Vous êtes sur la page 1sur 100

www.revistapesquisa.fapesp.

br
Pesquisa FAPESP janeiro de 2019

janeiro de 2019 | Ano 20, n. 275

inteligência
artificial Campo da ciência da
computação cresce em São Paulo
desde os anos 1990 e impulsiona
projetos acadêmicos e comerciais

Vacina do Anestésico de Potencial eólico Literatura de Diretora da


Butantan ação psicodélica no Brasil cordel ganha Comissão Europeia
contra pode beneficiar atenderia reconhecimento Cristina Russo
Ano 20  n.275

dengue leva pacientes o triplo do e status defende plano


a acordo com com depressão consumo atual de patrimônio de acesso aberto
multinacional persistente de energia cultural a pesquisas
Pesquisa Brasil
Toda sexta-feira, das 13 às 14h, você tem um encontro
marcado com a ciência na Rádio USP FM.

Reapresentação aos sábados, às 18h, e às quintas, às 2h da manhã

Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas A cada programa, três Você também pode baixar
sobre ciência, tecnologia, meio entrevistados falam sobre o e ouvir o programa da semana e
ambiente e humanidades. Os temas são desenvolvimento de pesquisas os anteriores na página de
selecionados entre as reportagens da e inovações e escolhem a Pesquisa FAPESP na internet
revista Pesquisa FAPESP programação musical (revistapesquisa.fapesp.br/podcast)

São Paulo
Em janeiro, ouça as
93,7 mHz
melhores entrevistas
e os programas
Ribeirão Preto especiais de 2018
107,9 mHz

O programa também vai ao ar na Web Rádio UNICAMP


Toda segunda, às 13h. www.rtv.unicamp.br
fotolab o conhecimento em imagens

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Nem grande nem pequena


Quando procurava as pererecas Aparasphenodon ararapa em bromélias na
região de Ilhéus, Bahia, a bióloga Amanda Lantyer muitas vezes encontrava
o topo da cabeça do anfíbio tapando o orifício que abrigava ovos ou girinos,
no fundo do poço central da planta. A visão desta foto, espiando para fora,
é mais rara. “Com muito cuidado, eu precisava tirá-los com uma espátula”, conta.
Depois de muito medir os animais, as bromélias e o volume de água dentro delas
durante o mestrado na Universidade Estadual de Santa Cruz, ela concluiu
que os machos escolhem a dedo as bromélias onde passam a vida inteira:
com o diâmetro que lhes permita usar a cabeça para fechar a passagem.

Imagem enviada por Amanda Santiago Lantyer-Silva, atualmente estudante


de doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro

PESQUISA FAPESP 2XX | 3


janeiro  275

CAPA p. 18
Inteligência
artificial evolui
e leva à criação
POLÍTICA C&T 46 Internacionalização 66 Medicina
de novos projetos As iniciativas que Transplante de útero de
acadêmicos e 36 Financiamento promovem intercâmbio doadora morta realizado
comerciais Indicadores mostram efeito entre cientistas brasileiros em São Paulo é o primeiro
p. 18 da recessão nos dispêndios nos Estados Unidos bem-sucedido no mundo
em P&D em 2016
50 Propriedade 68 Entrevista
Ferramenta 42 Entrevista intelectual O biólogo brasileiro
tecnológica Cristina Russo, da Paraíba se destaca em Alexandre Antonelli será o
nasceu como Comissão Europeia, pedidos de patentes diretor científico de Kew
consequência fala sobre acesso aberto Gardens, no Reino Unido
às pesquisas com
de estudos
financiamento público CIÊNCIA 72 Meteorologia
matemáticos Projeto investigará como
p. 24 54 Saúde nanopartículas produzem
Vacina do Butantan temporais na Amazônia
David Cox, do contra dengue leva
ENTREVISTA farmacêutica a fechar 76 Arqueogenômica
MIT-IBM, diz que Nei Lopes acordo de até DNA indica uma
saúde é apenas Compositor US$ 100 milhões história complexa para a
uma das áreas e especialista em domesticação do milho
beneficiadas pelos culturas da África 59 Instituto paulista
é autor de cerca fabrica anualmente
avanços
de 30 mil verbetes 100 milhões de doses TECNOLOGIA
p. 26
p. 30 de nove imunizantes
78 Energia elétrica
Ilustração de capa 
60 Psiquiatria Potencial eólico brasileiro
Nik neves Estudos sugerem que é três vezes maior
anestésico de ação do que o consumo atual
psicodélica pode ser
benéfico para tratar 84 Empreendedorismo
depressão severa Prêmio reconhece projetos
científicos com potencial de
64 Equipes de Natal e aplicação na área médica
Ribeirão Preto testam
ayahuasca contra doença
www.revistapesquisa.fapesp.br
Leia no site todos os textos da revista em português, inglês
e espanhol, além de conteúdo exclusivo

vídeo  youtube.com/user/pesquisafapesp

p. 60 p. 78

Pela sobrevivência das línguas indígenas


86 Engenharia 11 Dados A linguista Luciana Storto fala sobre o trabalho para
aeronáutica Dispêndios em P&D no evitar o desaparecimento de idiomas nativos
IEAv e empresa Orbital estado de São Paulo bit.ly/vLinguasIndigenas
desenvolvem vant de
velocidade hipersônica 12 Notas

95 Resenha
HUMANIDADES Patrimônio colonial podcast  bit.ly/PesquisaBr
latino-americano:
88 Cultura Urbanismo, arquitetura, especial
Cordel alcança fase arte sacra, de Percival O futuro dos museus
de reconhecimento e Tirapeli. Por Everaldo brasileiros
institucionalização Batista da Costa Solange Ferraz de Lima,
do Museu Paulista, Carlos
92 Cinema 96 Carreiras Brandão, do MAC-USP, e
Os fatos pouco conhecidos Pesquisadores e Alexander Kellner, do
sobre David Perlov, bolsistas contam como Museu Nacional,
brasileiro que influenciou a organizam a rotina discutem estratégias de
cinematografia israelense nas férias gestão, financiamento e
conservação
bit.ly/igPBr14dez18
SEÇÕES

3 Fotolab

6 Comentários

7 Carta da editora

8 Boas práticas
Código holandês propõe
discussão sem medo de
represálias sobre
integridade científica
p. 88
Conteúdo a que a
comentários cartas@fapesp.br
mensagem se refere:

Revista impressa

Reportagem on-line Gênero Museu da Natureza


A situação retratada na reportagem sobre Que seja mantido e cuidado como merece
Galeria de imagens
a falta de apoio e o ambiente hostil que (“Nova vitrine no sertão”, edição 272).
Vídeo contribuem para baixa adesão de mulheres Lúcia Cruz
às áreas Stem é lamentável (“Onde as cientis-
Rádio
tas não têm vez”, edição 273). Nós, mulheres, Mais uma valorosa conquista de Niède Guidon
ainda temos muito pelo que lutar. e de sua equipe!
Katarina Duarte Fernandes Luiz Rios

contatos

revistapesquisa.fapesp.br Fábrica Ipanema Vídeo


Muito me alegrou a reportagem sobre a Fantástico o vídeo de divulgação de um
redacao@fapesp.br
Fábrica de Ferro Ipanema (“Dois séculos trabalho de valor inestimável (“Línguas
PesquisaFapesp
de Ipanema”, edição 273). Em busca de dados indígenas”). Parabéns à Pesquisa FAPESP e à
PesquisaFapesp genealógicos de minha família, me encantei linguista!
pesquisa_fapesp com a história em torno da fábrica e os deta- Germana Barata

Pesquisa Fapesp lhes de seu funcionamento, tão bem esmiu-


pesquisafapesp
çados por Eschwege, desde a ida, em 1810, de Que bom que não há apenas preocupação com
Varnhagem para o morro de Araçoiaba para o desaparecimento dos idiomas tradicionais,
cartas@fapesp.br projetar a fábrica. mas também ação real e projetos acadêmicos
R. Joaquim Antunes, 727 Idivaldo Antonio Micali com tal intuito.
10º andar
UFRN – Natal/RN Marcos Lima Cerqueira
CEP 05415-012
São Paulo, SP
A interdisciplinaridade entre biologia e quí-
Assinaturas, renovação Efeito estufa mica pode elucidar a instigante dinâmica da
e mudança de endereço Sobre a nota “Na Holanda, Justiça obriga natureza (“As aparências enganam”).
Envie um e-mail para governo a cortar gases do efeito estufa” Maria de Fátima Santos
assinaturaspesquisa@
(edição 273), não é com lei que se vai resolver
fapesp.br
ou ligue para esse problema. É preciso uma solução na
(11) 3087-4237, questão da obtenção de energia. Correção
de segunda a sexta, Henrique Ribeiro Na reportagem “Apoio à pesquisa inovadora
das 9h às 19h no Ceará” (edição 274), Mona Lisa Moura de
Oliveira é professora da Universidade Estadual
Para anunciar 
Contate: Paula Iliadis 
Museu Nacional do Ceará (UECE), e não da federal (UFC), e
Por e-mail: Parabenizo Pesquisa FAPESP pelas repor- tem formação em engenharia mecânica.
publicidade@fapesp.br tagens sobre os museus brasileiros (“Mu-
Por telefone: seus em crise”, edição 272).
(11) 3087-4212 Alexander Kellner
Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
Museu Nacional-UFRJ por motivo de espaço e clareza.
Edições anteriores
Preço atual de capa
acrescido do custo de
postagem.
Peça pelo e-mail: A mais vista em dezembro no Facebook
clair@fapesp.br
Identificado esqueleto de sindicalista desaparecido
Licenciamento
durante a ditadura bit.ly/2Gxxswl
de conteúdo
Adquira os direitos de
reprodução de textos 20.193 pessoas alcançadas
e imagens
de Pesquisa FAPESP. 261 reações
Por e-mail:
léo ramos chaves

mpiliadis@fapesp.br 7 comentários
Por telefone:
(11) 3087-4212 124 compartilhamentos

6 | janeiro DE 2019
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
carta da editora
Marco Antonio zago
Presidente

Eduardo Moacyr Krieger


vice-Presidente

Das redes neurais à


Conselho Superior

Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr


Krieger, Ignacio Maria Poveda Velasco, João
Fernando Gomes de Oliveira, José de Souza Martins,

inteligência artificial
Marco Antonio Zago, Marilza Vieira Cunha Rudge,
Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski,
Ronaldo Aloise Pilli e Vanderlan da Silva Bolzani

Conselho Técnico-Administrativo

Carlos américo pacheco


Diretor-presidente
Alexandra Ozorio de Almeida | diretora de redação
Carlos Henrique de Brito Cruz
Diretor Científico

fernando menezes de almeida


Diretor administrativo

N
o começo dos anos 1990, pesqui- Há alguns anos, o Butantan e outros
issn 1519-8774 sadores paulistas submeteram à institutos de pesquisa e empresas come-
Conselho editorial FAPESP projetos de pesquisa da çaram a desenvolver vacinas contra den-
Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa,
Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, então pouco conhecida área de redes neu- gue usando material cedido pelos NIH, os
rais artificiais, a simulação via computa- institutos nacionais de saúde dos Estados
Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de
Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani e Mônica Teixeira

comitê científico dor do funcionamento do sistema nervoso Unidos. O projeto brasileiro avançou mais
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana central. Seu objetivo é reconhecer padrões rapidamente, chamando a atenção da mul-
Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos
Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Euclides de que permitiriam que a máquina “aprenda”. tinacional norte-americana MSD, uma das
Mesquita Neto, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra
Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, Hernan A inteligência artificial (IA) nasceu nos concorrentes. Hoje, na fase três dos testes
Chaimovich, José Roberto de França Arruda, José Roberto
Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marco anos 1940, mas, como pode acontecer na clínicos, a última, tem apresentado resul-
Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves,
Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles ciência, estava à frente do seu tempo. Pre- tados muito promissores, levando a MSD
Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli

Coordenador científico
cisou do avanço da capacidade dos compu- a propor uma parceria com a instituição
Luiz Henrique Lopes dos Santos tadores para dar conta da imensa quanti- paulista (página 54).
diretora de redação
Alexandra Ozorio de Almeida
dade de dados a processar. Para contornar Um aporte de US$ 26 milhões no Butan-
editor-chefe
o empecilho, desenvolveu-se a vertente tan permitirá à norte-americana alcançar
Neldson Marcolin
baseada em linguagem de programação, o estágio de desenvolvimento da vacina
Editores Fabrício Marques (Política de C&T),
Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), que cria regras para resolver um determi- brasileira; se o produto for ao mercado
Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores espe­ciais),
Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro e Yuri Vasconcelos nado problema. e vender bem, o repasse poderá alcançar
(Editores-assistentes)
Hoje, o conhecimento produzido por es- mais US$ 75 milhões ao longo de 24 me-
repórteres Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade
se tipo de estudo é ubíquo, presente em so- ses. A multinacional deterá os direitos de
redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira
do Prado (Mídias Sociais) luções oferecidas por softwares para fugir comercialização no exterior.
arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora
de infografia), Felipe Braz (Designer digital), Júlia Cherem Rodrigues
do trânsito, recomendações do serviço de Até o momento, foram investidos no
e Maria Cecilia Felli (Assistentes) streaming de vídeos ou na leitura biométri- projeto R$ 224 milhões, oriundos de fontes
fotógrafo Léo Ramos Chaves
ca para saque no caixa automático, entre como o BNDES e o Ministério da Saúde,
banco de imagens Valter Rodrigues
inúmeros exemplos. Não mais restrita à além da FAPESP. Se bem-sucedido, signi-
Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil)
academia, onde segue como uma atraente ficará o reconhecimento internacional em
área de pesquisa, inclusive por seu caráter pesquisa e desenvolvimento do instituto,
revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro

Colaboradores Arthur Vergani, Augusto Zambonato,


Bárbara Malagoli, Domingos Zaparolli, Everaldo Batista da multidisciplinar, a IA hoje domina projetos que já produz 100 milhões de doses de va-
Costa, Françoise Terzian, Igor Zolnerkevic, Luisa Destri,
Nik Neves, Rafael Garcia, Renato Pedrosa, Suzel Tunes, Valéria de empresas que resultam em novos pro- cina anualmente, de nove tipos diferentes.
França, Veridiana Scarpelli
dutos e processos industriais, recebendo
Revisão técnica Adriana Valio, José Roberto de França Arruda,
Luiz Augusto Toledo Machado, Maria Beatriz Borba Florenzano, financiamentos como do programa Pipe, *
Sérgio Queiroz, Roberto Marcondes Cesar Junior, Walter Colli
da FAPESP, desde 1997 (página 18). Tradicional forma literária publicada em fo-
É proibida a reprodução total ou parcial Foi com a ajuda de um projeto Pite, outro lhetos desde o final do século XIX, o cordel
de textos, fotos, ilustrações e infográficos
sem prévia autorização programa de fomento à inovação da Funda- foi reconhecido como Patrimônio Cultural
Tiragem  29.300 exemplares
IMPRESSão Plural Indústria Gráfica
ção, em parceria com o SUS, que o Instituto Imaterial Brasileiro pelo Iphan (página 88).
distribuição Dinap Butantan se destacou no desenvolvimento Eclética, essa forma de poesia não se esqui-
GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
de uma vacina contra dengue, doença que va de nenhum assunto – inclusive ciência.
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, acomete 390 milhões de pessoas por ano Fica aqui um simpático exemplo. Na obra
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, no mundo, segundo estimativa da OMS. Há Trigésimo aniversário da conquista da lua,
uma vacina no mercado desde 2015, pro- declama o cordelista Gonçalo Ferreira da
Alto da Lapa, São Paulo-SP

Secretaria de Desenvolvimento Econômico,


Ciência, Tecnologia e inovação
duzida pela francesa Sanofi Pasteur, mas é Silva: “Busca o homem conhecer/ A ori-
Governo do Estado de São Paulo
recomendada apenas para quem contraiu gem e dimensão/ Do universo e se está/
a dengue anteriormente, apresenta efeitos Em permanente expansão/ Pois conhecer
adversos, além de baixa taxa de eficácia. nossa casa/ É a nossa obrigação”.

PESQUISA FAPESP 275 | 7


Boas práticas

Sem culpa nem policiamento


Código holandês propõe discussão permanente e sem medo de represálias sobre
integridade científica e destaca deveres das instituições de pesquisa

E
m vez de destacar a punição de casos de má produzir estratégias abrangentes e sem lacunas.
conduta ou a criação de órgãos de controle Um dos capítulos enumera um rol de 61 boas práticas
centralizados, o novo Código de Conduta para de pesquisa, como dar crédito a todos os que
Integridade Científica da Holanda, que entrou em participaram do trabalho, evitar exageros na
vigor em outubro, valoriza a capacidade de as divulgação de resultados, jamais publicar em revistas
instituições resolverem seus problemas de forma de baixa qualidade e nunca manipular citações de
autônoma e o debate permanente no ambiente artigos. Uma novidade em relação ao código anterior
acadêmico sobre erros e comportamentos capazes é uma lista de 21 deveres que universidades e
de comprometer a integridade científica. “O enfoque instituições científicas devem abraçar, referentes a
não está em policiar os pesquisadores, mas em treinamento e supervisão, cultura de pesquisa,
estimulá-los a discutir sem culpa os dilemas que gerenciamento de dados, publicação de resultados
vivem”, escreveu, em artigo publicado na revista e normas éticas (ver quadro).
Nature Index, o epidemiologista Lex Bouter, membro A ideia de que a má conduta não é um desvio de
da equipe que elaborou o código – o documento ordem individual, mas recebe influência do ambiente
de 30 páginas atualizou as diretrizes em vigor e da cultura em que os pesquisadores atuam, vem
desde 2004. “Queremos que os nossos pesquisadores ganhando espaço no debate internacional. Em 2015, a
sejam capazes de trabalhar em um ambiente aberto 4ª Conferência Mundial sobre Integridade Científica,
no qual se sintam responsáveis e ao mesmo tempo realizada no Rio de Janeiro, adotou essa abordagem
acompanhados. A ciência só pode se desenvolver ao discutir a responsabilidade de instituições na
se as pessoas puderem compartilhar promoção de condutas responsáveis de pesquisa
preocupações e discutir as falhas que cometem”, (ver Pesquisa FAPESP nº 233). Na 6ª edição da
afirmou Bouter, professor de metodologia científica conferência, programada para junho em Hong Kong,
da Universidade Livre de Amsterdã. uma das metas será formular sugestões que deem base
É certo que o documento traz ideias já bastante a um novo sistema de recompensas na carreira dos
difundidas, mas ele causa impacto ao compilar pesquisadores. A intenção é propor um modelo de
recomendações que ajudam as instituições a avaliação que não se restrinja a analisar indicadores

8 | janeiro DE 2019
bibliométricos, como número de
Lição de casa artigos e citações. “O novo código
garante que a Holanda irá
Recomendações do código holandês para dirigentes acompanhar os avanços internacionais
de universidades e instituições científicas no campo da integridade científica”,
disse, no lançamento do documento,
Keimpe Algra, professor de filosofia da
Treinamento e supervisão Gerenciamento de dados Universidade de Utrecht, coordenador
da equipe que elaborou o texto.
Produzido por representantes de
✶ Oferecer treinamento em ✶ Criar uma infraestrutura que
organizações como a Academia Real
integridade científica a viabilize o gerenciamento de dados
de Artes e Ciências do país e a
pesquisadores de todos de pesquisa
Associação de Universidades da
os níveis e ao pessoal técnico Holanda, entre outras, o código é
✶ Garantir que dados, códigos de
✶ Incorporar a integridade científica software e protocolos sejam destinado a instituições de pesquisa e
às atividades educacionais guardados permanentemente de ensino superior públicas e privadas
e a publicações científicas.
✶ Estimular práticas responsáveis ✶ Armazenar material usado em
Os responsáveis pelo documento
no ambiente de pesquisa pesquisas por um prazo apropriado
esclarecem que, embora ele possa ser
✶ Garantir que jovens pesquisadores ✶ Tornar acessíveis dados de útil para toda a comunidade científica,
e alunos de doutorado tenham pesquisa, respeitando sigilo quando não há a intenção de que tenha força
supervisores qualificados necessário de legislação ou se torne referência
para decisões da Justiça, como
✶ Ter critérios transparentes ✶ Divulgar os critérios para consulta
acontece em diversos países. A decisão
de contratação, promoção e de dados e protocolos de seguir as normas deverá ser
remuneração tomada de forma voluntária pelas
instituições. Da mesma forma, o
Publicação e disseminação
código propõe que os pesquisadores
Cultura de pesquisa
discutam de forma livre equívocos e
✶ Promover acordos com órgãos de deslizes e ajudem uns aos outros a
✶ Adotar boas práticas de fomento e outras instituições seguir as boas práticas. “O que há de
pesquisa e agir se elas estiverem para dar acesso e divulgar os dados mais importante no código é a
sendo ignoradas produzidos pelos pesquisadores necessidade de remover do sistema de
✶ Valorizar boas práticas no contexto ✶ Estimular a comunicação
recompensa acadêmica aquele tipo
de incentivo que gera comportamentos
de diferentes disciplinas cuidadosa e rigorosa dos resultados
perversos, como troca de citações
de experimentos
✶ Zelar pelo respeito aos padrões de entre pesquisadores, e de promover
qualidade e integridade na pesquisa um clima aberto em que os cientistas
✶ Fazer cumprir regulamentos, NORMAS E PROCEDIMENTOS possam discutir seus problemas sem
códigos de conduta e protocolos ÉTICOS
medo de represálias”, afirma Bouter.
No capítulo final, o código descreve
relevantes
como as instituições devem lidar com
✶ Estimular pesquisadores a discutir ✶ Criar, quando necessário,
casos comprovados de má conduta.
boas práticas, a ajudar colegas a comitês de aconselhamento sobre A severidade da punição deve
segui-las e a informar desvios temas que envolvam a qualidade ser proporcional à falta cometida.
da pesquisa O documento faz distinção entre o que
✶ Divulgar no site da instituição é má conduta em pesquisa e pode
informações sobre suas políticas, exigir uma sanção rigorosa, inclusive
atividades, posições e interesses
a demissão do pesquisador desonesto,
e o que são práticas questionáveis e
✶ Selecionar conselheiros sobre faltas de menor importância – essas
integridade científica que talvez não mereçam penalidades.
possam ser consultados de forma Os casos menos graves devem,
ilustrações  arthur vergani

rápida e sigilosa contudo, ser amplamente discutidos


✶ Designar um comitê ou um
pelos pesquisadores a fim de garantir
que não aconteçam de novo e os
gestor para avaliar alegações de
dirigentes das instituições
má conduta
devem tomar medidas concretas
para preveni-los. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 275 | 9


Violações sistemáticas na revisão de artigos

Vinte e seis artigos científicos do No caso de uma conferência sobre


engenheiro eletricista Antonio negócios e governo on-line realizada
Orlandi, professor da Universidade em 2011, 1,2 mil resumos foram
de Áquila, na Itália, foram retratados. À época, o IEEE não
retratados pela revista IEEE deu detalhes sobre os problemas
Transactions on Electromagnetic detectados nos trabalhos, mas
Compatibility. O Instituto dos instituiu um comitê de especialistas
Engenheiros Eletricistas e para redobrar a atenção com a
Eletrônicos (IEEE), responsável qualidade dos resumos
pelo periódico, anunciou que apresentados nos mais de 1,7 mil
houve “irregularidades no eventos que patrocina a cada ano.
processo de revisão por pares” O cientista da computação
nesses trabalhos de Orlandi e em Lior Patcher, do Instituto de
outros três papers da revista. Tecnologia da Califórnia (Caltech),
Até recentemente, o italiano era o em Pasadena, explicou à revista
editor-chefe da publicação. Science que várias áreas do
O IEEE não deu detalhes sobre os conhecimento aplicado preferem
problemas encontrados nos divulgar seus achados de forma
manuscritos nem acusou expressa em conferências, em vez
diretamente Orlandi de fraudar de submetê-los ao processo de
procedimentos que estavam sob revisão de revistas científicas
sua responsabilidade. Informou tradicionais, que é mais
apenas que foram identificadas demorado. “Isso permite um
violações sistemáticas das políticas compartilhamento rápido de ideias,
da instituição sobre revisão de mas erros escapam com mais
papers. Elas foram praticadas por facilidade”, afirmou.
três editores, que acabaram
banidos da organização. Seus
nomes não foram divulgados.

ilustração  arthur vergani


Em nota, Michael Forster,
diretor-executivo do IEEE, disse Transparência em alta
que a instituição criou um comitê
para reavaliar todos os seus
processos, sistemas e políticas de Um estudo divulgado na revista e um dos autores do estudo,
revisão por pares. As conclusões e PLOS Biology indica que a pesquisa o comportamento mais aberto
as recomendações desse comitê biomédica está se tornando mais da comunidade de pesquisa
serão divulgadas assim que seu aberta e transparente. O trabalho, biomédica parece bastante
trabalho terminar, garantiu Forster. lançado na edição de novembro promissor. “Há razões para ser
Não é a primeira vez que a do periódico, analisou o conteúdo otimista”, disse à revista Nature.
imagem do IEEE, uma organização de 149 artigos publicados entre Ele também atribui a mudança a
profissional sediada nos Estados 2015 e 2017 e constatou que um novo patamar de exigências
Unidos e presente em 160 países 69% forneciam informações sobre das revistas científicas, que agora
que publica mais de uma centena a fonte de financiamento, 65% passaram a pedir declarações
de revistas científicas, é atingida mencionavam se os autores de conflito de interesses e de
por um escândalo desse tipo. tinham ou não algum conflito financiamento para prevenir
Segundo uma base de dados de de interesses relacionado vieses, ou adotaram políticas para
retratações de artigos organizada à pesquisa e 20% disponibilizavam compartilhamento de dados.
pelo site Retraction Watch, o IEEE seus dados publicamente. Esses Wallach ressalta que o acesso a
já cancelou mais de 7,3 mil resumos índices foram bem menores, dados e a protocolos é essencial
de apresentações realizadas por em alguns casos insignificantes, em para que outros pesquisadores
pesquisadores, publicados em anais um levantamento com 441 artigos consigam reproduzir os resultados
de congressos promovidos pela publicados entre 2000 e 2014. alcançados. “As declarações
instituição, o equivalente Para Joshua Wallach, de compartilhamento de dados
a 40% de todas as retratações pesquisador da Escola de Saúde mostram que essa cultura está
já registradas. Pública da Universidade Yale mudando”, afirmou.

10 | janeiro DE 2019
Dados Dispêndios em P&D
no estado de São Paulo

Os dispêndios em pesquisa e desenvolvimento (P&D) no A maior parte (54% do total) se originou das empresas,
estado de São Paulo totalizaram R$ 25,8 bilhões em 2017, seguidas das universidades (27%), das agências de fomento
com pequeno decréscimo em relação a 2016 (9,7%) e dos institutos de pesquisa (9,6%)

Dispêndios em P&D no estado de São Paulo1, pela origem dos recursos Dispêndios em P&D por setores2
(R$ milhões correntes) (R$ milhões, participação)
2014 2015 2016 2017
Privado
Total 26.053 26.019 26.029 25.783
Instituições de Ensino Superior (IES) 6.128 6.648 7.065 6.849
15.330 15.035 14.928 14.570
IES federais 915 902 968 1.030 59% 58% 57% 57%
IES estaduais 4.753 5.200 5.475 5.200
IES privadas 461 546 622 619 3.871 4.318 Federal
4.190 3.940
Agências de fomento 3.102 2.807 2.699 2.510 16% 15% 15% 17%
Estadual
CNPq 664 523 362 315 6.532 7.044 7.230 6.895
Capes 689 736 766 766 25% 27% 28% 27%

Finep 596 360 435 369 2014 2015 2016 2017


FAPESP 1.153 1.189 1.137 1.059
Institutos de Pesquisa (IPs) 1.953 2.074 1.959 2.473
IPs federais 1.327 1.419 1.341 1.836
IPs estaduais 626 655 618 637
Empresas 14.870 14.489 14.306 13.951

Investimentos públicos diretos em educação,


no brasil, por origem do financiamento3

A educação básica recebeu O governo federal respondeu por 30% dos Os estados e municípios responderam
83% dos investimentos investimentos (antes das transferências), 17% dirigidos por 70% dos investimentos, 67%
públicos em educação à educação básica e 13% à educação superior dirigidos à educação básica

Investimentos públicos diretos na educação, Investimentos públicos diretos na educação,


pela origem dos recursos4, ed. básica e ed. superior, 2015 pela origem dos recursos4, ed. básica e ed. superior, 2015
(R$ milhões correntes) (% sobre total geral)

Municipal Estadual Federal Total Municipal Estadual Federal Total

Total 96.503 115.751 92.583 304.837 Total 32% 38% 30% 100%
Educação Básica 96.166 105.538 51.550 253.254 Educação Básica 32% 35% 17% 83%
ilustração Freepick

Educação Superior 338 10.212 41.032 51.582 Educação Superior 0,1% 3,4% 13% 17%

Obs.: Somas podem não igualar totais, em virtude de arredondamento

1 A tabela difere da publicada no Relatório de Atividades FAPESP 2017 em função dos dados da Capes para 2017, que foram atualizados posteriormente. 2 O grupo privado inclui empresas e ensino
superior privado. 3 Investimentos públicos diretos são aqueles financiados por governos e executados no setor público (republicado da edição nº 274, de dezembro de 2018, incluindo as frações
sobre o total dos dispêndios). 4 Antes das transferências federais (via Fundeb e outras). Fontes  Dispêndios em P&D – Pintec, FAPESP, Censo da Educação Superior/Inep/MEC. Elaboração Coordenação
de Indicadores de CT&I/FAPESP. Metodologia: Cap. 3, Indicadores CT&I São Paulo, 2010, FAPESP. Investimentos públicos em educação: Contas Nacionais/IBGE, Inep/MEC e Education at a Glance/OCDE.
Elaboração Coordenação de Indicadores de CT&I/FAPESP.

PESQUISA FAPESP 275 | 11


Notas

A vida longa
dos papagaios

Com 35 centímetros de comprimento e peso


médio de 400 gramas, o papagaio-verdadeiro
(Amazona aestiva) vive 60 anos, em média, e pode
chegar aos 80. Uma equipe coordenada pelo
biólogo brasileiro Cláudio Vianna de Mello, da
Universidade de Saúde e Ciência do Oregon, nos
Estados Unidos, fez o sequenciamento completo
do genoma dessa ave e identificou pelo menos
300 genes que podem estar associados à sua vida
longa (Current Biology, 6 de dezembro). Um deles
é o Tert, que codifica uma proteína da enzima
telomerase, que protege os telômeros, estruturas
das extremidades dos cromossomos. A telome-
rase impede que os cromossomos se deteriorem
durante a divisão celular e nesses papagaios seria
mais ativa, retardando o envelhecimento das
células. Os pesquisadores também identificaram
mutações em genes associados a mecanismos
de reparo no DNA, controle de proliferação ce-
lular e proteção a estresse oxidativo do sistema
imune que poderiam aumentar a longevidade. O
genoma do papagaio foi comparado com o de
outras 30 espécies de aves, incluindo longevas,
como a araracanga (Ara macao), que vive de
40 a 60 anos. O estudo sinaliza que regiões
de DNA do papagaio que divergem do padrão
encontrado em outras aves longevas e trechos
regulatórios de genes envolvidos no desenvol-
vimento do cérebro poderiam estar associados
Mutações ao aumento da capacidade cognitiva dessa es-
genéticas pécie. O papagaio-verdadeiro tem um colorido
ajudam os
único: as fêmeas adultas exibem uma plumagem
papagaios-
-verdadeiros vermelho-alaranjado com um fino anel externo
a viver avermelhado na íris; nos machos, de bico negro,
até 80 anos esse detalhe é amarelo-alaranjado. 1

12 | janeiro DE 2019
Telescópio mede
quase toda a
luz do Universo

Com base nos dados


coletados pelo
Telescópio Espacial 3

de Raios Gama Fermi,


que em 2018 completou
10 anos em órbita, um
grupo internacional
de astrofísicos conseguiu
medir a luz estelar
produzida durante quase
toda a história do
Universo, que teria se 2 4

formado há cerca
de 13,7 bilhões de anos
(Science, 30 de
novembro). O astrofísico
Marco Ajello e sua Coroação da Bactérias ávidas
equipe do Clemson nova medição Virgem (acima)

College of Science, nos quintuplica o número de


e minerais (alto
à dir., ampliados
por obras de arte
Estados Unidos, com blazars calculados em 18 mil vezes)
colegas de outros países, 2012 e indica que o pico e Aspergillus
concluíram que o de formação de estrelas (ampliados Alguns microrganismos destroem obras de arte,
10 mil vezes)
número de fótons deve ter ocorrido em mas outros as protegem, concluiu um estudo
que a cobriam
fotos 1 glaucia seixas 2 MUSEU DE ARTE ANTIGA DA COMUNA DE FERRARA  3 e 4 CASELLI, E. ET AL. PLOS ONE. 2018 5 NASA / DOE / Telescópio Fermi

(partículas de luz) torno de 10 bilhões de liderado pela microbiologista Elisabetta Caselli,


que escaparam para o anos atrás. O resultado da Universidade de Ferrara, na Itália (PLOS ONE, 5
espaço após serem também deve servir de dezembro). A pintura cuja análise levou a essa
emitidos por estrelas é de base para futuras conclusão foi a Coroação da Virgem, do artista
de 4 × 1084 (o número 10 missões, como o italiano Carlo Bononi (1569-1632). Essa obra foi
seguido por 84 zeros). Telescópio Espacial concluída em 1620 e retirada para restauração
Eles examinaram sinais James Webb (JWST), da Basílica de Santa Maria em Vado, em Ferrara,
de raios gama, com lançamento após um terremoto em 2012. Os pesquisadores
a forma mais energética previsto para 2021. removeram uma amostra de 4 milímetros qua-
de luz, de 739 galáxias O James Webb vai drados da superfície pintada adjacente a uma
ativas chamadas captar a radiação área danificada e examinaram os microrganismos
blazars, com buracos infravermelha e tentar ali instalados, usando técnicas de microscopia
negros supermassivos desvendar o que ocorreu e cultura microbiana. Em seguida, isolaram li-
em seus centros, logo após o Big Bang, Mapa com as nhagens de bactérias Staphylococcus e Bacillus
coletados ao longo de a explosão que teria galáxias usadas e fungos filamentosos dos gêneros Aspergillus,
na medição de
nove anos pelo Fermi. A originado o Universo. Penicillium, Cladosporium e Alternaria. Uma das
luz do Universo
conclusões é que pigmentos de tinta usados no
século XVII, especialmente a laca vermelha e as
terras vermelhas e amarelas, podem ser fontes
de nutrientes para os micróbios. No entanto, um
composto descontaminante com esporos de B.
subtilis, B. pumilus e B. megaterium mostrou-se in
vitro capaz de inibir o crescimento de bactérias
e fungos isolados da pintura. O achado pode
indicar uma nova abordagem para a preservação
de obras de arte em risco de biodegradação. Os
pesquisadores estão fazendo mais testes em
substratos similares aos da tela de Bononi para
ver se e como a bactéria Bacillus poderia de algum
5 modo danificar a superfície de obras de arte.

PESQUISA FAPESP 275 | 13


França deve pelas tropas francesas
devolver em 1892 durante o
saque de Abomey, no
objetos africanos atual Benim – seja
devolvido o mais rápido
Dezenas de milhares de possível. O relatório
artefatos africanos sugeriu que a França
mantidos em museus altere suas leis para
franceses terão de ser permitir a repatriação de
devolvidos se os países artefatos culturais
de origem das peças obtidos durante o
solicitarem seu retorno, período colonial africano,
concluiu um relatório do final do século XIX
encomendado até 1960, e adquiridos
pelo presidente francês, ilicitamente após esse
Emmanuel Macron período. Especialistas
(Nature, 27 de em acervos argumentam
novembro). Os autores que os artefatos poderão
1
do relatório são o ser danificados ou
economista Felwine Sarr, roubados se forem
O navio da Universidade Gaston enviados a países
Radiação solar ativou norte-americano
Franklin D.
Berger em Saint-Louis, politicamente instáveis,
Senegal, e a historiadora sem museus
minas marítimas na próximo ao
Vietnã, em 1966 Bénédicte Savoy, do devidamente equipados.
Colégio da França, A repatriação não é
Guerra do Vietnã em Paris. Eles simples. O Museu J. Paul

fotos 1 PH1 Hendricks/U.S. Navy Naval History and Heritage Command 2 Marie-Lan Nguyen/Wikimedia  3 ANDRÉ PESSOA 4 gabriel de paiva /agência o globo
recomendaram que um Getty, de Los Angeles,
conjunto de peças – nos Estados Unidos,
Uma forte tempestade solar em 1972 é tronos, estátuas e outras anunciou que continuará
agora a causa mais provável da repentina regalias reais tomadas defendendo seu direito
detonação de dezenas de minas marítimas de manter uma estátua
durante a Guerra do Vietnã (1955-1975). de bronze grega em
De acordo com um estudo coordenado por sua coleção. Em 2010,
Delores Knipp, da Universidade do Colorado um tribunal italiano
em Boulder, nos Estados Unidos, a intensa ordenou que a estátua
atividade solar produziu radiação, plasma fosse devolvida, em meio
solar e partículas eletricamente carregadas à campanha italiana
que atingiram a Terra (Space Weather, outubro de recuperação de
de 2018). Depois de chegar ao planeta em 4 antiguidades roubadas
de agosto, as partículas de alta energia e o de seu território.
plasma magnetizado danificaram satélites e O museu Getty
causaram problemas de energia, identificados argumentou que a Itália
nos Estados Unidos. Nessa data, as auroras, não tem direito à
resultantes de partículas carregadas do Sol estátua, encontrada no
que interagem com o ar na atmosfera superior mar por um pescador
da Terra, foram visíveis no norte dos Estados italiano e comprada pelo
Unidos e no sul do Reino Unido. No mesmo museu em 1977 por
dia, a marinha norte-americana registrou a US$ 4 milhões.
explosão de dezenas de minas marítimas O Supremo Tribunal
ao longo da costa do Vietnã sem nenhuma italiano rejeitou a
causa aparente. Instaladas com o propósito de contestação do museu
bloquear o acesso aos portos vietnamitas, as (Diário de Notícias,
minas poderiam ser acionadas se detectassem 6 de dezembro).
alterações nos campos magnéticos asso-
ciados a navios em movimento. A atividade
solar altera o campo magnético da Terra e, Escultura da
no início de agosto de 1972, as perturbações civilização Nok,
da Nigéria,
provavelmente foram intensas o bastante
mantida no
para fazer as minas explodirem. 2
Museu do Louvre

14 | janeiro DE 2019
Museu Nacional
resgata
1.500 peças

No início de dezembro,
pouco mais de três
meses depois de o
Museu Nacional ter sido
quase totalmente
destruído por um grande
incêndio em 2 de
setembro, a direção da
instituição anunciou ter
resgatado cerca de
1.500 itens em meio aos
escombros da tragédia.
São peças que estavam
em exposição ou
compunham o acervo 3

das coleções da
instituição, além de Detalhe
equipamentos, objetos de obra de

pessoais e fragmentos também foram achados.


uma das
exposições
Piauí ganha Museu
arquitetônicos. Da Do acervo de etnologia
coleção de arqueologia indígena, foram
do museu
recém- da Natureza
egípcia, foram encontradas duas -inaugurado

encontrados, por bonecas karajá, um vaso


exemplo, um conjunto de decorado de procedência Projeto de R$ 13,7 milhões financiado pelo Banco Nacio-
shabtis (miniestatuetas ignorada e uma cerâmica. nal de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),
funerárias), bronzes Da geologia, amostras o Museu da Natureza foi inaugurado no dia 18 de de-
representando deuses e de minerais e um zembro no município de Coronel José Dias, no sul do
uma estela (placa de meteorito foram retirados Piauí. A nova instituição se situa em terras vizinhas
pedra com inscrições) dos destroços do incêndio. ao Parque Nacional Serra da Capivara, patrimônio
proveniente da antiga Em outubro, técnicos cultural da humanidade pela Unesco, que abriga mais
cidade de Abidos. Itens do museu tinham de 1.200 sítios pré-históricos com pinturas rupestres
de outras coleções encontrado um fragmento datadas entre 4 mil e 50 mil anos. Com um espaço
arqueológicas, como a do fêmur e pelo menos para exposições de 1.700 metros quadrados, o museu
mexicana, a brasileira, 80% do crânio de Luzia, apresenta 12 salas temáticas e tem como mote central
a pré-colombiana e a da de cerca de 11 mil anos, contar a história geológica, climática e dos animais
imperatriz Teresa uma das peças mais da região, hoje um trecho do semiárido nordestino
Cristina (1822-1889), importantes da instituição. dominado pela Caatinga. Ele foi concebido e é admi-
nistrado pela Fundação Museu do Homem Americano
4 (Fumdham), que, em parceria com o Instituto Chico
Mendes (ICMBio) e o Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (Iphan), cuida do parque. O museu
funciona de quarta a segunda-feira, das 13h às 19h. A
entrada inteira custa R$ 30. Em São Raimundo Nonato,
município vizinho a Coronel José Dias, a Fumdham, que
desde 1986 faz pesquisas na área de história natural
no Piauí sob o comando da arqueóloga Niède Guidon,
mantém o Museu do Homem Americano. Criado há 20
anos, o primeiro museu da Fumdham destaca alguns
dos achados da arqueologia local, tema não tratado
Pontas de lança em detalhes no Museu da Natureza, como ossadas
das expedições humanas e artefatos que atestam a presença do Homo
de Marechal
sapiens há milhares de anos na região.
Rondon, do início
do século XX,
recuperadas

PESQUISA FAPESP 275 | 15


2

Guaranis ainda sofrem


influência das missões

Em 1609, os jesuítas inauguraram suas missões entre


os povos Guarani, na fronteira entre Argentina, Brasil e
Paraguai. Por um século e meio, ensinaram as crianças
a ler e a escrever, os homens a esculpir em madeira
e as mulheres a fazer bordados. Os religiosos foram
expulsos da América do Sul em 1767, mas as missões Preguiça-
ainda influenciam a educação e a renda do povo Gua- -de-coleira,
portadora de
rani e de seus descendentes das regiões próximas, de
anticorpos
acordo com um estudo do economista colombiano contra o vírus
Felipe Valencia Caicedo, da Universidade da Colúmbia da dengue
Britânica, no Canadá. Com base em dados de arquivos
do Vaticano, da Espanha, do Paraguai e da Argentina,
Caicedo verificou que, a cada 100 quilômetros a partir Vírus em contato com arbovírus,
das ruínas da missão, as taxas de pobreza aumentam, macacos e principalmente os do
em média, 10%, enquanto a taxa de escolaridade diminui gênero Flavivirus (33%),
0,7 ano, em razão da transmissão de especialização do
preguiças que reúne os vírus da
trabalho e do uso de tecnologias agrícolas aprendidas dengue, febre amarela
com os jesuítas (The Quarterly Journal of Economics, 8 Macacos e preguiças da e zika. Anticorpos contra
de outubro). Outra conclusão desse estudo é que as Mata Atlântica do sul da o vírus da dengue dos
pessoas que moram em áreas mais próximas ao local Bahia abrigam uma sorotipos 1, 2 e 3
das antigas missões ganham cerca de 10% mais do diversidade inesperada foram detectados pela
que os moradores de cidades vizinhas, onde as missões de vírus transmitidos por primeira vez em
jesuítas foram abandonadas ou empreendidas por outra insetos, incluindo os micos-leão-de-cara-
ordem religiosa, os franciscanos, que valorizavam mais da dengue (EcoHealth, -dourada, uma espécie
a saúde do que a educação. dezembro 2018). endêmica da região,
De 2006 a 2014, um e nas duas espécies de
1 grupo coordenado pela preguiça. Foi também
Construções dos médica veterinária e o primeiro registro de
jesuítas no Sul epidemiologista Lilian exposição em preguiça-
do Brasil:
Silva Catenacci, da -de-coleira do vírus
antigas escolas
para os povos Universidade Federal da encefalite equina
nativos do Piauí, procurou do leste, do grupo dos
anticorpos para 26 Alphavirus, que causa
diferentes arbovírus essa doença rara,
(vírus transmitidos por também transmitida
mosquitos) em 196 às pessoas pela picada
amostras de sangue de um mosquito
de 103 micos-leão-de- infectado. O estudo
-cara-dourada indicou que os macacos fotos 1 leandro kibisz 2 Christian Mehlführer  3 e 4 Saulo Cruz /MME

(Leontopithecus e as preguiças foram


chrysomelas), 7 macacos- expostos naturalmente a
-prego-do-peito-amarelo pelo menos 12 arbovírus,
(Sapajus xanthosternos), cuja transmissão para
22 preguiças-de-coleira outros animais e
(Bradypus torquatus) pessoas depende de
e 7 preguiças-de-peito- mosquitos. Anticorpos
-marrom (Bradypus contra os vírus da
variegatus) da Reserva dengue do sorotipo 2,
Biológica de Una e em Icoaraci e Ilhéus foram
fazendas próximas de os mais frequentes em
Ilhéus e Una, sul da macacos e os contra
Bahia. Um terço (36%) o vírus Caraparu mais
dos animais tinha tido frequentes em preguiças.

