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CENTRO UNIVERSITÁRIO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

UniverCidade

Curso de Artes Dramáticas

Projeto Artístico

DO CORPO E DA NARRATIVA: UM EXERCÍCIO COM


A SERPENTE DE NELSON RODRIGUES

Por Cibelle Toledo da Silva e Dayanna de Morais Lima

Trabalho Apresentado como Projeto Experimental para Conclusão do Curso de Artes


Dramáticas do Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro – UniverCidade

Orientadora: Prof. Dra. Maria Assunção


Agradecemos, primeiramente, à nossa orientadora Maria Assunção por
nos ensinar a ter responsabilidade, determinação e perseverança com as
nossas obrigações e nos fazer entender que nada importa se não comportar
alegria. À UniverCidade que nos proporcionou ótimos professores e
possibilidades de nos tornar grandes profissionais. Aos nossos amigos que nos
apoiaram nas nossas dificuldades, em especial à Cris que nos ajudou
incansavelmente com suas sábias palavras e à Rô que nos cedeu seu espaço,
seu tempo e sua paciência. E principalmente aos nossos familiares que
participaram das nossas alegrias, nossas angústias, nosso sucesso, nossas
crises de desespero, mas que em nenhum momento deixaram de nos amparar e
nos dar forças para chegarmos até aqui. Nossa gratidão e nosso carinho a
todos vocês.
“Não adianta procurar chaves miraculosas que nos dispensem de nós mesmos”

Jerzy Grotowski
SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO...................................................................................................2

CAPÍTULO I – NELSON RODRIGUES: O ANJO PORNOGRÁFICO...........5

1.1 – A SERPENTE.................................................................................7

CAPÍTULO II- ADAPTAÇÃO.........................................................................10

2.1 – O MÉTODO..................................................................................10

CAPÍTULO III – O CORPO.............................................................................13

3.1 – GROTOWSKI...............................................................................15

MEMORIAL......................................................................................................25

CONCLUSÃO...................................................................................................34

BIBLIOGRAFIA...............................................................................................35

ANEXOS...........................................................................................................37
INTRODUÇÃO:

Este trabalho tem como objetivo compreender como administrar a energia do

corpo para que ele possa responder prontamente ao jogo proposto pelo exercício aqui

desenvolvido. Utilizamos um texto dramático e o transformamos em narrativa, exceto

algumas cenas que optamos por encenar ao invés de narrar. Assim, com as quebras

entre a narrativa e a cena, teremos a possibilidade de transitar entre o corpo-narrador e

corpo-personagem, e através deste, promover uma pesquisa corporal mais efetiva.

Verificamos que é necessário que a narração seja feita de forma neutra e

imparcial pelo narrador, diferente da personagem que ganha voz através do ator sobre

suas impressões e sensações na cena. Conseqüentemente, percebemos que as energias

físicas do narrador e da personagem eram totalmente distintas. Então, baseando-nos no

estudo feito por Grotowski, que busca através dos exercícios físicos a eliminação dos

bloqueios corporais que impedem o ator de responder prontamente ao jogo teatral,

desenvolvemos a consciência corporal e a fluidez necessária para a execução do

exercício que construímos para esse trabalho.

Esta pesquisa surgiu da dificuldade que encontrávamos em responder à cena

teatral com um corpo mais ativo, capaz de responder organicamente aos estímulos

baseando-se numa linha de ações contínuas presentes na narrativa de um personagem.

Optamos por utilizar a narrativa como suporte para complementar o espaço

entre as cenas que escolhemos fazer. Assim, resumimos a história da peça para que a

platéia entenda a trajetória das personagens que serão vivenciadas por nós.

No início do trabalho procurávamos como objeto de estudo, um conto que

pudesse nos dar a vivência sensorial da personagem, pois isso iria ao encontro da nossa
proposta de trabalhar com o conceito de corpo-memória desenvolvido por Jerzy

Grotowski. Este conceito visa o desenvolvimento da memória física dos atores,

despertando nestes uma percepção do corpo que os faça compreender como a ação

física se dá de forma coerente e orgânica no mesmo, consequentemente tornando a

resposta na cena mais adequada ao exercício teatral.

Escolhemos inicialmente trabalhar com o conto, pois ele já traz consigo as

sensações e percepções das personagens, mas nenhum conto nos satisfazia, até que

decidimos utilizar um texto dramático que, como condição de escolha, possuísse um

conflito entre duas personagens femininas. Até que nos foi oferecida a idéia de

trabalhar o texto A Serpente, de Nelson Rodrigues. A partir daí pudemos trabalhar os

estímulos e respostas propostos pela cena.

Estamos cientes do desafio que nos propusemos: transpor algumas partes da

peça teatral A Serpente para linguagem narrativa, mas sem deixar que a essência

Rodrigueana se perca, já que a obra escolhida do autor é tão saborosa, que seria um

desperdício suprimir essa voz autoral.

Fizemos a pesquisa da cena através de trabalho corporal composto por um

aquecimento físico com o objetivo de alongar e preparar o corpo para o trabalho cênico

e nos despertar para o jogo de ação e reação fundamental para o teatro, consistia

também no desenvolvimento do corpo-memória e no entendimento de como usá-lo a

favor da cena. Para isso foi necessário investigar as ações das personagens da peça e nos

aprofundarmos tanto no perfil psicológico quanto na realidade vivenciadas por elas.

Como já dizia Stanislavski, não é um movimento qualquer. É aquele movimento que

funciona na cena, no palco. Ações conscientes, não mecânicas, que vêm de impulsos

interiores, que tenham conteúdo. Ações justificadas e funcionais.


Quanto à tarefa de narrar o restante da peça, foi preciso que entendêssemos a

forma exata com que esse start na troca, ou melhor, na transição de personagem-

narradora para personagem se desse de maneira precisa.

Nosso trabalho se dá num palco limpo. Utilizamos apenas duas cadeiras.

Optamos por um visual mais neutro devido à grande quantidade de informação

presente na forma como a dramaturgia foi feita. E essa escolha serviu também como

estímulo para a pesquisa espacial da cena, nos fazendo investigar soluções corporais e

a re-significação dos objetos.


CAPÍTULO I – NELSON RODRIGUES: O ANJO PORNOGRÁFICO

Nelson Rodrigues revolucionou de tal forma os palcos brasileiros que se pode

denominá-lo como um divisor de águas dentro de nossa tradição teatral. Ele conseguiu

isso a partir do sucesso da peça Vestido de Noiva encenada pela primeira vez em 1943

pelo grupo teatral Os Comediantes, quase duas décadas após ser escrita. Nelson, que

foi considerado, por muito tempo, um imoral, reacionário e pornográfico, mas após a

glória teatral alcançada através de sua obra, muitos poetas, jornalista e intelectuais da

época se sentiam no dever de expressar algum testemunho sobre o trabalho dele.

Seu interesse maior estava em retratar o cotidiano da classe média suburbana

carioca, que esteve presente em sua vida de jornalista e de homem comum. Suas peças

denunciavam a hipocrisia e a falsidade que estavam por trás das belezas dessa classe

média.

Segundo Sábato Magaldi, quando Nelson escreveu Vestido de Noiva já tinha

A Serpente semi-pronta na sua mente, só era passar para o papel. Mas optou por fazer

Vestido de Noiva que foi essencial e um marco na sua carreira teatral. Juntamente com

Ziembinski e Thomaz Santa Rosa, revolucionaram o teatro brasileiro. Durante o

processo de realização do texto se questionou se o tema da história teria forças

suficientes para sustentar uma peça inteira, de certo que sim, como nas peças

anteriores, Nelson Rodrigues alça em poucos diálogos, vivos e intensos, uma cena de

extraordinária clareza.

“[...]enquanto os dramaturgos da geração anterior adotavam um diálogo


artificial, com um tratamento diverso da linguagem corrente, ele restringiu a
expressão cênica a uma absoluta economia de meios, conseguindo de cada
vocábulo uma ressonância admirável. Tem-se a impressão, sob a aparente
pobreza literária do diálogo rodrigueano, que as palavras só poderiam ser as que
se encontram ali, como uma cadeia de notas exatas, as únicas capazes de obter o
maior rendimento rítmico e auditivo.” (Magaldi, s.d, p.203)

Magaldi cogitou em seu livro a idéia de que Nelson Rodrigues, um autor

obsessivo, experimentou várias maneiras de retratar em suas peças um amor

incestuoso, mas só em A Serpente se sentiu encorajado para trazê-lo para o primeiro

plano. “Um autor sempre tem mais de uma peça na cabeça. Fica adiando esta ou

aquela e a ordem cronológica acaba não sendo tão cronológica assim.” (Magaldi, 2004,

p.173)

A partir de 1967, no "Correio da Manhã" e em "O Globo", Nelson começa a

escrever, sempre em prestações diárias, as suas memórias - um precioso material para

quem queira entender a época e a vida de seu melhor personagem: ele próprio.

"[...]através de crônicas e entrevistas, terminou por plasmar uma personalidade


semifictícia para si mesmo, quase já de personagem artística autônoma, da qual
faziam parte o emprego humorístico do exagero e as frases de efeito para uso
externo, resquício da velha atração nacional pela boutade e pelo paradoxo."
(Prado,1988, p.136)

A paixão obsessiva de ver e descrever todas as minúcias, até mesmo as mais

aviltantes, da criatura humana, exerceu-se nele ininterruptamente, primeiro nas crônicas

policiais e mais tarde na sua ficção e no teatro. E o grande sofrimento pessoal que seria

obrigado a suportar a vida toda - miséria, doenças, tragédias familiares -, impregnou sua

obra de uma atmosfera pesada, mórbida, maldita, mas onde se detecta sempre um humor

fino e amargo.

"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra
coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura
é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um
anjo pornográfico." (Castro, 1992, p.2).
1.1 – A SERPENTE

A Serpente foi lançada em 1980, poucos meses antes de Nelson Rodrigues

falecer. É o texto mais curto do dramaturgo, com apenas um ato de duração, mas

apresenta resumidamente as principais características que marcaram sua obra teatral.

Com ritmo rápido e texto sucinto, Nelson Rodrigues conseguiu escrever uma peça

inteira sobre um tema familiar e pouco ambicioso: a paixão de duas irmãs pelo mesmo

homem.

Muito companheiras, as irmãs casaram no mesmo dia e foram morar no mesmo

apartamento com seus respectivos maridos, Décio e Paulo. Um ano já se passou.

Enquanto Guida vive uma intensa lua-de-mel, Lígia é praticamente virgem. Querendo

morrer de desgosto, a irmã infeliz expulsa o marido de casa e comunica a Guida que

está pensando seriamente em morrer. Guida faz a proposta: Lígia deve passar uma

noite com Paulo, marido de Guida, para nunca mais pensar em morrer. A partir daí a

história toma caminhos diferentes e o apartamento agradável fica a um ponto de ruir.

Depois da noite que passou com Lígia, Paulo não consegue ser para Guida o que era

antes. Não a procura mais como mulher, se afasta dela. “Esta aí o germe do desfecho

de A Serpente.” (Magaldi, 2004, p.175)

O texto A Serpente além de conter elementos poéticos, possui também muitos

elementos psicanalíticos, além de recorrer à crença de que “um sangue fataliza-se por

outro sangue”, característica presente na tragédia grega.

“A dramaturgia grega associou para nós a tragédia à inevitabilidade, quase


sempre à luta inglória do homem com o destino que lhe é superior, e muitas
vezes o abate. Apesar da progressiva humanização da tragédia grega, o homem
nunca deixa de ver-se a braços com uma fatalidade.[...] Para o aniquilamento de
sua personalidade, representado pelo atrito com a irmã o acidente vem
equiparar-se a um tiro de misericórdia e de libertação.”(Magaldi, s.d, p.203)
A beleza literária é construída a partir de uma proposta que dá abertura para

outras tantas possibilidades, tornando impossível fazer dessa peça um teatro pobre, no

sentido de previsível e nem um pouco surpreendente e instigante, trazendo consigo a

lembrança de um romance-policial.

É possível reconhecer alguns vazios em A Serpente, isso se refere a uma

exacerbada síntese do diálogo, não dando tempo para que as emoções se encorpem e

atinjam o espectador, que sente ter faltado preparo para a conclusão do drama.

Segundo Sábato Magaldi1(2004, p.177): “o próprio tema, as falhas e a pequena

duração, sintoma do fôlego menor, não permitem ver A Serpente como uma obra

ambiciosa”. Mas em contrapartida, Nelson nunca se mostrou tão ousado ao falar sobre

sexo em suas peças. A peça expõe despudoradamente a intimidade do casal e suas

conseqüências são trazidas ao diálogo. O sexo, e não o amor, comanda as ações. A

intimidade vaza pelas paredes. Nelson faz da personagem Guida, uma mulher que

acredita no “poder vital do sexo”(Magaldi, 2004, p.178, grifo do autor), pois encoraja a

irmã a obedecê-la, pois assim “nunca mais terá vontade de morrer”2. Nelson fala

através de Guida, uma coisa que vai de encontro aos outros dramas que escreveu, onde

possivelmente, segundo Sábato Magaldi (2004, p.178), estaria a “origem da queda

paradisíaca – a tragicidade da condição humana”, Nelson que sempre “pregou” a união

1 Teórico, crítico teatral, professor e influente pensador ligado a momentos decisivos da história do teatro
brasileiro. Escreve com precisão em Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues, com uma linguagem nítida e
um raciocínio claro. Analisa as peças, como realidade teatral, sem perder de vista as suas repercussões na
sociedade brasileira, ainda cheia de convenções.
2
Fala retirada da peça A Serpente de Nelson Rodrigues, dita por Guida a sua irmã Lígia, no instante em
que ela ameaça se matar.
de amor e sexo e a perfeição do sexo dentro do amor, expõe numa fala de Guida: “O

homem deseja sem amor, a mulher deseja sem amar”3.

A forma como os fatos vão se dando acontece de maneira tão vertiginosa que o

autor sente a necessidade de incluir um recurso inédito no seu teatro. A fala do ator é

colocada diretamente para a platéia. Possibilitando à personagem exprimir, por

exemplo, uma reflexão a respeito do que o público acabou de presenciar.

