das sinapses tripartites. O sentimento se forma como onda iônica na rede
astroglial; em cerca 2 segundos, esta onda modula as sinapses, reforçando ou inibindo
os padrões de excitação neuronal que a induziram.
-“Se as células gliais estão envolvidas nas atividades mentais como um todo, não
há motivo para buscar nelas os correlatos específicos da consciência.”
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Talvez essa relação não esteja clara no artigo, mas está bem desenvolvida em
outras publicações, inclusive com previsões empíricas. A gênese do MTA se insere em
uma linha de pesquisa de 20 anos a respeito das bases cerebrais da consciência, que
culminou na série de artigos (publicados em periódicos científicos da área
neurobiológica) e capítulos de livros em coautoria com o biólogo Fábio Furlan (então
orientando de pós-doutorado), sobre o papel dos astrócitos em nossa vida mental. Por
exemplo, em Pereira Jr. e Furlan (2010) previmos que o bloqueio das ondas de cálcio
astrocitárias geraria perda da consciência, o que foi confirmado pelo artigo de Thrane et
al. (2012), citado no artigo em foco.
Cláudia Passos-Ferreira
-“Pereira não esclarece em que sentido sua teoria poderia explicar as correlações
entre experiências conscientes e processos físicos (cerebrais) de um modo
melhor que outras já conhecidas posições em filosofia da mente, em particular as
posições que defendem o dualismo de propriedades ou a teoria de duplo
aspecto”.
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“realizado fenomenalmente”, então esse algo é consciente, mas não por força de si
mesmo. A informação por si só não é consciente, como atestam os computadores e
robôs que nos cercam. “Ser realizado” supõe uma ação que torne a informação
consciente. No caso do MTA, está bem claro o que é que torna a informação (ou
representação, ou mapa mental, etc.) consciente: o sentir. Quando a mensagem é
sentida, temos uma atualização do terceiro aspecto, a consciência. Terceiro, é incorreto
dizer que “Chalmers postula dois aspectos fundamentais, um para o físico e outro para a
consciência”. Chalmers postula dois aspectos da informação, um físico e o outro
consciente. Em outras palavras, Chalmers não constrói uma ontologia, nela definindo o
que entende por “físico”, “informacional” ou “consciente”; ele apenas argumenta que a
consciência não é suscetível de redução científica ao físico (seu “Hard Problem”), e
especula que a informação seria o elo entre os dois polos indefinidos, físico e mental.
Não vejo porque os dois usos seriam incompatíveis. Com seu artigo clássico, em
um “ato de escrita”, Nagel tornou a expressão coloquial um termo técnico da filosofia
da mente. Na verdade, estava cobrindo um terreno já ocupado pela fenomenologia
européia. Permitam-me formular uma proposição contrafactual: se Nagel e Chalmers
tivessem um conhecimento da história da filosofia da psicologia comparável ao de
Velmans (2009), nossa vida de filósofos da consciência seria menos difícil (mas talvez
algumas carreiras acadêmicas, neste ínterim, não tivessem decolado).
-“Assim como Pereira, Stoljar adota uma noção abrangente de ‘sentimento’, mas
sua teoria conta com uma estrutura adicional. Na visão de Stoljar (2015): ‘estar
num estado consciente é uma propriedade complexa que consiste num relação
entre um estado e um sujeito, a qual implica que o sujeito se sinta de um certo
modo em virtude de estar nesse estado’. Nesse sentido, a perspectiva de Stoljar
parece oferecer um elemento relacional que não está presente na perspectiva de
Pereira: uma relação entre um estado consciente e o sujeito desse estado”.
Não sei como a Profa. Passos chegou à afirmação de que não há um elemento
relacional deste tipo no MTA! Como explicitado em várias publicações, e resumido na
introdução a este texto de réplicas, adoto a concepção husserliana de uma estrutura
dialogal da consciência. Fiquei interessado em ler o artigo de Stoljar que está no prelo
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para conferir se cita meus trabalhos, pois a estrutura relacional do MTA foi publicada
em 2013 (a partir de um texto escrito em 2010, e submetido em 2011 à Cambridge
University Press como amostra do livro que veio a público em 2013).