16 | janeiro DE 2019
Milhares de painéis solares
na represa de Sobradinho

A Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) ins-


talou 7,3 mil módulos de placas solares em uma área de
10 mil metros quadrados no reservatório da Usina Hidre-
létrica de Sobradinho, no rio São Francisco, na Bahia. Os
equipamentos têm capacidade de gerar 1 megawatt-pico
(MWp), a partir de dezembro de 2018. Até agora, sistemas
similares tinham sido montados apenas em terra. A pla-
taforma flutuante é fixada no fundo do reservatório por
cabos e ainda serão instalados contêineres de conversão
de energia em corrente contínua para corrente alternada,
adequada para ser enviada às linhas de transmissão da
usina. Acredita-se que o novo sistema flutuante fotovoltaico,
resfriado pela água e pelo vento, seja mais eficaz do que
4
as placas instaladas em terra, que perdem eficiência com
o forte calor. Os efeitos da produção de energia sobre a Presos ao fundo por
fauna fluvial ainda são incertos. Com um custo estimado cabos, os painéis
aproveitam a linha
em R$ 56 milhões, a nova usina solar deve ser concluída
de distribuição da
no segundo semestre de 2019, com a instalação de outras usina hidrelétrica
42,7 mil placas na região e a ampliação da capacidade de
geração de energia para 4 MWp, o suficiente para garantir
o fornecimento de energia para até 20 mil casas. Com esse
projeto, a Chesf pretende viabilizar as usinas flutuantes em
termos técnicos, econômicos e ambientais. Se funcionarem,
elas poderiam ser aplicadas em outros reservatórios ou
mesmo em rios de superfície ampla, como os da Amazônia
e do Centro-Oeste, evitando a desapropriação de terras e
reduzindo as perdas de energia.

PESQUISA FAPESP 275 | 17


capa

Terreno fértil para a

inteligência
artificial
Com a crescente evolução da ferramenta
tecnológica, consórcio de pesquisadores
cria instituto dedicado a estabelecer
parcerias entre universidades e empresas

Suzel Tunes

E
m constante crescimento, principalmen- to de Ciências Matemáticas e de Computação da
te nesta década, a inteligência artificial (ICMC), coordenador do Núcleo de Pesquisa em
(IA) começa 2019 com mais um incen- Aprendizado de Máquina em Análise de Dados,
tivo no Brasil. A partir da inauguração ambos da Universidade de São Paulo (USP), e um
oficial do Instituto Avançado de Inteli- dos integrantes do futuro instituto.
gência Artificial (AI²), prevista para fevereiro, sur- Organizado como um consórcio de pesquisa-
ge mais uma ponte entre universidade e empresa dores de inteligência artificial, o AI² (https://ad-
para o desenvolvimento de pesquisas em parceria. vancedinstitute.ai) reúne especialistas de algumas
A expectativa é de que a organização promova das maiores universidades do país – todas locali-
projetos voltados às mais diversas aplicações, em zadas no estado de São Paulo – que oferecerão sua
consonância com a própria multidisciplinarida- expertise para o desenvolvimento de projetos de
de desse ramo da ciência da computação. “A IA interesse acadêmico e comercial. O físico Sérgio
busca simular a inteligência humana utilizando Novaes, do Núcleo de Computação Científica da
não apenas conhecimentos da computação, mas Universidade Estadual Paulista (NCC-Unesp)
também de biologia, engenharias, estatística, fi- e organizador do grupo, explica que o instituto
losofia, física, linguística, matemática, medicina não pretende se limitar aos pesquisadores de São
e psicologia, apenas para citar algumas áreas”, Paulo ou mesmo do Brasil: “Nossa meta é agregar
enumera o cientista da computação André Carlos parcerias no mundo inteiro para a realização de
Ponce de Leon Carvalho, vice-diretor do Institu- projetos de grande impacto socioeconômico”.

18 | janeiro DE 2019
Segundo Novaes, o suporte financeiro do ins- Não é por acaso que o AI² reúne, inicialmente,
tituto virá de seus parceiros privados. “O dinhei- pesquisadores paulistas. O estado e, em especial,
ro será utilizado no recrutamento de recursos a cidade de São Paulo, apresentam uma grande
humanos, organização de eventos, mobilidade concentração de empresas, pesquisadores e mão
de pesquisadores e, eventualmente, aquisição de obra qualificada, o que representa um poderoso
de software e hardware”, explica. A inten- atrativo para o desenvolvimento de novas tecnolo-
ção é estabelecer colaborações que envolvam gias. Historicamente, o estado também concentra
interesses recíprocos e convergentes para que o pesquisadores nessa área de conhecimento (ver
AI² possa desenvolver atividades relevantes de reportagem na página 24). O Departamento de
pesquisa, desenvolvimento e inovação, e não ape- Matemática da USP tem visto as pesquisas em IA
nas como meros prestadores de serviços para o triplicarem nos últimos três anos, afirma o cien-
setor privado. O instituto não terá sede própria. tista da computação Roberto Marcondes Cesar
“O modelo envolve espaços de coworking nas ins- Junior, do Instituto de Matemática e Estatística
tituições participantes ou fora delas, conectados (IME) da USP e coordenador do programa Cen-
por meio de um sistema de telepresença”, deta- tros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da
ilustraçãO nik neves

lha. Os professores que atuarão como mentores FAPESP. “Muitos de nossos alunos são absorvidos
dos projetos com o setor privado deverão ficar por startups do setor”, relata. Essa é a mesma per-
em suas instituições de origem e o pessoal das cepção da cientista da computação Ana Carolina
empresas continuará em suas respectivas sedes. Lorena, da Divisão de Ciência da Computação do

PESQUISA FAPESP 275 | 19


Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), de
São José dos Campos (SP). “Alunos de graduação
e orientandos de pós-graduação estão sendo con-
tratados por empresas para desenvolver sistemas Pesquisadores estrangeiros são
de IA”, conta a pesquisadora.
O apoio de agências de fomento como a FAPESP atraídos pelo alto nível da pesquisa
tem sido determinante para a evolução do setor no
estado de São Paulo, sobretudo por meio de pro-
realizada e pelas boas condições
gramas como o Pesquisa Inovativa em Pequenas
Empresas (Pipe). “Entre as agências de fomento,
a FAPESP é a que mais apoia startups avançadas”,
ressalta Sérgio Queiroz, coordenador adjunto de inteligente de análise de risco para a agricultura.
Pesquisa para Inovação da FAPESP e professor do “Vim para o Brasil por causa do grande mercado
Instituto de Geociências da Universidade Estadual agrícola, da excelente reputação da USP e do meu
de Campinas (Unicamp). A partir de 2012, o núme- orientador, Alneu de Andrade Lopes”, lembra.
ro de projetos Pipe concedidos em IA apresentou Drury conta que conheceu o cientista da com-
um significativo crescimento. Foi o que constatou putação Lopes, do ICMC-USP, em 2013, quando
o engenheiro eletrônico Marcelo Finger, chefe do fazia seu doutorado na Universidade do Porto,
Departamento de Ciência da Computação do IME- em Portugal, trabalhando em um sistema de pre-
-USP. No dia 26 de novembro, em evento realiza- visão voltado ao mercado de ações. No estágio de
do pela Fundação com o Instituto do Legislativo pós-doutorado trocou o mercado de ações pelas
Paulista – o Ciclo ILP-FAPESP –, coube a Finger commodities: sob supervisão de Lopes, com bolsa
dar um panorama da pesquisa em IA em São Paulo. da FAPESP, estudou rendimentos da cana-de-açú-

foto  léo ramos chaves infográfico ana paula campos  ilustração nik neves
“A FAPESP apoia projetos de inteligência artificial car. Agora, como pesquisador-chefe da empresa
desde 1992. Em 1997, quando começou o Pipe, havia SciCrop, com sede em São Paulo, desenvolve uma
uma média de cinco projetos por ano nessa área do ferramenta computacional para avaliação do ris-
conhecimento. Nos últimos dois anos esse número co envolvido em cultura agrícola, com base em
saltou para 40”, relata (ver gráficos na página 23). dados provenientes de fontes textuais, satélites,
Entre os projetos é possível encontrar pes- meteorologia, séries históricas de produtores e
quisadores estrangeiros atraídos pelo alto nível até mesmo notícias relacionadas a fatores eco-
da pesquisa realizada e pelas boas condições de nômicos e sociais. “O sistema ajudará na decisão
trabalho. Um exemplo é o inglês Brett Drury, de hedging [a adoção de estratégias para proteger
que desenvolve, com apoio do Pipe, um sistema o investimento contra possíveis perdas]”, diz.

Marcos históricos
Os primórdios desse ramo da ciência da computação remontam a 75 anos

Os cientistas O britânico Alan Turing A expressão Os pesquisadores John McCarthy O cientista da


norte-americanos propõe o Teste de inteligência norte-americanos desenvolve o LISP, computação
Warren McCulloch Turing: uma máquina artificial é usada Herbert Simon, J. Cliff linguagem de norte-americano Joseph
e Walter Pitts deve se fazer passar por para batizar um Shaw e Allen programação que Weizenbaum, do
publicam trabalho ser humano, respondendo novo campo da Newell criam o se tornaria dominante Instituto de Tecnologia
pioneiro a perguntas. Se não der ciência pelo Solucionador de no campo de IA. de Massachusetts
de inteligência para distinguir suas cientista John Problemas Gerais No mesmo ano, (MIT), cria o Eliza,
artificial (IA): respostas daquelas McCarthy, da (GPS), que resolvia o psicólogo Frank programa capaz de
um modelo de de uma pessoa real, a Universidade problemas simples Rosenblatt lança o processar linguagem e
neurônios máquina pode ser Stanford (EUA) expressos em uma primeiro algoritmo de conversar por meio de
artificiais considerada inteligente representação lógica aprendizado de máquina frases pré-programadas

20 | janeiro DE 2019
Química da USP. Em 1997, um projeto desenvol-
vido em parceria com a Petrobras, por meio do
Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para
Inovação Tecnológica (Pite), resultou em um ga-
nho adicional de US$ 0,25 por barril de petróleo
refinado. “O processo de refino envolve diversas
variáveis, como temperatura e pressão. Usamos
redes neurais para ajustar esses parâmetros e
otimizar o processo”, conta o pesquisador.
Parceria diversa ocorreu com a Companhia
Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambien-
tal (Cetesb), de São Paulo, em 2001. Ele utilizou
redes neurais no desenvolvimento de uma tec-
nologia para análise dos dados meteorológicos,
com o objetivo de prever a formação do ozônio
na baixa atmosfera. “A previsão era feita para um
período de três horas. Com o sistema, consegui
prever com 24 horas de antecedência”, relata.
Atualmente, Oller é um dos coordenadores do
programa de físico-química do Centro de Pes-
quisa de Inovação em Gás (RCGI), financiado
pela FAPESP e Shell, criado em 2015.
A startup Treevia criou Além desse tipo de apoio, este ano a FAPESP O físico Silvio Salinas, professor aposentado
um sistema para vai financiar 10 minicursos, com seis a oito ho- do Instituto de Física da USP (IF-USP), foi ou-
monitorar florestas
a distância usando
ras cada um, com pesquisadores estrangeiros e tro pesquisador a receber os primeiros apoios da
sensores: os dados são brasileiros no IME-USP, sobre aprendizado de FAPESP na área de IA. “Nunca imaginei que os
processados em máquina, aprendizagem estatística, sistemas de meus projetos das décadas de 1980 e 1990 pudes-
tempo real utilizando IA bancos de dados e computação de alto desempe- sem ter conexões com as atividades atuais de IA”,
nho e aplicações com impacto social. Os cursos diz. No início dos anos 1990 Salinas desenvolveu
ocorrerão dentro da modalidade Escola São Paulo pesquisas teóricas em física estatística que, mais
de Ciência Avançada. tarde, seriam base para o desenvolvimento de re-
des neurais. “Nossos projetos com a FAPESP con-
TECNOLOGIA COTIDIANA tribuíram para a formação de um bom número de
Desde a década de 1990, projetos de IA apoiados alunos. Nestor Caticha, por exemplo, que ainda
pela FAPESP em parceria com empresas resulta- está no IF, era o pesquisador do nosso grupo en-
ram em novos produtos e processos industriais. volvido com a análise de modelos de redes neu-
Um dos pioneiros nesse campo é Claudio Oller rais, incluindo problemas de tomada de decisões
do Nascimento, do Departamento de Engenharia e aprendizagem”, conta Salinas.

O norte-americano Realização do 1º O computador Um carro O computador A Microsoft lança o


Edward Shortliffe Simpósio Deep Blue, da autônomo EUGENE passa no chatbot (computador
desenvolve o MYCIN, Brasileiro de IBM, vence uma desenvolvido na Teste de Turing. que simula
pioneiro entre os Inteligência partida de xadrez Universidade Criado na Rússia, conversação) TAY,
sistemas especialistas. Artificial, na contra o campeão Stanford vence a ele se fez passar com capacidade de
Ele codificava o Universidade mundial russo DARPA Grand por um menino aprendizado.
conhecimento para Federal do Garry Kasparov Challenge, de 13 anos e Colocado em teste
realizar diagnóstico Rio Grande do competição “enganou” um nas redes sociais,
de algumas infecções Sul (UFRGS), de automóveis de terço dos juízes ele se torna, em um
bacterianas em Porto Alegre direção automática dia, racista, xenófobo
e homofóbico

PESQUISA FAPESP 275 | 21


lawtechs na área jurídica (ver Pesquisa FAPESP
nº 271). O crescimento das lawtechs motivou a
criação, em 2018, de um instituto de inovação
voltado para o direito: o Future Law Innovation
Center, em São Paulo. É o primeiro centro de
inovação patrocinado pela multinacional de tec-
nologia Thomson Reuters na América Latina.

Linguagem acessível
Para o cientista da computação Ígor Assis Braga,
sócio da Big Data Brasil, consultoria paulista es-
pecializada em análise de dados, cresce o número
de negócios que buscam soluções de IA, mas é
preciso traduzir os resultados e as decisões dos
algoritmos em linguagem acessível. “O cliente
quer otimizar o seu negócio, mas também quer
saber, na medida do possível, o porquê das de-
cisões do algoritmo”, afirma Braga.
“Companhias de gran-
de porte tendem a ser mais
A I.Systems Depois de um período conservadoras na adoção de
desenvolveu
um sistema de
no ostracismo, a partir de Startups que novas tecnologias, embora o
2010 o estudo de redes cenário esteja mudando”, de-
envase empregando
software baseado neurais tornou-se uma fazem inovações clara Esthevan Augusto Goes
das principais linhas de Gasparoto, CEO da Treevia,
em IA, que diminui
o desperdício pesquisa em IA. “No co-
com ferramentas uma agritech de São José dos
meço deste século, a área inteligentes Campos (SP). Com recursos
de redes neurais chegou do Pipe, a empresa criou um
a ser dada como morta. começam a sentir sistema web para monitora-
Em 10 anos, o jogo virou. mento a distância de florestas,
Atualmente, a maior parte os efeitos da que utiliza IA para processar
das aplicações de IA vêm dados coletados em tempo
das redes neurais”, declara
alta demanda real por sensores de internet
Marcelo Finger. de profissionais das coisas (IoT). “A cada dia,
O físico Nestor Caticha vemos mais companhias com
Alfonso, um dos integran- times de inovação e estimu-
tes do AI 2, afirma que o lando iniciativas de inovação
momento atual é de uma aberta [que buscam conheci-
explosão de projetos em IA em razão do uso dos mento fora de seus departamentos de pesquisa
algoritmos de aprendizado de máquina, com um e desenvolvimento]. É aí que as startups podem
número cada vez maior de aplicações. Essa fer- contribuir, desenvolvendo soluções com velo-
ramenta tecnológica já se incorporou de tal ma- cidade a que as grandes corporações não estão

foto  léo ramos chaves infográfico ana paula campos  ilustração nik neves
neira ao cotidiano que passa despercebida em acostumadas.”
atividades corriqueiras, corroborando uma frase Startups focadas no desenvolvimento de ino-
atribuída ao pai da inteligência artificial, o norte- vações com auxílio de ferramentas inteligentes já
-americano John McCarthy (1927-2011): “Assim começam a sentir os efeitos da alta demanda por
que funciona, ninguém mais chama de IA”. Hoje, profissionais. É o caso da Stattus4, de Sorocaba
algoritmos de aprendizagem de máquina estão (SP). “Temos grande dificuldade em encontrar
presentes, por exemplo, no smartphone com re- profissionais capacitados para tocar projetos ba-
conhecimento facial, nos leitores biométricos seados em IA. Quando são encontrados, os salários
e nos serviços de recomendação de playlists e que pedem são altos, o que dificulta a contratação
serviços de streaming de vídeo. por parte de pequenas empresas e startups em es-
Empregadas em um número crescente de se- tágio inicial”, diz Antônio Carlos Oliveira Júnior,
tores, as tecnologias que embutem sistemas in- diretor técnico da empresa. O problema é comum
teligentes estão ampliando o vocabulário empre- a quem precisa dos profissionais de computação.
sarial. Multiplicam-se as fintechs, startups que Para ajudar a resolver a questão, a FAPESP criou
atuam no mercado financeiro; healthtechs, da a categoria de bolsas TT4A e TT5, que paga mais
área da saúde; retailtechs, no varejo; agritechs, no para os que têm experiência comprovada em tec-
agronegócio; logtechs, na logística; legaltechs ou nologia da informação.

22 | janeiro DE 2019
Histórico de fomento à IA
FAPESP apoia essa área do conhecimento desde 1992

Auxílio à 240

220
pesquisa 200

e bolsas, 180

por ano 160

de início 140

120

100

n Bolsas 80
n  Auxílio à pesquisa 60

40

20

0
00

01

02

03

04

05

06

07

08

09

10

11

12

13

14

15

16
96

18
99
98
95
94
92

93

17
97

20

20
20

20
20

20

20

20

20
20
20
20

20
20

20

20

20
19

20
20
19

19

19

19

19

19
19

Número de
empresas

40
Impulso
35

30
às
25
empresas
20 (Pipe)
15

10

0
92

94

96

98

00

02

04

06

08

10

12

14

16

18
20
20

20

20
20
20

20
20
19

20
19

20
19
19

Fontes  Biblioteca Virtual da FAPESP e Marcelo Finger (IME-USP) /FAPESP

A Stattus4 desenvolveu um sistema de detec- Especializada no controle e automação de


ção de vazamento de água utilizando aprendi- processos industriais, a empresa I.Systems, de
zagem de máquina, uma subárea de IA focada Campinas, também recebeu apoio da FAPESP
na capacidade do reconhecimento de padrões e no início de sua operação. Criada em 2007 por
aquisição de conhecimento por meio da análise quatro ex-alunos da Unicamp, a startup teve,
de dados. Para elaborar o protótipo de um sensor dois anos depois, seu primeiro projeto aprova-
que registra as vibrações de água que flui pelos do pela Fundação para desenvolver um softwa-
canos e identifica vazamentos pela análise do re de controle industrial baseado em técnicas
som, tendo como referência uma base de dados de IA. Segundo o engenheiro de computação
armazenada em nuvem, a empresa teve apoio Igor Bittencourt Santiago, sócio-fundador da
do Pipe. “A participação do Pipe no desenvol- I.Systems (ver suplemento especial “Pipe, 20 anos
vimento desse setor tem sido fundamental por de inovação”), o software, batizado de Leaf, foi
permitir a contratação de bolsistas TT5 da área empregado com sucesso em uma indústria de
de IA”, conta Oliveira. refrigerantes, reduzindo o desperdício na hora

PESQUISA FAPESP 275 | 23


do envase. A empresa tem cerca de 60 funcio-
nários, a maioria engenheiros, e atende a mais
de 40 companhias.
A Cobli, outra startup apoiada pelo Pipe, é fo-

Imitação
cada no desenvolvimento de soluções de IoT para
monitoramento e gestão de frotas. A empresa tem
mais de 70 funcionários, 20 deles especializados
em desenvolvimento de produto, e mais de 600

do cérebro
clientes em todo o país. Essa estrutura surgiu
em apenas três anos. A Cobli nasceu depois que
o empreendedor norte-americano Parker Treacy
identificou o Brasil como uma oportunidade de
negócios e decidiu investir no setor de logística
no país. Fundou a empresa com o engenheiro
Rodrigo Mourad, com recursos próprios e sem
apoio de incubadoras. Inteligência artificial nasceu
Com sede em São Paulo, a startup recebe re-
cursos do Pipe para aprimorar uma ferramenta como campo científico nos
capaz de identificar o padrão de comportamen-
to de motoristas por meio de aprendizado de
anos 1940 em consequência
máquina utilizando dados obtidos por rastrea- de estudos matemáticos
dores movidos a energia solar. “Com o apoio do
programa podemos firmar uma parceria com a
academia. Através de IA, é possível revolucio-
nar o mercado propondo soluções inovadoras”,
diz o diretor técnico Lucas Fernandes Brunialti.
Uma das áreas que mais tem investido em IA é

A
a da saúde. Empresas do setor têm desenvolvido
mecanismos de suporte ao diagnóstico médico. inteligência artificial (AI) é um dos
Um exemplo é a Onkos Diagnósticos Molecula- poucos campos da ciência que têm
res, localizada no Supera Parque de Inovação e uma data definida de início, segundo
Tecnologia de Ribeirão Preto, ligado à USP. Em Marcelo Finger, do Instituto de Mate-
2018, a empresa recebeu o 9º Prêmio Octávio mática e Estatística da Universidade de São Paulo
Frias de Oliveira pelo desenvolvimento de um (IME-USP). Foi em 1956, durante uma confe-
teste diagnóstico que usa algoritmos de IA para rência realizada no Dartmouth College, em New
a classificação de tumores metastáticos de ori- Hampshire, Estados Unidos, que o cientista da
gem desconhecida, chamado de teste de origem computação John McCarthy usou pela primeira
tumoral (TOT). vez a expressão “inteligência artificial”. Batizava
Além do TOT, a startup também usou IA no assim um novo campo do conhecimento que, des-
desenvolvimento de um segundo exame diag- de a década de 1940, buscava produzir modelos
nóstico, dessa vez para avaliação de nódulos de matemáticos que simulassem o funcionamento
tireoide indeterminados. O método tradicional dos neurônios cerebrais.
da avaliação desses nódulos consiste na análi- No entanto, essa abordagem biológica esbarra-
se do material coletado por um procedimento ria nas limitações técnicas da época. Não existiam
denominado Paaf (sigla de punção aspirativa computadores capazes de processar a imensa
por agulha fina). Ocorre que o resultado não é quantidade de dados necessária à evolução da
conclusivo entre 15% a 30% dos casos. O teste rede neural. Desenvolveu-se, então, outra verten-
molecular criado pela Onkos destina-se a pa- te da IA chamada de “simbólica” e baseada em
cientes desse grupo. Batizado de mir-THYpe, linguagem de programação, que opera por meio
ele utiliza IA para classificar o nódulo indeter- de regras para resolver um problema. Populari-
minado em “negativo” ou “positivo” para ma- zaram-se os sistemas especialistas, alimentados
lignidade a partir da análise da expressão de por conhecimentos previamente definidos.
11 microRNAs, pequenas sequências de RNA re- Um desses primeiros sistemas, criado pelo
guladoras de expressão gênica. Segundo a On- norte-americano Edward Shortliffe no começo
kos, o exame pode reduzir até 81% das cirurgias da década de 1970, recomendava uma seleção de
desnecessárias de tireoide. n antibióticos para ajudar médicos no tratamento
de infecções bacterianas. “No Brasil, uma das pre-
Os projetos citados estão listados na versão on-line desta cursoras nesse campo foi Maria Carolina Monard,
reportagem. professora do ICMC-USP, de São Carlos”, destaca

24 | janeiro DE 2019
os únicos, durante muito tempo,
na área de processamento digital
de imagens e reconhecimento de
padrões”, conta.
Apesar dos avanços, há des-
confiança com relação ao futuro.
“Países como França, Inglaterra e
China criaram políticas públicas
para terem protagonismo em IA.
No Brasil, essa oportunidade es-
tá sendo desperdiçada”, ressalta
o cientista da computação André
Ponce de Leon Carvalho. Opinião
semelhante tem o cientista da com-
putação Sílvio Meira, da Univer-
sidade Federal de Pernambuco e
presidente do Conselho de Admi-
nistração do Porto Digital, parque
tecnológico do Recife. “O Brasil
tem grande capacidade de absor-
ção de tecnologia e é responsável
por metade de todo mercado de
John McCarthy no a cientista da computação Ana Carolina Lorena, tecnologia da América Latina”, diz. “Mas falta
Laboratório de IA do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). estratégia. Desde a década de 1970, não se esta-
da Universidade
Segundo ela, alunos de Monard desbravaram al- beleceu um grande desafio tecnológico. Não sabe-
Stanford, em 1974:
pesquisador deu gumas áreas de IA pouco exploradas no Brasil. mos em que campo queremos competir. Enquanto
nome ao novo “Um exemplo é Maria das Graças Volpe Nunes, isso não ocorrer, não teremos competitividade.”
campo da ciência também do ICMC-USP, que se tornou referên- Relatório lançado no começo de dezembro
da computação
cia em processamento de linguagem natural no pela editora Elsevier reforça essa percepção. In-
em 1956
país e chegou a liderar o projeto de desenvolvi- titulado ArtificiaI intelligence: How knowledge is
mento do corretor ortográfico de português do created, transferred, and used, o documento se
Brasil disponível na ferramenta Office do sistema concentrou na China, Estados Unidos e Europa.
operacional Windows”, afirma. Os dois primeiros são apontados como líderes na
No 1º Simpósio Brasileiro de Inteligência Ar- produção de pesquisa nesse campo, enquanto os
tificial, realizado em 1984 na Universidade Fe- países da Europa estão entre os lugares de maior
deral do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, diversidade de estudos a respeito de IA. Índia e
predominaram os trabalhos com sistemas espe- Irã ganham destaque como centros emergentes.
cialistas. No entanto, a exemplo do que ocorria Roberto Marcondes, do IME-USP, está entre
no exterior, também no Brasil as pesquisas em os especialistas que escreveram no documento e
IA, especialmente no campo das redes neurais, alertou para a necessidade de se desenvolver no-
já se desenvolviam muito tempo antes. vos indicadores que permitam descrever melhor
Um dos pioneiros no estudo de redes neurais a pesquisa em IA. “Tradicionalmente, os avanços
no Brasil é Nelson Mascarenhas, professor apo- nas pesquisas são descritos em artigos publicados
sentado da Universidade Federal de São Carlos em periódicos ou comunicado em conferências”,
e docente do Programa de Mestrado em Ciência diz. “Agora, com o crescimento da IA, está claro
foto chuck painter /stanford news service  ilustração nik neves

do Centro Universitário Campo Limpo Paulista. que esses indicadores cobrem apenas uma fração
Engenheiro eletrônico, ele havia concluído seu dos avanços realizados no setor”, afirma.
mestrado em 1969 pesquisando máquinas elé- No site da Elsevier, há indicadores sobre IA no
tricas, quando resolveu mudar de área. “Decidi mundo, no AI Resource Center. Um deles traz o
estudar processamento digital de imagens, que levantamento das publicações científicas sobre
era uma área considerada meio exótica”, diz. o tema de 1998 a 2017. A China, com 134.990 pu-
Mascarenhas iniciou suas pesquisas em um dos blicações, está em primeiro lugar, seguida pelos
primeiros laboratórios do mundo de processa- Estados Unidos (106.600), Índia (36.736), Reino
mento digital de imagens, na University of Sou- Unido (35.302) e Japão (35.302). O Brasil fica em
thern California, Estados Unidos. Ao concluir o 15º lugar (12.094). No ranking da colaboração inter-
doutorado, em 1974, o pesquisador trabalhou al- nacional, o país está em 18º, com 2.979 produções
guns anos no ITA e depois no Instituto Nacional feitas em parceria com pesquisadores do exterior.
de Pesquisas Espaciais (Inpe), que já contava com Estados Unidos (31.174), China (21.547) e Reino
um programa de sensoriamento remoto. “Fomos Unido (16.054) são os primeiros. n Suzel Tunes

PESQUISA FAPESP 275 | 25


Entrevista david cox y

O poder de transformar

o mundo
Neurocientista norte-americano diz que
saúde e segurança cibernética devem ser
apenas algumas das áreas beneficiadas
pelos avanços da inteligência artificial

Françoise Terzian

N
as últimas duas décadas, a vida mental em inteligência artificial”, explica
do neurocientista David Cox, Cox. Um dos objetivos do laboratório é
de 40 anos, tem girado em tor- desenvolver algoritmos, dispositivos e
no de um único tema, inteli- arquiteturas de hardwares que possi-
gência artificial (IA), o ramo da ciência bilitem criar novas soluções baseadas Cox dirige o Laboratório
da computação voltado a criar disposi- em inteligência artificial. “É um traba- de Inteligência Artificial
MIT-IBM Watson, cujo
tivos capazes de emular a capacidade lho árduo e que demanda muita inspi- foco é a pesquisa
humana de raciocinar, tomar decisões e ração”, conta. fundamental nesse ramo
solucionar problemas. Após se graduar Considerado um dos grandes especia- da ciência da computação
em psicologia e biologia na Universidade listas em inteligência artificial no mundo,
Harvard (EUA), obter um doutorado em o neurocientista participou do evento
neurociência no Instituto de Tecnologia Colloquium 2018 – Inteligência Arti-
de Massachusetts (MIT) e tornar-se pro- ficial Hoje: Avanços e Oportunidades
fessor do Center for Brain Science em na Indústria, promovido em São Pau-
Harvard, ele assumiu no ano passado a lo pela IBM. Entre uma conferência e
direção do Laboratório de Inteligência outra, ele conversou com a reportagem
Artificial MIT-IBM Watson. de Pesquisa FAPESP sobre as pesquisas
“Esse projeto, uma colaboração entre desenvolvidas no laboratório que diri-
a IBM e o MIT, representa uma parce- ge, os avanços da IA nos últimos anos e
ria inteiramente nova entre empresa e o que se pode esperar desse campo da
academia. Seu foco é a pesquisa funda- ciência no futuro.

26  z  janeiro DE 2019


O que é, afinal, inteligência artificial? claro, é um jeito de conduzir o trabalho, nós? Isso pode ser um objetivo a longo
As pessoas têm visões diferentes sobre o entender e se inspirar. É útil manter os prazo. Hoje, no entanto, o intuito é criar
que é inteligência artificial [IA]. A verda- estudos referentes à inteligência artifi- algo que nos ajude a tomar decisões, e
de é que não existe uma definição única. cial de olho no cérebro, mas não é essen- não algo que seja como nós, que fun-
Mas eu diria que é dar aos computado- cial. A inspiração vem de mais lugares do cione como nossa mente. Não estamos
res a habilidade de tomar decisões que que imaginamos, como da medicina, da criando alguma coisa que nos substitua.
nos ajudem. IA é uma forma de nos tor- física e da biologia. Há muitas oportuni- Adoraríamos ter capacidades humanas
narmos mais hábeis. É a capacidade de dades para aprender e elas se encontram na inteligência artificial, mas o objetivo
automatizar habilidades. em vários lugares. não é replicar a mente humana.

Conhecer em profundidade o funciona- Estamos perto de criar uma máquina Para muita gente, IA procura ser uma
mento do cérebro humano é importante que pense como o homem? cópia do cérebro humano. Você tem de-
para criarmos soluções mais sofistica- Essa é uma questão interessante. Quais fendido que o objetivo é fazer com que
Léo ramos chaves

das em IA? os objetivos da inteligência artificial? ela seja melhor do que nós. Isso é possível?
Não acho que seja fundamental com- Estamos tentando criar uma inteligên- Sim e já existem vários exemplos. Com-
preender como o cérebro funciona. Mas, cia artificial que seja exatamente como putadores são melhores em matemáti-

pESQUISA FAPESP 275  z  27


ca e em fazer cálculos complexos. Há Durante o Colloquium 2018 sobre IA,
também os carros autônomos, uma realizado em São Paulo, você mencio-
aplicação importante da atualidade no nou que dois dos principais alvos de
campo da inteligência artificial. O ho- pesquisas da IBM são as áreas da saú-
mem, quando dirige, utiliza suas mãos Os avanços de e segurança.
e os olhos. O carro, não. Ele pode estar Saúde e cibersegurança são temas de
dotado de câmeras, sensores e receber têm o potencial extrema importância e necessidade. In-
diferentes comandos sobre direções e divíduos, empresas e governos são al-
velocidade. São capacidades mais so-
de mudar vos dos cibercriminosos e a inteligência
fisticadas e que permitem acesso a in- o mundo e artificial pode fazer a diferença. Já na
formações de forma mais rápida que a área da saúde, a ideia é que ela ajude os
mente humana. Você não precisa neces- trazer reais médicos na análise de dados e imagens.
sariamente ensinar o carro a dirigir da A IA tem a capacidade de encapsular
mesma forma que um homem. benefícios para conhecimento e ajudar na tomada de
decisão. Um dos nossos sonhos é auxi-
Mas o comportamento humano é levado
a humanidade liar os médicos a serem melhores do que
em conta na hora de criar tecnologias são hoje. Também há estudos gerais em
baseadas em inteligência artificial? IA para entender melhor as moléculas,
Diversas aplicações de IA já entendem o a biologia e também para desenvolver
comportamento humano, até por terem medicamentos melhores. É um cami-
sido desenvolvidas por pessoas. No caso nho árduo, uma vez que nada acontece
dos carros autônomos, por exemplo, de- da noite para o dia.
vemos levar em consideração diversos
fatores como, por exemplo, a existência no setor agrícola. A IBM tem iniciati- Upload de cérebros, um tema que mexe
de pedestres que atravessam a rua em vas dedicadas ao bem-estar social que com o imaginário das pessoas, é algo
situações variadas e adversas. utilizam IA como pano de fundo. Com real ou faz parte do universo da ficção
o apoio de soluções baseadas em inteli- científica?
A seu ver, quais as principais contribui- gência artificial, a ciência e a tecnologia Fazer upload de cérebros [processo de
ções da pesquisa aplicada à inteligência aplicadas podem resolver diversos pro- copiar a mente de uma pessoa e trans-
artificial para a sociedade? blemas de difícil solução. Temos clareza feri-la para um robô] é uma ideia de fic-
Há atualmente muitos serviços e produ- de que haverá avanços importantes na ção científica. Tem gente interessada no
tos disponíveis que são fruto dos avanços área da saúde. Muita coisa acontecerá tema, mas não é real. É engraçado ou-
em IA, especialmente aqueles que fazem nesse setor, assim como no agronegócio, vir a respeito, mas é algo do qual ainda
parte da infraestrutura de TI [tecnologia de onde já surgem muitas soluções pa- estamos muito, muito distantes. Esse
da informação]. São sistemas invisíveis ra elevar a eficiência do campo. E tam- tema foi mencionado em 2017 durante
ao público, mas que ajudam na tomada bém em educação. Sistemas baseados o Fórum Econômico Mundial, do qual
de decisões e resultam no aumento da em IA serão capazes de interagir com as participei, mas eu imediatamente des-
eficiência em diversos setores da socie- pessoas e ensiná-las. Há oportunidades menti. Não é realidade. É Hollywood.
dade. Há, ainda, aplicações importantes muito interessantes a caminho.
Quanto se investe no mundo hoje em IA?
Não tenho essa resposta na ponta da lín-
Ilustração artística gua, mas bilhões de dólares circulam
de bactérias do atualmente em projetos de IA em di-
intestino: cientistas
da IBM e do MIT
versos países, seja em empresas ou em
usam IA para âmbito governamental, da China aos Es-
entender melhor os tados Unidos, passando pela Europa.
microrganismos e Todas as nações e setores enxergam o
criar novas drogas
tema como estratégico para o futuro.
Estamos apenas no início dessa jornada,
mas dá para fazer muito com inteligên-
cia artificial hoje. É animador observar
todo horizonte que temos pela frente.

