Vous êtes sur la page 1sur 102

NO CÉU NOS

RECONHECEREMOS

PELO
Pe. F. BLOT, DA COMPANHIA DE JESUS

VERSÃO DA 19ª EDIÇÃO FRANCESA


PELO
Pe. FRANCISCO SOARES DA CUNHA

LIVRARIA APOSTOLADO DA IMPRENSA


Rua da Boavista, 591
PORTO
2

Imprimi Potest.
Olysipone, die 1 Januarii, 1952
Julius Marinho, S. J
Præp. Prov. Lusit.

Pode imprimir-se
Porto, 29 de Janeiro de 1952
Mons. Pereira Lopes, Vig. Geral

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


3

ÍNDICE

PR ÓLO GO

I – Ocasião e motivos desta obra...................................................................... 5


II – Juízo que dela fazem alguns eminentes bispos e sacerdotes...................... 6
III – Vantagens desta publicação...................................................................... 12

CARTAS DE CONSOLAÇÃO

1 – Estado da questão ..................................................................................... 15


2 – No Céu todos se conhecem ....................................................................... 27
3 – Resposta a algumas objeções .................................................................... 37
4 – Oremos pelos pecadores mesmo despois da sua triste morte
(Apêndice à 3ª. Carta) ................................................................................ 53
5 – Reconhecimento dos parentes ou a família no Céu ................................... 59
6 – Reconhecimento dos amigos, ou a amizade no Céu ................................. 63
7 – O homem conhece os anjos, ou a união dos anjos e dos homens no Céu.. 83
8 – Conclusões práticas ................................................................................... 93

ORAÇÕES PARA TORNARMOS A VER NO CÉU AS PESSOAS


QUE NOS SÃO QUERIDAS

1) Oração à Santíssima e adorável Trindade ................................................ 103


2) Oração a Nosso Senhor Jesus Cristo ........................................................ 105
3) Oração à Santíssima Virgem, a S. José e a todos os Santos ..................... 107
4

INTRODUÇÃO
I
No princípio do ano de 1859, numa cidade do Oeste, onde ensinávamos
teologia, soubemos que um pregador dissera, da cadeira da verdade, que os membros
da mesma família não se reconheceriam no Céu.
Entre os seus ouvintes encontrava-se um ancião que ao ouvir isto se afligiu
muito, porque tinha perdido a sua virtuosa esposa, que sempre esperara tornar a ver
junto de Deus. Foi confiar sua aflição ao seu confessor, que era o Superior da mesma
casa que habitávamos.
Este, sabendo que andávamos procurando nas obras dos Padres da Igreja os
materiais necessários para a composição duma obra, que esperávamos publicar um
dia, sobre o dogma da comunicação dos santos, convidou-nos especialmente a
recolher todos os testemunhos que assegurassem que os parentes e os amigos se
reconhecem na eterna bem-aventurança.
Disse-nos que estas autoridades nos serviriam para consolar as almas, e disse a
verdade; tivemos a prova disto três anos depois, em seu próprio país.
Corria o ano de 1862, e pregávamos a Quaresma na catedral duma cidade do
Leste. No fim duma instrução mostramos a família recomposta no Céu. Este quadro
pareceu próprio a regozijar santamente uma viúva e uma mãe angustiada, bem
conhecida em toda a cidade por sua virtude, mas a quem uma indisposição tinha
impedido de ir ouvir-nos.
Uma de suas parentes que ela amava ternamente contou-lhe, em resumo, o que
tínhamos desenvolvido, e veio da sua parte suplicar-nos que lho déssemos por
escrito.
Pouco tempo depois, a piedosa senhora reiterava-nos pessoalmente esta súplica
e contava-nos que, muitos anos antes, tendo perdido uma de suas filhas ainda jovem,
quisera consolar-se com a esperança de tornar a vê-la no Paraíso, mas que um
eclesiástico a repreendera severamente, porque esta esperança, segundo a sua
opinião, não tinha fundamento algum, e que nutrir-se dela era uma grande
imperfeição, pois que só Deus nos deve bastar.
Uma resposta tão dura não satisfazia nem o seu espírito nem o seu coração.
Como um dos seus filhos era então aluno da Companhia de Jesus, no célebre colégio
de Friburgo, na Suíça, suplicou ao padre Reitor que o fizesse acompanhar até a casa
no tempo das férias mais próximas, por um religioso que a instruísse sobre este
ponto, a fim de assegurá-la e tranqüilizá-la, sendo possível.
5

As exagerações duma certa escola tinham, pois, formado como que uma nuvem
que ocultava aos olhos dum grande número de pessoas aflitas, o vivo resplendor
desta verdade tão consoladora: No Céu nos Reconheceremos. Se lhe não negavam
absolutamente a existência, via-se pouco, e mostrava-se ainda menos todo o bálsamo
que encerra para adoçar as mais cruéis dores.
Foi o que determinou a pessoa de que temos falado, digna de todos os nossos
respeitos e atenções, a pedir-nos instantemente estas Cartas de Consolação, nas
quais nos esforçamos em apresentar a verdade com toda a sua clareza, para que o
coração aflito a veja, sinta e se regozije.
Pelo mesmo motivo, muitos de nossos leitores desejariam encontrar aqui as
altas aprovações que recebemos. Fomos graciosamente autorizados a satisfazer um
desejo que tende unicamente a tornar este opúsculo ainda mais consolador.
Estes testemunhos são efetivamente um novo alívio para as almas provadas por
uma cruel separação; servem de lição para todos, e são uma censura para os
contraditores, antes que um elogio para um escrito sem importância e sem
merecimento. Longe de assemelhar-se a essas obras doutrinais que têm um grande
alcance, não é mais do que um tecido de citações onde o coração dos santos e dos
doutores está aberto para que a alma atribulada tire daqui as consolações de que tem
necessidade.
Contudo, seria necessário atrair a atenção dos homens para uma coisa em si tão
simples e tão evidente?
Eis o que a este respeito nos dizem pessoas de autoridade indiscutível:
– Monsenhor Dupanloup, Bispo de Orleans:
“Desde há muito tempo que fazia votos para que uma tal obra saísse a
público”.
– Monsenhor Filion, Bispo de Mans:
“Li com vivo interesse o opúsculo – No Céu nos Reconheceremos. As verdades
que com tanta felicidade exprimistes, servindo-vos da linguagem da Escritura e dos
Santos Padres, são mui necessárias a todos durante o exílio da vida presente; e é isso
o que poderosamente concorrerá para que o seu livro tenha uma grande extração.
Faço sinceros votos para que assim aconteça”.
Um veterano do Sacerdócio, um dos padres mais experimentados que possuía a
Alsácia, M. F. Muhe, dizia-nos: “0 seu livro é um bálsamo para a alma aflita pela
perda de seus parentes. Ai! e quantas vezes no nosso santo ministério não temos nós
ocasião de difundir este bálsamo! Fez, pois, um grande serviço, com a edição deste
excelente pequeno tratado, não só aos fieis, mas ainda a todos os padres encarregados
da direção das almas. Além disso, esta matéria é mui raras vezes tratada nas mesmas
obras teológicas. Portanto, exerceu por este motivo uma boa obra de misericórdia –
consolar os aflitos”.
Monsenhor Pie, Bispo de Poitiers, escrevia-nos: “O seu pequeno livro – No
Céu nos Reconheceremos – é uma verdadeira pérola engastada em textos seletos dos
Padres da Igreja. Li-o com fruto e consolação, e regozijo-me com a esperança do
6

grande alívio que levará a certas almas faltas de doutrina sobre este ponto, ou que
facilmente se têm deixado impressionar pelos ditos dalguns pseudo-teólogos que se
crêem sempre mais próximos da verdade, quando se mostram mais severos.
Obrigado, pois, meu querido Padre, por todo o bem que há de fazer este pequeno
volume”.
Sua Exa. não se contentou só com esta aprovação. O “Courrier”, jornal de
Viena, de 6 de Novembro de 1862, terminava assim um longo artigo sobre o nosso
livro:
“Acrescentarei como o mais belo elogio, que, em sua eloqüente homilia da
festa de Todos os Santos, Sua Exa. aconselhou a todos a leitura e a meditação destas
páginas consoladoras, ditadas pela fé e pelo coração.
A obra do R. P. Blot, efetivamente, tem um lugar distinto em todas as
bibliotecas cristãs e sobre a mesa de todas as famílias piedosas que conservam
fielmente o culto e a memória de seus membros falecidos”.
0 padre Gratry escrevia-nos rapidamente as seguintes linhas: “Li o seu livro.
Propaguei-o por dezenas, e tenho-o feito propagar. Li-o com avidez, tão ligeiramente
que talvez mesmo omitisse algumas páginas, mas tornei-o a ler.
A idéia que teve não podia ser mais feliz. Fez absoluta justiça, uma vez para
sempre, duma verdadeira perversão jansenista acerca da idéia da vida futura.
Edificou-me e instruiu-me plenamente sobre este ponto.
Ignorava, confesso-o, quanto a sua tese é teológica e incontestável em presença
de tantas autoridades. Tinha a firme convicção, mas não a ciência teológica desta
verdade.
Agradeço-lhe vivamente, meu bom Padre, por ma haverdes dado. Agradeço-lhe
o bem que tendes feito e fareis a milhares de almas, a quem muitas vezes o próprio
diretor espiritual, como dizeis, hesita em consolar sob este ponto de vista. Não se
hesitará mais”.
Poderiam ainda outras causas tornar oportuno o nosso trabalho?
Monsenhor Darboy, Arcebispo de Paris, dignou-se escrever-nos depois de ter
lido os opúsculos – No Céu nos Reconheceremos e as Auxiliadoras do Purgatório:
“Quero unir o meu voto às felicitações, que lhe atrairão de todas as partes estes
livros cheios de doutrina e de piedade. Há muitos motivos de abrir diante de nossos
contemporâneos os horizontes da outra vida, e de premuni-los contra as ilusões e
atrativos desta.
Olho, pois, como oportunas e mui úteis estas curtas, mas substanciosas
páginas, onde excitais a piedosa compaixão dos vivos a favor dos mortos, e
reanimais nos corações o desejo do Céu. É para mim um dever, assim como uma
satisfação, aplaudir o merecimento do seu trabalho e animar os seus estudos. Suplico
a Deus que lhe aplique as suas melhores graças e o gênero de triunfo que lhe é mais
caro, quero dizer, à edificação das almas”.
7

II

Mas conviria tratar um objeto tão mavioso em presença duma geração a quem
o trovão da divina vingança e os estilhaços do raio dificilmente despertam do seu
letargo?
Monsenhor Malou, Bispo de Burges, respondendo a um amigo, escrevia-lhe:
“Acabo de ler o opúsculo No Céu nos Reconheceremos. Pergunta-me o que
penso a seu respeito. Todas as obras que tratam do Céu, da sua felicidade, da sua
eternidade, etc., causam-me muito prazer, porque são estas que em nossos dias
produzem nas almas o maior bem. Outrora recolhiam-se maiores frutos, ao que
parece, falando da Morte, do Juízo e do Inferno. O temor tinha então mais poder do
que o amor. Hoje o amor é mais poderoso para converter os corações.
É, pois, o amor que convém inspirar, não só para firmar os justos, mas também
para converter os pecadores.
O objeto de que trata este livro é cheio de interesse. Responde a uma pergunta
que as pessoas piedosas nos dirigem repetidas vezes: ‘Reconhecer-nos-emos no
Céu?’ Sim, certamente, reconhecer-se-ão reciprocamente as almas e se amarão, e este
amor fará parte da felicidade acidental do Céu. Segundo a minha opinião, o autor é
exato e nada exagera. Se tem algum defeito, é, talvez, o de não ter esgotado o assunto
de que se propôs tratar.”
O autor diz que o sábio prelado entra, depois disto, em considerações que lhe
teriam sido dum grande auxílio se quisesse tratar este assunto debaixo doutro ponto
de vista e com mais extensão; mas que, por uma parte, pessoas muito autorizadas o
aconselharam a conservar neste opúsculo a sua primitiva filosofia; e que, por outra, a
nobre senhora, a quem foram dirigidas estas cartas de consolação, tinha rendido
naquela ocasião a sua bela alma a Deus, e que por isso lhe não era permitido
acrescentar novas cartas às antigas, mas que unicamente lhe parecera conveniente
completar estas, porque junto às orações que vão no fim deste opúsculo, lhe
aumentarão muito interesse.
Em seguida, discorre sobre as considerações de Monsenhor Malou, e diz por
conclusão, que quase todas estas provas se acham melhor desenhadas, mais
claramente enunciadas, e têm ao mesmo tempo mais desenvolvimento e precisão nas
seguintes páginas do mesmo ilustre prelado:
“A sociedade dos santos, me dizia eu, constitui a Jerusalém Celeste, a Santa
Sião, a cidade de Deus. Mas uma cidade tem os seus magistrados e seus príncipes,
assim como os seus cidadãos. Supõem, entre as pessoas que a compõem, relações de
superioridade e de subordinação na ordem moral, relações que não podem existir sem
mútuo conhecimento”.
8

“A sociedade dos santos é a família de Deus; família espiritual, transportada da


Terra ao Céu, família de que Maria é ainda Mãe e distingue seus filhos muito
amados. Ora, pode conceber-se uma família cujos membros não se conheçam entre
si? Poderá acontecer que os filhos conheçam seu pai e sua mãe, sem que os irmãos e
as irmãs tenham relações fraternais?”
“A sociedade dos santos forma uma hierarquia celeste, à imitação da dos anjos,
se todavia se não confunde”.
Ora, nós sabemos que os anjos se conhecem entre si, visto que as ordens
superiores iluminam as inferiores, e que todos se auxiliam mutuamente em louvar,
bendizer e adorar o Deus três vezes santo.
Os bem-aventurados obrarão da mesma forma, e visto que os santos anjos os
conhecerão como substitutos dos anjos caídos, eles também conhecerão os anjos, e se
conhecerão reciprocamente.
“Além disto, não é a Igreja Militante uma, ainda que imperfeita, imagem da
Igreja Triunfante? Sendo assim, como é na realidade, a Igreja Triunfante conservará,
pois, em seu seio o selo – permita-se-nos a expressão – da Igreja Militante.
Quero dizer que a ordem e harmonia que reinam cá na terra entre os filhos de
Deus, a fim de se prepararem para a felicidade do Céu, passarão com eles à habitação
dos escolhidos.
Assim, os pastores se encontrarão no Céu à frente dos seus rebanhos; os bispos
à frente dos fieis das suas dioceses; os Soberanos Pontífices à frente de toda a Igreja
Católica; os Patriarcas das Ordens Religiosas à frente de suas famílias espirituais e de
todos aqueles que seguiram a sua regra, trouxeram o seu hábito e imitaram o seu
exemplo.
Mas esta ordem e esta harmonia repousam sobre o conhecimento recíproco das
pessoas, e sobre as relações da ordem moral que, sem conhecimento recíproco, são
impossíveis.
A mesma natureza da bem-aventurança celeste fornece, a este respeito, provas
irrefutáveis.
Esta bem-aventurança repousa completamente sobre a visão beatífica, isto é,
sobre a vista intelectual da Divindade.
E que é a vista intelectual senão o conhecimento e a ação do espírito? O
desenvolvimento e a ação da inteligência será, pois, de alguma sorte, a medida da
felicidade do Céu.
A felicidade resulta, é verdade, do amor; mas este é necessariamente
proporcionado ao conhecimento que se tiver do objeto da sua felicidade. Não se ama
o que se ignora, e ama-se infinitamente o que se conhece como infinitamente amável.
A inteligência é, pois, a faculdade pela qual os bem-aventurados apreendem e
se apossam da felicidade; e poderia supor-se nos escolhidos uma completa ignorância
de tudo o que os rodeia e interessa no mais alto grau?
Poder-se-á crer que gozem do conhecimento da essência de Deus, e que nesta
essência não contemplem os gozos que dela tiram os outros bem-aventurados? Isto é
9

inteiramente impossível. O poder que adquiriu o seu espírito para contemplar a


Divindade, origem de toda a felicidade, auxilia-os poderosamente a conhecer aqueles
a quem a essência divina beatifica e enche de felicidade. Não gozam somente do raio
de luz que os põe em contato com a Divindade, mas também do oceano de claridade
que os inunda e põe em relação com todas as felicidades do Céu.
“Ainda que a felicidade essencial dos escolhidos consista na visão e posse da
essência divina, todavia sua bem-aventurança completa-se e acaba-se, se assim posso
falar, pelo conhecimento que adquirem da felicidade dos amigos de Deus”.
No Céu, como na Terra, Deus recebe não somente homenagens isoladas, mas
também coletivos louvores de todos os seus filhos reunidos.
Demais, por que no Céu estas auréolas ou sinais particulares de virtude e de
glória? Por que trarão os mártires, as virgens, os confessores, os doutores, etc., um
sinal distintivo no meio da luz comum, senão para serem mais facilmente
reconhecidos e glorificados por seus irmãos? Certamente não é para atrair a vista da
Divindade ou dos anjos, que estes selos particulares de merecimento e de glória são
necessários, mas sim para atrair a vista dos outros escolhidos.
Os bem-aventurados reconhecerão, pois, e distinguirão os mártires dos
confessores e das virgens; e, reconhecendo inteiramente seus merecimentos,
reconhecerão também suas pessoas. Há, pois, entre os bem-aventurados uma série de
mútuas relações de admiração, de felicitações, de aplausos e de reconhecimento, que
supõe um conhecimento pessoal, claro e direto.
Ainda mais: cremos na ressurreição dos corpos. Isto não é rigorosamente
necessário para que os escolhidos se reconheçam entre si. As almas despojadas de
seus corpos revestem formas intelectuais que as inteligências desembaraçadas da
carne podem perceber, distinguir e conhecer.
Todavia, é certo que a reunião do corpo à alma, que reconstitui a
individualidade terrestre quebrada pela morte, é um meio poderoso de distinguir os
escolhidos uns dos outros. E ainda que a ressurreição da carne tenha outros fins
sublimes, que é inútil enumerar aqui, é permitido crer que ela contribuirá também,
por sua parte, para facilitar aos bem-aventurados o conhecimento que possuírem de
seus parentes, de seus amigos e benfeitores.
Sob este ponto de vista, o dogma da invocação dos santos também nos fornece
luzes.
O apóstolo S. Pedro, escreveu aos fiéis que tinha convertido, que depois da sua
morte se lembraria deles. Estes fiéis tinham, pois, um direito mui particular de
invocá-lo depois da sua morte. Este direito temo-lo nós também, de certo modo, a
respeito de todos os santos, mas especialmente a respeito daqueles cujo nome temos,
ou que, por um título qualquer, se tornaram nossos protetores particulares.
Chegados ao Céu, os santos que conhecemos na Terra conhecem-nos ainda.
Mas que digo eu? Os santos que reinam no Céu desde há séculos, os santos
mártires que verteram o seu sangue na primeira idade da Igreja, muito tempo antes
10

do nosso nascimento, conhecem-nos e amam-nos em Jesus Cristo. Nós os invocamos


com bastante confiança e bom sucesso.
Ora, se os escolhidos nos não conhecem no Céu, é forçoso que estes bem-
aventurados protetores que nos seguiram na terra, nos percam de vista quando lá
subirmos, e deixem de se interessar pela nossa felicidade.
Mas, isto é impossível.
Longe de se quebrarem, quando subimos ao Céu, as cadeias de amor que nos
unem aos santos; fortificam-se, pelo contrário, e estreitam-se ainda mais.
A fé e a esperança deixam então de existir; mas a caridade permanece sempre.
Os santos que nos conheciam na terra conhecem-nos quando chegamos ao Céu; e
como esta prerrogativa é essencialmente comum a todos os escolhidos, todos estes se
conhecem mutuamente por toda a eternidade.
Enfim, se os bem-aventurados se não reconhecessem uns aos outros, que idéia
se poderia fazer da felicidade do Céu? Seria necessário imaginar-se uma multidão de
seres separados uns dos outros, sem ação nem relações recíprocas, imóveis,
absorvidos numa contemplação imutável, e de alguma sorte materializada.
O espírito e o coração dos escolhidos seriam absorvidos, concedo-o, no
conhecimento e no amor da natureza divina, mas o seu todo não formaria nem uma
sociedade de amigos, nem a família espiritual, nem a Cidade de Deus.
O Céu não seria a habitação de delícias onde todas as faculdades da alma
racional têm uma ação própria, concorrendo para a felicidade desta alma e dos outros
escolhidos; tornar-se-ia, permita-se-me a expressão, uma espécie de prisão celular,
onde as almas, cativadas pela felicidade essencial da visão beatífica, não saberiam o
que se passa em volta delas, e viveriam numa espécie de isolamento sem motivos.
“Atenhamo-nos, pois, à imagem da sociedade dos santos, onde a caridade reina
como soberana; à da família de Jesus e de Maria, cujos membros todos se conhecem
e amam; à do Reino de Deus, onde tudo se passa com ordem e harmonia para maior
felicidade de todos.
Estas idéias, e algumas outras ainda, apresentaram-se ao meu espírito enquanto
lia o opúsculo do R. P. Blot, donde concluo que é a ele que as devo.
Agradeço-lhe mui sinceramente por mas ter sugerido, e reenvio-lhas como uma
dívida de reconhecimento. Possa o seu excelente livro derramar o bálsamo da
esperança cristã em muitas almas aflitas e, fazendo inteiramente sentir os laços
espirituais que nos unem entre nós, unir-nos cada vez mais no Senhor!
Depois do que acabo de dizer é inútil declarar que aprovo o livrinho e que
desejo vê-lo espalhado pela minha diocese”.
Nunca o nosso reconhecimento será demasiado para com a memória do
venerando prelado que, apesar das dores duma cruel enfermidade a que devia em
breve tempo sucumbir, se dignou escrever-nos de seu próprio punho uma tão longa e
benévola carta.
Ela permite-nos esperar que este humilde trabalho fará algum bem às almas,
sobretudo àquelas que, não tendo uma fé assaz viva, murmuram contra a Providência
11

por ocasião da perda dum ente querido, e são tentadas a abandonar as práticas da
piedade cristã.
12

III

Esta esperança é-nos dada ainda por Monsenhor Wicart, Bispo de Laval:
“Li, diz ele, com muito prazer e fruto o seu livro – No Céu nos
Reconheceremos.
Continuai, meu bom Padre, a escrever obras tão piedosas e atraentes ao mesmo
tempo; muitas pessoas vos deverão a felicidade de se resolverem a marchar com
passo firme no caminho que conduz à pátria celeste, onde se tornarão a encontrar
para viverem eternamente em Deus”.
O sr. Hamon, pároco de S. Sulpício, escrevia-nos assim:
“O seu agradável opúsculo é muito próprio para consolar tantas pobres almas
aflitas, que, tendo gozado na terra a felicidade de amarem certas pessoas queridas,
têm dificuldade em conceber que se possa ser feliz longe delas.
Sem dúvida, Deus só, basta ao coração; mas a parte sensível da nossa alma tem
repugnância de se elevar a esta verdade; e se o conhecimento que tivermos uns dos
outros no Céu não aumentar a felicidade essencial no seio de Deus, a esperança deste
conhecimento aumentará imensamente a nossa consolação nesta vida. É o fim que
vos propusestes, e que haveis perfeitamente conseguido.
O seu livro é, pois, uma boa obra, um verdadeiro ato de caridade que lhe
agradeço pela minha parte”.
O bem que produziu este opúsculo prova-se por cinqüenta mil exemplares em
língua francesa, espalhados no espaço de quatro anos; pelas numerosas traduções
feitas no estrangeiro; pelos novos opúsculos que suscita cada ano sobre o mesmo
objeto, e por fatos que nos têm sido contados muitas vezes.
Aqui é uma mulher do mundo, sem alguma piedade que, por ocasião da morte
de seu único filho, recebe de uma de suas amigas estas cartas de consolação;
percorre-as e resolve-se a mudar de vida para estar segura de ir reunir-se no Céu ao
pequeno anjo que a precedeu.
Ali é um homem ainda jovem que, na morte imprevista de sua muito amada
esposa, é tentado pelo desespero, mas encontra entre os livros da defunta o opúsculo
– No Céu nos Reconheceremos. Lê-o com empenho, e sente-se inteiramente
mudado. Vai confessar-se, comunga e marcha daí por diante sobre as pisadas de sua
virtuosa esposa, na esperança de se lhe reunir para sempre junto de Deus.
Acolá é uma filha cujo pai, à hora da morte, tinha dado todos os sinais
exteriores de impenitência. Ela olhava como inútil tudo quanto pudesse fazer em
benefício de sua alma; mas lê o apêndice à terceira carta e toma a resolução de
multiplicar as suas orações e sacrifícios por esta alma tão querida, até ao último
instante da sua vida.
13