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que hoje não provoca mais tais sentimentos? E a fenomenologia do agir, será que hoje
se tornou um cálculo de logística? Não temos mais jogadores de futebol que sentem
alegria no contato com a bola? E na ação ética, não temos mais sentimentos de justiça,
de culpa, de responsabilidade, etc.? Tudo se tornou cálculo para ganhar o máximo de
dinheiro?
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O breve comentário do Prof. João Teixeira requer uma longa resposta, pois
remete à boa parte da história e filosofia da ciência ocidental.
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-“No artigo alvo não há uma explicação do nível consciente em si, como pode
ser feito para os outros dois níveis, a explicação do último nível ou é remetida
para os outros dois ou se mantem na fenomenologia. Mas a fenomenologia não
pode ser o explanans de uma metafísica da mente, pois ela já é o explanandum”.
-“Não fica claro se APJ abandona o modelo de causação proposto em Pereira Jr.
(2013) [...] (que) dá margem para entenderem o MTA como um “trialismo” e
não um monismo, sem contar que acrescenta termos inúteis e mal
compreendidos [...] APJ poderia simplesmente resumir esse modelo de causação
como blocos monistas”.
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eventos físicos por eventos mentais) seria supérflua e dispensável, pois seria possível
reduzir as explicações a séries de eventos físicos. O Prof. Samuel concede um pouco
mais que Kim, sugerindo a possibilidade de relações causais entre blocos psicofísicos.
O problema de sua crítica é que ele não distingue entre tipos de relação causal, pois esta
distinção é essencial para se fazer sentido do diagrama proposto em Pereira Jr. (2013), e
que ele reproduz fielmente em seu comentário. Enquanto as relações temporais do tipo
causa eficiente e causa material se aplicam a séries de eventos físicos, seria
possivelmente um erro categorial as aplicar a séries de eventos informacionais e/ou
conscientes. Como discutido anteriormente nestas réplicas, as séries informacionais
operam com a causa formal (uma forma presente na fonte é transportada para o
receptor, ou seja, em um processo informacional a forma presente na fonte “causa” a
forma que se forma no receptor). Séries de eventos conscientes seguiriam a ordem dos
motivos, que seria a ordem dos desejos, conforme mencionado anteriormente. Portanto,
se diferentes aspectos apresentam diferentes tipos de relações temporais, fundi-los em
blocos poderia induzir erros categoriais, como atribuir motivos e finalidades a processos
físicos (aliás, esse foi o erro clássico do vitalismo), ou atribuir causação eficiente a
séries de eventos conscientes (o que poderia, por exemplo, implicar na negação da
liberdade humana. Defendo a existência de liberdade genuína, pois a consciência pode
manter o controle das ações por meio de reforços e vetos dos processos iniciados
inconscientemente).
124 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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A resposta é que as ondas iônicas globais não são biologicamente possíveis sem
a ativação da rede astrocitária por extensas assembléias neuronais sincronizadas,
conforme proposto no “efeito carrousel” (PEREIRA JR. & FURLAN, 2010). Deste
modo, as pequenas ondas geradas em cada elemento da rede astrocitária não se
cancelam, mas apresentam interferências construtivas, pois estão enquadradas na
mesma fase. Pode-se mesmo dizer que as ondas iônicas são respostas ao processo
cognitivo já realizado na rede neuronal, isto é, o sentimento é sentimento do significado
atribuído à informação (pelo processamento neuronal). Assim como, na cadeia
interpretativa, o significado é elicitado pelo significante, pode-se afirmar que o
sentimento é elicitado pelo significado. Não faz sentido se pensar na atualização de
sentimentos de modo arbitrário; as atualizações via de regra ocorrem em contextos nos
quais os sentimentos fazem sentido para o sistema (ou seja, compõem a cadeia de
desejos que se estabelece no plano consciente).