Que demandas do setor empresarial os


avanços em IA poderão ajudar a resol-
ver nos próximos anos?
Vários problemas enfrentados por em-
presas de diferentes setores poderão ser
1 solucionados com o uso de IA. Um deles

28  z  janeiro DE 2019


2 Sala do Laboratório de
Inteligência Artificial
MIT-IBM Watson
dedicada a pesquisas
sobre cibersegurança

é o que chamo de small data. Falamos Quanto está sendo investido no labora- ritmos de aprendizado de máquina e ou-
muito sobre big data, mas nem sempre tório? E onde os recursos estão sendo tras aplicações de inteligência artificial.
temos acesso aos melhores dados e no aplicados?
formato certo. O avanço virá nos pró- O investimento definido para o prazo de Quais são os outros dois pilares?
ximos cinco anos com o uso de menos 10 anos é de US$ 240 milhões. Esse di- O terceiro são as aplicações voltadas para
dados. A ideia é que será possível fazer nheiro está sendo empregado no desen- a indústria. Olhamos para os problemas
mais com menos dados, sem a necessi- volvimento de softwares e máquinas, em desse setor para entender suas deman-
dade de organizar e interpretar volumes processamento e em pessoas. Em todas das e necessidades, como já acontece nas
enormes de informações. A própria IA as organizações, os recursos humanos áreas da saúde e segurança cibernética. O
promoverá progressos nesse sentido e são os mais caros. último pilar é o que chamamos de com-
ajudará, por meio de sistemas, a fazer partilhamento de prosperidade. Explo-
a curadoria dos dados. Dessa forma, as Que projetos são desenvolvidos pelo ramos como a IA pode gerar benefícios
empresas e seus funcionários serão ca- laboratório? econômicos e sociais a uma gama mais
pazes de realizar mais com menos. Organizamos os nossos projetos em cima ampla de pessoas, nações e empresas.
de quatro pilares. O primeiro deles é o Estudamos as implicações econômicas
Qual é o foco das pesquisas conduzidas desenvolvimento de algoritmos avança- da IA e investigamos como ela pode me-
no Laboratório de Inteligência Artifi- dos para expandir os recursos de apren- lhorar a prosperidade e ajudar os indi-
cial MIT-IBM Watson, criado em 2017? dizado de máquina e raciocínio. Isso en- víduos a melhorar suas vidas.
Nosso foco é a pesquisa fundamental. volve a criação de sistemas de IA que vão
Quando decidiram criar o laboratório, a além das tarefas especializadas, lidando Quais são os seus maiores desafios à
Fotos 1 ibm 2 John Mottern / Feature Photo Service for IBM

IBM e o MIT [Instituto de Tecnologia de com problemas mais complexos e se be- frente do laboratório?
Massachusetts] se questionaram sobre o neficiando de um aprendizado contínuo É um trabalho árduo, que demanda mui-
que seria necessário para destravar todo e robusto. Novos algoritmos que não ape- ta inspiração e ideias. Muitos outros pro-
potencial em torno da IA. A ideia é alçá-la nas aproveitam grandes quantidades de fissionais, de grandes universidades e
a outro nível. Por isso, diferentes tipos de informações, mas que também aprendem companhias, estão investindo nesse se-
pesquisas são conduzidos no laboratório. com dados limitados para aumentar a in- tor. Tentamos trabalhar de forma dife-
Nós nos perguntamos que tecnologias não teligência humana. Ao mesmo tempo, in- rente nessa área, que se tornou muito
temos hoje que nos permitirão resolver vestigamos novos materiais, dispositivos competitiva, como uma corrida de car-
problemas no futuro. Buscamos inven- e arquiteturas de hardware que apoiarão ros. Isso porque a inteligência artificial
tar novas abordagens para a IA, criando futuras abordagens computacionais para tem o potencial de mudar o mundo e
propostas que nos permitam desenvolver treinamento e implantação de modelos trazer benefícios reais para a humani-
aplicações e solucionar problemas que de IA. Também pesquisamos computação dade. Com ela, nossa vida ficará mais
não conseguimos resolver hoje. quântica para otimizar e acelerar os algo- fácil, saudável e segura. n

pESQUISA FAPESP 275  z  29


entrevista Nei Braz Lopes

O dicionarista
heterodoxo
Historiador do samba, compositor de música
popular e especialista em línguas e culturas da
África escreveu mais de 30 mil verbetes

Christina Queiroz  |  retrato  Léo Ramos Chaves

A
fricanista autodidata, Nei Braz Lopes Moreira (1936-2018) e colocou letra em trabalhos
já publicou sete dicionários e uma en- do maestro Moacir Santos (1926-2006), reveren-
ciclopédia sobre línguas e culturas da ciado por várias gerações de músicos brasileiros.
África. Sua produção ultrapassa 30 mil Preocupado com o viés didático de sua pro-
verbetes. Cerca de 250 desses registros, integran- dução intelectual, Lopes defende que o ensino
tes do Dicionário banto do Brasil, de 1999, foram da história da África nas escolas brasileiras seja
incorporados ao Dicionário Houaiss da língua baseado na ancestralidade do continente e não
portuguesa, elaborado por Antônio Houaiss. Em no tráfico atlântico e na escravidão. Em sua in-
2016, seu Dicionário da história social do samba, terpretação, o enfoque atual afasta o interesse do
escrito em coautoria com Luiz Antonio Simas e público jovem pelo assunto. Nesta entrevista, o
que propõe uma nova leitura historiográfica da pesquisador trata de sua produção intelectual, da
gênese desse gênero musical no Brasil, venceu experiência como romancista e compositor de mú-
o prêmio Jabuti na categoria Teoria/Crítica Li- sica popular, além da militância pela causa negra.
terária, Dicionários e Gramáticas.
idade  76 anos
Nascido em 1942 no bairro de Irajá, subúr- Como a África se tornou seu objeto de pesquisa?
bio do Rio de Janeiro, Lopes é o mais jovem de Eu sou o mais novo de 13 irmãos, que hoje estão especialidade
13 irmãos. Graduou-se, em 1966, na Faculdade todos mortos. O mais velho já teria cumprido Estudos africanos
Nacional de Direito da antiga Universidade do 100 anos. Minha mãe, Eurydice de Mendonça
formação
Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Ja- Lopes, era dona de casa e meu pai, Luiz Braz
Bacharel em direito
neiro (UFRJ), mas, poucos anos depois de se Lopes, trabalhava como pedreiro. Eu fui o úni-
e ciências sociais
formar, decidiu abandonar a carreira jurídica co a concluir a educação básica e, mais tarde, o
pela UFRJ
para se dedicar à música popular, à literatura e ensino superior. Quando resolvi abandonar a
aos estudos sobre a África. Desde que começou carreira de advogado foi um escândalo. O fato produção
a compor profissionalmente, em 1972, já teve de meu pai ter nascido em 1888, três meses an- 37 livros, entre eles,
músicas gravadas por artistas como Ivan Lins, tes da Abolição, foi fundamental para despertar sete dicionários e
Chico Buarque, Dudu Nobre, João Bosco, Fátima meu interesse sobre os estudos africanos. Ele uma enciclopédia
Guedes e Martinho da Vila. Compôs com Wilson era uma referência para mim e meus irmãos e

30 | janeiro DE 2019
PESQUISA FAPESP 275 | 31
morreu na véspera do meu aniversário da, foi começar a ler muito. Desde jo- articuladas, permite que o assunto tra-
de 18 anos. Jamais conheci detalhes de vem, tinha grande interesse pela África tado seja estudado com mais facilidade,
sua infância ou de sua vida. Sua história e passei a buscar em livrarias e sebos na medida em que a informação é con-
pessoal sempre foi nebulosa e ele morreu do centro do Rio de Janeiro obras que densada em verbetes objetivos.
antes de eu amadurecer suficientemen- abordassem histórias, culturas e línguas
te para poder conversar melhor sobre o do continente. Naquela época, principal- E decidiu, então, fazer o seu próprio
assunto. Sei que, no seu registro de nas- mente os sebos comercializavam acervos dicionário...
cimento, constavam os nomes de seu pai amplos de livros da época colonial, além Exato. Resolvi elaborar um dicionário
e sua mãe, mas ele nunca disse nada a de compilados de relatórios escritos por para identificar, aqui, os vocábulos da
respeito deles. Dava a impressão de que funcionários imperiais. Comecei a adqui- língua portuguesa com origem no uni-
não os conheceu e cresceu meio largado. rir materiais com essas características, verso dos povos bantos, denominação
Esse desconhecimento foi determinan- sem saber que eram obras raras e que que engloba centenas de línguas e diale-
te em minha trajetória intelectual, pois seriam importantes para o desenvolvi- tos africanos. No Brasil, os idiomas qui-
ao estudar a África percebi que queria, mento do meu trabalho. Comprei mui- congo, umbundo e quimbundo exerce-
também, reconstruir meu próprio pas- tos dicionários raros. Um dos primeiros, ram maior influência sobre o português
sado. Há cinco anos, o historiador Flávio que está comigo até hoje, foi uma edi- devido à procedência, em maior quan-
dos Santos Gomes me contou que estava ção de três volumes de um dicionário tidade, de africanos com essas origens.
realizando uma pesquisa em igrejas do bilíngue francês-quicongo, um idioma Palavras como babá, baia, banda, caçapa,
centro do Rio de Janeiro, para identifi- do Sudoeste africano. Cientes do meu cachimbo, dengo, farofa, fofoca e minho-
car certidões de batismo de negros que interesse, amigos que viajavam à África ca, por exemplo, têm origem provável
ocorreram no século XIX. Contei a ele ou Europa começaram a me presentear ou comprovada em línguas bantas e o
que meu pai havia sido batizado na igreja com obras raras que encontravam. Ho- quimbundo pode ter sido o idioma que
de Nossa Senhora Lampadosa, próxima à je, tenho uma biblioteca com cerca de 3 mais contribuiu à formação de nosso
praça Tiradentes. Então, em suas pesqui- mil livros e uma quantidade grande de vocabulário. Como resultado desse es-
sas, Flávio encontrou o registro de batis- dicionários de línguas africanas. Por ou- forço, em 1999 publiquei o Dicionário
mo do meu pai e de duas irmãs dele. Eu tro lado, também percebi que dicionários banto do Brasil, com mais de 8 mil ver-
jamais soube que meu pai tinha irmãs. funcionam como um meio didático efi- betes. Mais tarde, em 2012, ele foi revi-
Acontecimentos como esse me mobili- caz para disseminar conhecimento. Um sado, ganhando nova edição com o título
zaram a seguir pesquisando. Sou casa- livro desse gênero, com remissões bem Novo dicionário banto do Brasil. Nessa
do com Sonia Regina Lopes desde 1982, versão, corrigi equívocos, acrescentei
tenho um filho do primeiro casamento hipóteses e aumentei a quantidade de
e dois netos. Meu filho é professor de verbetes, incorporando vocábulos que
educação física, mas meus netos acabam identifiquei, também, em trabalhos sobre
de ingressar em carreiras semelhantes quilombos remanescentes. Ao constatar
à minha: o rapaz está cursando história a quantidade de palavras originárias de
na Universidade Federal Rural do Rio idiomas bantos que circulam pelo país,
de Janeiro (UFRRJ) e a moça ciências quis comprovar a importância dessas
sociais na UFRJ. culturas para o contexto nacional. Assim,
escrever dicionários, para mim, também
Quando e por que o senhor decidiu es- é uma tarefa política.
crever dicionários?
Eu tinha 12 ou 13 anos quando percebi Ao estudar a Como esse primeiro dicionário foi re-
que o povo afrodescendente, ou afro- cebido?
-brasileiro, não contava com uma repre-
sentação positiva nos meios de comuni-
África percebi A primeira edição foi acusada de ser um
trabalho amador e fantasioso. Algumas
cação. De modo geral, me dei conta de
que só apareciam nos noticiários poli- que queria, pessoas do meio acadêmico disseram
que esse tipo de dicionário só poderia
ciais ou em um viés caricato. Os artis- ser produzido por especialistas. Depois,
tas negros nunca eram conhecidos pe- também, porém, o livro teve um destino brilhan-
los seus nomes, apenas pelos apelidos, te. Pouco tempo antes de morrer, [o le-
como Chocolate, Jamelão, Gasolina ou
Noite Ilustrada. Nesse momento, passei
reconstruir xicólogo, diplomata e crítico literário]
Antônio Houaiss [1915-1999] me ligou,
a colecionar figurinhas e recortes de re-
vistas que mostravam meus semelhantes
meu próprio pedindo para incorporar 250 hipóteses
etimológicas por mim formuladas no
em condições favoráveis. Mais tarde, em
1981, sofri um grande trauma, ao perder passado seu Dicionário Houaiss da língua portu-
guesa, publicado em 2001. À época, eu
um dos meus filhos em um acidente no mantinha uma relação respeitosa com
mar. O jeito que encontrei para ocupar Houaiss, que em 1987 havia prefaciado
minha mente, e tentar superar essa per- meu livro de contos Casos crioulos.

32 | janeiro DE 2019
arquivo Pessoal

Rio, 18 de novembro de 1997

Meu caríssimo Nei Lopes,

Deixe-me agradecer-lhe vivamente o


exemplar que me ofereceu do seu Dicionário
banto do Brasil, notável passo à frente
na pesquisa lexicográfica de africanismos
entre nós e que vai ser sempre consultado
pela equipe que colabora comigo na
elaboração do grande dicionário.
Estamos na rua Viúva Lacerda, 112,
no Humaitá, onde você será bem vindo
quando quiser, onde espero dar-lhe meu
abraço de agradecimento e talvez obter de
você um segundo exemplar do dicionário.
Repetindo meus parabéns e agradecimentos,
seu fan entusiasmado e colega,

Antônio Houaiss

Essa experiência motivou-o a seguir atingir um público de estudantes. Nes- temas e verbetes. Por exemplo, eu incluí
escrevendo dicionários? se novo trabalho, publicado em 2006, vocábulos sobre “racismo” e “sexismo”
Depois do Dicionário banto do Brasil, deixei de lado algumas informações e no Dicionário da história social do sam-
me veio a ideia de produzir outro, mul- incluí outras mais condizentes com o ba [2015], pois sei que esses termos são
tidisciplinar, sobre a presença de africa- novo público. Outros dicionários que fiz relevantes no contexto abordado pelo
nos no Brasil e nas Américas. Então, em e dos quais gosto muito são o Dicioná- livro, apesar de as pessoas não imagina-
2004, publiquei a Enciclopédia brasileira rio literário afro-brasileiro, de 2007, e o rem que irão encontrá-los em uma obra
da diáspora africana, com cerca de 9 mil Dicionário da hinterlândia carioca, de assim. Ao mesmo tempo, o livro contém
verbetes contendo informações ligadas 2012. Hinterlândia é um termo usado verbetes sobre “jogo do bicho” e “indús-
à matriz cultural do mundo africano. O para definir localidades isoladas e esse tria fonográfica”, que apresentam relação
livro aborda assuntos diversos, entre eles livro aborda verbetes relacionados ao mais direta com o universo do samba.
biografias de personagens, vestuário, fa- subúrbio do Rio de Janeiro. Me parece que esse dicionário ganhou
tos históricos e contemporâneos, aciden- o prêmio Jabuti justamente por reunir
tes geográficos, flora e fauna, festas e di- Nos seus dicionários sobre história da esse tipo de informação mais óbvia so-
vertimentos, profissões e atividades. Nos África, o senhor inclui verbetes inusi- bre o samba e abordagens não comuns.
anos 2000, eu ainda não tinha a respeita- tados, como “analfabetismo”, “aptidão
bilidade que acabei conquistando como esportiva em negros”, ou mesmo “Mário Qual a proposta historiográfica do Di-
africanista, então o projeto foi entregue de Andrade”, ao lado de outros previ- cionário da história social do samba?
a uma empresa editorial especializada. síveis como “africanismo” e “agrega- Antes de o samba se popularizar no Rio
Com o pretexto de fazer copidesque da dos”. Por quê? de Janeiro, nos primeiros anos do século
minha pesquisa, eles modificaram infor- Penso que minha sensibilidade, aliada XX, ele era praticado de diferentes ma-
mações, gerando um grande desconforto. à experiência de vida, me permite esta- neiras, em diferentes regiões do Brasil.
Após alguns embates, conseguimos acer- belecer essas relações aparentemente Essas vertentes se amalgamaram para
tar a situação e o livro foi, finalmente, inusitadas. Estou tendo o privilégio de gerar o tipo de samba que conhecemos
publicado. Mas obras como dicionários experimentar uma vida longa e circular como “samba carioca” e que ganhou o es-
demandam constantes atualizações e no- por ambientes variados. Durante mais de tatuto de gênero popular nacional. No li-
vas edições, o que ainda não consegui fa- 30 anos, vivenciei o cotidiano de escolas vro, procuramos mostrar como esse sam-
zer com essa enciclopédia. Mesmo assim, de samba. Além da indústria fonográfica ba foi criado a partir de um processo que
sigo arquivando informações para poder, e dos meios intelectuais e literários, tran- envolveu a prática do gênero musical em
no futuro, trabalhar em uma reedição sito pelo universo das religiões afro-bra- regiões distintas do país, desconstruindo
atualizada. A enciclopédia tem 800 pá- sileiras e afro-cubanas. As experiências a ideia de que ele teria sido concebido
ginas e é um livro caro. Após publicá-la, múltiplas e diversas ampliam meu reper- na cidade do Rio, com o surgimento das
percebi que tinha de produzir uma versão tório para além do universo unicamente primeiras escolas de samba, na década
mais popular e propus à editora elaborar teórico e me possibilitam estabelecer de 1920. O universo do samba aparece,
o Dicionário escolar afro-brasileiro, para relações não óbvias entre determinados inclusive, em registros literários. Eucli-

PESQUISA FAPESP 275 | 33


des da Cunha [1866-1909], em Os sertões, dentes, porque ninguém se interessa.
publicado em 1902, descreve situações Os currículos costumam começar a
em que o samba está presente na guerra abordagem do assunto a partir da es-
de Canudos, por exemplo. Aluisio Aze- cravidão, partindo do princípio de que
vedo [1857-1913] em O cortiço, de 1890, Abordar a os nossos ancestrais foram todos es-
também faz essas descrições. Na África, cravos. Isso incomoda muito o públi-
o samba já existia muito antes. Em dicio-
nários de quicongo, língua de Angola, a
história do co adolescente. Há três meses, fiz uma
palestra sobre a África em uma escola
palavra “samba” é definida como uma
forma musical. Por isso considero equi-
continente pública na periferia do Rio de Janeiro.
Estava preocupado com a maneira co-
vocado pensar que tudo começou no Rio, mo aqueles estudantes, que têm nível
com a emergência das escolas de samba. africano a de escolarização pouco desenvolvido,
receberiam minha fala. Então organi-
O senhor trabalhou sozinho na elabo- partir da zei a palestra de forma a levantar a au-
ração dos dicionários? toestima dos alunos, mostrando que não
No começo, produzi meus trabalhos de
maneira independente, sem o suporte de
escravidão somos inferiores em relação a outros
povos e temos uma história ancestral
equipes ou parceiros. Jamais contei com
fontes de financiamento para produzi- afasta o anterior à escravidão. Nos ensinamentos
sobre a África, é preciso descolonizar o
-los, mas gostaria de ter tido. O método pensamento brasileiro, deixando eviden-
tem sido desenvolver o dicionário para, público jovem te como os grandes centros europeus
depois, apresentá-lo às editoras. Para es- espoliaram o continente e que, hoje, a
crever o primeiro, o Dicionário banto do realidade africana é fruto dessas ações.
Brasil, recebi ajuda funcional da Uni- Até agora, o discurso sobre a valorização
versidade Estadual do Rio de Janeiro da identidade negra quase sempre fica
[UERJ], que fica próxima à casa em que restrito a circuitos fechados, em teses
eu morava, no bairro de Vila Isabel. Na- acadêmicas ou ambientes de militância.
quela época, eu não usava computador, título de doutor honoris causa, algo que Eu ainda não vejo esse discurso se popu-
e um amigo, que era pró-reitor, conse- aconteceu no final de 2017. larizar e penso que aulas centradas na
guiu que funcionários da instituição me valorização da autoestima da população
ajudassem a digitalizar o material pes- Como o senhor desenvolve a pesquisa negra podem colaborar nesse sentido.
quisado. No entanto, durante o processo que resulta nos dicionários? De onde
de elaboração do Dicionário da história vem seu conhecimento linguístico? Qual seria o termo mais apropriado
social do samba, percebi que era necessá- Considero-me um bibliômano. Por exem- para definir a população afrodescen-
rio dividir tarefas, pois fazer dicionários plo, a pesquisa para elaborar e, mais tar- dente no Brasil?
é trabalho árduo. Tenho 76 anos e não de, revisar o Dicionário banto do Brasil Na década de 1980 não havia uma cla-
posso esperar para publicar livros pos- envolveu consultas em bibliografias do reza sobre esse assunto e a palavra “ne-
tumamente. Convidei, então, Luiz Anto- meu acervo, mas também conversas com gro” era considerada pejorativa. Porém,
nio Simas, historiador e professor, para pessoas que tiveram contato com os idio- o movimento negro decidiu que ela era
trabalhar comigo no projeto. Em 2011, mas e dialetos bantos, o estudo de canti- adequada para abarcar o amplo universo
quando publiquei o Dicionário da anti- gas antigas, consultas a léxicos, glossários dos afrodescendentes do Brasil, indepen-
guidade africana, tive a ideia de elaborar e outros dicionários, atenção à fala dos dentemente da tonalidade de sua pele.
outro, de história da África, que focali- morros, terreiros, bares e trens suburba- Já o Instituto Brasileiro de Geografia e
zasse o período mais crítico e importan- nos. É um trabalho de pesquisa híbrido. Estatística, o IBGE, adota as subdivisões
te à afro-brasilidade, ou seja, a época da Minha biblioteca está desorganizada e “pretos” e “pardos”, o que pode facilitar
escravidão e do tráfico atlântico a partir nada foi catalogado ainda. Muitas vezes, a criação de políticas públicas específicas
do século XVII. Porém, me dei conta de encontro livros que nem sequer lembra- para essa parcela da população. Segun-
que para chegar até esse período seria va que tinha. Meu acervo é resultado de do a definição que utilizo, um negro é
necessário, primeiro, abordar o momento um interesse dirigido sobre a África. E eu qualquer descendente de africano que
anterior, para mostrar as grandes civili- não me desvirtuo desse caminho. Muitas se assume como tal, ou que tenha noto-
zações e impérios que existiam na África vezes, sinto vontade de estudar outros as- riamente essa marca identitária. Eu, por
durante os séculos VII a XVI. Para isso, suntos, mas logo desisto, pois sei que pre- exemplo, tenho a pele mais clara do que
procurei um parceiro, o historiador José ciso me concentrar nesse universo amplo. o habitual em um preto, mas minha fa-
Rivair Macedo, professor na Universida- mília é obviamente afrodescendente pela
de Federal do Rio Grande do Sul. Juntos, Como o senhor avalia a maneira como coloração da pele. Nos Estados Unidos e
desenvolvemos o Dicionário de história a história da África é ensinada nas es- em Cuba, por exemplo, a definição ocor-
da África – séculos VII a XVI. Macedo colas brasileiras? re pela origem, ou seja, “afro-cubano” ou
ficou tão satisfeito com o resultado que Normalmente é ruim dar aulas sobre “afro-americano”, mas isso é mais difícil
propôs à UFRGS que me concedesse o a África para classes com afrodescen- de ser colocado em prática no Brasil.

34 | janeiro DE 2019
Minha busca por conhecimento atende
arquivo Pessoal

ao desejo de resgatar a autoestima do


público que me interessa e não de res-
ponder aos anseios de determinadas cor-
rentes intelectuais. Filiar-se a vertentes
de pensamento teórico é importante para
quem quer trilhar caminhos acadêmicos.
Eu sou um prático, quero ver o conhe-
cimento que produzo atingir o público
sobre quem escrevo. Por exemplo, em
termos de história da África, [o diplo-
mata e historiador] Alberto da Costa e
Silva, também africanista, é uma grande
Nei Lopes referência para mim. A partir dos estu-
recebe título dos dele, o conhecimento sobre o conti-
de doutor
honoris causa
nente se disseminou pelo país. Mas não
do reitor da tenho filiação teórica em relação ao pen-
UFRGS samento dele. Em meados dos anos 1930,
tanto no Brasil quanto em Cuba houve
um momento dos estudos africanos que
Em que projeto o senhor trabalha atual- drogas, corrupção e política, abordan- ficou marcado pela figura do folclorista
mente? do também a questão dos evangélicos ou do etnólogo. Pertencentes a famílias
Estou elaborando o terceiro dicionário neopentecostais. Além da ficção, estou patriarcais, seu interesse pela África foi
sobre a história da África, com foco no prestando um serviço de consultoria à despertado pelo contato que tiveram
período da escravidão. Depois dele con- área de dramaturgia de uma rede de te- com os empregados que trabalhavam
cluo, com Luiz Antonio Simas, um di- levisão, que deseja mudar sua abordagem em suas casas. Esses foram os casos do
cionário sobre a religiosidade negra nas sobre assuntos como a identidade negra [sociólogo e historiador] Gilberto Freyre
Américas e esgoto a minha fase de dicio- e a questão das periferias. É revigorante [1900-1987] e da antropóloga e escritora
nários. Quero me dedicar mais intensa- observar o reconhecimento do meu tra- cubana Lydia Cabrera [1899-1991]. Esse
mente à ficção, vertente do meu trabalho balho chegar, também, por outras vias. perfil de estudioso é diferente do inte-
que ganha projeção. É uma visibilidade lectual que aborda assuntos relacionados
merecida, pois com minha literatura eu Com que definição de literatura afro- à identidade negra por ser militante da
também dou voz ao povo negro. Na his- descendente o senhor trabalha? causa. Considero-me um militante, não
toriografia literária brasileira, são pou- Defino literatura afrodescendente como um militante tradicional, mas sim um
cos os casos de protagonistas negros e, aquela que dá protagonismo para perso- ativista, pois não sou filiado a organiza-
nos meus livros, o protagonismo não fi- nagens afrodescendentes. Mas há pes- ções, como acontecia na década de 1980,
ca apenas com um personagem isolado, soas que reivindicam outras acepções quando os partidos políticos contavam
mas com toda uma comunidade, como para esse gênero literário. Por exemplo, com núcleos específicos para defender
em Rio Negro, 50, que aborda a vida na no Haiti, no início do século XX, surgiu pautas relativas à população negra.
cidade na década de 1950, ou mesmo em uma geração de escritores que escrevia
O preto que falava iídiche, que acaba de em crioulo haitiano. Ou seja, autores que Como as diferentes vertentes do seu
sair. Este último acompanha o périplo do utilizavam uma espécie de dialeto local, trabalho se alimentam?
personagem principal por vários lugares usado oralmente, para fazer literatura A ficção, os dicionários e a composição de
do mundo. Ele retorna ao Brasil durante a escrita. No Brasil é diferente, não se pode música confluem para o mesmo caminho.
Revolução de 30, sugerindo que houve um pretender que uma literatura afrodescen- No início da trajetória como compositor,
protagonismo negro nesse evento históri- dente seja aquela escrita em um idioma também escrevi letras de músicas com o
co. É claro que é uma invenção literária, específico, porque aqui todos falam por- objetivo de difundir a cultura de matriz
mas a ideia está lá. Os primeiros livros de tuguês. No país, a identidade da literatura africana, mas o mercado nem sempre
ficção que publiquei tinham o universo afro-brasileira é construída, essencial- aceita esse tipo de trabalho. Então, às ve-
do samba como ambiente central. Agora, mente, conforme o protagonismo que zes, preciso partir para produções mais
tenho já pronto um romance sobre a bai- os escritores dão a personagens negros. comerciais. Quando posso incluir ques-
xada Fluminense, onde moro há 10 anos. tões sobre a identidade negra na minha
Eu vivi no subúrbio do Rio toda a vida e, Como seu perfil de pesquisador inde- música, busco amparo nos meus livros.
depois de me mudar para Seropédica, a pendente reverbera em sua trajetória? Ao mesmo tempo, minha literatura se ali-
cerca de 60 quilômetros da capital, pas- Eu me formei em direito e fui advoga- menta da vivência nos meios da música
sei a ter uma visão ampliada sobre como do por curto espaço de tempo, mas não e do samba. Antes, eu costumava dizer
os governantes tratam a periferia. O ro- era um bom aluno e tampouco um bom que quem pagava as contas da casa do
mance se intitula Agora serve o coração e advogado. Eu me guio mais pela sensi- escritor era o sambista. Agora, as duas
envolve uma história fantástica de crime, bilidade do que por formação teórica. vertentes estão equilibradas. n

PESQUISA FAPESP 275 | 35


política c&T  financiamento y

Ciclo
interrompido
Indicadores de ciência e tecnologia do MCTIC
mostram efeito da recessão nos dispêndios em
pesquisa e desenvolvimento no país em 2016

Fabrício Marques

O
ano de 2016 marcou o fim e a reversão de um ci-
clo, que durou quatro anos ininterruptos, em que
os investimentos do Brasil em pesquisa e desen-
volvimento (P&D) cresceram de forma regular e
consistente no Brasil. O dispêndio nacional em P&D naquele
ano alcançou 1,27% do Produto Interno Bruto (PIB), abaixo
do 1,34% obtido em 2015, um recorde histórico. Em valores
corrigidos pela inflação em 2016, a queda foi de 9% – de R$ infográfico ana paula campos  ilustraçãO LittleScience_FreeIconSet

87,1 bilhões para R$ 79,2 bilhões de um ano para o outro. O


PIB brasileiro recuou 3,6% em 2016, em um momento agudo
de recessão. Esses dados integram um amplo diagnóstico,
com 164 páginas de quadros e estatísticas, que compõe a
edição 2018 dos Indicadores nacionais de ciência, tecnologia
e inovação, lançado pelo governo federal em outubro.
Os gastos em P&D são uma medida do esforço de um país
para estimular o desenvolvimento. Envolvem um conjunto de
atividades, feitas por empresas, universidades e outras insti-
tuições científicas, que inclui os resultados de pesquisa básica
e aplicada, o lançamento de novos produtos e a formação de
pesquisadores e profissionais qualificados. A redução obser-
vada no Brasil atingiu tanto os dispêndios públicos, que fo-
ram de R$ 45,5 bilhões em 2015 para R$ 41,5 bilhões em 2016,

36  z  janeiro DE 2019


Dispêndio nacional em P&D em relação ao PIB (%)
1,5

A evolução 1,34

dos investimentos 1,27 1,27

em P&D no Brasil
1,20
1,16 1,14
1,13 1,12 1,13
1,08

1,0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

% do
Público Privado Outros* PIB
Como o 2% 4,23%
Coreia do Sul 23% 75%
investimento
em P&D é Japão 15% 78% 7% 3,14%
composto e a
Estados Unidos 25% 62% 13% 2,74%
comparação *Inclui ensino
com outros China 20% 76% 4% 2,11% superior,
instituições
países
Brasil 52,4% 47,6% 1,27% privadas sem
fins lucrativos
e estrangeiras

Dispêndios públicos federais Dispêndios públicos estaduais


Investimentos em P&D dos ministérios (milhões de R$ Investimentos em P&D dos governos
corrigidos para 2016*) * Valores dos estados em 2016 (milhões de R$)
corrigidos pelo
IGP-M (FGV)
SP 10.685

20.000 RJ 1.041

17.500
PR 984

Educação BA 379
15.000 15.964
MG 322
12.500
SC 260
10.000
PE 170
7.500
RS 134
Ciência e Tecnologia
5.000 4.380
CE 132
Agricultura  3.191
2.500
Saúde  2.367 GO 114
Defesa  353
0
Comunicações  229 PB 112
2012 2013 2014 2015 2016 Meio ambiente  58
Outros 574
Outros  48

Fonte indicadores de cti 2018 – mctic

pESQUISA FAPESP 275  z  37


quanto os empresariais, que passaram de R$ 41,6
bilhões para R$ 37,7 bilhões no período, em va-
lores corrigidos pela inflação, de acordo com os
cálculos feitos pelo Ministério da Ciência, Tecno-
logia, Inovações e Comunicações (MCTIC). “Em
função de tudo o que aconteceu em 2016, com a
retração na produção industrial e as restrições
orçamentárias que o governo teve de enfrentar,
eu esperava uma queda até mais acentuada e fi- financiar a ciência, pois o prejuízo de adiar a reali-
quei surpreso”, diz o engenheiro Álvaro Prata, zação de projetos é amenizado com sua retomada
secretário de Desenvolvimento Tecnológico e um pouco adiante. “Mas no Brasil os cortes vêm se
Inovação do MCTIC entre 2016 e 2018. tornando crônicos”, pondera. Ele lembra que os
cortes do MCTIC se repetiram em 2017 e 2018, e se

S
egundo os dados, os cortes orçamentários projetam no orçamento de 2019. “Há um aumento
do governo federal envolvendo despesas nominal no orçamento, que, no entanto, embute
com P&D foram relativamente modestos R$ 1,5 bilhão da capitalização dos Correios e da
no cômputo geral: em valores de 2016 corrigi- Telebrás”, diz. Nos cálculos da ABC, os recursos
dos pela inflação, a redução foi de pouco mais de para bolsas do CNPq cairão 25% neste ano. Já a
9,3% entre 2015 e 2016. Mas a tesoura atingiu de Finep terá apenas R$ 1 bilhão dos R$ 4 bilhões
forma especialmente severa os investimentos do arrecadados para o Fundo Nacional de Desen-
então Ministério da Ciência, Tecnologia e Inova- volvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
ção (MCTI), que viu esse tipo de dispêndio cair “O restante dos recursos, que poderiam alavancar
27,5% – de R$ 6,04 bilhões para R$ 4,38 bilhões, a inovação no Brasil e favorecer o crescimento
segundo os Indicadores –, comprometendo sua da economia, será mais uma vez contingenciado
capacidade de financiar projetos em universi- e usado para amortizar as dívidas do governo.”
dades e instituições científicas e em empresas
inovadoras por meio de agências como o Con-
selho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de Estudos Cortes atingiram de forma mais severa
e Projetos (Finep). “As empresas dependem de
incentivos para investir em P&D e o volume de em 2016 o orçamento do então Ministério
editais da Finep oferecendo recursos não reem-
bolsáveis a projetos de inovação empresariais
da Ciência, Tecnologia e Inovação
caiu muito nos últimos anos”, observa Luiz Fer-
nando Vianna, presidente da Associação Brasi-
leira das Instituições de Pesquisa Tecnológica e
de Inovação (Abipti). Em maio de 2016, o MCTI Segundo o presidente da ABC, o longo jejum
fundiu-se com o das Comunicações, pasta cujo de investimentos está tornando a pesquisa bra-
orçamento de P&D teve crescimento de 6,3% no sileira menos competitiva. “Na área agrícola,
ano – atingindo R$ 229 milhões. por exemplo, tenho ouvido relatos sobre a ob-
O Ministério da Educação (MEC), que concen- solescência de equipamentos da Embrapa e a
tra a maior parcela dos dispêndios federais em impossibilidade de acompanharmos a evolução
P&D, teve uma queda de 9,3% nesses gastos entre de tecnologias avançadas que são fundamentais
2015 e 2016, que foram de R$ 17,6 bilhões para R$ para termos uma agricultura moderna.” Álvaro
15,9 bilhões, em valores corrigidos pela inflação. Prata, do MCTIC, pondera que o ministério con-
A pasta da Agricultura, à qual está vinculada a seguiu preservar projetos estratégicos, como a
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária construção da fonte de luz síncrotron Sirius, em
(Embrapa), e a da Saúde, que também investe em Campinas, e na virada de 2016 para 2017 conse-
pesquisa, tiveram um aumento dos dispêndios em guiu honrar compromissos atrasados com pro-
P&D, em valores corrigidos, de 2,8% e 32%, res- jetos científicos ao receber R$ 731 milhões de
pectivamente (ver quadro). “Como é difícil cortar um programa de regularização de recursos que
despesas com salários, a redução orçamentária foi brasileiros mantêm no exterior. “Isso ajudou a
mais intensa em relação aos chamados recursos amenizar a queda no orçamento e a manter o
discricionários, como investimentos em projetos, sistema de ciência e tecnologia funcionando.”
atingindo os ministérios de forma desigual”, disse Segundo os Indicadores do MCTIC, o montante
o presidente da Academia Brasileira de Ciências dos dispêndios em P&D do Brasil em 2016 é com-
(ABC), o físico Luiz Davidovich. parável, em paridade do poder de compra, com o
Essa estratégia, ele observa, pode fazer sentido da Rússia, e fica à frente de países como Itália e
quando há uma dificuldade apenas temporária de Canadá, embora representem um terço do investi-

38  z  janeiro DE 2019


Recursos humanos dedicados à pesquisa
Pesquisadores envolvidos em P&D no Brasil, em número de pessoas (2005-2014)

320.000 Total
316.822
280.000
Ensino superior
265.174
240.000

200.000

160.000

120.000

80.000 Empresarial
59.364
40.000
Governo
6.132
0
Privado sem
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
fins lucrativos
1.347

Fonte INdicadores
de CTI 2018 – MCTIC mento da Alemanha, 9% do da China e 8% do dos que é membro do Conselho Superior da FAPESP.
Estados Unidos. Quando se mede o investimen- Ele aponta uma distorção do sistema brasileiro de
to em relação ao PIB nacional, o 1,27% do Brasil ciência, tecnologia e inovação evidenciada nos
superou os índices de Espanha, Rússia, México e dados do MCTIC: o fato de a Lei de Informática
Argentina, equiparou-se aos de Portugal e Itália, e ter sido responsável por 69% de toda a renúncia
ficou aquém da China (2,11% do PIB), dos Estados fiscal do governo federal relacionada a incentivos
Unidos (2,74%) e da Coreia do Sul (4,23%). para P&D em empresas. “A Lei de Informática tem
efeitos limitados na promoção de P&D. Na verdade,

N
a composição dos gastos brasileiros em foi criada como uma compensação para garantir a
P&D em 2016, 0,67% do PIB foi oriundo sobrevivência da indústria de informática que está
de recursos públicos e 0,6% veio de em- fora da Zona Franca de Manaus”, afirma.
presas. Comparações internacionais compiladas O desempenho das empresas inovadoras bra-
mostram que, em países desenvolvidos, a partici- sileiras, pondera, está muito aquém do desejado.
pação privada nos esforços de P&D costuma ser “De um universo de 117 mil empresas brasileiras
bem superior à pública. Enquanto no Brasil os que realizavam P&D em 2014, apenas 4.289 o fa-
dispêndios empresariais não chegam a 50% do ziam de maneira contínua. É um número muito
total, nos Estados Unidos alcançam 62%, na Co- baixo e explica um pedaço da crescente defasagem
reia do Sul, 75%, na China, 76%, e no Japão, 78%. tecnológica entre empresas brasileiras e interna-
O engenheiro químico Pedro Wongtschowski, cionais e déficit comercial e crescimento das im-
presidente do Conselho de Administração da Ul- portações”, afirma Wongtschowski, citando dados
trapar Participações e do Instituto de Estudos para da Pesquisa de inovação (Pintec), feita a cada três
o Desenvolvimento Industrial (Iedi), afirma que a anos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
perda na rentabilidade do setor industrial no Brasil tatística (IBGE). Na sua avaliação, os dados sobre
explica a queda no investimento empresarial em P&D empresarial apresentados nos Indicadores
P&D. Na sua avaliação, entender essa dinâmica é do MCTIC podem estar superdimensionados. Em
fundamental para superar os entraves atuais. A 2014, os Indicadores utilizaram dados da Pintec,
expectativa do setor industrial é de que, nos pró- que avaliou o esforço de inovação de mais de 130
ximos anos, haja uma simplificação da estrutura mil empresas. Mas em 2015 e 2016, anos em que
tributária brasileira. “Aliada a melhorias de in- não há dados disponíveis da Pintec, é necessário
fraestrutura, ajudaria as empresas a se tornarem realizar projeções. Segundo o MCTIC, as esti-
mais competitivas e recuperarem sua rentabili- mativas sobre P&D empresarial de 2015 e 2016
dade, em um círculo virtuoso capaz de estimular foram atualizadas com base em informações de-
os investimentos em P&D”, diz Wongtschowski, claradas por um conjunto de empresas que utili-

pESQUISA FAPESP 275  z  39


zaram as isenções fiscais da chamada Lei do Bem
para investir em P&D. “Enquanto esses números Produção científica brasileira
recentes se baseiam em apenas mil empresas, os
da Pintec contemplam um universo muito mais Artigos com autores brasileiros indexados na base de dados
amplo e fidedigno”, afirma. Scopus e percentual em relação ao mundo (2000-2017)

M
esmo em 2014, quando estavam disponí- n No de artigos
2,51 2,51
veis dados coletados pela Pintec, há in- n Percentual em
2,33
relação ao mundo
dícios de que as estimativas do MCTIC 2,06
2,21
2,42
eram maiores do que a realidade. “Estimativas 1,90
2,11
2,26
1,70 2,01
feitas com base na correlação entre dispêndios
1,74
empresariais em P&D e a Formação Bruta de 1,25
1,39
1,14
Capital Fixo [FBCF], um dos componentes do

67.624

68.741
64.640
63.589
1,38

60.064
1,31

56.947
PIB, indicam mesmo que a estimativa do MCT

51.939
47.928
1,12

44.526
40.382
está superdimensionada a partir de 2014. Em

35.091
32.513
22.229
2014, ano da última Pintec, o valor estimado pe-

22.578
19.828
14.625

15.570

18.159
lo MCTIC excede em 10% o valor apurado pe-
la Pintec, o que implica um erro no dispêndio