O bom resultado que tem obtido este modesto escrito foi uma doce consolação
para a alma sensível que no-lo pediu, e que quis aliviar-se a si, aliviando os outros.
Ela mesma nos escreveu:
“Sou-lhe, por certo, devedora de muitas consolações e bons desejos. Tendes
sempre a delicadeza de me dar parte dos bons resultados do livrinho - No Céu nos
Reconheceremos. Agradeço-lhe de todo o meu coração.
Quando penso que foram os meus suspiros e as minhas lágrimas que tiraram do
seu coração esta excelente obra, não me canso de admirar a Providência que, dum
grão de mostarda, formou uma árvore onde repousam as almas aflitas”.
Ai! a morte levantou de novo a sua espada, por bastante tempo suspensa, e
descarregou um terrível golpe, arrancando ainda a esta pobre mãe uma filha muito
querida. Mas a graça deu-lhe alguma semelhança com Maria, por meio duma
religiosa resignação: “Consagrei-me, diz ela, a esta boa Mãe no mais terrível
momento da minha dor, e ela me auxiliou. Ainda que me não foi dado ficar de pé
como ela junto da cruz, fiquei assentada, e não a tenho abandonado. Esta graça, foi
ela que ma obteve”.
Possam todas as mães, a quem a morte arrebata um filho, invocar e imitar
assim aquela que viu crucificar seu Filho único!
Possam todos aqueles que lerem este livro recorrer à Consoladora dos Aflitos, e
ficar pelo menos assentados ao pé da Cruz, se junto dela não puderem permanecer de
pé.
A virtuosa viúva, cujas palavras há pouco citamos, assemelhava-se, desde há
muitos anos, àquelas árvores fecundas e robustas que são abatidas, cortando-se uma
após outra as suas raízes, e algumas vezes os seus principais ramos.
Deus tirou-lhe, pouco a pouco, os ramos brotados da sua fecundidade;
desprendeu-a da terra onde a retinham profundas raízes, preparando-a para cair sem
muita dificuldade.
Tempo antes, a sua queda, isto é, a sua morte teria mergulhado na dor a seu
esposo e a seus numerosos filhos. Agora aqueles que a precederam no Céu vão
regozijar-se, pois vêem que a morte só a inclina para a terra, a fim de apressar a sua
reunião com eles na pátria celeste.
Aqueles que ficam neste mundo, como estas tenras vergônteas que ela via
crescer junto de si, vão adoçar, pelos testemunhos do seu amor, o momento da
separação. Mas, antes de chamá-la a si, Deus reservava-lhe uma grande alegria.
A 12 de Março de 1865, a Senhora *** assistiu, em Paris, à primeira missa do
mais jovem de seus filhos, e recebia de suas mãos a Sagrada Comunhão. Deste modo
tinha um ante-gosto da felicidade que gozarão os pais na glória, quando se virem
com seus filhos assentados ao banquete do Senhor.
Pela sua parte, o novo padre, por mais ocupado que estivesse de Deus e do
Augusto Sacrifício, conservava em sua alma a viva lembrança de sua família, e não
se esqueceu de sua mãe, orando pelos vivos, nem de seu pai, orando pelos mortos.
14

Quando desceu os degraus do altar para dar o Pão dos Anjos àquela que lhe
havia dado o ser, distinguiu-a, sem dúvida, entre todas as outras pessoas queridas a
quem ia administrar a Sagrada Eucaristia, e as pulsações de seu coração lhe fizeram
sentir que, se é doce para um filho reconhecer sua mãe à mesa eucarística, será muito
mais doce ainda reconhecê-la no eterno banquete dos Céus.
Feliz, mil vezes feliz a mãe cristã que deixa depois da sua morte, para
continuar o hino começado por ela à glória do Senhor, um filho sacerdote, ministro
de Jesus Cristo, uma filha no claustro, esposa do mesmo Jesus Cristo, e um filho no
século à frente de uma família onde se perpetua a fidelidade a Jesus Cristo, a
dedicação à sua Igreja e a misericórdia para com os seus pobres!
A Senhora *** teve esta rara felicidade, antes de adormecer no Senhor, a 4 de
Março de 1866, tendo sessenta e nove anos de idade. Podem-se-lhe aplicar sem
exageração nem lisonja, estas santas palavras:
– Ela passou fazendo o bem (Act. X, 38);
– A sua memória não se apagará jamais, e o seu nome passará de geração em
geração (Eccles. XXXIX 1,3); – Os seus filhos se levantaram e a proclamaram bem-
aventurada (Prov., XXXI, 28);
– Regozijar-vos-eis em vossos filhos, porque eles serão abençoados e se
reunirão todos junto do Senhor (Tob., XIII, 17);
– Desprezei todas as vaidades do século por amor de Jesus Cristo que
contemplei, que amei, em quem cri firmemente e a quem dei todo o meu coração
(Brev. Rom. Commune non Virg., R. VIII).
Os restos mortais da Senhora *** foram depostos no mesmo túmulo em que
seu marido e três de suas filhas a haviam precedido, e pareciam esperá-la, a fim de
que seus ossos, aproximando-se sob a terra, fossem como que uma prova de que suas
almas se tinham reunido no Céu; porque o desejo de ser sepultado junto de um
parente ou de um amigo foi muitas vezes olhado como expressão de um outro desejo,
de uma piedosa esperança: a de se reunirem um dia na pátria celeste, junto de Deus1.
Agora, quando o seu filho se prepara a fim de celebrar a Santa Missa e volta as
folhas do missal, encontra muitas vezes diante dos olhos um título que faz estremecer
o seu coração: Pro pater et mater – por meu pai e minha mãe.
E que diz o padre nestas orações? Três vezes pede que reconheça seus pais na
eterna bem-aventurança:
“Ó Deus, que nos mandastes honrar nosso pai e nossa mãe, tende piedade das
almas de meu pai e de minha mãe; perdoai-lhes os seus pecados; fazei que eu os veja
no gozo da eterna claridade; reuni-me com eles na felicidade dos santos; e permiti
que a vossa eterna graça aí me coroe com eles!”.

1
Amsaldi, Della speranza et della consolazione di rivedere i cari nostri nell’altra vita, cap. XVI, pag. 174
15

NO CEU NOS RECONHECEREMOS


Cartas de Consolação

PRIMEIRA CARTA

Estado da questão

É permitido afligir-nos pela morte dos nossos parentes,


contanto que não cessemos de esperar. – Testemunho de
Santo Agostinho. – Prática da Igreja – Palavras de S.
Paulino. – Exemplo de Jesus Cristo.

SENHORA,

A morte descarregou o seu terrível golpe junto de vós, sobre as pessoas que vos
eram mais caras. A vossa dor é extrema, e é legítima, ainda que não duvideis da
eterna salvação daqueles cuja falta lamentais.
Por que motivos vos será proibido chorar por vossos parentes e amigos que
adormecem no Senhor, contanto que, seguindo o conselho do Apóstolo, vos não
entristeçais como os que não têm esperança? (I Thess. IV 12).
Santo Agostinho comentava assim estas palavras:
“É natural entristecermo-nos com a morte daqueles que nos são caros, pois que
a natureza tem horror à morte, e a fé nos ensina que ela é um castigo do pecado.
A tristeza é uma necessidade: Hinc itaque necesse est ut tristes simus,
quando aqueles que amamos deixam de existir. Porque, ainda que saibamos que nos
não abandonam para sempre, como aconteceria se devêssemos ficar sempre na terra,
mas que nos precedem pouco tempo, porque estamos destinados a segui-los talvez
muito breve; todavia, como não contristaria o sentimento do nosso amor a inexorável
morte que se apodera do nosso amigo?
Que seja permitido, pois, aos corações amantes entristecerem-se com a morte
das pessoas amadas, contanto que haja um remédio para esta dor e uma consolação
para estas lágrimas, na alegria que a fé nos faz gozar, assegurando-nos da sorte de
16

nossos queridos defuntos, que se apartam somente por algum tempo de nós e passam
a melhor vida.”2
A Igreja, pelo seu exemplo, permite-nos chorar, e pelo seu ensino ordena-nos
esperar.
Como nós, toma luto por ocasião da morte de nossos parentes, e a sua voz,
como a nossa, é cheia de tristeza.
Com o tato, que é particular às mães, e que elas sabem empregar em todas as
coisas para se tornarem mais persuasivas, a Igreja, tem-se dito, pede de empréstimo à
dor as suas lúgubres harmonias, tão bem adaptadas ao estado da alma aflita, que crê
mitigar a sua dor nutrindo-se da mesma dor.
Mas, misturando os seus gemidos com os nossos gemidos e as suas lágrimas
com as nossas, declara-nos, em nome de Deus vivo, que o que julgamos ser uma
morte, não é mais do que uma separação momentânea, um ponto fixo de reunião que
a pessoa tão chorada nos dá na habitação da vida, onde a reencontraremos em breve
tempo para não mais a perdermos.
Acrescenta que, “mesmo na terra, não acabou tudo entre nós e esta alma; que
ainda podemos amá-la e sermos dela amados, apesar da morte”.
A mesma Igreja ainda no-lo mostra na morada dos sofrimentos, implorando
com voz aflitiva o fraternal tributo de nossas esmolas, de nossas orações e de nossas
boas obras. Ou então, no-la faz ver já revestida da incomparável beleza do Céu, e
repousando no seio de Deus, donde sobre nós lança olhares duma doçura e ternura
inefáveis; faz-nos vê-la, preparando-nos com amor um lugar a seu lado, e oferecendo
a Deus incessantemente as suas mais ferventes orações a fim de obter-nos o
merecimento de possuí-la e de nunca mais a perder”3.
S. Paulino, Bispo de Nola, consolou a Pamáquio, por ocasião da morte de
Paulina, sua mulher, filha de Santa Paula e irmã de Santa Eustáquia.
O virtuoso esposo vertia lágrimas tão abundantes como as suas esmolas. Que
vai fazer o seu amigo? Irá censurar estas lágrimas? Louva-las-á pelo contrário, e
colherá nas Sagradas Escrituras todos os exemplos de santas lágrimas vertidas por
ocasião da morte duma pessoa querida.
Depois acrescentará: “Para que censurar as lágrimas dos santos mortais? Não
chorou o mesmo Jesus a morte de Lázaro, a quem amava?”

2
Santo Agostinho, Serm. 172, no. 13.
3
Marc, Le ciel, apêndice sobre o amor beatífico, cap. I.
17

Não se dignou Ele condoer-se da nossa desgraça, até derramar lágrimas sobre
um morto? Não se dignou chorar, acomodando-se à fraqueza humana, aquele a quem
ia ressuscitar por um efeito da sua divina virtude?
“Eis o motivo, ó meu irmão, por que vossas lágrimas são piedosas e santas”:
Idcirco et tuae, frater, lacrymae sanctae et piae. Porque uma semelhante afeição as
faz correr; e se chorais uma digna e casta esposa, não é porque duvideis da
ressurreição, mas porque vosso amor tem pesares e desejos4.
Diante daqueles que vos repreenderem de vossas lágrimas, abri, pois, o
Evangelho, e por única resposta, apontai-lhes com o dedo estas palavras de S. João:
Et lacrymatus est Jesus – e Jesus chorou; e ainda as seguintes: Et turbavit seipsum –
e se perturbou a si mesmo. (Joan., XI, 33, 35 ).
Mostrai-lhes estas linhas dum escritor que há bem merecido de todas as
pessoas aflitas:
“Jesus quis privar-se desta doçura que se encontra no sossego da aflição, quis
ser perturbado. A sua natureza divina não lhe permitia sê-lo senão tanto quanto ele
mesmo concorresse para esta perturbação; foi isso o que fez; assim no-lo diz o
Evangelho.
Depois dum semelhante exemplo, não mais atribuamos à nossa imperfeição as
lágrimas que a aflição nos arranca, nem a perturbação em que ela nos lança: Jesus
chorou, Jesus perturbou-se.
É necessário, porém, que esta perturbação não degenere em inquietação, para
se não perder a semelhança com Jesus.
Não é do agrado de Deus que eu desaprove as lágrimas de um esposo que,
depois de ter levantado os olhos ao Céu para aí ver a sua esposa coroada de
imortalidade, os sente encherem-se de lágrimas quando, abaixando-os para a terra,
não encontra já esta companheira muito amada.
O sentimento que faz chorar a pessoa cuja companhia formava a nossa
felicidade, não poderia ser condenado, quando não é o único motivo das lágrimas que
vertemos na sua perda. Este desejo de gozar da sociedade da pessoa que se ama, é de
tal sorte natural ao homem, que Deus lhe propõe o seu complemento como eterna
recompensa de sua fidelidade em o amar durante a vida”.5

4
S. Paulino, Epist. XIII, no. 4, 5.
5
Luiz Provana de Collegno – Consolações da religião na perda das pessoas que nos são queridas, Carta
I.
18

II

Bem-aventurança essencial e bem-aventurança acidental.


– Três erros sobre esta bem-aventurança acidental citados
pelo filosofismo. – Confissão de J. J. Rousseau. –
Refutam-se estes três erros.

Gozar plenamente do que temos amado pura e santamente na terra, eis para nós
o Céu. Gozar de Deus constitui a bem-aventurança essencial.
Este gozo da criatura que nos tem sido mais querida, sem deixar de ser
secundário, torna-se para a alma uma doce consolação, desde que a morte nos
arrebata aqueles que mais amávamos; e Deus nos envia, para moderar nossos
pesares, a esperança de torná-los a ver, de reconhecê-los, de amá-los ainda muito
especialmente no Céu, e de receber deles também os testemunhos duma especial
afeição.
Quantas vezes não tem servido esta esperança de remédio a vossas feridas e de
alívio a vossas dores?
Mas, eis que muitas pessoas, aquelas mesmas cujos lábios devem guardar a
ciência e cujo coração deve ser o depositário da lei (Malach. II, 7) ousaram
primeiramente dizer-vos que não nos reconheceríamos no outro mundo, nem mesmo
no Paraíso; depois repreenderam, como uma imperfeição, o vosso vivo desejo de
possuir no Céu, além do Criador, certas pessoas ternamente queridas, vosso esposo e
vossos filhos.
Finalmente, fazem crer ao mundo que a perfeição cristã, mais ainda a vida
religiosa, esgota no coração humano a fonte da sensibilidade, para deixá-lo seco e
gelado para com seus pais, irmãos ou irmãs e seus amigos.
No Céu tudo se esquece em Deus, dizem elas. Deus não vos será suficiente? Os
santos nunca amaram senão a Deus, chamado pela Escritura um Deus cioso (Exod.,
XXXIV, 14).
Tais são os três erros que me proponho combater, escrevendo-vos estas cartas.
Aqueles que os sustentam marcham após os quietistas e jansenistas, sem o
saberem talvez, sob os estandartes do filosofismo anti-religioso.
No desejo do gozo de Deus, o quietismo via um ultraje ao puro amor e uma
brecha no desinteresse; o jansenismo, polido, mas frio como gelo, comunicava a sua
19

sequidão e aspereza a uma religião de amor. Os filósofos incrédulos aproveitaram-se


destas disposições para atacarem a Igreja e desacreditarem os padres.
Um sábio religioso de S. Domingos, tratando, no século XVIII, do objeto de
que me entretenho hoje, fazia notar esta tática da impiedade.
Entretanto tudo se concede na nossa religião, para torná-la mais amável e
consoladora, um filosofismo mentiroso atribuía-lhe dogmas sombrios e
desesperados, que lhe arrebatam toda esta força atrativa de que necessita para levar
as almas a amarem e a seguirem a Jesus Cristo6.
Quereis um exemplo disto? Rousseau fez dizer por uma pessoa moribunda:
“Cem vezes tenho recebido grande satisfação em fazer alguma boa obra, imaginando
minha mãe presente, que lia no coração de sua filha e aplaudia. Tem alguma coisa de
consolador viver ainda sob os olhos da pessoa que nos foi querida! Isto faz que
sintamos a sua morte só por metade”. Mas que sentimentos os deste inimigo de toda
a religião revelada, protestante ou católica, presta ao ministro que corre a consolar e
fortificar a enferma?
Lede:
“Ainda que o pastor respondesse a tudo com muita doçura e moderação, e
afetasse mesmo não a contrariar em coisa alguma, com receio de que se tomasse o
seu silêncio, sobre outros pontos, por uma confissão, não deixou um momento de ser
eclesiástico, e de expor sobre a outra vida uma doutrina oposta.
Disse que a imensidade, a glória e os atributos de Deus seriam o único objeto
de que se ocuparia a alma dos bem-aventurados, que esta sublime contemplação
apagaria toda e qualquer outra lembrança, que as almas se não veriam nem se
reconheceriam no Céu, e que, em presença deste aspecto arrebatador, se não pensaria
em coisa alguma terrestre”7.
Todo aquele que propagar esta negra doutrina, ministro sincero da religião ou
piedoso fiel, veja pois, a causa que serve, e em que fileiras se coloca!
Para vos mostrar toda a sua falsidade, quero, Senhora, fazer passar diante de
vossos olhos um grande número destes autores, cuja antiguidade, ciência, ortodoxia e
santidade fez chamar Padres e Doutores da Igreja. Cada um deles vos deixará
penetrar em seu coração. Ser-vos-á tão agradável como útil ver quanto eles foram
sempre sensíveis à esperança de reconhecerem e amarem, ainda depois da morte,
aqueles que tinham conhecido e amado durante esta vida.

6
Ansaldi, Della speranza..., cap. X.
7
J. J. Rousseau, Julie, IV part., Carta IX ; edição de Paris, 1823, in-8a. , t. II, pag. 482.
20

Mas quero primeiro resolver, ainda que brevemente, as três objeções que vos
fiz, a fim de que me escuteis depois com um espírito mais livre e um coração mais
dilatado. Assim, abraçareis com mais confiança e consolação a verdade que devo
oferecer-vos.
Quão pouco vos aliviaria agora a esperança deste mútuo reconhecimento se
devêsseis ser-lhe indiferente, ou se não viesse acompanhado de alegria e amor!

I I I

Será verdade que os santos só amam a Deus? – Eles amam-se entre si


como concidadãos, como irmãos, como dois amigos que vêem todas as perfeições
um do outro. – Deus só é cioso do nosso amor de adoração. – O amor recíproco
dos santos glorifica-o como Criador, como Pai, como princípio de toda a
amabilidade.

Disseram-vos que os santos amariam só a Deus.


Ouvi a resposta do abade Marcos no seu belo livro sobre a felicidade dos
santos:
“A pátria celeste é-nos incessantemente apresentada no Evangelho sob o
símbolo dum reino, duma sociedade, duma família. Mas uma sociedade, um Estado,
uma família não é simplesmente uma aglomeração de individualidades estranhas
umas às outras; mas sim uma reunião de seres inteligentes e racionais, obedecendo a
leis comuns e obrigatórias para todos, que fazem um só e mesmo corpo da harmônica
união destes diversos membros.
Ora, entre todas estas leis, há uma que é salvaguarda, e como que o laço de
todas as outras; é a lei da solidariedade social ou fraternal, que ordena a todos se
dediquem por cada um, e que cada um se dedique por todos, à proporção das forças e
necessidades de cada membro. É, por outros termos, a lei da mútua caridade, a lei do
amor.
No Céu nos amaremos como se amam os filhos dum mesmo pai, como irmãos
queridos e ternas irmãs; amar-nos-emos, como se amam dois amigos que só se
conhecem desde ontem, e cujos corações, apenas se encontraram, se compreenderam
e encadearam um no outro, por uma simpatia que sentem ser indestrutível e eterna.
21

Desde o momento em que nossas almas tiverem penetrado no seio de Deus,


encontrar-se-ão abrasadas duma fervente caridade de umas para com as outras. A sua
vista e recíproca presença serão como que uma faísca que operará este abrasamento,
assim como na natureza física se vê muitas vezes um corpo inflamar outro corpo,
somente pelo efeito do choque ou simples contato.
Eis como se pode, até um certo ponto, explicar este fenômeno.
Estas almas, iluminadas da plenitude da luz de Deus, a qual porá a descoberto
todas as suas perfeições, e envolvidas no reflexo de sua glória como num esplêndido
vestido (Ps. CIII, 2); apresentarão os atrativos do coração, como num maravilhoso
feixe, o conjunto de todas as suas amabilidades; pela sua parte, este coração, livre
desde este momento de todas as suas fraquezas, de suas ilusões e de suas trevas, este
coração, faminto de amor e restabelecido na sua integridade afetiva, será levado por
um irresistível atrativo para o seu natural alimento e único depois de Deus, isto é,
para as almas feitas para serem amadas por Ele.
É verdade que Deus é cioso do nosso coração, mas somente no sentido de que
não devemos amar alguma criatura tanto ou mais do que a Ele. Se assim não fora,
como nos ordenaria, sem se contradizer, que amássemos o nosso próximo como a
nós mesmos?
Além disto, segundo o contexto, o sentido próprio destas palavras da Escritura,
é que o Criador é cioso do amor de adoração: Não adoreis Deus alheio; o Senhor
chama-se o Deus cioso (Exod., XXXIV, 14).
Mas vai grande distância do amor que nos faria amar certas pessoas até à
adoração, ao amor que no-las faz amar conforme a vontade do Criador. Tanto falta
para que o mútuo amor dos escolhidos possa ser uma injustiça ou um roubo feito a
Deus, que será Ele, depois da pura caridade, a mais preciosa e querida homenagem
que lhe possamos render, como Criador, como Pai e como princípio de todo o amor e
de toda a amabilidade.
Tendo criado todas as coisas para nós, se as fez maravilhosamente belas
(Eccles., XI, 4), foi para que as admirássemos; se as fez excelentemente boas (Idem,
XXXIX, 21), foi para lhe pedirmos o bem que encerram; se as fez desejáveis
(Ibidem, XLII, 23), foi para que lhe concedêssemos ao menos uma pequena parte do
nosso coração.
Além disto, nenhum ser inteligente, seja Deus ou seja homem, pode
racionalmente deixar de ser cioso da obra que criou. Pois, do contrário, seria melhor
ter produzido uma obra vil e desprezível, ou então não ter produzido nenhuma.
22

Todos nós somos filhos de Deus, e Ele mesmo quis que o chamássemos nosso
Pai (Matth., VI, 9). Mas a condição da paternidade no Céu será a mesma que na terra,
exceto que possuirá, no mais alto grau de perfeição, os caracteres que a distinguem
neste mundo. Ora, qual é nesta vida a paternidade modelo? Por que sinal
reconheceremos nós que uma paternidade é verdadeiramente feliz?
Feliz paternidade, é o estado dum pai cercado de numerosos filhos que
rivalizam em cuidados e ternura para com ele. Mas isto apenas seria metade da sua
felicidade, ou antes toda a sua felicidade se encontraria envenenada e destruída, se
não reinasse uma verdadeira união entre todos os seus filhos.
Toda a afeição legítima, isto é, ordenada ou autorizada pela lei eterna, vem de
Deus.
A caridade que testemunhamos às criaturas, é como um rio que tem a sua
origem em Deus, que ordena ou permite que vamos matar a sede que temos n’Ele,
em objetos distintos do mesmo.
O rio, continuando sempre o seu curso, volta outra vez para a sua nascente,
onde chega sem alteração.
Todas as belezas que divisamos nas criaturas, e que nos atraem tão vivamente
para si, não são outra coisa mais do que o reflexo da eterna e divina beleza, do seio
da qual se desprendem, assim como vemos soltar ondas luminosas do disco solar,
que vêm alegrar e vivificar a natureza.
Mas como é sempre o Sol que admiramos mesmo em seus raios e reflexos, é
igualmente a Deus que admiramos e amamos de longe, nos esplendores e encantos
que derrama sobre suas criaturas.
Poderia Ele, pois, olhar como um atentado contra os seus direitos ou à sua
glória, o atrativo que nos impele para as belezas e perfeições que de si mesmo
derrama sobre suas obras?
Se os seus encantos e amabilidades não são mais do que uma irradiação da
amabilidade e dos atrativos divinos, já vemos como a beleza incriada não eclipsará as
belezas criadas, e como se dará no Céu o amor mútuo dos escolhidos sem risco nem
perigo.
Na terra, o imortal raio só nos aparecia por um único ponto, aquele por onde
tocava e iluminava a criatura. No Céu, vê-lo-emos descer do seu centro e tornar a
voltar ao mesmo.
23

Será a Deus que procuraremos e a que aspiraremos, dirigindo-nos para as


criaturas; Deus a quem admiraremos, admirando-as, Deus a quem acharemos,
amando-as”8.

IV

Porque Deus só basta aos escolhidos, seguir-se-á que terão a Deus


unicamente? – A sua liberalidade em todas as ordens conhecidas prova qual seja a
mesma na ordem da glória. – É falso que nos esqueçamos no Céu ou que sejamos
insensíveis à felicidade de nos tornarmos a ver. – Palavras de S. Francisco de
Sales sobre este mútuo reconhecimento e sobre a alegria que dele resulta.

Disseram-vos ainda:
“Só Deus é suficiente aos escolhidos!
Sem dúvida, deixando-se ver e possuir por nós, só Deus seria bastante para nos
tornar a todos felizes. Mas que se pode concluir daqui?
Se bastava a si mesmo desde toda a eternidade, direis vós que nada criou no
tempo e que nós não existimos? O menor sofrimento do Redentor bastava para nos
salvar a todos: negareis sua Paixão e sua Morte?
A sua Divindade é suficiente a si mesma: credes que ela não tenha cuidado
algum da sua humanidade?
Descei desta ordem toda divina até à ordem da graça e da mesma natureza, e
contai todos os socorros que nos são oferecidos para santificar nossas almas, todas as
iguarias que nos são dadas para nutrir nosso corpo, contai todas as flores que ornam a
terra e todos os astros que brilham no firmamento, e dizei se o Senhor se contentou
de criar para nós o suficiente, ou se passou muito além dele.
E querer-se-ia que na ordem da glória, quando houver de recompensar os seus
fiéis servos, os seus apóstolos, os seus mártires, os seus pontífices, os seus
confessores e as suas virgens, se limitasse a dar-lhes estritamente o necessário!
Não, não. Deus mostrar-se-á ainda mais generoso e mais pródigo para com os
santos do Céu do que para com os justos da terra.

