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Não se pode dizer que o sujeito não tenha consciência da possibilidade de fruir a
situação, de se deixar levar pelo prazer do encontro com a paisagem ou o lugar. Na
verdade ele tem consciência disso. E tanta que busca primeiro assegurar o domínio da
situação, pelo selfie, como uma garantia de poder voltar a ela quantas vezes queira, ou
seja, de frui-la indefinidamente mais tarde. Assim, não se trata de gozar a paisagem
aqui e agora, mas em renunciar a esse gozo imediato (momentâneo) em nome de outro,
supostamente mais duradouro. Digamos, uma gozo sustentável.
imagem deveria servir à finalidade adiada da fruição. Ocorre que quem faz o selfie,
nessa altura, já não curte a imagem, mas sim o número de curtidas que sua imagem
alcançou.
Mas nesse caso, toda possível experiência estética, intelectual ou o que seja, que
pudesse ter sido ganha in loco, antes de feito o selfie, entra numa metamorfose. Agora,
em que pode alcançar maior ou menor popularidade pelo número de curtidas, isto é,
pela resposta social, o que teria sido uma experiência estética sofre uma
transformação, torna-se uma experiência social refletida em números. (De alguma
forma sempre foi assim. No romance Bel-Ami, de Guy de Maupassant, um rico
proprietário de jornal compra um quadro muito valioso e o expõe em sua mansão.
Toda a Paris vai em romaria apreciar a obra. Mas é sobretudo o valor pago ― ou seja,
número, quantidade ―que atrai os visitantes. E é o número de visitante, o sucesso, que
confirma para o comprador o acerto de ter investido na obra.
Uma diferença é que hoje esse efeito de atração não é mais monopólio dos muitos ricos,
mas foi de algum modo democratizado pelo selfie, embora se possa questionar o caráter
dessa democratização, e da “obra” em questão). No selfie, seu peso social aumenta com
o número (de curtidas, comentários, compartilhamentos, etc.) que registra a atenção por
ela recebida. A possibilidade de quantificar (os números) é muito significativa para a
mensuração do efeito de algumas coisas, como é o caso de uma informação que se quer
compartir. Mas se é uma experiência estética, um acaso, ou um prazer que se registra, é
possível medir seu significado pelo número de curtidas? E qual o significado de
“curtir”? Um mero gostar? Ou seria algo como: “eu concordo que essa foto é adequada
para figurar num perfil do Facebook”? O “curtir”, nesse caso, seria “gostar” ou
“assentir”? Seria um assentimento social ou um gosto pessoal o que qualifica o curtir?
Mas voltemos.
O certo é que, ao fim, o sujeito tem mais satisfação como seu selfie quando obtém maior
retorno social, isto é, quando pode ler esse efeito nos números. E os números, assim
como as cartas, não mentem. Nem as cartomantes. É isso talvez o que explica que o
selfie anda unido a um comportamento self philico, isto é, à selfilia, ao amor inveterado
de si próprio. O comportamento selfilítico, o novo mal do século, faz com que o sujeito
não possa se furtar a atuar como o paparazzi de si mesmo, que caça e persegue a si
mesmo continuamente, a todo momento, no trabalho, na rua, no banheiro. Onde quer
que ele busque refúgio, sempre ele consegue descobrir o esconderijo e surpreender a ele
mesmo que, desde então, como nanocelebridade, não tem paz. Mesmo que ele se
esconda embaixo da cama, ele vai surpreendê-lo ali. Ele invade toda intimidade dele
mesmo.
Desde que, como caçador de selfies, cada um pode se entregar ao ofício de perseguir a
sua própria celebridade como seu próprio paparazzi, nenhum abrigo é suficientemente
seguro. Ou melhor, nada é minimamente indevassável. Para começar, o próprio
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Facebook tem o nome do antigo portfólio das modelos, com que apresentavam sua
mercadoria às empresas. Um perfil do Facebook sem foto, na verdade, é a maior
contradição possível no mundo contemporâneo. A foto, imagem, mesmo um mísero
avatar, enfim, qualquer representamen, perfaz a essência do apresentação de si mesmo.
Se for uma empresa, a logomarca tem esse papel.