00

01

02

03

04

05

06

07

08

09

10

11

12

13

14

15

16

17
nacional em P&D em 2014 de 0,05%”, afirma o

20

20
20

20
20

20

20

20

20
20
20

20
20

20

20

20

20
20
diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique
de Brito Cruz. A FBCF é o principal indicador Fonte  INdicadores de CTI 2018 – MCTIC / scimago

das Contas Nacionais do Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE) e mede o quanto
as empresas aumentaram seus bens de capital. que eram pequenas em 2010, passaram a cres-
Segundo Renato Pedrosa, professor do Depar- cer depois desse ano e chegaram a mais de R$ 4
tamento de Política Científica e Tecnológica do bilhões em 2015 e 2016. Segundo as estimativas
Instituto de Geociências da Universidade Estadual do MCTIC, os dispêndios estaduais cresceram
de Campinas (Unicamp) e coordenador do Pro- de R$ 5 bilhões em 2010 para R$ 10,6 bilhões em
grama FAPESP de Indicadores de Ciência, Tec- 2016. Já nas estimativas do programa da FAPESP,
nologia e Inovação em São Paulo, as estimativas foram de 4,89 bilhões em 2010 para R$ 6,3 bi-
desenvolvidas pela FAPESP chegaram a resulta- lhões em 2016. “Em um contexto de recessão a
dos mais modestos sobre P&D das empresas em partir de 2014, não se esperaria crescimento nos
2015 e 2016, adotando como referência, no lugar dispêndios estaduais. As estimativas da FAPESP
das informações das empresas beneficiadas pe- mostram que houve um pico em 2013, queda em
la Lei do Bem, justamente a FBCF, que, no caso 2014 e pequena oscilação, depois disso. Esses da-
mundial, mostra uma relação direta e forte com dos são compatíveis com os orçamentos das uni-
os dispêndios de empresas em P&D. “Essa meto- versidades paulistas do período”, afirma Pedrosa.
dologia tem se mostrado muito robusta, preven- Segundo o MCTIC, os investimentos em P&D
do com relativa precisão os dados de dispêndios feitos nos estados brasileiros em 2016 mantive-
empresariais que as Pintec trazem quando são ram a mesma distribuição de anos anteriores.
publicadas”, diz Pedrosa. São Paulo foi responsável por 71,7% do total de
De acordo com essa metodologia, os dispêndios dispêndios, seguido por Rio de Janeiro (7%), Pa-
em P&D das empresas brasileiras em 2016 foram raná (6,6%), Bahia (2,5%), Minas Gerais (2,2%)
de R$ 29,8 bilhões, enquanto os Indicadores do e Santa Catarina (1,7%). A maioria das unidades
MCTIC apontam um valor bem maior, de R$ da federação conseguiu aumentar seus inves-
37,7 bilhões. “Tomando-se como referência 2014, timentos em P&D em 2016, em comparação ao
ano em que foi realizada a Pintec, resultando em ano anterior. Entre as exceções, destacaram-se
participação no PIB de 0,57% para os dispêndios Distrito Federal (queda de 50%), Santa Catarina
das empresas, nota-se a divergência de estimati- (-17,2%) e Rio de Janeiro (-7,3%).
vas nos anos seguintes: para FAPESP, em 2015 e Em consulta feita pela ABC e pela Sociedade
2016, esse indicador caiu, representando 0,52% Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o
e 0,48% do PIB, respectivamente, enquanto, pa- novo presidente da República, Jair Bolsonaro, pro-
ra o MCTIC, subiu para 0,61% em 2015 e depois pôs como meta até o final de seu mandato elevar
voltou a 0,57% do PIB, em 2016”, compara. para 3% do PIB os dispêndios em P&D. O objetivo
Uma divergência ainda mais significativa apa- é mais ambicioso do que a proposta feita pelo go-
rece nos dispêndios públicos estaduais em São verno federal em 2016 no documento Estratégia
Paulo, em que as estimativas do MCTIC são cer- nacional de ciência e tecnologia, que buscava alcan-
ca de 70% maiores do que as da FAPESP para çar 2% do PIB em P&D até 2019. As promessas de
2016. Conforme observa Pedrosa, as diferenças, aumento desse percentual acontecem frequente-

40  z  janeiro DE 2019


resultado desse investimento para a população” e
uma sinergia maior do MCTIC com outros minis-
térios em projetos nas áreas de saneamento, saúde,
novas energias e no combate à seca no Nordeste.
Davidovich, da ABC, concorda que é preciso criar
no país uma agenda nacional de desenvolvimento
que integre o trabalho dos pesquisadores e das
universidades. “A inovação tecnológica é funda-
mental para aumentar o PIB de um país e garantir
investimentos, mesmo em meio a crises é impor-
tante para superá-las, como fazem
nações como a China, a Coreia do
Sul e a Alemanha”, afirma. “Uma
Queda nos agenda para o desenvolvimento
científico e tecnológico poderia
investimentos privilegiar áreas em que temos
vantagens, como a biotecnologia
das empresas aplicada à biodiversidade, as ener-
em P&D em gias renováveis e a agricultura. Um
ministério da ciência e tecnologia
2014 e 2015 com uma visão transversal é uma
ideia interessante.”
pode ser A economista Fernanda de Ne-
mente. O capítulo sobre o Brasil da edição de 2010 gri, pesquisadora do Instituto de
do Unesco Science Report relata que, em 2003, o
maior do que a Pesquisa Econômica Aplicada
então presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia estimada pelo (Ipea), lançou recentemente o livro
prometido expandir os dispêndios para 2% do PIB Novos caminhos para a inovação no
em 2006. Em 2007, quando a intensidade estava governo federal Brasil, em que enumera desafios
em 1,07% do PIB, o governo anunciou planos para para destravar o desenvolvimento
elevá-lo a 1,5% em 2010. O capítulo brasileiro, as- no país, como tomar medidas para
sinado pelo diretor científico da FAPESP, Carlos ampliar o dinamismo da economia,
Henrique de Brito Cruz, e por Hernan Chaimovich, fortalecer a infraestrutura cientí-
presidente do CNPq entre 2015 e 2016, mostra que fica e elevar a seletividade na distribuição de re-
entre 2002 e 2008 a intensidade dos dispêndios cursos para pesquisa. Ela ressalta a importância
de P&D no Brasil avançou 10%, indo de 0,98% do de ampliar o impacto e o alcance da ciência que
PIB para 1,09% do PIB no período. O crescimento o Brasil produz e sugere orientar parte dos in-
dos dispêndios foi mais lento do que a evolução do vestimentos públicos em P&D para a solução de
PIB no período, que teve taxa acumulada de 27%. grandes problemas da sociedade, como a melhoria
da mobilidade urbana e da gestão do sistema pú-

N
o capítulo sobre o Brasil na edição de 2015 blico de saúde ou o desenvolvimento de energias
do Science Report da Unesco, de autoria renováveis. Fernanda de Negri cita a estratégia da
de Renato Pedrosa e Hernan Chaimovich, National Science Foundation, principal agência de
uma nova promessa é observada, agora para 2014: apoio à ciência básica nos Estados Unidos, que es-
o Brasil deveria atingir 0,90% do PIB em dispên- colheu 10 grandes temas de interesse da sociedade
dios privados em P&D. Isso novamente foi frus- para concentrar investimentos, como a construção
trado. Segundo o MCTIC, a taxa foi de 0,60% do de uma infraestrutura para dar suporte à ciência
PIB para os dispêndios privados em P&D em 2014, de dados, a análise do impacto da tecnologia no
incluindo ensino superior privado, e manteve-se futuro do trabalho e o esforço para conjugar di-
nesse nível em 2016. Uma queda do investimento ferentes disciplinas na solução de problemas de
medido pela FBCF também é registrada, quando pesquisa. Na sua avaliação, porém, a recuperação
havia a promessa de elevá-lo a 22,4% do PIB. Em dos investimentos públicos em ciência e tecnologia
2016 estava em 15,5%, inferior aos 19,9% registra- é pré-requisito para iniciar a mudança. “Embora
dos em 2014, em valores corrigidos pela inflação. exista uma agenda de mudanças que precisa ser
Em 2018, o investimento vem mostrando recupe- implementada no sentido de melhorar a gestão
ração, atingiu 16,9% do PIB no 3º trimestre do ano. das universidades, internacionalizar a pesquisa
No documento encaminhado à ABC, o novo pre- e melhorar a infraestrutura científica, é preciso,
sidente da República também propôs “uma gestão antes de tudo, recompor o nível do investimento
eficiente e focada em resultados para atingir não público e a capacidade do governo de gerar políti-
apenas a meta de investimento, mas também o cas públicas para a inovação”, diz a economista. n

pESQUISA FAPESP 275  z  41


Entrevista Cristina Russo y

Diplomacia
científica
Diretora da Comissão Europeia fala do desafio
de ampliar plano que busca garantir acesso aberto
a todas as pesquisas com financiamento público

Bruno de Pierro

Q
uando assumiu em 2013 o sociados ao Horizonte 2020. O trabalho
cargo de diretora de Coo- de Cristina Russo também busca articu-
peração Internacional em lar políticas científicas e tecnológicas em
Pesquisa e Inovação (P&I) escala mundial.
da Comissão Europeia, a Em visita ao Brasil, pela quinta vez,
cientista política italiana Cristina Russo Russo teve como principal missão acom-
aceitou a incumbência de ampliar par- panhar a implementação da cooperação
cerias com pesquisadores de fora do con- bilateral e reforçar o engajamento da
tinente no âmbito do programa de P&I União Europeia em continuar a coope-
da União Europeia, o Horizonte 2020, ração estratégica na área de pesquisa e
o principal programa científico do bloco, inovação com o país. Sua passagem pelo
com orçamento de € 77 bilhões de 2014 Brasil também foi uma oportunidade
a 2020. Aberta a parceiros estrangeiros, para apresentar os princípios do Plan
a iniciativa conta com a participação de S do acesso aberto, um pacto lançado
brasileiros apoiada em diversos acordos em setembro pela Comissão Europeia,
de cooperação, como o firmado com a com forte adesão de França, Itália, Reino
FAPESP em 2015. Por meio dele, pes- Unido e outros 10 países, para garantir
quisadores vinculados a instituições de que, a partir de janeiro de 2020, todas as
pesquisa e ensino superior do estado de pesquisas científicas com financiamen-
léo ramos chaves

São Paulo podem usar modalidades de to público sejam publicadas imediata-


apoio oferecidas pela Fundação para fi- mente em plataformas de acesso aber-
nanciar sua participação em projetos as- to. “Temos do nosso lado instituições

42  z  janeiro DE 2019


Cristina Russo, em visita a
São Paulo: “Cooperação em
ciência e inovação tem
dimensão política que vai além
da produção científica em si”

científicas da Europa e de países como


Estados Unidos e China, que já se sen-
sibilizaram em relação a essa iniciativa.
Seria importante que o Plan S tivesse
aceitação global”, disse Russo em en-
trevista à Pesquisa FAPESP durante sua
passagem por São Paulo em dezembro.
A representante da Comissão Euro-
peia reconheceu a importância da agên-
cia paulista nesse assunto: “A FAPESP
tem experiência em incentivar a publica-
ção científica em acesso aberto. Os prin-
cípios do Plan S poderiam dialogar com
práticas já implementadas no Brasil”. A
Fundação financia, desde 1998, a biblio-
teca científica virtual SciELO (Scienti-
fic Electronic Library Online), que em
2018 reuniu 291 publicações nacionais
de acesso aberto em todos os campos do
conhecimento e inspirou a criação de
coleções semelhantes em vários países
latino-americanos, além de Portugal,
Espanha e África do Sul.
Os 28 países da União Europeia já ha-
viam aprovado, em 2016, uma diretriz
para que os estudos financiados com di-
nheiro público tivessem acesso aberto
(ver Pesquisa FAPESP nº 245). Porém,
diante da lentidão no processo, conselhos
científicos de 11 países tomaram uma
decisão mais radical e lançaram o Plan S,
com o objetivo de “tornar uma realidade
o acesso aberto total e imediato”. Um
dos princípios do plano é que autores
de estudos científicos mantenham sem
restrições os direitos autorais de seus
trabalhos, dando preferência para a
licença de uso flexível. A iniciativa vai
além do chamado sistema híbrido de pu-
blicação. Nesse modelo, os artigos ficam
disponíveis para assinantes, mas o autor
pode pagar uma taxa extra para que seu
trabalho seja divulgado sem restrições
no site do periódico antes mesmo do lan-
çamento da edição – o que tem elevado
os custos da publicação. Para Cristina
Russo, o Plan S representa um grande
desafio para as editoras, que precisarão
repensar seus modelos operativos.

pESQUISA FAPESP 275  z  43


O Plan S recebeu algumas críticas por Quais são os maiores desafios que a se-
parte de editores de revistas científi- nhora encontra na tarefa de dialogar
cas que não seguem o modelo de acesso com outros países? Como lidar com as
aberto. Essa controvérsia já era espe- diferenças culturais, políticas, burocrá-
rada pela Comissão Europeia? ticas e legais?
Não concordo com a ideia de que haja O Plan S busca A União Europeia tem uma política mui-
uma controvérsia em torno do Plan S. to clara de P&I, que é aberta ao mundo. A
Na verdade, a iniciativa está sendo bem acelerar a nossa estratégia, como enfatiza o comis-
recebida. A reação de algumas edito- sário de P&I da União Europeia, Carlos
ras e grupos de cientistas era esperada,
transição Moedas, é promover ciência aberta e
uma vez que há assuntos abordados pe- completa para inovação aberta e se manter aberto para
lo Plan S que interessam diretamente o mundo. O programa Horizonte 2020
a eles. Isso não significa que haja uma o modelo de traduz bem esse modelo de abertura,
rejeição ao plano, que, aliás, é muito co- ao permitir em geral a participação de
rajoso. O Plan S foi lançado na Europa acesso aberto e instituições de pesquisa e cientistas de
por Robert-Jan Smits, consultor sênior qualquer país no mundo. Evidentemente,
sobre Acesso Aberto no Centro Euro-
atinge diferentes estabelecemos um diálogo político com
peu de Estratégia Política da Comissão níveis da nossos parceiros e identificamos áreas
Europeia, e pela Science Europe, uma estratégicas de interesse mútuo. Man-
associação de organizações científicas relação com temos diálogo com o Brasil por meio de
com sede em Bruxelas, na Bélgica, que acordos de ciência e tecnologia. Estive
ajudou a coordenar a iniciativa. Se há outros países também em Brasília e participei de uma
controvérsia, é o fato de que as grandes série de conversas com a presença de
editoras científicas terão de enfrentar organizações científicas e autoridades
desafios importantes. Isso é absoluta- políticas, incluindo ministros.
mente normal, faz parte do debate.
Em que áreas se destaca a cooperação
Qual o estágio atual das discussões em com o Brasil?
torno do plano? Algumas das áreas de cooperação entre
A situação no momento é que há dife- impactar apenas localmente na Europa. Brasil e União Europeia são, por exem-
rentes agências de fomento europeias, e Trata-se de uma iniciativa que estamos plo, pesquisa marinha e saúde. Temos
algumas outras fora da Europa, aderindo colocando em prática para acelerar a um diálogo com projetos sobre câncer
aos 10 princípios* do Plan S. A adesão transição completa para o modelo de apoiados pela FAPESP. Temos, ainda,
de um grande número de organizações, acesso aberto e que atinge diferentes uma estratégia cuja finalidade é estabe-
como a própria Comissão Europeia, o níveis da relação com outros países. lecer a pesquisa científica e a inovação
Conselho Europeu de Pesquisa [ERC] e como um dos elementos de nossa polí-
também de algumas instituições de apoio Com que objetivo? tica internacional. Para mim, o desafio é
importantes, como a Fundação de Ciên- A Europa é um dos maiores financia- promover a participação nos programas
cia Natural e as bibliotecas nacionais de dores de programas de pesquisa mul- europeus de organizações científicas de
Ciência e de Ciência e Tecnologia, na tilateral no mundo, como o Horizonte países fora do continente, porque acre-
China, o Wellcome Trust, no Reino Uni- 2020 pela União Europeia, que, após seu ditamos que as melhores mentes devem
do, e a Fundação Bill e Melinda Gates, término, continuará como Horizon Eu- trabalhar juntas em projetos de pesquisa
nos Estados Unidos, significa que a difu- rope e terá um orçamento maior do que inovadores. Também creio que ciência
são do plano está sendo bem-sucedida. o antecessor. O Horizon Europe deverá e inovação são peças importantes para
     contar com um orçamento entre € 100 construir relações sólidas com outros
De que maneira a FAPESP pode con- bilhões e € 120 bilhões. Por conta disso, países. Trata-se, portanto, de desenvol-
tribuir? temos sido pioneiros no financiamento ver uma noção de diplomacia científica.
A FAPESP já tem uma experiência no de pesquisas de grande porte e, portan- Muitas vezes, a ciência consegue reali-
tema de acesso aberto. O plano é regido to, queremos que o Plan S se torne uma zar coisas que governos não conseguem.
por 10 princípios, que foram apresenta- iniciativa global. Trata-se de garantir
dos aos dirigentes da Fundação. Penso que os contribuintes, que estão finan- Qual é o principal interesse da União
que, eventualmente, os princípios do ciando muitas pesquisas, obtenham o Europeia ao estabelecer parcerias cien-
Plan S poderiam ser adotados pela FA- melhor valor de sua contribuição. De tíficas atualmente? Trata-se de uma
PESP, levando em consideração, eviden- acordo com a Comissão Europeia, quan- forma de aumentar a competitividade
temente, as especificidades dos siste- do a pesquisa é financiada publicamente, na Europa?
mas de pesquisa de São Paulo e também os resultados devem ser publicamente No tratado que funda a União Europeia
nacionais. O Plan S pode dialogar com acessíveis – para que se possa garantir já estava previsto que o objetivo da polí-
práticas de acesso aberto já implementa- que cada euro, dólar ou real gastos tenha tica científica e de inovação é aumentar
das em outros lugares. A proposta não é o máximo impacto na vida das pessoas. a competitividade do bloco. Portanto,

44  z  janeiro DE 2019


A senhora se juntou à Comissão Euro-
frédéric latinis / ec audiovisual service

peia em 1992 como oficial de política


na Diretoria de Relações Exteriores,
lidando com Relações com os Novos Es-
tados Independentes da Antiga União
Soviética. Como esse trabalho foi feito?
Naquela época, ainda não lidava com
assuntos de pesquisa científica?       
Minha carreira é muito diversificada.
Sou cientista política, mas não pesqui-
sadora. Na verdade, comecei trabalhan-
do com os Novos Estados Independen-
tes, que posteriormente se tornaram a
Comunidade de Estados
Independentes, forma-
Cristina Russo (à esq.) da por países que per-
e Carlos Moedas, tenciam à antiga União
comissário europeu de Soviética. A Comissão
Pesquisa e Inovação,
em conferência em 2015
Europeia, na época, es-
tabeleceu programas de
assistência a essas na-
ções. Era importante
apoiar não apenas a Rússia, mas tam-
certamente esse é o ponto de partida do Nessa transição política pela qual o Bra- bém os outros países que faziam parte
nosso trabalho na Comissão Europeia no sil está passando, minha expectativa é de da União Soviética durante o período de
que diz respeito a ciência, tecnologia e que o país continue comprometido com transição para a democracia. Eu estava
inovação. Mas evidentemente não estou os acordos científicos que firmou com no comando do Programa de Assessoria
vindo aqui para o Brasil apenas com o a União Europeia. O Brasil é um forte Jurídica, responsável pela elaboração de
objetivo de ajudar a Europa a tornar-se parceiro para P&I. códigos civis, algo que não existia na-
mais competitiva. Para mim, é impor- queles países. Oferecemos a eles apoio
tante trabalhar em parceria com outros Como avalia os acordos com a FAPESP técnico para estruturarem seus códigos.
países fora da União Europeia porque em programas como Horizonte 2020, Havia também um programa para asses-
somos cada vez mais afetados por de- ERA NET, na área de bioenergia, e tam- sorar os países na mudança de seus siste-
safios da sociedade interconectada e bém nos projetos realizados no âmbi- mas políticos, do socialismo para outro
precisamos trabalhar em conjunto pa- to do European Research Council, que modelo, e adequar essas transformações
ra enfrentá-los. Outro motivo que trans- apoia grupos de pesquisa de excelência? políticas ao contexto econômico.
borda a questão da competitividade é Poderia fazer um balanço?
que a Europa produz ciência, tecnologia De modo geral, a avaliação de nossa par- Um trabalho desafiador...
e inovação de alto nível e precisa estar ceria com a FAPESP é bastante positiva. Sim, foi uma tarefa muito difícil. Lembro
junto com parceiros importantes ao re- Dedicamos parte do encontro em São que, numa missão a uma das repúblicas
dor do mundo no sentido de enfrentar Paulo para conversar sobre o compromis- da Ásia Central, o debate sobre a elabo-
problemas comuns a todos. so da FAPESP relativo ao financiamen- ração de um código civil foi muito tenso,
to de alguns projetos importantes sobre era algo muito complicado para eles. Foi
Como a ciência brasileira pode ajudar câncer e biocombustíveis, por exemplo. A uma experiência rica. Somente fui atuar
nessa estratégia? Fundação foi a primeira com a qual lan- em política científica após passar alguns
A cooperação em ciência e inovação tam- çamos editais para selecionar pesquisa- anos no Secretariado-Geral da Comis-
bém tem uma dimensão política, que vai dores brasileiros para o Horizonte 2020. são Europeia entre 1995 e 1999, que é o
além da produção científica em si. Nos Consideramos a organização um parceiro departamento central da Comissão Eu-
últimos anos, assinamos muitos acordos muito importante e é por isso que, nessa ropeia. Em 1999 trabalhei como mem-
com o Brasil. Em 2018, por exemplo, foi minha missão ao Brasil, antes de voltar bro do gabinete de Philippe Busquin,
estabelecido um acordo entre Comissão para a Europa, fiz questão de parar em comissário de P&I. Mas uma coisa que
Europeia, Confap [Conselho Nacional São Paulo. Minha visita teve alguns obje- não está em meu currículo é que, na ver-
das Fundações Estaduais de Amparo à tivos. Primeiramente, ver aqueles projetos dade, comecei na Comissão Europeia em
Pesquisa], CNPq [Conselho Nacional de concretos para os quais pesquisadores 1990 como estagiária do comissário de
Desenvolvimento Científico e Tecnoló- brasileiros foram selecionados recente- P&I da época. Então, posso afirmar que
gico] e Finep [Financiadora de Estudos mente. O outro foi apresentar o Plan S, minha carreira teve início com assuntos
e Projetos] com o objetivo de que essas que faz parte do meu trabalho de engajar ligados à política científica. n
instituições apoiem pesquisadores bra- atores globais a aderir aos princípios da
sileiros envolvidos no Horizonte 2020. publicação em acesso aberto. * Os princípios do Plan S estão disponíveis em bit.ly/PlAnS

pESQUISA FAPESP 275  z  45


Internacionalização y

Conexões de P
esquisadores e estudantes bra­
sileiros que vivem ou passam
períodos nos Estados Unidos
encontraram um modo de man­

longa distância
ter-se em contato e estimular colabora­
ções: participam de redes que promo­
vem encontros regulares para troca de
experiências profissionais, científicas
ou ligadas ao empreendedorismo. A
primeira iniciativa desse tipo foi lan­
Avançam iniciativas que promovem networking çada em 2010. Trata-se do PUB Boston,
sigla para Pesquisadores e Universitá­
e intercâmbio de conhecimento entre rios Brasileiros em Boston, rede criada
para engajar cientistas e bolsistas do país
pesquisadores brasileiros nos Estados Unidos instalados na região da Nova Inglaterra,
onde se situam mais de 50 instituições
de pesquisa e ensino superior como o

46  z  nononononono DE 2018


5

Membros do PUB Boston


participam de encontro
que reuniu mais de 80
pesquisadores e estudantes
brasileiros em 14 de dezembro

Estados Unidos que atuam em empresas Ciência sem Fronteiras enviava milhares
ou criaram startups. Também há espa­ de estudantes para o exterior. Na última
ço para a apresentação de iniciativas de reunião, em 14 de dezembro, houve um
divulgação científica ou de caráter so­ evento especial com apresentações de
cial. Uma parte especialmente profícua cinco estudantes de mestrado ou douto­
das reuniões são os happy hours, abas­ rado em universidades norte-americanas
tecidos por salgados e doces brasileiros de diferentes áreas do conhecimento,
oferecidos por patrocinadores ou graças com a presença da consulesa-geral do
a alguma caixinha recolhida pelos orga­ Brasil em Boston, Glivânia de Oliveira.
nizadores, em que a audiência conversa Por meio de um grupo no Facebook, a
e interage. O público é composto por es­ rede mobiliza 3,7 mil brasileiros que pas­
tudantes, estagiários de pós-doutorado, saram por Boston. “Não é incomum que,
professores visitantes, jovens profissio­ dessas apresentações e dos debates que
nais ou cientistas estabelecidos nos Es­ acontecem antes e depois delas, surjam
Massachusetts Institute of Technology tados Unidos. “O ponto alto das reuniões colaborações científicas e profissionais”,
(MIT) e as universidades Harvard, de é a possibilidade de conhecer o que co­ diz o cientista da computação Vitor Pam­
fotos 1 e 5 larissa spinelli  2, 3 e 4  vitor pamplona ilustraçãO freepik

Boston, Yale, Dartmouth e Brown. O PUB legas brasileiros de diversas áreas estão plona, coordenador da SciBr Founda­
Boston segue em atividade, promovendo produzindo por aqui, abrindo portas pa­ tion, organização não governamental
reuniões interdisciplinares mensais, e ra contatos profissionais e pessoais. Mas criada em 2014 com apoio da Fundação
pelo menos 10 redes de relacionamento é claro que não podemos menosprezar o Lemann, que, entre outras atribuições,
de formato semelhante despontaram interesse que as coxinhas e brigadeiros coordena e busca disseminar essas redes.
em outras cidades norte-americanas, despertam nos brasileiros que estão há “Entre vários exemplos, me lembro de
como São Francisco, Nova York, Hous­ muito tempo longe de casa”, diz a nutri­ um biólogo e um engenheiro que se co­
ton, Seattle, New Heaven – e também cionista Rachel Freire, pós-doutoranda nheceram no PUB Boston e foram tra­
em Montreal, no Canadá. na Escola de Medicina de Harvard, atual balhar juntos na criação de um equipa­
Os encontros, na maioria em portu­ líder do PUB Boston. mento de pesquisa”, diz Pamplona, que
guês, geralmente ocorrem em auditórios, No caso do grupo da Nova Inglaterra, trocou Porto Alegre por Boston em 2009,
onde os participantes das redes assistem os encontros mensais acontecem sem­ quando fez parte de seu doutorado no
a palestras de pesquisadores brasileiros pre em uma sexta-feira. A frequência MIT, e há sete anos criou uma empresa
de diversas áreas do conhecimento e a varia de 60 a 80 pessoas – e era maior de equipamentos ópticos, a EyeNetra,
relatos de profissionais radicados nos até três anos atrás, quando o programa na cidade de Cambridge.

pESQUISA FAPESP 275  z  47


As reuniões do PUB Boston inspira­
ram alguns de seus membros a reprodu­
zir no Brasil um programa desenvolvido
no México por pesquisadores mexicanos
que atuam em Harvard: os chamados
“clubes de ciência”, workshops de uma
semana de duração para alunos do en­
sino médio ou no início da graduação
promovidos por cientistas e instrutores
treinados nos Estados Unidos. A iniciati­
va já teve duas edições no Brasil, ambas
no campus da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). O processo se­
letivo foi rigoroso: mais de mil inscritos
para 80 vagas em cada edição. “A ideia é
motivar jovens a seguir carreira cientí­
fica. Eles colocam a mão na massa e se As redes também criaram estratégias dade da Califórnia (UCSF). “Havia de­
dedicam a assuntos de fronteira – co­ para acolher recém-chegados, como a mandas dos pesquisadores brasileiros
mo edição gênica e células-tronco. No divulgação de manuais, escritos a vá­ na região e também do consulado bra­
último dia apresentam ao público e a rias mãos e disponíveis na internet, com sileiro em São Francisco para criar uma
suas famílias o que produziram”, diz a dicas sobre como obter moradia, tirar rede”, diz a bióloga Tatiana Hochgreb,
biomédica Bruna Paulsen, uma das orga­ documentos ou usar transporte público. líder da iniciativa. “Fizemos um primei­
nizadoras do programa – ela atualmente Um guia elaborado por membros do PUB ro encontro no próprio consulado em
faz pós-doutorado no Departamento de Filadélfia, por exemplo, sugere endere­ 2014, que atraiu mais de 100 pessoas.”
Células-Tronco e Medicina Regenerativa ços de bons supermercados e alerta para A experiência evoluiu e, hoje, o PUB­
da Universidade Harvard – juntamente o perigo de desligar o aquecedor central -Tech-SF tem uma agenda de quatro re­
com os biólogos David Soeiro e Rafael das casas e apartamentos durante o in­ uniões por ano, sediadas em diferentes
Polidoro e o administrador Marcos Ben­ verno – não há o que faça o encanamento universidades na Califórnia. “Entre os
to. Além do Brasil e do México, o projeto descongelar depois. palestrantes, há sempre dois cientistas
também é realizado na Colômbia, Bolí­ Uma rede bastante produtiva surgiu e alguém de empresa – já tivemos pa­
via, Peru, Paraguai e mais recentemente há quatro anos em São Francisco, nos lestras, por exemplo, com profissionais
na Espanha. arredores do campus local da Universi­ do LinkedIn e da Canon.” Os encontros

Mapeamento da diáspora
Até 2020, as redes de pesquisadores pode obter ganhos com a circulação
brasileiros nos Estados Unidos serão e fixação de brasileiros de alta Reino Unido. O encontro vai acontecer
mapeadas em um projeto encomendado qualificação nos Estados Unidos”, afirma. no dia 14 de fevereiro, durante uma
pela Embaixada do Brasil em O grupo também vai fazer entrevistas edição do seminário FAPESP Week
Washington ao Núcleo de Estudos de com pesquisadores radicados Londres, e reunirá especialistas em
Políticas Públicas da Universidade nos Estados Unidos para entender a circulação internacional de talentos para
Estadual de Campinas (Nepp-Unicamp). dinâmica das chamadas “redes discutir como o Brasil pode potencializar
“Vamos levantar quem são esses de diáspora” e levantar iniciativas que os benefícios de ter pesquisadores
brasileiros, onde estão e o que estão eles julguem importantes para ampliar envolvidos com instituições da Grã-
fazendo”, diz a socióloga Ana Carneiro as conexões com a ciência brasileira. -Bretanha. “Sabe-se que, em muitos
da Silva, pesquisadora do Nepp- O projeto começou a ser gestado lugares, as redes de diáspora não
Unicamp. Ela coordena o projeto com no final de 2017, em um workshop sobre provocam uma perda de cérebros, mas
parceiros como Flavia Consoni, do a diáspora brasileira em Washington, criam conexões proveitosas para a
Departamento de Política Científica e do qual o grupo do Nepp participou. comunidade científica do país, uma vez
Tecnológica da Unicamp, e Elizabeth Recentemente, a Embaixada do Brasil que a ciência trabalha cada vez mais em
Balbachevsky, do Núcleo de Pesquisas em Londres procurou a Unicamp com redes internacionais”, diz o engenheiro
em Políticas Públicas da Universidade uma demanda semelhante. Por conta Euclides de Mesquita Neto, professor da
de São Paulo (USP). “O objetivo é fazer disso, Ana Carneiro e Flavia Consoni Unicamp e coordenador-adjunto de
um diagnóstico e propor políticas para estão ajudando a organizar um programas especiais e colaborações em
compreender como a ciência do país workshop sobre a diáspora brasileira no pesquisa da FAPESP.

48  z  janeiro DE 2019


da Universidade Estadual de Campinas
(Nepp-Unicamp), que por encomenda
da Embaixada do Brasil em Washington
vai mapear as “redes de diáspora” bra­
sileiras nos Estados Unidos (ver box) e
Estudantes o seu papel na cooperação em pesquisa
participam de entre os dois países.
Clube de Ciências
em Belo Horizonte,
um projeto pontes para colaboração
organizado por Um levantamento divulgado pela Embai­
cientistas do Brasil xada do Brasil em Washington mostrou
em Harvard
que, enquanto as redes PUB se baseiam
no intercâmbio de conhecimento, outras
iniciativas dedicam-se a estabelecer pon­
tes para colaboração com o Brasil, caso
da BayBrazil, que promove intercâm­
bio entre empresas brasileiras e do Vale
do Silício; a Brazilian Expert Network,
formada por pesquisadores brasileiros
radicados nos Estados Unidos e inte­
ressados em parcerias com o Brasil; ou
a Brascon, uma plataforma de contatos
entre a comunidade científica brasileira
nos Estados Unidos e empresas, univer­
sidades, órgãos públicos e institutos de
pesquisa do Brasil.
também têm apresentações curtas de Comunidade de A SciBr Foundation, que articula as
projetos de impacto social – entre eles, redes PUB, busca ampliar as conexões
destacaram-se os pitches sobre a parti­ pesquisadores de pesquisadores brasileiros dentro dos
cipação de professores de matemática Estados Unidos. “Nossa proposta inicial
de escolas brasileiras em um programa
brasileiros nos era mobilizar os bolsistas do programa
na Universidade Stanford e um projeto Estados Unidos Ciência sem Fronteiras e avaliar se bol­
que buscava atrair voluntários para con­ sas adicionais a pesquisadores com alto
tar histórias em português para crianças tem uma boa potencial poderiam criar impactos cien­
brasileiras na Califórnia. “Foi curioso tíficos maiores, mas isso perdeu força
ver cientistas aceitando o convite e indo articulação, com a desarticulação do programa”, ex­
contar histórias para crianças em biblio­ plica Vitor Pamplona, diretor da SciBr.
tecas”, lembra Tatiana Hochgreb.
diz a socióloga A organização trabalha para conectar
Formada em ciências moleculares pe­ Ana Carneiro pesquisadores brasileiros com empresas
la USP, ela foi para os Estados Unidos nos Estados Unidos. “Recebemos em­
em 2005 fazer um estágio de pós-dou­ presas do Brasil que querem montar es­
torado na UCSF e depois no Instituto critórios ou unidades nos Estados Uni­
de Tecnologia da Califórnia (Caltech), dos e apresentamos pesquisadores que
em Pasadena, trabalhando no campo da poderiam trabalhar para elas”, afirma.
biologia do desenvolvimento. Casou-se Pamplona observa que a maior parte
com um pesquisador norte-americano tos estudantes participam das reuniões, dos participantes das redes mantém o
e, em 2015, resolveu mudar de área: tra­ que são abertas e gratuitas.” Cerca de 70 interesse de retornar ao Brasil após um
balha no Lemann Center, na Universi­ mil brasileiros com formação superior período de estudo ou trabalho. “Os pro­
dade Stanford, em um projeto na área vivem nos Estados Unidos, de acordo fissionais brasileiros quase sempre re­
de educação cuja ambição é redesenhar com dados do censo norte-americano tornam, por questões familiares ou por
currículos para melhorar o ensino de de 2010. Parte desse contingente, que interesse de fazer carreira no Brasil. Não
ciências nas escolas brasileiras. Segundo reúne pesquisadores e profissionais de é trivial fazer uma carreira em uma em­
ela, o objetivo é discutir temas de alto alta qualificação, atua em universidades presa nos Estados Unidos, onde a com­
fotos  Clubes de Ciência Brasil

nível e “juntar gente diferente” para se e empresas de tecnologia. “Há uma con­ petição com profissionais de todas as
conhecer. “A ideia é divulgar conheci­ centração de pesquisadores brasileiros partes do mundo é grande.” Pamplona
mento de forma acessível, desmistificar nos Estados Unidos e essa comunida­ calcula que, nos últimos anos, a SciBr
a ciência e elevar o nível dos diálogos. de tem boa articulação”, diz a socióloga conseguiu encaminhar cerca de 40 bra­
As pessoas se sentem contentes de par­ Ana Carneiro da Silva, pesquisadora do sileiros para vagas em empresas nos Es­
ticipar de conversas interessantes. Mui­ Núcleo de Estudos de Políticas Públicas tados Unidos. n Fabrício Marques

pESQUISA FAPESP 275  z  49


propriedade intelectual y

O desafio de transferir
Paraíba se destaca em pedidos de patentes, enquanto pesquisadores
e setor produtivo discutem como licenciar tecnologia
conhecimento

U
m dos estados mais bem colo- pesquisas aplicadas são realizadas no Em parceria com a Empresa Brasileira
cados nos indicadores do Ins- âmbito acadêmico, sem parceria de em- de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Al-
tituto Nacional de Proprie- presas. Atribuímos isso à falta de inte- godão, em Campina Grande, a pesquisa-
dade Industrial (INPI) de ração com o setor produtivo, porque as dora desenvolveu e depositou um pedido
2018, a Paraíba registrou um tecnologias patenteadas podem agregar de patente de um inseticida que combate
aumento de 164% no número de patentes valor a produtos e processos”, avalia o larvas do mosquito Aedes aegypti a partir
depositadas entre 2016 e 2017 – o maior químico Petrônio Filgueiras de Athayde do suco de folhas do sisal (Agave sisa-
crescimento relativo entre as unidades da Filho, diretor-presidente da Inova-UFPB. lana), uma planta originária do México
federação. Ocupa a 7ª posição no ranking Ele salienta que o fato de a Paraíba e cultivada no Brasil para extração de
de depósitos de patentes, com um total de não ter um polo industrial forte dificulta fibras. O suco ataca o intestino das lar-
177 pedidos em 2017, à frente de outros a transferência de tecnologia. E reco- vas e as elimina na totalidade. A ideia é
estados do Nordeste, como Ceará (169) nhece a importância de a universida- oferecer o larvicida na forma de pó para
e Pernambuco (153). Os destaques são a de buscar parceiros, em vez de esperar diluição em água, mas ainda precisam
Universidade Federal de Campina Gran- que eles apareçam espontaneamente. ser realizados testes de toxicidade para a
de (UFCG), com 70 pedidos em 2017, e a “Começamos a apresentar nosso portfó- saúde humana. “O objetivo é que alguma
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), lio de patentes para empresas de outros empresa licencie a patente e produza o
com 66. A soma das duas instituições pa- estados”, conta Athayde. Outro alvo da inseticida, que é natural e biodegradável.
raibanas superou os depósitos feitos pe- Inova-UFPB é intensificar a incubação Se essa patente ganhar viabilidade eco-
las universidades Estadual de Campinas de empresas na universidade. “Vamos nômica, poderia ajudar os produtores
(Unicamp) e de São Paulo (USP) juntas incentivar o aproveitamento das tecnolo- locais de sisal, que perderam mercado
(ver Pesquisa FAPESP nº 269). gias por startups.” Recentemente, a agên- devido à substituição da planta por fibras
O avanço é resultado da criação, nos cia lançou um edital de pré-incubação e sintéticas na indústria”, observa Fabíola.
últimos 10 anos, de Núcleos de Inova- a ambição é começar a licenciar patentes As patentes depositadas pela Inova-
ção Tecnológica nas universidades pa- para empresas nascentes em 2019. -UFPB abrangem tecnologias em áreas
raibanas, que ajudaram a amplificar a como engenharia de alimentos, combus-

P
cultura de proteção à propriedade in- ara pesquisadores que detêm paten- tíveis, química, energia e saúde. Athayde
telectual no estado. Apesar do aumento tes geradas na UFPB, o trabalho da destaca inovações em novos materiais,
do depósito de patentes, ainda é rara a agência de inovação tem sido fun- como ligas metálicas com memória de
transferência de conhecimento para a damental para disseminar a importância forma, e no desenvolvimento de chips
sociedade por meio do licenciamento de de proteger a propriedade intelectual, eletrônicos. “Uma dessas tecnologias
tecnologias para empresas. Ao amplia- embora ressalvem que a Inova-UFPB consiste em uma babá eletrônica para
rem seus portfólios de inovações com precisa se concentrar agora em promo- pessoas com deficiência auditiva”, conta
propriedade intelectual protegida, as ver licenciamentos. “Há uma grande difi- Athayde. No campo da química, há pa-
instituições paraibanas enfrentam agora culdade em alcançar as empresas. Ainda tentes de equipamentos portáteis para
o desafio de aprofundar as relações com não sabemos como fazer essa ponte com certificar a qualidade de produtos indus-
getty images / Planet Flem

o setor produtivo. Inaugurada em 2013, o setor produtivo”, afirma a veterinária trializados e, na saúde, novas moléculas
a Agência UFPB de Inovação Tecnológi- Fabíola da Cruz Nunes, vice-diretora do com potencial para tratar doenças como
ca (Inova-UFPB) acumula 225 patentes Centro de Biotecnologia da UFPB. “É câncer, asma, hipertensão e depressão.
depositadas no país que ainda não geram preciso atrair ativamente parceiros de Mas a área que mais vem ganhando es-
royalties para a universidade. “Muitas todo o Brasil e também de outros países.” paço no portfólio da Inova-UFPB é a de

pESQUISA FAPESP 275  z  51


tecnologia de alimentos, que em 2017 foi patentes”, diz. Silva conta que, nos pri- mandacaru com compostos bioativos,
responsável pelo depósito de 32 pedidos meiros anos do NITT-UFCG, a estratégia que pode substituir a farinha de trigo
de patentes de novos produtos enriqueci- adotada foi disseminar o conhecimento no preparo de bolos e pães, e uma ge-
dos com nutrientes ou probióticos. sobre propriedade intelectual na univer- leia, também de mandacaru, adicionada
Ainda que o licenciamento não seja ex- sidade, por meio de cursos e seminários. a maracujá e iogurte caprino.
pressivo na Paraíba, o aumento do depó- Em setembro de 2017, o núcleo deu um “Para obter essa geleia, foram reali-
sito de patentes é reflexo da consolidação novo passo e lançou o Observatório de zados diversos estudos para obter a pa-
de programas de pós-graduação em suas Inteligência Tecnológica. “Trata-se de dronização do produto, além de testes
instituições de ensino superior e pesquisa uma iniciativa para avaliar o potencial in vitro e análises sensoriais. Trata-se de
nos últimos anos. Um levantamento feito de aplicação das pesquisas e impulsionar uma formulação inovadora e, por isso, a
em 2015 pelo Centro de Gestão e Estudos o licenciamento de patentes”, ressalta. patenteamos”, esclarece Ana Cristina.
Estratégicos (CGEE) mostra que a Paraíba A principal motivação para trabalhar

