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Jerzy Grotowski
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO...................................................................................................2
1.1 – A SERPENTE.................................................................................7
2.1 – O MÉTODO..................................................................................10
3.1 – GROTOWSKI...............................................................................15
MEMORIAL......................................................................................................25
CONCLUSÃO...................................................................................................34
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................35
ANEXOS...........................................................................................................37
INTRODUÇÃO:
corpo para que ele possa responder prontamente ao jogo proposto pelo exercício aqui
algumas cenas que optamos por encenar ao invés de narrar. Assim, com as quebras
imparcial pelo narrador, diferente da personagem que ganha voz através do ator sobre
estudo feito por Grotowski, que busca através dos exercícios físicos a eliminação dos
teatral com um corpo mais ativo, capaz de responder organicamente aos estímulos
entre as cenas que escolhemos fazer. Assim, resumimos a história da peça para que a
platéia entenda a trajetória das personagens que serão vivenciadas por nós.
pudesse nos dar a vivência sensorial da personagem, pois isso iria ao encontro da nossa
proposta de trabalhar com o conceito de corpo-memória desenvolvido por Jerzy
despertando nestes uma percepção do corpo que os faça compreender como a ação
sensações e percepções das personagens, mas nenhum conto nos satisfazia, até que
conflito entre duas personagens femininas. Até que nos foi oferecida a idéia de
peça teatral A Serpente para linguagem narrativa, mas sem deixar que a essência
Rodrigueana se perca, já que a obra escolhida do autor é tão saborosa, que seria um
aquecimento físico com o objetivo de alongar e preparar o corpo para o trabalho cênico
e nos despertar para o jogo de ação e reação fundamental para o teatro, consistia
favor da cena. Para isso foi necessário investigar as ações das personagens da peça e nos
funciona na cena, no palco. Ações conscientes, não mecânicas, que vêm de impulsos
forma exata com que esse start na troca, ou melhor, na transição de personagem-
presente na forma como a dramaturgia foi feita. E essa escolha serviu também como
estímulo para a pesquisa espacial da cena, nos fazendo investigar soluções corporais e
denominá-lo como um divisor de águas dentro de nossa tradição teatral. Ele conseguiu
isso a partir do sucesso da peça Vestido de Noiva encenada pela primeira vez em 1943
pelo grupo teatral Os Comediantes, quase duas décadas após ser escrita. Nelson, que
foi considerado, por muito tempo, um imoral, reacionário e pornográfico, mas após a
glória teatral alcançada através de sua obra, muitos poetas, jornalista e intelectuais da
carioca, que esteve presente em sua vida de jornalista e de homem comum. Suas peças
denunciavam a hipocrisia e a falsidade que estavam por trás das belezas dessa classe
média.
A Serpente semi-pronta na sua mente, só era passar para o papel. Mas optou por fazer
Vestido de Noiva que foi essencial e um marco na sua carreira teatral. Juntamente com
suficientes para sustentar uma peça inteira, de certo que sim, como nas peças
anteriores, Nelson Rodrigues alça em poucos diálogos, vivos e intensos, uma cena de
extraordinária clareza.
plano. “Um autor sempre tem mais de uma peça na cabeça. Fica adiando esta ou
aquela e a ordem cronológica acaba não sendo tão cronológica assim.” (Magaldi, 2004,
p.173)
quem queira entender a época e a vida de seu melhor personagem: ele próprio.
policiais e mais tarde na sua ficção e no teatro. E o grande sofrimento pessoal que seria
obrigado a suportar a vida toda - miséria, doenças, tragédias familiares -, impregnou sua
obra de uma atmosfera pesada, mórbida, maldita, mas onde se detecta sempre um humor
fino e amargo.
"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra
coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura
é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um
anjo pornográfico." (Castro, 1992, p.2).
1.1 – A SERPENTE
falecer. É o texto mais curto do dramaturgo, com apenas um ato de duração, mas
Com ritmo rápido e texto sucinto, Nelson Rodrigues conseguiu escrever uma peça
inteira sobre um tema familiar e pouco ambicioso: a paixão de duas irmãs pelo mesmo
homem.
Enquanto Guida vive uma intensa lua-de-mel, Lígia é praticamente virgem. Querendo
morrer de desgosto, a irmã infeliz expulsa o marido de casa e comunica a Guida que
está pensando seriamente em morrer. Guida faz a proposta: Lígia deve passar uma
noite com Paulo, marido de Guida, para nunca mais pensar em morrer. A partir daí a
Depois da noite que passou com Lígia, Paulo não consegue ser para Guida o que era
antes. Não a procura mais como mulher, se afasta dela. “Esta aí o germe do desfecho
elementos psicanalíticos, além de recorrer à crença de que “um sangue fataliza-se por
outras tantas possibilidades, tornando impossível fazer dessa peça um teatro pobre, no
lembrança de um romance-policial.
exacerbada síntese do diálogo, não dando tempo para que as emoções se encorpem e
atinjam o espectador, que sente ter faltado preparo para a conclusão do drama.
duração, sintoma do fôlego menor, não permitem ver A Serpente como uma obra
ambiciosa”. Mas em contrapartida, Nelson nunca se mostrou tão ousado ao falar sobre
intimidade vaza pelas paredes. Nelson faz da personagem Guida, uma mulher que
acredita no “poder vital do sexo”(Magaldi, 2004, p.178, grifo do autor), pois encoraja a
irmã a obedecê-la, pois assim “nunca mais terá vontade de morrer”2. Nelson fala
através de Guida, uma coisa que vai de encontro aos outros dramas que escreveu, onde
1 Teórico, crítico teatral, professor e influente pensador ligado a momentos decisivos da história do teatro
brasileiro. Escreve com precisão em Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues, com uma linguagem nítida e
um raciocínio claro. Analisa as peças, como realidade teatral, sem perder de vista as suas repercussões na
sociedade brasileira, ainda cheia de convenções.
2
Fala retirada da peça A Serpente de Nelson Rodrigues, dita por Guida a sua irmã Lígia, no instante em
que ela ameaça se matar.
de amor e sexo e a perfeição do sexo dentro do amor, expõe numa fala de Guida: “O
A forma como os fatos vão se dando acontece de maneira tão vertiginosa que o
autor sente a necessidade de incluir um recurso inédito no seu teatro. A fala do ator é
quando o homem encara o abismo que define a sua frágil natureza.”(Magaldi, 2004,
p.180)
3
Resposta de Guida à Ligia quando esta a questiona sobre nunca ter havido nenhum tipo de afeto com
cunhado, e pergunta a Guida se a “noite prometida” aconteceria mesmo assim, nessas condições.