8
Marc, Le Ciel, apêndice sur l’amour béatifique, chap., I, II ; IV question.
24

Vemos e sabemos o que fez para nós na ordem da natureza e da graça; mas o
grande Apóstolo nos afirma que os nossos ouvidos nada ouviram, e que o nosso
coração nada conjeturou que seja comparável ao que Deus prepara, na ordem da
glória, àqueles que o amam (1 Cor., II, 9).
Pela graça possuímos a Deus neste mundo, e será verdade que aquele que tem a
graça não necessita de mais coisa alguma?
É certo, pelo contrário, que tem ainda necessidade de exortações e de bons
exemplos, da intercessão dos santos, da participação dos sacramentos, de
mortificações e de orações para conservar e aumentar esta graça.
Assim, no outro mundo, sem que isto seja então para nós uma necessidade, mas
porque desejará encher-nos inteiramente de seus dons, o mesmo Deus, que só por si
bastaria para a nossa felicidade essencial, se dignará aumentá-la acidentalmente pela
sociedade das santas almas que tivermos conhecido e ternamente amado na terra.
E do mesmo modo que, em tudo o que nos dá segundo a natureza ou segundo a
graça, é Ele que se nos comunica por diferentes maneiras e em muitos graus; assim,
também na bem-aventurança será ainda Ele, sempre Ele, que se dará a nós por meio
de todas as criaturas glorificadas, as quais nos permitirá contemplar e admirar,
reconhecer e amar.
Não temais, Senhora, que as almas se esqueçam mutuamente no Céu, ou que
sejam insensíveis a tudo que não for Deus.
A caridade nunca pode ser indiferente nem insensível. Por isso mesmo que as
ama, o Criador é sensível a tudo o que diz respeito às suas criaturas.
Nosso Senhor é sensível à presença de sua Mãe, e Maria não é indiferente à
glória da humanidade de Jesus.
Se nós devêssemos ser insensíveis à felicidade de tornarmos a encontrar no
Paraíso as pessoas mais queridas, a nossa alma devia ser indiferente à ressurreição do
seu próprio corpo: e assim caducariam muitos argumentos empregados pelos
teólogos para provarem a ressurreição da carne.
No Céu seremos capazes de tudo conhecer ao mesmo tempo, com amor, e de
tudo sentir com alegria, sem que um conhecimento ou um sentimento seja nocivo a
outro.
Sentiremos tão vivamente como na terra o amor para com nossos parentes e
nossos amigos, ainda que o nosso amor para com Deus seja então
incomparavelmente mais ardente e mais sentido.
25

Nunca estaremos absorvidos em Deus a tal ponto que nos esqueçamos de tudo
que não for Ele. Mas, como se tem dito, os amigos, os irmãos, os parentes, se
reconhecerão, conversarão e se lembrarão de suas lágrimas, de seus combates e de
suas tribulações; porque esta vida momentânea lega à vida infinita uma eterna
lembrança e infindas gratulações.
A vista e o pensamento das criaturas não farão um só momento olvidar o
Criador; a vista e o amor do Criador não impedirão de ver e de amar as criaturas.
Unidas e distintas, todas estas alegrias, todos estes louvores e todos estes amores se
fundirão no louvor e amor de Deus, e formarão em sua glória um concerto único,
sempre variado, sempre o mesmo, o aleluia eterno9.”
Deixai, Senhora, deixai nutrir vosso coração desta doce esperança, e permiti-
me que acrescente a esta ainda mais algumas linhas que vos tranqüilizarão. São estas
de S. Francisco de Sales, explicando a transformação de Jesus Cristo sobre o Tabor,
que foi como uma reprodução do Céu (Matth. XVIII, 1-9):
“Todos os bem-aventurados se conhecerão mutuamente por seus nomes, como
nos afirma o Evangelho de hoje. Pedro viu ainda Moisés e Elias que nunca tinha
visto, os quais conheceu perfeitamente, tendo o primeiro um corpo transparente
como o ar, e o segundo seu próprio corpo como quando foi arrebatado num carro de
fogo.
Vedes, pois, muito bem que todos nos reconheceremos mutuamente na eterna
felicidade, visto que nesta pequena amostra que Nosso Senhor se dignou apresentar
sobre a montanha do Tabor a seus apóstolos, quis que estes conhecessem Moisés e
Elias que nunca tinham visto.
À vista disto, que contentamento o nosso, vendo aqueles que tivermos
extremosamente amado nesta vida! Sim, conheceremos mesmo os novos cristãos,
que se converterem agora à nossa santa fé, nas Índias, no Japão e nos antípodas; as
santas amizades, da mesma forma que tiverem sido começadas por Deus nesta vida,
continuarão na eterna. Amaremos pessoas particulares, mas estas amizades não
formarão parcialidades, porque todas as nossas amizades tomarão a sua origem no
amor de Deus, que, conduzindo-as todas, fará que amemos a cada um dos bem-
aventurados com o puro amor com que somos amados por sua divina Bondade.
Ó Deus! que consolações receberemos na celeste conversação que tivermos uns
com outros!

9
Guiton, L’homme releve de as chute, II partie, épilogue, pág. 364, 365.
26

Na bem-aventurança, os nossos bons anjos nos darão uma consolação muito


maior do que se pode dizer ou ainda imaginar, quando se nos fizerem reconhecer e
nos representarem mui amorosamente o cuidado que tiveram da nossa salvação
enquanto estivemos na terra, lembrando-nos as santas inspirações que nos
ofereceram como um leite sagrado que iam tirar dos peitos da divina Bondade para
nos atrair à indagação dessas divinas suavidades, de que então estivermos gozando.
Não vos recordais, nos dirão, duma tal inspiração que vos sugeri em tal tempo, lendo
um tal livro, ouvindo um tal sermão ou fitando tal imagem, inspiração que vos
incitou a converter-vos a Nosso Senhor, e que foi o motivo da vossa predestinação?
Ó meu Deus! e não se derreterão nossos corações num indizível
contentamento?!”10

10
Sermão sobre a Transfig., na 2ª. Dom. da Quaresma.
27

SEGUNDA CARTA

No Céu todos se conhecem

Provas da Sagrada Escritura: a parábola do rico


avarento, explicada por Santo Irineu, e sobretudo por S.
Gregório Magno. – Fato que ele cita em apoio. O juízo
final, base da argumentação de S. Teodoro Studita.

SENHORA,

Todos os bem-aventurados admitidos no Céu conhecem-se perfeitamente, antes


mesmo da ressurreição geral. Provam-no tanto a Sagrada Escritura como a Tradição.
Limitar-me-ei a citar-vos o Novo Testamento, tomando apenas dele a parábola
do rico avarento e algumas palavras que se referem ao juízo final.
Está parábola é tão bela que não posso resistir ao desejo de apresentar a vossos
olhos as suas passagens principais:
Havia um homem rico que trajava esplendidamente e se banqueteava com
magnificência, todos os dias.
Havia também ao mesmo tempo um pobre, chamado Lázaro, deitado à sua
porta, todo coberto de úlceras, que desejava ardentemente saciar a fome com as
migalhas que caíam da mesa do rico, mas ninguém lhas dava, e os cães vinham
lamber as suas feridas.
Ora, aconteceu morrer este pobre, e foi transportado pelos anjos ao seio de
Abraão. O rico morreu também e teve por túmulo o Inferno. E quando estava em
tormentos, levantou os olhos para o Céu e viu, ao longe, Abraão e Lázaro em seu
seio; e, exclamando, diz estas palavras:
“Pai Abraão, tende piedade de mim, e enviai-me Lázaro, a fim de que molhe na
água a ponta do seu dedo para me refrescar a língua, porque sofro horríveis
tormentos nesta chama”.
28

Mas Abraão respondeu-lhe: “Meu filho, lembra-te que recebeste muitos


benefícios na terra, e que Lázaro só teve por companheira a miséria e o sofrimento; e
é por isso que está gozando agora das maiores consolações, e tu estás em tormentos”.
Replicou o avarento: “Suplico-vos então, Pai Abraão, que o envieis à casa de
meu pai, onde tenho cinco irmãos, a fim de adverti-los, pois receio que venham
também para este lugar de tormentos”. (Luc., XVI, 19-28).
Santo Ireneu, combatendo os hereges, escrevia no princípio do século III:
“O Senhor revelou-nos que as almas se lembram na outra vida das ações que
praticaram nesta. Não nos ensina Ele esta verdade por meio da história do rico
avarento e de Lázaro? Visto que Abraão conhece o que diz respeito a um e outro, as
almas continuam portanto a conhecerem-se mutuamente e a recordarem-se das coisas
da terra”.11
No fim do século IV, o Papa S. Gregório Magno perguntava a si mesmo se os
bons conheceriam os bons no reino do Céu, e se os maus conheceriam os maus no
Inferno. Sustentou a afirmativa:
“Vejo, diz ele, uma prova disto, mais clara do que o dia, na parábola do rico
avarento. Não declara aqui o Senhor abertamente que os bons se conhecem entre si, e
os maus também? Porque, se Abraão não reconhecesse Lázaro, como falaria de suas
passadas desgraças ao rico avarento que estava no meio dos tormentos?
E como não conheceria este mesmo avarento os seus companheiros de
tormentos se tem cuidado de pedir pelos que ainda estão na terra? Vê-se igualmente
que os bons conhecem os maus e os maus os bons. Com efeito, o avarento é
conhecido por Abraão; e Lázaro, um dos escolhidos, é reconhecido pelo avarento,
que é do número dos réprobos.
Este conhecimento põe o remate ao que cada um deve receber. Faz com que os
bons gozem mais, porque se regozijam com aqueles que amaram na terra. Faz com
que os maus, por isso que são atormentados com aqueles que amaram neste mundo
até ao desprezo de Deus, sofram não só o seu próprio castigo, mas ainda, de alguma
sorte, o dos outros.
Há, mesmo para os bem-aventurados, alguma coisa mais admirável. Além de
reconhecerem aqueles que conheceram neste mundo - Agnoscunt quos in hoc mundo
noverante - reconhecem também, como se os houvessem visto e conhecido, os bons
que nunca viram: Velut visos ac cognitos recognoscunt.

11
Santo Irineu, - Contra haereses, lib. II, cap. XXXIV, no. 1.
29

Que podem ignorar os bem-aventurados no Céu, vendo em plena luz o Deus


que tudo sabe?
Um dos nossos religiosos, muito recomendável pela sua santidade, viu junto de
si, por ocasião da sua morte, os profetas Jonas, Ezequiel e Daniel, e designou-os por
seus nomes.
Este exemplo faz-nos claramente perceber quão grande será o conhecimento
que teremos uns dos outros na incorruptível vida do Céu, visto que este religioso,
estando ainda revestido da corruptibilidade, conheceu os santos profetas que nunca
tinha visto”12.
Encontramos um fato muito semelhante na vida da fundadora das Anunciadas
Celestinas, Maria Vitória Fornari. Interrogava ela uma irmã conversa, pobre aldeã,
sobre os Bem-aventurados que a honravam com suas aparições, como a Santíssima
Virgem, Santo Onofre, Santa Catarina de Sena, etc.. Surpreendida por ver que uma
rapariga sem letras tinha um tão distinto conhecimento de tantos santos, a bem-
aventurada perguntou-lhe onde havia aprendido tudo o que sabia a este respeito:
“Minha madre, disse ela com grande simplicidade, todos os santos se conhecem
distintamente em Deus”13.
S. Gregório Magno foi citado por escritores eclesiásticos muito antigos: na
Alemanha, no século IX, por Haymon, Bispo de Halberstadt; na Inglaterra, no século
VIII, pelo venerável Beda; na Espanha, no século VII, por S. Julião, Bispo de Toledo.
Todos participam do seu sentimento e o afirmam sem rodeios.
S. Julião, por exemplo, antes de referir estas palavras do grande Pontífice, diz:
“As almas dos defuntos, privadas de seus corpos podem reconhecer-se mutuamente;
o Evangelista assim o atesta. Não se pode duvidar de que as almas dos mortos se
reconheçam: 'Non est dubitandum quod se defunctorum spiritus recognoscant’.14
Sobre o juízo final, temos as seguintes palavras de Jesus Cristo a seus
discípulos:
“Em verdade vos digo que, quando chegar o tempo da regeneração, e o Filho
do Homem estiver sentado no trono da sua glória, vós, que me tendes seguido,
estareis sentados sobre doze cadeiras e julgareis as doze tribos de Israel” (Matth.,
XIX, 28.).
Temos também estas palavras do grande Apóstolo aos Coríntios:

12
Saint Grégorie le Grand, Dialog. I, IV., cap. XXXIII et XXXIV.
13
Collet, La vie de V. M. Victoire Fornaire, I, II, no. 9.o.
14
S. Julião de Toledo, Prognosticon, I. II, cap. XXIV – Haymon, De Amore caelestis patriae, I. I, cap.
VIII. – V. Beda, Aliquot quoestionum liber, q. XII.
30

“Não sabeis que os santos devem um dia julgar o Mundo? Não sabeis que nós
seremos os juízes dos mesmos anjos?” (1 Corinth., VI, 2, 3).
Tal é a base da argumentação de S. Teodoro Studita, num discurso que fez no
fim do VIII século ou princípio do IX, para refutar o erro que nos esforçamos por
combater aqui.
“Alguns oradores, diz ele, enganam os seus ouvintes, sustentando que as
criaturas ressuscitadas não se reconhecerão quando o Filho de Deus vier julgar-nos a
todos.” “Como, exclamam, quando de frágeis nos tornarmos incorruptíveis e
imortais; quando já não houver gregos, nem judeus, nem bárbaros, nem citas, nem
escravos, nem homens livres, nem esposo, nem esposa; quando formos todos
semelhantes em gênios, poderíamos reconhecer-nos mutuamente?”.
Respondemos, em primeiro lugar, que o que é impossível aos homens é
possível a Deus. Doutra sorte não acreditaríamos na ressurreição da carne,
pretextando raciocínios humanos.
E, efetivamente, como se poderá reorganizar no último dia um corpo desfeito
em podridão, devorado talvez por animais ferozes, pelas aves ou pelos peixes, e estes
devorados por outros e isto de muitas maneiras, e sucessivamente?
Todavia, assim há de ser, e o secreto poder de Deus reunirá todas as suas partes
espalhadas e as ressuscitará. Então, cada alma reconhecerá o corpo com que viveu.
Mas cada uma das almas reconhecerá também o corpo do seu próximo?
Não se pode duvidar, sem que se ponha ao mesmo tempo em dúvida o juízo
universal. Porque não se pode ser citado em juízo sem ser conhecido, e para julgar
uma pessoa é preciso conhecê-la, segundo estas palavras da Sagrada Escritura:
“Convencer-vos-ei, e porei diante de vossos olhos vossos pecados” (Ps., XLIX, 21).
O valor deste raciocínio depende da seguinte distinção: no juízo particular,
somos julgados só por Deus; mas, no juízo universal, julgaremos de alguma sorte uns
aos outros.
Entretanto, o primeiro só manifesta a justiça à alma que é julgada, o último a
manifestará a todas as criaturas. Assim todas esperam, para o grande dia, a revelação
dos filhos de Deus (Rom., VIII; 19) que fará mudar muito as apreciações dos
homens.
O Santo continua nestes termos:
“Portanto, se nos não reconhecermos mutuamente, não seremos julgados; se
não formos julgados, não seremos recompensados ou punidos pelo que tivermos feito
e sofrido neste mundo. Se não devem reconhecer aqueles a quem hão de julgar, verão
31

porventura os Apóstolos o cumprimento desta promessa do Senhor: Assentar-vos-eis


sobre doze tronos para julgardes as doze tribos de Israel?” (Matt., XIX, 28). E por
estas palavras: “Onde o próprio irmão não resgata, um estranho resgatará” (Ps.
XLVIII, 8), não supõe o santo rei David que o irmão reconhecerá seu irmão?
Muitas são as razões e autoridades que se opõem àqueles que pretendem negar
o mútuo reconhecimento das almas no Céu; asserção insensata, asserção comparada
pela impiedade às fábulas de Orígenes. Enquanto a nós, meus irmãos, acreditemos
sempre que ainda havemos de ressuscitar, que nos tornaremos incorruptíveis, e que
nos reconheceremos mutuamente, como nossos primeiros pais se conheciam no
paraíso terrestre, antes do pecado, quando estavam ainda isentos de toda a corrupção.
Sim, é necessário crê-lo: Gredendum fore ut fratrem agnoscat frater, liberos
pater, uxor maritum, amicus amicum – o irmão reconhecerá seu irmão, o pai seus
filhos, a esposa seu esposo, o amigo seu amigo; digo mais: o religioso reconhecerá o
religioso, o confessor reconhecerá o confessor; o mártir, o seu companheiro de
armas; o apóstolo, o seu colega no apostolado; todos nos conheceremos - quo
omnium in Deo laetum domicilium sit - a fim de que a habitação de todos em Deus se
torne mais agradável pelo benefício, além de tantos outros, de nos reconhecermos
mutuamente”15.

15
Saint Theodore Studite, Serm., catech., XXII. – Migne, Patrologie grecque, t. XCIX, pág. 538, 539.
32

II

Provas da tradição: o fato simplesmente afirmado por Santo Atanásio, S.


Paulino, Santo Agostinho, Honório e Berti – As consolações tiradas deste fato,
por Santo Ambrósio para os irmãos; por Fócio para os parentes; por S.
Jerônimo, Santo Agostinho e, mais ainda, S. João Crisóstomo, para as viúvas.

A luz despedida sobre este objeto pela tradição católica é tão viva e constante
que passa através de todas as nuvens dos sofismas e da preocupação.
Os testemunhos podem dividir-se em duas classes: os que afirmam
simplesmente o fato, e os que dele tiram uma consolação.
Entre as obras muitas vezes atribuídas a Santo Atanásio, esta glória tão pura do
IV século, encontra-se uma que tem por título: Questões necessárias que nenhum
cristão deve ignorar. Ora, na resposta à XXII questão lê-se: “Deus concede às almas
justas, no Céu, um grande bem, o de se conhecerem mutuamente”.16
No fim do mesmo século, S. Paulino, que mais tarde foi Bispo de Nola,
escrevia ao seu antigo preceptor, o poeta Ausónio:
“A alma sobrevive ao corpo, e é necessário que ela guarde os seus sentimentos
e as suas afeições, tanto quanto a sua vida. Ela não pode esquecer que é imortal. Para
qualquer lugar que Nosso Senhor me mande depois da minha morte, levar-vos-ei em
meu coração, e o fatal golpe que me separar do meu corpo não porá termo ao amor
que vos consagro”.17
No século V, o grande Bispo de Hipona dizia a seu auditório: “Conhecer-nos-
emos todos no Céu. Pensais vós que me conhecereis, por me haverdes conhecido na
terra, mas não conhecereis meu pai, porque nunca o vistes? Repito-vos, conhecereis
todos os santos. Eles se conhecerão, não porque vejam a face uns dos outros, mas
verão como os profetas costumam ver na terra; ou ainda dum modo bem mais
excelente. Verão divinamente. Por isso que estarão cheias de Deus”18.
“E vós, S. Paulo e Santo Estêvão, o perseguidor e a vítima, não reinais
juntamente com Jesus Cristo? Aí, vede-vos ambos mutuamente, ouvis o nosso
discurso; orai ambos aí, orai ambos por nós. Aquele que vos coroou a ambos, vos
ouvirá também a ambos”19.

16
Questiones ad Antiochum principem, q. XXII.
17
S. Paulino, Poema, XI, V. 59-67.
18
Santo Agostinho, Sermo 243, cap. VI.
19
Ibid., Sermo 316, cap. V.
33

No século XII, Honório d'Antun perguntava a si mesmo:


“Os justos conhecem-se na glória?”
Eis a sua resposta:
“As almas dos justos conhecem todos os justos, até mesmo o seu nome, a sua
raça e seus merecimentos, como se tivessem vivido sempre com eles. Conhecem
também todos os maus, sabendo por que falta cada um deles está no inferno. Os
maus conhecem os maus, e ainda conhecem os justos que vêem, e até sabem seus
nomes, como o rico avarento sabia o nome de Abraão e de Lázaro. Os justos oram
por aqueles que amaram no Senhor ou que os invocam. Mas a sua alegria só se
completará depois da ressurreição, quando tiverem recuperado os seus corpos e
estivermos reunidos com eles; pois a nossa ausência causa-lhes, por enquanto,
alguma solicitude - De abcentia lutem nostra sollicitantur”20.
Se quisesse interrogar sobre isto os teólogos modernos, seriam unânimes em
responder afirmativamente. Que um só fale em nome de todos: “Os Santos, diz ele,
vêem-se reciprocamente; assim o pede a unidade do reino e da cidade em que vivem
na companhia do próprio Deus. Revelam espontaneamente uns aos outros os seus
pensamentos e as suas afeições, como pessoas da mesma casa que estão unidas por
um sincero amor.
Entre os seus concidadãos celestiais, conhecem aqueles mesmos que não
conheceram neste mundo, e o conhecimento das belas ações leva-os a outro
conhecimento mais pleno daqueles que as praticaram”.21
Os maiores santos e os homens mais eminentes da Igreja não receavam de
recorrer a esta verdade, como a um fecundo manancial, para daqui haurirem as
cristalinas águas das celestes consolações que distribuíam às pessoas aflitas.
Quem, pois, ousaria ainda acusar de imperfeição este vivo desejo e esta doce
esperança?
Perdestes um irmão ou uma irmã? Consolai-vos como Santo Ambrósio se
consolava a si mesmo: “Ó meu irmão, dizia ele, visto que me precedestes aí,
preparai-me um lugar nessa habitação comum, que daqui por diante será para mim a
mais desejada. E assim como neste mundo tudo foi comum entre nós, também no
Céu desconheceremos a lei de partilhas.
Não façais esperar por muito tempo, eu vos suplico, aquele que experimenta
um tão vivo desejo de se vos reunir. Esperai aquele que avança, auxiliai aquele que
se apressa e, se vos parece que ainda tardo muito, fazei-me ir com mais ligeireza.

20
Honorius d’Autun, Elucidarium, lib. III, no. 7, 8.
21
Berti, De Theologicis disciplinis, lib. III c. XIII, no. 2
34

Nunca estivemos na terra separados um do outro por muito tempo; mas éreis
vós que costumáveis visitar-me.
Agora, visto que o não podeis fazer, pertence-me ir para junto de vós. Ó meu
irmão, que consolação me resta, a não ser esta esperança de nos reunirmos o mais
breve possível?
Sim, consola-me a esperança de que a separação que se efetuou entre nós pela
vossa partida, não será de longa duração, e que por vossas súplicas obtereis a graça
de atrair a vós com mais brevidade aquele que vos chora tão vivamente”22.
Perdestes um filho ou uma filha? Recebei as consolações que um Patriarca de
Constantinopla dirigia a um pai aflito.
Este Patriarca não pode ser contado entre os homens eminentes, e ainda menos
entre os santos. É Phócio, o autor do cruel cisma que separa o Oriente do Ocidente.
Mas suas palavras provam tanto mais, quanto que indicam ser idêntico o parecer dos
gregos e latinos sobre este ponto. Ei-las:
“Se vossa filha vos aparecesse e vos falasse, tendo a sua mão apertada na vossa
e o seu risonho semblante chegado ao vosso, não vos faria ela a descrição do Céu?
Depois acrescentaria: Por que vos afligis, ó meu pai? Estou no paraíso, onde a
felicidade não tem limites. Ireis para lá um dia com minha querida mãe, e então
achareis que nada vos disse de mais deste lugar de delícias, cuja realidade excede
muito as minhas palavras.
Ó querido pai, não me retenhais por mais tempo em vossos braços, mas deixai-
me com satisfação voltar para o Céu, onde me arrasta a violência do meu amor! –
Expulsemos, portanto, a tristeza, conclui Phócio, porque vossa filha está cheia de
felicidade no seio de Abraão.
Expulsemos a tristeza; porque, dentro de pouco tempo, a veremos ali exultar de
alegria e contentamento”23.
Perdestes vosso marido? Ai! os vestidos de luto, que trajais continuamente,
manifestam bem a desgraça que vos feriu, e a afeição que sobrevive ao vínculo que a
morte quebrou. Aproveitai-vos, pois, das consolações que os Padres da Igreja
ofereceram por tantas vezes às viúvas cristãs.
S. Jerônimo escrevia a uma viúva: “Chorai vosso Lucínio como um irmão, mas
regozijai-vos por ele reinar com Jesus Cristo. Vitorioso e seguro da sua glória, olha-
vos do alto do Céu, anima-vos nas vossas aflições, e prepara-vos um lugar junto de
si, com tal amor e caridade que, esquecendo-se do seu direito de esposo, começa
22
Santo Ambrósio, De Excessu fratris sui, lib I, nos. 78, 79
23
Ibid., lib. III, no. 135
35

ainda na terra por vos considerar como sua irmã, ou antes, como seu irmão, porque
uma casta união não conhece esta diferença de sexo que se requer para o
matrimônio”24.
Santo Agostinho escrevia a outra viúva:
“Não perdemos aqueles que saem dum mundo donde nós devemos também
sair; mas enviamo-los, primeiro que nós, para essa outra vida, onde nos serão tanto
mais queridos quanto mais conhecidos nos forem – Ubi nobis erunt quanto notiores,
tanto utique cariores. Vós víeis melhor o seu rosto, mas ele via melhor o seu
coração.
Ora, quando o Senhor vier, porá em plena luz tudo o que estiver envolvido nas
trevas, e manifestará os pensamentos do coração.
Então cada um saberá o que disser respeito a todos, e não haverá distinção
alguma entre os nossos e os estranhos para revelar um segredo aos primeiros e
ocultá-lo aos segundos, pois na pátria celeste não haverá estranhos.
Mas qual será a natureza, qual a intensidade da luz que assim manifestará tudo
quanto o nosso coração encerra agora na obscuridade? Quem poderá dizê-lo? Quem
poderá somente concebê-lo?”25.
S. João Crisóstomo, numa das suas homilias sobre o Evangelho de S. Mateus,
dizia a cada um de seus ouvintes:
“Desejais ver aquele que a morte vos arrebatou? Segui a mesma vida que ele
no caminho da virtude, e muito brevemente gozareis desta santa visão.
Mas quereríeis vê-lo aqui mesmo? Ah! quem vos poderá estorvar? Se sois
prudente, é-vos permitido e fácil vê-lo; porque a esperança dos bens futuros é mais
clara do que a própria vista”.
Este sublime orador encontrava, na sua própria história, tudo o que podia torná-
lo mais sensível às tristezas da esposa que perdera seu marido. Filho único de uma
viúva, que vivia no meio da sociedade, entregue à fraqueza de sua idade e do seu
sexo, tinha sido ele o confidente das suas lágrimas e da sua dor, até que a deixara só,
como em segunda viuvez, fugindo ao seu amor para encerrar-se na solidão. Ele
mesmo nos contou que Libânio, orador pagão, sabendo que sua mãe conservava
casta viuvez desde a idade de vinte anos, e nunca tinha querido passar a segundas
núpcias, exclamou, voltando-se para os que o cercavam: “Oh! que mulheres que são
as cristãs!”26.