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podem ser entendidos como emocionais, mas também como qualitativos, como
'o sentimento' de algo’”.
Não me parece que a sentença acima citada implique que “as redes astrocitárias
são responsáveis por emoções, não sentimentos”. Sim, as redes são responsáveis por
emoções, pois vários tipos de sentimento são emocionais. É apenas isso que é implicado
pela citação. Não se pode – a partir da citação – concluir que (eu teria concordado que)
as redes astrocitárias não seriam responsáveis por sentimentos.
126 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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-“A questão aqui colocada é: por que assumir que esse sentimento é parte
ontológica da Natureza e está instanciado no cérebro em vez de abordá-lo como
produto do funcionamento cerebral, mais especificamente do funcionamento
material/informacional dos astrócitos junto aos padrões neurais? Ou devemos
entender a exigência de um terceiro aspecto justamente por conta da existência
dos sentimentos em nossa experiência, o que leva, necessariamente, à existência
dos mesmos em estado potencial na Natureza?”.
127 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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De fato, os valores pelos quais guiamos nossas ações éticas poderiam ser
considerados as “preferências do sistema” (em analogia com o uso do termo nos
sistemas operacionais dos computadores pessoais). Entretanto, tais preferências não se
referem a padrões de informação (segundo aspecto), pois se situam no âmbito do
terceiro aspecto. Podemos chamar tais preferências de meta-sentimentos, pois seriam
critérios de discriminação entre sentimentos, decorrentes de processos auto-
organizativos do Eu sentiente, que se desenvolvem como resultantes da dinâmica dos
hábitos sentimentais em sua história de vida. Esse é um tema de grande importância, a
ser melhor elaborado no MTA; agradeço a oportunidade de mencionar minhas ideias a
respeito de como a dimensão normativa se constitui no âmbito do terceiro aspecto.
128 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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Não pode existir no MTA uma relação rígida entre padrões de informação e
sentimentos, pois estes pertencem a dois aspectos distintos e irredutíveis. Um padrão
musical pode nos despertar sentimentos “bons” em determinado contexto e sentimentos
“ruins” em outro. O que pode ocorrer é justamente a operação da “causa formal”, pela
qual a forma de uma música em determinado contexto nos desperta determinado
sentimento, e a forma de um sentimento em determinado contexto nos faz relembrar
uma determinada música.
Nythamar de Oliveira
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131 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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Vale ressaltar que para esta autor a percepção não é concebida em termos
fenomenológicos (como vivências), e sim em termos cognitivistas, como a formação de
mapas de primeira e segunda ordem.
-“Segundo Prinz, podemos formular duas teses diretrizes: (S1) Tese Metafísica:
Uma ação tem a propriedade de ser moralmente certa (errada) apenas no caso
que provoca sentimentos de aprovação (desaprovação) em observadores normais
sob certas condições. (S2) Tese Epistêmica: A disposição para sentir as emoções
mencionadas no S1 é uma condição de posse sobre o conceito normal de
CERTO (ERRADO). Trata-se, portanto, de construir uma teoria moral que
preserva o princípio humeano de que não podemos derivar o que deve ser
(ought) do que é (is) endossando um naturalismo moral.”
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não se trata de reduzir o dever ser ao ser, mas de conceber o ser de tal modo que tenha o
dever ser como um momento necessário e constituinte do processo da realidade.
Em seu bem estruturado comentário, o Prof. Ricardo Gudwin faz uma eficiente
revisão crítica do MTA, para ao final apresentar uma proposta alternativa. Ele começa
questionando os monismos de duplo aspecto:
133 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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-“O que seria esse algo a mais, que faz com que o corpo-mente seja maior do
que simplesmente uma realidade puramente física? Qual seria a natureza desse
algo-a-mais? Infelizmente, os proponentes das diversas versões de monismo de
duplo aspecto não nos dão uma resposta definitiva sobre essas questões”.