D
tinha 90 programas de mestrado e 42 de e acordo com Silva, as áreas que com o mandacaru, explica a pesquisa-
doutorado em 2014, ficando entre os 11 mais geram novas tecnologias na dora, é mostrar a versatilidade de seu
estados com o maior número de cursos UFCG são engenharia elétrica e fruto, que é mais utilizado para alimen-
de pós-graduação no país. A Paraíba tam- ciências da computação – vinculadas tação animal. “Queremos que ele seja
bém foi o 11º estado que mais concedeu aos departamentos que mais captam re- mais consumido por humanos, como
títulos de doutor naquele ano. “Somente a cursos para pesquisa e desenvolvimen- uma alternativa alimentar para a região
UFPB é detentora de 76% dos programas to (P&D). Mas, em número de patentes Nordeste”, propõe a nutricionista, que já
de mestrado e de 90% dos doutorados da geradas, os campos que se destacam são realizou oficinas no Instituto Federal da
Paraíba. Isso mostra o quanto a universi- engenharia de alimentos, engenharia Paraíba (IFPB) para capacitar habitan-
dade é importante para o estado, algo que química, nutrição e biotecnologia. A nu- tes do município de Princesa Isabel, no
todos os atores do sistema de inovação tricionista Ana Cristina Silveira Martins sertão paraibano, a produzir e comer-
reconhecem”, diz Ribeiro. é detentora, junto com o grupo de pes- cializar geleias feitas com outros frutos
O licenciamento de tecnologias depen- quisa do qual faz parte, de 30 patentes, regionais, como o maxixe. “Nossa meta
de da promoção de uma cultura de ino- das quais 28 foram depositadas durante o é licenciar as inovações para a indústria
vação dentro das universidades, observa mestrado em ciências naturais e biotec- alimentícia.”
o engenheiro químico Nilton Silva, coor- nologia no Centro de Educação e Saúde O protagonismo de universidades e ins-
denador do Núcleo de Inovação e Trans- da UFCG, campus de Cuité. “Desenvolvi tituições públicas de pesquisa na proteção
ferência de Tecnologia (NITT) da UFCG, inovações utilizando o mandacaru, plan- à propriedade intelectual é uma caracte-
criado em 2008. “A partir de 2016, vários ta típica da Caatinga”, explica a pesqui- rística resiliente do sistema de ciência e
pesquisadores da instituição incorpora- sadora, que atualmente faz o doutorado tecnologia brasileiro, enquanto em países
ram a responsabilidade de registrar as na UFPB e é detentora de duas patentes. industrializados esse papel é desempe-
tecnologias geradas, aprendendo a redigir Entre as inovações estão uma farinha de nhado majoritariamente por empresas e
as universidades não aparecem em posi-
ção de destaque nos rankings (ver quadro).
A crise econômica parece ter tornado o
Distribuição das patentes problema mais agudo no país, com um
decréscimo no número de pedidos de pa-
Os estados com maior número de depósitos em 2017 tentes feitos por corporações. No mesmo
levantamento do INPI em que as universi-
Evolução dades paraibanas se destacam, há apenas
No de depósitos Participação 2016-2017 uma empresa entre as 15 organizações
1 São Paulo 1.640 29,9% 3% que mais solicitaram patentes no país em
2 Rio de Janeiro 672 12,3% 3% 2017 – a CNH Industrial, fabricante de
3 Minas Gerais 638 11,6% 18% máquinas agrícolas e caminhões leves. Já
4 Paraná 444 8,1% 7% no período de 2000 a 2005, contavam-se
5 Rio Grande do Sul 443 8,1% -8% oito empresas entre os 15 maiores paten-
6 Santa Catarina 311 5,7% 2% teadores do Brasil (ver seção Dados em
7 Paraíba 177 3,2% 164% Pesquisa FAPESP nº 271).
8 Ceará 169 3,1% 26% A Paraíba dispõe de um sistema de
9 Pernambuco 153 2,8% 2% inovação que vem se constituindo e ama-
0 Goiás 116 2,1% 20% durecendo nas últimas décadas. Além de
Demais estados 717 13,1% 0% quatro instituições de ensino e pesqui-
sa públicas em seu território – UFPB,
Total de pedidos de 5.480 100% 5%
patentes de invenção
UFCG, IFPB e Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB) –, o estado conta com
atores públicos e privados envolvidos no
Fontes  inpi, assessoria de assuntos econômicos, badepi, v5.0 processo de inovação. No município de

52  z  janeiro DE 2019


Patentes de universidades
Protagonismo acadêmico Instituições de ensino superior
líderes em patentes em países
Há apenas uma empresa, a CNH, entre os maiores depositantes selecionados e suas posições nos
nacionais de patentes em 2017 respectivos rankings nacionais

Universidade Estadual de Campinas 77


Universidade Federal de Campina Grande 70 Estados Unidos
Universidade Federal de Minas Gerais 69
Instituição
Universidade da Califórnia*
Universidade Federal da Paraíba 66
Posição no ranking nacional
Universidade de São Paulo 53
77º lugar
Universidade Federal do Ceará 50 Patentes (registros)
CNH Industrial Brasil 35 524 (2017)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul 34 Fonte IPO

Pontifícia Universidade Católica do Paraná 31


Universidade Federal do Paraná 31 Fonte inpi França
Instituição
Université Claude Bernard Lyon 1
Posição no ranking nacional
28º lugar
Campina Grande, por exemplo, o bairro o Sebrae-Paraíba, a Fundação de Apoio à Patentes (pedidos)
Bodocongó vem sendo identificado como Pesquisa do Estado da Paraíba (Fapesq) 55 (2017)
polo tecnológico, por abrigar não apenas e a Embrapa, além das universidades pú- Fonte  INPI-França

instalações da UFCG e da UEPB como blicas – atuam em diversos municípios do


também empresas de base tecnológica, estado, abrangendo quatro mesorregiões: Alemanha
escolas técnicas e centros de apoio à pes- Mata Paraibana, Agreste Paraibano, Bor- Instituição
Instituto Fraunhofer
quisa como a Fundação Parque Tecno- borema e Sertão Paraibano. “Essas insti-
Posição no ranking nacional
lógico da Paraíba (PaqTcPB), que busca tuições estão muito bem distribuídas pelo 17º lugar
promover o empreendedorismo em áreas estado, considerando a densidade demo- Patentes (pedidos)
como produção de softwares, geoproces- gráfica da região. Mas essa abrangência 411 (2017)
samento e biotecnologia. poderia ser mais proveitosa se estivessem Fonte  DPMA

mais articuladas com os demais atores do

A
consolidação do polo da Paraí- sistema de inovação, principalmente as Reino Unido
ba teve início na década de 1970, entidades representativas do setor pro- Instituição
Universidade de Oxford
quando Lynaldo Cavalcanti de dutivo”, observa Ribeiro.
Posição no ranking nacional
Albuquerque, então reitor da UFPB, Uma iniciativa anunciada em 2017 13º lugar
implementou uma estratégia capaz de busca reparar esse problema, conta Ri- Patentes (pedidos)
atrair profissionais de outros estados do beiro. Trata-se do Plano de Desenvolvi- 109 (2017)
país e capacitar professores de Campina mento Econômico, Social e Sustentável Fonte  IPO

Grande. Pesquisadores de instituições para os Arranjos Produtivos Locais da


com ensino e pesquisa amplamente re- Paraíba (Plades), formado por institui- China
ções de ensino superior, representantes Instituição
conhecidos, como o Instituto Tecnoló-
Universidade de Guangxi 
gico de Aeronáutica (ITA), em São José do setor empresarial, governo estadual e
Posição no ranking nacional
dos Campos (SP), fixaram-se na cidade a Superintendência do Desenvolvimen- 9º lugar
paraibana, onde, nos anos 1980, foi ins- to do Nordeste (Sudene). O objetivo é Patentes (pedidos)
talado um dos primeiros parques tecno- construir uma estratégia de desenvolvi- 3.181 (2016)
lógicos do Brasil. mento territorial em redes de arranjos Fonte  Sipo

“A Paraíba tem instituições voltadas produtivos locais (APLs) – que são ca-
para a inovação. Um problema é que es- pazes de estimular a interação entre os Brasil
Instituição
ses atores não interagem entre si”, avalia atores de uma região com a finalidade de
Universidade Estadual de Campinas
o contador Fabiano de Moura Ribeiro, disseminar conhecimento, consolidan-
Posição no ranking nacional
membro da Coordenação de Orçamento do estruturas produtivas e o dinamismo 1º lugar
da UFPB, que atualmente faz doutorado necessário à geração de inovação. Para Patentes (pedidos)
na Universidade de Aveiro, em Portugal. Ribeiro, o fortalecimento de APLs no 77 (2017)
Em 2017, ele defendeu uma dissertação de estado pode favorecer o licenciamento Fonte  INPI

mestrado na qual caracterizou mais de 15 de patentes. “Ao conectar instituições


atores do sistema de inovação paraibano, de pesquisa, comunidades locais e em-
*Também é a primeira universidade
entre instituições de ensino e pesquisa, presas, será possível prospectar deman-
a aparecer no ranking do Escritório
entidades empresariais e órgãos gover- das para pesquisas e oferecer soluções”, Europeu de Patentes, em 95o lugar,
namentais. Essas instituições – entre elas defende. n Bruno de Pierro com 215 depósitos em 2017
ciência  Saúde y

Parceria pela
vacina contra
dengue
Imunizante do Butantan em fase
final de testes leva multinacional
farmacêutica a fechar acordo de até
US$ 100 milhões com instituto paulista

Rafael Garcia

O
Instituto Butantan firmou em 12 de e de experiência para que os produtos desen-
dezembro um acordo de colabora- volvidos pelas duas entidades parceiras – uma
ção tecnocientífica em um formato pública, outra privada – possam chegar mais ra-
inovador que deve acelerar o pro- pidamente às pessoas.
cesso de desenvolvimento de sua O acordo prevê um aporte inicial para o Bu-
vacina contra dengue, patenteada nos Estados tantan de US$ 26 milhões, a serem pagos pela
Unidos e atualmente na etapa final de testes, a MSD, cuja candidata à vacina contra dengue es-
chamada fase 3, em voluntários do Brasil. Em um tá em um estágio mais atrasado, para ter acesso
país mais acostumado a comprar tecnologias e aos testes clínicos e ao processo de desenvolvi-
serviços científicos do exterior, o novo contrato mento do imunizante contra essa doença criado
com a multinacional farmacêutica norte-ameri- pelo instituto paulista. O laboratório também se
cana MSD (Merck Sharp & Dohme) inverte essa compromete a repassar ao instituto até US$ 75
tendência: assegura a entrada de investimentos milhões adicionais ao longo dos próximos 24 me-
externos e prevê o compartilhamento de dados ses. Também poderão ser recebidos royalties se
Envase de vacinas
na fábrica do
Instituto Butantan

a vacina da empresa atingir metas de comercia- com esse perfil feita entre um instituto brasilei-
lização no exterior. Até agora, foram investidos ro e uma empresa farmacêutica global”, afirma
no projeto da vacina do Butatan R$ 224 milhões, o médico Dimas Tadeu Covas, diretor do Butan-
provenientes do Banco Nacional de Desenvolvi- tan. “É uma satisfação ver um projeto iniciado a
mento Econômico e Social (BNDES), da FAPESP, partir de estudos financiados pela FAPESP ao
da Fundação Butantan e do Ministério da Saúde. longo de 10 anos se transformar em um produto
Em princípio, o Butantan e a MSD não con- que, dentro de alguns anos, poderá entrar no
correrão em nenhum mercado. O instituto tem mercado mundial”, disse, na cerimônia de assi-
a exclusividade da produção da vacina contra natura do acordo, Marco Antonio Zago, presi-
dengue no Brasil e a MSD detém os direitos pa- dente da Fundação e então secretário da Saúde
instituto butantan

ra os Estados Unidos, Japão, China e Europa. “O do Estado de São Paulo.


Butantan atingiu um nível de excelência inter- A parceria foi possível porque tanto o instituto
nacional no desenvolvimento de vacinas de in- paulista quanto o laboratório norte-americano
teresse mundial. Essa é a primeira transferência usam como base para suas vacinas um conjun-

pESQUISA FAPESP 275  z  55


A vacina contra
dengue está
sendo testada
em 17 mil
voluntários
brasileiros com
idade entre
2 e 59 anos

Representação do to de linhagens do vírus da dengue criado por clínicos da fase 2, que demonstraram a seguran-
vírus da dengue, que modificação genética pela equipe de Stephen ça do produto e sua capacidade de estimular o
apresenta quatro
Whitehead, do Instituto Nacional de Doenças sistema imune a produzir anticorpos contra os
sorotipos
Infecciosas e Alergia (Niaid), um dos Institutos quatro vírus da dengue. Essa fase já terminou,
Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, os NIH. mas seus resultados ainda não foram publica-
Quando foram iniciadas as parcerias internacio- dos em um artigo científico. “O paper sobre es-
nais para desenvolvimento da vacina, os NIH se estudo foi recentemente encaminhado para
definiram de antemão os domínios territoriais publicação e estamos aguardando a resposta”,
que caberiam a cada um de seus colaboradores. explica Alexander Precioso, diretor da Divisão
de Ensaios Clínicos do Butantan. “Não é neces-

A
vacina desenvolvida pelo Butantan, de- sário publicar o estudo de fase 2 para iniciar o
signada pela sigla Butantan-DV, é feita de fase 3. A aprovação de um estudo clínico se
de vírus vivos atenuados (a da MSD tam- dá nas esferas sanitária e ética.” Depois de ter
bém será). Seu trunfo é ser tetravalente. Foi de- sua segurança e baixa toxicidade asseguradas
senhada para fornecer proteção aos quatro tipos na fase 1, um candidato a vacina (ou a remé-
de vírus da dengue e pode ser aplicada em uma dio) tem de passar pelos testes clínicos da fase
única dose. Seus testes clínicos foram planejados 2, que envolvem mais aspectos de segurança e
para adequação do produto a uma grande faixa um estudo terapêutico com um número ainda
etária, dos 2 aos 59 anos. Até agora, o imunizan- pequeno de participantes para averiguar se o
te tem se mostrado seguro, com poucas reações produto pode ser útil para a finalidade a que se
adversas, as quais são semelhantes às de outras propõe. A fase 3 consiste em um estudo, geral-
vacinas. Nenhuma outra vacina contra dengue mente multicêntrico, com uma grande quan-
desenvolvida a partir do material cedido pelos tidade de voluntários de perfil etário variado,
NIH está em fase tão avançada de pesquisa. A para se determinar a eficácia e confirmar o seu
Sanofi Pasteur lançou no fim de 2015 a Dengva- perfil de segurança.
xia, único imunizante contra a doença disponível Mesmo sem terem sido publicados em um
no mercado, que foi desenvolvido com uma tec- estudo científico, os resultados dos testes de
nologia diferente da empregada pelos NIH. Mas fase 2 com a vacina do Butantan, feitos em 300
o produto da empresa francesa apresenta vários voluntários recrutados pela Faculdade de Me-
problemas: tem taxa de eficácia relativamente dicina da Universidade de São Paulo (FM-USP),
baixa (60%), pode causar reações adversas e é foram comunicados à MSD e outras empresas e
contraindicado para quem nunca teve dengue. instituições em reuniões científicas, como con-
A aproximação entre o Butantan e a MSD co- gressos e eventos. “Os resultados dessa fase fo-
meçou a ser costurada logo após a vacina criada ram extremamente promissores e nos chamaram
pelo instituto paulista ter passado pelos testes a atenção”, afirma Guilherme Leser, diretor de

56  z  janeiro DE 2019


Etapa do trabalho
de desenvolvimento do
imunizante contra
dengue no Butantan

Relações Governamentais e Institucionais da é esperado para o período. Como as epidemias


MSD no Brasil. “Começamos então a conversar começam efetivamente em fevereiro, é possível
com o Butantan sobre a possibilidade de uma que tenhamos um número de casos bem alto na
parceria, visto que a área de maior prevalência próxima temporada.”
de dengue no mundo naquele momento era o Os 16 centros clínicos do país que conduzem o
Brasil. O país estava atravessando picos de inci- ensaio estão trabalhando para completar a quan-
dência da doença nas regiões Sudeste e Nordeste, tidade de indivíduos que participam do estu-
e essa grande quantidade de casos permitia ao do. “Para conseguir demonstrar que a vacina
Butantan começar mais rapidamente os estudos é eficaz, precisamos documentar 100 casos da
clínicos de fase 3, a última, quando se avalia a doença entre voluntários, mas não chegamos
eficácia da vacina.” Em 2015 e 2016, o Brasil re- ainda nesse número”, explica Kallás. Um terço
gistrou cerca de 1,5 milhão de casos da doença. dos voluntários é do grupo de controle, ao qual é
Em 2017 e em 2018, o número caiu para aproxi- administrado um preparado inócuo, e dois terços
madamente 240 mil. recebem de fato a vacina. Quando o número de
uma centena de doentes for atingido, os pesqui-

O
estudo de fase 3 da vacina do Butantan, sadores abrem as fichas dos participantes que
com meta de inclusão de 17 mil pessoas, adoeceram e constatam de que grupo eles fazem
que serão acompanhadas por cincos anos, parte. Se quase todos tiverem recebido o place-
está bem encaminhado, próximo da conclusão. bo, o dado será um indício muito forte de que a
O ensaio dividiu os voluntários em três recortes vacina é eficaz. No entanto, o ensaio clínico não
etários: 2 a 7 anos, 8 a 17 e 18 a 59. Falta com- terá se encerrado se e quando isso vier a ocorrer.
pletar apenas o grupo de voluntários da faixa Será ainda preciso olhar para a proteção ofereci-
etária mais jovem, a mais difícil de se conseguir da pela vacina contra cada sorotipo do vírus – no
participantes. A dificuldade de se fechar o gru- Brasil, a maioria dos casos de dengue é do tipo 2
po de voluntários também se deveu ao fato de o e 3 – para os diferentes perfis dos pacientes que
país ter tido um número surpreendentemente adoeceram ou não.
baixo de casos de dengue nos últimos dois anos “A MSD está começando os estudos de fase 2
e a necessidade de autorização do pai e da mãe de sua vacina agora. Não definimos ainda quais
fotos 1 PDBE 2 instituto butantan

para a participação da criança no estudo clíni- países e populações queremos buscar para os
co. “Há alguns indícios de que a epidemia de estudos de fase 3”, comenta Leser, do laborató-
2019 deve ser maior que a de 2018”, diz Esper rio farmacêutico. “Nossa ideia é obter números
Kallás, professor da FM-USP e coordenador de significativos de pessoas que foram expostas a
um dos 16 centros clínicos do teste. “No final de sorotipos da dengue, como o 4, que o Butantan
2018 em São Paulo, por exemplo, estão sendo eventualmente não tenha registrado com fre-
registrados casos de dengue acima daquilo que quência em seus testes.”

pESQUISA FAPESP 275  z  57


A vacina Dengvaxia,
da Sanofi, tem baixa
eficácia e só pode
ser tomada por
quem já foi infectado
pelo vírus da dengue

A complementaridade está na raiz do acordo contra dengue e até acelerar algumas etapas des-
articulado entre a multinacional e o Butantan. se processo. “Apressar a demonstração da eficá-
Ou seja, a fase avançada em que a vacina con- cia da vacina obviamente não é possível, mas há
tra dengue do instituto paulista se encontra faz processos de finalização e complementação de
com que seus dados e experiência na produção infraestrutura que podem ser agilizados”, afirma
do imunizante possam contribuir para acelerar Precioso. Encontrar a melhor maneira de apli-
o programa da vacina da MSD. De forma seme- car essa verba, de qualquer modo, é prerrogati-
lhante, a experiência da multinacional em desen- va do Butantan. “Ela deve ser aplicada também
volver, produzir e realizar estudos clínicos com num contexto mais geral de desenvolvimento e
novos imunizantes pode agilizar a fase final de inovação do instituto”, diz ele. O acordo com a
fabricação e os testes clínicos do Butantan. Ape- multinacional também engloba eventuais cola-
sar de serem baseadas em um mesmo preparado borações envolvendo outras vacinas, como a de
de vírus criado pelos NIH, ambas as vacinas te- hepatite A e HPV, hoje fabricadas pelo Butantan
rão de ser aprovadas pelas agências reguladoras. (ver texto à página 59). Por meio da MSD, o ins-
tituto espera ganhar acesso ao mercado inter-

H
á particularidades na formulação final tan- nacional, em especial o dos países pobres e em
to no imunizante de dengue do Butantan desenvolvimento.
como no da MSD. O instituto paulista de- Não faltam questões a serem exploradas no
senvolveu uma vacina de formulação multidose, campo da dengue. Além do estudo geral sobre a
visando, inicialmente, imunizar a população por fase 2 dos testes clínicos, ainda não publicado, e
meio de campanhas como as programadas perio- do ensaio de fase 3 em andamento, há outros tra-
dicamente pelo Ministério da Saúde. Já a MSD balhos sendo feitos com a vacina contra dengue
tem a ideia de atender um mercado global mais do Butantan. O laboratório de Kallás na USP, por
fragmentado, caracterizado por uma demanda exemplo, avalia o quanto esse produto ativa a res-
grande por parte de pessoas que viajam a áreas posta imune celular, sem, no entanto, envolver a
tropicais. Por isso, a empresa priorizará a produ- produção de anticorpos. “Espero que os estudos
ção de frascos de dosagem única. A Organização contribuam para entendermos quais marcadores
Mundial da Saúde (OMS) estima a ocorrência de imunes indicam se a pessoa está protegida ou
390 milhões de infecções pelo vírus da dengue não contra a dengue, atualmente algo ainda não
por ano. Em caso de qualquer mudança de rumo, muito claro”, explica Kallás. n
Sanofi Pasteur / Gabriel Lehto

as duas entidades parceiras se comprometem a


compartilhar sua experiência em técnicas de
produção sem cobrar royalties adicionais. Projeto
Segundo Covas, do Butantan, o aporte de re- Dengue: Produção de lotes experimentais de uma vacina tetravalente
candidata contra dengue (nº 08/50029-7); Modalidade Programa
cursos da MSD poderá servir de apoio para ati- Pesquisa para o SUS; Pesquisador responsável Isaias Raw (Instituto
vidades ligadas ao desenvolvimento da vacina Butantan); Investimento R$ 1.926.149,72 (FAPESP/CNPq-PPSUS).

58  z  janeiro DE 2019


Imunizantes
para
preservar
a saúde
Butantan fabrica anualmente
100 milhões de doses
de nove vacinas

S
e for bem-sucedida, a vacina contra den- Ovos usados os vírus influenza nos ovos embrionados que
gue vai ampliar a lista de imunizantes no processo produzem os antígenos para a vacina. O sistema
de produção
produzidos pelo Butantan. Atualmente, é capaz de processar 520 mil ovos por dia, sendo
da vacina
além de 13 soros contra venenos e toxinas, contra gripe que em média cada um deles resulta em uma dose
o instituto fabrica nove vacinas, que totalizam de vacina. “Nossa fábrica de vacina contra o vírus
100 milhões de doses produzidas anualmente. influenza é a única da América Latina. Estamos
Os imunizantes são fornecidos para o Ministério pedindo sua certificação na Organização Mun-
da Saúde, que os disponibiliza à população. A dial da Saúde [OMS] para podermos exportar
maior parte das vacinas é integralmente feita o produto”, afirma Ricardo das Neves Oliveira,
nas instalações da instituição paulista, apenas as gerente de produção da unidade.
que estão em meio a processos de transferência Depois de fabricar por cinco anos a vacina co-
de tecnologia são produzidas parcialmente no mo fora formulada originalmente, o Butantan
Butantan, por meio de acordos com laborató- estuda adaptar a unidade de gripe para produzir
rios privados. Em 2018, a vacina sazonal contra imunizantes mais sofisticados. Atualmente, a vaci-
gripe foi a de maior produção (60 milhões de na contra influenza feita no instituto é trivalente,
doses), seguida das vacinas contra hepatite B isto é, cada formulação anual reage a três tipos
(16 milhões), HPV ou papilomavírus humano de vírus inativado. Quem determina quais ce-
(7,6 milhões), difteria, tétano e pertussis (4,3 pas de vírus são usadas a cada ano é a OMS, que
milhões) e hepatite A (3,7 milhões). coordena o monitoramento das epidemias globais
O prédio de 10 mil metros quadrados que abri- de gripe. A vacina do Butantan gera imunida-
ga hoje a unidade de produção desse imunizante de contra dois subtipos do vírus influenza A e
antigripe – cuja formulação muda anualmente em um subtipo do B. “Estamos fazendo testes para
função dos tipos de vírus influenza em circula- acrescentar mais um subtipo de influenza B na
ção no mundo – é o mais moderno do Butantan, formulação e produzir uma vacina quadrivalente,
com nível 2 de biossegurança. Um programa de que já existe no mercado”, diz Oliveira.
transferência de tecnologia com a Sanofi, em- O instituto também planeja iniciar o desenvol-
presa francesa criadora da vacina, capacitou o vimento de uma vacina contra gripe de dose alta,
instituto a fabricar o produto. A multinacional com mais proteína viral, voltada para idosos, que
certificou que o Butantan faz um produto idên- favoreceria uma resposta imunológica melhor.
tico à sua formulação. Outro aprimoramento perseguido é aumentar a
instituto butantan

Mesmo optando por incorporar tecnologia da produção de doses de vacina por ovo utilizado.
iniciativa privada, o instituto paulista teve que Com esse intuito, há uma parceria com duas gran-
inovar em engenharia para fabricar a vacina con- jas certificadas para testar ovos provenientes de
tra gripe, com um sistema próprio para inocular diferentes linhagens de galinhas. n

pESQUISA FAPESP 275  z  59


psiquiatria y

Aposta contra a

depressão
persistente
Estudos sugerem que doses baixas de anestésico de
ação psicodélica podem ser benéficas a pessoas que
não respondem aos medicamentos convencionais

Ricardo Zorzetto

60  z  janeiro DE 2019


E
m setembro de 2018, a empresa farma- de uso mais simples para pessoas com depressão:
cêutica Janssen apresentou à agência um spray nasal que deverá ser administrado sob
reguladora de alimentos e medicamen- supervisão médica.
tos dos Estados Unidos um pedido de Caso seja aprovado pela FDA, o spray de ceta-
registro de uso novo para uma medi- mina deve se tornar o primeiro composto da clas-
cação antiga. O laboratório, parte da empresa se dos psicodélicos, que alteram a percepção da
norte-americana Johnson&Johnson, solicitou realidade, a ser adotado no tratamento de doenças
à Food and Drug Administration (FDA) que o psiquiátricas com respaldo de uma autoridade sa-
anestésico cetamina, sintetizado nos anos 1960, nitária. Recentemente, tem crescido o interesse de
possa ser usado contra a depressão que não ce- profissionais de saúde mental no uso terapêutico
de aos antidepressivos, chamada de refratária de psicodélicos, muitos em estágio mais inicial de
ao tratamento. Nos últimos 20 anos, um núme- testes (ver reportagem na página 64).
ro crescente de estudos, a maior parte feita com O produto da Janssen está na fase mais avan-
poucas pessoas e de curta duração, sugere que, çada de avaliação em seres humanos: os ensaios
em doses baixas, a cetamina tem ação antide- clínicos de fase 3, que medem a eficácia do pro-
pressiva potente e rápida. duto, última etapa antes da liberação para co-
Uma única dose, injetada no músculo ou na mercialização. Em maio, o grupo coordenado
corrente sanguínea, seria capaz de reduzir de pela psiquiatra Carla Canuso, diretora de desen-
modo significativo e relativamente duradouro volvimento clínico da Johnson&Johnson, publi-
(cerca de uma semana) a tristeza, a desesperança, cou um artigo on-line no American Journal of
a falta de motivação, a baixa autoestima e até os Psychiatry em que mostra os resultados de uma
pensamentos suicidas que podem acompanhar a etapa anterior, os ensaios de fase 2. Realizado
depressão severa. “Em doses de 10 a 20 vezes in- com pesquisadores da Universidade Yale, nos
feriores às usadas na anestesia, é um medicamen- Estados Unidos, o estudo avaliou a segurança e
to que ajuda a tirar a pessoa do fundo do poço”, deu indícios da possível eficácia do spray. Ne-
afirma o psiquiatra Acioly Lacerda, professor da le, 68 pessoas com depressão refratária e risco
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um iminente de suicídio foram aleatoriamente in-
dos pioneiros no uso experimental da cetamina dicadas para receber duas doses semanais de
contra a depressão no Brasil. cetamina intranasal por quatro semanas ou de
Um dos problemas de saúde mental mais fre- um composto inócuo (placebo). Os dois grupos
quentes no mundo, a depressão atinge 300 mi- também foram tratados com um antidepressivo
lhões de pessoas, segundo a Organização Mun- convencional. Segundo o trabalho, quem recebeu
dial da Saúde. Um desafio é que até metade das cetamina melhorou mais rápido, até o 11º dia dos
léo ramos chaves

pessoas tratadas não melhora com os antide- testes, do que o grupo placebo.
pressivos disponíveis. De olho nesse mercado, Resultados preliminares de dois ensaios clíni-
a Janssen desenvolveu uma versão da cetamina cos de fase 3, dos quais participam centenas de

pESQUISA FAPESP 275  z  61


pessoas em 60 clínicas e hospitais de diversos privada, é preciso ter alvará para a aplicação de
países, inclusive do Brasil, foram apresentados medicamentos injetáveis, além de equipamen-
em maio no encontro anual da Associação Ame- tos para monitoração cardiorrespiratória e res-
ricana de Psiquiatria e reforçam os achados an- suscitação. Nesses locais, cada aplicação sai por
teriores. “Se a resposta da cetamina intranasal R$ 600 a R$ 1.200, por causa da infraestrutura
continuar superior à do placebo nos estudos que exigida e do custo da hora das equipes médica e
estão terminando, a aprovação da FDA pode vir de enfermagem.
em até um ano”, diz o psiquiatra Lucas Quaran- Lacerda calcula que cerca de 20 clínicas e hos-
tini, professor da Universidade Federal da Bahia pitais brasileiros (ao menos seis ligados a univer-
(UFBA), que, como Lacerda, participa dos testes sidades públicas) já ofereçam o tratamento com
do medicamento da Janssen. cetamina para a depressão. Na Unifesp, ele coor-
dena uma equipe que atua em dois ambulatórios
Uso off-label que funcionam todas as manhãs de segunda a
Mesmo sem aprovação das autoridades de saúde, sexta-feira e atendem apenas pacientes do SUS.
já ocorre nos Estados Unidos, e mais recentemen- Nas duas unidades, 10 pessoas são tratadas com
te no Reino Unido e no Brasil, a prescrição de cetamina por dia. “Em quatro anos, esse consór-
cetamina injetável contra a depressão refratária. cio de clínicas e hospitais já realizou cerca de
Nesses países o composto está 6 mil aplicações de cetamina
registrado apenas como anes- em aproximadamente 1.200
tésico. Seu uso psiquiátrico não pacientes”, conta. “Entre 60%
consta da bula e é considerado A aprovação e 65% deles apresentaram me-
excepcional ou off-label (práti- lhora considerável”, afirma o
ca comum que, segundo alguns da droga para pesquisador.
estudos, ocorre com até 40% Há cerca de cinco anos Qua-
dos medicamentos prescritos
uso psiquiátrico rantini e Lacerda trabalham
para adultos). Por essa razão, a está sendo em parceria. Eles já testaram
indicação da cetamina injetável em 27 pacientes (23 com de-
contra a depressão ocorre por analisada pelas pressão e 4 com transtorno
conta e risco do médico, que só bipolar) a aplicação de ceta-
deve recomendá-la se os bene- autoridades mina em menos tempo, ape-
fícios para o paciente supera- nas 10 minutos, e obtiveram
rem os riscos – de problemas
de saúde resultados semelhantes ao da
cardiovasculares (em parte das administração usual, em 40
pessoas, eleva temporariamente minutos. No ano passado, re-
a pressão arterial) e de depen- lataram na revista Schizoph-
dência. “O uso off-label é de res- renia Research o tratamento
ponsabilidade de cada profissional”, informou a experimental de seis pessoas com esquizofrenia.
assessoria de comunicação da Agência Nacional Doses baixas de cetamina reduziram nesses pa-
de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula a cientes a perda de prazer (anedonia) caracterís-
venda de medicamentos no Brasil. tica tanto da depressão quanto da esquizofrenia.
No país, a única empresa produtora de ceta- Em outro estudo, eles avaliaram em 63 pessoas
mina, o laboratório Cristália, entrou há cerca de com depressão as duas variedades de cetamina
oito meses com um pedido na Anvisa para que o existentes no mercado: a S-cetamina ou esceta-
tratamento da depressão passe a constar em bula. mina, usada no spray da Janssen e, no Brasil, fa-
“Reunimos os estudos mostrando a segurança e bricada pelo laboratório Cristália, e a cetamina
eficácia do produto contra a depressão e estamos usada em anestesia, conhecida como racêmica,
aguardando”, conta o médico Ogari Pacheco, co- uma mistura da S-cetamina e da R-cetamina (elas
fundador do Cristália. A aprovação pela autori- têm estrutura espacial diferente). Segundo os
dade sanitária daria respaldo aos médicos, que dados, já aceitos para publicação, a S-cetamina
correm o risco de sofrer ações judiciais. Também funcionou tão bem quanto a racêmica.
representaria um passo inicial para que se torne “Há razão para ser otimista com o impacto da
possível pedir ao Ministério da Saúde a inclusão cetamina sobre a sobrecarga que a depressão gera
da cetamina, um medicamento barato (a dose cus- na saúde pública”, afirmou o psiquiatra norte-
ta entre R$ 5 e R$ 10), na lista de medicamentos -americano John Krystal, professor da Univer-
e procedimentos oferecidos pelo Sistema Único sidade Yale, em entrevista a Pesquisa FAPESP.
de Saúde (SUS) e pelos planos de saúde. “Nunca houve um medicamento que agisse de
Hoje, clínicas e hospitais públicos que tratam maneira tão rápida, eficiente e persistente.”
depressão com cetamina dependem do setor de Krystal foi um dos pioneiros no uso da cetamina
anestesiologia para fazer a compra. Na iniciativa para tratar problemas psiquiátricos e hoje detém
1
2 existem ensaios clínicos de fase 3 com a cetamina
injetável. Segundo os autores, esses ensaios talvez
nunca sejam realizados por questões econômicas
(são caros e pode não haver interesse da indús-
tria em produzir uma medicação tão barata). Por
essa razão, recomendam aos médicos a seleção
criteriosa dos pacientes.
Outros estudos, também pequenos e às vezes
financiados pela indústria farmacêutica, avaliaram
as doses mais adequadas, estratégias para prolon-
gar o efeito benéfico aumentando o número de
aplicações (entre 5 e 8) por ciclo de tratamento e
melhor via de administração. A aplicação endo-
venosa, que permite interromper a administração
no caso de problemas, é a preferida das clínicas de
cetamina, que proliferam nos Estados Unidos e,
segundo reportagem de setembro de 2018 da re-
vista eletrônica Stat, podem estar administrando
o medicamento até para quem não precisa.
Na Unifesp, Lacerda aposta nas injeções sub-
Frascos de uma parte das patentes licenciadas pela Janssen cutâneas. Nessa estratégia, o medicamento fica
cetamina, fármaco para administração intranasal e seu uso para tratar armazenado no tecido adiposo e é liberado aos
sintético criado
impulsos suicidas. Em meados dos anos 1990, ele poucos na corrente sanguínea, reduzindo os efei-
nos anos 1960
começou a investigar o efeito de doses baixas do tos desagradáveis – os mais frequentes são enjoo e
anestésico sobre o humor das pessoas e, em 2000, dissociação, percepção alterada do ambiente sem
publicou a primeira evidência de que a cetamina perder a noção da realidade. A aplicação subcu-
produzia um efeito antidepressivo rápido em hu- tânea dispensa o anestesista e pode ser feita por
manos. Em um estudo com apenas oito pessoas, um auxiliar de enfermagem e um médico. “Essa
metade apresentou redução superior a 50% nos é uma estratégia que, além de segura, é financei-
sintomas depressivos em um dia após uma única ramente mais viável para um dia chegar ao SUS”,
aplicação. “Não havíamos antecipado a robustez e afirma o psiquiatra.
a rapidez dos efeitos antidepressivos da cetamina Caso a FDA aprove o medicamento da Janssen,
em humanos”, conta Krystal. sua venda, assim como a do composto injetável,
será restrita a clínicas e hospitais, para evitar o
Faltam dados de longo prazo risco de abuso e dependência. Por seus efeitos
Estudos posteriores, como os de Carlos Zara- alucinógenos, como sentir-se fora do corpo ou
te, do Instituto Nacional de Saúde Mental dos ver pessoas e objetos ao redor mais brilhantes,
Estados Unidos, registraram a melhora de uma a cetamina foi muito usada nos Estados Uni-
proporção maior (71%) de pessoas com quadro dos e em outros países como droga recreativa
depressivo já na primeira hora após a adminis- a partir de fins dos anos 1960. Era conhecida
tração e resultados semelhantes no tratamento como K (do inglês ketamine), superK, Kitty, Vi-
do transtorno bipolar. Outros trabalhos sugeri- tamin K, Cat Valium, entre outros apelidos. Seus
ram que a cetamina proporcionaria uma redução usuários aplicam a forma líquida no músculo ou
mais rápida e maior do quadro depressivo do que aspiram o pó da versão liofilizada, de uso vete-
a eletroconvulsoterapia (eletrochoque), o padrão- rinário. “Quem faz uso abusivo consome doses
fotos 1 léo ramos chaves 2 Psychonaught / Wikimedia Commons

-ouro no tratamento da depressão refratária a bem mais elevadas que as anestésicas e até 40
medicamentos, e que, nas semanas iniciais, seria vezes maior que a usada contra a depressão”,
mais eficaz do que os outros 12 medicamentos. conta Lacerda. n
Apesar do otimismo, há motivos para cautela.
Em 2017, pesquisadores de uma força-tarefa da
Artigos científicos
Associação Psiquiátrica Americana publicaram
CANUSO, C. et al. Efficacy and safety of intranasal esketamine for the
um artigo na revista JAMA Psychiatry alertan- rapid reduction of symptoms of depression and suicidality in patients
do para as limitações no conhecimento sobre o at imminent risk for suicide: Results of a double-blind, randomized,

uso do medicamento contra a depressão e ou- placebo-controlled study. American Journal of Psychiatry. v. 175, n.
7, p. 620-30. 1º jul. 2018.
tros transtornos do humor. A maior parte dos AJUB, E. e LACERDA, A. L. T. Efficacy of esketamine in the treat-
estudos se baseia em amostras pequenas e com ment of depression with psychotic features: A case series. Biological

informações limitadas sobre a segurança do uso Psychiatry. v. 83, p. 15-6. 2018.