CAPÍTULO II – ADAPTAÇÃO
narrativo, já que o problema não é só criar o texto, a dificuldade está em trazer à tona a
essência, o universo Rodrigueano. Recorremos aos contos de A vida como ela é... com
aventura, que foi construir uma nova dramaturgia, a partir de um texto do autor.
suicídio de Ligia, oferece a ela uma noite com seu marido e a segunda, a cena em que
Guida acusa a irmã de depois daquela "noite prometida" ainda estar se encontrando às
escondidas com seu marido. Depois transformamos o resto do texto em narrativa para
Nosso trabalho faz com que a voz do autor apareça e desapareça, veiculada nas
2.1 – O MÉTODO
escolhemos fazer algumas cenas da peça que tratam da relação de amor e ódio
estudar apenas essas duas cenas, então optamos passar por toda a peça de uma maneira
objetiva e que nos agradasse. Lembrando das aulas do professor Carlos Eduardo
Garcia no módulo de narrativa, despertamos o interesse em utilizar o método narrativo
teatral de Luiz Arthur Nunes4 abriu nossos olhos para questões específicas da narrativa
porque além dos estudos sobre Nelson Rodrigues, Nunes desenvolve uma pesquisa
como é chamado, o ator-narrador. O texto traz consigo o fascínio por romper “o eixo
A narrativa tem que ser falada como se a cena estivesse acontecendo ali, no
palco, naquele momento. O narrador precisa gerar a imagem pra ele e principalmente
estado da personagem, ele se deixa poluir um pouco por esse estado em que a
deixar levar por um movimento da personagem, por exemplo, narra num tom diferente,
trazendo de volta com isso a figura do narrador. Ele chega a manifestar um sentimento
4 Diretor e professor, com carreira acadêmica contínua, hoje diretor do Núcleo Carioca de Teatro, onde
pesquisa o teatro épico e é pioneiro em duas iniciativas: a descoberta da teatralidade nas convenções do
melodrama e nas crônicas de Nelson Rodrigues.
pela personagem, mas não chega a ser ela. É bom para a narração jogar entre esses dois
mas sim dar-lhe a habilidade no “trânsito rápido e suave entre os dois modos de
tendo como base a dramaturgia que construímos. Esse estudo se deu através da
físicas focam principalmente na eliminação dos bloqueios corporais adquiridos por nós
ao longo da vida.
CAPÍTULO III – O CORPO
Nosso projeto quis promover um estudo que permita ao ator evitar o excesso de
redimensionar o papel do corpo, tornando-o maior, mais vivo, mais importante. Ele é o
desconstruir seu corpo habituado e faça nascer de si um novo corpo preparado para
despertar sensorial. Estamos desenvolvendo um trabalho psico-físico, que faz com que
nosso corpo fique à nossa disposição para executarmos a cena. Através do conceito de
“corpo-canal”, um corpo inteligente, que permita que a energia circule por ele e nos
faça mover.
apropriar, entendemos que o foco é a memória física dos atores. Ao longo da nossa
melhor dizendo, impregnada no nosso corpo, pois ele retém tudo que já foi vivenciado
por nós. O exemplo mais simples e sutil disso são as rugas, elas são um sinal de
em sua totalidade.
"É necessário dar-se conta de que o nosso corpo é nossa vida. No nosso corpo,
inteiro, são inscritas todas as experiências. São inscritas sobre a pele e sob a
pele, desde a infância até a idade presente e talvez também desde antes da
infância, mas talvez também antes do nascimento de nossa geração. O corpo-
vida é algo tangível (...) e a volta ao corpo - vida exigirá o desarmamento, a
nudez extrema, total, quase inverossímil, impossível na sua inteireza."
(Grotowski, 2007, p.205)
A descoberta do ator se dará não para o espectador, mas diante dele. Essa
renunciar a todas as suas máscaras. Para Grotowski, o teatro é uma arte carnal. Por
isso é preciso que o corpo quebre suas resistências. Para ele, o essencial é que tudo
venha do corpo e através dele: "antes de reagir com a voz, deve - se reagir com o
importância das ações físicas. E dizia: "Não me falem de sentimentos, não podemos
tradução nossa)
São as ações físicas que guiam o ator no processo de elaboração de seu papel e
Stanislavski, é o ator quem comanda as ações. E uma das primeiras condições é que o
ator pense no que vai fazer e não no que vai sentir: "o ator sobe no palco não para
sentir ou experimentar emoções e sim para atuar (...) Não espere emoções, atue
imediatamente."7
5
Disponível em http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/ jerzygrotowski02.html
6 Texto original: “Non mi parlate di sentimenti, non possiamo fissare i sentimenti. Possiamo fissare e
ricordare solo le azioni fisiche”.
7
Disponível em http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/teacontemp04.html
O ator para Grotowski é um homem que trabalha em público com o seu corpo,
oferecendo-o publicamente; por isso, se esse corpo se limita a mostrar o que é, ou seja,
limita-se a demonstrar algo que pode ser feito por qualquer pessoa, não constitui um
instrumento obediente capaz de criar um ato espiritual. É partir daí que ele aponta a
trabalho é preciso que os atores se lancem em algo extremo, num tipo de transformação
que pede uma resposta total de cada um. Esse algo vai além do significado de "teatro" e
3.1 – GROTOWSKI
para que a partir dessa nova percepção o ator possa desenvolver seu trabalho.
melhor tradução de "teatro pobre" seria teatro santo ou teatro ritual. Nele Grotowski
leva adiante as últimas questões a respeito das ações físicas elaboradas por Constantin
focamos apenas no conceito de “corpo-memória”, que nos foi muito bem explanado
por Tatiana Motta Lima8. Segundo Lima, o corpo tem uma estrutura sem a
manipulação do mental. O mental não consegue aceitar a dinâmica da vida, já que ele é
organicidade. Como se o mental não desse conta de nomear alguma sensação, como se
ela fosse o “entre” sentir e nomear o que está sentindo. Esse exercício libera o corpo-
ainda mais simples, apenas despertando em si a percepção do eu. Ela também nos
secundariamente, na palavra. Palavra esta que nasce do corpo e que, portanto, não
poderá ser usada corretamente sem uma preparação física adequada. "Será um clichê
uma forma pessoal de treinamento do ator: "um meio para localizar e remover as
8
Atriz, doutora em artes cênicas, professora da Uni-Rio. Pós-graduada na UNIRIO com a tese: Les Mots
Pratiques: relação entre teoria e prática no percurso artístico de Jerzy Grotowski entre os anos 1959 e
1974.