“A liberdade formal que o distinguiu incorporou às vezes, após o dialogo, uma


espécie de “monólogo interior aos gritos”: o ator vem para a boca de cena e
“fala para a platéia como o tenor na ária”. Típico recurso de estranhamento,
entre o aparte antigo e a ruptura brechtiana dos episódios, quebrando pela
narrativa o teor dramático do dialogo e servindo para acrescentar novos dados e
estabelecer ligações.”(Magaldi, 2004, p.179)

É possível ver em A Serpente uma síntese do universo rodrigueano. Nelson

consegue delicadamente fazer uma análise psicológica, a paixão se desencadeia de

forma violenta revelando a tragédia carioca até o assassinato final. “E a tentação

expressada em A Serpente coloca os protagonistas em face da tragicidade existencial,

quando o homem encara o abismo que define a sua frágil natureza.”(Magaldi, 2004,

p.180)

3
Resposta de Guida à Ligia quando esta a questiona sobre nunca ter havido nenhum tipo de afeto com
cunhado, e pergunta a Guida se a “noite prometida” aconteceria mesmo assim, nessas condições.
CAPÍTULO II – ADAPTAÇÃO

Encontramos muitas dificuldades em transformar um texto dramático em

narrativo, já que o problema não é só criar o texto, a dificuldade está em trazer à tona a

essência, o universo Rodrigueano. Recorremos aos contos de A vida como ela é... com

a intenção de nos aproximarmos do universo de Nelson e assim nos lançarmos nessa

aventura, que foi construir uma nova dramaturgia, a partir de um texto do autor.

Em primeiro lugar escolhemos trabalhar duas cenas da peça, que julgávamos

serem as mais importantes: A primeira cena é a que Guida, diante da ameaça de

suicídio de Ligia, oferece a ela uma noite com seu marido e a segunda, a cena em que

Guida acusa a irmã de depois daquela "noite prometida" ainda estar se encontrando às

escondidas com seu marido. Depois transformamos o resto do texto em narrativa para

contar os percursos das personagens.

Nosso trabalho faz com que a voz do autor apareça e desapareça, veiculada nas

vozes dialogadas das personagens. Fizemos questão de conservar o discurso autoral

acreditando que nele é possível descobrir uma teatralidade inerente e específica

solucionando de maneira estimulante a escassez de outros atores com uma linguagem

cênica nova para nós.

2.1 – O MÉTODO

Após decidir que encenaríamos o texto A Serpente de Nelson Rodrigues,

escolhemos fazer algumas cenas da peça que tratam da relação de amor e ódio

existente entre as irmãs Lígia e Guida, mas ficamos insatisfeitas em apresentar e

estudar apenas essas duas cenas, então optamos passar por toda a peça de uma maneira

objetiva e que nos agradasse. Lembrando das aulas do professor Carlos Eduardo
Garcia no módulo de narrativa, despertamos o interesse em utilizar o método narrativo

para contar resumidamente a peça.

O texto Do livro para o palco: Formas de interação entre o épico literário e o

teatral de Luiz Arthur Nunes4 abriu nossos olhos para questões específicas da narrativa

porque além dos estudos sobre Nelson Rodrigues, Nunes desenvolve uma pesquisa

sobre a teatralização de obras literárias de ficção sem transposição de gênero,

preservando a voz autoral narradora e confiando sua transmissão ao “ator rapsodo”,

como é chamado, o ator-narrador. O texto traz consigo o fascínio por romper “o eixo

estruturador da narrativa dramática convencional, substituindo-a pelo relato

descontínuo do romance, com suas rupturas, espaçamentos e idas e vindas na

montagem de ação, no fluxo temporal e no percurso espacial”. (Nunes, 2000, p.40)

A narrativa tem que ser falada como se a cena estivesse acontecendo ali, no

palco, naquele momento. O narrador precisa gerar a imagem pra ele e principalmente

produzir as imagens para o público, para quando houver a quebra, e entrar a

personagem, estar tudo ali no presente.

Tem um lugar muito instigante da narrativa, onde o narrador quase chega ao

estado da personagem, ele se deixa poluir um pouco por esse estado em que a

personagem se encontra, mas não chega a vivê-lo efetivamente, pois apesar de se

deixar levar por um movimento da personagem, por exemplo, narra num tom diferente,

trazendo de volta com isso a figura do narrador. Ele chega a manifestar um sentimento

4 Diretor e professor, com carreira acadêmica contínua, hoje diretor do Núcleo Carioca de Teatro, onde

pesquisa o teatro épico e é pioneiro em duas iniciativas: a descoberta da teatralidade nas convenções do
melodrama e nas crônicas de Nelson Rodrigues.
pela personagem, mas não chega a ser ela. É bom para a narração jogar entre esses dois

lugares: se afastar totalmente da personagem ou se aproximar.

“O narrador “de dentro” inevitavelmente demonstra um envolvimento maior


com a matéria narrada, sua presença invasiva funciona como um comentário
bem mais incisivo. O texto emitido à distância vem carregado de
imparcialidade, enquanto que a fala proferida no coração mesmo do drama,
ainda que resguardada pela impermeabilidade entre os planos do épico e do
dramático, sai da boca de um narrador interessado, desejoso de emitir sua
opinião, seu julgamento.”(Nunes, 2000, p.43).

A proposta de Luiz Arthur Nunes na sua experimentação não é apenas

desenvolver um ator-narrador proporcionando-lhe o domínio das técnicas narrativas,

mas sim dar-lhe a habilidade no “trânsito rápido e suave entre os dois modos de

atuação”, entre a função de contador e a personagem. A busca de uma fluidez das

alternâncias é a essência do jogo narrativo.

Para que a transição entre o narrador e a personagem fosse bem executada,

partimos para uma pesquisa sobre a energia corporal do narrador e da personagem,

tendo como base a dramaturgia que construímos. Esse estudo se deu através da

investigação do “corpo-memória”, que consiste na pesquisa corporal do ator por meio

de aquecimentos e exercícios como já dito anteriormente, e que através das ações

físicas focam principalmente na eliminação dos bloqueios corporais adquiridos por nós

ao longo da vida.
CAPÍTULO III – O CORPO

Nosso projeto quis promover um estudo que permita ao ator evitar o excesso de

racionalização e de estruturação cênica. Nessa nossa concepção o objetivo é

redimensionar o papel do corpo, tornando-o maior, mais vivo, mais importante. Ele é o

ponto de partida para a criação da dramaturgia.

É necessário que haja um desprendimento, fazendo com que ele possa

desconstruir seu corpo habituado e faça nascer de si um novo corpo preparado para

responder organicamente a qualquer estímulo proposto pelo jogo teatral a partir de um

despertar sensorial. Estamos desenvolvendo um trabalho psico-físico, que faz com que

nosso corpo fique à nossa disposição para executarmos a cena. Através do conceito de

“corpo-memória” desenvolvido por Grotowski, entendemos que esse corpo não é um

“corpo-massa”, ou seja, um corpo atlético ou exercitado, é necessário que ele seja um

“corpo-canal”, um corpo inteligente, que permita que a energia circule por ele e nos

faça mover.

Neste trabalho fundamentado por Grotowski e que tomamos a liberdade de nos

apropriar, entendemos que o foco é a memória física dos atores. Ao longo da nossa

existência, vamos vivendo e conseqüentemente nossa história de vida está presente, ou

melhor dizendo, impregnada no nosso corpo, pois ele retém tudo que já foi vivenciado

por nós. O exemplo mais simples e sutil disso são as rugas, elas são um sinal de

existência. Grotowski propõe darmos ao corpo uma possibilidade de vida, em que

mente/corpo/palavra/gesto/espírito/matéria/interno/externo se integrem e se expressem

em sua totalidade.

"É necessário dar-se conta de que o nosso corpo é nossa vida. No nosso corpo,
inteiro, são inscritas todas as experiências. São inscritas sobre a pele e sob a
pele, desde a infância até a idade presente e talvez também desde antes da
infância, mas talvez também antes do nascimento de nossa geração. O corpo-
vida é algo tangível (...) e a volta ao corpo - vida exigirá o desarmamento, a
nudez extrema, total, quase inverossímil, impossível na sua inteireza."
(Grotowski, 2007, p.205)

A descoberta do ator se dará não para o espectador, mas diante dele. Essa

descoberta, baseia-se num esforço de total sinceridade, exigindo ao ator aceitar

renunciar a todas as suas máscaras. Para Grotowski, o teatro é uma arte carnal. Por

isso é preciso que o corpo quebre suas resistências. Para ele, o essencial é que tudo

venha do corpo e através dele: "antes de reagir com a voz, deve - se reagir com o

corpo. Se pensa-se, deve-se pensar com o corpo inteiro, através de ações."5

Antes de Grotowski concluir esse raciocínio, Stanislavski já questionava que o

trabalho em cima dos sentimentos é algo bastante abstrato. Descobrindo assim a

importância das ações físicas. E dizia: "Não me falem de sentimentos, não podemos

fixar sentimentos, só podemos fixar as ações físicas."6. (Toporkov, 1991, p. 111,

tradução nossa)

São as ações físicas que guiam o ator no processo de elaboração de seu papel e

também representam o meio principal para a expressividade do ator. Segundo

Stanislavski, é o ator quem comanda as ações. E uma das primeiras condições é que o

ator pense no que vai fazer e não no que vai sentir: "o ator sobe no palco não para

sentir ou experimentar emoções e sim para atuar (...) Não espere emoções, atue

imediatamente."7

5
Disponível em http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/ jerzygrotowski02.html

6 Texto original: “Non mi parlate di sentimenti, non possiamo fissare i sentimenti. Possiamo fissare e
ricordare solo le azioni fisiche”.
7
Disponível em http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/teacontemp04.html
O ator para Grotowski é um homem que trabalha em público com o seu corpo,

oferecendo-o publicamente; por isso, se esse corpo se limita a mostrar o que é, ou seja,

limita-se a demonstrar algo que pode ser feito por qualquer pessoa, não constitui um

instrumento obediente capaz de criar um ato espiritual. É partir daí que ele aponta a

necessidade do desenvolvimento de uma anatomia especial para o ator. Para

desenvolver esta anatomia, é necessário organização, disciplina e harmonia, já que nesse

trabalho é preciso que os atores se lancem em algo extremo, num tipo de transformação

que pede uma resposta total de cada um. Esse algo vai além do significado de "teatro" e

é muito mais "um ato de viver" e "um caminho de existência".

3.1 – GROTOWSKI

Decidimos nos apoiar no método de ações físicas de Grotowski, que se

fundamenta no estudo do corpo através da observação e experimentação do mesmo,

para que a partir dessa nova percepção o ator possa desenvolver seu trabalho.

Jerzy Grotowski foi um diretor de teatro polonês e um indivíduo de grande

importância no teatro do século XX, principalmente no teatro experimental. Seu

trabalho mais conhecido em português é Em Busca de um Teatro Pobre, onde busca

um teatro praticamente sem vestimentas, baseado no trabalho psico-físico do ator. A

melhor tradução de "teatro pobre" seria teatro santo ou teatro ritual. Nele Grotowski

leva adiante as últimas questões a respeito das ações físicas elaboradas por Constantin

Stanislavski, buscando um teatro mais ritualístico.

No nosso projeto, em meio a todo o trabalho desenvolvido por Grotowski,

focamos apenas no conceito de “corpo-memória”, que nos foi muito bem explanado
por Tatiana Motta Lima8. Segundo Lima, o corpo tem uma estrutura sem a

manipulação do mental. O mental não consegue aceitar a dinâmica da vida, já que ele é

menor que a dinâmica da vida. Essas separações (mente-corpo) caem com a

organicidade. Como se o mental não desse conta de nomear alguma sensação, como se

ela fosse o “entre” sentir e nomear o que está sentindo. Esse exercício libera o corpo-

vida, o corpo-memória. E essa questão da corporeidade, pode ser definida de forma

ainda mais simples, apenas despertando em si a percepção do eu. Ela também nos

esclareceu que no teatro de Grotowski, a personagem é apenas um veículo para que o

ator se manifeste para o espectador.

Dentro dessa perspectiva, os exercícios desempenharam um papel fundamental

no Teatro Laboratório. Por meio deles:

“O ator se capacita para a artificialidade e a elaboração formal, aprendendo,


antes de mais nada, a superar os limites do cotidiano e o naturalismo
psicológico, para conseguir, depois, a expressividade física total - a única que
pode estar em condições de restituir o ator total.” 9

Nos exercícios e no treinamento, Grotowski colocou toda a atenção no corpo e

secundariamente, na palavra. Palavra esta que nasce do corpo e que, portanto, não

poderá ser usada corretamente sem uma preparação física adequada. "Será um clichê

estéril, naturalista, declamatório."10 A partir de determinado momento, esses exercícios

sofrem uma mudança de percepção e passam a ser um pretexto para a elaboração de

uma forma pessoal de treinamento do ator: "um meio para localizar e remover as

resistências e obstáculos que o bloqueiam em sua missão criativa e o impedem de

8
Atriz, doutora em artes cênicas, professora da Uni-Rio. Pós-graduada na UNIRIO com a tese: Les Mots
Pratiques: relação entre teoria e prática no percurso artístico de Jerzy Grotowski entre os anos 1959 e
1974.
9
Disponível em http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/jerzygrotowski04.html
10
Id.
manifestar seus impulsos vivos."11 Os exercícios passam de uma concepção positiva da

técnica do ator para uma concepção negativa: "...é um caminho negativo, não um

acúmulo de habilidades mas uma eliminação de bloqueios." (Grotowski, 2007, pag.106)

Segundo Grotowski, a utilização positiva da técnica no teatro, traz o risco do

perfeccionismo exterior e do virtuosismo puro - uma expressão corporal entendida só

em seu aspecto exterior e muscular e do próprio narcisismo. Se os atores tradicionais,

em sua maioria, eram uma cabeça (ou uma voz) sem corpo, os atores do Teatro

Laboratório corriam o perigo de converterem-se num corpo sem cabeça, perpetuando

essa separação secular sobre a qual se edificou a civilização ocidental. A partir dessas

reflexões, Grotowski busca uma técnica que recomponha o ator - o homem na sua

totalidade: mente, corpo, gesto, palavra, espírito, matéria, interno, externo. Com isso

ele fez algumas observações nos exercícios: eles deveriam ser individuais e motivados

por associações, imagens precisas - reais ou fantásticas - ou seja, que tivessem conteúdo

e quanto à reação física, deveria iniciar-se sempre dentro do corpo. O gesto visível só

deve ser a conclusão desse processo. É isso o que Grotowski nomeia de corpo-memória,

o corpo-vida, imagens que projetam seu reflexo para mais além do teatro e da

representação. Assim acontece quando “o homem não quer esconder mais nada: nem

sobre a pele, nem a pele, nem embaixo da pele.” (Grotowski, 2007, p.203)

Uma das coisas bem perceptíveis no estudo de Grotowski é a forte presença do

conceito de energia. E traz consigo as apreciações a respeito da umbanda. Conta que

nela é provada a transformação de energia pesada em energia fina, e ressalta que

qualquer um que presencie essa transformação pode senti-la. Grotowski queria provar

11 Disponível em http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/jerzygrotowski04.html
isso cientificamente, pois estudava como isso se dava, ou se por assim dizer, como esse

fenômeno ocorria.