Isso é assim porque todos passam a viver dentro do mesmo sistema de medidas, que
começa lá embaixo, com aqueles membros mais desafortunados das redes sociais, quase
sem amigos (e sem curtidas), e vai subindo em direção aos superpopulares, aos
superpops. Todos, contudo, são iguais, salvo pela diferença que uns tem muita projeção
e outros pouca, ou nenhuma. Mas todos podem ser medidos e calculados. Nisso, na
essência, são iguais. Mas como uns tem maior influencia social, tem por isso um preço
maior.
O valor do merchandising, por exemplo, é cotado pelo número de seguidores nas redes
sociais, especialmente no twitter. Quem tem 500 mil seguidores, em princípio, vale
menos do que quem tem o triplo disso. Tirando que uns ganham muito, e outros nada,
somos todos iguais. Mas a maioria das pessoas ‘lucra” com as redes sócias pela mera
multiplicação dos meios que obtém através de seu perfil para sua vida prática. Amigos,
contatos, participação em comunidades, vida digital ativa, tudo isso multiplica as
oportunidades de acessos e realizações vitais. Mas aqui também uma pessoa vale
quanto pesa. Tal como a res extensa de Descartes, que inaugura a filosofia moderna,
pelo Facebook todos os relacionamentos sociais tornam-se quantificáveis. (É
interessante notar que as informações qualitativas dos perfis, as “Informações básicas e
contato”, “Detalhes sobre”, quase sempre não são preenchidas) A máquina dos números
funciona por si só. Mede-se o número de curtidas, de amigos, de seguidores, de
compartilhamentos, etc. Cada perfil deve ser administrado, e essa administração pode
render maior visibilidade, se for mais competente. Ou seja, cada um é um empresário de
si mesmo, e um contador do profite do seu profile, digamos assim. Lucra-se consigo
mesmo, como as celebridades dos antigos circos de horrores, que se exibiam para o
deleite do público. Mas agora todos estão expostos nas vitrines e todos avaliam as
demais vitrines. O público se exibe para o público. Quanto maior o homem, maior o seu
valor nessa arena. Até alcançar as dimensões do homem elefante, e seu valor de
exibição.
iguais pelo estofo social e midiático que assumem. A diferença é que a celebridade X
tem 10 mil vezes mais seguidores que a nanocelebridade conhecida como cientista Y. E
em 99% dos casos acontece assim porque a celebridade é mais interessante e
inteligente que o cientista, e por isso tem um público maior. Raros são os cientista que
evoluíram além do vocabulário emplumado dos papagaios. E isso os torna muito
chatos. Mas o que interessa é mostrar que não existe mais traçado qualitativo que isole
categorias sociais entre si.
O característico do mundo social, como Hannah Arendt enfatizou, sempre foi promover
a diferenciação, as distinções, entre as categorias. Sempre foi assim. As sociedades dão
nomes (pai, mãe, filho, irmão, tio, chefe, etc.) e posições de dignidade aos seus
membros. Distribui as posições de hierarquias (reis, sacerdotes, escravos, etc.), de
superioridade e inferioridade, de valor ou desvalor, de respeito ou desonra, etc. Tudo
isso são qualidades. (Na verdade, há uma diferença, mas é impossível expô-la aqui)
Hoje, toda “grandeza” é numérica. Assim, o que qualifica a posição do sujeito e sua
distinção na sociedade é a sua quantidade. A sua qualidade é a sua quantidade. Todos
os sujeitos sociais estão integrados num contínuo que vai desde os menos curtidos até
os mais seguidos. Quando no início de 1945, Churchill propôs a Stalin na conferência
de Ialta fazer do Papa um aliado, ouviu a seguinte resposta: “Tudo bem. As guerras são
travadas com soldados, canhões e tanques. Quantas divisões tem o Papa?”
Essa é a questão agora. Cada um deve responder pela sua identidade dando os seus
números: “Quantas curtidas vocês tem?”. Claro que poucas vezes as pessoas têm
consciência disso. Mas intuitivamente todo mundo sabe, e não é raro ver os chamados
mendigos de curtidas implorando migalhas aos amigos: “Me curte! Me curte! Me
curte!”. A curtida é o tostão do mendigo digital. Acontece também, por exemplo, de às
vezes vazar um vídeo íntimo protagonizado por conhecidos e, nesse caso, as levas de
pedintes vociferam ensandecidas: “O vídeo! O vídeo! O vídeo! Queremos o vídeo!”