9
Disponível em http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/jerzygrotowski04.html
10
Id.
manifestar seus impulsos vivos."11 Os exercícios passam de uma concepção positiva da
técnica do ator para uma concepção negativa: "...é um caminho negativo, não um
em sua maioria, eram uma cabeça (ou uma voz) sem corpo, os atores do Teatro
essa separação secular sobre a qual se edificou a civilização ocidental. A partir dessas
reflexões, Grotowski busca uma técnica que recomponha o ator - o homem na sua
totalidade: mente, corpo, gesto, palavra, espírito, matéria, interno, externo. Com isso
ele fez algumas observações nos exercícios: eles deveriam ser individuais e motivados
por associações, imagens precisas - reais ou fantásticas - ou seja, que tivessem conteúdo
e quanto à reação física, deveria iniciar-se sempre dentro do corpo. O gesto visível só
deve ser a conclusão desse processo. É isso o que Grotowski nomeia de corpo-memória,
o corpo-vida, imagens que projetam seu reflexo para mais além do teatro e da
representação. Assim acontece quando “o homem não quer esconder mais nada: nem
sobre a pele, nem a pele, nem embaixo da pele.” (Grotowski, 2007, p.203)
qualquer um que presencie essa transformação pode senti-la. Grotowski queria provar
11 Disponível em http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/jerzygrotowski04.html
isso cientificamente, pois estudava como isso se dava, ou se por assim dizer, como esse
fenômeno ocorria.
A energia que buscamos para esse corpo apto a cena possui uma energia fina.
fina e para isso é necessário “subir para transceder”, segundo Lima12. Então
trabalhamos entre os dois extremos: em um, o estudo permanente das ações físicas, dos
“Quando falo do ritual, não me refiro a uma cerimônia nem a uma festa; e
ainda menos a uma improvisação com participação de gente de fora. Não falo
de uma síntese de diversas formas rituais provenientes de lugares diferentes.
Quando me refiro ao ritual, falo de sua objetividade; quer dizer que os
elementos da ação são os instrumentos de trabalho sobre o corpo, o coração e
sobre a cabeça dos atuantes.(...) trabalhamos sobre o canto, sobre os impulsos,
sobre as formas do movimento, aparecem também motivos textuais. E tudo
sendo reduzido ao estritamente necessário, até criar uma estrutura tão precisa e
finita como no espetáculo: ação.” (Grotowski, 2007, p.232)
sagrado. Queria um contato, não criar uma religião. Ele queria um meio do teatro
transcender, sair daquela normalidade e buscou isso através do corpo. Ele aprendeu
12
Informações colhidas em palestras assistidas na Universidade da Cidade e na PUC.
13
Eugenio Barba, famoso teatrólogo, foi um de seus assistentes e responsável pela divulgação e
publicação de seus trabalhos. Ele fala sobre essa questão energética no livro “Terra de cinza de
amantes” e toda a trajetória desse trabalho.
"Em princípio era um teatro. Depois era um laboratório. Agora é um lugar em
que tenho a esperança de ser fiel a mim mesmo. É um lugar em que espero que
cada um dos meus companheiros possa ser fiel a si mesmo. É um lugar em que
o ato, o testemunho dado por um ser humano serão concreto e corpóreos. Onde
não se pesquisa alguma ginástica artística, alguma surpresa acrobática, nem o
training. Onde ninguém quer dominar o gesto para exprimir algo. Onde se
quer ser descoberto, desvelado, nu; sincero com o corpo e com o sangue, com
a inteira natureza do homem, com tudo aquilo que podem chamar como
quiserem: intelecto, alma, psique, memória e coisas semelhantes. Mas sempre
tangivelmente, por isso digo: de maneira corpórea, porque tangível. É o
encontro, ir ao encontro do outro, ser desarmado, não ter medo um do outro,
em nada."(Grotowski, 2007, p.210).
descobriram que a respiração abdominal, feita pelo diafragma, dava mais plenitude à
voz. Claro que existem pontos de vistas diferentes a respeito disso, mas Grotowski
optou por praticar esse tipo de respiração no início de seus trabalhos no Teatro
Laboratório.
muda quando o ator está em diferentes posições ou durante ações ou reações distintas.
E constatou que todo jovem ator é obrigado a usar um tipo de respiração que não é seu
Então segundo Grotowski (2007, p.139): “Se não funciona, intervenham; se funciona,
não intervenham” E seu objetivo sempre foi descobrir em cada ator, sua respiração
normal, ele o fazia da seguinte maneira: Colocava o ator em posições que requeriam
sua atenção a tal ponto que ele não podia, de maneira nenhuma, interferir no seu
processo respiratório.
“Em suma, não há receitas. Vocês devem encontrar as causas do obstáculo, do
incômodo e, por fim, criar uma situação em que as causas que impedem a
respiração normal possam ser destruídas. O processo se liberará.(...) procurem a
maneira de liberar o processo orgânico por meio da ação, porque nesse caso,
também a respiração se liberará – quase sempre por si só – e assim o ator não
terá interferido nem controlado ou bloqueado a ação.” (Grotowski, 2007,
pag.141)
ator. E com a voz o problema é o mesmo, muitos atores têm dificuldades porque
exatamente essa força feita de forma errada com a voz que tornam os antigos
“A sua energia física existe somente em sua cabeça e em seu instrumento vocal.
Por outro lado, quer manter uma calma, uma compostura, controla-se, bloqueia
os impulsos do corpo. É assim que, em vez de usar o corpo inteiro, ele (ainda
que inconscientemente) submete à tensão o seu instrumento vocal. E fala dessa
forma por um longo tempo, várias horas por dia; no final terá danificado o seu
instrumento vocal.” (Grotowski, 2007, pag.144)
Foi em Xangai com o Dr. Ling, professor tanto na Escola de Medicina quanto
E aprendeu a criar as condições ideais para ter uma voz aberta, a verdadeira voz do
ator, uma voz livre de vícios, de auto-criticas e vivencias. Entendeu que a posição
proposta pelo Dr. Ling auxiliava na exatidão da fala, a parte inferior da coluna
14
Grotowski em conferência para os estagiários estrangeiros do Teatro Laboratório de Wroclaw (maio de
1969)
vertebral está envolvida, sustentando o corpo e este regula a respiração, que é quase
sempre abdominal. Mas essa voz, ainda que aberta e forte, é ao mesmo tempo
faça mais mal do que bem, conclui ele então, que a escola do Dr. Ling era um tanto
limitada.