A energia que buscamos para esse corpo apto a cena possui uma energia fina.

No nosso estado normal temos a energia pesada, precisamos transformá-la em energia

fina e para isso é necessário “subir para transceder”, segundo Lima12. Então

trabalhamos entre os dois extremos: em um, o estudo permanente das ações físicas, dos

exercícios, da voz e no outro ousamos utilizar um pouco do trabalho que Grotowski

nomeou de “Arte como veículo” ou “Artes Rituais”.

“Quando falo do ritual, não me refiro a uma cerimônia nem a uma festa; e
ainda menos a uma improvisação com participação de gente de fora. Não falo
de uma síntese de diversas formas rituais provenientes de lugares diferentes.
Quando me refiro ao ritual, falo de sua objetividade; quer dizer que os
elementos da ação são os instrumentos de trabalho sobre o corpo, o coração e
sobre a cabeça dos atuantes.(...) trabalhamos sobre o canto, sobre os impulsos,
sobre as formas do movimento, aparecem também motivos textuais. E tudo
sendo reduzido ao estritamente necessário, até criar uma estrutura tão precisa e
finita como no espetáculo: ação.” (Grotowski, 2007, p.232)

Segundo Eugênio Barba13, o teatro polonês é um teatro cheio de contradições,

Grotowski buscava um caminho para a espiritualidade, um caminho em direção ao

sagrado. Queria um contato, não criar uma religião. Ele queria um meio do teatro

transcender, sair daquela normalidade e buscou isso através do corpo. Ele aprendeu

tudo através de trabalhos, suas vitórias e seus fracassos.

12
Informações colhidas em palestras assistidas na Universidade da Cidade e na PUC.

13
Eugenio Barba, famoso teatrólogo, foi um de seus assistentes e responsável pela divulgação e
publicação de seus trabalhos. Ele fala sobre essa questão energética no livro “Terra de cinza de
amantes” e toda a trajetória desse trabalho.
"Em princípio era um teatro. Depois era um laboratório. Agora é um lugar em
que tenho a esperança de ser fiel a mim mesmo. É um lugar em que espero que
cada um dos meus companheiros possa ser fiel a si mesmo. É um lugar em que
o ato, o testemunho dado por um ser humano serão concreto e corpóreos. Onde
não se pesquisa alguma ginástica artística, alguma surpresa acrobática, nem o
training. Onde ninguém quer dominar o gesto para exprimir algo. Onde se
quer ser descoberto, desvelado, nu; sincero com o corpo e com o sangue, com
a inteira natureza do homem, com tudo aquilo que podem chamar como
quiserem: intelecto, alma, psique, memória e coisas semelhantes. Mas sempre
tangivelmente, por isso digo: de maneira corpórea, porque tangível. É o
encontro, ir ao encontro do outro, ser desarmado, não ter medo um do outro,
em nada."(Grotowski, 2007, p.210).

Grotowski também se preocupava com a má formação dos atores em algumas

escolas de teatro, principalmente quando se tratava de exercícios vocais. E dizia que os

mal-entendidos começavam na respiração.

Alguns especialistas, no final do século XIX e início do século XX,

descobriram que a respiração abdominal, feita pelo diafragma, dava mais plenitude à

voz. Claro que existem pontos de vistas diferentes a respeito disso, mas Grotowski

optou por praticar esse tipo de respiração no início de seus trabalhos no Teatro

Laboratório.

Desenvolveu uma experimentação com a respiração, observou que a respiração

muda quando o ator está em diferentes posições ou durante ações ou reações distintas.

E constatou que todo jovem ator é obrigado a usar um tipo de respiração que não é seu

e aí se iniciam as dificuldades, pois ele está interferindo no seu processo orgânico.

Então segundo Grotowski (2007, p.139): “Se não funciona, intervenham; se funciona,

não intervenham” E seu objetivo sempre foi descobrir em cada ator, sua respiração

normal, ele o fazia da seguinte maneira: Colocava o ator em posições que requeriam

sua atenção a tal ponto que ele não podia, de maneira nenhuma, interferir no seu

processo respiratório.
“Em suma, não há receitas. Vocês devem encontrar as causas do obstáculo, do
incômodo e, por fim, criar uma situação em que as causas que impedem a
respiração normal possam ser destruídas. O processo se liberará.(...) procurem a
maneira de liberar o processo orgânico por meio da ação, porque nesse caso,
também a respiração se liberará – quase sempre por si só – e assim o ator não
terá interferido nem controlado ou bloqueado a ação.” (Grotowski, 2007,
pag.141)

A respiração é um problema individual. Os bloqueios são diferentes para cada

ator. E com a voz o problema é o mesmo, muitos atores têm dificuldades porque

observam o próprio instrumento vocal, concentram toda a atenção nele, “enquanto

trabalha, observa-se, escuta-se, freqüentemente duvida de si mesmo, mas também se

não se experimentam dúvidas, comete um ato de violência contra si mesmo”14. Esses

atores começam a desenvolver distúrbios vocais que, se permanecerem, podem se

transformar em problemas fisiológicos. Pois está interferindo no movimento da

laringe, deixando-a aberta, fechada ou semi-fechada, ou nas cordas vocais e é

exatamente essa força feita de forma errada com a voz que tornam os antigos

distúrbios em defeitos fisiológicos.

“A sua energia física existe somente em sua cabeça e em seu instrumento vocal.
Por outro lado, quer manter uma calma, uma compostura, controla-se, bloqueia
os impulsos do corpo. É assim que, em vez de usar o corpo inteiro, ele (ainda
que inconscientemente) submete à tensão o seu instrumento vocal. E fala dessa
forma por um longo tempo, várias horas por dia; no final terá danificado o seu
instrumento vocal.” (Grotowski, 2007, pag.144)

Foi em Xangai com o Dr. Ling, professor tanto na Escola de Medicina quanto

na Ópera de Pequim, que Grotowski entendeu exatamente como funcionava a laringe.

E aprendeu a criar as condições ideais para ter uma voz aberta, a verdadeira voz do

ator, uma voz livre de vícios, de auto-criticas e vivencias. Entendeu que a posição

proposta pelo Dr. Ling auxiliava na exatidão da fala, a parte inferior da coluna

14
Grotowski em conferência para os estagiários estrangeiros do Teatro Laboratório de Wroclaw (maio de
1969)
vertebral está envolvida, sustentando o corpo e este regula a respiração, que é quase

sempre abdominal. Mas essa voz, ainda que aberta e forte, é ao mesmo tempo

mecânica e dura. E Grotowski se convenceu de que o uso repetitivo desse exercício

faça mais mal do que bem, conclui ele então, que a escola do Dr. Ling era um tanto

limitada.

A observação de Grotowski seguiu-se em perceber como impostar a voz mais

aguda ou mais baixa utilizando os vibradores existentes no corpo e diferentes ecos.

Todo ator pode fazer isso, mas sabendo que o ponto de partida é a própria voz com sua

base natural e orgânica. Notou também como as pessoas de culturas e línguas

diferentes usam o corpo quando usam a voz.

Assim, foi seguindo com seu estudo e chegou ao próximo problema

denominado “a sustentação”. Teve contato com os exercícios da Hataioga que,

começam regulando a duração da respiração, procuram inspirar lentamente e expirar

ainda mais lentamente, e para isso se dá, a laringe deve estar fechada pela metade.

“Não há dúvida de que a expiração conduza a voz. Não há duvida que seja uma
ação material, não metafórica ou sutil.(...) Mas para conduzir a voz, a expiração
deve ser orgânica e aberta. A laringe deve estar aberta e isso não se pode obter
com a manipulação técnica do instrumento vocal.(...) não economizem ar.”
(Grotowski, 2007, pag.151)

Eis que surge a grande aventura da pesquisa, a descoberta dos ressonadores, ou

melhor, a palavra mais adequada, do ponto de vista cientifico, seria os vibradores.

Grotowski estudou como utilizar as diversas partes do corpo que podem ser

vibradores: tórax, coluna, cabeça... Falava como se a boca estivesse nesses locais e, ali

iniciava-se uma vibração física. Mais uma vez percebeu que a voz do ator era mais

forte, diversificada, como se emanasse de diferentes pessoas e animais. E, ao mesmo

tempo era uma voz dura e mecânica, não fria, mas automática, sem vida. Quando os
atores começaram a agir com a “totalidade do seu ser” era completamente diferente,

não existiam mais os vibradores conscientes ou se existissem, esses vibradores

bloqueavam o processo orgânico. Foi nesse momento que Grotowski entendeu que

tinha caído no mesmo erro de antes, só que por outro caminho, estavam novamente

interferindo no processo orgânico. Anteriormente observavam o instrumento vocal e,

nesse momento, todo o corpo e por esse motivo a voz era muito mais forte, porém

artificial.

“Não eram somente os vibradores que tinham colocado em movimento


diferentes tipos de voz, era igualmente o fato de que tínhamos deixado de
observar, de controlar o instrumento vocal. Controlar o corpo é mais natural,
mas de qualquer forma era auto-observação.”(Grotowski, 2007, pag.155)

A laringe pode servir também como vibrador, desde de que isso aconteça

organicamente, então esse vibrador foi ativado. Começaram a fazer vários tipos de

animais selvagens e perceberam que podiam usá-lo sem dificuldades e que esse

ressonador “selvagem” era muito menos duro e automático do que os outros.

Então Grotowski solicitou a dois atores que liberassem em si esses animais

selvagens e os fizesse em forma de luta ou de ação “em direção a”, ou seja, deveriam

liberar os impulsos em direção ao exterior. A partir daí a pesquisa tomou uma outra

direção, percebeu que podiam ativar os vibradores sem qualquer premeditação. Se

fala-se em direção ao teto, o vibrador do crânio se libertará sozinho. “Mas não deveria

ser uma ação subjetiva, o eco deveria ser objetivo,(...) a nossa atenção não está

orientada em direção a nós mesmos, mas em direção ao exterior”.(Grotowski, 2007,

p.156)
É possível praticar com o ator, do exterior, diferentes manipulações com a sua

garganta, o seu diafragma, pontos da coluna vertebral, e isso pode provocar reações no

corpo que conduzem a voz; pode liberar impulsos totalmente orgânicos.

Pode-se liberar todos os diversos tipos de voz, por meio de diferentes

associações que para nós são pessoais e freqüentemente até mesmo intimas. Esse tipo

de jogo libera aqueles impulsos que não são frios, mas que são procurados no campo

da nossa memória, do nosso “corpo-memória”. É isso que criará a voz. Então só resta

um problema: descobrir como liberar os impulsos do “corpo-memória”.

Grotowski insiste em dizer que não se deve fazer exercícios vocais, mas sim,

usar a voz em exercícios que envolvam todo o ser e com isso a voz irá se liberar

sozinha. E propõe: “talvez devam trabalhar falando, cantando, mas não devem

trabalhar a voz, (...) devem trabalhar com todo o corpo.” (Grotowski, 2007, p.158).

Devemos criar um treinamento no qual o “corpo-memória” possa estender-se por meio

da voz, isso é suficiente. Isso pode ser feito da seguinte forma: jogos que envolvam a

nossa relação com os partners, ou seja, parceiros de cena. Nesses jogos o objetivo é

liberar o “corpo-memória”, isso se dá através dos textos, de músicas ou apenas uma

busca qualquer de algum contato com o outro.

“A voz é uma extensão do corpo, do mesmo modo que os olhos, as orelhas, as


mãos: é um órgão de nós mesmos que nos estende em direção ao exterior e, no
fundo, é uma espécie de órgão material que pode até mesmo tocar. (...) os atores
não devem fazer exercícios vocais mais do que exercícios de
respiração.”(Grotowski, 2007, pag.159)

Trabalhar com os vibradores tem basicamente uma única finalidade: nos fazer

entender que nossa voz não é limitada e que podemos fazer qualquer coisa com ela,

experimentando que o impossível é possível. “A tentação maior dos atores, como de


todos os seres humanos, é procurar e descobrir uma receita fixa. Esta receita não

existe.” (Grotowski, 2007, pag.161)


MEMORIAL:

No início da orientação do pré-projeto de monografia, a professora Andrea

Maciel pediu que escrevêssemos em um papel a nossa inquietação, a medida que cada

um foi falando a sua, nós, Cibelle e Dayanna, percebemos que as nossas inquietações

falavam da mesma coisa. Conversamos melhor depois da aula e achamos outras

dificuldades em comum. A partir daí o contato foi feito e a afinidade foi imediata.

Decidimos fazer juntas o projeto de monografia.

Nossa inquietação partia da dificuldade que tínhamos em trabalhar com o corpo;

em como manter ou controlar a energia física em cena, e que por conseqüência nos

levava ao mesmo resultado – insatisfatório, claro – que era perda de tonos muscular na

cena. E isso já havia sido apontado às duas por outros professores ao longo do curso.

Com base na nossa vivência pessoal percebemos que quando fazíamos

exercícios que exigissem uma concentração muito grande no corpo, ao invés de

executarmos bem a cena, isso nos bloqueava. Ao longo das nossas conversas e nossas

experimentações descobrimos que os exercícios de exaustão, nos deixavam mais atentas

do que os outros. E chegamos à conclusão que nosso maior defeito ou nossa maior

virtude era o excesso de energia corporal que não sabíamos como administrar. E esse

entendimento nos ajudou a selecionar os melhores exercícios para nossa pesquisa.