NUNES, M. V. et al. Efficacy of esketamine in the treatment of negative
prolongado, afirmaram. Também faltam dados da symptoms in schizophrenia – A case series. Schizophrenia Research.
eficácia no tratamento de longa duração e não v. 202, p. 394-96. 2018

pESQUISA FAPESP 275  z  63


O outro lado da
ayahuasca
Em testes iniciais, equipes de Natal e Ribeirão
Preto avaliam ação antidepressiva de chá feito de
folhas de arbusto e casca de cipó da Amazônia

D
e tempos em tempos, surge uma sor na Universidade de São Paulo em Ri- severa que não respondiam aos medica-
onda de otimismo, quase sem- beirão Preto (USP-RP) e coordena uma mentos usuais. No experimento, reali-
pre frustrada, acerca da possi- rede de pesquisadores que investiga o zado no Hospital Universitário Onofre
bilidade de uso de compostos potencial terapêutico dos psicodélicos. Lopes, em Natal, 29 pessoas foram alea-
psicodélicos para tratar problemas de Um dos compostos avaliados pelo gru- toriamente indicadas para receber o chá
saúde mental. Extraída de plantas ou po é a ayahuasca, produzida a partir do ou uma bebida sem ação farmacológica
sintetizada em laboratório, essas subs- cozimento de folhas do arbusto Psycho- (placebo), formulada para ter sabor e
tâncias costumam alterar a percepção tria viridis, conhecido como chacrona, aspecto de ayahuasca. Antes, durante
da realidade e as emoções e causar uma e da casca do cipó Banisteriopsis caa- e por uma semana após o tratamento,
sensação de bem-estar, além de poderem pi, também chamado de mariri. Usada os pesquisadores realizaram uma série
provocar episódios de ansiedade com por povos indígenas da Amazônia em de avaliações psicológicas e fisiológi-
menor frequência. A disseminação de rituais de cura espiritual, a ayahuasca foi cas nos participantes (14 tomaram aya-
seu uso recreativo nos anos 1960 pelos incorporada a partir dos anos 1930 em huasca e 15 placebo), além de imagens
movimentos de contracultura levou as cerimônias de seitas religiosas criadas de ressonância nuclear magnética para
autoridades sanitárias a proibir o acesso por seringueiros – Santo Daime e União avaliar alterações no funcionamento do
a esses compostos em muitos países – al- do Vegetal, no Acre, e Barquinha, em cérebro. Durante o experimento, nem os
guns permitem o uso restrito em pesqui- Rondônia. Nos anos 1980 passou a ser pesquisadores nem os participantes sa-
sas. A onda atual de entusiasmo ganhou consumida em outras partes do mundo. biam quem havia recebido ayahuasca ou
força nos últimos anos com a publicação No Brasil, seu uso é considerado legal placebo – o chamado duplo-cego.
de resultados promissores de estudos desde 1987 para fins ritualísticos. Mais Os dois grupos apresentaram redu-
mais bem planejados e realizados com recentemente, começou-se a analisar ção no quadro depressivo após o experi-
mais rigor, ainda que com poucos par- a potencial ação antidepressiva dessa mento, com melhora significativamente
ticipantes, para avaliar a segurança e a bebida, embora seu consumo ainda es- maior entre os que tomaram ayahuasca.
eficácia dos psicodélicos – alguns natu- teja longe de poder ser indicado como A diferença se tornou mais importante
rais, como a psilocibina e a ayahuasca; tratamento para depressão. no sétimo dia após o tratamento: cerca
outros sintéticos, como a cetamina (ver Em um dos seus trabalhos mais re- de 60% das pessoas que receberam a
reportagem na página 60). centes, os grupos de Hallak e do neuro- preparação com as folhas e o cipó ha-
“A psiquiatria necessita de novos me- cientista Dráulio Barros de Araújo, da viam apresentado uma redução supe-
dicamentos porque muitos dos que exis- Universidade Federal do Rio Grande do rior a 50% nos sinais de depressão, con-
tem hoje não apresentam boa eficácia Norte (UFRN), avaliaram a ação antide- tra 27% no grupo placebo. Metade dos
contra certos casos de depressão”, afirma pressiva de uma única dose de ayahuasca participantes do primeiro grupo estava
o psiquiatra Jaime Hallak. Ele é profes- administrada a pacientes com depressão completamente livre dos sintomas, ante

64  z  janeiro DE 2019


Cipó usado na produção 1

da ayahuasca e
cogumelo do qual se
obtém a psilocibina

fechados, o padrão esperado seria que duplo, reduzindo a degradação de sero-


essa área cerebral estivesse menos ativa. tonina e estimulando seus receptores”,
Outros dois estudos com ressonância explica o farmacólogo Rafael Guimarães
magnética ajudam a explicar por que os dos Santos, da equipe da USP-RP. “Es-
usuários frequentes de ayahuasca pare- ses receptores controlam as emoções e
cem mais autoconscientes nos testes rea- a neuroplasticidade.”
lizados. Em um deles, a neurocientista Apesar dos resultados animadores,
Fernanda Palhano-Fontes, da UFRN, ob- ainda não há informações suficientes
servou que, durante o uso do composto, que permitam indicá-la como um pos-
as pessoas apresentam atividade menor sível tratamento contra a depressão.
2
da rede cerebral acionada quando se está Faltam dados mostrando que o uso da
divagando ou remoendo pensamentos, al- bebida é seguro no longo prazo e qual
go comum na depressão. Segundo os pes- seria a dosagem terapêutica adequada.
10% no segundo, de acordo com artigo quisadores, os resultados apoiam a ideia Também seria necessário avaliar um nú-
publicado on-line em junho de 2018 na de que o estado alterado de consciência mero bem maior de participantes por
revista Psychological Medicine. “Até onde está relacionado à modulação dessa rede. mais tempo, em estudos controlados com
sabemos, esse é o primeiro ensaio clíni- placebo. Mesmo que esses testes sejam
co controlado com placebo já realizado controle das emoções e do humor feitos, Hallak tem dúvidas de que um
com a ayahuasca”, conta Araújo, que já Em outro experimento, publicado em dia a ayahuasca se torne um tratamento
provou a bebida algumas vezes. 2016 no Journal of Clinical Psychophar- disseminado. “A ayahuasca tem alguma
Araújo começou se interessar em estu- macology, o grupo de Hallak deu uma do- semelhança com os medicamentos fi-
dar a ayahuasca por volta de 2005, quando se de ayahuasca a 17 pessoas com depres- toterápicos, mas é mais complexo ga-
fotos 1 Antônio Gaudério / Folhapress 2 Alan Rockefeller / wikipedia

fazia a transição de sua área de formação, são refratária a tratamento que nunca rantir que seja produzida sempre com
a física, para a neurociência. Com Hallak, tinham consumido a bebida. Exames de a concentração desejada dos princípios
realizou um experimento, descrito em imagens realizados oito horas após a in- ativos”, diz. n Ricardo Zorzetto
2012 na revista Human Brain Mapping. gestão do composto mostraram aumen-
Eles convidaram 12 pessoas habituadas to da atividade de três áreas cerebrais
Projeto
a consumir ayahuasca a fazer imagens responsáveis pelo controle do humor e
INCT 2014: Translacional em medicina (nº 14/50891-1);
do cérebro em funcionamento sob efeito das emoções (núcleo accumbens, ínsula Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável
da bebida. Os participantes observavam direita e área subgenual esquerda) – os Jaime Eduardo Cecilio Hallak (usp); Investimento R$
algumas imagens e depois fechavam os antidepressivos comuns também agem 2.934.549,57 (para todo o projeto).

olhos. Sob efeito da ayahuasca, a região nessas regiões, mas levam mais tempo. Artigos científicos
do cérebro responsável pelo processa- Avaliações do humor realizadas no dia PALHANO-FONTES, F. et al. Rapid antidepressant effects
mento visual permaneceu ativa mesmo e nas três semanas seguintes mostraram of the psychedelic ayahuasca in treatment-resistant de-
pression: A randomized placebo-controlled trial. Psycho-
quando estavam de olhos fechados. Talvez uma redução importante dos sintomas logical Medicine. On-line. 15 jun. 2018.
isso explique as visões que algumas pes- depressivos até o 21o dia. “A ayahuas- Os demais artigos científicos consultados para esta re-
soas têm quando tomam o chá. De olhos ca parece agir como um antidepressivo portagem estão listados na versão on-line.

pESQUISA FAPESP 275  z  65


MEDICINA y

Transplante
contra
infertilidade
Cirurgia com útero de doadora morta realizada em
São Paulo é a primeira bem-sucedida no mundo

Carlos Fioravanti

N
os próximos meses, se tudo der dade terapêutica pelo sistema público contribuições científicas desse trabalho
certo, duas mulheres com ida- de saúde, esse procedimento poderá se foi indicar que o implante do embrião
de entre 30 e 35 anos que não constituir em uma alternativa de trata- poderia ser feito antes de completar um
conseguem ter filhos devem se mento para a infertilidade, que afeta de ano do transplante de útero, o período
submeter a um transplante de útero de 10% a 15% das mulheres. aguardado pelas outras equipes com
doadoras mortas no Hospital das Clíni- “Esse é um grande avanço para a gine- doadoras vivas, o que reduz os custos
cas (HC) da Faculdade de Medicina da cologia e a obstetrícia brasileiras, ainda de medicamentos e os cuidados médicos.
Universidade de São Paulo (FM-USP) que as indicações sejam bastante limi- O útero implantado não sofreu rejei-
e, depois, tentarão engravidar. A pers- tadas”, comentou o cirurgião fetal An- ção após o transplante nem durante a
pectiva se deve aos bons resultados do tonio Moron, professor da Universida- gestação e foi retirado após o parto para
primeiro transplante desse tipo realizado de Federal de São Paulo (Unifesp), que que a mulher pudesse parar de tomar
pela equipe do Departamento de Gas- não participou do trabalho. Esse tipo de os medicamentos imunossupressores
troenterologia da faculdade: a menina transplante é indicado para mulheres e amamentar, de acordo com o artigo
que nasceu 15 meses depois dessa cirur- sem útero, em razão de problemas con- publicado pela equipe do HC em 4 de
gia bem-sucedida completou 1 ano em gênitos ou cirurgias. dezembro de 2018 da revista Lancet.
15 de dezembro de 2018 e, como a mãe, A mulher de 32 anos que passou pe- “O risco de dar problemas parece bai-
está saudável. lo transplante no HC, em 20 de setem- xo”, comentou o cirurgião Wellington
O transplante de útero de doadora bro de 2016, não tinha o órgão por causa Andraus, coordenador do serviço de trans-
morta realizado na USP foi o primeiro da chamada síndrome de Mayer-Roki- plante de fígado do Departamento de Gas-
a dar certo no mundo, depois de cerca tansky-Küster-Hauser, embora os ová- troenterologia da FM-USP. Sobre sua me-
de 10 tentativas, com a mesma aborda- rios produzissem óvulos. A doadora ha- sa de trabalho ele mantém uma fotografia
gem, nos Estados Unidos, na Turquia e via tido três filhos de partos naturais e da menina que nasceu de 36 semanas, por
na República Checa. Com doadoras vi- morrido de hemorragia cerebral aos 45 cesariana, com 2,5 quilogramas.
vas, desde 2013, houve 39 transplantes, anos. A receptora menstruou pela pri- “O útero é um órgão bastante resis-
resultando em 11 bebês nascidos vivos. meira vez 37 dias após o transplante e, tente”, observou Andraus. Esse trabalho,
À medida que alcançar uma escala mais dois meses depois, engravidou, por meio que ele coordenou ao lado do ginecolo-
ampla e for legitimado como modali- da transferência do embrião. Uma das gista Dani Ejzenberg, também da USP,

66  z  janeiro DE 2019


transplantes de fígado por ano, para Ej-
Operação entre mulheres zenberg e Andraus serem aceitos em um
curso prático, em ovelhas, em 2016 na
Útero retirado de doadora falecida serviu para receptora Universidade de Gotemburgo. Com base
engravidar e ter uma menina em um dos casos que viram na Suécia –
a mulher não engravidou porque ela e o
marido se separaram e ele não autorizou
a implantação do embrião –, a equipe do
1 HC adotou uma inovação ética no formu-
Mulher recebe lário de consentimento: o marido pode
útero de doadora tomar decisões junto com a mulher até
falecida. O órgão o momento do transplante, mas depois
é costurado às cabe somente à mulher decidir se quer
veias e artérias, ou não implantar o embrião.
ovários e vagina “Não conseguiríamos avançar sem o
apoio das equipes do serviço estadual e
nacional de transplante de órgãos, que
autorizaram o transplante e entrevista-
ram as famílias das possíveis doadoras”,
2 Sete meses depois
o embrião é
comentou Andraus. Ainda para se prepa-
rarem, fizeram a retirada de útero de sete
implantado na doadoras mortas, trabalho em geral feito
receptora do órgão durante a madrugada, após a equipe de
transplante retirar fígado e rins, órgãos
considerados prioritários.
A equipe brasileira apresentou os re-
3 Parto é feito por cesariana, com retirada do
útero implantado para cessar medicação contra
sultados do trabalho em setembro de
2017 em um congresso em Gotembur-
rejeição do órgão e permitir a amamentação go. Em dezembro, uma semana antes
do nascimento da menina em São Paulo,
médicos da Universidade de Dallas, nos
Estados Unidos, anunciaram o primeiro
parto nas Américas de um bebê – um
menino – nascido após transplante de
útero de uma doadora viva.
A falta de doadoras vivas ou mortas,
com idade até 45 anos e que já tenham
Fonte  EJZENBERG, D. et al. The Lancet. 2018. tido filhos, como prova da fertilidade
do útero, persiste como um dos pro-
blemas a serem enfrentados. Segundo
D’Albuquerque, depois de acumular mais
indicou que o órgão, em formato de pera, início achei que era um assunto inovador casos bem-sucedidos, outra batalha será
pode se manter em bom estado por oito e merecia atenção especial”, comentou o a incorporação da cirurgia pelo Sistema
horas depois de retirado da doadora; é o cirurgião Luiz Carneiro D’Albuquerque, Único de Saúde (SUS). “Entre o stent
mesmo tempo que outros órgãos, como professor da FM-USP e chefe da Divisão [prótese expansível usada para desobs-
fígado e pâncreas, e quase o triplo do de Transplantes de Fígado e Órgãos do truir artérias] surgir e ser aprovado pelo
que o coração. Aparelho Digestivo do HC. SUS foram oito anos”, exemplificou. n
O grupo preferiu trabalhar com doa-
A Estratégia Brasileira doras falecidas, com base no programa
Em 2015, um artigo na Lancet descre- brasileiro de doação de órgãos de pes- Projeto
veu o primeiro transplante de útero com soas mortas, que viabilizou a captação de Projeto piloto do Programa de Transplante Uterino do
Hospital das Clínicas – FM-USP (no 16/01223-1) Mo-
doadora viva, realizado em fevereiro de 3.625 rins, 1.485 fígados, 266 corações e 31 dalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador
2013, e o parto de um bebê em setembro pâncreas de janeiro a setembro de 2018, responsável Wellington Andraus (USP); Investimento 
ilustração  bárbara malagoli

R$ 149.881,68.
de 2014, ambos realizados por um grupo segundo a Associação Brasileira de Trans-
Artigos científicos
da Universidade de Gotemburgo, na Sué- plante de Órgãos (Abto). Além disso, a
EJZENBERG, D. et al. Livebirth after uterus transplantation
cia. Depois de ler o trabalho, Ejzenberg retirada do órgão seria mais rápida e de from a deceased donor in a recipient with uterine infertility.
perguntou a Andraus se não poderiam custo menor do que com doadoras vivas. The Lancet. v. 392, n. 10165, p. 2697-704. 22 dez. 2018.
BRÄNNSTRÖM, M. et al. Livebirth after uterus trans-
trabalhar juntos para fazer esse tipo de D’Albuquerque teve de detalhar a plantation. The Lancet. v. 385, n. 9968, p. 607-16. 14
transplante. Andraus aceitou. “Desde o experiência de seu grupo, que faz 120 fev. 2015.

pESQUISA FAPESP 275  z  67


Entrevista ALEXANDRE ANTONELLI y

À frente da

ciência dos
jardins reais
Biólogo brasileiro assumirá em
fevereiro o cargo de diretor científico
de Kew Gardens, no Reino Unido

Carlos Fioravanti

E
m 1996, aos 17 anos, Alexandre co da cidade, o maior da Escandinávia,
Antonelli, natural de Campinas, com 16 mil espécies de plantas. Cinco Antonelli: disposto a
entrou no curso de biologia na anos depois tornou-se professor de bio- aproximar os
pesquisadores entre si
Universidade Estadual de Campi- diversidade da Universidade de Gotem-
e com os jardineiros,
nas (Unicamp). Um chamado à aventura burgo. Em 2017, ele criou o Centro de como fez em Gotemburgo
foi irrecusável e seis meses depois ele Biodiversidade Global de Gotemburgo,
trancou a matrícula para passar um ano atualmente com cerca de 10 milhões de
e meio viajando pela Europa de carona exemplares de animais e plantas.
e mochila nas costas. Depois percorreu Aos 40 anos, casado com Anna, ge-
a América Central e conheceu a futura rente de uma clínica psiquiátrica, com
esposa, sueca, em Honduras, quando três filhos – Gabriel, de 14 anos, Clara
trabalhavam em uma escola de mergu- e Maria, de 12 – e cidadania brasileira,
lho. Foi com ela para Gotemburgo, na sueca e italiana, Antonelli estava na Uni- e um banco com 2 bilhões de sementes
Suécia, e lá ficou. Recomeçou o curso versidade Harvard no final de junho de de quase 40 mil espécies.
de biologia na Suécia e fincou raízes na 2018 como professor visitante quando Em outubro, ao comunicar publica-
biogeografia, para ver como plantas de recebeu um convite para se candidatar mente sua nomeação, o diretor de Kew,
regiões neotropicais como a Amazônia ao processo de seleção para o cargo de Richard Deverell, comentou: “A expe-
evoluíram e conquistaram seus espaços. diretor científico dos Jardins Botâni- riência e as especializações científicas
No doutorado, fez coletas na Amazônia cos Reais em Kew, ou Kew Gardens, em de Alex complementam e ampliam os
pela primeira vez, em 2003. Londres, um dos maiores do mundo. A pontos fortes de Kew. Estamos entusias-
Em 2010, após um pós-doutorado na instituição reúne 22 mil espécies de plan- mados por ele poder aplicar sua expe-
Suíça, voltou para Gotemburgo, contra- tas no jardim e 7 milhões nos herbários, riência e ambição para aumentar ainda
tado como curador do Jardim Botâni- além de 1,2 milhão de amostras de fungos mais a qualidade e o impacto global de

68  z  janeiro DE 2019


nossa ciência. Estou confiante de que ro conhecer melhor as áreas de atuação, ideias e os desafios, como as mudanças
ele inspirará não apenas os cientistas e as necessidades e os planos de cada gru- climáticas. Temos de pensar não apenas
estudantes de Kew, mas também uma po do jardim botânico. São oito departa- as ameaças à biodiversidade, mas tam-
nova geração, através do engajamento mentos e cerca de 25 grupos de pesquisa. bém as possibilidades de trabalho, com
e da divulgação da ciência”. Uma das prioridades é ampliar e fortale- o estudo das coleções botânicas.
Antonelli assumirá em 4 de feverei- cer os cursos de mestrado e doutorado
ro com a tarefa de reforçar a integração em botânica e ecologia, aproveitando os Como pretende integrar a coleção viva,
entre os 320 pesquisadores e fortalecer recursos humanos de Kew, com mais de das plantas cultivadas no jardim botâ-
o prestígio, a visibilidade e a produção 320 pesquisadores, e as imensas cole- nico, e o herbário de Kew?
científica de Kew. Um de seus planos é ções. Com minha predecessora, Kathy Umas das coisas que pretendo lançar logo
intensificar a colaboração com pesqui- Willis, Kew fez um plano estratégico pa- depois de assumir é um projeto de digita-
Erik Thor / Young Academy of Sweden

sadores brasileiros – e não apenas de ra a pesquisa científica de 2015 até 2020. lização das coleções vivas e do herbário.
botânica –, como ele conta na entrevis- Agora uma das tarefas é esboçar e liderar Meu sonho é que qualquer visitante pos-
ta a seguir. o plano estratégico para os cinco anos sa abrir a câmera do smartphone e, com
seguintes, até 2025, e trabalhar o docu- uma seta, conhecer mais sobre qualquer
O que pretende fazer como diretor cien- mento lançado há alguns meses sobre a espécie de planta, fungo e microrganis-
tífico de Kew? estratégia de manutenção e expansão das mo que estiver vendo. Isso vai requerer
Ainda não consolidei os planos. Nos pri- coleções até 2030. Temos de consolidar cerca de 100 a 150 imagens de cada es-
meiros meses, a partir de fevereiro, que- esses planos antes de incorporar minhas pécie em diferentes níveis de desenvol-

pESQUISA FAPESP 275  z  69


vimento, antes de florescer, com flores e há também 800 voluntários trabalhando
frutos. Estamos discutindo também um lá. É a maior instituição de pesquisa bo-
novo edifício para a renovação do herbá- tânica do mundo.
rio, que será um prédio muito grande, e
integrar os dois prédios de pesquisa de O Brexit, a saída do Reino Unido da
Kew. O laboratório ainda é separado do União Europeia, pode atrapalhar o tra-
herbário. Queremos unir, para aumentar Vou fazer o balho e o financiamento da pesquisa?
a sinergia entre os pesquisadores. Outro Existem ainda muitas questões não de-
objetivo é fortalecer o elo entre os jar- possível para que cididas, como o acesso aos programas
dineiros, que cuidam das coleções vivas europeus de financiamento à pesquisa,
de plantas, e os pesquisadores, que tra-
pesquisadores que sempre atraiu muito o Reino Unido.
balham principalmente com o herbário. brasileiros Há grande preocupação entre os pes-
Como curador científico das coleções quisadores para saber o que vai acon-
tropicais do Jardim Botânico de Gotem- possam usar as tecer a partir de março. Está bem caóti-
burgo, participei de uma viagem de coleta co. Quando assumir, vai ser um período
na África do Sul. Metade da equipe era coleções de Kew turbulento. Outro desafio é convencer
pesquisador e a outra metade jardineiro. a população e o governo de que Kew é
Foi ótimo. Pode haver uma troca muito
da forma menos muito importante para o país manter
rica de conhecimento entre quem pratica burocrática as metas de desenvolvimento susten-
o cultivo e quem estuda a planta na natu- táveis propostas pelas Nações Unidas.
reza. O botânico costuma pegar a planta possível Das 17 metas, pelo menos quatro estão
que seja representativa do padrão de uma diretamente ligadas à biodiversidade.
espécie, enquanto o jardineiro observa Trabalhamos com pesquisa, conserva-
outras caraterísticas que o botânico nem ção e preservação, mas a segurança ali-
se dá conta, como a variação de tamanho mentar também está muito relacionada
e cores entre plantas da mesma espécie. à pesquisa botânica. Fazer as pessoas
Também há diferenças. O pesquisador entenderem a importância da pesquisa
da universidade começa a trabalhar tar- e da produção científica é um trabalho
de, às vezes às 10h, e o jardineiro tem de achavam que eu poderia ser candidato e constante, que precisa de reforços. Em
começar às 6h30. ele me perguntou se eu estaria interes- 2019 vamos fazer dois festivais de ciência
sado. Havia outros, mas me senti muito para motivar estudantes e professores a
O que aprendeu em Gotemburgo que honrado, porque esse trabalho é o so- encontrar os pesquisadores e visitarem
pode ser útil agora? nho de qualquer biólogo. Mandei meu as coleções. São eventos simples, mas
Algo de que gosto muito na Escandiná- currículo e uma carta explicando por muito importantes para manter o elo
via é a falta de hierarquia nas organiza- que gostaria de trabalhar lá. Estou muito direto com a população.
ções. Tanto no meio universitário como feliz com o que fiz na Universidade de
no jardim botânico existe uma abertura Gotemburgo. Tenho um grupo de pes- A colaboração Kew-Brasil está um pou-
muito grande a diferenças de opiniões e quisa excelente, que formei nos últimos co desacelerada no momento, após o
aos processos de decisão. Minha impres- oito anos, depois que voltei de um pós- término do Projeto Reflora em Kew. Co-
são é de que na Inglaterra a formalidade -doutorado na Suíça. Essa é uma opor- mo pretende trabalhar essa área?
é muito maior e cada pessoa tem um lu- tunidade única de influenciar os estudos Kew tem colaborações com 110 países, a
gar bem definido no organograma. Vou sobre biodiversidade de uma forma que meu ver é essencial ampliá-las, com ga-
trabalhar para aumentar a colaboração seria muito rara em um cargo universi- nhos para todos, mas não poderia dizer,
entre grupos de pesquisa e departamen- tário. Em dezembro fui à festa de Natal sem uma discussão interna. Preciso en-
tos. É importante que os pesquisadores de Kew e no dia 11 dei uma palestra aos tender quais colaborações e áreas seriam
não se sintam infringidos mentalmente e 320 pesquisadores. Como não havia es- mais estratégicas para fortalecer. Como
na prática pela estrutura da organização. paço para todos no auditório, tiveram brasileiro e biólogo tropical, tenho muito
de alugar uma igreja. Apresentei meus interesse em fortalecer as colaborações
Como foi o processo de seleção para o objetivos, fui muito bem recebido e só com o Brasil. Vou fazer o possível para
cargo de diretor científico? tive comentários positivos. que pesquisadores brasileiros possam
No final de junho, Tomas Borsa, repre- usar as coleções e estabelecer vínculos
sentante da empresa Perrett Laver, de Como está Kew atualmente? individuais e institucionais com Kew
Londres, contratada para cuidar da se- Está muito melhor hoje do que há alguns da forma menos burocrática possível.
leção de candidatos para o cargo, me anos. Houve uma reestruturação – até
contatou. Eu nem sabia da vaga. Estava mesmo dramática – há quatro anos e mui- Com quem você colabora aqui no Brasil?
trabalhando como professor visitante ta gente perdeu o emprego. Kew nunca Tenho muitas colaborações e recebo
de [Universidade] Harvard, chamado fez tanta pesquisa e teve tantos pesqui- muitos alunos brasileiros de doutora-
pelo David Rockefeller Center for La- sadores como hoje. O número de funcio- do, pesquisadores em pós-doutorado e
tin American Studies. Segundo Tomas, nários do jardim botânico é mais de mil e professores visitantes. Estou trabalhan-

70  z  janeiro DE 2019


Diliff / wikimedia commons

Vista do jardim e do viveiro


de palmeiras de Kew Sim, e tem sido maravilhoso trabalhar ra medir biodiversidade. Como Josué
Gardens, uma das maiores
com geólogos, matemáticos e outros tem visto, métodos morfológicos e mo-
instituições de pesquisa
botânica do mundo profissionais, que veem o mesmo pro- leculares podem levar a respostas dife-
blema de forma diferente. Mas é um pro- rentes. Quantificar a biodiversidade é
cesso longo. Um artigo sobre a influência uma tarefa muito difícil. Uma aluna de
do clima e da geologia na biodiversidade doutorado, Camila Duarte Ritter, que
do com Rosane Collevatti, professora da de montanhas que saiu em outubro na terminou o trabalho há dois meses, es-
Universidade Federal de Goiás, que está Nature Geoscience reuniu climatólogos, tudou insetos e microrganismos de solo
aqui, em Gotemburgo, por um mês. Tra- geólogos, botânicos, ecólogos, um pou- do Amazonas. Quando se fala em bio-
balho com André Olmos Simões e Ma- co de tudo, e levou três anos para ser diversidade grande, as pessoas pensam
ria Fernanda Calió, da Unicamp, Lucia feito, porque as discussões eram muito muito em mamíferos e aves, mas a maior
Lohmann e José Rubens Pirani, da USP complexas. Sempre me interessei em parte é de microrganismos, fungos e in-
[Universidade de São Paulo], e Fernanda comparar as plantas com outros gru- setos. Estamos vendo uma biodiversida-
Werneck, do Inpa [Instituto Nacional de pos de seres vivos. Tenho vários traba- de muito maior e encontrando padrões
Pesquisas da Amazônia]. No início de ou- lhos sobre análise de biodiversidade de muito diferentes dos de plantas e aves.
tubro estive na Universidade Federal do serpentes com Thaís Barreto Guedes e
Rio Grande do Norte para dar um cur- Cristiano de Campos Nogueira, os dois Como foi seu trabalho na Suécia?
so de doutorado, com a professora Fer- da USP. Um dos alunos de doutorado Tive muita sorte com financiamento
nanda Antunes Carvalho. Tenho ido ao que está aqui em Gotemburgo é o Josué tanto na Suécia como na Comunidade
Brasil e à América Latina três ou quatro Anderson, também trabalhando com Europeia, o que permitiu criar um gru-
vezes por ano para trabalhos de campo serpentes. Em termos de metodologia, po forte de pesquisa e o centro de bio-
e conferências. A maior parte de minha o trabalho com plantas e com animais é diversidade de Gotemburgo, que reúne
pesquisa fiz no Amazonas e nos Andes. muito similar, porque fazemos análises 13 instituições da Suécia. O centro tem
moleculares e comparamos a evolução dois focos: avançar a pesquisa científica
Em um artigo de outubro na PeerJ, com e a história de grupos para encontrar e aumentar o contato entre os cientistas
outros autores, você propõe a biogeo- padrões de biodiversidade. Se encon- e a população. Temos trabalhado muito
grafia transdisciplinar, uma área que tramos padrões similares de diversida- com eventos públicos, para criar novas
poderia reunir não apenas biólogos, de de plantas e animais, isso sugere que ligações entre o público geral, empresas
mas também geólogos, climatólogos e há fatores ambientais influenciando. e pesquisadores. Há dois meses trouxe-
paleontólogos, para entender melhor De modo geral, quanto maior heteroge- mos o [naturalista e apresentador bri-
a evolução e a formação da paisagem. neidade de ambientes, maior o número tânico da rede de televisão BBC] David
Tem trabalhado com pesquisadores de de espécies numa mesma área. Mas há Attenborough e temos feito palestras e
outras áreas? muita diferença entre as métricas pa- exibido filmes que atraem muita gente. n

pESQUISA FAPESP 275  z  71


METEOROLOGIA y

Do pó
à tempestade
Projeto com aeronave alemã vai investigar como
nanopartículas produzem temporais na Amazônia

Igor Zolnerkevic

72  z  janeiro DE 2019


A
descoberta surpreendente altura. Porém, entre 2014 e 2015, duas revista Science, uma equipe de pesquisa-
de que as nuvens de tem- grandes campanhas de observação cien- dores de instituições brasileiras, alemãs
pestade na Amazônia se tífica com a participação de brasileiros e norte-americanas das duas missões
formam de uma maneira e estrangeiros, as missões GOAmazon e afirmou que esses aerossóis ultrafinos
diferente do que ocorre em Acridicon-Chuva, registaram o contrário. são um dos ingredientes fundamentais
outras partes do globo virou de ponta- Na Amazônia, a maior concentração da formação das tempestades mais vio-
-cabeça algumas das noções básicas da de aerossóis não está próxima do solo, lentas da região.
meteorologia. À primeira vista, as nu- mas acima do topo das maiores nuvens, a Agora, para entender melhor esse acha-
vens sobre a maior floresta equatorial cerca de 15 quilômetros (km) de altitude, do, os meteorologistas Luiz Augusto Ma-
do mundo parecem ser como as de qual- segundo estudos produzidos pelos parti- chado, do Instituto Nacional de Pesquisas
quer outro lugar: um enxame de gotas- cipantes dos experimentos. Os trabalhos Espaciais (Inpe), que coordenou a mis-
-d’água e cristais de gelo suspensos no também indicaram que a maior parte são Acridicon-Chuva, e Johannes Lelie-
ar. As gotas surgem e crescem quando o dessas partículas suspensas acima das veld, do Instituto Max Planck de Química
vapor-d’água na atmosfera se condensa nuvens tem um diâmetro inferior a 50 (MPIC), na Alemanha, iniciaram os pre-
na superfície de partículas de fumaça e nanômetros. Em geral, partículas desse parativos do projeto Cafe, sigla em inglês
poeira microscópica carregadas pelos tamanho seriam consideradas peque- para Experimento de Campo de Química
ventos, os chamados aerossóis. Como nas demais para contribuir à formação da Atmosfera. “A nova missão está sendo
as fontes de aerossol estão normalmente das nuvens de chuva. Mas, novamente, a desenhada com o objetivo de estudar esse
no solo, seria esperado que a concentra- Amazônia é uma exceção à regra. Em um material particulado ultrafino que desco-
ção dessas partículas diminuísse com a artigo publicado em janeiro de 2018 na brimos na alta atmosfera”, diz Machado.

Aerossóis ultrafinos
contribuem para
a formação das
tempestades mais
violentas na Amazônia
léo ramos chaves

pESQUISA FAPESP 275  z  73


“Queremos saber quais são as fontes desse
material, como ele é armazenado na alta
atmosfera e trazido para baixo.”
No começo deste ano, os pesquisadores
do Cafe vão definir, entre outros detalhes, Os cientistas
como serão os voos sobre a Amazônia da
aeronave de pesquisa alemã Halo, previs- querem
tos para ocorrer em 2020. O Halo é um
avião a jato executivo modificado para
descobrir como
pesquisas científicas, capaz de alcançar o material
até 16 km de altura, cerca de 6 km acima
da altitude de cruzeiro dos voos comer- particulado é
ciais. Não será a primeira vez que a aero-
nave será usada para estudar a atmosfera armazenado na
da floresta tropical. Entre agosto e setem-
bro de 2014, durante o projeto Acridicon-
alta atmosfera
-Chuva, o Halo realizou 14 voos. A partir e transportado
de Manaus, o jato ia e voltava centenas
de quilômetros, tanto à noroeste, onde para baixo
ficam as regiões de floresta mais bem
preservadas e o ar é relativamente livre
da interferência da poluição, quanto ao
sul, até o trecho mais poluído do “arco
do desmatamento”, onde se concentram
as queimadas que convertem a floresta
em pasto ou plantações. nuvens, de forma isolada, são também
Além de instrumentos meteorológicos mais comuns na Região Metropolitana de
em terra, o GOAmazon contou, em suas Manaus e nas áreas com maior número
missões, com equipamentos de análise da de queimadas. Na estação chuvosa e nas
química atmosférica instalados a bordo regiões de floresta mais bem preservadas
de outro jato, um Gulfstream-1, do Labo- e isoladas da poluição, esse tipo de nuvem
ratório do Noroeste do Pacífico (PNNL), é menos intenso e profundo. Na floresta
do governo norte-americano, que era predominam nuvens, mais rasas, fonte
capaz de atingir até 7 km de altitude. de uma chuva mais suave e constante.
Machado explica que o processo de pla- “O piloto do Halo faz o que todos os
nejamento e a aprovação de missões de comandantes de avião sabem que é proi-
coleta de dados com aeronaves estran- bido: aproximar-se de uma nuvem de
geiras são complexos e podem levar mais convecção profunda”, comenta a meteo-
de um ano para serem aprovados, pois rologista Rachel Albrecht, da Universi-
dependem do sinal verde dos conselhos dade de São Paulo (USP), que colabora
de segurança do Conselho Nacional de com Machado desde o início dos projetos
Desenvolvimento Científico e Tecnoló- GOAmazon e Acridicon-Chuva. Os peri-
gico (CNPq) e da Força Aérea Brasileira. gos são muitos: a turbulência das corren-
“Voaremos a grandes alturas e em vol- tes de ar, o gelo que cristaliza sobre a fu-
ta das nuvens de convecção profunda”, selagem e a deixa mais pesada, as pedras
diz Machado. de granizo batendo nas janelas, além das
Nuvens de convecção são formadas descargas elétricas dos raios. Segundo a
pelo movimento vertical das massas de pesquisadora, ainda falta muito para se
ar em função de variações da temperatu- entender o processo de formação de gelo
ra. As profundas são aquelas nuvens bem e dos raios nas nuvens convectivas. “É a
grandes, parecidas com torres de algodão, partir do choque entre as partículas de
com 10 a 15 km de largura e até 15 km de gelo que se formam os raios dentro de
altura denominadas Cumulus Nimbus. uma nuvem”, explica Rachel.
Esse é o tipo de formação predominan- Os efeitos da poluição de Manaus na
te de nuvens de tempestades em toda a formação das nuvens e da chuva sobre
Amazônia durante o final da estação “se- regiões de floresta vizinhas à metrópole
ca”, entre setembro e novembro, quando amazônica foram quantificados na tese
as chuvas acontecem com menos frequên- de doutorado do meteorologista Micael
cia, embora sejam mais intensas. Essas Cecchini, defendida em dezembro de

74  z  janeiro DE 2019


2017, sob orientação de Machado. Pre- participou da missão Acridicon-Chuva. nais publicado na revista Atmospheric
miada pela Capes como a melhor tese Já nas regiões de floresta afetadas pela Chemistry and Physics propôs como
da área de geociências daquele ano, o poluição urbana de Manaus e pela fu- funcionaria todo o ciclo biogeoquími-
trabalho usou dados dos projetos GOA- maça das queimadas do desmatamento, co ligando os gases da floresta à forma-
mazon e do Acridicon-Chuva para colher a concentração de aerossol é milhares ção das nuvens e do aerossol ultrafino.
evidências de como a alta concentração de vezes superior à das regiões de flo- “Mostramos como os aerossóis ultra-
de aerossóis provocada pela poluição da resta pristina. Esse cenário dá origem a finos são formados a partir dos gases
capital amazonense aumenta o núme- um número imenso de pequenas gotas- trazidos da alta atmosfera pelas nuvens
ro, mas diminui o tamanho das gotas de -d’água capazes de permanecer por mui- convectivas”, diz Andreae, primeiro au-
água das nuvens rasas durante a estação to tempo suspensas no ar. Muitas dessas tor do estudo.
chuvosa. “Dobrar o nível de poluição no gotículas são carregadas por correntes O ciclo proposto pelos pesquisado-
ar aumenta a concentração de gotas de de ar ascendente a grandes alturas, onde res começaria quando as correntes de
uma nuvem em 84%, ao mesmo tempo se transformam em cristais de gelo an- ar ascendentes das nuvens convectivas
que diminui o diâmetro médio das gotas tes de serem transportadas de volta por levariam para cima os compostos orgâ-
em 25%”, diz Cecchini. correntes descendentes. “Essas nuvens nicos voláteis da floresta, como os gases
Os projetos Acridicon-Chuva e GOA- normalmente não produzem chuva. So- terpenos e isopreno. Durante sua viagem
mazon confirmaram que, na Amazônia, mente quando crescem o suficiente até até o topo das nuvens, a cerca de 15 km,
onde os rios e a transpiração das plantas alcançarem mais de 12 km de espessura esses gases sofreriam alterações físicas
fornecem vapor-d’água em abundância, geram uma chuva violenta, com granizo e reações químicas e se transformariam
o tipo de nuvem e a chuva de uma épo- e relâmpagos.” nos aerossóis ultrafinos observados pe-
ca ou região dependem principalmen- los instrumentos do Halo. Os aerossóis
te do número de partículas de aerossol Ciclo biogeoquímico ultrafinos se concentrariam na alta at-
suspensas na atmosfera. Quanto maior A missão Cafe faz parte de um projeto de mosfera até que uma corrente de ar des-
a concentração de aerossóis, menor a pesquisa maior, financiado pela FAPESP cendente, criada por outra nuvem con-
quantidade de vapor-d’água que se con- e coordenado por Paulo Artaxo, físico do vectiva, os arrastasse para baixo.
densa sobre cada uma das partículas sus- Instituto de Física da USP especialis- Esse cenário explicaria a observação
pensas no ar. A abundância de aerossóis ta na formação dos aerossóis amazôni- publicada pelos mesmos pesquisadores
resulta em nuvens com número elevado cos. Ao longo de mais de três décadas de em outubro de 2016, na revista Nature,
de gotas muito pequenas. Gotas meno- pesquisas, Artaxo e seus colaboradores de que chuvas fortes aumentam a con-
res têm menos chance de se chocarem nacionais e internacionais descobriram centração dos aerossóis ultrafinos na
e se fundirem para formar gotas maio- como uma série de compostos orgânicos superfície. Os aerossóis ultrafinos so-
res. Gotas que já nascem relativamente voláteis emitidos naturalmente pela flo- freriam ainda mais modificações físico-
grandes tendem a crescer rapidamente resta influenciam a formação das nuvens -químicas em sua viagem em direção à
e cair como chuva no chão. e das chuvas da região. “No Cafe, inves- superfície, aumentando sua capacidade
Em áreas de floresta limpa, onde há tigaremos a convecção de ar dentro das de condensar água. Perto do solo, eles se
pouco aerossol, formam-se nuvens mais nuvens que leva os compostos orgânicos combinariam com os compostos orgâni-
rasas que rapidamente se dissolvem na voláteis a grandes alturas e os mecanis- cos voláteis emitidos pela floresta, fonte
de aerossóis maiores a baixas altitudes,
léo ramos chaves

forma de uma chuva suave. “Essas gotas mos que os transformam em nanopar-
maiores tornam a nuvem mais transpa- tículas”, diz Artaxo. e dariam origem à formação de novas
rente e criam arco-íris”, conta o geoquí- Em janeiro de 2018, um artigo dos nuvens de chuva. Seria um ciclo que se
mico Meinrat Andreae, do MPIC, que brasileiros e seus parceiros internacio- alimenta perenemente dos gases. n