24
Phócio, Epistol. t. III, epist. 63, Tarasio, patrício, fratri
25
Santo Agostinho, Epis., 92, nos. 1,2
26
S. João Crisóstomo, Ad Viduam juniorem, tract. I, no. 2
36

A Providência soube proporcionar a Crisóstomo a ocasião de aproveitar estas


disposições do seu coração, consolando outra jovem, que só tinha vivido cinco anos
com Terásio, seu marido, um dos principais homens do seu tempo. Escreveu a seu
respeito dois tratados, que são tidos na conta dos seus mais notáveis livros. Entre
outras muitas mais consoladoras, diz-lhe:
“Se desejais ver o vosso marido, se quereis gozar da vossa mútua presença,
fazei brilhar em vós a mesma pureza de vida que resplendecia nele, e estai certa que
ireis assim fazer parte do mesmo coro angélico em que ele está.
Habitareis em sua companhia, não por espaço de cinco anos, como na terra,
mas por toda a eternidade. Tornareis então a encontrar vosso marido, não já com
aquela beleza corpórea de que era dotado neste mundo, mas com outro esplendor,
com outra beleza, que excederá em brilho os raios do Sol.
Se vos tivessem prometido de dar a vosso esposo o império de toda a terra,
com a condição de vos separardes dele por espaço de vinte anos; e se, além disto,
prometessem restituir-vo-lo passado este espaço de tempo, ornado com o diadema e a
púrpura, colocando-vos no mesmo grau de honra; não vos resignaríeis a esta
separação, observando a castidade? Veríeis mesmo nesta proposição um insigne
favor e um objeto digno de todos os vossos desejos.
Suportai, pois, agora, com resignação e paciência, uma separação que dá a
vosso marido a realeza, não da Terra, mas do Céu; suportai-a para o encontrardes
entre os bem-aventurados habitantes do Paraíso, coberto, não dum manto de ouro,
mas dum vestido de glória e de imortalidade. Portanto, pensando nas honras de que
Therásio goza no Céu, ponde termo às vossas lágrimas e aos vossos suspiros. Vivei
como ele viveu, ou ainda com mais perfeição, para que, depois de haverdes praticado
as mesmas virtudes, sejais recebida nos mesmos tabernáculos, unindo-vos novamente
com ele por toda a eternidade, não pelo vínculo do matrimônio, mas por outro ainda
melhor. O primeiro une somente os corpos, entretanto que o segundo, mais puro,
mais agradável e mais santo, une também as almas”27.

27
S. João Crisóstomo, Ad Viduam Juniorem, trat. I, nos. 3 e 4.
37

TERCEIRA CARTA

Resposta a algumas objeções

É perigoso não responder às objeções. – As de que falamos,


resultam da idéia falsa ou acanhada que se faz do Céu – O
pensamento católico exprimido com felicidade por Dante. –
Luzes que os bem-aventurados têm. – Eles não ignoram as
nossas necessidades. – Desejo que têm de nos socorrer. – A sua
lembrança de tudo.

SENHORA,

Nenhuma das verdades solidamente estabelecidas na Igreja deve ser abalada


em nossas almas, por uma ou muitas objeções, cuja solução nos escapa.
“A verdade é do Senhor e permanecerá eternamente”, diz a Escritura (Ps.
CXVI, 2); as objeções são do homem, o tempo muda-as, e o sopro da ciência as
dissipa.
Todavia, acontece que uma verdade claramente demonstrada, não penetra
profundamente em nossa alma, enquanto tivermos uma dificuldade a que não
achemos resposta. Algumas vezes mesmo a objeção apodera-se de tal modo do nosso
espírito, que chega a expelir dele a verdade.
É o que se deu em muitas pessoas a respeito do objeto de que nos ocupamos.
Não sabendo como rasgar o véu de algumas dificuldades que lhes ocultava esta luz
tão consoladora, têm dito que não nos reconheceremos no Céu. A sua imprudência
poderia comparar-se à dum menino que, não podendo dissipar o espesso nevoeiro,
negasse a existência do Sol.
As objeções que vos têm feito, e que me haveis transmitido, resultam de se não
formar uma idéia assaz justa e grande do Céu.
Muitos supõem que Deus se dispusera a construir o edifício da nossa grandeza
sobre a indiferença ou insensibilidade, a coroar-nos de glória e inebriar-nos de
felicidade no meio da ignorância ou das trevas. Aderir a esta idéia é provar que nem
mesmo se leu aquele príncipe de poetas cristãos, que pôs ao serviço da fé a sua
poderosa e bem regulada imaginação e que cantou numa língua e num país a que
38

vossa família não pode chamar estrangeiro. Cito-o, não para lhe atribuir uma
autoridade que não tem, mas porque exprime felizmente o pensamento católico.
“O Céu, disse ele, é um admirável e angélico templo, que tem por confins só o
amor
e a luz. E uma luz pura, luz intelectual carregada de amor, amor do verdadeiro
bem, cheio de alegria que excede toda a suavidade.
O estado da bem-aventurança funda-se sobre a ação de ver, seguindo-se-lhe a
de amar, e tanto que a alegria dos bem-aventurados, como a dos anjos, é maior ou
menor segundo a sua vista se fixa mais ou menos na verdade, onde se repousa toda a
inteligência”28.
Eis aqui, pois, o princípio de solução para as objeções: no Céu, que é mais um
estado do que um lugar, tudo é luz, tudo é amor.
Por esta luz, os escolhidos que gozam da visão de Deus, conhecem, com os
prodígios da natureza e da graça, tudo o que se refere ao estado próprio de cada um.
Assim, os pontífices vêem o que diz respeito ao governo da sua Igreja, e os reis
o que concerne ao seu reino. Deve crer-se, pois, que gozam da bem-aventurança, que
o seu estado é perfeito pela reunião de todos os bens, 29 sê-lo-ia sem este
conhecimento?
Deve também crer-se que vêem a Deus face a face: por que motivo não verão
também o que lhes diz respeito, neste espelho da Divindade, sempre patente a seus
olhos e fiel em tudo refletir?
Os bem-aventurados têm uma ciência infusa e atual, que lhes vem por via de
revelação ou iluminação, seja da parte de Deus, seja da parte dos anjos ou dos santos
mais elevados em glória.
Têm também uma ciência natural e adquirida, que obtiveram durante a sua vida
mortal, seja pelo trabalho, seja pela experiência, e que conservam no Céu.
Perderiam, pois, na habitação da felicidade, o gozo de todos os seus
conhecimentos adquiridos que pode aumentar mais a sua ventura, o conhecimento
dos parentes e dos amigos que tiveram na terra?
Eles não ignoram as necessidades nem as orações de seus parentes que ficaram
neste mundo.
Depois da morte de S. Bernardo, um abade de Claraval consolava os seus
religiosos dizendo-lhes: “Quanto mais no Céu do que na Terra, nosso Pai vê, sente e
conhece tudo o que nos toca! A sua espiritual paternidade não se dissolveu com o
corpo, ele nada ignora das necessidades de seus filhos, e ouve-nos do fundo de seu
túmulo”30.
O mesmo Deus que é a suma verdade, ilumina e penetra os santos, anima-os e
inflama-os com o seu amor.

28
Dante, Paradiso, canto XXVIII e XXX.
29
Boécio, De Consolatione, lib. III, prosa II.
30
Gautridus, Sermo in anniversario obitus sancti Bernardi, nos. 4 et 15.
39

Eles são também caridade com Ele, amam-nos como Ele, lembram-se de nós,
ocupam-se de nós; e esta misericordiosa solicitude – diz Augusto Nicolas – concilia-
se tanto neles como n’Ele, com a suprema felicidade. Que digo eu? É esta mesma
felicidade que, inebriando-os de suas delícias, os inebria também, de alguma sorte,
da necessidade de comunicá-la, porque é ela a felicidade de amor, que só se enche
para se derramar 31.
Eles governam-nos, dirigem-nos e intercedem por nós. S. Gregório
Nazianzeno, concluindo o elogio de S. Cipriano, exclamou:
“Ó vós, do alto do Céu, olhai-nos com bondade, guiai nossos discursos e nossa
vida, apascentai este virtuoso rebanho e auxiliai o seu pastor”32.
No segundo livro dos Macabeus (XV, 12-16), vemos Onias e Jeremias, já
mortos, interessarem-se pela sorte dos judeus, orarem pela sua liberdade e
entregarem a Judas a espada que devia assegurar-lhe a vitória.
No Apocalipse (V, 8; VI, 10) vemos os bem-aventurados oferecerem ao Senhor
as orações que se elevam da terra, como perfumes, e queixarem-se de seus
perseguidores estarem ainda impunes. Por que, pois, seriam os únicos a não serem
reconhecidos, aqueles que foram na terra seus protetores ou seus protegidos, e que
lhes fazem agora companhia na glória? Por que esta exceção inteiramente semelhante
a um castigo? Por que esta pobreza do coração, que seria assim privado de todas as
santas afeições, a que deve talvez a sua entrada na pátria da caridade, ou pelo menos
um grau mais elevado no reino da pura luz e do verdadeiro perfeito amor?
O Cristão não tem necessidade de passar o rio do esquecimento para chegar ao
eterno repouso.
O santo nunca perde a memória do menor de seus triunfos, nem o mais obscuro
dos seus merecimentos.
A nossa mão esquerda, que não sabe na terra o bem que faz a direita (Math. VI,
3), sabê-lo-á um dia no Céu, e se regozijará por isso eternamente.
Neste mundo, morremos em nós mesmos, por um esquecimento que cada vez
se torna maior; mas no Céu, ressuscitaremos em nós mesmos pela mais completa
lembrança: Todo o bem que tivermos feito, reviverá em nossa memória com uma
fresquidão e vivacidade de sentimentos, que nunca houvéramos conhecido.
Conservaremos a lembrança das nossas provas interiores e espirituais; recordar-nos-
emos das nossas dores físicas e de todos os nossos trabalhos.
Como nos será doce então repassar, pela imaginação, todas estas rugas do
tempo, onde as lágrimas dos nossos olhos e os suores dos nossos membros caírem,
como orvalho fecundo, para enriquecer a colheita dos nossos eternos merecimentos!
Mas como! Os felizes habitantes do Paraíso, em suas íntimas conversações,
nunca falariam do seu passado, deixariam ignorar a grandeza e multiplicidade dos
seus combates neste mundo, e não revelariam entre si uma única circunstância que

31
Augusto Nicolas, La Vierge Marie vivant dans l’Eglise, lib. I, cap. IV, § 3, n.o 4.
32
S. Gregório Nazianzeno, Oratio XXIV, no. 19.
40

lhes fizesse conhecer que foram contemporâneos, vizinhos, parentes ou amigos?! É


impossível.
41

II

Com a ciência cresce no Céu o amor. – Aumento deste mesmo amor. –


Palavras de S. Bernardo em diferentes ocasiões. – Doutrina de S. Tomás de
Aquino. – Revelação feita a Santa Catarina de Sena. - Harmonia do
conhecimento e do amor. - Nem inveja nem ciúme, mas completa resignação.

Ora, no Céu, com a ciência cresce a caridade, o amor.


Assim como o Sol nos envia num só e mesmo raio duas coisas ao mesmo
tempo: a luz e o calor; assim também este mútuo conhecimento que Deus permite
aos seus escolhidos, é sempre acompanhado de amor. E da mesma forma que se
tornariam mais abrasados, à medida que se aproximassem da chama; assim também,
quanto mais se aproximam deste grande Deus que é um fogo consumidor (Deut., IV,
24), tanto mais amam e são amados.
A caridade nunca se extingue, diz o Apóstolo, (I Cor., XIII, 8); e este amor
infinito, abraça a Deus em sua unidade, a nós mesmos e ao próximo.
E efetivamente não existem duas ou três virtudes da caridade, mas só uma. Se,
pois, o amor do justo sobe com ele ao Céu depois da sua morte, se brilha mesmo com
um esplendor mais radioso sobre o imaculado horizonte da bem-aventurada
eternidade, como um astro que, elevando-se, aumenta os seus esplendores, por que
razão deixaria este justo de inflamar-se também em caridade para com todos aqueles
que amou santamente na terra? Por que motivo, quando é maior o seu amor para com
Deus, e para consigo mesmo, não seria maior também para com o seu próximo?
O santo abade de Claraval chorou a perda de seu irmão Gerardo com uma
ternura maravilhosa. Um de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos, não é mais
do que uma oração fúnebre a respeito deste irmão querido. Que diz ele sobre este
ponto? Atendei e consolai-vos:
“Quanto mais se estiver unido a Deus, mais cresce o amor. Ora, se Deus não
pode sofrer, pode condoer-se; porque ter piedade dos desgraçados e perdoar aos
culpados, é próprio da sua infinita misericórdia.
É forçoso, pois, meu irmão, que estejais comovido das misérias do próximo,
visto que estais tão intimamente unido à divina misericórdia. Assim a vossa afeição
por nós, longe de diminuir, chegou, pelo contrário, à sua perfeição; e tendo-vos
revestido de Deus, não vos despojastes da vossa solicitude para conosco, visto que o
42

mesmo Deus tem cuidado de nós (1 Petr. V, 7). Ter-vos-eis despojado de tudo o que
era fraqueza, mas nunca da piedade ou compaixão.
Enfim, visto que a caridade não morre, vós nunca me olvidareis.” 33
Baseado neste motivo do amor para com o próximo, o abade de Claraval
dirigia-se a S. Malaquias nos termos seguintes: “Longe de nós o pensamento de que a
vossa caridade, tão ativa na terra, esteja, não digo esgotada, mas somente diminuída,
quando vos achais junto da mesma nascente da eterna caridade, tirando dela a longos
tragos aquilo de que anteriormente tínheis sede e que só podíeis beber gota a gota!
O amor nunca pode ceder à morte, pois que é mais forte do que ela”34.
O santo abade dizia a respeito de outro seu amigo:
“Ele era meu em quanto vivia, será meu depois da sua morte, e reconhecê-lo-ei
por meu na pátria celeste – Meum in patria recognoscam”35.
Num sermão de S. Vítor, mostrava-o tão cheio de solicitude por nós como de
segurança a seu respeito; “porque, dizia ele, não é numa terra de esquecimento que
habita a alma de Vítor.
Porventura a celeste habitação endurece as almas que recebe, ou priva-as da
memória, ou despoja-as da piedade?
Meus irmãos, a amplidão do Céu dilata os corações e não os restringe, dilata os
espíritos e não os dissipa, não diminui as afeições, mas aumenta-as. Na eterna luz, a
memória é aclarada e não obscurecida, aprende-se o que se ignora e não se esquece o
que se sabe – discitur quod nescitur, non quod scitur dediscitur.” 36.
O doutor angélico, S. Tomás de Aquino, diz que os bem-aventurados se amam
entre si tanto mais quanto maior é a sua união com Deus; entretanto, na terra nos
amamos mais ou menos, segundo a maior ou menor união entre nós, pelas diferentes
relações que nos são necessárias ou permitidas.
Todavia, ainda que no Céu não tenhamos de prover às necessidades uns dos
outros, cada um conservará uma afeição especial por aqueles que lhe foram unidos, e
continuará a amá-los com mais particularidade, ou por motivo de parentesco, de
amizade, de aliança, de benefícios concedidos ou recebidos, por serem patrícios ou
da mesma vocação. Porque nenhum motivo de pura afeição deixará de operar sobre o
coração dum bem-aventurado – Non enim cessabunt ab animo beati honestae
dilectionis causae.37
O próprio Deus dizia a Santa Catarina de Sena: “Ainda que todos os meus
escolhidos estejam indissoluvelmente unidos por uma perfeita caridade, todavia,
33
S. Bernardo, in Cant. Serm. XXVI, no. 3.
34
Ibid., Epístola 374, no. 2.
35
Ibid., Epístola 65, no. 2
36
In Natali sancti Victoris, sermo II, nº 1
37
S. Tomás, Summ. 2. 2, q. 26, art. 13
43

entre aqueles que se amavam reciprocamente neste mundo, reina uma singular
comunicação e uma alegre e santa familiaridade. Por este mútuo amor se esforçavam
por crescer na minha graça, caminhando de virtude em virtude; por ele, um era para o
outro um meio de salvação; por ele, todos se auxiliavam reciprocamente em me
glorificar em si mesmos e no seu próximo. Assim, este santo amor nada diminui
entre eles na vida eterna; pelo contrário, ocasiona-lhes muito maior alegria e
contentamento espiritual”38.
Sem esta admirável harmonia do conhecimento e do amor, o Céu seria triste.
Acendei nele o facho da ciência sem a fornalha da caridade, e os ciúmes estenderão
suas redes, como na terra.
Fazei do amor um cego correndo nas trevas em procura do seu objeto, e vê-lo-
eis, dentro em pouco, vítima dos mais sombrios pesares.
Sem o amor, nada faria contrapeso à desigualdade, porque deixaríamos de
possuir no próximo o que não temos em nós mesmos.
Sem a luz, nada nos consolaria do desgraçado fim dum ente querido, infiel ao
comparecimento no ponto determinado para a reunião, porque não se veriam já os
decretos da eterna justiça, nem a marcha da amável Providência.
Mas, unir à perfeição da ciência a perfeição da caridade é excluir do Céu os
ciúmes do egoísmo e os amargos pesares.
Os santos gozam do que têm, e não se afligem do que não têm. Aqueles
mesmos que passaram uma parte da sua vida no pecado, nem por isso gozam menos
duma pura alegria e duma completa felicidade, ainda mesmo que o seu grau de glória
seja inferior.
O grande Bispo de Hipona dizia às virgens: “A multidão que vos vir seguir o
Cordeiro, sem poder acompanhar-vos, não terá ciúme. Tomando parte na vossa
alegria, ela terá em vós o que não tem em si mesma – collaectando vobis, quod in se
non habet, habebit in vobis. Sem dúvida, ela não poderá entoar o novo cântico, que
só vos é próprio (Apoc. XIV, 3, 4); mas poderá ouvi-lo e regozijar-se com a vossa
imensa felicidade”39.
Dizia ainda:
“Na mesma bem-aventurança, nenhum daqueles que tiver um grau mais
inferior terá inveja dos que estiveram colocados numa ordem mais superior, assim
como os anjos não têm ciúme dos arcanjos. Ninguém quererá ser mais do que aquilo
para que Deus o fez, assim como em nosso corpo o olho não pode invejar a sorte do

38
Sainte Catherine de Siene, Le Dialogue, cap. XLI.
39
Santo Agostinho, De Sancta Virginitate, cap. XXIX
44

dedo. A todo aquele que recebeu dons menores, dá Deus a graça de os não
ambicionar maiores”40.
Se vos repugna consultar, sobre esta matéria, os sérios e mui importantes livros
dos doutores, lançai mãos da Divina Comédia, e lede uma página deste poema, que
vos agradará, por isso mesmo que tem nele grande parte a teologia.
Na sua graciosa viagem ao Paraíso, o autor perguntava a uma alma que
encontrou no mais ínfimo grau, se ela não desejava subir mais acima para mais ver e
mais amar.
“Irmão, respondeu ela, há uma virtude de caridade que modera o nosso querer
e que, fazendo que queiramos somente o que temos, nos impede de desejar outra
qualquer coisa. É mesmo essencial à nossa bem-aventurada existência manter-se
cada qual na vontade divina, de maneira que todas as nossas vontades não façam
mais do que uma.
Que sejamos distribuídas em graduações diversas neste reino, é uma disposição
que agrada a todo ele, assim como ao Rei que absorve o nosso querer no seu. Na sua
vontade está a nossa paz. A sua vontade é este mar para o qual se move não só o que
ela diretamente criou, mas também o que a natureza produz.
Conheci então, conclui o poeta, que todo o lugar no Céu é Paraíso, ainda que a
graça do Soberano Bem se não derrame por toda a parte com a mesma
intensidade”41.

40
Ibid., De Civitate Dei, lib. XXIII, cap. XXX, no. 2.
41
Dante, Paradiso, cant. III.
45

III

Não haverá necessidade de desviar os olhos do Criador para ver as


criaturas – O Céu não é um êxtase onde se esquecem os parentes e os amigos. –
A natureza, no que tem de bom, existirá sempre. – A graça não a repele, mesmo
na terra.

O Céu é luz; não digais pois: –Encontrando-se em Deus em toda a sua


plenitude a perfeição que nos torna amável um ser criado, poder-se-á desviar os olhos
do centro dos eternos esplendores e do oceano das perfeições infinitas, para seguir
com a vista um raio separado, um pequeno regato?
Os bem-aventurados nunca têm necessidade de desviar os olhos do Criador
para reconhecerem uma criatura. É nele, é no Verbo que contemplam ao mesmo
tempo o centro luminoso e os raios, o fecundo manancial e os arroios.
“É no Verbo divino, escrevia o autor da Vida dos predestinados, que se verá a
verdade claramente, e sem estes véus que nos não deixam vê-la neste mundo em toda
a sua pureza e a descoberto.
No Céu já não haverá dúvida, ou incerteza. É neste Verbo que o predestinado
verá, como num admirável espelho, este espetáculo do mundo desenvolver-se na
mais pequena circunstância de cada sucesso. Será n’Ele que aprenderá a série dos
eternos conselhos de Deus nos interesses da sua glória. Aí divisaremos ao mesmo
tempo o presente, o pretérito e o futuro, e marcharemos, com a graça desta luz, nos
imensos caminhos da eternidade, sem nos perdermos nem ainda nos afastarmos
deles.
–Leremos aí a descrição universal de todos os tempos, e o que se passou de
mais curioso no decurso de cada século, não só no mundo exterior, mas ainda no
interior, isto é, nos lugares mais recônditos do coração humano. Será neste livro,
patente aos escolhidos, que se terá o prazer de estudar a história secreta da celeste
Jerusalém, que contém o mistério da salvação de cada predestinado, e que encerra a
narração do procedimento de Deus em relação aos homens, no admirável desejo da
sua predestinação”42.
O Céu é amor; não digais portanto: –Não há necessidade de amigos. Os santos
no êxtase esquecem até os seus parentes, e além disso a maior parte das nossas
afeições têm um princípio inteiramente natural que deixará de existir na eternidade.
42
P. Rapin, La Vie des prédestinés dans la bienheurese éternité, cap. V
46

Pobre filosofia, que circunscreve os sentimentos do coração nos limites da


utilidade presente, e não compreende que o principal bem da amizade é o mesmo
amor ou a correspondência estabelecida entre duas pessoas sinceramente unidas entre
si! Quantos sábios monarcas se têm crido mais felizes por terem um amigo do que
por terem um reino!
Não nego que os santos, em certos momentos de consolação espiritual,
sobretudo no êxtase ou arrebatamento, tenham banido toda a lembrança de seus
parentes e ainda das pessoas mais virtuosas; não nego que tenham perdido todo o
sentimento exceto o de Deus. Mas estavam na terra e em provação; cumpriam
penosamente a primeira palavra do Mestre: “Deixai casa e campos, irmão e irmã, pai
e mãe, mulher e filhos”, e não viam ainda cumprir-se a segunda: “Recebereis o
cêntuplo e possuireis a vida eterna” (Math., XIX, 29).
O Céu não é um êxtase, nem um estado violento e transitório; é a cidade
permanente, onde não há mortificação nem sacrifícios a fazer para subir mais alto,
mas onde se encontra em Deus o que se deixou por Deus. É o termo da viagem e dos
combates, onde se repousa na posse tranqüila de uma eterna recompensa.
No Céu, o Senhor prodigaliza a todos, luzes que recusa na terra a seus maiores
servos; e dá à caridade para com o próximo uma liberdade de expansão que a
prudência cristã ou religiosa deve, muitas vezes, restringir neste mundo.
A natureza, no que tem de bom, existirá sempre. Será no Céu para a glória o
que é na terra para a graça, o apoio necessário.
A natureza é uma árvore silvestre, mas a graça é-lhe engastada como um
enxerto divino. Este enxerto dá primeiramente flores, pintadas com as cores de Jesus
Cristo, que exalam no tempo a sua ótima fragrância. Produz em seguida frutos de
salvação que serão a glória dos bem-aventurados na eternidade.
Toda esta árvore com o seu fruto será transplantada no Céu. Teremos aqui
mesmo, com todas as faculdades da nossa alma, todos os sentidos do nosso corpo
sem defeito algum. Aquele que morrer ainda criança ressuscitará homem feito.
Ouviram-se os vossos gemidos quando a morte arrebatou do berço uma de
vossas filhas; sentir-se-ão vossas alegrias e cânticos ao Senhor, quando tornardes a
encontrar junto do mesmo Deus, sobre um trono, esta filha querida, chegada de
improviso a uma permanente madureza, eternamente bela, eternamente jovem!
Chamando-a para si, Deus encarregou-se de a criar, e ele mesmo cuidou da sua
educação. Ora, não receeis que ele não vos deixasse lugar em seu coração. Na terra,
ela não pôde conhecer-vos nem amar-vos; mas no Céu, por causa destas relações de
47

origem que são naturais, Deus lhe fará conhecer sua mãe, e lhe dará a piedade filial
como virtude sobrenatural.
Mesmo na terra, como já se disse, a graça não repele a natureza; pelo contrário,
estende-lhe a mão, torna-se seu guia e seu apoio. Algumas vezes mesmo leva a
condescendência até ao ponto de deixá-la marchar diante de si, vigiando sobre os
seus movimentos com uma doce solicitude maternal, tendo sempre a mão levantada
para regular os seus passos e prevenir suas quedas.
O autor da graça, não contente com amar sobrenaturalmente sua divina Mãe,
amou-a também naturalmente, e não se dedignou de ser por ela amado. E quando
verteu lágrimas sobre o túmulo de Lázaro, seu amigo, foi a natureza que as deixou
cair.
“A graça e a natureza são, ambas, filhas do Céu; mas uma pode ser considerada
como filha da esposa, a outra como filha da escrava. A primeira será herdeira do pai
de família, por direito de nascimento; a segunda será admitida a uma parte da
herança, pelo privilégio duma benévola e gratuita adoção. Aquela será a rainha, esta
a favorita da mesma rainha”43.