Em contrapartida, nossa dificuldade nesse momento era achar um texto que nos

proporcionasse uma exploração maior do corpo. Através da sugestão da nossa

orientadora achamos que um conto de caráter impressionista atenderia à nossa

necessidade, já que ele ao invés de interpretar, descreve as impressões, sensações e

emoções de um indivíduo e tem como necessidades básicas o ritmo, a concisão e o

conflito.
Juntamente a isso, decidimos buscar algum método que nos desse apoio ao longo

da pesquisa, e em meio a muitas fundamentações optamos pelo método das ações físicas

criado por Stanislavski, mas desenvolvido posteriormente por Grotowski, mais

precisamente o conceito que ele nomeou de “corpo-memória”, que nos atraiu justamente

por desenvolver uma pesquisa específica para cada ator, dando a ele a liberdade de

perceber como cada exercício reflete no próprio corpo e como adaptá-lo para sua

satisfação pessoal. Além de visar à eliminação dos bloqueios físicos dos atores.

Apesar de nos aprofundarmos no estudo de Grotowski, ainda não tínhamos

decidido qual conto faríamos, pois mesmo achando que esse era o melhor caminho,

nenhum deles nos atraía. Essa procura seguiu até o início do projeto final de monografia

e nos vimos encurraladas, era um texto ou era um texto! Mas salvas mais uma vez pela

orientadora, agora então a professora Maria Assunção, aceitamos sua sugestão em

utilizar uma cena do texto A Serpente, de Nelson Rodrigues, já que este traz consigo um

conflito entre duas irmãs, e pra fazer jus às obras de Nelson, a força que essas duas

mulheres possuem é visceral demais. Excelente oportunidade de gastarmos nossas

energias, não?! Após lermos o texto diversas vezes, nossa dificuldade era escolher que

cena nós faríamos. Decidimos fazer duas cenas das irmãs Ligia e Guida. E claro, como

nos sobra energia, duas cenas não nos satisfazia, aliás, melhor do que isso, o desejo de

fazer a peça toda nos consumia.

Passamos algum tempo questionando a possibilidade de realmente fazer a peça

inteira. Será que é permitido? Será que dá tempo? Será que temos tempo? Será que

conseguimos? Enfim, concluímos que não seria possível adaptar a peça pra vinte

minutos, isso seria mais um problema e no momento não era isso que a gente precisava.

Por acaso falamos que nos sobrava energia?!


Descobrimos o que realmente nos sobrava: Teimosia. Insistimos na peça inteira,

e estávamos decididas a levar isso à frente. Eis então que surgiu a idéia de utilizar a

narrativa, ou seja, uma forma de passar por toda peça de maneira objetiva. Fizemos um

esboço de como seria a narração: decidimos que partes seriam narradas e quais

encenadas. Utilizar um texto de Nelson Rodrigues e transformá-lo em narrativa, sem

deixar que a essência deste se perca, é uma tarefa árdua.

Após muitas leituras, adaptações e, finalmente, a definição de que recortes

usaríamos para compor nossa cena decidimos partir para o trabalho prático. Em um

espaço iniciamos um alongamento para não nos machucar no aquecimento que

pretendíamos fazer. Após esse alongamento, colocamos uma música de batidas fortes,

que trazia uma referência à umbanda. Nosso objetivo era apenas ter uma música que nos

proporcionasse uma energia forte e que possuísse um ritmo intenso, pois seria a partir

desse aquecimento e dessa formação de energia, que pretendíamos seguir com a cena.

Tentamos neutralizar ao máximo o corpo, deixá-lo vazio, sem nenhuma

preparação para o que estava por vir. Depois disto feito, colocamos a música e de olhos

fechados deixamos nosso corpo livre para ser levado pelo som. Claro que tivemos

alguns critérios, um deles era o de não permanecer no corpo cotidiano, em um corpo

familiar que de certa maneira nos protegeria e não nos proporcionaria nenhuma

surpresa. Optamos por fazer movimentos extra-cotidianos.

Inicialmente trabalhamos apenas na percepção do próprio corpo, para depois

partir para o contato visual com o outro. Os olhos se abriram, mas nesse momento o

foco ainda era o próprio corpo, ou melhor, a preparação e/ou aquecimento desse corpo.

O corpo estava aquecido e o contato com o outro foi feito, era perceptível que a

primeira memória corporal que veio à tona, devido à música ou aos antecedentes das
personagens a serem trabalhadas - já que ainda não havíamos constatado o motivo – foi

que o corpo respondeu como se houvesse um embate, uma disputa entre nós duas. A

sensação era que estávamos numa selva, apenas observando a rival e que qualquer

movimento poderia ser fatal. Devido a isso, nos colocamos uma de frente para outra,

nunca de costas, com o corpo em plano baixo, como se fossemos duas leoas. O olhar era

fixo, em momento algum ele se desvirtuava do outro. Podíamos perceber que apesar de

não estarmos nos movimentando como antes, existia uma energia que circulava no

nosso corpo, era como se estivéssemos guardando e gerando mais energia para “o

grande combate”. Estávamos começando a constatar no corpo a teoria de Grotowski.

Utilizamos o segundo grande diálogo entre as irmãs Guida e Ligia para nossa

experimentação. É justamente a cena em que Guida acusa Ligia de dar seguimento ao

romance com seu marido. Parecia que as palavras tinham mais potência do que antes

quando fizemos uma leitura básica com as intenções, mas sem nenhum aquecimento. A

impressão era de que, após o exercício proposto, fizéramos com que essas palavras

trouxessem consigo um vigor, uma energia que não vinha do peito e sim do ventre.

Propomo-nos a fazer a cena três vezes direto, até sentir que estava ficando um

pouco mais orgânico, nos levantamos posicionando o corpo no plano alto, mas

permanecendo naquele estado de conflito atingido anteriormente.

Despertou-se em nós a vontade de tocar a outra, mas nos seguramos para deixar

que a palavra tomasse a força que entendíamos ser necessária nessa cena. Percebemos

que energia estava se esgotando, não fizemos nenhum movimento brusco, mas sem

perder o olhar começamos a andar em círculos. A partir desse momento nos permitimos

uma aproximação, uma ação bem arriscada devido a toda energia gerada anteriormente,

paramos de nos movimentar e surgiu a vontade de segurar firme no braço da outra e


percebemos que o volume da voz ia diminuindo e ficando mais áspero, e de certa

maneira ameaçador também, era como se as palavras pudessem corroer o corpo.

Decidimos fazer um relaxamento devido ao cansaço em que nosso corpo se

encontrava. Feito isso resolvemos acatar a sugestão da professora Maria e colocamos

duas cadeiras nesse espaço, uma de costas para a outra, e sentadas começamos a falar o

texto. Era impressionante a necessidade que sentíamos de nos olharmos e de nos

tocarmos, e essa experiência gerou uma agonia interessante para a cena, que foi o desejo

de fazer algo ou falar algo que não era permitido, já que tínhamos como regra não nos

vermos, a sensação era que o esforço para que as palavras atingissem o outro era muito

maior. Esse empenho em modificar a parceira era essencial já que as personagens, de

uma maneira ou de outra, estão fazendo isso todo o tempo nas cenas, elas estão sempre

tentando convencer, persuadir ou obrigar a outra a fazer algo.

Concluímos o texto. Além das duas cenas, que no início do trabalho

julgávamos de muita importância na peça, incluímos outras pequenas partes. Como já

tínhamos, nos ensaios anteriores, nos aprofundado nos exercícios de pesquisa das

personagens, neste ensaio decidimos somente aquecer e ir para a cena com o texto.

Aos poucos fomos refinando nosso aquecimento, percebendo o que era

necessário para uma boa execução da cena, pois por muitas vezes a forma como nos

preparávamos influía de maneira absurda nela, o que era bom já que nosso trabalho de

pesquisa partia do corpo.

Dependendo do aquecimento, a produção de energia se modificava, em alguns

ensaios era escassa, e em outros, excessiva, por vezes nosso corpo permaneceu

bloqueado fazendo com que a energia não circulasse nele. Em conseqüência desses
aquecimentos, nosso modo de andar, de falar, principalmente o tom da fala se

modificava também, a energia gerada no aquecimento e durante o ensaio transformava

todo o exercício.

Quando pensamos em utilizar a narrativa para servir de contraponto à cena,

imaginamos que esta funcionaria como uma quebra da ação dramática e ao mesmo

tempo nos estimularia a experimentar outras formas de utilização da palavra e do

corpo, já que o narrador se dirige diretamente ao público e procura manter uma postura

neutra, um corpo mais formal, sem se deixar envolver pela cena que acontece. Seu

discurso era feito em 3ª pessoa, característica peculiar dessa figura. Porém,

percebemos cada vez mais que o distanciamento criado por ele estava dificultando a

assimilação do nosso trabalho. Mesmo resgatando para a cena, através do nosso corpo-

memória, a relação criada por nós duas na improvisação que antes era feita sem texto,

ainda assim, sair da neutralidade da narração e partir para a intenção requerida na cena

era esquisito. Fazíamos de forma mecânica e automática, e aquilo nos incomodava de

alguma maneira. Era como se tivéssemos a consciência de que aquilo não estava

funcionando, por mais que insistíssemos e ensaiássemos. Essa distância nos

prejudicava muito, tornando a organicidade e a precisão na quebra do corpo-narrador

para o corpo-personagem e vice-versa, um objetivo difícil de ser alcançado.

Conversando, chegamos enfim à conclusão de que aquela maneira de abordar a

história não nos ajudaria. Decidimos utilizar a figura do narrador para contar a história

porém, as descrições das cenas seriam feitas pelas próprias personagens, que contariam

a seqüência da história em 1ª pessoa, trazendo os acontecimentos para perto da

realidade delas. E nós que antes éramos narradoras neutras, passamos a ser

personagens-narradoras. Além de nos aproximarmos das personagens da peça,


tornando o jogo entre personagem-narrador e personagem mais fluido e harmônico,

possibilitamos que narração fosse feita sob o olhar de Lígia e Guida.

Ainda assim, havia uma preocupação em conservar o caráter neutro da narração

e isso provocou, particularmente na Cibelle, um distanciamento: “eu fiquei tão

preocupada em criar uma postura neutra que não percebi que era a atriz quem estava

ficando neutra. Eu acabei ficando monocórdia, não estava me deixando envolver pelo

que a própria personagem descrevia. E aquilo foi me deixando desesperada! Estava

ficando deprimida e neurótica!”. A perspectiva mudou de 3ª para 1ª pessoa porém, a

forma de dizer o texto permaneceu como se ele ainda fosse dito em 3ª pessoa. Era

como se ela tivesse passado a falar de si própria sem se deixar contaminar pelo que

dizia.

A outra dificuldade encontrada por nós refere-se à apropriação do texto. Após

decorarmos as falas e partirmos para a parte prática do trabalho, muitas vezes dizíamos

o texto e percebíamos que ele não estava sendo dito de maneira espontânea. Era como

se ele nos parecesse estranho, inapropriado.

Isso nos fez parar para refletir sobre como poderíamos encontrar a melhor

maneira de dizê-lo. A partir daí, conversamos a respeito das circunstâncias em que

aquelas personagens se encontravam e, trocando idéias, experimentamos várias

maneiras de dizer o texto. Em algum momento, após inúmeras tentativas, encontramos

o tom correto para cada diálogo, para cada acontecimento.

Após feito esse exercício, voltávamos para a cena, e repetíamos a seqüência da

peça procurando falar de maneira diferente a mesma coisa. E fomos, aos poucos, nos

apropriando do texto de tal maneira que notamos que aquela fala “bem-dita” ressoava
em nosso corpo, transformava-o. Era como se, a partir daquele momento, ela passasse

a nos pertencer. Mais uma vez a percepção mudou a partir de um aprofundamento no

estudo do texto. Era dele que tudo se extraía. Era a nossa fonte de descobertas, nossa

caixinha de surpresas.

Nesse processo de pesquisa de cena, através do corpo-memória, descobrimos

muitas coisas importantes para a realização do exercício, tais como: a relação de tensão

entre as duas personagens, as movimentações cênicas, a re-significação dos objetos em

cena, a precisão das quebras da narrativa para a cena e vice-versa, o desenvolvimento

das posturas do narrador e das personagens, o reconhecimento da importância vocal e,

principalmente, a percepção de que, como essa voz, também modifica o corpo e a

cena. Enfim, como em toda pesquisa, houve perdas necessárias e ganhos maravilhosos

para nosso trabalho.

Tínhamos um texto que nos agradava, havíamos alcançado a precisão narrativa

que gostaríamos de ter na cena e desenvolvemos uma seqüência pessoal de exercícios

corporais para o aquecimento do corpo, deixando-o no estado de atenção fundamental

para a cena. Depois de muitos ensaios e encontros percebemos o quão bonito e

surpreendente foi a trajetória do nosso trabalho. Porque, até então, nenhuma havia

assistido ao trabalho da outra. Não éramos amigas. Na verdade, nos

cumprimentávamos ocasionalmente na faculdade e no final das contas o que nos

aproximou foram nossas dificuldades em cena. E foi nossa cumplicidade que nos fez

permanecer juntas até agora.

Foi um trabalho prazeroso e agradável, dificilmente entrávamos em conflito,

isso não tornou nosso trabalho menos instigante, pelo contrário, tornava-o ainda mais

desafiador. Cada escolha, cada sugestão, cada palavra e cada ação eram das duas, cada
dificuldade, cada realização e cada entendimento eram das duas. Se optamos por fazer

em dupla era assim que deveria ser. Crescendo juntas, aprendendo juntas e errando,

errando muito, porém juntas. Concluímos que o maior e melhor ganho de desenvolver

um projeto como esse, em dupla, é quando é possível desnudar-se para o outro sem

pudor. Para isso é preciso respeito, cumplicidade e bom-humor, particularmente,

receita infalível para nossa investigação. Do começo ao fim, nos comprometemos a

nunca deixar faltar alegria no nosso trabalho, por mais caótico e confuso que estivesse

tudo, por mais dolorosa que fossem as mudanças, por mais crítico que fosse o fim (e

confessamos que foi bem crítico!), sabemos que só não foi pior porque aprendemos

nessa pesquisa a ceder. Fomos dupla, parceiras e amigas. Fomos atrizes, narradoras e

personagens. Fomos humanas e leoas...cheias de energia!


CONCLUSÃO:

Concluímos que é possível preparar o corpo pra cena resgatando nele sua

memória e constatamos o que o faz mover e como gerar essa energia que o move, e que

isso se dá devido à consciência das ações físicas e dos antecedentes das personagens.