Todo ator pode fazer isso, mas sabendo que o ponto de partida é a própria voz com sua
ainda mais lentamente, e para isso se dá, a laringe deve estar fechada pela metade.
“Não há dúvida de que a expiração conduza a voz. Não há duvida que seja uma
ação material, não metafórica ou sutil.(...) Mas para conduzir a voz, a expiração
deve ser orgânica e aberta. A laringe deve estar aberta e isso não se pode obter
com a manipulação técnica do instrumento vocal.(...) não economizem ar.”
(Grotowski, 2007, pag.151)
Grotowski estudou como utilizar as diversas partes do corpo que podem ser
vibradores: tórax, coluna, cabeça... Falava como se a boca estivesse nesses locais e, ali
iniciava-se uma vibração física. Mais uma vez percebeu que a voz do ator era mais
tempo era uma voz dura e mecânica, não fria, mas automática, sem vida. Quando os
atores começaram a agir com a “totalidade do seu ser” era completamente diferente,
bloqueavam o processo orgânico. Foi nesse momento que Grotowski entendeu que
tinha caído no mesmo erro de antes, só que por outro caminho, estavam novamente
nesse momento, todo o corpo e por esse motivo a voz era muito mais forte, porém
artificial.
A laringe pode servir também como vibrador, desde de que isso aconteça
organicamente, então esse vibrador foi ativado. Começaram a fazer vários tipos de
animais selvagens e perceberam que podiam usá-lo sem dificuldades e que esse
selvagens e os fizesse em forma de luta ou de ação “em direção a”, ou seja, deveriam
liberar os impulsos em direção ao exterior. A partir daí a pesquisa tomou uma outra
fala-se em direção ao teto, o vibrador do crânio se libertará sozinho. “Mas não deveria
ser uma ação subjetiva, o eco deveria ser objetivo,(...) a nossa atenção não está
p.156)
É possível praticar com o ator, do exterior, diferentes manipulações com a sua
garganta, o seu diafragma, pontos da coluna vertebral, e isso pode provocar reações no
associações que para nós são pessoais e freqüentemente até mesmo intimas. Esse tipo
de jogo libera aqueles impulsos que não são frios, mas que são procurados no campo
da nossa memória, do nosso “corpo-memória”. É isso que criará a voz. Então só resta
Grotowski insiste em dizer que não se deve fazer exercícios vocais, mas sim,
usar a voz em exercícios que envolvam todo o ser e com isso a voz irá se liberar
sozinha. E propõe: “talvez devam trabalhar falando, cantando, mas não devem
trabalhar a voz, (...) devem trabalhar com todo o corpo.” (Grotowski, 2007, p.158).
da voz, isso é suficiente. Isso pode ser feito da seguinte forma: jogos que envolvam a
nossa relação com os partners, ou seja, parceiros de cena. Nesses jogos o objetivo é
Trabalhar com os vibradores tem basicamente uma única finalidade: nos fazer
entender que nossa voz não é limitada e que podemos fazer qualquer coisa com ela,
Maciel pediu que escrevêssemos em um papel a nossa inquietação, a medida que cada
um foi falando a sua, nós, Cibelle e Dayanna, percebemos que as nossas inquietações
dificuldades em comum. A partir daí o contato foi feito e a afinidade foi imediata.
em como manter ou controlar a energia física em cena, e que por conseqüência nos
levava ao mesmo resultado – insatisfatório, claro – que era perda de tonos muscular na
cena. E isso já havia sido apontado às duas por outros professores ao longo do curso.
executarmos bem a cena, isso nos bloqueava. Ao longo das nossas conversas e nossas
do que os outros. E chegamos à conclusão que nosso maior defeito ou nossa maior
virtude era o excesso de energia corporal que não sabíamos como administrar. E esse
Em contrapartida, nossa dificuldade nesse momento era achar um texto que nos
conflito.
Juntamente a isso, decidimos buscar algum método que nos desse apoio ao longo
da pesquisa, e em meio a muitas fundamentações optamos pelo método das ações físicas
precisamente o conceito que ele nomeou de “corpo-memória”, que nos atraiu justamente
por desenvolver uma pesquisa específica para cada ator, dando a ele a liberdade de
perceber como cada exercício reflete no próprio corpo e como adaptá-lo para sua
satisfação pessoal. Além de visar à eliminação dos bloqueios físicos dos atores.
decidido qual conto faríamos, pois mesmo achando que esse era o melhor caminho,
nenhum deles nos atraía. Essa procura seguiu até o início do projeto final de monografia
e nos vimos encurraladas, era um texto ou era um texto! Mas salvas mais uma vez pela
utilizar uma cena do texto A Serpente, de Nelson Rodrigues, já que este traz consigo um
conflito entre duas irmãs, e pra fazer jus às obras de Nelson, a força que essas duas
energias, não?! Após lermos o texto diversas vezes, nossa dificuldade era escolher que
cena nós faríamos. Decidimos fazer duas cenas das irmãs Ligia e Guida. E claro, como
nos sobra energia, duas cenas não nos satisfazia, aliás, melhor do que isso, o desejo de
inteira. Será que é permitido? Será que dá tempo? Será que temos tempo? Será que
conseguimos? Enfim, concluímos que não seria possível adaptar a peça pra vinte
minutos, isso seria mais um problema e no momento não era isso que a gente precisava.
e estávamos decididas a levar isso à frente. Eis então que surgiu a idéia de utilizar a
narrativa, ou seja, uma forma de passar por toda peça de maneira objetiva. Fizemos um
esboço de como seria a narração: decidimos que partes seriam narradas e quais
usaríamos para compor nossa cena decidimos partir para o trabalho prático. Em um
pretendíamos fazer. Após esse alongamento, colocamos uma música de batidas fortes,
que trazia uma referência à umbanda. Nosso objetivo era apenas ter uma música que nos
proporcionasse uma energia forte e que possuísse um ritmo intenso, pois seria a partir
desse aquecimento e dessa formação de energia, que pretendíamos seguir com a cena.
preparação para o que estava por vir. Depois disto feito, colocamos a música e de olhos
fechados deixamos nosso corpo livre para ser levado pelo som. Claro que tivemos
familiar que de certa maneira nos protegeria e não nos proporcionaria nenhuma
partir para o contato visual com o outro. Os olhos se abriram, mas nesse momento o
foco ainda era o próprio corpo, ou melhor, a preparação e/ou aquecimento desse corpo.