Aqui a paixão do ver (vídeos, tubes, etc.) se junta com o vício do selfie, ou seja, as
sublimes perversões do ver (escopofilia) e do ser visto (selfilia). E essa pulsão de ver
tudo não é, ela mesma, vista pelos agentes porque o “selfie” é uma espécie de pronome
irreflexivo.
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Nesse sentido, a selfie não é uma exposição do Eu mas de um desempenho, uma pose,
uma ação, um estado, um momento, realizado através da autoimagem de um
personagem que é sempre mutante. Ele expõe e registra essas mutações. Mas e o “eu”,
onde ele está? Ele está se diluindo cada vez mais. Esse processo já é antigo. Faz parte
da própria sociedade de massas, isto é, uma sociedade em que o indivíduo dotado de
uma personalidade sólida, exclusiva, típico do século XIX, é substituído pelas massas
do século XX, muito mais maleáveis, manipuláveis e mutantes pelas técnicas da moda,
da mídia, da propaganda, dos governos, etc. As redes, em especial o Facebook,
promovem a extrema massificação. Reflita-se, por exemplo, sobre o Facebook com 2
bilhões de perfis, idênticos, dotados das mesmas ferramentas, instalados dentro das
mesmas caixas cinzas com limitadas possibilidades de edição. O que é isso? É como
uma cidade planejada, um conjunto habitacional de dimensões monstruosas, que se faz
possível devido à sua extrema simplicidade e padronização.
Enquanto na vida diária somos obrigados a cultuar o segredo (das senhas), a nos dividir
permanentemente entre o presencial e o virtual (o que irá se radicalizar com o “Uber
Humano”), entre a rotina e a imagem que postamos nas redes, entre os múltiplos
interesses que surgem na navegação (como a inúmeras janelas que abrimos em um
navegador), o selfie expressa apenas um ponto instável, que logo irá ser substituído,
sempre apontando para além de si mesmo, rapidamente tornando-se obsoleto, como que
uma ruína de uma imagem. Novas imagens, novos vídeos, novas lives, devem ser
providenciadas para substituir a morte precoce dos anteriores. O mundo digital reduz
rapidamente à escombros tudo que nele é exposto. Assim, como faz consigo mesmo:
espaços de armazenamentos, velocidades de conexão, etc., logo tornam-se reduzidas e
até desprezíveis diante das inovações.
Assim, a exposição da intimidade, mesmo o que antes era resguardado com tabus como
o mais íntimo, a vida sexual, já não é mais tão grave, uma vez que a intimidade perdeu
o seu peso (grave significa pesado). Além disso, no fluxo constante, toda exposição,
logo se torna ultrapassada e se converte em ruínas. E a curiosidade que ela desperta, só
se mantém se for insistentemente realimentada. Como faz o clã kardashian. Ou seja, ao
fim, para quem quer se valer dela, a exposição da intimidade reverte em forma de
produzir capital.
Esse assunto poderia continuar procurando-se entender a relação dele (em particular, da
exposição da intimidade) com a era dos reality shows, que vai envelhecendo, e como
nos dois casos, uma mesma ideia de gozar pela semi-delinqüencia de ultrapassar uma
linha divisória entre o acesso e a invasão, entre o que seria interdito e o que se poderia
ver, estão em ação. Tudo deve se tornar transparência, e o modelo de invasão ou do
atentado contra a intimidade (Pânico na TV, CQC, etc.) é uma forma de entretenimento
que é muito bem remunerado justo por oferecer ao seu público a perversa demolição da
privacidade. Uma privacidade já reduzida ao mínimo, rala e suspeita, já que aqueles que
se sentem feridos por essa invasão, que coloca centenas de milhares de olhos pelo
buraco da fechadura, é em geral aquela celebridade que, também ela, deve profanar sua
própria privacidade para obter visibilidade no mercado. O conceito dos programas
citados é só o de um surf parasitário da visibilidade instalada pelo número e a demolição
da intimidade. Ou seja, um surf sobre o selfie.