De fato, não ofereci uma resposta metafísica a tais questões, mas respostas
possíveis dentro dos limites do método filosófico-interdisciplinar adotado.
A teoria de Baars foi apresentada como sendo cognitiva, e não contém nenhuma
referência a processos físicos propriamente ditos. Inclusive, é notória a repulsa de Baars
a abordagens físicas da consciência, chegando recentemente a publicar um artigo em
que nega a pertinência da principal teoria física (teoria quântica) para a abordagem
científica da consciência (BAARS e EDELMAN, 2012). Na versão “biológica” de
Stanislas Dehaene, o Espaço de Trabalho Global (ETG) é relacionado com um sistema
cerebral, o córtex pré-frontal, porém este neurocientista não apresentou quaisquer
explicações físicas dos processos que ocorrem nesta parte do cérebro, possibilitando a
ocorrência da atividade consciente. Também é famosa a implementação computacional
da teoria de Baars por Stan Franklin, na qual são especificados módulos de
processamento de informação que expressariam as principais propriedades do ETG,
porém sem qualquer explanação física do funcionamento das máquinas que
implementariam o modelo e dos processos físicos da máquina envolvidos na atividade
consciente.
-“Para o Prof. Pereira Jr., estava claro que as ondas de cálcio, até pelas suas
características temporais, fariam o papel de selecionadoras da atenção sobre
quais as informações contidas nos neurônios seriam propagadas via broadcast
134 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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para o resto do cérebro. O passo seguinte seria associar essas ondas de cálcio à
formação do sentimento, na mecânica cerebral, segundo a proposta de Panksepp.
A partir disso, veio o surgimento do terceiro aspecto no MTA. A informação
processada pelos neurônios seria a informação cognitiva. O sentimento seria
instanciado pelas ondas de cálcio, cumprindo seu papel de indicar quais as
informações cognitivas que deveriam sofrer o broadcast. Para isso, era
necessário que o monismo de duplo aspecto fosse estendido de um aspecto a
mais, e aí então o monismo de duplo aspecto dá origem ao monismo de triplo
aspecto, como apregoado pelo Prof. Pereira Jr”.
Esta foi uma boa e breve reconstrução de uma das origens do MTA.
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embora para mim esta constatação não tenha sido feita na época em que eu interagia
frequentemente com Baars, em fóruns de discussão na Internet e em seus cursos
‘online’ sobre Teoria da Consciência.
-“Em nossa visão, apesar do substrato distinto (neurônios versus células gliais),
tanto os neurônios como as células gliais carregam sim informação. A única
diferença é que há sistemas separados para processar essa informação. Enquanto
a informação cognitiva é processada nas redes de neurônios, a informação de
sentimento seria processada nas redes de células gliais. A proposta de dois
aspectos distintos forma/informação e sentimento/consciência no MTA fica aqui
um pouco comprometida, em virtude de considerarmos o sentimento como
elemento formador da consciência e também uma característica de informação.
Não seriam, portanto, aspectos irredutíveis entre si”.
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Na proposta do MTA, não se pode afirmar – como faz o Prof. Ricardo - que a
função da rede glial seria “processar informação”. Há aqui um problema terminológico.