O corpo estava aquecido e o contato com o outro foi feito, era perceptível que a
primeira memória corporal que veio à tona, devido à música ou aos antecedentes das
personagens a serem trabalhadas - já que ainda não havíamos constatado o motivo – foi
que o corpo respondeu como se houvesse um embate, uma disputa entre nós duas. A
sensação era que estávamos numa selva, apenas observando a rival e que qualquer
movimento poderia ser fatal. Devido a isso, nos colocamos uma de frente para outra,
nunca de costas, com o corpo em plano baixo, como se fossemos duas leoas. O olhar era
fixo, em momento algum ele se desvirtuava do outro. Podíamos perceber que apesar de
não estarmos nos movimentando como antes, existia uma energia que circulava no
nosso corpo, era como se estivéssemos guardando e gerando mais energia para “o
Utilizamos o segundo grande diálogo entre as irmãs Guida e Ligia para nossa
romance com seu marido. Parecia que as palavras tinham mais potência do que antes
quando fizemos uma leitura básica com as intenções, mas sem nenhum aquecimento. A
impressão era de que, após o exercício proposto, fizéramos com que essas palavras
trouxessem consigo um vigor, uma energia que não vinha do peito e sim do ventre.
Propomo-nos a fazer a cena três vezes direto, até sentir que estava ficando um
pouco mais orgânico, nos levantamos posicionando o corpo no plano alto, mas
Despertou-se em nós a vontade de tocar a outra, mas nos seguramos para deixar
que a palavra tomasse a força que entendíamos ser necessária nessa cena. Percebemos
que energia estava se esgotando, não fizemos nenhum movimento brusco, mas sem
perder o olhar começamos a andar em círculos. A partir desse momento nos permitimos
uma aproximação, uma ação bem arriscada devido a toda energia gerada anteriormente,
duas cadeiras nesse espaço, uma de costas para a outra, e sentadas começamos a falar o
tocarmos, e essa experiência gerou uma agonia interessante para a cena, que foi o desejo
de fazer algo ou falar algo que não era permitido, já que tínhamos como regra não nos
vermos, a sensação era que o esforço para que as palavras atingissem o outro era muito
uma maneira ou de outra, estão fazendo isso todo o tempo nas cenas, elas estão sempre
tínhamos, nos ensaios anteriores, nos aprofundado nos exercícios de pesquisa das
personagens, neste ensaio decidimos somente aquecer e ir para a cena com o texto.
necessário para uma boa execução da cena, pois por muitas vezes a forma como nos
preparávamos influía de maneira absurda nela, o que era bom já que nosso trabalho de
ensaios era escassa, e em outros, excessiva, por vezes nosso corpo permaneceu
bloqueado fazendo com que a energia não circulasse nele. Em conseqüência desses
aquecimentos, nosso modo de andar, de falar, principalmente o tom da fala se
todo o exercício.
imaginamos que esta funcionaria como uma quebra da ação dramática e ao mesmo
corpo, já que o narrador se dirige diretamente ao público e procura manter uma postura
neutra, um corpo mais formal, sem se deixar envolver pela cena que acontece. Seu
percebemos cada vez mais que o distanciamento criado por ele estava dificultando a
assimilação do nosso trabalho. Mesmo resgatando para a cena, através do nosso corpo-
memória, a relação criada por nós duas na improvisação que antes era feita sem texto,
ainda assim, sair da neutralidade da narração e partir para a intenção requerida na cena
alguma maneira. Era como se tivéssemos a consciência de que aquilo não estava
história não nos ajudaria. Decidimos utilizar a figura do narrador para contar a história
porém, as descrições das cenas seriam feitas pelas próprias personagens, que contariam
realidade delas. E nós que antes éramos narradoras neutras, passamos a ser
preocupada em criar uma postura neutra que não percebi que era a atriz quem estava
ficando neutra. Eu acabei ficando monocórdia, não estava me deixando envolver pelo
forma de dizer o texto permaneceu como se ele ainda fosse dito em 3ª pessoa. Era
como se ela tivesse passado a falar de si própria sem se deixar contaminar pelo que
dizia.
decorarmos as falas e partirmos para a parte prática do trabalho, muitas vezes dizíamos
o texto e percebíamos que ele não estava sendo dito de maneira espontânea. Era como
Isso nos fez parar para refletir sobre como poderíamos encontrar a melhor
peça procurando falar de maneira diferente a mesma coisa. E fomos, aos poucos, nos
apropriando do texto de tal maneira que notamos que aquela fala “bem-dita” ressoava
em nosso corpo, transformava-o. Era como se, a partir daquele momento, ela passasse
estudo do texto. Era dele que tudo se extraía. Era a nossa fonte de descobertas, nossa
caixinha de surpresas.
muitas coisas importantes para a realização do exercício, tais como: a relação de tensão
cena. Enfim, como em toda pesquisa, houve perdas necessárias e ganhos maravilhosos
surpreendente foi a trajetória do nosso trabalho. Porque, até então, nenhuma havia
aproximou foram nossas dificuldades em cena. E foi nossa cumplicidade que nos fez
isso não tornou nosso trabalho menos instigante, pelo contrário, tornava-o ainda mais
desafiador. Cada escolha, cada sugestão, cada palavra e cada ação eram das duas, cada
dificuldade, cada realização e cada entendimento eram das duas. Se optamos por fazer
em dupla era assim que deveria ser. Crescendo juntas, aprendendo juntas e errando,
errando muito, porém juntas. Concluímos que o maior e melhor ganho de desenvolver
um projeto como esse, em dupla, é quando é possível desnudar-se para o outro sem
nunca deixar faltar alegria no nosso trabalho, por mais caótico e confuso que estivesse
tudo, por mais dolorosa que fossem as mudanças, por mais crítico que fosse o fim (e
confessamos que foi bem crítico!), sabemos que só não foi pior porque aprendemos
nessa pesquisa a ceder. Fomos dupla, parceiras e amigas. Fomos atrizes, narradoras e
Concluímos que é possível preparar o corpo pra cena resgatando nele sua
memória e constatamos o que o faz mover e como gerar essa energia que o move, e que
isso se dá devido à consciência das ações físicas e dos antecedentes das personagens.
Entendemos também que a fala pode alterar esse corpo, que através dela o corpo produz
energia para agir. Nelson nos facilita no que diz respeito ao texto, pois nas obras dele a
Grotowski, que não basta só tornar o corpo presente e vivo, preparado pra cena ou
consciente de todas as ações da personagem. É necessário que cada ator perceba e possa
deixando-o pronto para o jogo teatral e permitindo uma resposta a esse jogo de forma
orgânica.