Projetos
1. Processos de nuvens associados aos principais sis-
temas precipitantes no Brasil: Uma contribuição à mo-
delagem da escala de nuvens e ao GPM (medida global
de precipitação) (nº 09/15235-8); Modalidade Projeto
Temático; Pesquisador responsável Luiz Augusto Toledo
Machado (Inpe); Investimento R$ 2.634.280,59. 
2. GOAmazon: Interação da pluma urbana de Manaus
com emissões biogênicas da Floresta Amazônica (nº
13/05014-0); Modalidade Projeto Temático; Programa
Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Pesqui-
sador responsável Paulo Artaxo (IF-USP); Investimento 
R$ 4.257.655,73.
Artigos científicos
FAN, J. et al. Substantial convection and precipitation
enhancements by ultrafine aerosol particles. Science.
26 jan. 2018.
ANDREAE, M.O. et al. Aerosol characteristics and particle
production in the upper troposphere over the Amazon
Basin. Atmospheric Chemistry and Physics. 25 jan. 2018.

pESQUISA FAPESP 275  z  75


Arqueogenômica y

Diversidade
preservada pelos
índios Guarani-
-Kaiowá, em Mato
Grosso do Sul

Caminhos do milho
P
DNA indica uma história assar um dia inteiro sem comer internacional de pesquisadores agora
milho, mesmo indiretamente, é detalha um pouco mais essa história
complexa para a quase uma missão impossível. de 9 mil anos e mostra um papel proe-
Considera-se que esse cereal seja minente das populações humanas pré-
domesticação do cereal, responsável por 6% das calorias consu- -colombianas da Amazônia, de acordo
com destaque para o midas pela população humana mundo com estudo publicado em dezembro na
afora, sem falar no que entra como ração revista Science.
México e a Amazônia na pecuária e está oculto em alimentos Há cerca de 20 anos, o engenheiro-
processados. Muito antes de existirem -agrônomo Fabio de Oliveira Freitas,
as grandes espigas amareladas disponí- atualmente na Empresa Brasileira de
Maria Guimarães veis hoje em feiras e supermercados, o Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Re-
ancestral do milho era uma planta me- cursos Genéticos e Biotecnologia, em
xicana com poucos grãos que se solta- Brasília, recebeu amostras de milho
vam facilmente da espiga e uma casca encon­tradas em sítios arqueológicos em
praticamente intransponível. Um grupo cavernas do norte de Minas Gerais, no

76  z  janeiro DE 2019


Ancestral do milho,
o teosinto tinha
palha dura e poucas
sementes, que se
soltavam da espiga

vale do Peruaçu. “Era claro que cerca de zamentos com a planta ancestral, como
1.500 anos atrás essa planta era cultivada acontecia na zona de origem. “Era um
por ali de maneira constante e usada em milho muito parecido com o do México,
oferendas em enterramentos e rituais”, mas com componentes genéticos parti-
conta. Durante o doutorado ele passou culares”, diz Freitas. Os pesquisadores
um período na Universidade de Man- já conheciam genes específicos ligados à
chester, Inglaterra, onde encontrou o domesticação, como aquele que permite
geneticista de plantas britânico Robin que os grãos fiquem grudados na espiga
Allaby, à época em estágio de pós-dou- em vez de cair pelo campo ou o que torna
torado. “Fabio tinha fantásticas amostras a palha mais maleável e fácil de retirar.
de milho indígena atual e arqueológico “A população humana do oeste da
de terras baixas tropicais”, disse Allaby Amazônia continuou o processo, eles
em conferência de imprensa. Atualmente tinham uma boa estrutura para a domes-
na Universidade de Warwick, também na ticação de plantas”, explica. Naquele mo-
Inglaterra, ele coordenou o estudo junto mento, índios da região já tinham grande
com Freitas. “Naquela época detectamos experiência no manejo e na seleção de
duas levas migratórias do milho para a uma variedade de espécies, como feijão,
América do Sul, mas conseguíamos se- abóbora e mandioca.
quenciar uma parte muito pequena do Há cerca de mil anos, uma segunda le-
genoma”, relembra o brasileiro. va da planta, geneticamente diferente e
já completamente adaptada ao consumo,
migrações sucessivas veio do México e passou a ser plantada
Com o avanço das técnicas genômicas, no norte da Amazônia. “O encontro das
eles recentemente decidiram voltar ao duas levas pode ter acontecido no norte
assunto e conseguiram sequenciar por de Minas”, diz Freitas, voltando à origem
completo tanto amostras arqueológicas de seu interesse pelo assunto.
de Minas Gerais e do Peru como uma “A história da domesticação do milho
grande diversidade armazenada nas sa- é um dos eventos evolutivos fundadores
las geladas da Embrapa. “Temos cerca que tiveram um impacto enorme na vida e
de 5 mil amostras recolhidas por todo o Índios da na história humanas”, disse Kistler. Hoje,
Brasil”, afirma Freitas. variedades distintas da mesma espécie ge-
As análises revelaram assinaturas Amazônia ram grãos com propriedades físicas parti-
genéticas específicas indicando que o culares a ponto de alguns estourarem co-
milho que chegou ao Brasil no período
tinham grande mo pipoca e outros não, como ressaltaram
pré-colombiano ainda não estava com- experiência no físicos da Universidade Estadual de Cam-
pletamente transformado para agricul- pinas na revista Nature, em 1993. Freitas
tura e consumo. O processo de domes- manejo e na ressalta a importância de dois aspectos da
fotos 1 flaviane malaquias costa / usp 2 matt lavin / wikimedia commons

ticação envolve a seleção dos melhores conservação desse cultivo, evidentes em


produtos – sejam eles frutos, sementes seleção de uma seu estudo. Um é realizado pelos índios,
ou folhas – e otimiza o manejo para que que por milênios selecionaram, cuidaram
as plantas possam ser cultivadas fora de
variedade de e cultivaram o cereal, com um processo
seu contexto original (ver Pesquisa FA- espécies, como cuidadoso de seleção e adaptação ao am-
PESP nº 253). “Seres humanos já usa- biente. Outro é o banco de sementes da
vam e manipulavam a forma selvagem feijão e abóbora Embrapa, com capacidade para 700 mil
do milho, um capim chamado teosinto, amostras congeladas a 20 graus Celsius
por volta de 9 mil anos atrás no Méxi- negativos, uma reserva estrategicamen-
co”, contou na conferência de imprensa te essencial dos alimentos que formam a
o antropólogo Logan Kistler, do Instituto base da alimentação. n
Smithsonian, Estados Unidos, e primei-
ro autor do artigo. Pouco depois o grão
Artigo científico
foi trazido para a América do Sul, onde
KISTLER, L. et al. Multiproxy evidence highlights a com-
o processo de domesticação teria conti- plex evolutionary legacy of maize in South America.
nuado – mas sem a possibilidade de cru- Science. v. 362, n. 6420, p. 1309-13. 14 dez. 2018.

pESQUISA FAPESP 275  z  77


tecnologia  ENERGIA y

Ventos
promissores
a caminho
Potencial eólico brasileiro é três vezes maior do
que o do parque nacional de energia elétrica; capacidade
atual pode abastecer 22 milhões de residências

Domingos Zaparolli

Parque Eólico
Bons Ventos,
em Aracati,
no Ceará
cpfl renováveis
Matriz elétrica
O Brasil tem 7.186 empreendimentos de

O
geração elétrica em operação, que totalizam
162,5 GW de potência instalada potencial de geração de energia eólica
no Brasil é estimado em cerca de 500
= potência gigawatts (GW), de acordo com a As-
Pequenas Centrais
Hidrelétricas (PCHs)**
Outras*** instalada sociação Brasileira de Energia Eólica
4,5 GW
5,1 GW (ABEEólica), energia suficiente para
atender o triplo da demanda atual de energia do
Usinas eólicas
3,2 2,7
14,2 GW Brasil. O número é mais de três vezes superior ao
8,3 atual parque nacional gerador de energia elétrica,
Biomassa 60,5 Usinas incluindo todas as fontes disponíveis, como hidre-
14,7 GW hidrelétricas
8,6
98,3 GW
létrica, biomassa, gás natural, óleo, carvão e nuclear.
Percentual Em dezembro de 2018, a capacidade de geração ins-
da potência talada somou 162,5 GW, segundo a Agência Nacional
instalada
Termelétricas* de Energia Elétrica (Aneel). Desse total, as usinas
25,6 GW
16,2 eólicas responderam por 14,2 GW, equivalente à
capacidade instalada da usina de Itaipu, de 14 GW
– quantidade suficiente para abastecer 22 milhões
de residências. A energia gerada com a força dos
ventos ocupa o quarto lugar na matriz de energia
elétrica nacional (ver infográfico ao lado).
*Inclui gás natural, óleo e carvão Elbia Gannoum, presidente-executiva da ABEEó-
**Geram entre 5 e 30 MW lica, explica que o potencial eólico de 500 GW leva
***Termonuclear, fotovoltaica e centrais geradoras hidrelétricas em conta apenas a geração onshore (em terra) rea-
que geram entre 0 e 5 MW lizada por aerogeradores que representam o padrão
Fonte  Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel); em dezembro de 2018 atual, de 2 megawatts (MW) a 3 MW de potência,
instalados em torres de 150 metros (m) de altura.
Aerogerador (ou turbina eólica) é o aparelho que
converte a energia eólica em elétrica. Ocorre que a
Em ritmo crescente indústria iniciou um esforço para ampliar a potência
dos aerogeradores para em torno de 5 MW. Com uma
Geração de energia eólica não para turbina duas vezes mais potente é possível dobrar
de crescer no país a energia gerada em um espaço físico semelhante
e reduzir custos operacionais. “A evolução tecno-
Potência instalada (em MW) lógica pode ampliar consideravelmente o potencial
20.000
eólico do país”, sustenta a executiva da ABEEólica.
17.658* A norte-americana GE anunciou que irá vender no
16.145* país sua nova turbina de 4,8 MW, lançada mundial-
15.000 14.413 mente em 2017. O equipamento tem um rotor de 158
m de diâmetro com três pás, cada uma com 77 m de
10.740 comprimento. A altura do conjunto todo – torre e mais
10.000
uma das pás apontando para cima, na vertical – pode
alcançar até 240 m, o equivalente ao comprimento de
5.972
5.000
dois campos de futebol, somado à altura da estátua
2.522 do Cristo Redentor, com seus 30 metros.
235 341
931 A combinação de um rotor maior e torres altas,
0 explica Vitor Matsuo, líder de produto da GE Rene-
wable Energy para a América Latina, permite que
06

08

10

12

14

16

18

20

22
20
20

20

20
20

20
20
20
20

a turbina aproveite ventos de maior intensidade e


produza mais energia: cerca de 90% a mais do que
*Referem-se a contratos viabilizados em leilões já realizados
o modelo da GE anteriormente disponível no país,
Fonte  Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica)
de 2,5 MW. Uma turbina de 4,8 MW poderá suprir
o consumo de 7,5 mil casas.
A nova turbina será produzida na fábrica da GE
no Polo Industrial de Camaçari, na Bahia, e as pás na
unidade da subsidiária LM Wind Power em Ipojuca,

pESQUISA FAPESP 275  z  79


Técnicos fazem a manutenção de aerogerador da WEG instalado no Complexo Eólico Cutia, em São Bento do Norte, no Rio Grande do Norte

em Pernambuco. As pás serão de fibra de simulações feitas em supercomputado-


carbono, material mais resistente e leve res”, afirma. Trata-se de estabelecer o es-
do que a tradicional fibra de vidro. O de- Única fábrica forço mecânico necessário para manter
senvolvimento tecnológico foi feito nos fixa uma estrutura “feita para voar” que
Estados Unidos; a participação brasileira brasileira de envolverá um rotor de 147 m de diâmetro
consistiu no fornecimento de dados so- que realizará 14 giros por minuto com
bre características dos ventos, restrições
aerogeradores, três pás, que farão uma rotação a cada 10
logísticas e disponibilidade de máquinas, a WEG planeja segundos. Cada pá pesará 23 toneladas
como guindastes, para que fosse adequa- e terá 74 m de comprimento e 3 m em
da às condições de operação no Brasil. lançar este ano seu ponto mais largo.
Em outubro, foi a vez de a fabricante A fadiga dos materiais, a logística e a
dinamarquesa Vestas informar que irá turbinas viabilidade econômica são outras ques-
produzir aerogeradores de 4,2 MW no tões a serem ponderadas. Um exemplo
Ceará. A companhia estuda se irá revi-
com 4 MW das dificuldades, relatado por Gualber-
talizar as instalações em Aquiraz, onde de potência to da Silva, diz respeito à montagem. As
produzia turbinas de 2 MW, ou se pro- torres que comportam as turbinas de 2,2
curará outro local, também no Ceará. Os MW possuem 120 m de comprimento,
investimentos alcançam € 23 milhões mas precisariam ser reforçadas para su-
(cerca de R$ 100 milhões) e a perspectiva portar as máquinas de 4 MW. Ocorre que
é gerar 200 empregos diretos. da Northern que conceberam a atual li- os guindastes necessários para realizar
Única fabricante brasileira de aeroge- nha de aerogeradores da WEG, com po- a montagem das torres não operam com
radores, a catarinense WEG desenvol- tências de 2,1 MW e 2,2 MW, que soma estruturas maiores. “Estamos definindo
ve uma turbina de 4 MW, prevista para 308 máquinas comercializadas. A turbina o reforço de aço e concreto para que as
ser lançada no segundo semestre deste de 4 MW é fruto do trabalho conjunto de torres com tamanhos atuais suportem o
ano. A empresa atua no mercado eólico uma equipe com 15 engenheiros norte- esforço que será exigido.”
desde 1996 como fornecedora de peças -americanos e 20 brasileiros. Ao contrário da GE, que fará pás em fi-
e em 2010 passou a fabricar turbinas. Em João Paulo Gualberto da Silva, diretor bra de carbono, a WEG pretende manter
2012 fez uma parceria tecnológica com de Novas Energias da WEG, relaciona a produção com fibras de vidro e resina
a Northern Power Systems, de Vermont, entre os principais desafios para o de- epóxi, materiais mais econômicos. O pro-
Estados Unidos, e em 2016 adquiriu a senvolvimento da turbina de 4 MW a jeto da nova pá está sendo desenvolvido
divisão de aerogeradores da companhia realização de cálculos de carga. “A tarefa com o auxílio de projetistas e fabricantes
norte-americana. Foram os engenheiros só se tornou possível com o auxílio de de moldes europeus e chineses.

80  z  janeiro DE 2019


Turbinas eólicas Pás
Com até 70 m de comprimento,
Conheça os principais componentes de captam o vento, convertendo sua
um aerogerador e saiba como ele converte potência ao centro do rotor. Seu
design segue as soluções de
a energia eólica em elétrica
engenharia das asas de aviões

Ve
COMO FUNCIONA ntos
Nacelle

1 As pás se movimentam Abriga componentes


com a força do vento e como o gerador, o sistema
de yaw (que alinha a
acionam o rotor, gerando uma Rotor
turbina com o vento),
força mecânica Cubo de fixação das a caixa multiplicadora
pás, transmite o (que adapta a rotação
movimento de rotação à velocidade do gerador)
2 Com apoio da caixa para o sistema gerador e os sistemas hidráulico e
multiplicadora, o rotor faz girar
de controle eletrônico
o eixo do gerador

3 Junto com o conversor Torre


de potência, o gerador Construída em aço ou
transforma a energia mecânica concreto, sustenta o rotor
Energia
e a nacelle. As maiores
em eletricidade elétrica
chegam a 150 m

Fonte Entrevistados

RUÍDOS E PÁSSAROS aplicada enquanto elas ainda estão em gia, de São José dos Campos. O projeto,
O Brasil possui atualmente alguns grupos fase inicial de projeto, permitindo ajustes com financiamento do programa Pes-
de pesquisa em energia eólica, dentre os no projeto. A ferramenta computacional quisa Inovativa em Pequenas Empresas
quais os das universidades federais do é de livre distribuição e já foi baixada (Pipe), da FAPESP, objetiva desenvolver
Ceará (UFC), de Santa Catarina (UFSC), mais de 36 mil vezes, no mundo todo, um aerogerador de rotor de eixo hori-
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Uni- via internet. Para projetar os novos ae- zontal, como o normalmente usado nos
versidade de São Paulo (USP). Na Escola rofólios, foram desenhadas três turbinas parques eólicos, mas com uma mudança:
Politécnica da USP, o grupo Poli Wind foi eólicas com diâmetros de 100, 180 e 220 a nacelle, peça onde é instalado o siste-
formado em 2016 com quatro integrantes, metros, ainda não construídas. ma gerador, é reposicionada na base da
entre eles o pesquisador em estágio de O grupo Poli Wind também se preo- torre, e não no topo, como é usual.
pós-doutorado Joseph Youssif Saab Jr., cupa em mitigar outro aspecto negativo Segundo o engenheiro William Mene-
coordenador do Curso de Engenharia dos grandes aerogeradores, que é a mor- zes, da Fatec São José dos Campos e pes-
Mecânica do Instituto Mauá de Tecno- talidade de pássaros e morcegos que coli- quisador responsável na Eolic Future, a
logia. Saab é autor de um projeto de pás dem com as pás eólicas. A recomendação viabilidade técnica do sistema para torres
foto chan /weg  infográficO ana paula campos  ilustraçãO fabio otubo

mais silenciosas para turbinas que gerou nacional e internacional é estabelecer de 80 metros já está comprovada por cál-
um pedido de patente e pode se caracteri- parques fora do trajeto de rotas migra- culos analíticos, e a próxima etapa é fazer
zar como uma contribuição genuinamen- tórias, o que, segundo Saab, nem sempre um protótipo para testes. A vantagem da
te brasileira para o desenvolvimento de é observado no Brasil. Uma possível so- instalação da nacelle na base da torre é o
tecnologia de aerogeradores. “O excesso lução apresentada pelo grupo é dimen- potencial de redução de custos de manu-
de ruído é um problema para as comu- sionar uma seção estreita do aerofólio da tenção, na casa de 15% ao ano. Menezes
nidades vizinhas aos parques eólicos. É pá de forma a gerar a emissão de um som relata que no custo de um aerogerador
como ter um avião sobrevoando sua casa tonal, um assobio, na faixa de 1 a 3 quilo- estão incluídos gastos de manutenção,
24 horas por dia. E o ruído vai piorar na -hertz (kHz), capaz de alertar pássaros hoje na casa de R$ 2,5 milhões anuais a
medida em que os aerogeradores ficarem sem impactar significativamente o ruído partir do quinto ano de operação. Além
maiores”, alerta o pesquisador. O grupo total do rotor para a audição humana. disso, há o risco de acidentes em tarefas
está em busca de fabricantes dispostos a Outra inovação, com potencial de im- em uma estrutura instalada longe do so-
testar os aerofólios desenvolvidos. pacto nos custos operacionais dos aero- lo. A Eolic Future planeja comercializar
Saab criou uma ferramenta de predi- geradores, está sendo desenvolvida pela a tecnologia em associação com inves-
ção do ruído emitido pelas pás para ser empresa paulista Eolic Future Tecnolo- tidores e fabricantes de aerogeradores.

pESQUISA FAPESP 275  z  81


Entre os líderes mundiais RN
146
Brasil foi o oitavo maior gerador de energia eólica, em 2017

País Geração (em GW) % mundial DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA


1 China 188,2 35 Estados do Nordeste
CE
2 EUA 89,1 17 concentram o maior número
Alemanha 56,1 10 80
3 de parques eólicos do país
4 Índia 32,8 6
PI
5 Espanha 23,2 4
55
6 Reino Unido 18,9 3 RR AP
7 França 13,8 3
8 Brasil 12,7 2
PB
9 Canadá 12,2 2 15
Itália 9,5 2 PA MA
0 AM MA
8
Demais países 83 15
PE
TOTAL 540 AC
TO AL 34
RO
SE
MT
Fonte Conselho Global de Energia Eólica (GWEC)
1
GO

O atual bom momento da energia eóli- TOTAL


MG BA
ca no país teve um precursor, o engenhei- 534 MS ES
133
ro aeronáutico Bento Koike, criador da parques
RJ
SP
empresa Tecsis, de Sorocaba (SP). A em-
PR 1
presa foi fundada em 1995 para fabricar
1
pás de aerogeradores com tecnologia pró-
SC
pria que eram exportadas inicialmente 14
para a Alemanha e, posteriormente, para Fonte Associação
RS
outros países. Mais de 50 mil pás de 23 Brasileira de Energia
80 Eólica (Abeeólica)
modelos diferentes foram vendidas desde
então para atender ao mercado interno
e externo até 2016. Desse ano em diante
a GE, sua principal cliente, diminuiu o
número de pedidos e comprou uma con- O Conselho Global de Energia Eólica, quisas Espaciais (Inpe) estimou, com ba-
corrente, a LM Wind Power, em 2017. O fórum representativo do setor em nível se em um estudo de 2011, em 606 GW o
fato, aliado à crise econômica no país internacional, informa que em 2017 fo- potencial eólico no mar territorial brasi-
desde 2014, levou a Tecsis a uma situa- ram acrescentados 52 GW de capacidade leiro, sendo que 57 GW estariam em uma
ção econômica difícil. Em setembro de de geração eólica no mundo, totalizando região de até 10 quilômetros da costa,
2018 a empresa teve aprovado seu plano 539 GW. Para 2022 a estimativa é de uma com maior chance de aproveitamento.
de recuperação extrajudicial. geração global de 840 GW. O Brasil é o A ABEEólica, no entanto, não prevê uma
oitavo maior gerador eólico e responde expansão eólica offshore no curto prazo
ENERGIA MAIS BARATA por 2% da produção mundial. O país tem em razão do investimento, cinco vezes
Analistas apontam que o uso crescente de 568 parques com mais de 7 mil aeroge- maior do que em terra. Mesmo assim, a
energia eólica no mundo se dá em função radores em operação, segundo dados da Petrobras anunciou em agosto de 2017
de seu reduzido impacto ambiental, já ABEEólica de 2017. O aumento de gera- a elaboração de projeto para instalar no
que é movida por uma fonte renovável, ção já contratada indica uma capacidade litoral de Guamaré (RN) o primeiro par-
o vento, e pela diminuição do custo de instalada de 17,6 GW em 2022. que eólico offshore do Brasil. O objetivo
investimento. Relatório da Agência In- Elbia Gannoum estima que a geração é que ele comece a operar em 2022. n
ternacional para as Energias Renováveis eólica será a mais comercializada nos lei-
(Irena) informa que o Custo Nivelado de lões de energia promovidos pela Aneel
Energia (LCOE) da energia eólica caiu nos próximos anos. Isso se deve ao fato
Projeto
em 22% entre 2010 e 2017 – hoje está em de que a geração eólica tem se mostra-
US$ 0,06 por kWh. O LCOE contabiliza do competitiva no Brasil, com um custo Desenvolvimento de um sistema aerogerador de eixo
horizontal e transmissão de potência verticalizada vi-
todos os custos esperados na vida de uma na casa de R$ 90 por MWh, enquanto a sando à redução dos tempos de paradas (downtime) e
usina divididos pela geração em kWh geração hidrelétrica teve no último lei- os custos envolvidos na manutenção (nº 16/21569-0);
produzida no período. O preço das tur- lão, em abril, custo de R$ 198 por MWh. Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas
(Pipe); Pesquisador responsável William Marcos Mu-
binas, que responde em média por 70% Uma nova perspectiva também pode niz Menezes (Eolic Future Tecnologia); Investimento
do investimento, foi reduzido em 40%. vir do mar. O Instituto Nacional de Pes- R$ 130.879,48.

82  z  janeiro DE 2019


Um pouco de história
Setor ganhou impulso em 2009 com a realização do primeiro leilão
exclusivo de energia eólica

O Brasil começou a prestar atenção ao contratado 1,8 gigawatt (GW). No ano


potencial da energia eólica em 2001, em função seguinte, a geração eólica passou a disputar
da crise energética batizada de “apagão”. contratos nos leilões de energia renovável e,
Era preciso diversificar a matriz energética em 2011, nos leilões gerais de energia.
e a geração eólica era uma alternativa de O crescimento do setor, segundo Jorge
rápida implementação. Naquele ano, foi criado Boeira, líder de energias renováveis da
o Programa Emergencial de Energia Eólica Agência Brasileira de Desenvolvimento
(Proeólica), cuja meta era contratar 1.050 Industrial (ABDI), também é resultado do
megawatts (MW) de projetos eólicos até o fim apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento
de 2003. Mas a iniciativa não foi bem-sucedida. Econômico e Social (BNDES), que em 2012
Em 2002, o governo instituiu o Programa de passou a dar suporte à indústria de
Incentivo às Fontes Alternativas de Energia equipamentos por meio do programa
Elétrica (Proinfa), com o objetivo de incentivar Financiamento de Máquinas e Equipamentos
o nascimento de uma indústria nacional, mas a (Finame).
produção local era incipiente e cara, e a Conforme dados da ABDI, o Brasil conta
geração eólica não era competitiva nos leilões, hoje com seis fabricantes de aerogeradores
o sistema de comercialização de energia nova que somam uma capacidade de produzir 1.500
instituído pela Agência Nacional de Energia unidades anuais, suficientes para a geração
Elétrica (Aneel) em 2004. de 3,5 GW. Em pás eólicas, a capacidade é de
Foi somente a partir de 2009, conforme 7 mil por ano. Ao todo, mais de 70 empresas
relata Elbia Gannoum, presidente da fazem parte da cadeia produtiva do setor
Associação Brasileira de Energia Eólica e o índice de nacionalização é de 80%. “É uma
(ABEEólica), com a realização do primeiro leilão cadeia produtiva completa, que tem condições Parque eólico no
exclusivo para a fonte eólica, que o setor de ser competitiva em projetos na América município de
Galinhos, no Rio
começou a ganhar impulso. Na ocasião foi Latina”, afirma Boeira.
Grande do Norte
Nuno Guimarães / Frame / Folhapress
EMPREENDEDORISMO y

Mais inovação
na saúde
Prêmio reconhece projetos científicos com
potencial de aplicação na área médica

U
m tratamento farmacológico coagulação a laser, injeção intraocular de queline Faria está investindo o valor do
não invasivo para a retinopatia medicações ou cirurgias intraoculares. prêmio – R$ 50 mil – na contratação de
diabética foi o vencedor da 4ª O novo tratamento proposto é um co- profissionais especializados nos trâmites
edição do Prêmio Empreenda lírio desenvolvido com base em nano- burocráticos necessários à elaboração
Saúde, em São Paulo. Iniciativa da funda- tecnologia que libera gradativamente o de um plano de negócios e à obtenção
ção everis com a participação do Hospital princípio ativo para a retina. “O colírio de certificações. A pesquisadora planeja
Sírio-Libanês, o objetivo da premiação age nos neurônios da retina, protegen- criar uma empresa para dar continuida-
criada em 2015 é incentivar o empreen- do-os da toxicidade da glicose”, explica de ao projeto.
dedorismo e a inovação, reconhecendo a pesquisadora.
projetos científicos com potencial de apli- No desenvolvimento do fármaco, Jac- Visibilidade no mercado
cação na área da saúde. Segundo a Socie- queline Faria contou com a colaboração Segundo Raphael Bueno, da fundação
dade Brasileira de Diabetes, a doença a da engenheira química especialista em everis e responsável pela iniciativa no
ser tratada pela nova terapia é a principal nanotecnologia Maria Helena Andra- Brasil, o 4º Prêmio Empreenda Saúde
causa de cegueira irreversível em pessoas de Santana, do Instituto de Química da recebeu cerca de 220 inscrições, de vá-
na faixa dos 20 aos 74 anos. Unicamp. Testes em ratos de laboratório rias partes do país – a fundação everis
O projeto vencedor da edição de 2018 indicaram resultados positivos. O co- foi criada pela everis, uma multinacional
é o resultado de 20 anos de pesquisas da lírio tem patente depositada no Brasil de consultoria que oferece soluções de
médica Jacqueline Mendonça Lopes de e no exterior. A médica considera que estratégia e negócios para indústria e
Faria, da Faculdade de Ciências Médicas ainda é cedo para atrair interesse da governo. “Muitas das startups que sub-
da Universidade Estadual de Campinas indústria. “As empresas querem o pro- meteram seus projetos ao prêmio já
(Unicamp), e poderá mudar radicalmen- duto desenvolvido e já certificado pela foram aceleradas e estão em busca de
te o tratamento da retinopatia diabética. Anvisa [Agência Nacional de Vigilância investimentos e exposição ao mercado-
A doença surge quando o excesso de gli- Sanitária] e FDA [órgão regulador de -alvo”, avalia o organizador. Um exemplo
cose no sangue provoca danos aos vasos medicamentos e alimentos nos Estados é a startup paulista TNH Health, uma
carlos della rocca

da retina, região do olho responsável pela Unidos]”, considera. das seis finalistas da competição, que
formação das imagens enviadas ao cére- Até que isso ocorra, ainda há um lon- utiliza chatbots impulsionados com in-
bro. A retinopatia é tratada com técnicas go caminho a percorrer, a começar pelos teligência artificial para transmitir men-
invasivas, arriscadas e caras, como foto- testes em seres humanos. Por isso, Jac- sagens de texto com orientações a ges-

84  z  janeiro DE 2019


dos do Recife (C.E.S.A.R.) e fez quatro
pedidos de patente.
Dos seis finalistas do 4º Prêmio Em-
preenda Saúde, além de Jacqueline de
Faria, dois são também de grupos acadê-
micos que desenvolveram projetos com
potencial de comercialização. Esse é o
caso do Grupo de Inteligência Artificial
na Saúde da Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio Grande do Sul. Integrante
da equipe, o cientista da computação
Henrique Dias Pereira dos Santos obteve
a terceira colocação no prêmio com um
algoritmo de inteligência arti-
ficial capaz de detectar pres-
Plataforma exibe imagens crições de medicamentos que
tridimensionais do estejam fora do padrão – o que
organismo humano: pode indicar um eventual erro
projeto da Csanmek foi
finalista do prêmio
nos procedimentos hospitala-
res. De acordo com ele, durante
testes realizados no Hospital
Nossa Senhora da Conceição,
tantes e a doentes crônicos (como dia- gestor hospitalar Cláudio Santana, fun- em Porto Alegre (RS), o algoritmo foi
béticos e hipertensos), por exemplo. A dador da Csanmek. Segundo ele, o pro- capaz de identificar 90% dos casos de
empresa teve o apoio dos programas de duto já está sendo utilizado em cerca dosagem inapropriada em 500 mil me-
aceleração Artemisia e Quintessa. de 70 instituições de ensino do Brasil e dicamentos prescritos.
Também de São Paulo, a Csanmek em países como Estados Unidos, China, A startup Kit Livre, segunda classificada
classificou-se entre as finalistas com uma Polônia, Dubai e México. no prêmio, também foi gestada na univer-
plataforma de simulação cirúrgica e dis- De Recife, a Salvus classificou-se com sidade. O projeto do kit que, instalado em
secação virtual. Batizada de Plataforma um sistema para o monitoramento de qualquer cadeira de rodas, a converte em
Multidisciplinar 3D, ela exibe imagens oxigenoterapia baseado na aplicação um triciclo motorizado elétrico, nasceu
tridimensionais (obtidas a partir de to- de internet das coisas. O sistema Atas em 2011 na Faculdade de Engenharia da
mografias e ressonâncias magnéticas) O² monitora o estoque e consumo de Universidade Estadual Paulista (Unesp),
de todos os sistemas do corpo humano. oxigênio medicinal, tanto em hospitais campus de Guaratinguetá. Em 2014, o
“O equipamento permite ao estudante quanto em home care. A empresa desen- engenheiro mecatrônico Júlio Oliveto,
de medicina, odontologia ou fisiotera- volveu o dispositivo em parceria com o autor do projeto, iniciou a comercializa-
pia trabalhar com cenários reais”, diz o Centro de Estudos e Sistemas Avança- ção do produto. n Suzel Tunes

Apoio a health techs


Hospital das Clínicas de São Paulo lança Centro de Inovação Tecnológica

Desde o dia 7 de novembro, com o que tem como meta prospectar Gabriela Ribeiro dos Santos, gerente
lançamento oficial do Centro de soluções inovadoras na área da saúde a de Inovação do Citic, já existem
Inovação Tecnológica do Instituto serem desenvolvidas pelas startups aproximadamente 20 projetos em
Central (Citic) do Hospital das do setor, conhecidas como health techs. diferentes fases de desenvolvimento.
Clínicas da Faculdade de Medicina Dentre as atividades que deverão “Alguns já se tornaram startups e
da Universidade de São Paulo, ser realizadas pelo Citic estão a estão em fase de prova de conceito.
pesquisadores que buscam realização de acordos de parceria, a Outros já têm contrato assinado com
empreender na área da saúde contam oferta de cursos de capacitação para parceiros externos ou com o
com mais um canal de apoio. Sob a startups e a captação de recursos em programa Pipe, da FAPESP”, informa.
presidência de Maria José Carmona, agências de fomento. O centro dará Os pesquisadores que tiverem
diretora da Divisão de Anestesiologia orientações técnicas e apoio jurídico projetos nessa área podem entrar em
do Instituto Central, o Citic é um para o estabelecimento de parcerias contato com o Citic (citic@hc.fm.usp.
braço do Inova HC, criado em 2015, público-privadas. Segundo a bióloga br / (11) 2661-3189 e (11) 2661-6301).

pESQUISA FAPESP 275  z  85


ENGENHARIA AERONÁUTICA y

Mais rápido
do que uma bala
vant 14-x

Pesquisadores brasileiros desenvolvem veículo aéreo Comprimento 


4m
que se deslocará em velocidade hipersônica Envergadura 
1,2 m

Yuri Vasconcelos Peso 


cerca de 750 kg
Velocidade 
12.000 km/h
Altitude de voo 
30.000 m a 40.000 m

S
e tudo correr como planejado, 14-Bis, o vant empregará o conceito de 2020, o motor scramjet será instalado em
a Força Aérea Brasileira (FAB) waverider, no qual uma onda de choque um foguete de sondagem do Instituto de
realizará dentro de dois anos o gerada abaixo dele, em razão de sua alta Aeronáutica e Espaço (IAE), unidade do
ensaio em voo do primeiro motor velocidade, lhe fornece sustentação. É DCTA voltada ao desenvolvimento de
aeronáutico hipersônico feito no país. como se, durante o voo, o veículo “sur- tecnologias para o setor aeroespacial. O
O teste integra um projeto mais amplo fasse” na onda induzida por ele. projeto teve apoio da FAPESP.
cujo objetivo é dominar o ciclo de de- “Ainda não há aeronaves hipersôni- Já o veículo aéreo hipersônico integra-
senvolvimento de veículos hipersônicos, cas em operação rotineira no mundo. do ao motor scramjet poderá ser usado
que voam, no mínimo, a cinco vezes a Essa tecnologia simboliza o estado da como avião de passageiros ou para fins
velocidade do som, ou Mach 5. Mach é arte mesmo para países como Estados militares. Em 2018, Rússia e China tes-
uma unidade de medida de velocidade Unidos, Rússia e China”, informa o co- taram com sucesso os mísseis hipersôni-
correspondente a cerca de 1.200 quilô- ronel Lester de Abreu Faria, engenhei- cos Avangard e Xingkong-2, respectiva-
metros por hora (km/h). O programa é ro eletrônico e diretor do IEAv. “Todos mente. Nos Estados Unidos, a Lockheed
coordenado pelo Instituto de Estudos buscam esse conhecimento e, apesar do Martin está construindo um veículo hi-
Avançados (IEAv), um dos centros de longo tempo de desenvolvimento, não es- persônico para voo a Mach 6.
pesquisa do Departamento de Ciência tamos muito atrás dos líderes mundiais.” Desde o início do projeto, já foram in-
e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) da De acordo com Israel Rêgo, gerente do vestidos R$ 53 milhões no 14-X, progra-
FAB, em parceria com a empresa Or- projeto PropHiper, o motor hipersôni- mado para voar a Mach 10 (12 mil km/h)
bital Engenharia, ambos de São José co em desenvolvimento no país, do tipo (ver infográfico na página ao lado). “Me­
dos Campos (SP). scramjet (supersonic combustion ramjet), tade do tempo do programa destinou-se
Além do motor hipersônico, o projeto também poderá ser empregado como se- à capacitação de pessoal e à implantação
Propulsão Hipersônica 14-X (PropHi- gundo ou terceiro estágio de propulsão da infraestrutura laboratorial, com des-
per), iniciado em 2006, prevê a cons- de foguetes – esses veículos espaciais são taque para o túnel de choque hipersôni-
trução de um veículo aéreo não tripula- dotados de vários estágios (ou motores), co T3 onde são feitos os ensaios aerodi-
do (vant), onde o motor será instalado. acionados sucessivamente ao longo do nâmicos [ver Pesquisa FAPESP no 135]”,
Batizado de 14-X, em homenagem ao voo. No primeiro ensaio, previsto para conta Rêgo. “O grande salto agora é ‘sair’

86  z  janeiro DE 2019


DISTÂNCIA PERCORRIDA EM 1 SEGUNDO

3.300 m
12.000 km/h
VANT 14-X Velocidade hipersônica

580 m
2.100 km/h
Concorde Velocidade supersônica
Velocidade do som
340 m/s

300 m
bala de revólver 1.080 km/h
Velocidade subsônica

270 m
980 km/h
avião comercial
Velocidade subsônica FoNTE IEAv

Modelo de ras, enquanto as mais frias devem ser de


laboratório do aço ou alumínio aeronáutico”, explica o
vant (acima) e
ensaio do motor
coronel Marco Antônio Sala Minucci,
scramjet em engenheiro aeronáutico e consultor de
túnel de vento hipersônica do projeto 14-X.
Por fim, é preciso fazer a perfeita inte-
gração entre o motor e o veículo hiper-
sônico, já que o arrasto (força contrária
ao deslocamento) no voo hipersônico é
muito alto. “A parte frontal do veículo
deve funcionar como entrada de ar [no
motor], produzindo sua compressão, en-
quanto a parte traseira deve operar como
uma tubeira, transformando a alta tem-
peratura e a pressão da câmara de com-
do laboratório e operacionalizar em voo o ar capturado deve ser desacelerado, bustão supersônica em empuxo. Assim,
as tecnologias do waverider e do motor.” pressurizado e aquecido antes de entrar o motor e o veículo tornam-se indistin-
fotos  léo ramos chaves ícones flaticon

Alguns desafios, no entanto, ainda na câmara de combustão, onde é inje- guíveis, atingindo velocidades de voo ex-
precisam ser superados. O primeiro é a tado o combustível. E isso depende da tremamente altas”, conta Israel Rêgo. n
finalização do scramjet. Assim como os perfeita geometria do motor”, diz Rêgo.
motores de jatos comerciais, o scramjet Outra dificuldade do projeto é fazer
usa o ar da atmosfera para a queima do com que o veículo resista ao atrito gerado
combustível. No entanto, ao contrário pelo voo à velocidade hipersônica. “As Projeto
dos motores dos aviões, o do 14-X não partes que sofrem maior aquecimento Investigação experimental preliminar em combustão
supersônica (no 04/00525-7); Modalidade Auxílio à Pes-
tem partes móveis, como compressores por fricção com o ar devem ser feitas de quisa – Regular; Pesquisador responsável Paulo Gilberto
e turbinas. “Na combustão supersônica, materiais resistentes a altas temperatu- de Paula Toro (IEAv); Investimento R$ 2.206.289,32.

pESQUISA FAPESP 275  z  87


humanidades   cultura y

Uma trama
de cordéis
Historicamente marginalizada, a literatura
brasileira de folhetos alcança fase de
reconhecimento e institucionalização

Luisa Destri

T
radicional expressão cultural O início dessa literatura pode ser Literatura de Cordel (ABLC), com sede
brasileira, a literatura de cor- identificado com o momento em que, no Rio de Janeiro.
del vive um momento de re- em fins do século XIX, no Nordeste, poe- Se considerado desde seus antece-
florescimento. Após sucessi- mas transmitidos oralmente ganharam dentes, o percurso do cordel é secular,
vas transformações de produ- impressão. Esses folhetos, vendidos em tem início em outro continente e im-
ção e circulação, ao longo do século XX, o feiras de estados como Paraíba, Pernam- plica uma complexa relação entre cul-
gênero chegou a ter sua morte anunciada buco, Ceará e Rio Grande do Norte, tor- tura erudita e popular. “A importância
por estudiosos e autores no fim da década naram-se rapidamente populares – a tal dessa literatura é histórica. Ela nasceu
de 1980. Desde os anos 2000, no entan- ponto que, por volta de 1910, o paraibano no século XVI, na Europa, foi a grande
to, vem encontrando outras formas de Leandro Gomes de Barros (1865-1918) responsável pela vulgarização de textos
sobrevivência, em novos formatos, com instalou-se no Recife com a Tipogra- gregos e latinos e veiculou notícias so-
outros públicos e como objeto de atenção fia Perseverança e se tornou o primeiro bre as descobertas e todo um imaginário
acadêmica. O mais recente capítulo des- autor e editor do país a viver exclusi- sobre o Novo Mundo na Itália, França e
sa história é seu reconhecimento como vamente de cordéis. A partir dos anos Espanha”, afirma Francisco Claudio Al-
Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro 1950, com os movimentos de migração ves Marques, da Faculdade de Ciências
pelo Instituto do Patrimônio Histórico para o Norte, Sudeste e Brasília, os fo- e Letras da Universidade Estadual Pau-
e Artístico Nacional (Iphan), que coloca lhetos disseminaram-se por todo o país, lista (FCL-Unesp), campus de Assis. Em
no horizonte do Estado e da sociedade a possibilitando a criação de uma rede que Escritos e ditos: Poéticas e arquétipos da
necessidade de estratégias para proteger hoje inclui poetas, pesquisadores, esco- literatura de folhetos – Itália/Brasil (Hu-
a produção e a atuação de poetas corde- las, editoras e associações – a mais co- manitas, no prelo), ele investiga as ma-
listas (ver box na página 90). nhecida delas, a Academia Brasileira de trizes europeias do cordel brasileiro, que