Entendemos também que a fala pode alterar esse corpo, que através dela o corpo produz

energia para agir. Nelson nos facilita no que diz respeito ao texto, pois nas obras dele a

escolha da palavra é feita de forma exata para construção da dramaturgia.

No aquecimento físico feito pelos atores, entendemos, com a ajuda de

Grotowski, que não basta só tornar o corpo presente e vivo, preparado pra cena ou

consciente de todas as ações da personagem. É necessário que cada ator perceba e possa

criar um repertório de aquecimento pessoal, possibilitando o seu despertar corporal,

deixando-o pronto para o jogo teatral e permitindo uma resposta a esse jogo de forma

orgânica.

Concordamos com Stanislavski quando ele dizia que a arte está em constante

desenvolvimento, em constante movimento e exige constante renovação e auto-

aperfeiçoamento. Por isso, nos arriscamos em utilizar o conceito de memória corporal

de Grotowski para o desdobramento das cenas escolhidas em A Serpente e

posteriormente, para o entendimento corporal das personagens-narradoras no texto de

Nelson Rodrigues adaptado para o modo narrativo. E foi por isso também que,

insistimos em procurar alguma solução para o nosso desejo de fazer a peça inteira.

“Assumir as rupturas não equivale a suportá-las inconsciente ou


indiferentemente, mas sim a integrá-las numa concepção estética e
numa totalidade orgânica” (Roubine, 1998, pag.28)
BIBLIOGRAFIA:

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Paulo: Unicamp, 1995.

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• CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. Companhia das Letras, 1992.

• GROTOWSKI, Jerzy. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-


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Perspectiva, 1988.

• RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é... Rio de Janeiro: Agir, 2006.

• RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo de Nelson Rodrigues: Tragédias


Cariocas II - Vol. 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

• ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de


Janeiro: Zahar, 1998.

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Milano: Ubu libri, 1991.
Sites Consultados:

• PRADA, Cecília. Nelson Rodrigues: Anjo Pornográfico . Disponível em


<http://www.brazil-brasil.com/content/view/684/111/> acesso em
18/02/2010, às 14:29h.

• TOLENTINO, Cristina. Caleidoscopio.Art. Teatro Contemporâneo - Jerzy


Grotowski e o ator performer – O Ator para Grotowski. Disponivel em
<http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/
jerzygrotowski02.html > acesso em 12/02/10, às 01:35h.

• TOLENTINO, Cristina. Caleidoscopio.Art. Teatro Contemporâneo - Jerzy


Grotowski e o ator performer – O Ator para Grotowski. Disponivel em
<http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/jerzygrot
owski04.html> acesso em 12/02/10, às 15:35h.

• TOLENTINO, Cristina. Caleidoscopio. Art. Teatro Contemporâneo -


Konstantin Stanislawski - uma proposta ética e a busca da organicidade na
ação cênica. Disponível em <http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/
artescenicas/teacontemp/teacontemp04.html> acesso em 15/02/10, às
18:10h.
ANEXOS:

• Adaptação do texto A Serpente:

LIGIA – É o fim. Décio está fechando a mala. Jogo na cara dele que durante um ano e
meio de casamento, ele só me procurou três vezes e, ainda assim, não conseguiu realizar
o ato – o famoso ato! Décio é meu marido, ele irrita-se com tamanha ironia, por ter sua
virilidade ridicularizada pela própria mulher. Torna-se violento. Me bate, me humilha.
Ele quer me ouvir dizer: “Sou uma puta!” Décio me esbofeteia.

GUIDA – Ligia cai de joelhos. Eu entro, fico surpresa com a separação. Lígia chora de
raiva. Chama Décio de canalha o tempo todo. Nunca desconfiei que o casamento deles
estava falido.

LIGIA – Eu, meu marido, minha irmã, Guida e Paulo moramos no mesmo apartamento
e em quartos vizinhos. Eu ouvia os gemidos deles e imaginava que, ao não ouvir os
meus com Décio, Guida pelo menos desconfiasse que algo ia mal. E papai, coitado,
tinha perdão, pois era mesmo uma múmia, com todos os achaques de uma múmia.

GUIDA - Lígia me confessa que Décio nunca foi homem com ela. E me conta sobre a
humilhação e violência que sofreu nos braços de Décio no momento da separação.

LIGIA - Guida me consola. Diz também que nunca me deixará sozinha.

GUIDA - Lígia fala em se matar.

LIGIA - Digo que vou me atirar do décimo segundo andar. Sou interrompida por Guida,
que declara a mim sua lealdade.

GUIDA - Se você se atirar, eu me atiro.

LIGIA – Mas duvido dessa sinceridade. Guida jamais largaria sua vida pois tem o
marido que é muito mais importante que a morte. Então, eu corro e me sento sobre o
parapeito da janela.

GUIDA – Não, Lígia! Volta!

LÍGIA – Não dê um passo que eu me atiro. (Elevando a voz) Você está


pensando: - “Essa fracassada não se mata”. Você se julga a mulher mais feliz do
mundo e a mim a mais infeliz. Tão infeliz, que tive de me deflorar com um
lápis. Quantas vezes, te vi entrando no quarto com teu marido.

GUIDA (veemente) – Não precisa contar o que faço com o meu marido.

LÍGIA – Sai do meu quarto, anda! Ou fazes questão de me ver atirando daqui?
Queres ver, é isso?

GUIDA – Lígia, faça o que você quiser, mas escuta um minuto. Você quer ser
feliz como eu, quer? Por uma noite? Olhe para mim, Lígia. Quer ser feliz por
uma noite?
LÍGIA – Você não sabe o que diz.

GUIDA – Te dou uma noite, minha noite. E você nunca mais, nunca mais terá
vontade de morrer.

LÍGIA – É impossível que. Fale claro. O que é que você está querendo dizer?

GUIDA – É o que você está pensando, sim.

LÍGIA (atônita) – Paulo?

GUIDA – Lígia sai da janela. Vem conversar comigo.

LÍGIA – Olha pra mim. Você me está oferecendo uma noite com Paulo? Sexo,
como você mesma faz com ele? Por uma noite eu seria mulher de Paulo? É
isso?

GUIDA – É isso.

LÍGIA – Mas nunca houve entre nós nada que. Como uma noite, se ele não me
olhou, não me sorriu, não reteve a minha mão? E, de repente, acontece tudo
entre nós? E ele quer, sem amor, quer?

GUIDA – O homem deseja sem amor, a mulher deseja sem amar.

LIGIA – Guida acerta com Paulo, e eu vou ao seu encontro. Ao entrar no quarto de
Paulo, eu hesito. Não tenho mais certeza se aquilo foi uma boa idéia. Ir para a cama com
o cunhado é algo incestuoso; pior que ir para a cama com irmão. Mas Paulo não aceita
que eu desista. Pede um beijo. Eu hesito. Ele me domina. Introduz a língua na minha
orelha. Eu resisto. Grito.

GUIDA – Ligia chama por mim. Mas seu esforço é em vão. Os dois fazem um sexo
selvagem e ela grita durante toda a duração do ato. Enquanto isto, eu, no quarto ao lado,
enlouqueço, reviro-me, esfrego-me, torço-me, toco-me e tenho meu orgasmo sozinha.

LIGIA – Depois da tempestade nada é mais como era antes. Não consigo falar com
Guida; não consigo pensar. Estou espantada, é como se estivesse acabado de nascer.
Tenho vergonha de Guida.

GUIDA – Ela não consegue falar comigo, não quer, mas depois reconhece e elogia a
minha bondade. Acho que me arrependi do que aconteceu. Talvez não esperasse gritos
tão intensos. Sei que existem segredos entre Ligia e Paulo.

GUIDA – Agora, responde: - você se arrependeu?

LÍGIA (ressentida) – Sim!

GUIDA – Sua mentirosa.

LÍGIA (em súbita euforia) – Quer saber, quer? Sou mentirosa sim. O que eu
senti foi tudo – a vida e a morte. Agora posso viver e posso morrer.
GUIDA – Lígia me abraça. Deixa-se escorregar ao longo de meu corpo e beija-me os
pés. Ao encontrar-me com Paulo, imploro a ele que nunca mais falemos no assunto.
Estou confusa. Não digo mais coisa com coisa.

LIGIA – Ela age como se estivesse arrependida, mas depois afirma que tudo foi certo.
Se martiriza. Se acha vulgar. Elogia a bondade do marido mas num acesso de ciúmes,
grita com ele.

GUIDA - Proíbo-o de dizer sequer um bom dia que seja a Ligia. “Ela vai morrer!”.
Desespero-me quando meu marido, calmo, me diz que não.

LIGIA - Depois, chorando, contradiz-se:

GUIDA - “se a quisesse morta não faria o que fiz”.

LIGIA - Não quer que nos encontremos fora do apartamento. Enquanto isso, em outro
quadro vemos Décio, triunfante por ter redescoberto sua virilidade. Ele, que casara-se
virgem e foi menino e adolescente sem nunca ter conhecido sequer o prazer solitário,
nunca soube o que fazer.

GUIDA -Até que viu, um dia, a nova lavadeira: seus peitos, sua barriga, suas nádegas e
suas ventas triunfais. Deu um dinheiro para ela, mandou que ela fosse embora, que
telefonasse para ele e não viesse mais trabalhar. E nesse dia, aconteceu o milagre. Décio
proclamou que mudou, que é outro, disse que deu quatro sem tirar nessa crioula.

LIGIA - E então, eis que um dia ele aparece em meu quarto como se fosse um
assaltante. Tenta pedir desculpas. Quer a reconciliação. Não acredito que ele tenha tido
a coragem. Chamo-o de canalha. Mas ele não desiste. Me conta o milagre que lhe
ocorreu. Tenta me dominar. Grito e chamo por Paulo. Atiro-me nos braços de Paulo.
Queixo-me de que Décio quis violentar-me. Décio é expulso por Paulo da casa.

GUIDA - Estou confusa. Como é que Décio poderia violentar Lígia se ele era
impotente. Preciso falar com Lígia e peço a Paulo que sai do quarto e nos deixe a sós.

LIGIA – Guida me observa sem falar nada.

GUIDA – Ela percebe meu olhar.

LÍGIA – Você me acusa de quê?

GUIDA – Posso ter todos os defeitos, mas não sou cega!

LÍGIA – Não é cega e daí? Você quer dizer o quê?

GUIDA – Eu tenho medo de mim mesma, medo do meu marido. Eu posso


perder tudo, mas não meu marido. Você entende ou finge que não entende?

LÍGIA – Mas, finalmente, você quer de mim o quê?


GUIDA – Te dou tudo, tudo, menos o meu marido.

LÍGIA – E quem pediu teu marido? Fica com ele. (Feroz) Não é teu?

GUIDA – A mim, você não engana. Você não disse tudo.

LÍGIA – Te direi tudo. Tens um marido que te faz feliz, e segundo você própria,
a mais feliz das mulheres. Eu tenho um marido que me destruiu. Não sou mais
nada. E Poe na tua cabeça, criatura, que eu não fiz nada. Só fiz o que você
mandou. Foi você que disse: - “Vai”. Eu ia morrer e seria tão fácil morrer. Mas
você, você me salvou e disse: - “Te dou uma noite do meu marido”. Eu tive esta
noite. Só. E queres me tirar essa noite? Agora é tarde. Tudo já aconteceu.

GUIDA – Acabaste?

LÍGIA – Acabei. Mas não quero ouvir mais nada de você.

GUIDA – Pois ouve ainda. Você não pode pensar, ou olhar, ou tocar no meu
marido. Ou sorrir. A gente não sorri para todo mundo. Você não pode sorrir pra
meu marido. Escuta, Ligia. Você não me conhece. Paulo não me conhece, eu
própria não me conhecia. Eu me conheço agora. Se você quiser mais do que a
noite que já teve, eu mato você. Ou, então, o único homem que amei. (Com ar
de louca) Paulo dormindo e morrendo.

LÍGIA(batendo os pés como uma bruxa) – Chega, sua bruxa! Eu não agüento
mais!

GUIDA – Eu disse a meu marido: - Vocês não vão se encontrar lá fora. Quando
ele sair, você fica. Ficaremos sozinhas. Ouviu?

GUIDA – Eu discuto com Paulo. Reclamo com ele por não me procurar sexualmente.
Ele me abraça, eu me afasto. Com retórica e argumentos cínicos, porém convincentes,
ele finalmente consegue me convencer da sua sinceridade, e eu prometo não vigiá-los
mais.

LIGIA– Guida havia mudado. Passou tratar a mim e a Paulo cordialmente e até insistiu
que saíssemos juntos e nos encontrássemos fora. Eu e Paulo, então, nos encontramos.

GUIDA - Lígia teme a mim.

LIGIA - Pergunto a Paulo o que ele faria se flagrasse Guida tentando me matar. Mataria
a ela antes?

GUIDA - Lígia pensa na morte.

LIGIA - Sonho com Guida matando a mim e a Paulo; nos atirando do décimo segundo
andar. Receio que Paulo me deixe.

GUIDA - O que ela mais teme é morrer sozinha.


LIGIA - Não deixo Paulo ir embora. Seguro-o quando ele diz que é hora de partir. Nos
beijamos, nos agarramos em pé e depois nos amamos no mato.

GUIDA – Paulo chega em casa. Estou vestida e deitada na cama. Me sento. Paulo me
beija a testa. Eu protesto, quero beijá-lo na boca, mas depois não aceito o beijo, não
deveria ter que pedir. Encontro-me com Lígia e arranco dela a confissão que os dois
ficaram juntos. Discuto com ela na frente de Paulo.

LIGIA – Paulo e Guida discutem na cama. Ele nega que tenha ficado comigo.

GUIDA - Nos beijamos loucamente. Mas logo me desprendo.

LIGIA - Sente o gosto de sexo na boca do marido. Desespera-se.

GUIDA - Certa da mentira de Paulo, decido que não dormiremos mais na mesma cama.
Ameaço ir embora.

LIGIA - Paulo corre para o peitoril da janela, e solta às mãos.

GUIDA - Pede que eu fique atrás dele e o empurre já que ameacei matá-lo. Paulo pede
que eu me sente com ele.

LIGIA – Ele ajuda Guida a sentar-se. Diz que vai amá-la como nunca amou. Quer vê-la
gritar como eu. Isso irrita Guida. Paulo pergunta se fosse eu quem estivesse sentada ali
se ele deveria empurrar.

GUIDA – Devia empurrar. Me tira daqui. Tenho medo.