A rede glial processa “formas de onda” que instanciam sentimentos, porém tais “formas
de onda” não seriam unidades binárias discretas como os bits processados por neurônios
e computadores digitais; embora não possa aqui oferecer uma réplica detalhada, lembro
que em várias publicações tenho sugerido que as ondas de cálcio astrocitárias seriam
quantum-like, ou seja, um fenômeno macroscópico que resgata um grau de superposição
e emaranhamento quânticos, que são destruídos no processo de “decoerência” (transição
da escala quântica para a macroscópica) mas seriam “resgatados” por meio de processos
de redução de entropia e construção de estados coerentes no cérebro. Estes últimos
processos geram um sistema metaestável que obedece ao princípio de “ordem por
flutuações” formulado por Nicolis e Prigogine (1977). É esse regime metaestável que
possibilita que a variação de amplitude no tempo (a forma temporal) da onda de cálcio,
um fenômeno de baixa energia, tenha um efeito sobre a estrutura material do organismo
vivo, influenciando a atividade fisiológica e o comportamento. Portanto, mais do que
meramente processar a informação sem dar conta das formas que estão sendo
processadas, a função maior da rede astrocitária seria afetar a rede neuronal e o restante
do corpo de acordo com a valência atribuída ao conteúdo da informação; reforçando o
padrão informacional processado, se for sentido como bom; e o deprimindo, se for
sentido como ruim.
-“Para dar sequência à análise crítica aqui preconizada, vamos elaborar uma
proposta alternativa, que prescinde do recurso de um monismo de múltiplos
aspectos (e sua proposta de uma parte da realidade extrafísica) [...] O
interpretante, ou “efeito” do signo, é tudo aquilo que pode decorrer da
interpretação do signo. Normalmente, esse interpretante é outro signo, que
mantém um relacionamento (do mesmo ou de outro tipo) com o mesmo objeto
com que o signo mantinha um relacionamento. Com isso, dizemos que o signo
“representa” seu objeto, uma vez que tem o poder de gerar um efeito, onde esse
objeto também está envolvido de alguma maneira. Segundo Morris analisa em
seu livro de 1964, esse interpretante possui três diferentes dimensões: as
dimensões designativa, apraisiva e prescritiva [...] Na visão alternativa, segundo
a semiótica de Morris, um sentimento, ao contrário, seria um signo cujo
interpretante tem predominância em sua dimensão apraisiva, ou seja, uma visão
completamente fisicalista (bem determinada e funcional) de sentimento”.
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Prof. Ricardo, por favor não tente passar o idealismo peirceano como se fosse
fisicalismo! O fisicalismo é uma proposta filosófica que procura estabelecer uma
ontologia da mente com base nas ciências físicas, por exemplo, utilizando as quatro
forças consideradas fundamentais, e processos causais que tais forças possibilitam
explicar. Para Peirce (e, imagino, também para seus discípulos, como Morris), a
realidade fundamental é mental; processos semióticos são processos mentais. No MTA,
processos semióticos pertencem ao segundo aspecto.
138 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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Não se propõe tal redução. O sentimento seria instanciado nas ondas de cálcio,
mas não reduzido a ela. O sentimento não é um processo meramente físico, ou
informacional, mas uma vivência subjetiva que se superpõe àqueles aspectos. Quanto às
memórias (enquanto resgatadas conscientemente), à imaginação e planos para o futuro,
todas estas vivências contém sentimentos (conforme argumentei em resposta à Profa.
Cláudia Passos).
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141 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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Neste quesito, tenho o prazer de concordar com o Prof. Armando. Seria esta a
função da coerência quântica para a formação de episódios conscientes multimodais
integrados: prover o ‘binding’ dos padrões de informação processados de modo
distribuído no cérebro, e possivelmente também em outras partes do corpo (por
exemplo, os músculos também apresentam movimentos coerentes de populações de íons
de cálcio). Desse modo, considero meus trabalhos em coautoria com o Prof. Armando
como teorias de integração cognitiva; os processos cerebrais de tipo quântico seriam
responsáveis pela formação dos conteúdos “objetivos” da consciência, que são
vivenciados pelo Eu sentiente durante cada episódio consciente. Entretanto, este Eu não
seria instanciado pela mesma rede (neuronal) que processa tais conteúdos, e sim pela
rede astrocitária, cujas ondas de cálcio instanciariam os sentimentos relativos a cada
conteúdo.
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142 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143
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Referências
143 Kínesis, Vol. VII, n° 14 (Edição Especial – Debate), Novembro, 2015, p.95-143