43
Marc, Le Ciel, appendice, III question.
48

IV

No Céu, os bem-aventurados não se afligem pela


condenação de pessoa alguma. – Não têm já afeição
alguma por um condenado. – Ele não conserva um só
elemento de amabilidade. – A vontade dos bem-
aventurados é inteiramente conforme à de Deus, mesmo
para a reprovação dum amigo, como diz Santa Catarina
de Sena, Honório e os teólogos.

O Céu é amor e luz; não digais, pois: –Imensa será a aflição dum santo ao
lembrar-se do parente ou do amigo que jamais irá reunir-se-lhe.
Das sublimidades da glória descobre-se melhor o horror e a justiça de sua
condenação.
Sol do mundo moral, Deus é o centro cuja atração livremente sujeita mantém
nossa alma na órbita da salvação, apesar das paixões que sempre nos impelem a
afastar-nos dela.
Das eternas colinas, os santos seguem atentamente as vicissitudes desta luta,
cujos resultados devem ocasionar às pessoas que lhes são queridas, o Céu ou o
Inferno. Vêem, desde há muito tempo, a divina atração, que é a mesma força da
misericórdia, obrar sobre o pecador e vencer resistências insensatas ou culpadas.
Mas, enfim, vêem este pródigo obstinado, este homem que segunda vez
crucifica a Jesus Cristo, ceder voluntariamente às seduções do pecado e ao ímpeto
das paixões, e sair inteiramente da órbita da salvação. Como um astro extinto ou
quebrado, projetado no espaço, corre veloz, afastando-se cada vez mais do seu
centro, e chega assim, pela condenação, a uma infinita distância de Deus.
Ora, a afeição dos bem-aventurados, por qualquer pessoa, enfraquece e diminui
em proporção da distância em que esta se achar do soberano bem; e como é infinita a
distância que medeia entre Deus e o condenado, nenhuma afeição pode haver por
este.
O afeto que lhe consagravam na terra, não era mais do que uma irradiação dos
atrativos divinos. Esta afetuosa inclinação será destruída pela reprovação divina, e o
raio que os iluminava e atraía voltará para Deus da mesma forma que, no mundo
49

material, quando uma nuvem se mete de permeio entre o sol e um corpo, o raio que
iluminava este corpo desaparece no mesmo instante, e volta para o astro donde saíra.
Rompida assim a cadeia do afeto, esta criatura, que outrora nos era tão querida,
deixou inteiramente de o ser. Só veremos nela uma estranha, uma inimiga, a inimiga
do nosso Deus, do nosso Pai, do nosso bem supremo. Não teremos a fazer esforço
nem violência para nos desligar dela. Proferida a sentença de reprovação pelo
supremo Juiz, o afeto que nutríamos pela pessoa condenada, desaparecerá de nosso
coração como por encanto. Porque entre nós e ela não havia atrativo necessário,
assim como não há qualidade alguma de atração entre dois fragmentos de ferro antes
de um deles ser tocado pelo ímã, ou depois de ter perdido esta propriedade
emprestada.
Não podemos, é verdade, eximir-nos de um imenso desgosto na vida presente,
lembrando-nos desta separação.
Mas aqui é só a sensibilidade que raciocina e se entristece; a fé não entra nisto:
não é mesmo propriamente a sensibilidade, que é um dom de Deus e tem uma razão
de ser. Pelo contrário, esta perseverança na afeição por criaturas que já não têm
elemento algum de amabilidade, é um contra-senso e uma espécie de aberração: é a
ilusão da sensibilidade. As recordações das nossas antigas e verdadeiras afeições
fixam-se em nós e molestam-nos, como as impressões dum sonho, quando se está
meio acordado, apesar mesmo duma suficiente luz para nos demonstrar a sua
frivolidade.
A nossa sensibilidade em relação a estas afeições está atualmente neste estado
que tem uma espécie de meio entre o sonho e a vigília; mas apenas soe o eterno
despertar, veremos claramente que tudo eram fantasmas, e a nossa sensibilidade não
se preocupará mais delas.44
Esta objeção é, algumas vezes, apresentada e sustentada por pessoas que se
consolam muito facilmente com a indiferença prática ou triste fim de seus parentes, e
que pouco fazem por convertê-los neste mundo, ou socorrê-los no outro. Mas, será
possível porventura que no Céu amemos pessoas condenadas a eternas penas mais do
que a nós mesmos? Todavia cada um de nós saberá quais foram as suas próprias
faltas, verá os graus de glória que estas lhe fizeram perder, e nem por isso seremos
infelizes, nem mesmo nos entristeceremos. Será possível que os amemos ainda mais
do que os amaram Deus e Jesus Cristo? Contudo a felicidade de Deus não é
perturbada pela sua condenação, e Jesus Cristo não se aflige com a perda de Judas.

44
Marc, Lê Ciel, appendice, III question, note.
50

Finalmente, como só amam o que Ele ama, os bem-aventurados querem


unicamente o que o Senhor quer. Assim dizia ele a uma grande santa:
“Os habitantes do Céu têm os seus desejos inteiramente completos, e nunca
estão comigo em desacordo. O seu livre arbítrio está de tal sorte ligado pela caridade,
que eles só podem querer o que eu quiser. A sua vontade está tão conforme e unida à
minha que os pais que vêem seus filhos no Inferno, ou filhos que vêem seus pais
condenados, não se afligem por isso; regozijam-se até de vê-los punidos pela minha
justiça, visto que estes filhos ou estes pais se obstinaram em ser meus inimigos”45.
Honório exprime por outros termos, e com não menos energia, o meu
pensamento:
“Os bem-aventurados não se afligirão à vista dos condenados e de seus
tormentos. Quando mesmo o pai vir seu filho no meio dos suplícios, o filho a seu pai,
a filha a sua mãe ou esta àquela, não só se não entristecerão, mas ainda se deleitarão
à vista deste espetáculo, como nos acontece quando vemos os peixes brincarem num
pego. Não está escrito (Ps. LVII, 11): ‘O justo se alegrará quando vir tirar vingança
dos pecadores?’”46.
Neste mundo, segundo o parecer do Cardeal Caetano, um pai cristão, um bom
pai, não seria feliz se soubesse que seu filho estava condenado às penas eternas; mas,
no Céu é ainda feliz na mesma hipótese, ainda que se possa dizer que, em certo
sentido, tem pesar desta condenação47.
E por que será ele feliz? Porque uma grande parte da nossa eterna felicidade,
segundo Vasquez, consistirá na inteira conformidade da nossa vontade com a divina.
Efetivamente, na eterna glória, a nossa vontade e a vontade divina estarão tão
perfeitamente de acordo, como estão os olhos do mesmo rosto, um dos quais não
pode olhar para um objeto sem que o outro o siga.
Veremos, pois, todas as coisas como Deus as vê: assim como cada um de
nossos olhos encontra no mesmo objeto a mesma aparência48.
Mas, Senhora, ouço-vos repetir-me o que me dissestes por tantas vezes: –Como
nos consolaremos neste mundo depois da desgraçada morte duma pessoa querida que
se viu expirar sem alguma aparência de reconciliação com Deus?

45
Sainte Catherine de Sienne, Le Dialogue, chap. XLI.
46
Honorius d’Autun, Elucidarium, lib. III, no. 5
47
Cajetan, Comment. In S. Thom., III, p. 9, 46, art. VII, ed. Rome 1773, t. VIII, p. 16.
48
Vasquez, in Summ., 1ª., 2ª., q. 19, Disput. 72, cap. V. – Cf. Eadmer, De sancti Anselmi similitudinibus,
cap. LXIII.
51

Ainda que esta proposta se afaste um pouco do meu objeto, não quero deixá-la
sem resposta. Vou, pois, acrescentar algumas páginas a esta carta para vos dizer:
Consolai-vos, orando.
Previstas por Deus, vossas atuais orações talvez obtivessem, antes da morte, a
secreta conversão do pecador cuja perda chorais.
52

APÊNDICE À TERCEIRA CARTA

Oremos pelos pecadores mesmo depois da sua triste morte

Mistérios da graça por ocasião da morte. - Como se podem explicar. -


Eficácia das orações feitas pelos pecadores depois do seu falecimento, segundo a
opinião do P. de Ravignam. – Testemunho de S. João Crisóstomo.

SENHORA,

A Igreja não condena pessoa alguma. Publica os seus decretos em que nos
declara que esta ou aquela pessoa está no Céu, o que nunca fez a respeito dos
condenados.
Tenho a satisfação de saber que lendo vós uma obra que merece toda a
consideração, notastes particularmente estas linhas:
“O Padre de Ravignam gostava de falar dos mistérios da graça, que cria
passarem-se no momento da morte, e parece ter sido o seu sentimento de que um
grande número de pecadores se convertem nos seus últimos momentos, e expiram
reconciliados com Deus.
Há, em certas mortes, mistérios de misericórdia e rasgos de graça em que os
olhos humanos só vêem golpes de justiça. À luz dum último raio, Deus revela-se
algumas vezes a certas almas cuja maior desgraça fora ignorá-lo; o último suspiro,
compreendido por Aquele que sonda os corações, pode ser um gemido que implore o
perdão”.
O marechal Exelmans, a quem uma queda do cavalo subitamente precipitou no
túmulo, não praticava a religião. Tinha prometido confessar-se, mas não teve tempo.
Todavia, no mesmo dia da morte, uma pessoa habituada às celestes comunicações
acreditou ouvir uma voz interior que lhe dizia:
“Quem conhece a extensão da minha misericórdia? Sabe-se porventura a
profundeza do mar e as águas que encerra? Muito será perdoado a certas pessoas que
muito ignoram”.
53

Como explicar estes rasgos da graça? Pelo preço duma alma que vale o sangue
de Jesus Cristo, vertido por ela, e pela misericórdia que não conhece limites, por
alguma boa obra, esmola ou oração que o pecador tiver feito durante a sua vida; pelo
invisível ministério do Anjo da Guarda, sempre disposto a trabalhar a bem da
salvação do seu protegido; pelas precedentes orações dos santos do Céu e dos justos
da terra, e sobretudo pela intercessão da Virgem Maria; finalmente, pelas orações
feitas pelos pecadores depois da sua morte, quando mesmo não tenham dado algum
sinal de arrependimento.
É este último ponto que me limito a explicar-vos aqui.
Lestes com prazer na obra que há pouco citei, as seguintes linhas traçadas pelo
santo religioso para consolar uma rainha cujo filho morrera, caindo duma carruagem.
“Cristãos, colocados sob a lei da esperança não menos que da fé e do amor,
devemos erguer-nos incessantemente do fundo das nossas aflições, até ao
pensamento da infinita bondade do Salvador. Nenhum limite, nenhuma
impossibilidade se mete de permeio entre a graça e a alma enquanto restar um sopro
de vida. Convém, pois, esperar sempre e dirigir ao Senhor humildes e perseverantes
instâncias. Não se poderá dizer até que ponto elas podem ser atendidas. Grandes
santos e eminentes doutores estiveram bem longe, falando desta poderosa eficácia
das orações por almas queridas, de dizerem qual tenha sido o seu fim.
Conheceremos um dia estas inefáveis maravilhas da divina misericórdia, as
quais nunca devemos deixar de implorar com uma profunda confiança”49.
Visto que o P. de Ravignan apela para os santos e para os doutores, quero
apresentar-vos o testemunho dum grande doutor e duma grande santa.
O mais eloqüente Arcebispo de Constantinopla, provando que não é
conveniente chorar muito pelos nossos queridos defuntos, mas antes auxiliá-los com
as nossas orações e boas obras, supõe que um de seus ouvintes o interrompe para lhe
dizer:
–“Mas eu choro este querido defunto, porque morreu como um pecador -
Propter hoc ipsum plango, quod peccator excessit!”.
Que responde S. João Crisóstomo?
“Não será isto um vão pretexto? Pois se tal é o motivo das vossas lágrimas, por
que não fazíeis mais esforços para convertê-lo durante a vida? E se morreu
verdadeiramente pecador, não devereis regozijar-vos, por isso mesmo, que a sua
morte veio pôr termo ao número de seus pecados que, desde então, já não pode
aumentar? É sobretudo necessário ir em seu socorro, tanto quanto puderdes, não por
49
P. de Pontlevoy, Vie du P. X. De Ravignan, chapp. X et XXI.
54

meio de lágrimas, mas de orações, súplicas, esmolas e sacrifícios. Nenhuma destas


coisas são efetivamente loucas invenções. Não é inutilmente que nos divinos
mistérios comemoramos os mortos; não é infrutiferamente que nos aproximamos do
sagrado altar e oramos por eles ao Cordeiro que apaga os pecados do mundo; pelo
contrário, tudo isto lhes serve de muita consolação.
Se Job purificava seus filhos, oferecendo por eles um sacrifício, de quanto mais
alívio deve ser para os nossos defuntos aquele que por eles oferecermos ao Senhor?
Não costuma Deus fazer bem a uns em consideração a outros? Mostremo-nos
cuidadosos em socorrer os nossos queridos defuntos, e ofereçamos por eles as nossas
orações.
A Missa é uma expiação comum de que todo o mundo se pode aproveitar.
Portanto oramos na Missa por todo o Universo, e nesta multidão nomeamos os
mortos com os mártires, com os confessores e com as virgens. Pois todos nós somos
um só corpo, ainda que este tenha membros mais brilhantes do que outros. Pode
mesmo acontecer que obtenhamos para nossos defuntos um completo perdão. Et fieri
potest ut veniam eis omni ex parte conciliemos – pelas súplicas e dons que oferecem
em seu benefício aqueles que são nomeados com eles.
Por que estais ainda angustiado? Para quê estas lamentações? Não se poderá
obter uma tão sublime graça para aquele que perdestes?”50.

II

Exemplo tirado da vida de Santa Gertrudes. – Esta


verdade não é mais do que uma particular
aplicação do princípio geral da Redenção. – A
fecundidade que ela pode dar à dor.

Encontra-se nas célebres revelações de Santa Gertrudes um exemplo que


confirma esta doutrina e lhe dá uma nova luz.
Em presença de Gertrudes, deu-se a uma pessoa a notícia da morte de um de
seus parentes. Temendo esta que ele não tivesse morrido no estado de graça,
mostrou-se muito aflita. Foi tão grande a sua perturbação que, comovida a Santa, se

50
S. João Crisóstomo, in I ad Cor. Hom. XLI, nos. 4, 5.
55

ofereceu para pedir a Deus pela alma do defunto, o que fez, principiando por dizer a
Nosso Senhor:
“Vós podíeis bem ter-me dado o pensamento e a graça de orar por esta alma
sem que a isso fosse levada por este movimento de ternura e compaixão”.
Jesus respondeu-lhe:
“Comprazo-me singularmente nas súplicas que se me dirigem pelos mortos,
quando nelas se encontra a natural compaixão junto à boa vontade que a torna
meritória, e estas duas coisas se aliam e concorrem para darem a esta obra a
plenitude e perfeição de que é capaz”.
Tendo a abadessa orado depois disto, por muito tempo a favor desta alma,
conheceu que o seu estado era lastimoso; porque lhe apareceu horrivelmente
disforme, negra como um carvão, e semelhante àquelas pessoas que se confrangem
pela violência das dores. Contudo ninguém se via que a atormentasse; mas parecia
claramente que eram seus antigos pecados que faziam sobre ela o ofício de carrasco.
“Senhor, exclamou a caritativa religiosa, não quereis ceder aos nossos rogos,
perdoando a esta criatura?
– Queria por amor de ti, responde o divino Salvador, ter piedade não só desta,
mas ainda dum milhão de outras. Queres, pois, que lhe perdoe todos os seus pecados
e a livre de toda sorte de sofrimentos?
– Talvez, replicou a Santa, não é isso conforme ao que ordena a vossa justiça!
– Não seria contrário, acrescentou Nosso Senhor, se mo pedisses com bastante
confiança. Porque a minha divina luz, que penetra no futuro, tendo-me feito conhecer
que me farias esta súplica, excitei nessa alma boas disposições, para prepará-la a
gozar dos frutos da tua caridade.51
Oh! palavras cheias de consolação!
Primeiramente, Deus, prevendo nossas futuras súplicas, digna-se de conceder
ao pecador moribundo boas disposições que assegurem a salvação da sua alma;
depois, por virtude das nossas orações presentes, consente em livrar esta mesma alma
de toda a sorte de penas, e em retirá-la das chamas expiatórias.
A última confidência do Salvador à sua virginal esposa, não é mais do que uma
aplicação particular dum principio geral.
Antes que os homens tivessem podido abaixar seus olhos sobre o Presépio e
levantá-los para o Calvário; antes que o Sol da Redenção fosse para eles visível,

51
Les Insinuations de la divine piété, liv. V, chap. XIX.
56

neste humilde vale do nosso exílio, já podiam deixar-se conduzir pela sua luz e
vivificar pelo seu calor.
Por quê? Porque Deus Pai, da sublimidade das eternas colinas, via já as
orações, os sofrimentos, as virtudes e os merecimentos do seu único Filho, que devia
encarnar-se para salvar o mundo.
Não é assim que a Virgem bendita, que devia ser a Mãe deste único
Filho, foi preservada de toda a mancha em sua própria conceição, porque,
diz-nos a Igreja, Deus considerava antecipadamente a Jesus Cristo
crucificado? – Ex morte ejusdem Fielii tui praevisa, eam ab omni labe
preservasti.52
Esta verdade, bem compreendida e posta em prática, pode dar à dor a sua maior
fecundidade.
“Toda a minha vida está nisto presentemente”, dizia a pessoa que me fez notar
esta passagem das revelações de Santa Gertrudes; “antes que meu marido morresse,
Deus sabia o que eu faria por ele!”.
E assim fez um completo sacrifício de si mesma. Consagrou-se ao Senhor,
tomando por divisa: Orar, sofrer, trabalhar53 e o Senhor a consolou, dando-lhe por
família, com os pobres enfermos da terra, as atribuladas almas do Purgatório.
Orai, pois, e fazei orar: o Deus cuja misericórdia é alta e vasta como o Céu (Ps.
LVI, 2; CVI1, 5), conheceu, no momento em que ia expirar o vosso parente ou
amigo, as orações que mais tarde faríeis por ele, hoje, amanhã, depois de terdes lido
estas páginas e seguido o meu conselho.
Orai e fazei orar: vossas orações, santificando-vos e consolando-vos nesta vida,
concorrerão para salvar aqueles que amais.

52
Collecta da Missa da Imaculada Conceição.
53
Simart, estatuário, membro do Instituto, Étude sur sa vie et sur son oeuvre, par Gustave Eyriès, chap. X,
p. 402, 403.
57

QUARTA CARTA

Reconhecimento dos parentes ou a família no Céu

Reflexo dos três principais mistérios da nossa religião na família cristã. – A


família recomposta no Céu. – Palavras de Tertuliano. – Exemplo de Nosso
Senhor. – Tocante espetáculo que oferecerá o Paraíso. – Jesus e Maria
reconhecem-se. – Maria tem cuidado de Jesus no Sacramento do seu amor. – Ela
conserva sobre o seu Coração um soberano poder.

SENHORA,

Desejaríeis saber, particularmente, o que acontece à família no Céu, isto é, se


Deus ali a recompõe, e se a esperança de possuir vossos parentes na pátria celeste é
uma consolação de que possais gozar sem receio, sem escrúpulo e sem imperfeição.
Podereis duvidá-lo, quando tantos santos personagens vo-lo afirmam, tanto por
seus exemplos como por suas palavras?
Deus coroou de glória e honra a família cristã, e faz brilhar em sua fronte o
reflexo dos três principais mistérios da nossa religião. Vede por onde ela começa: –
Por um Sacramento que é o sinal sagrado da união do Verbo de Deus com a natureza
humana, da união de Jesus Cristo com a sua Igreja, e da união do mesmo Deus com a
alma justa.
Quem o disse? Um grande Papa, Inocêncio III54. Vede por onde continua:
“Maridos, amai vossas mulheres como Jesus Cristo amou a sua Igreja e se entregou
por ela; mulheres, amai vossos maridos como a igreja ama a Jesus Cristo e se entrega
por Ele”.
Quem o disse? O grande apóstolo S. Paulo (Eph., V, 25).
Vede por onde acaba: – Pelas relações de origem que os anjos nos enviam,
tanto elas nos recordam as da Trindade e nos procuram alegrias; porque o homem é
do homem como Deus é de Deus. Homo est de homine, sicut Deus de Deo. Assim o
disse um grande doutor, S. Tomás de Aquino55.
Mas teria mais poder o sopro da morte para destruir esta obra prima, do que a
virtude força para lhe conservar o esplendor? E visto que o amor é forte como a
morte (Cant., VIII, 6), dar-se-á que a caridade de Deus, que criou a família, que a
54
Inocêncio III, Prima collectio Decretalium, titul. XL, epist., t. I, p. 600, édit. Baluz.
55
S. Tomas, Summ. I, p., q. 93, art. 3.
58

caridade do homem que lhe santifica o uso, não queira ou não possa refazer
eternamente no Céu o que a morte desfez temporariamente na terra?
Tertuliano dizia:
“Na vida eterna, Deus não separará aqueles que unira na terra, cuja separação
também não permite nesta vida inferior. A mulher pertencerá a seu marido, e este
possuirá o que há de principal no matrimônio – o coração. A abstenção e ausência de
toda a comunicação carnal, nada lhe fará perder. Não será tanto mais honrado um
marido quanto mais puro for?”56.
Aquele que nos deu este preceito: Não separe o homem o que Deus uniu
(Math., XIX, 6), deu-nos também o exemplo. O Verbo contratou com a humanidade
um divino desponsório: repudiou ele porventura a sua esposa subindo ao Céu?
Pelo contrário, fê-la assentar consigo à direita do seu Eterno Pai.
O Homem Deus tem uma Mãe que é bendita entre todas as mulheres:
dedignou-se Ele de fazê-la participante da sua glória? Depois de associá-la à sua
Paixão na terra, fê-la gozar das alegrias da sua Ressurreição e dos esplendores do seu
triunfo, atraindo ao Céu, após de si, o seu corpo e sua alma.
Jesus Cristo tinha dado a alguns homens o nome de irmãos: desconhecê-los-ia
mais tarde? Não. Reconheceu os seus Apóstolos no martírio que sofreram por Ele, e
fez-se reconhecer por eles no esplendor de que os cerca na Corte Celeste.
Mas o Filho de Deus que assim se dignou recompor, em redor de si, a sua
família por natureza e por adoção, não quereria recompor da mesma forma, no
Paraíso, esta cristã e religiosa família, que é a vossa e também a sua? Quer, sim, e o
Céu oferecerá um espetáculo não menos tocante do que admirável.
Assim como a primeira pessoa da Augustíssima Trindade, dirigindo-se à
segunda, lhe diz: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei (Act., XIII, 33); e a segunda diz à
primeira, com o acento da piedade filial: Meu Pai, Pai justo, Pai santo, guarda
aqueles que me foram dados em teu nome para que sejam um, como nós somos um,
vós em mim e eu neles (Joan., XVII, 11, 22-25): assim também uma criatura humana
se voltará para outra e lhe dirá com ternura: Meu filho, minha filha! E do coração
desta subirá para aquela, esta exclamação de amor: Meu Pai!
Assim como o único Filho de Deus se regozija de poder dizer a uma mulher:
Vós sois minha Mãe; também inumeráveis escolhidos exultarão de alegria dizendo
igualmente a uma mulher: Minha mãe!
Ora, se fosse verdade que os membros da mesma família se não reconhecessem
no Céu, Jesus não reconheceria já sua Mãe nem seria reconhecido por ela. Não será
horrível pensar nisto e muito mais dizê-lo?

56
Tertuliano, De Monogamia, cap. X.
59

Um piedoso autor estava por certo mais bem inspirado, quando escrevia:
“A Santíssima Virgem conserva intacta a sua autoridade maternal sobre o corpo
do seu Filho, Nosso Senhor, mesmo depois da Ressurreição e Ascensão; porque o seu
direito é perpétuo e inalienável.
Depois de se ter deleitado, durante a sua vida mortal, na submissão a Maria,
Jesus compraz-se ainda em mostrar-se seu filho na bem-aventurada imortalidade, e
em reconhecê-la por sua Mãe. Temos a prova disto nessas numerosas aparições, em
que ele se tem feito ver sob a forma de um menino entre os braços de sua Mãe, e se
tem mesmo dado a alguns Santos por suas virginais mãos. Na glória, os parentes
conservam um contínuo cuidado de seus próximos, e particularmente dos filhos, que
são uma parte deles mesmos, e por assim dizer, outros eles. É, pois, indubitável que a
Mãe de Jesus tem sempre o pensamento unido a tudo o que toca ao corpo do seu
querido Filho, tanto na obscuridade do Sacramento como nos esplendores da glória.
Segue-o, do alto do Céu, com a vista e com o coração em todos os lugares em que se
encontra presente na terra, pela consagração eucarística”.57
A eterna duração desta maternal ternura e desta filial piedade, explica e
justifica o belo titulo de Nossa Senhora do Sagrado Coração, dado a Maria pelos
nossos contemporâneos.
“Tomando a natureza humana, disse o sr. Bispo de Rodes, o Verbo Divino
apropriou-se de todos os elementos que a compõem, no estado de perfeição a que a
elevou a união hipostática – Debuit per omnia fratribus similiari (Hebr., II, 17).
Nosso Senhor possui no mais alto grau o sentimento do amor filial, um dos
mais nobres do coração humano, e longe de se despojar dele depois da ressurreição e
da sua gloriosa ascensão, tê-lo-ia dilatado, fortificado e elevado no seu mais sublime
poder, se fora permitido dizê-lo, no seu estado de bem-aventurada transfiguração, em
que está assentado à direita de seu Pai.
Daqui é fácil de concluir que a augusta Virgem Maria possui sobre o seu divino
Coração um soberano poder, de que ela é verdadeiramente a Senhora ou a Rainha”58.

57
De Machault, Le Trésor dês grands biens de la T. S. Eucharistie, Nat. de la T. S. Vierge, III. p.
58
Notice sur l’association em l’honneur de N. D. du Sacré-Coeur, no. 1.
60

II

A segurança de se reconhecerem os parentes no Céu tem consolado todos


os santos. – O B. Henrique Suso. – S. Tomás de Aquino. – S. Francisco Xavier. –
Santa Tereza. – O seu pensar a respeito da felicidade de uma mãe. – Felizes as
pais que têm filhos religiosos.