LIGIA – Neste momento, Paulo solta Guida e a empurra. Guida grita.

GUIDA - Ao ouvir meus gritos, Lígia corre para o quarto. Bate na porta. Ela quer
entrar. Paulo sai da janela e abre a porta. Ela entra. Ligia percebe o que aconteceu e
acusa Paulo. Ligia esta frenética, teme não chorar minha morte. Está desesperada,
caminha de um lado a outro. Paulo tenta segurar Ligia, que se desprende feroz.

LÍGIA – Não me toque! Eu não sou a culpada! Foi você que matou! Assassino!

LÍGIA – O assassino está aqui! É o meu cunhado! Assassino! Assassino!


Assassino...
• Músicas utilizadas na cena:

Explode Coração - Gonzaguinha


Composição: Gonzaguinha

Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder


O que não dá mais pra ocultar e eu não quero mais calar
Já que o brilho desse olhar foi traidor
E entregou o que você tentou conter
O que você não quis desabafar

Chega de temer, chorar, sofrer, sorrir, se dar


E se perder e se achar e tudo aquilo que é viver
Eu quero mais é me abrir e que essa vida entre assim
Como se fosse o sol desvirginando a madrugada
Quero sentir a dor desta manhã

Nascendo, rompendo, rasgando, tomando, meu corpo e então eu


Chorando, sorrindo, sofrendo, adorando, gritando
Feito louca, alucinada e criança
Eu quero o meu amor se derramando
Não dá mais pra segurar, explode coração...

O Pastor – Madredeus
Composição: Pedro Ayres Magalhães / Rodrigo Leão / Gabriel Gomes / Francisco Ribeiro

Ai que ninguém volta


ao que já deixou
ninguém larga a grande roda
ninguém sabe onde é que andou

Ai que ninguém lembra


nem o que sonhou
(e) aquele menino canta
a cantiga do pastor

Ao largo
ainda arde
a barca
da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
deixa a alma de vigia
Ao largo
ainda arde
a barca
da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
acordar é que eu não queria.
• Texto original – A Serpente:

É a separação. Décio está fechando a LÍGIA (com esgar de choro) – Não,


mala. Fecha. Levanta-se e vira-se não!
para Lígia. A mulher, que olha com
maligna curiosidade. DÉCIO – Você não me conhece!
Quietinha! Você me viu chorando a
DÉCIO – Pronto. minha impotência. Mas eu sou também
homem que mata. Queres morrer?
LÍGIA – Você não vai falar com Agora!
papai?
Décio a esbofeteia.
DÉCIO – Pra que falar com teu pai?
Não falei com a principal interessada LÍGIA (com voz estrangulada) – Não!
que é você? Perde as ilusões sobre teu
pai. Teu pai é uma múmia, com todos DÉCIO – Olha pra mim, anda, olha!
os achaques das múmias.
Pausa. Lígia olha.
LÍGIA – Então por que você não
desaparece? Pode deixar que eu DÉCIO – Diz agora que és uma puta.
mesma falo. Como é suja a nossa Diz, que eu quero ouvir.
conversa.
LÍGIA (lenta) – Sou uma prostituta.
DÉCIO – Não me provoque, Lígia!
DÉCIO (trincando as palavras) – Eu
LÍGIA – Acho gozadíssima sua não disse prostituta. Eu quero puta.
insolência. Não se esqueça que você...
LÍGIA (soluçando) – Vou dizer. Sou
DÉCIO – Pára! uma puta.

LÍGIA – Me procurou só três vezes. Décio a solta.


Ou não é?
DÉCIO – Agora olha pra mim e presta
DÉCIO – Continua e espera o resto. atenção. Se você fizer um comentário
sobre a nossa intimidade sexual, seja
LÍGIA – Três vezes você tentou o ato, com quem for. Teu pai, essa cretina da
o famoso ato. Sem conseguir, ou Guida, uma amiga, ou coisa que o
minto? valha, venho aqui e te dou seis tiros. E
quando estiveres no chão, morta, ainda
Décio avança para a mulher. Segura te piso a cara e ninguém reconhecerá a
Lígia pelo pulso. cara que eu pisei.

DÉCIO – Cala essa boca.


Décio a esbofeteia. Lígia cai de GUIDA – Fala sério. O amor de vocês.
joelhos com um fundo soluço. Nunca, até este dia, você se queixou do
seu casamento. Outro dia, eu disse a
DÉCIO – Vai-te pra puta que te pariu! Paulo: - “Lígia não me esconde nada”.
Até agora, você não disse uma palavra
Décio apanha a mala. Sai. Entra Guida. contra Décio.

GUIDA – O que é que está havendo LÍGIA – Um canalha.


nesta casa?
GUIDA – Só hoje você descobriu que
LÍGIA – Ah, Guida! Você chegou no é um canalha?
pior momento. Nunca houve um
momento tão errado! LÍGIA – Você fala do nosso amor.
Quero que saiba o seguinte. Décio
GUIDA – Não fala assim. Olha pra disse, antes de ir embora, que papai é
mim, Lígia. Você e Décio brigaram? uma múmia, com todos os achaques
das múmias. (Violenta) E, então, eu
LÍGIA – O que você acha? descobri tudo. Papai é a múmia. Por
isso ele podia achar que eu e Décio
GUIDA – Não acho nada. Parece que
éramos felicíssimos. Mas você, que
está todo mundo maluco nesta casa.
não é múmia, você tinha obrigação de
Cheguei da missa quando Décio ia
enxergar a verdade, Guida!
saindo. Não falou comigo, aquele
imbecil. Cumprimentei, e nem bola. GUIDA – Mas criatura, nós moramos
Você me recebe como nem sei o quê. no mesmo apartamento. Uma parede
Afinal, o que houve? separa as tuas intimidades e as minhas.

LÍGIA – Nos separamos. LÍGIA – Por isso mesmo. Ouve-se no


meu quarto tudo o que acontece no teu.
GUIDA – Quem?
Chega a ser indecente. Ouço os teus
gemidos e os de Paulo. Mas você
LÍGIA – Ora, quem! Guida, quer me
nunca ouviu os meus. Simplesmente
fazer um favor? Vá para seu quarto.
porque no meu quarto não há isso.
Depois conversaremos.
Esse mistério nunca te impressionou?
GUIDA – Você e Décio? E tão de
GUIDA – Mas Paulo, que também não
repente? Não acredito que vocês
é múmia, acha você felicíssima.
tenham se separado. Você teria me
falado antes. Mas escuta, papai sabe?
LÍGIA – Se parecíamos felizes, é
porque somos dois cínicos.
LÍGIA – Sabe como? Nem desconfia.
GUIDA – Não acredito.
GUIDA – E o amor?
LÍGIA – Está me chamando de
LÍGIA – Que amor?
mentirosa?
GUIDA – Lígia, vamos fazer o GUIDA – Quer dizer que você não
seguinte. Você quer que eu fale com acredita mais em mim?
teu marido?
Lígia baixa a cabeça. Pausa. Fala.
LÍGIA (chocadíssima) – O quê?
LÍGIA – Acredito mais do que nunca.
GUIDA – Ou que Paulo fale?
GUIDA – Quero saber tudo o que
LÍGIA – Você acha que eu devo fazer houve entre você e seu marido.
as pazes com um canalha? Você sabe
quando o nosso casamento acabou? Lígia vem à boca de cena. Fala para a
platéia como o tenor na ária.
GUIDA – Não chora.
LÍGIA (aos gritos) – Ele me
LÍGIA (chorando) – Na primeira noite esbofeteou. Torcia meu braço e com a
em que dormimos na mesma cama. mão livre me batia na cara. Eu guardei
Quando ele disse para mim: - “Vamos a minha virgindade para o bem-amado.
dormir”, eu me senti perdida. E o tempo passando, e eu cada vez
mais virgem. Hoje, ele falou, rindo: -
GUIDA – Você quer dizer que Décio “Diz que és uma puta”. Respondi: -
não é homem? “Sou uma prostituta”. Berrou: -
“Puta!” E eu disse: - “Sou uma puta!”
LÍGIA – Para as outras, talvez. Para Basta!
mim, nunca.
Lígia cai de joelhos. Guida vai fazer
GUIDA – Tão másculo! sua ária.

LÍGIA – Você sabe a olho nu, quando GUIDA – Você foi sempre tudo pra
o homem é másculo? mim. Um dia, eu te disse: - “Vamos
morrer juntas?” e você me respondeu:
GUIDA – E, agora, o que é que você - “Quero morrer contigo”. Saímos para
vai fazer? morrer. De repente eu disse: - “Vamos
esperar ainda”. E eu preferia que todos
LÍGIA – Nada.
morressem. Meu pai, minha mãe,
menos você. E se você morresse, eu
GUIDA – Não é resposta.
também morreria. Mas tive medo,
LÍGIA – Então, me diga: - o que é que quando você se apaixonou e quando eu
vou fazer? (Novo tom) Eu sei o que me apaixonei.
vou fazer. Mas é uma coisa que só eu
Lígia levanta-se. Guida recua.
sei.
GUIDA (arquejante) – Você não pode
GUIDA – Segredo. E eu não posso
ficar sozinha.
saber?
LÍGIA – Já estou sozinha.
LÍGIA – Não pode saber.
GUIDA – E eu? E senti que amavas mais do que eu, e
que eras mais amada do que eu.
LÍGIA – Você tem seu marido. Seu
marido é tudo para você. Eu não sou GUIDA – Mas escuta! Escuta!
tudo para você. Ou sou?
LÍGIA – É esta a verdade. Você saiu
GUIDA – Meu marido é tudo pra mim. da igreja com essa felicidade nojenta.
Você é tudo pra mim.
GUIDA (atônita) – Você está me
LÍGIA – Escuta. odiando?

GUIDA – Você sabe, LÍGIA (selvagem) – Quantas vezes,


você me disse: - “Eu sou a mulher
LÍGIA – Agora me deixa falar. Sabe o mais feliz do mundo”. Só você podia
que eu vou fazer? É tão fácil, tão ser a mulher mais feliz do mundo. Eu,
simples morrer. Tomei horror da vida. não.
Guida, eu não fui feita para viver.
GUIDA – Mas eu não tive nenhuma
GUIDA – Se você se matar. Você está intenção de. Lígia você me conhece e
pensando em morrer? sabe. Eu só quero te ajudar, Lígia.

LÍGIA – Talvez. LÍGIA – Você só me daria a vida, a


morte, no dia em que eu pedisse para
GUIDA – Moramos num décimo morrer contigo? Ou foi você que pediu
segundo andar. Se você se atirar, eu para morrer comigo?
me atiro.
GUIDA – Lígia, deixa eu te dizer uma
LÍGIA – Jura? palavra?

GUIDA – Juro. LÍGIA – Fica com tua felicidade e me


deixa morrer.
LÍGIA – Mentirosa. Deixando teu
marido, não. Teu marido é muito mais GUIDA – Quer me ouvir?
importante do que a morte. Ou você
pensa que não sei, não vejo, não LÍGIA – Como você é hipócrita.
escuto?
GUIDA (chorando) – Lígia, nunca
GUIDA – Deixa eu te dizer uma coisa. duas irmãs se amaram tanto.

LÍGIA (Violenta) – Quem fala sou eu. Lígia corre para a janela.
Você se lembra do nosso casamento?
Na mesma igreja, na mesma hora, no GUIDA – Não, Lígia! Volta!
mesmo dia, mesmo padre. Quando te
olhei na igreja, senti que a feliz eras tu. LÍGIA – Não dê um passo que eu me
atiro. (Elevando a voz) Você está
pensando: - “Essa fracassada não se Por uma noite eu seria mulher de
mata”. Você se julga a mulher mais Paulo? É isso?
feliz do mundo e a mim a mais infeliz.
Tão infeliz, que eu tive que me GUIDA – É isso.
deflorar com um lápis. Quantas vezes,
te vi entrando no quarto com teu LÍGIA – Mas nunca houve entre nós
marido. nada que. Como uma noite, se ele não
me olhou, não me sorriu, não reteve a
GUIDA (veemente) – Não precisa minha mão? E, de repente, acontece
contar o que eu faço com o meu tudo entre nós? E ele quer, sem amor,
marido. quer?

LÍGIA – Sai do meu quarto, anda! Ou GUIDA – O homem deseja sem amor,
fazes questão de me ver me atirando a mulher deseja sem amar.
daqui? Queres ver, é isso?
Luz sobre ao quarto de Paulo. Lígia
GUIDA – Lígia, faça o que você entra.
quiser, mas escuta um minuto. Você
quer ser feliz como eu, quer? Por uma LÍGIA – Estou aqui.
noite? Olhe pra mim, Lígia. Quer ser
feliz por uma noite? PAULO – Vem.

LÍGIA – Você não sabe o que diz. LÍGIA – Paulo. Vim só dizer que não
vamos fazer nada. É uma loucura.
GUIDA – Te dou uma noite, minha Você não acha que é uma loucura?
noite. E você nunca mais, nunca mais
terá vontade de morrer. PAULO – Talvez.

LÍGIA – É impossível que. Fale claro. LÍGIA – Fazer isso com o


O que é que você está querendo dizer? cunhado...Pior que o irmão é o
cunhado. Concorda?
GUIDA – É o que você está pensando,
sim. PAULO – Quero te dizer uma coisa.
Quando Guida falou comigo, eu
LÍGIA (atônita) – Paulo? comecei a me sentir um canalha. Como
é boa minha mulher, como é doce e tão
GUIDA – Paulo. amiga, e tão irmã.

Lígia sai da janela. Vem conversar LÍGIA – Por isso mesmo, porque
com Guida. Guida é assim, eu...

LÍGIA – Olha pra mim. Você está me PAULO – Eu estou aqui, você está
oferecendo uma noite com Paulo? aqui. Esquece Guida.
Sexo, como você mesma faz com ele?
LÍGIA – Desculpe.
PAULO – E que mais? LÍGIA – Língua no meu ouvido, não.
Olha que eu grito. Não Paulo, Guida
LÍGIA – Posso ir? está ouvindo!

PAULO – Menos do que nunca. Lígia solta gargalhadas superagudas.


Paulo derruba a cunhada na cama.
LÍGIA – Não brinque, Paulo. Imobiliza-lhe o rosto.

PAULO – Mas um beijo, você dá? PAULO – Olha. Vou te fazer uma
coisa.
Lígia recua diante dele.
LÍGIA – Aquilo, não deixo! É um
LÍGIA – Não abuse de mim. incesto!