Concordamos com Stanislavski quando ele dizia que a arte está em constante
Nelson Rodrigues adaptado para o modo narrativo. E foi por isso também que,
insistimos em procurar alguma solução para o nosso desejo de fazer a peça inteira.
• NUNES, Luiz Arthur – “Do livro para o palco: formas de interação entre
épico literário e o teatral”, In:O Percevejo. Revista de teatro, crítica e
estética. Rio de Janeiro.UNIRIO: 2000 (Nº 9)
• RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é... Rio de Janeiro: Agir, 2006.
LIGIA – É o fim. Décio está fechando a mala. Jogo na cara dele que durante um ano e
meio de casamento, ele só me procurou três vezes e, ainda assim, não conseguiu realizar
o ato – o famoso ato! Décio é meu marido, ele irrita-se com tamanha ironia, por ter sua
virilidade ridicularizada pela própria mulher. Torna-se violento. Me bate, me humilha.
Ele quer me ouvir dizer: “Sou uma puta!” Décio me esbofeteia.
GUIDA – Ligia cai de joelhos. Eu entro, fico surpresa com a separação. Lígia chora de
raiva. Chama Décio de canalha o tempo todo. Nunca desconfiei que o casamento deles
estava falido.
LIGIA – Eu, meu marido, minha irmã, Guida e Paulo moramos no mesmo apartamento
e em quartos vizinhos. Eu ouvia os gemidos deles e imaginava que, ao não ouvir os
meus com Décio, Guida pelo menos desconfiasse que algo ia mal. E papai, coitado,
tinha perdão, pois era mesmo uma múmia, com todos os achaques de uma múmia.
GUIDA - Lígia me confessa que Décio nunca foi homem com ela. E me conta sobre a
humilhação e violência que sofreu nos braços de Décio no momento da separação.
LIGIA - Digo que vou me atirar do décimo segundo andar. Sou interrompida por Guida,
que declara a mim sua lealdade.
LIGIA – Mas duvido dessa sinceridade. Guida jamais largaria sua vida pois tem o
marido que é muito mais importante que a morte. Então, eu corro e me sento sobre o
parapeito da janela.
GUIDA (veemente) – Não precisa contar o que faço com o meu marido.
LÍGIA – Sai do meu quarto, anda! Ou fazes questão de me ver atirando daqui?
Queres ver, é isso?
GUIDA – Lígia, faça o que você quiser, mas escuta um minuto. Você quer ser
feliz como eu, quer? Por uma noite? Olhe para mim, Lígia. Quer ser feliz por
uma noite?
LÍGIA – Você não sabe o que diz.
GUIDA – Te dou uma noite, minha noite. E você nunca mais, nunca mais terá
vontade de morrer.
LÍGIA – É impossível que. Fale claro. O que é que você está querendo dizer?
LÍGIA – Olha pra mim. Você me está oferecendo uma noite com Paulo? Sexo,
como você mesma faz com ele? Por uma noite eu seria mulher de Paulo? É
isso?
GUIDA – É isso.
LÍGIA – Mas nunca houve entre nós nada que. Como uma noite, se ele não me
olhou, não me sorriu, não reteve a minha mão? E, de repente, acontece tudo
entre nós? E ele quer, sem amor, quer?
LIGIA – Guida acerta com Paulo, e eu vou ao seu encontro. Ao entrar no quarto de
Paulo, eu hesito. Não tenho mais certeza se aquilo foi uma boa idéia. Ir para a cama com
o cunhado é algo incestuoso; pior que ir para a cama com irmão. Mas Paulo não aceita
que eu desista. Pede um beijo. Eu hesito. Ele me domina. Introduz a língua na minha
orelha. Eu resisto. Grito.
GUIDA – Ligia chama por mim. Mas seu esforço é em vão. Os dois fazem um sexo
selvagem e ela grita durante toda a duração do ato. Enquanto isto, eu, no quarto ao lado,
enlouqueço, reviro-me, esfrego-me, torço-me, toco-me e tenho meu orgasmo sozinha.
LIGIA – Depois da tempestade nada é mais como era antes. Não consigo falar com
Guida; não consigo pensar. Estou espantada, é como se estivesse acabado de nascer.
Tenho vergonha de Guida.
GUIDA – Ela não consegue falar comigo, não quer, mas depois reconhece e elogia a
minha bondade. Acho que me arrependi do que aconteceu. Talvez não esperasse gritos
tão intensos. Sei que existem segredos entre Ligia e Paulo.
LÍGIA (em súbita euforia) – Quer saber, quer? Sou mentirosa sim. O que eu
senti foi tudo – a vida e a morte. Agora posso viver e posso morrer.
GUIDA – Lígia me abraça. Deixa-se escorregar ao longo de meu corpo e beija-me os
pés. Ao encontrar-me com Paulo, imploro a ele que nunca mais falemos no assunto.
Estou confusa. Não digo mais coisa com coisa.
LIGIA – Ela age como se estivesse arrependida, mas depois afirma que tudo foi certo.
Se martiriza. Se acha vulgar. Elogia a bondade do marido mas num acesso de ciúmes,
grita com ele.
GUIDA - Proíbo-o de dizer sequer um bom dia que seja a Ligia. “Ela vai morrer!”.
Desespero-me quando meu marido, calmo, me diz que não.
LIGIA - Não quer que nos encontremos fora do apartamento. Enquanto isso, em outro
quadro vemos Décio, triunfante por ter redescoberto sua virilidade. Ele, que casara-se
virgem e foi menino e adolescente sem nunca ter conhecido sequer o prazer solitário,
nunca soube o que fazer.
GUIDA -Até que viu, um dia, a nova lavadeira: seus peitos, sua barriga, suas nádegas e
suas ventas triunfais. Deu um dinheiro para ela, mandou que ela fosse embora, que
telefonasse para ele e não viesse mais trabalhar. E nesse dia, aconteceu o milagre. Décio
proclamou que mudou, que é outro, disse que deu quatro sem tirar nessa crioula.
LIGIA - E então, eis que um dia ele aparece em meu quarto como se fosse um
assaltante. Tenta pedir desculpas. Quer a reconciliação. Não acredito que ele tenha tido
a coragem. Chamo-o de canalha. Mas ele não desiste. Me conta o milagre que lhe
ocorreu. Tenta me dominar. Grito e chamo por Paulo. Atiro-me nos braços de Paulo.
Queixo-me de que Décio quis violentar-me. Décio é expulso por Paulo da casa.