Esta certeza de uma especial união com os nossos parentes na eterna bem-
aventurança, é uma consolação tão pura e tão doce que tem chegado a fazer as
delícias dos próprios santos. Por todos os ventos do Céu, do Oriente, do meio dia, do
Ocidente e do Setentrião, nos chegam vozes que testemunham esta verdade.
A Alemanha apresenta-nos, entre muitos outros, o B. Henrique Suso, religioso
da Ordem de S. Domingos. O seu nome era Henrique Besg, mas preferiu o nome de
Suso, que era o de sua mãe, para honrar a sua piedade e recordar-se dela
incessantemente59.
Esta virtuosa mãe morreu numa Sexta-feira Santa, à mesma hora em que Nosso
Senhor foi crucificado. Henrique estudava então em Colônia. Ela apareceu-lhe
durante a noite, toda resplandecente de glória:
“Meu filho, lhe disse, ama com todas as tuas forças o Deus onipotente, e fica
bem persuadido de que ele nunca te abandonará em teus trabalhos e aflições. Deixei
o mundo; mas isto não é morrer, pois que vivo feliz no Paraíso, onde a misericórdia
divina recompensou o imenso amor que eu tinha à Paixão de Nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo.
– Ó minha santa mãe, ó minha terna mãe, exclamou Henrique, amai-me sempre
no Céu, como fizestes na Terra, e não me abandoneis jamais nas minhas aflições!”
A bem-aventurada desapareceu, mas seu filho ficou inundado de consolação60.
Em outra ocasião viu a alma de seu pai, que tinha vivido muito apegado ao
mundo. Apareceu-lhe cheia de sofrimentos e aflições, fazendo-lhe assim
compreender os tormentos que sofria no Purgatório, e pedindo-lhe o socorro das suas
orações.
Henrique derramou tão ferventes lágrimas que alcançou quase logo a sua
entrada no Paraíso, donde ele veio agradecer-lhe a sua felicidade.61

59
Oeuvres du B. Henri Suso, traduzidos por Cartier, prólogo p. XIII.
60
Idem, idem, Vida, no. 39.
61
Ib., Vida, no. 8.
61

Os gauleses poderiam reivindicar, quase tanto como os italianos, o Anjo da


escola. A alma de S. Tomás de Aquino não estava absorvida pela ciência, mas a
caridade conservava em seu coração um lugar distinto para seus irmãos e irmãs
segundo a natureza.
Durante a sua estada em Paris, uma de suas irmãs lhe apareceu para dizer-lhe
que estava no Purgatório. Pediu-lhe que dissesse um certo número de missas,
esperando que a bondade de Deus e a intercessão de seu irmão a livrariam das
chamas.
O Santo pediu aos seus alunos que orassem e dissessem missas pela alma de
sua irmã.
Depois disto, quando ele estava em Roma, tornou-lhe a aparecer, dizendo que
estava livre do Purgatório e já gozava da glória do Céu, por virtude das missas que
ele tinha dito ou feito dizer.
“– E quanto a mim, minha irmã, exclamou o Santo, nada sabeis?”
– Quanto a vós, meu irmão, sei que a vossa vida é agradável ao Senhor. Vireis
muito breve reunir-vos a mim; mas o vosso diadema de glória será muito mais belo
do que o meu.
– E onde está meu irmão Landulfo?
– Está no Purgatório.
– E meu irmão Reinaldo?
– Está no Paraíso entre os mártires, porque morreu pelo serviço da Santa
Igreja62”.
Na Espanha, encontramos S. Francisco Xavier, partindo para as Índias, e
passando perto do castelo de seus pais. Excitaram-no para que entrasse em casa de
sua família, representando-lhe que, deixando a Europa para talvez nunca mais a ver,
não podia honestamente dispensar-se de visitar os seus naquela ocasião, e de dizer
um último adeus a sua mãe que ainda vivia.
Não obstante todas estas solicitações, o Santo seguiu caminho direto, e
somente respondeu que se reservava para ver seus pais no Céu, não de passagem e
com o pesar que os adeuses causam ordinariamente, mas para sempre e com uma
alegria verdadeiramente pura63.
Encontramos a ilustre reformadora do Carmelo, a seráfica Teresa de Jesus.
Dentro das grades do seu convento, apesar da austeridade da sua vida, cultivava em
seu coração as puras afeições da família; e esperava que o Deus que promete o
62
Acta sanctorum, VII martii, auctore Guillelmo de Troco, cap. VIII, no. 45
63
Bouhours, La vie de Saint François Xavier, 1. 1.
62

cêntuplo a quem deixar tudo pelo seu nome (Math., XIX, 29), lhe restituiria
centuplicado o amor dos seus parentes no Céu.
Uma tarde, Teresa, encontrava-se tão incomodada e aflita que julgava não
poder fazer oração, e tomou o seu Rosário para orar verbalmente sem algum esforço
de espírito. Que fez Nosso Senhor para a consolar? Ela mesma no-lo diz por estas
palavras:
“Tinham decorrido apenas alguns instantes, quando um arrebatamento veio,
com irresistível impetuosidade, roubar-me a mim mesma. Fui transportada em
espírito ao Céu, e as primeiras pessoas que vi foram meu pai e minha mãe”64.
Sabeis, Senhora, que uma igual graça foi concedida à Senhora Acaria, que
depois veio a ser carmelita no mesmo convento de Pontoise, onde uma de vossas
irmãs ora por vós e se santifica entre as filhas de Santa Teresa, e que é agora honrada
sob o nome de Beata Maria da Encarnação? Ela viu um dia seu esposo, um ano
depois dele ter falecido, no meio dos santos do Paraíso65.
Deus compraz-se em tomar o coração da esposa cristã, como recebeu em suas
mãos o pão no deserto (Marc. VI., 41), para o multiplicar, abençoando-o tantas vezes
quantas lhe dá filhos, que estão esfaimados do seu amor, aos quais ela deve saciar,
não só para glória do Senhor, mas também para a sua própria felicidade.
Santa Teresa louva uma piedosa senhora que, para ter posteridade, praticava
grandes devoções e dirigia ao Céu ferventes súplicas. “Dar filhos à luz que, depois da
sua morte, pudessem louvar a Deus, era a súplica que incessantemente dirigia ao
Céu. Sentia muito não poder, depois do seu último suspiro, reviver em filhos cristãos,
e oferecer ainda por eles ao Senhor um tributo de bênçãos e de louvores”.
A austera carmelita diz de si mesma:
“Penso algumas vezes, Senhor, que vos comprazeis em derramar sobre aqueles
que vos amam a preciosa graça de lhes dar, em seus filhos, novos meios de vos
servir.”
Diz ainda: “Demoro-me muitas vezes neste pensamento: Quando estes filhos
gozarem no Céu das eternas alegrias, e conhecerem que as devem a sua mãe, com
que ações de graças lhe não testemunharão o seu reconhecimento, e com que
reduplicada ventura se não sentirá palpitar o coração desta mãe em presença da sua
felicidade!”66.

64
Vida de Santa Tereza, escrita por ela mesma, cap. XXXVIII.
65
Boucher, Histoire de la B. Marie de l’Incarnation, publicada pelo Exmo. Bispo d’Orleans ; liv. VI, cap.
VI, t. II, 264, 265.
66
Le livre des fundations, chap. XI, XX, XXII.
63

Eis o que pensaram, eis o que disseram, a respeito da família recomposta no


Céu, santos que têm direito à auréola da virgindade, e que passaram nalguma Ordem
ou comunidade religiosa quase toda a sua vida.
Livrai-vos, pois, de acreditar que o filho que, desde seus primeiros anos, se
consagra a Deus para sempre, olvide seu pai, sua mãe e seus irmãos. Pelo contrário, o
seu coração torna-se o depósito da caridade.
Se, pelas fendas das paixões, ela se escapasse de todos os outros para só deixar
neles a indiferença e o esquecimento, o seu guardaria este precioso tesouro para
incessantemente o derramar por todos os canais da virtude.
Tanto o religioso ancião, como o jovem, é ouvido muitas vezes pelo seu bom
anjo durante o silêncio do sacrifício ou da oração, dizendo ao Senhor: Memento,
lembrai-vos de meus parentes que ainda vivem; memento, lembrai-vos de meus
parentes que já morreram; e abençoai uns e outros para além de quanto o meu
coração pode desejar.
Feliz mãe que tivestes a ventura de poder dar a Jesus dois filhos e duas filhas
para glória do seu nome e amor do seu Coração; não temais que estes filhos sejam
infiéis ao quarto preceito da lei divina.
Frutos separados da família, os religiosos, voltam-se muitas vezes, pela mesma
força da sua tendência à perfeição da caridade, para a árvore que os produziu, a fim
de a louvar e abençoar. Todas as bênçãos, temporais ou espirituais, que lhe obtêm de
Deus, serão conhecidas somente no Céu.
64

III

Conformidade de sentimento e de linguagem em todos os lugares. – S.


Cipriano. – S. Teodoro Estudita. – Elogio que faz de sua mãe. – Cartas de
consolação que ele escreve. – Pura alegria dos esposos no Céu. – Santa Francisca
Romana e seu filho Evangelista. – Alegria dos pais e dos filhos no Paraíso.

Mas esquecia-me de que prometera percorrer todo o horizonte da Igreja, para


vos mostrar a sua conformidade de sentimentos e de linguagem sobre todos os
pontos.
Na África, eis S. Cipriano que foi educado no paganismo, e só abraçou a
continência depois da sua conversão. Eleito Bispo de Cartago e condenado ao
martírio, consolou os fiéis por ocasião duma epidemia que então grassava e que os
ameaçava de morte. Que lhes disse ele? Dirigiu-lhes palavras que a Santa Igreja
recorda aos seus sacerdotes, na oitava da festa de Todos os Santos. Ei-las:
“Visto que vivemos na terra como estrangeiros e viajantes, suspiremos pelo dia
que nos conduzirá à nossa habitação e nos reintegrará no Reino dos Céus. Qual é
aquele que, estando exilado, não se apressaria a voltar à sua pátria?
Qual é aquele que, obrigado a regressar por mar aos lares pátrios, não desejaria
ardentemente um vento favorável, a fim de poder mais cedo abraçar aqueles que lhe
são queridos?
A nossa pátria é o Paraíso, e os patriarcas, nossos antepassados, já aí nos
precederam. Apressemo-nos, pois, e corramos para ver a nossa pátria e saudar os
nossos maiores! Somos esperados por um grande número de pessoas que nos são
queridas; somos desejados por uma grande multidão de parentes, de irmãos e de
filhos que, seguros da sua imortalidade, se conservam ainda solícitos pela nossa
salvação. Ir vê-los, ir abraçá-los, ah! que alegria para nós e para eles!67”
Entre os gregos, em Constantinopla, um dos campeões mais intrépidos da
ortodoxia contra os iconoclastas do Oriente, S. Teodoro Estudita, tinha entrado em
religião na idade de vinte e dois anos, sob a direção dum tio materno, a quem
sucedeu no governo. Teve a ventura de fazer, na presença de todos os religiosos, o
elogio fúnebre de sua mãe, panegírico que o cardeal Mai traduziu e publicou, elogio
que um coração amoroso não pode ler sem uma profunda comoção. Apenas soube
67
S. Cipriano, De Mortalitate, in fine. – Brev.
65

que a sua enfermidade era mortal, escreveu-lhe uma carta afetuosa e consoladora, em
que chegou a dizer:
“Ó minha mãe, se me retivessem somente cadeias de ferro, o amor que vos
consagro as quebraria, e teríeis a alegria de me ver ainda. Mas, vós o sabeis, outros
vínculos me retêm, vínculos que era indigno de gozar; e posso somente fazer-me
representar junto de vós, por alguém que vos é agradável e querido”68.
No elogio que dela fez, diz que esta mãe, verdadeiramente cristã, ia todas as
noites, quando seus filhos estavam deitados, fazer sobre eles o sinal da cruz; conta
como ela levou após de si para a vida religiosa seu marido, três filhos, uma filha e
três cunhados; diz com que docilidade ela foi mais tarde submissa a ele próprio.
Teodoro termina a exposição das admiráveis virtudes desta heróica mulher, por
este brado dum coração ternamente filial:
“Oh, minha mãe e minha filha, oh vós que fostes duas vezes minha mãe,
quanto desejo tornar-vos a ver! Vós habitais com todos os santos, no meio das
solenidades e das alegrias do Céu; habitais com os nossos irmãos que tanto amáveis
nesta vida. Ah! não vos esqueçais de mim que sou o mais pequeno de vossos filhos;
mas orai, orai por mim com mais instância do que em tempo algum. Dirigi-me,
fortalecei-me e preservai-me de todos os perigos do pecado. Visitai-me por uma
presença espiritual – Spiritali praesentia visita – e fazei ainda por mim o que fazíeis
na minha infância: conduzi, observai como me levanto, como me deito, observai as
agitações da minha alma e do meu corpo, a fim de que, depois da presente vida,
obtenha estar com meus discípulos debaixo da vossa proteção, e ocupar um lugar
convosco à direita de Jesus Cristo nosso Deus”69.
Este ilustre confessor da fé consolou muitas famílias aflitas. A um pai que tinha
perdido todos os seus filhos, escrevia:
“Vossos filhos não estão perdidos, mas antes existem sãos e salvos para vós; e
quando chegardes ao termo desta vida temporal, torná-los-eis a ver cheios da mais
pura e santa alegria”70.
Também escrevia a uma viúva:
“O Deus que vos tirou do nada para dar-vos a existência, o Deus que vos
conduziu a uma idade florescente para vos unir a um homem ilustre, saberá unir-vos
ainda outra vez a ele pela ressurreição. Olhai, pois, a sua partida como uma viagem.
Não vos resignaríeis se um rei da terra a ordenasse? Resignai-vos, portanto, com esta
ausência, pois muito bem sabeis que aquele que ordenou esta viagem é o verdadeiro

68
S. Teodoro Estudita, Epist. lib. I, epist. VI.
69
Ibid., Epist., lib. I, ep. 29, Leoni orphanotropho
70
Ibid., Oratio, XII, Laudatio funebris in matrem suam, no. 14
66

Rei, o único Rei do universo. Exorto-vos a isso, e espero que possuireis novamente
vosso marido no dia do Senhor”71.
A um homem que acabava de perder sua mulher dirigiu também as seguintes
linhas:
“Foi para junto de Deus que enviastes uma tão digna esposa; não será isto
bastante para vossa consolação? E que é o que deveis procurar agora? Deveis
trabalhar para encontrar no Céu, no momento fixado pela Providência, esta excelente
companheira que se regozijará convosco, por todos os séculos, na participação de
bens inefáveis”72.
Sem dúvida, aqueles que na terra se acharem ligados pelo vínculo matrimonial,
subindo ao Céu, serão como os anjos: Neque nubent, neque nubentur (Matth. XXII,
30). Mas, despidos de toda a sensualidade, gozarão sempre do casto prazer do
espírito, e se recordarão que, na terra, não só foram dois corações num e duas almas
numa, como os primeiros cristãos (Act., VI, 32), mas também uma só carne, como os
nossos primeiros pais (Gen., II, 24; - Matth., XIX, 6).
Na Itália, Santa Francisca Romana foi casada, teve filhos e, depois de viúva,
fez-se religiosa.
Despertando do sono ao romper da aurora de certo dia, levantava seu coração
para Deus, e abaixava os olhos para sua jovem filha que dormia perto dela. De
repente, viu o seu quarto cheio duma nova luz, no meio da qual apareceu um de seus
filhos que, havia um ano, tinha falecido. A sua estatura e todo o seu exterior era o
mesmo que quando vivo; mas a sua beleza era incomparavelmente mais
arrebatadora: chamava-se Evangelista.
Este filho, sempre amoroso, aproximou-se de sua mãe, e saudou-a com
profundo respeito e uma graça encantadora.
Que fez então Francisca, transportada duma inexplicável alegria? O que toda a
mãe teria feito: estendeu ávidos os braços para estreitar ainda uma vez contra o peito
este filho querido. E que lhe disse? O Céu é a lembrança de tua mãe: Num matris
suae meminisset in coelis.
– “Ó minha mãe, respondeu Evangelista, vede se penso em vós e se vos amo!
Não divisais um outro menino, de pé, a meu lado, duma beleza muito superior à
minha? É meu companheiro no coro dos arcanjos, pois o meu lugar no Céu é no
segundo coro da hierarquia angélica. Todavia, este arcanjo está colocado na glória
em grau superior ao meu, e contudo, Deus vo-lo dá. Deus vai deixa-lo ocupar junto
de vós o meu lugar e o de minha irmã Inês que, muito brevemente, voará ao Paraíso,

71
Ibid., Epist. 1, II. Ep. 110. Uxori Demochari.
72
Ibid., 1. II, ep. 186, Nicethoe spathario.
67

para aqui gozar comigo das alegrias eternas. Este celestial espírito vos consolará na
vossa peregrinação, vos acompanhará assiduamente e permanecerá dia e noite ao
vosso lado, de maneira que o possais ver com os vossos próprios olhos”.
Este colóquio durou por espaço de uma hora; e, antes de se ausentar, o filho
pediu a sua mãe licença para regressar ao Céu, deixando-lhe o arcanjo73.
Se já lestes a vida de Santa Francisca Romana, composta por um nobre e
zeloso católico da vossa província, não podeis ignorar o importante papel que
desempenhou junto desta santa mulher, o arcanjo, este celestial companheiro, devido
às orações dum filho que a precedera na pátria dos escolhidos74.
Deus é sempre admirável em seus santos (Ps. LXVII, 36). O que acabais de
ver, mostra que o não é menos pela delicadeza das consolações de que inunda o seu
coração, do que pela grandeza das provas ou dos milagres de que se serve para os
conduzir à perfeição ou para fazer brilhar a sua santidade. Em volta deles, disse um
orador francês, que foi confessor de Henrique IV, em volta deles estarão seus
parentes, seus amigos, seus aliados e todos aqueles que lhes forem iguais em glória:
todos, muito nobres, muito santos, muito sábios, muito opulentos, muito afáveis,
muito eminentes, muito agradáveis de condição, de excelente temperamento, de belas
maneiras, de inteligência, de coração, de discrição e de todas as virtudes; todos, lírios
sem más ervas, rosas sem espinhos, ouro sem liga, grão sem palha e trigo sem joio!
E, ainda que o seu número seja grande, todos se conhecem reciprocamente, e
conversam com tanta familiaridade como se o seu número fosse pequeno.
Então o filho agradecerá a seu pai a sã instrução que lhe tiver procurado, e a
filha a sua mãe os bons exemplos que lhe tiver dado. Deus vos recompensa, minha
muito querida e digna mãe, dirá a filha, Deus vos inunda para sempre de felicidade
por tantos cuidados, que tivestes de mim! Sois minha mãe e duplamente minha mãe;
porque me destes a vida temporal e a eterna. Foi por meio de vós que a divina
bondade me tornou tão feliz.
– Bendito seja Deus, minha filha, bendita sejas tu nele para sempre! A tua bem-
aventurança é um apanágio da minha, e esta é uma adição da tua; amemos o Senhor e
louvemo-lo incessantemente. Felizes as entranhas que te geraram e o seio que te
amamentou, e um milhão de vezes bendito ainda mais Aquele de quem possuímos
todas as coisas! Glória a Ele, honra, luz e bênção em todos os séculos dos séculos75.
73
Acta sanctorum, IX martii, Vita Sanctae Franciscae, cap. III, nos. 21,22, 23.
74
Vie de Sainte Françoise Romaine, pelo visconde Bussiére, cap. VI
75
Sermons sur lês principales et plus difficiles matières de la foi, pelo r. P. Cotou, da Companhia de Jesus,
confessor e pregador ordinário do rei, reduzidos por ele mesmo à forma de meditações. – Rouen, 1926, Du
Paradis, meditação XXIa.
68

Eis aqui, Senhora, a conversa que tereis, eis a felicidade que gozareis tantas
vezes quantos filhos tiverdes.
Todavia, Deus não se contentará somente com vos consolar pelas alegrias da
família que recomporá no Céu; mas ainda multiplicará vossas consolações pelas
doçuras da amizade que ali transplantará.
69

Q U I NTA CAR TA

Reconhecimento dos amigos ou a amizade no Céu

Todos os santos se têm comprazido no pensamento de reconhecer e amar


ainda no Céu os seus amigos. – Sentimentos do B. Etelredo. – Palavras do P.
Rapin. – Santo Ambrósio. – 0 Santo Cura d'Ars.

SENHORA,

Além do estreito círculo da família, pode a amizade estender a vasta esfera das
nossas afeições.
O Homem-Deus quis ter amigos na terra, e dignou-se reuni-los em volta de si
no Céu. A seu exemplo, os mais santos personagens deixaram dilatar o amor de seu
coração; todos tiveram amigos escolhidos entre mil, e todos se têm regozijado com o
pensamento de os reconhecerem e amarem ainda na eterna glória.
Também escreveram admiráveis páginas a respeito da verdadeira e perfeita
amizade, que é toda espiritual. Apenas vos citarei uma que diz particular respeito ao
nosso assunto. É do bem-aventurado Etelredo ou Aelredo, contemporâneo de S.
Bernardo e abade da ordem dos Cistercienses, na Inglaterra. É uma conversa com um
amigo.
Aelredo. Suponhamos que não haja neste mundo pessoa alguma além de vós, e
que todas as delícias, com todas as riquezas do universo, estejam à vossa disposição,
ouro, prata, pedras preciosas, cidades muradas, acampamentos fortificados por torres,
grandes edifícios, esculturas e pinturas. Suponhamos ainda que estejais restabelecido
no antigo estado, e que todas as criaturas vos sejam submissas como ao primeiro
homem. Pergunto-vos: Todas estas coisas poderiam ser-vos agradáveis sem um
companheiro?
Gualter. Não, por certo.
Aelredo. Mas se tivésseis somente um companheiro cuja língua ignorásseis,
cujos costumes desconhecêsseis, e cujo coração e espírito vos fossem ocultos?
Gualter. Se, por qualquer sinal, eu não pudesse saber se sim ou não ele era
meu verdadeiro amigo, desejaria antes estar só do que ter um tal companheiro.
70

Aelredo. Mas se houvesse alguém a quem amásseis como a vós mesmo e que
vos amasse também do mesmo modo, sem que nenhum de vós o pudesse duvidar,
todas as coisas que até ali vos apareciam amargas não se vos tornariam doces e
suaves?
Gualter. Sim, certamente.
Aelredo. Não será ainda verdade que quanto maior fosse o número de tais
amigos, mais feliz vos julgaríeis?
Gualter. É muito verdade.
Aelredo. Eis precisamente a grande e admirável felicidade que esperamos
gozar no Céu. Deus operará, Deus derramará, entre si e a criatura que tiver elevado
ao Paraíso, entre os graus, ou ordens que tiver distinguido, entre todos os
predestinados que tiver escolhido, uma tão grande amizade, uma tão grande caridade,
que se amarão reciprocamente como a si mesmos. Resultará deste mútuo amor o
regozijar-se cada um com a felicidade do próximo tanto como com a sua própria.
Assim a felicidade de cada um será comum a todos, e a soma destas bem-
aventuranças, será própria a cada um.
Ali nenhum pensamento será oculto, ali nenhuma afeição se dissimulará, tal é a
eterna e verdadeira amizade que tem princípio na terra e se completa no Céu; que na
terra pertence a um pequeno número, porque também aqui são poucos os bons, mas
que no Céu pertence a todos, porque todos ali são bons.
Neste mundo é necessário experimentar nossos amigos, porque os sábios estão
misturados com os tolos; no Céu não há necessidade de se ser provado, porque todos
gozam duma perfeição angélica e quase divina.
Procuremos, pois, encontrar semelhantes amigos, que nos amem e a quem
amemos como a nós mesmos, que nos descubram todos os seus segredos, e a quem
descubramos todos os nossos, que sejam firmes, estáveis e constantes em todas as
coisas.
Com efeito, pensais vós que se encontre alguém entre os mortais que não
queira ser assim amado?
Gualter. Não creio.
Aelredo. Se vísseis alguém, vivendo no meio dum grande número de
homens e tendo-os a todos por suspeitos, temendo-os mesmo como se
quisessem atentar contra a sua vida, não amando pessoa alguma e crendo
não ser amado por ninguém, não o consideraríeis o mais desgraçado de
todos?
Gualter. Sem dúvida.
Aelredo. Não negareis, pois, que o mais feliz será aquele que habita e repousa
no coração daqueles entre os quais vive, que os ama a todos e que é igualmente
71

amado, sem que esta suavíssima tranqüilidade seja diminuída pela suspeita ou
repelida pelo temor.
Gualter. Muito bem, certissimamente.
Aelredo. Se é difícil que todos obtenham esta felicidade no presente, ao menos
o futuro no-la reserva; e julgar-nos-emos tanto mais felizes no Céu, quanto maior for
o número de semelhantes amigos que tivermos na terra.
Antes de ontem passeava eu em volta do mosteiro, enquanto meus irmãos
reunidos e assentados formavam a mais amável companhia, e como se estivera no
meio das delícias do Paraíso, admirava as folhas, as flores e os frutos destas místicas
árvores. Não divisando nesta multidão pessoa alguma que não amasse, e de quem
não tivesse a segurança de ser amado, fiquei inundado duma tão grande alegria que
excedia a todos os prazeres deste mundo. Sentia o meu coração entornar-se em todos,
e os corações de todos entornarem-se em mim, de sorte que dizia com o Profeta:
“Oh! como é bom; oh! como é agradável viver unidos como irmãos (Ps.
CXX11, 1)”76.
Estes sentimentos do bem-aventurado Aelredo justificam estas palavras de um
autor mais moderno:
“Ah! se eu tivera expressões assaz ternas e fortes para descrever a doçura das
castas e espirituais amizades que terão lugar no Céu, onde não se amará senão pelo
espírito, e para explicar todas as santas ternuras, que os bem-aventurados terão uns
para com os outros, e as comunicações amorosas em que os impuros vapores da
carne e todo o comércio vergonhoso dos sentidos não terão parte; que prazeres e que
delícias não faria eu sentir às almas puras que só aspiram ao gozo destas celestes
afeições, que farão uma das grandes felicidades da outra vida, porque estarão
misturadas com o gozo do mesmo Deus, e com as inefáveis doçuras de seus divinos
abrasamentos!
Que poderá aqui haver de delicioso aos sentidos que mereça ser comparado a
estes prazeres? Se uma amizade sincera, honesta, fiel e inocente faz muitas vezes a
doçura desta vida, que fruto se não tirará destas espirituais amizades, que se
praticarão no Céu, acompanhadas de todas estas circunstâncias?
E se um amigo seguro e fiel pode, na terra, tornar um outro amigo feliz, qual
será a felicidade da vida eterna, onde todos os bem-aventurados serão verdadeiros
amigos?”77.