PAULO – E o beijo? PAULO – Escuta aqui. Fica quieta,


que Guida está ouvindo. Não diz nada.
LÍGIA – Mas só o beijo.
Paulo vira-se e fica virado para os pés
PAULO – Só o beijo.
de Lígia.
Lígia o beija na face. Paulo a segura.
LÍGIA (arquejante) – Não quero, não
quero. Não falo mais com você. Não
PAULO – Agora o meu.
faz assim, meu amor.
Ela é dominada por Paulo e beijada
Luz sobre Guida na cama de Lígia.
com desesperado amor. Lígia
Guida revira-se na cama. Grito de
esperneia.
Lígia. Guida levanta-se. Em pé, de
LÍGIA (rouca) – Não faça isso. Você braços abertos, Guida esfrega-se nas
me mata. paredes. Grito de Lígia. Guida cai de
joelhos. Tem seu orgasmo. Guida está
Lígia está falando. Paulo fecha-se a de quatro, rodando e gemendo grosso.
boca com o seu beijo. Luz apaga e acende, como se fosse a
passagem do tempo.
LÍGIA (com voz estrangulada) – Não,
não! LÍGIA – Você era a ultima pessoa que
eu podia ver neste momento.
PAULO – Quieta!
GUIDA – E é só isso que você tem
LÍGIA – Você mordeu minha língua. para me dizer?

PAULO – Deixa eu te dizer uma coisa. LÍGIA – Depois, conversamos.

Paulo introduz a língua na orelha da GUIDA – Por que não agora?


cunhada.
LÍGIA – Entenda, Guida. Agora eu Volta Lígia para Guida. Apanha e
não estou em condições. Estou incapaz beija a mão da irmã.
de ligar as palavras numa frase.
GUIDA – Lígia.
GUIDA – Quer dizer que você não tem
nada para me dizer? LÍGIA – Não me pergunte nada.

LÍGIA – Nada. GUIDA – Novamente com vergonha


de mim?
Guida quer afastar-se, mas a outra a
segura. LÍGIA – Eu me ajoelhei e pedi a Paulo
para não te contar tudo.
LÍGIA – Perdão.
GUIDA – Contar o quê?
GUIDA (sardônica) – Vai falar?
LÍGIA – Ele pode contar tudo, menos
LÍGIA – Tenho tanto, tanto para te uma coisa.
dizer.
GUIDA – A mim, ele conta tudo.
GUIDA – Eu, se pudesse, não entraria
mais no meu quarto. LÍGIA – Essa coisa, não.

LÍGIA – Você é tão melhor do que eu. Paulo vem à boca de cena.
E Paulo tão melhor que nós duas.
PAULO (gritando) – Eu perguntei à
GUIDA (ironizando) – Melhor do que Guida: - E se você se arrepender, e se
eu? Lígia se arrepender, e se eu (batendo
no peito), e se eu me arrepender?
LÍGIA – Eu disse que era melhor do
que você? Ou você quer ser melhor do GUIDA – Agora, responde: - Você se
que ele? Não, Guida. Ninguém é arrependeu?
melhor do que você. Nenhuma irmã
faria isso por outra irmã. LÍGIA (ressentida) – Sim!

Lígia vem à boca de cena. Guida baixa GUIDA – Sua mentirosa.


a cabeça como se não visse nem
ouvisse nada que a irmã vai gritar. LÍGIA (em súbita euforia) – Quer
saber, quer? Sou mentirosa, sim. O que
LÍGIA – Quando entrei no quarto, foi eu senti foi tudo – a vida e a morte.
como se Guida me levasse pela mão. E Agora eu posso viver e posso morrer.
o meu medo era o incesto. O cunhado
é assim como um irmão. E foi como se Lígia abraça-se à irmã. Deixa-se
Guida me despisse. E, então, ele veio escorregar ao longo do seu corpo e
acariciar a minha nudez. Só você me beija-lhe os pés. Luz no quarto de
entregaria ao seu amor. Paulo. Entra Guida.
PAULO – Ah, querida! GUIDA – Lígia disse que se deflorou
com um lápis.
GUIDA – Eu queria te pedir que...
PAULO – Deixa, esquece. Nesse caso,
PAULO – Fala. o lápis foi tão impotente quanto o
marido.
GUIDA – Te pedir que nunca a gente
falasse nisso. Jura. GUIDA – Você não precisava dizer
isso. É de uma intimidade repugnante.
PAULO – Juro. Deixa eu ver uma coisa.

GUIDA – Não jure tão depressa! PAULO – Por que você se atormenta?

PAULO – Está bem. Juro! GUIDA – Deixa eu te beijar. (Pausa;


experimenta o gosto). Tua boca está
GUIDA – Não brinque! com gosto de sexo.

PAULO – Já vi uma coisa. PAULO – Estou fingindo que não


entendo. Mas vem cá. Eu também
GUIDA – O quê?
tenho as minhas curiosidades. Quero
saber se você se arrependeu ou não?
PAULO – Você está triste.
GUIDA – Não sei. Ainda não sei. Eu
GUIDA (desesperada) – Não, Paulo,
te digo mais tarde. Ou antes, te digo já.
não. Você é que mudou.
Não me arrependi.
PAULO – Você se arrependeu?
PAULO – Guida, vou te dizer uma
GUIDA – Juro, Paulo! Apenas não coisa. Nunca, nenhum homem foi tão
quero falar nunca mais no que houve. sincero como eu neste momento. Não
se arrependa jamais do que você fez
PAULO – Vem cá. por sua irmã. Pode se arrepender de
tudo. Tudo o que você fez na vida.
Guida se deita ao seu lado. Não do que, por tua causa, nós
fizemos.
GUIDA – Preciso dormir.
Paulo vem à boca de cena.
PAULO – Eu também.
PAULO – Quando Guida chegou e
GUIDA (bruscamente) – Ah, Paulo, eu disse que Lígia estava a um milímetro
não grito como Lígia! da morte. Então, Guida contou que
tivera uma idéia, uma idéia para salvar
PAULO – Meu anjo, ela entrou aqui a irmã. Achei a coisa tão
virgem. monstruosamente linda. Por tudo que
há de mais sagrado, tive vontade de
explodir em soluços. Nunca vi, na
minha vida, nada mais terno, mais PAULO – Mas não fala em morte.
amigo e de um amor mais brutal. Eu
pensei: - “Sou um canalha diante da GUIDA (gritando) – Quer dizer que é
minha mulher”. isso? Você não quer a morte de Lígia.
Ela não pode morrer, eu posso.
Volta para Guida.
PAULO – Você quer mesmo a morte
GUIDA – Eu precisava tanto ouvir de Lígia?
isso. Agora estou compreendendo.
Você fala e eu começo a achar que sou GUIDA (começa a chorar) – Se eu
melhor do que sou, mais amorosa do quisesse a morte de Lígia, teria feito o
que sou. E por isso você me conquista que fiz? (Muda de tom) Mas ela não
e eu vou morrer conquistada por ti. pense que vai se encontrar com você
fora daqui.
PAULO – Meu bem , você é que não
sabe nada de si mesma. PAULO – Só eu sei que você é uma
santa.
GUIDA – Paulo, olha. Eu sou uma
mulher sem bondade. Quando Lígia Décio num quarto com a crioula das
saiu do quarto, eu pensei, vê só: - ele ventas triunfais.
está cansado de toda uma noite. E,
então, eu vou lá, vou provocá-lo, DÉCIO – Tu me achas homem?
querendo ser tão amada como Lígia.
Eu pensei isso. É o que eu estou CRIOULA – Nunca vi um cara tão
pensando agora. home.

PAULO – Mas isso é a maldade mais DÉCIO (cada vez mais sórdido) –
doce da terra. Quando você estava lá em casa, vê lá
se minha mulher podia imaginar que a
GUIDA – Lígia vai morrer. gente ia trepar, hem?

PAULO – Deita aqui. Mas quem vai CRIOULA – Me diz: - a tua tem um
morrer? rabo de quem toma. Como é? Toma?

GUIDA – Lígia. DÉCIO (às gargalhadas) – Você


manja, hem, negra safada?
PAULO – Ninguém vai morrer, meu
coração. Não fala em morte. Esquece CRIOULA – Mas tu encarava mesmo
Lígia. aquele rabo?

GUIDA (violenta) – Esqueço, se ela te DÉCIO – Ou duvidas?


esquecer, e se tu a esqueceres. Se ela
não te olhar. Não quero um bom-dia CRIOULA – Quer dizer que as ricas é
entre você e Lígia. Quando você como nós?
estiver fora, ela estará aqui e comigo.
DÉCIO – Piores. cama, lado a lado. De repente, digo à
minha mulher: - “Vamos dormir...” “O
CRIOULA – Tua mulher é uma suja, sexo de minha mulher é uma orquídea
uma indecente. deitada.” A partir de então, todas as
noites, eu esperava. Até que, um dia, vi
DÉCIO – Xinga a minha mulher, a nova lavadeira. Os peitos, a barriga,
xinga! as cadeiras e as ventas triunfais. Pela
primeira vez, tive um desejo
CRIOULA – Galinha! fulminante. Em dois minutos, resolvi o
caso. Falei à crioula: - “Toma essa
DÉCIO (enfurecido) – Mais!
nota, sai daqui, telefona pra mim e não
precisa mais trabalhar”. Nesse mesmo
CRIOULA – Metia-lhe a Mao naquela
dia, tudo aconteceu como um milagre.
cara. Ih! A hora?
Ouçam, ouçam! Eu sou outro. Dei, dei
DÉCIO – Seis! nessa crioula, quatro sem tirar.

CRIOULA – Já? Tenho que ir, filho! Quarto de Lígia. Entra Décio como
Agora quando vai ser? um assaltante.

DÉCIO – Te aviso. Não, não. Vem DÉCIO (contido) – Ainda me


sexta-feira. conhece?

CRIOULA – Um beijão. LÍGIA – O que é que você veio fazer


aqui?
Sai a crioula. Décio vem para o meio
do palco. Começa a berrar como um DÉCIO – Não adivinha?
possesso.
LÍGIA – Saia do meu quarto.
DÉCIO – Até o dia do meu casamento
DÉCIO (falsamente doce) – Eu saio,
eu não tinha sido homem com mulher
eu saio. Mas vamos conversar sem
nenhuma. Aquele senador disse na
briga. Lígia, te peço perdão pelo que
Tribuna: - “Eu me casei virgem”.
disse e fiz quando saí de casa.
Ouçam, ouçam todos. Eu não conhecia
nem o prazer solitário. Na véspera do
LÍGIA – Você sai ou não sai?
meu casamento. Ouçam! Ouçam! Um
psicanalista me disse: - “Se não pode DÉCIO – Lígia, eu já pedi perdão,
copular por vias normais, use a via Lígia. O que eu fiz com você foi uma
anal”. Eu, então, expliquei: - “Mas eu indignidade, reconheço. Escuta aqui,
vou me casar amanhã”. E lhe disse escuta. Eu me afasto de você. Quero só
mais: - “Fui um menino e um te falar. Lígia, você sempre me disse: -
adolescente sem o prazer solitário”. E “Eu sou virgem”.
o cara me responde: - “Tudo isso pra
mim é perfumaria”. Pois eu me casei e LÍGIA – Como tudo isso é nojento.
começou a nossa noite. Os dois, na
DÉCIO – E, no dia seguinte, dizia DÉCIO – Quebro a cara dele, a tua, da
outra vez: - “Continuo virgem”. E eu tua irmã. Mulher idiota, escuta: - foste
não podia fazer nada. testemunha da minha impotência.
Agora sou outro. Você conheceu um
LÍGIA – Ou você pensa que foi para Décio que não existe mais. Com a
continuar virgem que me casei? Você mulher que arranjei, eu dei quatro sem
é um canalha. tirar.

DÉCIO (baixo, mas violento) – Não Paulo grita de fora do quarto.


me trate assim. Agora eu não mereço
Lígia, eu quero completar. Estou aqui PAULO – Lígia!
por causa de sua virgindade. Agora eu
posso, Lígia, agora eu posso. Você vai Décio tapa com a mão a boca de
deixar de ser virgem, hoje, agora. Lígia. Paulo e Guida entram de
Graças a mim. roldão. Décio solta a mulher. Lígia se
lança nos braços de Paulo. Aos
LÍGIA – Desde quando você deflora soluços.
alguém?
LÍGIA – Ele quis me violentar!
DÉCIO – Você vai ver o que é
homem. PAULO – Saia!

LÍGIA – Canalha! DÉCIO – Saia você do meu quarto!

DÉCIO – Cala essa boca! Eu não sou LÍGIA – O quarto é só meu!


mais canalha!
GUIDA – Pelo amor de Deus!
Décio aproxima-se da cama. Lígia
pula para o outro lado. DÉCIO – Eu só quero saber quem é o
marido: - eu ou ele.
LÍGIA – Se me tocar. Quer o
escândalo? PAULO – Você é um reles ex-marido!

Décio vai por cima da cama para DÉCIO – Vou sair. Mas não se
junto de Lígia. Puxa a mulher. Ficam esqueça, Lígia. Eu voltarei. Eu sou
colados. outro, Lígia.

DÉCIO – Houve o milagre. PAULO – Se vier, como veio hoje, eu


o mato! Eu o mato!
LÍGIA – Você pensa que vai me
violentar? Sai Décio.

DÉCIO – Você está dominada. LÍGIA – Queria me violentar.

LÍGIA (gritando) – Eu chamo Paulo! GUIDA (gritando) – Mas violentar


como? Você não disse que vocês
nunca foram mulher e homem, por ia morrer e seria tão fácil morrer. Mas
culpa dele? você, você me salvou e disse: - “Te dou
uma noite do meu marido”. Eu tive esta
PAULO – Pelo amor de Deus, não noite. Só. E queres me tirar esta noite?
vamos conversar nesse tom! Agora é tarde. Tudo já aconteceu.