88  z  janeiro DE 2019


se inicia com a adaptação, em versos, de Produzidos por poetas quase sempre lar europeia desde o século XIII, tendo
narrativas aqui aportadas via Portugal. autodidatas e de origem humilde, os fo- uma de suas figurações mais conheci-
“A poesia de cordel nordestina apre- lhetos tiveram inicialmente um público das em um quadro do pintor belga Pieter
senta traços de uma produção escrita de ouvintes, mais do que de leitores. “No Bruegel (1525-1569). No Brasil, essa terra
anterior, que vem se juntar à oralidade começo do século XX, especialmente no de abundância deu origem a São Saruê,
fortemente presente na região”, escreve campo, enquanto bordavam, debulha- onde tudo é “bom e fácil”. Como canta
Marques, apontando as principais fon- vam milho ou feijão, ou descansavam o poeta Manoel Camilo dos Santos no
tes que inspiraram cantadores e poetas do trabalho, as pessoas ouviam leituras folheto Viagem a São Saruê, de 1947, lá
populares: além de histórias comuns na coletivas de folhetos de cordel”, regis- “não precisa se comprar/ não há fome
península Ibérica, fábulas, passagens tra Marques. Circulando na rotina dos nem doença/ o povo vive a gozar/ tem
bíblicas e conhecimentos diversos reu- trabalhadores do interior nordestino, tudo e não falta nada/ sem precisar tra-
nidos em almanaques e enciclopédias. as narrativas dialogavam de diferentes balhar”. Comentando o contraste entre o
No livro, o pesquisador mostra como o maneiras com as circunstâncias e o con- país retratado na narrativa e a realidade
talento desses artistas, ao contrário do texto do público – muitas vezes dando daqueles que a ouviam, Marques afirma:
ilustraçãO augusto zambonato

que muitas vezes se pensa, não depen- forma, como argumenta o pesquisador, “A comunidade nordestina vive às voltas
de da capacidade de improvisação, mas à consciência de injustiças, ao desejo de com as secas periódicas, as hostilidades
do modo como adaptam o repertório desforra contra abusos de poder, a críti- do clima, a falta de alimentação. Essa
literário já existente: pelas suas vozes cas à realidade. narrativa, de origem francesa, ganha uma
e mãos, narrativas ancestrais passam Um dos exemplos estudados por Mar- nova função ao dialogar diretamente com
a falar sobre a experiência do próprio ques é o mito da Cocanha, país imaginá- a realidade da comunidade nordestina.
público, que assim se deixa encantar. rio cujo retrato circula na cultura popu- Ela se revitaliza”.

pESQUISA FAPESP 275  z  89


(1877-1917), conforme uma das estrofes tenho registros – são poucos, mas signi-
finais: “Já ouvi um poeta me dizer/ que ficativos – utilizaram o Marco como uma
fazia um muro igual ao meu/ se há este ferramenta de disputa e um instrumento
audaz é muito longe/ eu creio que ele já para se afirmar em um contexto de ex-
morreu/ que meu muro está predificado/ clusão”, diz Iumatti.
quem o imita ainda não nasceu”.
“O Marco é a transposição do desafio Produção literária
da viola para o registro da escrita”, expli- “A grande luta travada ao longo do século
ca Iumatti, ressaltando o vínculo dessa XX pelos poetas foi pelo reconhecimen-
poesia com a modalidade de cantoria em to do cordel como literatura”, informa
que dois compositores se apresentam a historiadora Rosilene Alves de Melo,
em uma competição de regras rígidas professora da Universidade Federal de
em termos de métrica e rima. Segundo Campina Grande (UFCG), na Paraíba,
As relações dessa literatura com o con- o pesquisador, esse gênero é uma forma e consultora do Iphan. Ela conta que,
texto também estão no centro do interes- poética peculiar ao contexto nordestino, embora sempre tenha havido reconhe-
se do historiador Paulo Teixeira Iumatti, cujas características principais têm co- cimento popular, essa literatura per-
vice-diretor entre 2014 e 2018 do Institu- nexão com a sociedade escravista, em maneceu durante décadas à margem,
to de Estudos Brasileiros da Universidade especial a ideia de que, no interior de sua acumulando episódios de perseguições
de São Paulo (IEB-USP), que prepara a fortaleza, o poeta tem domínio absoluto a poetas e editores, apreensão e quei-
publicação de Vozes negras na cantoria: sobre pessoas e coisas. Estudando poe- mas de folhetos e prisões – como a de
Cantadores afrodescendentes e as disputas mas compostos logo após a Abolição por José Bernardo da Silva (1901-1971) em
em torno do gênero do Marco (1870-1930) afrodescendentes como Joaquim Fran- Limoeiro (PE), em 1934. “O cordel é um
(Almedina, no prelo), a respeito desse cisco Santana (1877-1917), o professor do gênero que conseguiu se construir a du-
tipo de cordel. Trata-se de folhetos em IEB defende que a linguagem hiperbó- ras penas, com muito sacrifício e pouco
que o autor imagina construir para si um lica do Marco, de elogio do poeta à pró- dinheiro. A maioria dos poetas morreu
castelo ou outra espécie de fortificação pria obra, serviu de luta simbólica num na miséria, no esquecimento, sem recur-
– ambiente que governa como um rei contexto em que era preciso “manter a sos, mas nunca desistiu”, comenta Melo.
e que serve de metáfora para a própria cabeça erguida diante da exclusão e do O fato de se tratar de uma literatura
construção poética –, oferecido como racismo”. “Os cantadores negros de que originada em contextos pobres e de me-
uma espécie de desafio a outros poetas.
É o que acontece, por exemplo, em A for-
taleza que levantei dentro de uma lagoa
(1953), de Joaquim Francisco Santana

Um bem tutelado
Uma estrofe de 10 versos de sete sílabas encomenda do Iphan, o dossiê que dá todo. “Nessas reuniões recolhemos
abriu o pedido encaminhado, em 2010, pela fundamento ao registro, documentando a também as sugestões de salvaguarda das
Academia Brasileira de Literatura de Cordel história nacional da literatura de cordel e obras, que devem ser feitas pelos próprios
ao Instituto do Patrimônio Histórico mapeando a produção hoje realizada no poetas”, conta Melo.
e Artístico Nacional (Iphan) solicitando o Brasil. “O registro é uma decisão do Estado As ações de preservação são a principal
registro do cordel como Patrimônio Cultural brasileiro que vai ficar para gerações futuras. decorrência do processo de registro, que
Imaterial Brasileiro: “Nós, membros da Daí a necessidade desse inventário, que tem como finalidade atender determinações
academia/ da cultura guardiã/ solicitamos tem como objetivo recolher informações legais de promoção e acesso à cultura, em
ao Iphan/ que veja com simpatia/ nossa que comprovem que esse bem merece ser especial os artigos 215 e 216 da Constituição
eterna poesia/ como histórico documento/ registrado”, explica Rosilene Alves de Federal. “A história do cordel agora muda
E neste requerimento/ de conteúdo fiel/ Melo, professora da Universidade Federal radicalmente. Até 2018, era uma poesia
pedimos para o cordel / o seu registro e de Campina Grande (UFCG) que atuou praticada livremente pelas pessoas; agora é
tombamento”. Em setembro de 2018, como consultora do órgão, coordenando a um bem tutelado pelo Estado”, resume Melo,
o conselho consultivo do órgão aprovou o pesquisa e redigindo o dossiê. ressaltando a dimensão coletiva da atuação
pedido, reconhecendo a literatura de cordel Para a elaboração do documento escrito desses poetas, que deve passar pela
como um bem a ser preservado pelo Estado e do documentário em vídeo, que ficarão construção de formas de organização e
em conjunto com a sociedade brasileira. disponíveis ao público, foram realizadas articulação. A partir deste ano, segundo ela,
Uma equipe de pesquisadores 140 entrevistas com poetas, pesquisadores, o órgão de proteção ao patrimônio terá
desenvolveu, entre 2012 e 2017, por donos de editoras de folhetos, no Brasil ações destinadas especificamente ao cordel.

90  z  janeiro DE 2019


Alguns dos
autores
fundamentais
da literatura
de cordel
LEANDRO GOMES
DE BARROS
Francisco das Silvino
1865-1918
Chagas Batista Pirauá Lima Manoel Camilo
dos Santos
1882-1930 1848-1913
1905-1987

nor proximidade com a cultura letrada ção e guarda em seu acervo a linguagem mas como ciências, história, linguagem,
deu muitas vezes origem a um estigma. matuta – quando se escrevia ‘pruquê’, além de muitas vezes adaptarem clássi-
“A literatura de cordel nunca foi muito ‘prumodi’, ‘pruvia’. Mas guardamos co- cos literários nacionais e estrangeiros.
reconhecida pelo universo da literatura mo material de museu, e não material “Essa entrada na escola salvou o cordel
oficial, embora muitos poetas e escrito- para ser usado agora”. do desaparecimento no Brasil”, avalia a
res fossem seus admiradores”, afirma pesquisadora da UFCG. Para Marques,
Iumatti, que recusa o rótulo de “popu- Sobrevivência o interesse de alunos dos ensinos mé-
lar” para essa produção. “A literatura de Na tentativa do cordel de sobreviver, os dio e fundamental pode representar o
cordel sempre fez a mediação entre uni- poetas buscaram, ao longo das décadas, surgimento de novos autores no gênero.
versos: um mais letrado e outro da cul- diferentes maneiras de concretizar seu Outro fator apontado como essencial
tural oral, como uma poesia que chegava trabalho. Inicialmente, os folhetos eram para a sobrevivência do cordel é a manu-
a pessoas que nem sequer sabiam ler”, impressos em gráficas nas capitais e pe- tenção de arquivos de folhetos. A ABLC
explica. De acordo com ele, à medida quenas tipografias em cidades do inte- reúne hoje 13 mil títulos em seu acervo e
que buscam formas de legitimação, cor- rior. Com a proliferação de jornais e a cerca de 2 mil livros de apoio à pesquisa,
delistas tendem a se identificar relati- diminuição do custo dos equipamentos, além de 27 “cordeltecas” implantadas em
vamente menos com a cultura popular, alguns poetas adquiriram suas próprias todo o território nacional. Com o proje-
que passa a ser vista como repertório máquinas, ganhando autonomia no pro- to “Sementes de poesia”, Melo preten-
para inspiração, estudo e criação, e não cesso de produção e, consequentemente, de revitalizar e ampliar as coleções do
como meio exclusivo onde os folhetos de divulgação do trabalho. Entre 1910 e Acervo de Literatura Popular José Alves
são produzidos e circulam. 1960, inicialmente no Nordeste, e depois Sobrinho e do Centro de Formação de
A ABLC, fundada em 1988, contribui com a circulação do cordel por outras Professores (UFCG) em Campina Gran-
para essa trajetória. “A criação é uma regiões do país, constituiu-se uma rede de e da Fundação Casa de José Américo,
resposta à não aceitação do cordel pela de produção e venda que permitiu a au- em João Pessoa. Marques tem dedicado o
Academia Brasileira de Letras”, diz Ro- tores e editores sobreviver dos folhetos. projeto “Organização, classificação e ca-
silene Melo, referindo-se às duas candi- Hoje os cordéis estão longe do am- talogação do acervo de literatura de cor-
daturas do cordelista Raimundo Santa biente de seu nascimento, as feiras. O del” aos 800 folhetos de cordel doados
Helena (1926) rejeitadas pelos imortais, surgimento dos supermercados na dé- ao Centro de Documentação e Apoio à
em 1983 e 1986. A institucionalização do cada de 1970, a hiperinflação e o con- Pesquisa (Cedap) pela ABLC. Já Iumatti
cordel trouxe até mesmo novos parâ- sequente aumento do preço do papel está trabalhando, com um grupo de alu-
metros para a composição dos poemas, nas décadas de 1980 e 1990 exigiram a nos e com apoio do Iphan e do Conselho
que foram se modificando com o tempo, completa reformulação da atuação des- Nacional de Desenvolvimento Científi-
como explica o cordelista Gonçalo Fer- ses autores, que ficaram cada vez mais co e Tecnológico (CNPq), no Portal de
reira da Silva, presidente da instituição. distantes de seu público. “No início dos Literatura de Cordel, que, abrigado no
São três os critérios estéticos: métrica, anos 2000, o cordel estava em uma cri- site do IEB-USP (bit.ly/PortalCordel),
rima e oração, isto é, os poetas devem se profunda”, conta Rosilene Melo, da reúne metadados de acervos de diver-
obedecer rigorosamente a quantidades UFCG. A saída encontrada foi levar o sas instituições nacionais e estrangeiras
convencionais de sílabas por verso, ri- cordel para as escolas. Desde então, em dedicados ao cordel e que tem como ob-
mar todo o poema e construir narrativas oficinas, minicursos e palestras, poetas jetivo principal o apoio à pesquisa. “Se
coerentes, com começo, meio e fim. “A procuram estimular o conhecimento do o leitor não vai à leitura, a leitura vai ao
literatura de cordel é feita para ser lida, gênero e o gosto pela sua leitura. Co- leitor”, sintetiza o presidente da ABLC. n
ilustraçãO augusto zambonato

cantada ou declamada, então deve ter mo consequência dessa atuação, edito-


a rigorosa sonoridade”, diz Silva. Ele rialmente se abriu um novo campo, o
destaca também a importância da cor- do cordel didático, com livros escritos Projeto
reção da linguagem: “Não é admissível nesse estilo que contemplam aspectos Organização, classificação e catalogação do acervo de li-
que hoje ainda se escreva e fale errado. dos Parâmetros Curriculares Nacionais. teratura de cordel “Gonçalo Ferreira da Silva” (18/03453-
0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador
Você deve escrever errado se não souber Com tiragens que podem ultrapassar 100 responsável Francisco Claudio Alves Marques (Unesp);
escrever certo. A ABLC respeita a tradi- mil exemplares, essas obras tratam de te- Investimento R$ 17.320,60.

pESQUISA FAPESP 275  z  91


cinema y

Cotidiano
esquecido
Pesquisa revela aspectos pouco conhecidos
da vida e obra de David Perlov, o brasileiro que
revolucionou a cinematografia israelense

Valéria França

Perlov nasceu
no Rio
de Janeiro e
passou a maior
parte da

A
vida em Israel
pesquisadora e crítica de ci- mãe, Anna, veio da Bessarábia, atual
nema Ilana Feldman se en- Moldávia. Abandonada pelo pai de Per-
cantou com a produção cine- lov, enfrentou a pobreza e condições psí-
matográfica de David Perlov quicas adversas. Em Belo Horizonte, on-
(1930-2003) quando, em 2006, tomou de viveram até 1940, Perlov e o irmão,
conhecimento de Diário 1973-1983, sua Aarão, foram criados com extrema di-
obra mais importante. Naquele mo- ficuldade por Dona Guiomar, uma neta
mento, escreveu um artigo sobre aquele de escravos, protestante.
que é considerado um dos pioneiros do Os anos de penúria ficaram para trás
moderno cinema israelense. No filme, o quando, em 1940, resgatados pelo avô pa-
documentarista retrata fragmentos do terno, ele e o irmão passaram a ter acesso
seu próprio cotidiano, da rotina familiar, à educação de qualidade na capital pau-
da vizinhança em Tel Aviv e das viagens lista – Perlov estudou, por exemplo, de-
ao Brasil. Em 2014, Feldman decidiu senho com Lasar Segall (1891-1957), que
analisar sua obra – de forte inflexão reconheceu o talento do rapaz.
biográfica e política – em pesquisa de “Eu o encontrei nessa época. David
pós-doutorado em teoria literária no fazia parte do movimento sionista so-
Instituto de Estudos da Linguagem da cialista. Era um líder. E foi por isso que
Universidade Estadual de Campinas o conheci”, conta a brasileira Mira, sua
(IEL-Unicamp). Utilizando ferramen- viúva. Integrante de uma família abas-
tas de teoria da imagem e psicanálise, tada de sobreviventes da Shoah, a jovem
debruçou-se sobre o teor testemunhal morava em Higienópolis, bairro que mais
da produção de Perlov. tarde serviria de cenário para o cineas-
Descendente de judeus palestinos, ta. Cidadão do mundo, Perlov cresceu
Perlov nasceu no Rio de Janeiro. Sua em São Paulo, estudou em Paris, e aos

92  z  janeiro DE 2019


Fragmentos do
cotidiano,
da rotina familiar
e da vizinhança
em Tel Aviv
estão em Diário
1973-1983

28 anos, já casado com Mira, mudou-se governantes, que continuavam a produ-


para Tel Aviv, em Israel. zir os chamados “filmes monumentais”.
Foi em Paris que fez seu primeiro fil- “Em Jerusalém foi um documentá-
me, Tia chinesa e os outros, um curta-me- rio média-metragem, influenciado pe-
tragem realizado a partir de um caderno los ventos da nouvelle vague”, explica
de desenhos e finalizado em 1957. Até o Feldman. Depois dele, Perlov concedeu
início da década de 1960 fez uma série muitas entrevistas à imprensa local, mas a realidade era enquadrada a partir da
de curtas, entre eles, The old age home, seus projetos mais pessoais seguiram janela do apartamento onde morava”,
que não consta de sua filmografia, mas ao sendo ignorados pelo governo. “Perlov conta Feldman. “Ao contrário do que
qual se refere em Diário. Nesse período foi precursor do cinema em Israel, com vemos hoje, em uma época de ascensão
realizou também Viela dos sapateiros em estilo que unia elementos do cinema veri- das narrativas em primeira pessoa, do
Jaffa (1959) e Pescadores em Jaffa (1960), té francês e do cinema direto norte-ame- reality show às mídias sociais, Perlov não
além de Em teu sangue vive (1961), um ricano, entre outros”, diz Flávia Guer- produziu um filme de autorreferência,
documentário sobre os horrores da Se- ra, documentarista e crítica de cinema. mas de questionamento”, diz. “Sem
gunda Guerra Mundial. “Ainda que subjetivo, seu cinema acom- distorcer os acontecimentos, ele con-
Em 1963, o documentário Em Jeru- panhava a realidade como se a câmera seguia estabelecer certo distanciamento
salém provocou, segundo Feldman, “o fosse testemunha e observadora da vida da realidade.”
isolamento de Perlov pelas autoridades que ocorre diante de sua lente.” É exata- Em Diário, o cineasta não apenas mos-
locais”. “Ele buscava liberdade estética e mente isso que ele faz anos mais tarde tra, através da janela do 14º andar do
política em um momento histórico pon- em Diário. Em meados dos anos 1960, edifício onde vivia, em Tel Aviv, o que
tuado por legislações e autoridades pou- tanto o estilo norte-americano quanto acontecia do lado de fora, como situa o
co flexíveis em Israel”, explica Feldman. o francês já haviam ganhado o mundo, espectador em relação à vizinhança ao
A obra foi premiada no Festival de Vene- mas não conquistado Israel. E o cineasta redor, em uma clara opção pelo estilo co-
za. Pela primeira vez o cinema israelense seguiu sem apoio. nhecido como cinema direto ou cinema-
obtinha prestígio artístico internacional. -verdade. Nas cenas em que Perlov regis-
Perlov tornava-se uma referência. Foco no anonimato tra o cotidiano familiar, também revela
fotos instituto Moreira Salles

Mas, para o governo de Israel, o gran- “Sem recursos e apenas com uma câme- o interior de sua própria casa. Nunca
de patrocinador da sétima arte naquele ra, ele filmava o cotidiano em película de com o uso de uma câmera escondida. A
momento, o cineasta não se enquadra- 16 milímetros, sempre com sensibilidade mulher, Mira, e as filhas gêmeas do ca-
va no perfil desejado. Perlov desejava social, vez por outra observando o lugar sal, Yael e Naomi, por exemplo, não des-
contar histórias de pessoas. Em Israel, subalterno que os trabalhadores árabes conhecem a presença do equipamento.
e na então União Soviética, o cinema era tinham em Israel, assim como as empre- Ora olhando furtivamente para a lente,
usado como veículo de propaganda de gadas domésticas no Brasil. Em Diário, ora ignorando-a, seguem em suas ati-

pESQUISA FAPESP 275  z  93


Cenas
de Diário

vidades corriqueiras – que podiam ser ção, também é muito prazeroso, porque

fotos instituto Moreira Salles


tarefas da escola ou uma rápida refeição se tem controle sobre sua vida – suas cri-
na cozinha. ses, suas dores. Pode-se recriar a vida ou
Diário começou a ser filmado quan- A história fragmentá-la. Sobretudo, pode-se criar
do o autor decidiu registrar o próprio harmonia”, escreveu Feldman, citando
cotidiano: “Maio de 1973. Compro uma do cineasta Perlov em As janelas de David Perlov, en-
câmera. Quero começar a filmar por con- saio que acompanha a primeira caixa de
ta própria e para mim. O cinema profis-
emerge aos Diário 1973-1983, DVD lançado em 2014
sional não me atrai mais. Procuro uma poucos, em pelo Instituto Moreira Salles. Ano passa-
coisa diferente. Me aproximo do coti- do, o instituto lançou a segunda, Diário
diano, do anonimato. Leva tempo para pequenos revisitado 1990-1999, com o último ca-
aprender a fazer isso”, relata o cineasta, pítulo da obra intitulado Volta ao Brasil.
nas cenas iniciais da obra. Embora na detalhes que Diário despertou o interesse do britâ-
mesma época tenha sido admitido no nico Channel 4, em 1983. Paralelamente,
recém-inaugurado Departamento de
vão surgindo Perlov também recebeu apoio do Fundo
Cinema e Televisão da Universidade de em sua obra Israelense e de Herzliya Studios de Is-
Tel Aviv, na narração do filme se queixa rael, instituições dedicadas à promoção
do excesso de tempo livre. Não disfarça a de filmes de qualidade. Foi uma retros-
mágoa de não ter apoio do governo nem pectiva sobre a filmografia de Perlov,
reconhecimento estatal. em 2005, realizada pelo Centro Georges
“Como nas obras de Franz Kafka duas cruzes sobre suas fotos: nome e so- Pompidou, em Paris, que fez com que
[1883-1924], Perlov se volta para o es- brenome.” Trata-se de uma referência à Diário voltasse a circular internacional-
quecido e o ‘recalcado’”, avalia Márcio mãe, analfabeta, explica Feldman. “Per- mente, em retrospectivas e festivais de
Seligmann-Silva, pesquisador do IEL- lov guardava uma foto de Anna, marcada cinema em todo o mundo. Um ano de-
-Unicamp e supervisor da pesquisa de- por duas cruzes. Durante uma cena de pois, quando chegou ao Rio de Janeiro,
senvolvida por Ilana Feldman. “No filme Diário ele a mostra dentro de uma gaveta Feldman assistiu ao filme pela primeira
Em Jerusalém, de 1963, afirma que as entreaberta”, reconstitui a pesquisado- vez. “No Brasil, o trabalho dele foi pouco
ruínas são fotogênicas. Ele não só dá voz ra. “A cruz, para ele, evoca um trauma. difundido. David sentia muito por isso”,
e imagem ao esquecido como procura as Sua história vem à tona aos poucos, em relata sua viúva, que ainda mora em Tel
ruínas, que são uma espécie de cicatriz, pequenos detalhes que vão surgindo em Aviv. “Meu marido amava o país, ape-
de marca do tempo, uma concomitância sua obra.” Também está presente nas sar de ser um estrangeiro em todos os
da vida e da morte”, diz Seligmann-Silva. temáticas sociais que escolhe registrar lugares onde morou. Espero ainda ter
“Em Diário, mostra o cemitério dos pio- com sua câmera. Em 1999, por exemplo, a oportunidade de voltar a São Paulo e
neiros de Israel, com sua seção marginal quando volta ao Brasil, um dos capítulos revisitar o passado.” n
dedicada aos suicidas.” de Diário revisitado 1990-1999 mostra
empregadas domésticas negras pendu-
temáticas sociais radas em apartamentos da capital pau- Projeto
Diário começa com uma escrita em bran- lista, limpando janelas. Os diários cinematográficos de David Perlov: Do privado
co sobre fundo preto: “Na terra da po- “Quando se filma um diário, o filme ao político (nº 14/01099-3); Modalidade Bolsa no Brasil –
Pós-doutorado; Pesquisador responsável Márcio Orlando
breza e do analfabetismo, aqueles que substitui a vida. É uma grande experiên- Seligmann-Silva (Unicamp); Bolsista Ilana Feldman Mar-
não podem assinar seus nomes colocam cia. E enquanto se está na mesa de edi- zochi; Investimento R$ 265.715,24.

94  z  janeiro DE 2019


resenha

Patrimônio e barroco na América Latina


Everaldo Batista da Costa

O
Instituto de Artes da Universidade Esta- ticas urbanas singulares e distintas, que vão dos
dual Paulista (Unesp) deve reconhecer ornamentos ultrabarrocos equatorianos (chur-
o privilégio de ter em seu corpo docen- riguerescos), o “melhor da escola quitenha”, à
te um dos maiores intelectuais do barroco no ornamentação de Santa Maria de Tonantzintla,
Brasil. Percival Tirapeli inaugurou, em 1987, o considerada obra máxima do barroco exuberan-
chamado movimento Barroco Memória Viva, o te na Nova Espanha (México), do urbanismo de
qual comporta atividades de extensão e de pes- plano em quadrícula (espanhol) ao urbanismo
quisas potencializadoras do pensamento e das vernacular (português), modelos e teorias nas
práticas relativas à arte e ao urbanismo barrocos quais o catolicismo ganhou espaço considerá-
Patrimônio no país. Sua obra Arte sacra colonial – Barroco vel, para a projeção das utopias imaginativas e
colonial memória viva é uma referência nacional desse feitoras do Novo Mundo.
latino-americano:
Urbanismo,
movimento idealizado, consagrado e mantido O empenho e o êxito de Percival Tirapeli está
arquitetura, arte por Tirapeli. O trabalho versou, em considera- em traçar o panorama de um patrimônio colo-
sacra ção às expressões do barroco paulista, baiano, nial barroco na América Latina no qual a pin-
Percival Tirapeli mineiro e carioca, sobre aspectos da arquitetura tura, a escultura e o urbanismo são estudados
Edições Sesc
São Paulo
e do urbanismo, da ornamentação, da literatura e retratados metodologicamente, vinculados à
320 páginas e da música, com a colaboração de autores como economia e à política espaciais coloniais. Como
R$ 115,00 Murillo Marx, Wolfgang Pfeiffer, João Adolfo afirma o próprio autor, “as análises das artes
Hansen, dentre outros. coloniais suplantam as divisões geográficas,
Decorridas mais de três décadas da primei- como na península Ibérica, fazendo profun-
ra publicação do Barroco memória viva – um das distinções entre Espanha e Portugal. Nas
vasto período de intensa atividade acadêmica e Américas, no entanto, deve-se adotar o conceito
intelectual do autor –, Tirapeli nos brinda ago- das fronteiras coloniais, e não o dos países cria-
ra com outro oportuno e indispensável estudo, dos pós-independência. Sem se considerar essa
ampliando, grandemente, os escopos geográfi- divisão colonial, há o risco de se perpetuar os
co e tipológico do barroco em sua análise. Em interesses escusos da política e da economia”.
Patrimônio colonial latino-americano: Urbanis- Tirapeli, pela arte e aos moldes do escritor pe-
mo, arquitetura, arte sacra, Tirapeli reconhece ruano Mario Vargas Llosa (na exposição Revela-
o barroco como “estilo exuberante de formas ciones), consegue situar o barroco (patrimônio
quando se trata de patrimônio colonial da Amé- colonial) como um dos elementos estimulantes
rica Latina”. Nesse extenso, denso e bonito livro, da reflexão e do debate sobre a unidade da e na
o autor totaliza, dilata e singulariza esse estilo, América Latina.
sobretudo por dois objetos, considerando suas O livro recém-lançado torna-se leitura obri-
muitas variantes continentais: a igreja e o espaço gatória para todo tipo de pesquisa que inquira as
urbano. Surpreende sua capacidade de estabele- artes visuais coloniais das Américas espanhola
cer conexões interpretativas sobre as regras da e portuguesa. Percival Tirapeli faz entender por
arte barroca advindas dos modos de vida euro- sua obra, pela experiência vivida e pelo espaço
peu e aqueles que se reproduzem no continente percebido no continente, que a riqueza da ex-
latino-americano. pressão barroca se revela no conteúdo da mis-
O livro contempla dezenas de sítios latino- cigenação das crenças localizadas, da sede da
-americanos e caribenhos declarados patrimô- conquista europeia e das estratégias artísticas
nio da humanidade, os quais Tirapeli percorreu visuais coloniais, as quais nunca deixaram de
em busca de fontes documentais, imagéticas e aproximar o divino e os mortais.
bibliográficas. Sua capacidade investigativa de
universalização e de síntese das informações
possibilitou-lhe trafegar pelo continente reali- Everaldo Batista da Costa é professor do Departamento de
Geografia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade
zando uma conectividade de espaço-tempo. Por de Brasília (IH-UnB) e líder do grupo de pesquisa Cidades e
exemplo, foi capaz de totalizar expressões artís- Patrimonialização na América Latina e Caribe (Gecipa-UnB).

PESQUISA FAPESP 275 | 95


carreiras

universidade

 Todo dia sempre igual?


Pesquisadores e bolsistas contam como organizam a rotina nas férias

É
tempo de férias letivas. As Câmara de Pós-Graduação da modalidades de auxílios e bolsas
salas de aula estão vazias, a Universidade Federal de São Paulo disponíveis no país não preveem
frequência na universidade (Unifesp), campus Diadema, vê de períodos de férias para os bolsistas.
diminui, os serviços administrativos modo semelhante esse período do Da iniciação científica ao
por vezes funcionam em horários ano, que descreve como “produtivo, pós-doutorado, não há parâmetros
reduzidos. A rotina de pesquisa, porém, sem muito estresse, tensão”, que regulamentem a folga. Como
porém, segue seu ritmo. “Essa época já que a pausa nas atividades resultado, a possibilidade de se
é ótima para a gente”, afirma o docentes e administrativas permite desligar do trabalho depende de
matemático José Alberto Cuminato, a dedicação mais intensa ao grupo acordos feitos individualmente
diretor do Centro de Ciências de pesquisa. “Durante as férias entre aluno e orientador – ou, no
Matemáticas Aplicadas à Indústria letivas, eu, assim como alguns caso de pós-doutorado, entre
(CeMEAI), um dos Centros de colegas, costumo escrever artigos pesquisador e supervisor.
Pesquisa, Inovação e Difusão com os orientandos. É um momento “O orientador é quem sabe como
(Cepid) financiados pela FAPESP, de continuidade e, às vezes, as coisas estão andando”, resume
com sede no Instituto de Ciências retomada de trabalhos, e também de Cuminato, que negocia períodos de
Matemáticas e de Computação contato com os alunos que precisam descanso com estudantes que têm
da Universidade de São Paulo, mais do orientador”, completa. bom rendimento no trabalho. “Se
(ICMC-USP), em São Carlos. “Não Mesmo nos dias em que as estiver indo bem, não tem por que
dou aulas, não tenho reuniões. universidades entram em recesso não atender a uma solicitação desse
É uma época em que dá para ler – em geral, entre o Natal e o tipo. Se está indo mal ou o prazo
as teses dos orientandos, discutir Ano-Novo –, a perspectiva não é de está apertado, o professor vai falar
o trabalho com eles”, explica. ócio para os pesquisadores. Como, não.” Também Vasconcellos adota
Suzan Pantaroto de Vasconcellos, aliás, não o é em qualquer outro modelos flexíveis com seus
farmacêutica e coordenadora da momento do ano: de modo geral, as orientandos, que podem negociar

96 | janeiro DE 2019
pouco antes de começar o novo ano
é algo que interfere muito no
rendimento. A pesquisa exige muito
trabalho braçal e também muito
trabalho intelectual. Cansa o corpo
e a mente”, afirma.

saúde mental
Há quem esteja vivendo um
momento bastante diverso. O
cientista político Rogério Jerônimo
Barbosa começou em setembro o
pós-doutorado no Centro de
Estudos da Metrópole (CEM),
Cepid sediado na USP e no Centro
Brasileiro de Análise e
Planejamento (Cebrap), e, apesar
do recesso, não vai interromper
suas atividades. “Estou
empolgadíssimo. Os primeiros três
meses foram de coleta de dados, e
estou curioso em relação aos
resultados. Então não vou parar,
não.” Ainda assim, ele pondera
que o tema do descanso é pouco
discutido na pós-graduação.
isso”, afirma. Ele exemplifica o “A questão da saúde mental
“modelo de gestão” que procura dos pesquisadores é fundamental,
adotar em relação aos e as férias têm tudo a ver com
pesquisadores: “Incentivo a ideia isso. Não é só um direito qualquer,
do lazer com o trabalho. Se viajar é condição fundamental para a
para um congresso nacional própria qualidade da pesquisa se
ou internacional, a pessoa pode elevar”, reflete.
passar quatro ou cinco dias Para Flávia Calé da Silva,
conhecendo o lugar onde está. presidente da Associação Nacional
afastamentos se estiverem em dia A relação de férias fica meio de Pós-Graduandos, a ausência de
com suas atividades, desde que misturada com a própria atividade”. regulamentação das férias integra
algum colega de laboratório possa A nutricionista Thais de Fante rol de benefícios que não são
assumir seus compromissos. conta como é a rotina na instituição conferidos aos bolsistas porque o
“Eu trabalho com alta onde desenvolve sua pesquisa de caráter profissional da atividade
flexibilidade, mas alta exigência”, doutorado, o Laboratório de não é totalmente reconhecido,
afirma o psiquiatra Rodrigo Distúrbios do Metabolismo da já que mestrandos e doutorandos
Affonseca Bressan, coordenador do Universidade Estadual de são estudantes. Ela lembra, no
eixo de pesquisa do Instituto Campinas (Unicamp), campus entanto, que a pós-graduação
Nacional de Psiquiatria do Limeira, ligado ao Cepid em contribui significativamente para a
Desenvolvimento para Crianças e Obesidade e Comorbidades produção científica do Brasil.
Adolescentes da Unifesp e (OCRC): “Como a gente trabalha Nesse contexto, os acordos entre
presidente do Y-Mind, programa de com modelo animal, e pelo menos pesquisador e orientador são, na
prevenção e tratamento de uma vez por semana é preciso opinião da professora da Unifesp,
transtornos mentais ligado à cuidar dos camundongos, ninguém produtos do “bom senso”. “Como
instituição. Ele explica que os fica totalmente afastado nas férias, não podemos garantir todos os
pesquisadores vinculados embora vá ao laboratório direitos que o bolsista poderia
ilustração  veridiana scarpelli

a esses projetos podem organizar com menos frequência”. Com seu ter se fosse um funcionário normal,
seu tempo de acordo com o experimento concluído e a tentamos não restringir tanto
cumprimento de metas. “Se está em proximidade do depósito da tese, o convívio dele com as coisas boas
uma fase em que tem que escrever este será o primeiro ano, desde o que pode ter – a família, os amigos,
textos e revisar outros, a pessoa início da pós-graduação, em que viajar um pouco. Todos precisam
tem que trabalhar. Mas ela pode ela descansará totalmente durante disso para manter a sanidade”,
estar de férias em Salvador fazendo o recesso. “Não poder parar um diz Vasconcellos. n Luisa Destri

PESQUISA FAPESP 275 | 97


perfil

Reconhecimento na inovação
Administradora de empresas cria startup para resolver problemas de produtores rurais
e ganha prêmios que ampliam seu conhecimento

Em uma fase da vida em que muitos produtores rurais. “Desenvolvemos fazer as medições. Por isso meus
jovens ainda procuram o primeiro sensores para medir as condições sócios construíram uma rede
emprego, a mineira de Itajubá, do solo, do clima e da planta. São paralela de transmissão de dados
Mariana Vasconcelos, de 27 anos, mais de 10 variáveis ambientais”, para os sensores que não depende
tem atravessado o continente para conta. “Os dados são analisados e da internet. Isso fez toda a
fazer negócios. Em 2014, ano em que transmitidos aos agricultores para diferença para o negócio.”
se formou em administração de que entendam, por exemplo, as Há quatro anos, quando tudo
empresas pela Universidade Federal causas do estresse de uma planta”, começou, a Agrosmart venceu o
de Itajubá (Unifei), ela criou, com diz. Com as informações em mãos, programa Start-Up Brasil, realizado
dois sócios, a Agrosmart, startup de os agricultores conseguem tomar pelo governo federal para acelerar
agricultura digital. A empresa, que já decisões precisas, como a negócios na área de tecnologia, e
obteve recursos do Fundo de necessidade exata de água que Vasconcelos obteve uma bolsa do
Inovação Paulista da SPVentures, determinada planta precisa. Conselho Nacional de
está em nova rodada de captação, Segundo Mariana, que antes de Desenvolvimento Científico e
tem 210 mil hectares de terras partir para o agronegócio trabalhou Tecnológico (CNPq). Um ano
monitoradas no Brasil, atua em durante um ano na área de vendas depois, a startup saiu-se vencedora
nove países, e Mariana acaba de ser da Bosch, na Alemanha, o índice de no Call to Innovation, que ofereceu
escolhida para integrar a lista dos 35 acerto de alguns modelos como prêmio outra bolsa. Mariana
jovens mais inovadores na América agronômicos, como o de detecção participou, então, de um programa
Latina, elaborada pelo MIT de ferrugem no café, varia entre sobre tecnologia de alto impacto na
Technology Review. 75% e 95%. Outro diferencial Singularity University, no Vale do
A Agrosmart trabalha com o importante, explica, é o fato de o Silício, também nos Estados Unidos.
monitoramento de lavoura feito sistema prescindir da internet no Mesmo sendo profissionalmente
através de pluviômetros digitais, campo. “Quando os agricultores bem-sucedida, ela continua
previsão do tempo, dados obtidos dizem que na propriedade tem querendo aprender. Atualmente
a partir de sensores instalados no internet isso significa que possuem faz MBA em agronegócio na Escola
campo e de fotos de satélite das uma antena rural. E que o sinal Superior de Agricultura Luiz de
regiões monitoradas. O objetivo funciona apenas na casa central – e Queiroz da Universidade de São
é resolver alguns problemas dos não no campo, onde precisaríamos Paulo (Esalq-USP). n Valéria França

Mariana Vasconcelos:
entre os 35 jovens
mais inovadores
da América Latina
arquivo pessoal

98 | janeiro DE 2019
FAPESP recebe propostas para o
1º Ciclo de Análises de 2019 do
Programa Pesquisa Inovativa
em Pequenas Empresas – PIPE

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>
R$ 15 milhões estão reservados para o atendimento
das propostas selecionadas

As propostas de financiamento devem conter projetos de pesquisa


que possam ser desenvolvidos em duas fases:

Fase 1 Demonstração da viabilidade tecnológica de produto ou processo,


com duração máxima de nove meses e recursos de até R$ 200 mil.
Fase 2 Desenvolvimento do produto ou processo inovador, com duração
máxima de 24 meses e recursos de até R$ 1 milhão.
Os proponentes que já realizaram as atividades tecnológicas que demonstrem
a viabilidade do projeto podem submetê-lo diretamente à Fase 2.
Podem apresentar propostas pesquisadores vinculados a empresas
de pequeno porte (com até 250 empregados) com unidade de pesquisa
e desenvolvimento no Estado de São Paulo.

mais Informações Data-limite para Anúncio dos projetos


www.fapesp.br/pipe/chamada-1-2019 apresentação das propostas selecionados

fapesp.br/pipe/normas 28 de janeiro de 2019 a partir de 15 de junho de 2019

FAPESP Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa


São Paulo, SP ­– CEP. 05468-901
(11) 3838-4000 www.fapesp.br
O que a ciência
brasileira
produz, você
encontra aqui

Nas bancas!

revistapesquisa.fapesp.br
assinaturaspesquisa@fapesp.br

Vous aimerez peut-être aussi