GUIDA - Estou confusa. Como é que Décio poderia violentar Lígia se ele era
impotente. Preciso falar com Lígia e peço a Paulo que sai do quarto e nos deixe a sós.
LÍGIA – E quem pediu teu marido? Fica com ele. (Feroz) Não é teu?
LÍGIA – Te direi tudo. Tens um marido que te faz feliz, e segundo você própria,
a mais feliz das mulheres. Eu tenho um marido que me destruiu. Não sou mais
nada. E Poe na tua cabeça, criatura, que eu não fiz nada. Só fiz o que você
mandou. Foi você que disse: - “Vai”. Eu ia morrer e seria tão fácil morrer. Mas
você, você me salvou e disse: - “Te dou uma noite do meu marido”. Eu tive esta
noite. Só. E queres me tirar essa noite? Agora é tarde. Tudo já aconteceu.
GUIDA – Acabaste?
GUIDA – Pois ouve ainda. Você não pode pensar, ou olhar, ou tocar no meu
marido. Ou sorrir. A gente não sorri para todo mundo. Você não pode sorrir pra
meu marido. Escuta, Ligia. Você não me conhece. Paulo não me conhece, eu
própria não me conhecia. Eu me conheço agora. Se você quiser mais do que a
noite que já teve, eu mato você. Ou, então, o único homem que amei. (Com ar
de louca) Paulo dormindo e morrendo.
LÍGIA(batendo os pés como uma bruxa) – Chega, sua bruxa! Eu não agüento
mais!
GUIDA – Eu disse a meu marido: - Vocês não vão se encontrar lá fora. Quando
ele sair, você fica. Ficaremos sozinhas. Ouviu?
GUIDA – Eu discuto com Paulo. Reclamo com ele por não me procurar sexualmente.
Ele me abraça, eu me afasto. Com retórica e argumentos cínicos, porém convincentes,
ele finalmente consegue me convencer da sua sinceridade, e eu prometo não vigiá-los
mais.
LIGIA– Guida havia mudado. Passou tratar a mim e a Paulo cordialmente e até insistiu
que saíssemos juntos e nos encontrássemos fora. Eu e Paulo, então, nos encontramos.
LIGIA - Pergunto a Paulo o que ele faria se flagrasse Guida tentando me matar. Mataria
a ela antes?
LIGIA - Sonho com Guida matando a mim e a Paulo; nos atirando do décimo segundo
andar. Receio que Paulo me deixe.
GUIDA – Paulo chega em casa. Estou vestida e deitada na cama. Me sento. Paulo me
beija a testa. Eu protesto, quero beijá-lo na boca, mas depois não aceito o beijo, não
deveria ter que pedir. Encontro-me com Lígia e arranco dela a confissão que os dois
ficaram juntos. Discuto com ela na frente de Paulo.
LIGIA – Paulo e Guida discutem na cama. Ele nega que tenha ficado comigo.
GUIDA - Certa da mentira de Paulo, decido que não dormiremos mais na mesma cama.
Ameaço ir embora.
GUIDA - Pede que eu fique atrás dele e o empurre já que ameacei matá-lo. Paulo pede
que eu me sente com ele.
LIGIA – Ele ajuda Guida a sentar-se. Diz que vai amá-la como nunca amou. Quer vê-la
gritar como eu. Isso irrita Guida. Paulo pergunta se fosse eu quem estivesse sentada ali
se ele deveria empurrar.
GUIDA - Ao ouvir meus gritos, Lígia corre para o quarto. Bate na porta. Ela quer
entrar. Paulo sai da janela e abre a porta. Ela entra. Ligia percebe o que aconteceu e
acusa Paulo. Ligia esta frenética, teme não chorar minha morte. Está desesperada,
caminha de um lado a outro. Paulo tenta segurar Ligia, que se desprende feroz.
LÍGIA – Não me toque! Eu não sou a culpada! Foi você que matou! Assassino!
O Pastor – Madredeus
Composição: Pedro Ayres Magalhães / Rodrigo Leão / Gabriel Gomes / Francisco Ribeiro
Ao largo
ainda arde
a barca
da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
deixa a alma de vigia
Ao largo
ainda arde
a barca
da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
acordar é que eu não queria.
• Texto original – A Serpente:
LÍGIA – Você sabe a olho nu, quando GUIDA – Você foi sempre tudo pra
o homem é másculo? mim. Um dia, eu te disse: - “Vamos
morrer juntas?” e você me respondeu:
GUIDA – E, agora, o que é que você - “Quero morrer contigo”. Saímos para
vai fazer? morrer. De repente eu disse: - “Vamos
esperar ainda”. E eu preferia que todos
LÍGIA – Nada.
morressem. Meu pai, minha mãe,
menos você. E se você morresse, eu
GUIDA – Não é resposta.
também morreria. Mas tive medo,
LÍGIA – Então, me diga: - o que é que quando você se apaixonou e quando eu
vou fazer? (Novo tom) Eu sei o que me apaixonei.
vou fazer. Mas é uma coisa que só eu
Lígia levanta-se. Guida recua.
sei.
GUIDA (arquejante) – Você não pode
GUIDA – Segredo. E eu não posso
ficar sozinha.
saber?
LÍGIA – Já estou sozinha.
LÍGIA – Não pode saber.
GUIDA – E eu? E senti que amavas mais do que eu, e
que eras mais amada do que eu.
LÍGIA – Você tem seu marido. Seu
marido é tudo para você. Eu não sou GUIDA – Mas escuta! Escuta!
tudo para você. Ou sou?
LÍGIA – É esta a verdade. Você saiu
GUIDA – Meu marido é tudo pra mim. da igreja com essa felicidade nojenta.
Você é tudo pra mim.
GUIDA (atônita) – Você está me
LÍGIA – Escuta. odiando?
LÍGIA (Violenta) – Quem fala sou eu. Lígia corre para a janela.
Você se lembra do nosso casamento?
Na mesma igreja, na mesma hora, no GUIDA – Não, Lígia! Volta!
mesmo dia, mesmo padre. Quando te
olhei na igreja, senti que a feliz eras tu. LÍGIA – Não dê um passo que eu me
atiro. (Elevando a voz) Você está
pensando: - “Essa fracassada não se Por uma noite eu seria mulher de
mata”. Você se julga a mulher mais Paulo? É isso?
feliz do mundo e a mim a mais infeliz.