GUIDA – Aliás, como é estranho ver o GUIDA – Acabaste?


marido querendo matar por causa da
LÍGIA – Acabei. Mas não quero ouvir
cunhada e, Paulo, quero falar com
mais nada de você.
Lígia no tom que eu escolher.
GUIDA – Pois ouve ainda. Você não
PAULO – Eu te espero, no quarto. pode pensar, ou olhar, ou tocar no meu
marido. Ou sorrir. A gente não sorri
Sai Paulo. para todo mundo. Você não pode sorrir
pra meu marido. Escuta, Ligia. Você
LÍGIA – Você me acusa de quê?
não me conhece. Paulo não me conhece,
eu própria não me conhecia. Eu me
GUIDA – Posso ter todos os defeitos,
conheço agora. Se você quiser mais do
mas não sou cega!
que a noite que já teve, eu mato você.
LÍGIA – Não é cega e daí? Você quer Ou, então, o único homem que amei.
dizer o quê? (Com ar de louca) Paulo dormindo e
morrendo.
GUIDA – Eu tenho medo de mim
mesma, medo do meu marido. Eu posso LÍGIA (batendo os pés como uma
perder tudo, mas não meu marido. Você bruxa) – Chega, sua bruxa! Eu não
entende ou finge que não entende? agüento mais!

LÍGIA – Mas, finalmente, você quer de GUIDA – Eu disse a meu marido: -


mim o quê? Vocês não vão se encontrar lá fora.
Quando ele sair, você fica. Ficaremos
GUIDA – Te dou tudo, tudo, menos o sozinhas. Ouviu?
meu marido.
LÍGIA – Ouvi?
LÍGIA – E quem pediu teu marido?
Fica com ele. (Feroz) Não é teu? Paulo e Guida no quarto.

GUIDA – A mim, você não engana. GUIDA – Paulo, Paulo! O que PE que
Você não disse tudo. há com você?

LÍGIA – Te direi tudo. Tens um marido PAULO – Comigo? (Com certo


que te faz feliz, e segundo você própria, desespero). Guida, não há nada comigo!
a mais feliz das mulheres. Eu tenho um
GUIDA – Estou achando você tão
marido que me destruiu. Não sou mais
estranho, tão desconhecido.
nada. E põe na tua cabeça, criatura, que
eu não fiz nada. Só fiz o que você
PAULO – Eu não fiz nada, ou fiz?
mandou. Foi você que disse: - “Vai”. Eu
GUIDA – Faz uma semana que Lígia PAULO – Guida, nenhum homem, no
esteve aqui. Vocês estiveram aqui. mundo, desejou tanto uma mulher,
Uma semana e você não me fez uma como eu te desejo. Naquela vez,
carícia distraída. Você não me queimando em febre, com 40 graus,
procurou mais. nós fizemos amor.

PAULO – Não te procurei mais como? GUIDA – Querido, agora eu quero. Eu


sei que você me ama, como eu te amo.
GUIDA – Não seja cínico, Paulo. Não vou vigiar mais, nem você, nem
Lígia. Ela pode sair quantas vezes
PAULO – Você nunca me falou assim. quiser. Eu só quero é acreditar em
você.
GUIDA – Paulo, você não me
procurou mais, sexualmente. Encontro no exterior. Paulo e Lígia.
Entendeu, agora?
LÍGIA – Ah, Paulo!
Paulo quer puxá-la.
PAULO – Vamos sentar, ali.
PAULO – Meu amor.
LÍGIA – Estou assustadíssima.
GUIDA (reagindo) – Assim não
quero. Olha pra mim. Vamos PAULO – Agora, você é que me
conversar. No dia em que falamos assusta.
sobre Lígia, você se convenceu
depressa demais. Como se fosse a LÍGIA – Bobagem minha. (Muda de
coisa mais natural do mundo. tom) É a Guida, quem pode ser?

PAULO – Meu amor, você me disse PAULO – Mas ela não mudou
que era a vida ou a morte de sua irmã. contigo?

Guida grita. LÍGIA – Por isso mesmo. Há muito


tempo, não é tão doce comigo. Me
GUIDA – Não vamos falar desse pediu perdão.
assunto. Eu quero que você não se
esqueça que sou a mulher amada todos PAULO – Então, meu bem, ótimo.
os dias. E, de repente, você passa toda
uma semana, toda um semana, Paulo. LÍGIA – Paulo, o que é que ela
esconde? Sorria para mim e tinha um
PAULO – Então, vem. olhar de ódio. O que é que essa mulher
quer de mim?
GUIDA – Que conversa é essa de
então vem? Você me chama porque eu PAULO – Não chame sua irmã de
reclamei? Não quero seu amor, pronto. mulher.
LÍGIA – Te juro, Guida é capaz de amor, meu amorzinho. Mas você não
tudo, capaz de me matar, Paulo. sabia o que estava dizendo. Se fosse
outra, você diria o mesmo. Nessa hora,
PAULO – Calma, meu bem. o homem diz tudo, a mulher diz tudo.

LÍGIA – Está certo. De vez em PAULO – Eu estava louco!


quando, eu me assusto. Por falar nisso,
você sabe o que achei lindo, outro dia? LÍGIA – Hoje, foi tua mulher que me
Foi quando você disse que matava disse: - “Vai, vai – insistiu - , vai
Décio. Por minha causa. E eu, Paulo, passear”. Queria que a gente se
que me lancei nos teus braços. Você encontrasse.
pensa que Guida perdoou ou
esqueceu? PAULO – Você precisa sair lá de casa,
meu coração.
PAULO – Meu bem, foi um detalhe.
LÍGIA – Você me expulsa?
LÍGIA – Agora me diz. Responde, e a
gente muda de assunto. Se Guida PAULO – Olha.
quisesse me matar, você a mataria
antes? LÍGIA (exaltada) – Você me expulsa
da minha casa? Ou você se esqueceu
PAULO – Isso é uma hipótese tão que papai deu o apartamento aos dois
cruel! casais e queria que nós morássemos
lá?
LÍGIA – Parece incrível que precisei
esperar dez dias para falar contigo, PAULO – Você não quer me ouvir!
para te olhar. Hoje, vou te olhar muito.
Vou segurar a tua mão. Você está LÍGIA – Posso te fazer uma pergunta?
gelado, meu bem. Mãos frias!
PAULO – É melhor não fazer
PAULO (segurando a mão de Lígia) – perguntas.
Você também está gelada. Em mim, é
uma febre. LÍGIA – Mas vou fazer assim mesmo.
Não desvia o rosto, olha para mim.
Lígia apanha e beija a mão do
cunhado. PAULO – Estou olhando.

LÍGIA – E se Guida estiver por aqui, LÍGIA – O que é que eu sou para
escondida, vendo a gente. E se você? O que é que eu represento?
aparecer de repente? Perdão, meu bem. Você tem coragem, fala, de responder?
É interessante. Beijo tua mão. Tão
PAULO – Te amo.
inocente beijar a mão. Me contigo,
como se fosse tua amante e você nunca
me disse que gosta de mim. Só naquela
noite é que você me chamou de meu
LÍGIA – Só mais uma perguntinha. De Lígia está em pé, colada a Paulo.
quem é que você gosta mais? De mim
ou de Guida? LÍGIA – Não tenho medo.

PAULO – Te amo. PAULO – Pois eu tenho medo.

LÍGIA – Então, não precisa responder LÍGIA – Deixa que todos venham, que
à segunda pergunta. parem, que olhem.

Lígia apanha a mão de Paulo e a Entra Paulo. Guida está vestida na


beija. cama. Guida senta-se. Paulo a beija
na testa.
PAULO – Meu bem, vamos embora.
GUIDA – Agora você me beija na
LÍGIA (atônita) – Você vai me deixar? testa?

PAULO (desesperado) – Te deixo PAULO – Não reclama de tudo, meu


porque tenho que te deixar. coração.

LÍGIA – Não, não quero, não admito. GUIDA – Ao sair, ao voltar, você
Eu quero ser amada. Meu bem, escuta. sempre me beijou na boca.
Você me responde?
PAULO – Meu bem, vem cá.
PAULO – Tenho medo de tuas
perguntas. GUIDA – Não aceito o beijo que tive
de pedir. E olha (começa a chorar).
LÍGIA – Não é nada demais. É o Onde é que vocês se encontraram? Foi
seguinte: - vocês têm se amado muito? no Alto da Boa Vista, ouvindo a
cascatinha? Mas olha. Não é com você
PAULO – Nunca mais. Não consigo que eu quero falar. É com essa que está
desejar Guida. aí fora, deixando passar o tempo, para
entrar.
Novamente, ela beija a mão de Paulo.
PAULO – Vamos jantar fora.
LÍGIA – Quero tanto ser tua outra vez.
Pode fazer tudo. Até aquilo eu te deixo GUIDA (desesperada) – Estou
fazer. esperando a tua mulher, a mulher que
eu deixei de ser.
PAULO – Vem cá. Vamos ali.
PAULO – Não diga que Lígia é minha
LÍGIA – Vamos fazer em pé? Eu até mulher.
gostaria.
GUIDA (frenética) – Tua mulher, sim!
PAULO – Na mata. É bom amar com Eu não sou nada! Sabe o que eu sou?
gente passando. E pode aparecer um Sou tua cunhada!
assaltante. Não tens medo?
PAULO (desatinado) – Pára Guida, LÍGIA (fora de si) – Foi, foi!
pára!
Paulo aparece na porta.
Pausa.
PAULO (para Lígia) – Não confesse
GUIDA – Lígia entrou. nada!

Guida passa para o quarto da irmã. GUIDA (num berro) – Já confessou.


Lígia está de costas para Guida. Diz a ele que já confessaste!

GUIDA – Bom passeio? LÍGIA (enfurecida) – Não confessei


nada! É mentira!
LÍGIA – Estou tão cansada.
PAULO – Ninguém confessou nada!
GUIDA – Eu te disse: - Pode sair. Não
tenho nada com seus programas. E GUIDA (para ele) – É uma puta!
você saiu. Você telefonou marcando o
encontro e foi com meu marido. Sabe PAULO – Agora chegou! Vamos
onde? No Alto da Boa Vista. embora!

LÍGIA – Vamos conversar amanhã? GUIDA (soluçando) – Cínica! Cínica!

GUIDA (violenta) – Agora! Eu sei que PAULO – Vem amor!


vocês não conversaram, apenas.
Conheço meu marido, minha irmã não Saem Paulo e Guida. Aparecem no
conheço, mas meu marido, conheço. quarto.
Também te conheço pelos gritos. Hoje,
na hora do amor, ele te levou por um GUIDA – Ainda me chama de meu
atalhozinho. E te perguntou, não te amor!
perguntou? “E se aparecesse um
PAULO – Senta aqui, comigo.
assaltante, ou dois, ou três assaltantes?
Se eles te vissem nua? E se um deles
Sentam-se na cama.
me apontasse o revolver, tu dirias: -
“Não reage para não morrer”. Depois, PAULO – Olha pra mim.
os bandidos fugiriam. Vejo você
desmaiada. E se eu te possuísse GUIDA – Estou olhando.
também, depois dos outros?” Agora, (Impulsivamente) Gostas de mim?
responde: - foi assim que ele te falou?
Vai dizer? PAULO – Ou duvidas?

LÍGIA – Não digo. GUIDA (soluçando) – Duvido?

GUIDA – Ou preferes que eu te PAULO – Não acredito na tua duvida.


arranque os olhos? Foi assim que ele te E você, gosta de mim?
falou, ou não?
GUIDA – O meu amor não importa. duas mãos. Eu cairei e em três segundo
Importa o teu. estarei morto.

Guida agarra o marido com violência. GUIDA – Eu não mataria você, nunca.
Lígia, sim, Lígia eu mataria.
GUIDA – Diz, agora, como se eu
estivesse morrendo. Você me ama? PAULO – Me dá um beijo.

PAULO – Te amo. E teu amor por Os dois se beijam com loucura. Guida
mim? se desprende.

GUIDA – Não respondo! GUIDA – Foi assim que vocês se


beijaram, hoje?
PAULO – Eu é que não acredito no teu
amor. Mentes para mim. PAULO – Perdi você.

GUIDA – Você gosta de Lígia. GUIDA (vivamente) – Perdão, meu


(Dolorosa) Mas te peço: - não minta. bem. Eu não queria dizer isso, eu. Tua
Gosta de mim? boca. Sopra no meu rosto. Outra vez o
cheiro de sexo.
PAULO – De ti, só de ti. Ou você não
percebeu que só gosto de ti? Você PAULO – Senta comigo.
disse que me matava quando eu
estivesse dormindo, ou matava tua Ele ajuda Guida a sentar-se.
irmã. Você me mataria? Não responde,
já, não. PAULO – Eu te seguro. E agora? Tem
medo?
Paulo se encaminha para a janela.
GUIDA – Contigo, não tenho medo de
GUIDA – O que é que você vai fazer? nada.

PAULO – Olha. PAULO (abraçado à mulher) – Hoje,


vou te amar como nunca. Quero ver
Num movimento ágil e elástico, Paulo você gritar como Lígia.
senta-se no peitoril da janela.
GUIDA – Outra vez ela, sempre ela.
GUIDA – Não faça isso, Paulo! Será assim, sempre assim, até minha
morte. Morrerei ouvindo você dizer o
PAULO – Vem cá. Fica atrás de mim. nome de Lígia.

Guida obedece. PAULO – Se fosse ela, não você. Ela


sentada aqui, abraçada por mim. Eu
PAULO – Assim. Eu estou solto, com devia empurrar?
as minhas mãos levantadas, sem
nenhum apoio. Você disse que me GUIDA – Devia empurrar.
mataria? Basta que me empurre com as
PAULO – E não te espantaria a morte LÍGIA – O assassino está aqui! É o
de tua irmã? meu cunhado! Assassino! Assassino!
Assassino!
GUIDA – Me tira daqui. Tenho medo.

Paulo a solta e empurra. Grito de


Guida. Lígia bate na porta. Ele vai
abrir. Entra Lígia.

LÍGIA (desatinada) – Que foi isso?

PAULO – Guida caiu.

LÍGIA – Foi você.

PAULO – Ou pensava que fosse


quem?

LÍGIA – Nunca pensei que...

PAULO (desesperado) – Vamos


descer. Temos que dizer que foi um
acesso de loucura.

LÍGIA (frenética) – Mas eu tenho


medo de não chorar!

PAULO – Fala baixo, pelo amor de


Deus, fala baixo! Pensa na tua culpa e
chora!

LÍGIA – Eu sei que não vou chorar!

PAULO – Vamos!

Paulo quer segura-la. Ela se


desprende feroz.

LÍGIA – Não me toque! Eu não sou


culpada! Foi você que matou!
Assassino!

Lígia corre para a janela.

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