76
B. Aelredus, De spiritali amicitia, lib. 111.
77
P. Rapin, La Vie des prédestinés dans la B. Eternité, cap. IX
72

Ora, uma das alegrias destes verdadeiros amigos será reconhecerem-se na


Igreja Triunfante, assim como na Igreja Militante é também uma das suas alegrias
vazarem o coração no seio uns dos outros.
Assim pensava Santo Ambrósio, quando comentava estas palavras de Nosso
Senhor: “Vós sóis meus amigos, porque vos revelei tudo o que aprendi de meu Pai”
(Joan., XV. 15).
“Por estas palavras, diz ele, deu-nos, o Salvador, a forma da amizade que
devemos seguir. É necessário que revelemos ao nosso amigo todos os segredos que
se encerram no nosso coração, e que não ignoremos também os seus. Abramos-lhe,
pois, o nosso coração, e que ele nos abra igualmente o seu.
Um amigo nada tem de oculto. Se ele é sincero, patenteia o seu espírito, como
Jesus patenteava os mistérios de seu Pai”78.
Assim pensava esse humilde e santo padre de nossos dias, que foi um grande
apóstolo sem sair da sua pobre aldeia onde a multidão o visitava quando vivo e o
visita ainda depois da sua morte. Eis aqui algumas das suas consoladoras frases:
Com quem estaremos no Paraíso? Com Deus que é nosso Pai, com Jesus Cristo
que é nosso Irmão, com a Santíssima Virgem que é nossa Mãe, com os anjos e os
santos que são nossos amigos. Um rei dizia com bastante pesar em seus últimos
momentos:
“É necessário, pois, que eu deixe o meu reino a fim de ir para um país onde não
conheço ninguém!
É que ele nunca tinha pensado na felicidade do Céu. É preciso desde já
arranjarmos verdadeiros amigos, a fim de os tornarmos a encontrar depois da morte;
e não teremos receio, como este rei, de não conhecermos ninguém”79.
Não disse o próprio Salvador:
“Empregai as riquezas injustas em obter amigos, a fim de que, quando
morrerdes, eles vos recebam nos eternos tabernáculos?” (Luc. XVI. 9).

78
Santo Ambrósio, De Officiis, liv. III, cap. XXII, no. 135.
79
O Santo cura d’Ars, Vie de J. B. Marie Vianney, por Alfredo Monuin, liv. IV, cap. XV, homilia para a
última dominga do ano.
73

II

Flor duma especial e santa amizade no Paraíso. – Durar assim para


sempre é também da verdadeira amizade, segundo S. Jerônimo. – A santa
amizade é o prelúdio ou o gozo antecipado do Céu, segundo S. Francisco de
Sales. – Célebre visão de S. Vicente de Paulo. – A continuação da amizade depois
da morte consolou S. Gregório Nazianzeno, Santo Agostinho e S. Cipriano.

Talvez vos pareça que só tenho falado, até aqui, dessa geral amizade que
existirá no Céu entre todos os religiosos que vivem na mesma comunidade. Mas não
se aplicará com mais razão, tudo o que tenho dito, a essa flor duma especial e santa
amizade, que o tempo vê algumas vezes germinar entre dois corações pela virtude do
sangue de Jesus Cristo? Crede firmemente que esta flor, depois de ter feito as vossas
delícias na terra, continuará a exalar o seu perfume na bem-aventurada eternidade,
para embalsamar a corte celeste e dar aos santos mais uma alegria.
Os doutores consideram ainda como essencial à amizade, o poder seguir-nos
assim até ao seio de Deus.
A afeição que não possa entrar onde nada penetrará que não seja puro, é
indigna do nome de amizade. Diz S. Jerônimo: Amicitia quae desinere potest, vera
nunquam fuit – a amizade que pode acabar nunca foi verdadeira80. Logo que ela não
pode ser eterna, não é real; desde que não merece durar sempre, só é aparente ou
impura.
A verdadeira, a sincera, a virtuosa e santa amizade sobrevive a todas as
separações da morte, para reunir nas sublimidades do Céu, no ápice da bem-
aventurança, os corações e as almas que ela unia neste vale de lágrimas e de misérias.
Quem não leu estas linhas em que S. Francisco de Sales considera a verdadeira
amizade como prelúdio ou ante-gosto do Céu?
“Se a vossa mútua e recíproca comunicação, diz ele, se transforma em
caridade, em devoção, em perfeição cristã, ó Deus, quanto será preciosa a vossa
amizade! Ela será excelente, porque vem de Deus, excelente porque tende a Deus,
excelente porque o seu liame é Deus, excelente porque durará eternamente em Deus.
Oh! como é bom amar na terra como se ama no Céu, e aprendermos a querer-
nos mutuamente nesta vida como nos queremos e nos amaremos eternamente na
outra!
O delicioso bálsamo da devoção destila-se dum dos corações no outro, por uma
contínua participação, de sorte que se pode dizer que Deus derramou sobre esta
80
S. Jerônimo, Epist. I, class. epist. III, no. 6.
74

amizade a sua bênção e a vida, por todos os séculos dos séculos. Esta casta união
nunca se converte senão em uma união de espíritos, mais perfeita e pura, imagem
viva da bem-aventurada amizade que se exerce no Céu”81.
É um exemplo desta bem-aventurada amizade o próprio fundador e a
fundadora da Visitação. S. Vicente de Paulo foi dela testemunha, numa célebre visão
que refere nestes termos:
“Tendo esta pessoa (ele mesmo) notícia da perigosa enfermidade da nossa
defunta, ajoelhou para orar a Deus por ela; e imediatamente depois, apareceu-lhe um
pequeno globo como de fogo, que se elevava da terra, e ia reunir-se, na região
superior do ar, a um outro globo maior e mais luminoso, e ambos reunidos se
elevaram mais, entraram e derramaram-se noutro globo infinitamente maior e mais
luminoso do que os outros; e foi-lhe interiormente dito que este primeiro globo era a
alma da nossa digna mãe (Santa Chantal), o segundo, a do nosso bem-aventurado pai
(S. Francisco de Sales), e o terceiro, a Essência Divina; que a alma da nossa digna
mãe se tinha reunido à do nosso bem-aventurado pai, e ambas a Deus, seu soberano
princípio. Além disso, a mesma pessoa, que é um padre, celebrando a santa missa
pela nossa digna mãe, como se de repente tivesse recebido a notícia do seu feliz
passamento, e estando no segundo Memento em que se ora pelos mortos, pensou que
faria bem em orar por ela; e viu novamente a mesma visão, os mesmos globos e a sua
união”82.
Quando a morte vos arrebatar alguma pessoa querida, não tenhais, pois, algum
escrúpulo de vos consolar, repetindo: Ela não me esquece; ora por mim e vela sobre
mim. Permanecemos unidas!
Assim se consolava S. Gregório Nazianzeno depois da morte de S. Basílio, seu
perfeito amigo:
“Agora, dizia ele, Basílio está no Céu. É lá que oferece por nós os seus antigos
sacrifícios e recita pelo povo novas orações. Porque, indo-se desta vida, não nos
deixou inteiramente. Vem ainda algumas vezes advertir-me por meio de visões
noturnas, e repreende-me quando me desvio do meu dever”83.
Santo Agostinho também se consolava do mesmo modo, depois que um dos
seus amigos foi transportado pela morte à eterna bem-aventurança. “É aí, escrevia
ele, que vive o meu Nebrídio, ele, meu doce amigo, ele, vosso filho adotivo, ó
Senhor! É aí que ele vive, é aí que sacia à vontade a sede da sabedoria. Contudo, não
81
S. Francisco de Sales, Introduction à la vie dévote, IIIa. p., cap. XIX e XX.
82
Abelly, Vie de saint Vincent de Paul, t. II, cap. VII.
83
S. Gregório Nazianzeno, Oratio XLIII, no. 80.
75

penso que ele esteja inebriado desta sabedoria até ao ponto de se esquecer de mim. E,
como se esqueceria ele, visto que vós mesmo, Senhor, vós, de quem se inebria o meu
amigo, vos lembrais de nós?”84.
A mesma consolação tomava um santo bispo, escrevendo a um santo Papa,
prevendo a morte que não podia tardar em feri-los:
“Lembremo-nos um do outro, em toda a parte e oremos sempre um pelo outro,
adocemos nossos pesares e angústias com o nosso mútuo amor; enfim, se um de nós,
por um efeito da bondade divina, preceder o outro no Céu, que a nossa amizade dure
ainda junto do Senhor, e que a nossa oração não cesse de solicitar a misericórdia do
nosso Pai, em favor dos nossos irmãos e irmãs”85.

III

Podemos mesmo excitar-nos ou animar-nos pela esperança de nos unirmos


a um amigo junto de Deus. – Grandes santos foram sensíveis a esta esperança. –
Confissão de S. Francisco Xavier. – União sobrenatural de dois corações. –
Gradação no parentesco espiritual das almas. – Fraternidade inteiramente
espiritual e de escolha.

Podeis ainda ir mais longe. Depois de vos terdes primeiramente consolado, de


alguma sorte, pela firme esperança de que a vossa amiga oraria mais eficazmente por
vós, se fosse a primeira a subir ao Céu, regozijar-vos-eis também de ali vos reunirdes
a ela com o pensamento, e lhe direis: Estaremos um dia reunidas no Paraíso, sim,
reunidas junto de Deus: quanto mais nos amaremos então!
Mas talvez se encontre alguém que tente repelir violentamente todos estes
sentimentos dum coração amoroso, dirigindo-vos esta censura: “Quê! animar a vossa
coragem e excitar-vos a sustentar generosamente os combates deste mundo, em parte
pela esperança de vos repousardes no Céu sobre o coração das pessoas que amais,
não será uma clara e grosseira imperfeição?”
Respondei que os maiores santos foram sensíveis, ainda mais do que vós, a esta
esperança, e que desejavam gozar, ainda na eternidade, dos castos abraços de seus
amigos. O apóstolo das Índias e do Japão confirma isto mesmo por sua confissão,
feita ao fundador da Companhia de Jesus.

84
Santo Agostinho, Confess., liv. IX, cap. III, no. 3.
85
S. Cypriano, Epist., LX, Cornélio, fin.
76

“Dizeis, escrevia S. Francisco Xavier a Santo Inácio, no excesso da vossa


amizade por mim, que desejaríeis ardentemente ver-me ainda uma vez antes de
morrer. Ah! só Deus, que vê o interior dos nossos corações, sabe quão viva e
profunda impressão causou em minha alma este doce testemunho do vosso amor para
comigo. Cada vez que me lembro dele, e isto acontece muitas vezes, involuntárias
lágrimas me rebentam dos olhos; e se a deliciosa idéia de que poderia abraçar-vos
ainda uma vez, se apresenta ao meu espírito (porque, por mais difícil que isto pareça
à primeira vista, não é coisa que a santa obediência não possa efetuar), encontro-me
num instante surpreendido por uma torrente de lágrimas que nada pode fazer
parar”86.
“Peço a Deus que se nos não pudermos tornar a ver na terra, gozemos unidos,
na feliz eternidade, do repouso que se não pode encontrar na vida presente 87. E
efetivamente, não nos tornaremos a ver na terra senão por meio de cartas; mas, no
Céu, ah! será face a face! E então, como nos abraçaremos!”.88
Com efeito, quem poderá descrever os transportes de alegria que dois amigos
experimentarão, um pelo outro, no Céu, depois de se terem mutuamente excitado à
perfeição, e de terem verificado estas palavras da Escritura: “O amigo fiel é um
remédio que dá a vida e a imortalidade, e aqueles que temem o Senhor encontram um
tal amigo” (Eccl., VI, 16).
Escutai, sobre esta amizade dos santos, um autor que merece ser citado ainda
uma vez:
“Dominado, neste mundo o nosso coração pelas sensíveis impressões, e não
julgando o mais das vezes senão por elas, nem sempre se dá conta exata das delícias
desta união sobrenatural das almas. Admite-as pela fé, mas são-lhe mistério; mostra-
se-lhe ordinariamente insensível, porque as não compreende.
Algumas vezes, contudo, desprende-se do oceano da divina graça um como
raio que, rompendo a nuvem dos sentidos, vem iluminar certas almas privilegiadas e
dar-lhes um ante-gosto destas inefáveis uniões que são, à vista das da natureza, o que
seria um perfume emanado do Céu ao pé dos mais esquisitos perfumes da terra.
Vê-se algumas vezes, e mesmo não é raro, na vida dos santos, uma alma unida
a outra por uma destas misteriosas atrações, fortes e serenas, que admiram e
confundem a natureza.

86
Lettres de saint François Xavier, traduzidas por A. M. F., t. II, p. 203, carta XCIII no. 3.
87
Ibid., t. I, p. 161, carta XLIII, no. 4.
88
Ibid., p. 8, carta II, no. 1.
77

A alma que assim ama, vê na sua amiga uma companheira duma beleza
inexplicável, cujos espirituais encantos ela aprecia como tipo divino, em
conformidade do qual fora feita. Vê nela a imagem de Deus, e só esta imagem;
emprega todos os meios, ofertas, sacrifícios e orações, para que ela se torne cada vez
mais semelhante ao modelo, para assim aumentar a sua amabilidade e amá-la ainda
mais. São como duas irmãs, saídas à luz no mesmo dia, do lado de Jesus no Calvário,
pelos mais dolorosos sofrimentos.
No Céu, este parentesco espiritual terá uma graduação análoga à da natureza:
uma hierarquia de pais, de filhos, de irmãos e de irmãs.
“Os bem-aventurados verão um pai em todo o homem que, pela efusão do seu
sangue, de seus suores e orações, os tiver, de perto ou de longe, gerado em Jesus
Cristo; e este homem contará tantos filhos muito amados quantas as almas que tiver
lucrado para o seu Deus.
Oh! quanto será bela esta paternidade! Quão ricos e preciosos serão os tesouros
da sua fecundidade!
O cego mundo apieda-se destas almas sobre-humanas que, calcando aos pés os
atrativos e as seduções da natureza, renunciam às alegrias mais legítimas da família;
e não vê que, em troco do seu sacrifício, Deus as dotará com uma outra família, que
lhes fará gozar duma felicidade e de consolação incomparavelmente mais doces do
que jamais sentiu alguma mãe da terra.
Um dia seremos testemunhas disto, e veremos quanto estas almas eram mais
dignas de inveja do que de compaixão. Assim, a glória terá a sua doce fraternidade,
formada entre duas ou mais almas por vínculos próprios e pessoais. Esta especial
fraternidade nascerá primeiramente dessas ligações que uma comunidade de deveres,
de regras e de práticas, forma entre todos os filhos do mesmo pai ou da mesma mãe
espiritual.
Nascerá, em segundo lugar, daquelas cadeias mais particulares que uma
comunhão de boas obras e de orações forma por si entre duas almas, unidas uma à
outra por um atrativo comum para com Deus: simpatia de todo o ponto celeste,
afeição inteiramente divina de dois corações, dando-se o ponto de reunião no
Coração de Jesus, cioso da perfeição um do outro, e pondo todo o ardor do seu zelo
em procurá-la e aumentá-la”89.
Tendes admirado, Senhora, tendes abençoado esta fraternidade inteiramente
especial, esta doce e santa amizade, unindo sob a vossa vista maternal, duas almas

89
Marcos, Le Ciel, apêndice, IIIa. questão.
78

que pareciam ser-vos igualmente queridas, e que honravam a Virgem das Virgens
mais ainda imitando a sua piedade do que possuindo o seu nome.
Agora que uma delas, vossa filha por natureza, subiu ao Céu, a outra ficou
junto de vós como filha por adoção. A sua presença é-vos deliciosa, como muitas
vezes me dissestes, porque crêdes encontrar nela a vossa filha muito querida.
Encontrá-las-eis unidas no Paraíso, encontrá-las-eis continuando a santa intimidade
da sua recíproca afeição, encontrá-las-eis, finalmente, rivalizando para convosco em
respeito e amor.
A vossa própria felicidade aumentará muito à vista desta venturosa união.
79

S E XTA CARTA

O homem conhece os anjos, ou a união dos anjos e dos homens


no Céu

Deus renovará o Céu e a terra para que gozemos dos seres


materiais. – Comparação de S. Tomás. – Comparação de S. João
Crisóstomo. – Quanto mais nos fará ele gozar dos puros espíritos! – No
Céu, estaremos colocados entre os anjos. – As crianças formarão
como que um décimo coro. – Visão de santa Francisca Romana.

SENHORA,

Deus não se contenta de nos conceder somente a bem-aventurança essencial, a


visão e o gozo do bem incriado, que é Ele mesmo.
Está tão longe de nos recusar a parte da bem-aventurança acidental, que é o
conhecimento e o amor dos nossos parentes e amigos, que multiplicará as alegrias e
prazeres para os olhos, língua, gosto, olfato, tato e ouvidos; numa palavra, para todos
os sentidos do nosso corpo90. “Renovará mesmo o Céu e a terra” (Isai. LXV, 17). –
(Apoc., XXI, 1) para que gozemos tanto pelos nossos sentidos como pelo nosso
espírito, dos seres privados de razão.
“Se os corpos, disse S. Tomás, nada mereceram por si mesmos, mereceu o
homem por eles: mereceu que a glória lhes fosse dada, para aumentar a sua própria
glória. Assim, quando alguém adquire uma nova dignidade, é justo que os seus
vestidos recebam mais belos ornamentos em testemunho da sua nova glória”91.
S. João Crisóstomo emprega duas outras comparações. “Quando um príncipe
real, diz ele, toma posse do trono paterno, a ama que o criou não receberá novos
benefícios, novas graças? Ora, as criaturas materiais, são nossas amas. Quando um
filho deve aparecer em público revestido de alguma dignidade, não tem o pai cuidado
para honrá-lo, de dar a seus criados um vestuário mais esplêndido? Assim também
quando o nosso Pai celeste nos apresentar no mundo superior, com a branca toga da
90
Belarmino, De aeterna felicitate sanctorum, liv. IV, cap. V-VIII – Drexelius, Caelorum Beatorum
civitas, liv. II, cap. I-V.
91
S. Tomás, Summ, supp., q. 91, art. 1, ad. 5.
80

virilidade, com as insígnias devidas ao nosso grau, aumentará a nossa glória,


revestindo dum brilho incorruptível os seres materiais que são nossos servos”92.
Quanto mais devem gozar os santos, assim antes como depois da ressurreição
bem-aventurada, dos puros espíritos que dominam as outras criaturas, e com os quais
temos, por parte da nossa alma, um verdadeiro parentesco? Nós já os amamos e
honramos. Mas, além disso, então vê-los-emos e cada um de nós conhecerá o seu
amável guarda.
Seremos colocados no Céu entre os coros angélicos, num lugar determinado
pelo grau dos nossos merecimentos ou pela natureza das nossas virtudes93. O quarto
abade de Claraval, pregando de S. Bernardo, no ano de 1163, recordava-o aos
religiosos como coisa conhecida de todos, e mostrava-lhes como o seu glorioso
predecessor merecia ser provido a todas as ordens ou graus angelicais, pelas
qualidades que desenvolvera e pelos ministérios que cumprira94.
S. Tomás crê que algumas almas bem-aventuradas já têm os seus tronos nas
graduações mais elevadas dos espíritos celestes, donde vêem a Deus mais claramente
do que os anjos inferiores95. Nenhum coro angélico será excetuado; mas todos verão,
cedo ou tarde, os tronos vagos pela queda dos espíritos rebeldes ocupados pelos
homens.
S. Boaventura partilha esta opinião, e pensa que os bem-aventurados que não
chegam em merecimento ao nível dos anjos menos elevados em glória, formam uma
décima ordem ou um décimo coro96.
Neste estão, sem dúvida, colocados os meninos que, arrebatados pela morte,
não puderam ajuntar algum merecimento pessoal à graça do seu batismo: anjos
benditos a quem suas mães invocam para se consolarem da pena de os não verem
mais neste mundo, e que são os protetores de suas famílias.
Portanto, de que mal se tornam culpadas tantas mulheres cristãs que recuam
diante das dores do parto ou dos trabalhos da educação! E de que alegrias se não
privam elas para sempre, recusando povoar o Céu de pequenos anjos, que viriam
saudá-las à sua entrada na glória e formariam eternamente a sua corte?
Enquanto vós, mais feliz, vereis os vossos numerosos filhos, os vossos parentes
e todos aqueles que amastes na terra, engrossar as fileiras dos anjos e ornar talvez

92
S. João Crisóstomo, In Rom. Hom. XIV.
93
Potho, presbítero Prumiense, de Statu domus Dei, liv. IV, cap. XIV. – De Barry, La Dévotion aux anges,
cap. III. – Santa Catarina de Senna, Le Dialogue, cap. XLI.
94
Gaufredo, Sermo in anniversario obitus sancti Bernardi, no. 18-21.
95
S. Tomás, Summ. 1ª., 2ª., q. 4, art. 5 ad 6.
96
S. Boaventura, in lib. II Sentent., Dist. IX, art. unic., q. VII.
81

cada um dos seus coros. Possa esta esperança consolar-vos, como consolou uma
outra mãe aflita por causa da morte dos seus!
Numa visão, Santa Francisca Romana viu subir algumas almas bem-
aventuradas que iam tomar lugar no grau que Deus lhes assinalara na glória eterna:
Todos os coros angélicos que estas almas atravessavam para chegar a uma ordem
mais elevada, prodigalizavam-lhes os testemunhos do mais sincero amor e da mais
viva alegria.
Sempre assim é. Mas o coro onde a alma novamente chegada ocupa um trono,
excede todos os outros em brilhantes felicitações e em transportes de alegria. Entoa
um cântico de louvores e ações de graças em honra do Deus de bondade, e prolonga
esta doce festa por muito tempo depois dela ter cessado nos outros coros.
Depois desta visão, todas as vezes que a Santa queria exprimir esta alegria dos
anjos à chegada das almas bem-aventuradas, com esta admirável união da criatura
humana com a criatura angélica, o seu rosto inflamava-se, e toda ela parecia derreter-
se como a cera em presença do fogo97.
Com que alegria não terá sido acolhida, e até que ponto não terá subido a alma
da vossa filha que possuía o nome da Rainha dos Anjos, e que foi ela mesma, na
terra, um anjo de pureza e dedicação? Todas os dias ela pedia a vossa bênção, e à
vista do seu retrato ainda a vossa mão se levanta para a abençoar.
Agora é ela que, todos os dias, faz descer do alto do Céu, as bênçãos que pede
para vós ao Senhor, todas aquelas que os santos desejam, bênçãos de sofrimento e de
cruz, mas de paciência e de amor ao mesmo tempo. Gozai, pois, da sua felicidade
que deve ser a vossa; porque Maria está mais bem colocada no Céu do que na terra,
melhor entre os anjos do que entre os homens.

97
Acta Sanctorum, IX, martii, Acta sanctae Franciscae, lib. III, cap. IX, n o. 91.
82

II

Não estaremos mais absortos do que os anjos, na contemplação


do Criador. – Como eles, contemplaremos as criaturas, e poderemos
entreter-nos com elas. – Veremos os condenados. – Reconhecer-nos-
emos tão facilmente como se reconhecem os puros espíritos. – Nada
teremos de oculto, segundo S Bernardo, S. Gregório e Santo
Agostinho. – Todavia os nossos pensamentos, assim como os dos
anjos, não serão conhecidos contra nossa vontade.