Tão infeliz, que eu tive que me GUIDA – É isso.
deflorar com um lápis. Quantas vezes,
te vi entrando no quarto com teu LÍGIA – Mas nunca houve entre nós
marido. nada que. Como uma noite, se ele não
me olhou, não me sorriu, não reteve a
GUIDA (veemente) – Não precisa minha mão? E, de repente, acontece
contar o que eu faço com o meu tudo entre nós? E ele quer, sem amor,
marido. quer?
LÍGIA – Sai do meu quarto, anda! Ou GUIDA – O homem deseja sem amor,
fazes questão de me ver me atirando a mulher deseja sem amar.
daqui? Queres ver, é isso?
Luz sobre ao quarto de Paulo. Lígia
GUIDA – Lígia, faça o que você entra.
quiser, mas escuta um minuto. Você
quer ser feliz como eu, quer? Por uma LÍGIA – Estou aqui.
noite? Olhe pra mim, Lígia. Quer ser
feliz por uma noite? PAULO – Vem.
LÍGIA – Você não sabe o que diz. LÍGIA – Paulo. Vim só dizer que não
vamos fazer nada. É uma loucura.
GUIDA – Te dou uma noite, minha Você não acha que é uma loucura?
noite. E você nunca mais, nunca mais
terá vontade de morrer. PAULO – Talvez.
Lígia sai da janela. Vem conversar LÍGIA – Por isso mesmo, porque
com Guida. Guida é assim, eu...
LÍGIA – Olha pra mim. Você está me PAULO – Eu estou aqui, você está
oferecendo uma noite com Paulo? aqui. Esquece Guida.
Sexo, como você mesma faz com ele?
LÍGIA – Desculpe.
PAULO – E que mais? LÍGIA – Língua no meu ouvido, não.
Olha que eu grito. Não Paulo, Guida
LÍGIA – Posso ir? está ouvindo!
PAULO – Mas um beijo, você dá? PAULO – Olha. Vou te fazer uma
coisa.
Lígia recua diante dele.
LÍGIA – Aquilo, não deixo! É um
LÍGIA – Não abuse de mim. incesto!
LÍGIA – Você é tão melhor do que eu. Paulo vem à boca de cena.
E Paulo tão melhor que nós duas.
PAULO (gritando) – Eu perguntei à
GUIDA (ironizando) – Melhor do que Guida: - E se você se arrepender, e se
eu? Lígia se arrepender, e se eu (batendo
no peito), e se eu me arrepender?
LÍGIA – Eu disse que era melhor do
que você? Ou você quer ser melhor do GUIDA – Agora, responde: - Você se
que ele? Não, Guida. Ninguém é arrependeu?
melhor do que você. Nenhuma irmã
faria isso por outra irmã. LÍGIA (ressentida) – Sim!
GUIDA – Não jure tão depressa! PAULO – Por que você se atormenta?
PAULO – Mas isso é a maldade mais DÉCIO (cada vez mais sórdido) –
doce da terra. Quando você estava lá em casa, vê lá
se minha mulher podia imaginar que a
GUIDA – Lígia vai morrer. gente ia trepar, hem?
PAULO – Deita aqui. Mas quem vai CRIOULA – Me diz: - a tua tem um
morrer? rabo de quem toma. Como é? Toma?
CRIOULA – Já? Tenho que ir, filho! Quarto de Lígia. Entra Décio como
Agora quando vai ser? um assaltante.
Décio vai por cima da cama para DÉCIO – Vou sair. Mas não se
junto de Lígia. Puxa a mulher. Ficam esqueça, Lígia. Eu voltarei. Eu sou
colados. outro, Lígia.
GUIDA – A mim, você não engana. GUIDA – Paulo, Paulo! O que PE que
Você não disse tudo. há com você?
PAULO – Meu amor, você me disse PAULO – Mas ela não mudou
que era a vida ou a morte de sua irmã. contigo?
LÍGIA – E se Guida estiver por aqui, LÍGIA – O que é que eu sou para
escondida, vendo a gente. E se você? O que é que eu represento?
aparecer de repente? Perdão, meu bem. Você tem coragem, fala, de responder?
É interessante. Beijo tua mão. Tão
PAULO – Te amo.
inocente beijar a mão. Me contigo,
como se fosse tua amante e você nunca
me disse que gosta de mim. Só naquela
noite é que você me chamou de meu
LÍGIA – Só mais uma perguntinha. De Lígia está em pé, colada a Paulo.
quem é que você gosta mais? De mim
ou de Guida? LÍGIA – Não tenho medo.
LÍGIA – Então, não precisa responder LÍGIA – Deixa que todos venham, que
à segunda pergunta. parem, que olhem.
LÍGIA – Não, não quero, não admito. GUIDA – Ao sair, ao voltar, você
Eu quero ser amada. Meu bem, escuta. sempre me beijou na boca.
Você me responde?
PAULO – Meu bem, vem cá.
PAULO – Tenho medo de tuas
perguntas. GUIDA – Não aceito o beijo que tive
de pedir. E olha (começa a chorar).
LÍGIA – Não é nada demais. É o Onde é que vocês se encontraram? Foi
seguinte: - vocês têm se amado muito? no Alto da Boa Vista, ouvindo a
cascatinha? Mas olha. Não é com você
PAULO – Nunca mais. Não consigo que eu quero falar. É com essa que está
desejar Guida. aí fora, deixando passar o tempo, para
entrar.
Novamente, ela beija a mão de Paulo.
PAULO – Vamos jantar fora.
LÍGIA – Quero tanto ser tua outra vez.
Pode fazer tudo. Até aquilo eu te deixo GUIDA (desesperada) – Estou
fazer. esperando a tua mulher, a mulher que
eu deixei de ser.
PAULO – Vem cá. Vamos ali.
PAULO – Não diga que Lígia é minha
LÍGIA – Vamos fazer em pé? Eu até mulher.
gostaria.
GUIDA (frenética) – Tua mulher, sim!
PAULO – Na mata. É bom amar com Eu não sou nada! Sabe o que eu sou?
gente passando. E pode aparecer um Sou tua cunhada!
assaltante. Não tens medo?
PAULO (desatinado) – Pára Guida, LÍGIA (fora de si) – Foi, foi!
pára!
Paulo aparece na porta.
Pausa.
PAULO (para Lígia) – Não confesse
GUIDA – Lígia entrou. nada!
Guida agarra o marido com violência. GUIDA – Eu não mataria você, nunca.
Lígia, sim, Lígia eu mataria.
GUIDA – Diz, agora, como se eu
estivesse morrendo. Você me ama? PAULO – Me dá um beijo.
PAULO – Te amo. E teu amor por Os dois se beijam com loucura. Guida
mim? se desprende.
PAULO – Vamos!