Esta mistura dos homens e dos anjos nas mesmas hierarquias e nos mesmos
coros, permite-nos responder a algumas dificuldades, cuja solução parece estar na
semelhança que teremos com os puros espíritos.
Não existe motivo algum pelo qual devêssemos estar mais absortos na
contemplação de Deus do que os próprios anjos. Desde o momento em que eles
foram confirmados na graça, gozaram duma perfeita bem-aventurança e ficaram
arrebatados de admiração em presença da glória e da majestade do Criador. Não se
distraem d'Ele, quando lhes mostram as criaturas que são obra sua, e que Ele lhes
permitiu contemplar e admirar, e quis mesmo que as conduzissem e governassem.
Não estão distraídos, quando nos acompanham durante a nossa peregrinação
neste mundo, para nos guardar e sustentar no bom caminho. Não o estão, finalmente,
quando se interessam pela conversão dum pobre pecador a ponto de se regozijarem
mais da sua volta para Deus do que da perseverança de noventa e nove justos (Luc.,
XV, 7, 10).
Da mesma sorte, diz Ansaldo, por mais ocupados que estejamos no Céu, da
glória e da imensidade do Soberano Bem, poderemos ainda ocupar-nos de todos os
nossos amigos; não só dos que tiverem ficado na terra, mas também dos que
participarem da nossa felicidade.98
Esta mesma caridade que, na terra, eleva o homem mortal da criatura ao
Criador, o fará inclinar-se das sublimidades da Pátria para o mundo inferior, quando
se tiver tornado imortal e glorioso, assim como impele os anjos fiéis a descerem do
Céu à terra, do Criador à criatura.
O argumento que resulta desta semelhança foi desenvolvido por S. Bernardo:

98
Ansaldo, Della sperança..., cap. X.
83

“Os espíritos superiores, que desde todo o princípio estão no Paraíso,


desprezarão a terra porque habitam o Céu? Não. Visitam-na, pelo contrário e a
freqüentam. Por isso mesmo que vêem sempre a face do Pai celeste, não se
desempenharão mais do ministério da compaixão?
Todos eles são enviados, diz o Apóstolo, para exercerem o seu ministério em
favor daqueles que recebem a herança da salvação (Hebr., 1, 14). Como assim? Pois
se os anjos vão e vêm para socorrer os homens, os bem-aventurados, que são da
nossa raça, não nos conheceriam nem poderiam mais condoer-se de nós em certas
circunstâncias em que eles mesmos tiveram que sofrer?! Os espíritos, que nunca
experimentaram dor alguma, sentem contudo as nossas dores; e os santos que
passaram por grandes tribulações, não reconheceriam já o estado em que
estiveram?!”99
O Anjo da Escola, S. Tomás, demonstra que nem a contemplação da Essência
Divina impedirá os bem-aventurados de sentirem as coisas sensíveis, de
contemplarem as criaturas, e mesmo de operarem; nem este sentimento, esta
contemplação e esta ação, os distrairá da beatífica vista de Deus. Não se daria isto em
Nosso Senhor durante a sua peregrinação na terra?100. Sem nada perderem deste
divino gozo, os bem-aventurados poderão conversar com os seus parentes, com os
seus amigos e com os mesmos anjos, como estes conversam entre si.
Quando aplicamos fortemente, neste mundo, uma das nossas faculdades a um
objeto difícil, todas as outras ficam sem força e ação. Mas, no Céu, cada uma das
nossas potências terá toda a plenitude da perfeição de que é capaz.
A inteligência dos santos será iluminada pela luz da glória, e a sua vontade será
fortificada pela pátria sobrenatural da caridade, a tal ponto que nenhum esforço terão
a fazer para nunca perderem de vista a Divindade; mas contemplando-a e amando-a
inteiramente, lhes será fácil também contemplar os globos celestes, conversar com os
escolhidos e amar todos os bem-aventurados, como nos é fácil e natural neste mundo
ver a luz, conversar ao mesmo tempo com os nossos parentes ou amigos, e amá-los
ternamente101.
Mas os santos verão os condenados e os condenados verão os santos?
Reconhecer-se-ão ao menos no juízo final. A Escritura não nos permite duvidá-lo,
pois que nos mostra os maus exclamando, em presença dos bons: “São estes que

99
S. Bernardo, in Natali sancti Victoris, sermo II, no. 3.
100
S. Tomás, Summ., IIa. p, q. 84, art. II, 4.
101
Ansaldo, Della speranza..., cap. X.
84

outrora foram o objeto das nossas zombarias! Quão insensatos éramos!” (Sap., V, 3,
4.)
Segundo Honório, os justos verão os pecadores nos tormentos, para se
regozijarem mais de se terem livrado deles.
Também os condenados, antes do juízo universal, verão os justos na glória para
mais se afligirem de a terem desprezado. Mas os bons verão sempre os maus nos
suplícios depois do juízo, entretanto que os maus nunca mais tornarão a ver os
bons.102 Não se deve, porém, concluir daqui, que a bem-aventurança seja tanto uma
visão do inferno, como do Céu.
Só Deus pode ver tudo ao mesmo tempo. Os santos, bem como os anjos, não
contemplam incessantemente as simples criaturas, nem todas ao mesmo tempo. Eles
não vêem, pois, sem interrupção, as horríveis torturas dos condenados. O Senhor
mesmo desvia delas, quando lhe apraz, os seus pensamentos e os seus olhos.
Os anjos não têm feição alguma corpórea, e todavia reconhecem-se entre si,
tanto como as três divinas Pessoas. Não podemos negar o fato, ainda que ignoremos
o modo.
Porque não admitiremos igualmente este reconhecimento entre as almas dos
bem-aventurados, antes da ressurreição da carne? Porventura a alma de Jesus Cristo
morto e sepultado, quando desceu ao limbo, não foi reconhecida dos patriarcas, dos
profetas e de todos os justos do Antigo Testamento de quem ela se dignava ser
consoladora? E como os teria consolado, se não fosse vista, ouvida e reconhecida por
eles?
Pode mesmo dizer-se com Monsenhor Malou, cujas palavras citamos na carta
que serve de introdução a este livro:
“As almas despojadas de seus corpos revestem formas intelectuais que as
inteligências separadas da carne podem perceber, distinguir e conhecer”.
Finalmente, até que ponto se conhecem os santos entre si? 0 abade de Claraval
diz em geral: “Os bem-aventurados então ligados entre si por um amor tanto maior
quanto menor é a distância em que se acham do próprio amor que é Deus.
Nenhuma suspeita pode introduzir a divisão nas suas fileiras, porque entre eles
nada há de oculto: o raio da verdade que tudo penetra não o permite”103.

102
Honório d’Autum, Elucidarium, liv. III, no. 3.
103
S. Bernardo, In Dedication e Ecclesiae, sermo I, no. 7
85

Antes de S. Bernardo, tinha dito um grande papa, que o coração dos bem-
aventurados será brilhante como o ouro, e transparente como o cristal, de sorte que se
conhecerão entre si melhor no Céu do que durante a sua vida na terra104.
Antes de S. Gregório, dizia também o ilustre Bispo de Hipona: “Nesta
sociedade dos santos, verão todos reciprocamente os pensamentos que só Deus vê
agora. Assim como quereis que neste mundo se veja o vosso rosto, também querereis
que no outro se veja a vossa consciência 105. Todos os espíritos bem-aventurados
formarão somente uma cidade, um coração e uma alma; e, nesta perfeição da nossa
unidade, os pensamentos de cada um de nós não serão ocultos aos outros”106.
Contudo, a condição dos homens não deve diferir, sob este ponto de vista, da
condição dos anjos. Ora, um sábio teólogo prova que estes puros espíritos têm uma
linguagem que, sem ser sensível ou corporal, é todavia mui inteligível; mas que os
seus pensamentos não chegam ao conhecimento uns dos outros, senão tanto quanto
eles querem. É necessário que um ato da sua vontade dirija este pensamento ou esta
“palavra espiritual” àquele a quem lhe agrada que seja conhecida. Podem assim falar
a uns sem falar a outros e sem ser entendidos ou compreendidos por todos. Pois a
linguagem angélica não parece ser outra coisa mais do que o destino ou a direção
dum pensamento, por um ato de vontade a algum destes puros espíritos que só então
o conhece107.

III

Cada um de nós reconhecerá o seu anjo da guarda, e


será também reconhecido por ele. – Alegria que disto
resultará. – Os santos comparados por Dante com as
flores e os anjos, com as faíscas. – Todos os santos
comparados a uma rosa somente, e os anjos, às
abelhas. – 0 Céu comparado por Jesus Cristo a um
banquete. – Troca recíproca entre os anjos e os santos.

As doçuras da santa união formada na Pátria Celeste entre os anjos e os


homens, foram-nos desenhados pelos grandes gênios católicos.

104
S. Gregório Magno, Moralium, liv. XVIII, cap. XLVIII, no. 77, 78
105
Santo Agostinho, Sermo CCXLIII, cap. 5
106
Santo Agostinho, De bono conjugali, cap. XVIII, no. 21.
107
Petau, De Angelis, liv. I, cap. XII, nos. 7 e 11.
86

S. Tomás de Aquino faz-nos perceber que os anjos põem uma parte da sua
felicidade em reinar cada um com o bem-aventurado que lhe foi confiado, em
assentar-se no mesmo trono, em cingir-se, por assim dizer, com a mesma coroa e em
fazer juntamente com ele um só coração e uma só alma: pois que todo o homem deve
ter no Céu um anjo para reinar com ele, ou, no inferno, um demônio para o
atormentar – Habebit in regno Angelum conregnantem, in inferno daemonem
punientem108.
S. Boaventura diz-nos que a alegria do anjo aumentará pela bem-aventurança
do homem que guardou na terra, não só quanto à extensão, visto que cresce o número
daqueles com cuja glória se regozija, mas também quanto à mesma intensidade. É
verdade que esta não se deve entender da recompensa essencial, mas somente da
acidental. Ela explica-se pelo próprio bem dos anjos, pelo bem das criaturas
santificadas que eles amam ternamente, e sobretudo pelo bem daquela que lhes está
mais intimamente unida, porque foram os ministros da sua salvação e fizeram por ela
milhares de ações boas. Por isso se regozijam e se felicitam109.
Então efetuam-se, entre o anjo da guarda e o bem-aventurado que ele conduziu,
mistérios de amor que não podemos ver nem compreender enquanto as sombras
deste mundo não forem dissipadas pelos esplendores dos Céus. O espírito faz passar,
perante o homem, o comovente quadro de todos os seus esforços para contê-lo no
bem, e conduzi-lo à perfeição; desenrola na sua presença todo o plano da Providência
a respeito da obra da sua salvação. O santo responde ao espírito celeste,
testemunhando-lhe mil vezes o seu reconhecimento, recordando a confiança com que
se lhe recomendava, assegurando-o de que este feliz passado está sempre na sua
memória, e que estas doces lembranças são um perfume que ainda respira com
delícias, no meio mesmo das alegrias do Paraíso.
Muitas vezes, nestes amáveis entretenimentos, o anjo e o homem inclinam-se
um para o outro, sob o impulso deste sopro divino que se denomina caridade da
pátria, e do coração de um para o outro a efusão daquela penetrante alegria, que é
semelhante ao orvalho do Céu.
Assim, nos jardins terrenos, vêem-se, sob a ação duma doce brisa, duas flores
vizinhas inclinarem-se uma para a outra como para se darem o beijo da paz e
confundirem os seus tesouros.
O grande poeta que tão admiravelmente descreveu o Paraíso, tem pois, ainda
mais uma vez razão.

108
S. Tomás, Summ., I, p., q. 113, art. 4.
109
S. Boaventura, in lib. II Sentent. Dis XI , art. II. q. 2.
87

Por uma parte, mostra que os homens se conhecem reciprocamente no Céu,


quando mesmo se não tenham conhecido na terra. S. Tomás reconhece o seu mestre
Alberto Magno; mas conhece também Dionísio Areopagita, Beda e Isidoro. S. Bento
reconhece os seus discípulos, e o príncipe dos Apóstolos reconhece S. Tiago; mas o
grande abade de Claraval conhece também o pai da humanidade, Adão; e o pai da
Igreja, Simão Pedro, com S. João, Santo Agostinho e com muitos outros que não
pode conhecer na terra. Por outra parte, os anjos e os homens também se conhecem
entre si. S. Bernardo conhece o arcanjo Gabriel, e todos os puros espíritos conhecem
a incomparável Virgem Maria, Mãe de Deus110.
Umas vezes, este poderoso gênio figura-se o Céu como um jardim onde passa
um rio de resplandecente luz, entre duas margens matizadas duma admirável
primavera. Deste rio de luz saem vivas faíscas, que de todas as partes vão pousar nas
flores, semelhantes a rubis engastados em ouro. Depois, como inebriados de
perfumes, remergulham-se no brilhante pego, e quando uma aqui entra, sai outra.
Estas faíscas são os anjos, e os santos são as flores.
Outras vezes, diríeis que é inspirado pela bênção dessa rosa que nos recorda
todas as Jerusalém, e nos convida a figurar pela alegria da Igreja Militante o prazer
da Igreja Triunfante111.
Representa-se o Paraíso como uma rosa branca, exalando um perfume de
louvor ao sol que produz uma eterna primavera.
Com efeito, porque os bem-aventurados chegados da terra estão colocados em
círculo sobre mais de mil degraus e como este círculo se alonga à medida que os
degraus se elevam, esta coordenação faz lembrar a forma da rosa, cujas pétalas
aumentam de elevação à medida que se afastam do centro, onde se desabrocham os
jaldes(112) filamentos.
“Eis porque, diz ele, se me mostrava, na forma duma rosa branca, a milícia
santa que Jesus Cristo desposou ao derramar o seu sangue.
Mas os anjos que, voando duma para outra parte, não cessam de ver e de cantar
a glória do seu Criador, tinham o semblante radioso de chamas, as asas de ouro, e o
resto do corpo mais branco do que a neve. Sobre qualquer degrau que pousassem, aí
entornavam as doçuras da paz e as chamas do amor. Ora desciam para a grande flor,
ornada de tantas folhas, ora subiam para a constante habitação do seu amor, isto é,
para o Coração de Deus, bem como um enxame de abelhas que umas vezes se
110
S. Boaventura, in lib. II Sentent., dist. XI, art. II, q. 2.
111
Inocêncio III, Sermo XVIII, Dominica Laetare sive de Rosa.
112
Amarelo vivo; cor de ouro.
88

engolfa nas flores, e outras se volve à sua morada onde o seu trabalho se
dulcifica”113.
Senhora, podeis, sem temor, recorrer a estas poéticas imagens, para vos
representardes a santa sociedade dos anjos e dos homens.
Quando se trata do Céu e da felicidade que nele se goza, todas as imagens
terrenas de que nos sirvamos como termo de comparação nada exageram. Antes,
ficam muito abaixo da realidade. Demais, não foi o mesmo divino Mestre que se
serviu duma imagem terrena, quando comparou o Céu a um banquete? (Luc., XXII,
29)
Assim como os sete filhos de Job se convidavam alternativamente, cada um em
seu dia, para um esplêndido festim (Job, I, 4), também, no Paraíso, os filhos de Deus
se convidam uns aos outros para participarem de suas felicidades.
Grande devia ser o amor recíproco dos filhos de Job, para que pusessem em
comum todas as suas riquezas; mas quanto não excede o mútuo amor dos anjos e dos
santos ao amor fraternal cá na terra!
Qual, pois, não será a magnificência do banquete a que é convidado cada um
dos coros dos anjos por cada coro dos santos que, deste vale de lágrimas, subiram às
eternas colinas da Pátria!
Belo Céu, delicioso banquete, onde os Querubins e os Serafins fazem circular,
como precioso licor e vivificante maná, a manifestação dos segredos divinos, os
esplendores das suas contemplações e o ardor e afeto do seu amor; onde os Tronos,
as Dominações, os Principados, as Potestades, as Virtudes, os Arcanjos, os Anjos e os
homens, patriarcas, confessores e virgens se derramam alternativamente no coração
uns dos outros, como numa taça encantada que sempre transborda e sempre conserva
o seu conteúdo, o vinho de Deus, o vinho da sabedoria e da pureza, o vinho do
reconhecimento e da alegria!
Assim nas sublimidades dos Céus, sob as vistas do Pai de família, todos os seus
filhos, não só os puros espíritos, mas também os que estiverem envolvidos num véu
de carne, se conhecem, estimam, amam e entretêm numa perpétua comunicação,
numa recíproca permutação de glória, de felicidade, de luz e de amor.
Todos estes astros que brilham no firmamento da eternidade, sem nunca
temerem o eclipse, cruzam os seus raios e os seus fogos, inundam-se reciprocamente
do seu brilho, e parecem nadar num oceano de esplendores.

113
Dante, Le Paradis, cantos XXX e XXXI.
89

Todos estes instrumentos animados que não cessam de retinir sob o impulso do
divino amor, formam um harmonioso mar, em que as ondas se confundem
reciprocamente, as vagas mais fortes se unem às mais fracas para enriquecê-las e
fortificá-las, a fim de que os seus movimentos, semelhantes aos das vagas regulares e
irresistíveis, invadam, abalem e arrebatem tudo para Deus.
90

S ÉT I MA CAR TA

Conclusões práticas

O conhecimento das criaturas, comparado ao do Criador, é muito


diminuto. – É todavia uma parte da bem-aventurança acidental. – Os bem-
aventurados sabem todos os mistérios do passado, e deles se regozijam. – Sabem
especialmente o que se refere aos seus parentes e amigos. – Nuvem luminosa dos
testemunhos que o provam. – Os contraditores fazem um grande mal.

Tudo quanto vos tenho escrito até aqui não deve fazer-vos esquecer que a
essência da bem-aventurança é a clara visão ou a intuição do próprio Deus.
O conhecimento das criaturas, acrescentado ao do Criador, parece aos bem-
aventurados menos do que uma gota de água lançada no mar. Eles dizem com o filho
de Amós: “Todas as nações, todas as famílias dos homens, dos anjos e dos astros, não
podem, de modo algum, comparar-se com Deus; elas estão na sua presença como se
não estivessem, e pesam tanto na sua balança como se não existissem”. (Is., XL, 15,
17)
Dizem ainda com o filho de Mônica: “Senhor, Deus de toda a verdade, quão
desgraçado é o homem que conhece todas as criaturas, e não vos conhece a Vós!
Quão afortunado é todo aquele que vos conhece, quando mesmo não conheça mais
coisa alguma! Aquele que une estas duas ciências, a do Criador e a das criaturas, não
vê aumentar a sua felicidade pelo conhecimento dos seres criados; mas só Vós, ó
meu Deus, o tornais feliz”114.
Nem por isso é menos verdade, como creio ter-vos suficientemente
demonstrado, que uma parte da bem-aventurança acidental reservada pelo Senhor a
todos os seus escolhidos, consiste no conhecimento das criaturas.
É este um belo ponto de meditação, que o célebre P. Coton não receava de
propor a uma rainha de França115, e que um beneditino também propunha aos seus
religiosos para os consolar no momento da morte116.

114
Santo Agostinho, Confissões, liv. V, cap. IV, no. 7.
115
Sermons sur les principales et plus difficiles matières de la foi, feitos pelo P. Coton, e reduzidos pelo
mesmo à forma de meditações. Du Paradis, medit. XXI, profits, no. 14.
116
Le Religieux mourant, ou Préparation à la mort pour les personnes religieuses, por um beneditino de
S. Mauro. Avinhão, 1731, cap. XI, & 5 e 6. t. I, p. 257, 266.
91

Os bem-aventurados sabem todos os mistérios do passado, e alegram-se com


um espetáculo que muitas vezes nos entristece.
“Que direi, escrevia um sábio e piedoso cardeal, tratando da eterna felicidade
dos santos, que direi do decurso dos tempos e dos séculos, desde o seu princípio até
ao fim? Que deleite não causará aos escolhidos a lembrança de tantas vicissitudes e
mudanças entre as coisas que a inimitável Providência governa com sabedoria e
conduz a seus fins? Lá haverá esta impetuosidade do rio, que tão maravilhosamente
alegra a Cidade de Deus – Fluminis impetus laetificat civitatem Dei! (Ps. XLV, 5).
O que será, efetivamente, a ordem ou a sucessão dos séculos, que passam
rapidamente e nunca interrompem o seu curso, senão a impetuosidade dum rio que,
sem descanso, faz girar as suas águas, arrastando-as até ao mar, onde se mergulham e
desaparecem? Entretanto, o rio passa e os tempos correm, muitos homens duvidam
da Providência de Deus.
Entre os seus próprios servos, há muitos que são perturbados ou gravemente
tentados, e que se queixam do seu governo. Porque esta rápida corrente do rio causa
muitas vezes grandes danos aos bons, e grandes vantagens aos maus, pois leva a boa
terra dos campos do justo para deixá-la nos do ímpio.
Mas, quando os tempos finalizarem a sua carreira e o rio tiver entrado no mar
com todas as suas águas, os santos lerão claramente, no livro da Divina Providência,
as razões de todas as desordens e de todas as revoluções.
Então a impetuosidade deste rio, representada pela imaginação, alegrará a
Cidade de Deus acima de tudo o que pode dizer a língua dum mortal”117.
Mas, segundo Bossuet, “no infinito espelho da Divina Essência, onde se vê
tudo, as almas dos bem-aventurados descobrem principalmente o que toca às pessoas
que lhes estão unidas por ligações particulares”118.
É o que provam de sobejo todos os testemunhos que tenho referido, em vez de
falar por mim mesmo. Fi-lo assim para que vos fosse mais fácil consolar-vos,
vivendo deste modo, durante algumas horas, na companhia e mesmo na intimidade
dos santos e dos doutores, cujo coração foi sempre tão sensível e compassivo.
Se alguém, pois, ainda ousar dizer-vos que não nos reconheceremos no Céu,
mostrai-lhe esta nuvem de testemunhos de que fala o Apóstolo (Hebr. XII, 1 ), e que
paira sobre a vossa cabeça.
Todos os autores que vos tenho citado, e muitos outros de que me poderia ter
servido, são sábios e virtuosos. Eles formam uma nuvem cujo brilho rende
117
Bellarmino, De Aeterna felicitate sanctorum, liv. IV, cap. IV.
118
Bossuet, Sermon pour profession d’une demoiselle que la reine mère avait tendremente aimée –
Péroraison.
92

testemunho ao Sol da verdade, que nasceu no mundo, e os doura com seus raios.
Formam uma nuvem cuja suavidade e escuridão faz repousar docemente os nossos
olhos e deixa esperar aos nossos corações uma chuva fecunda em consolações
celestes.
Os seus contraditores também formam nuvens, mas tenebrosas e ameaçadoras.
Aumentam o horror da noite que nos envolve, derramam negra tinta sobre o eterno
dia que esperamos. Roubam ao nosso conhecimento e ao nosso amor esses brilhantes
astros a que chamamos bem-aventurados do Paraíso, e forçam os nossos olhos a
fixarem-se dolorosamente nos túmulos, quando teríamos maior necessidade de os
levantar para o Céu, a fim de nele encontrarmos alguma luz e alegria. Negar que nos
reconheceremos no seio da glória, junto de Deus, é fazer-nos um grande mal,
aumentar-nos a tristeza e lançar-nos no desespero ou desalento.
Mas divulgar a importante verdade que se acaba de estabelecer é aliviar a
aflição, sustentar a piedade e reanimar o zelo.
Eis as três conclusões práticas que me resta desenvolver-vos.

II

A esperança de nos reconhecermos no Céu é um alivio para a dor. –


Exemplo e palavras de Fénelon. – É-nos útil entretermo-nos com os nossos
virtuosos e queridos defuntos. – Podemos até invocá-los. – Prática de S. Francisco
Xavier, de S. Luís Bertrand, de M. Emery. – As almas do Purgatório pedem por
nós.

Poucos homens têm sido tão sensíveis à perda dos seus amigos, como o amável
Arcebispo de Cambrai. Eis uma prova disto nas suas próprias palavras:
“Seria tentado a desejar que todos os bons amigos esperassem para morrerem
juntos no mesmo dia. Aqueles que não amam pessoa alguma quereriam enterrar todo
o gênero humano com os olhos secos e o coração alegre; tais pessoas, porém, não são
dignas de viver. Custa muito ser sensível à amizade; mas aqueles que têm esta
sensibilidade envergonhar-se-iam se a não tivessem; desejam antes sofrer do que
serem insensíveis”119.
Vede, todavia, como ele sabia aliviar a sua própria aflição, consolando as
pessoas mais angustiadas. Por ocasião da morte do duque de Beauvilliers, seu amigo,
escrevia à duquesa:
119
Histoire de Fénelon, pelo cardeal de Bauset, liv. VIII, morte do duque de Chevreuse.
93

“Só os nossos sentidos e a nossa imaginação perderam o objeto do nosso amor.


Aquele que já não podemos ver, está conosco mais do que nunca. Encontramo-lo
incessantemente no nosso centro comum. Ele vê-nos aí, e lá mesmo nos procura os
verdadeiros socorros. Conhece melhor, onde está agora, as nossas enfermidades, do
que nós mesmos, ele que já não tem nenhuma; e procura os remédios próprios e
necessários para a nossa cura.
Quanto a mim, eu, que estava privado de o ver desde há tantos anos, falo-lhe,
abro-lhe o meu coração e creio encontrá-lo na presença de Deus; e ainda que o tenha
chorado amargamente, não posso todavia acreditar que o perdesse. Oh! quanta
realidade nesta íntima sociedade!”120.
Fénelon escrevia ainda à viúva do duque de Chevreuse:
“Unamo-nos de coração àquele que choramos; ele não se ausentou de nós pelo
fato de se tornar invisível. Vê-nos, ama-nos e comove-se das nossas necessidades.
Chegado felizmente ao porto, ora por nós, que ainda estamos expostos ao naufrágio.
E diz-nos com uma voz secreta:
Apressai-vos a unirmo-nos. Os puros espíritos vêem, ouvem, e amam sempre
os seus verdadeiros amigos no seu centro comum. A sua amizade é imortal, como a
fonte donde nasce.
Os incrédulos só amam a si mesmos; do contrário, deveriam desesperar-se de
perderem para sempre os seus amigos; mas a amizade divina torna a sociedade
visível numa sociedade de pura fé; chora, mas consola-se na esperança de tornar a
reunir seus amigos no país da verdade, e no seio do próprio Amor”121.
Que coisa mais adequada à sustentação da piedade do que estas afetuosas e
íntimas relações, que podem estabelecer-se entre nós e os nossos queridos defuntos,
desde que nos é permitido esperar que, tendo morrido na graça de Deus, não se
lembram menos de nós do que nós deles! Sem dúvida, gozar da presença do Senhor e
entreter-nos com Ele, mesmo nesta vida mortal, é o que nutre mais a nossa piedade.
Todavia, conversar, tratar e entretermo-nos com os santos do Céu, por longo tempo e
repetidas vezes, sempre que nos agrade, não será um meio poderoso de nos santificar
e consolar ao mesmo tempo? Deste modo, não participamos, de alguma sorte, do
privilégio dos anjos que têm contínuas relações e a mais doce familiaridade com
todos os santos?
A lembrança dum amigo virtuoso e fiel que possuamos neste mundo, basta
muitas vezes para afugentarmos de nós, com os desgostos e tristezas, as tentações, os
120
Correspondance de Fénelon, no. 340.
121
Histoire de Fénelon, par de Bausset, liv. VII, morte do duque de Chevreuse.
94

desesperos e todos os maus pensamentos. Quanto mais eficazes e salutares devem ser
para a nossa alma a conversação e convivência destes parentes e amigos que vêem o
Senhor face a face e gozam da sua glória!
Um piedoso autor, o P. de Barry, aconselha-nos a que invoquemos aqueles que
a Igreja não designa ao nosso culto, mas que tiveram uma vida santa neste mundo, ou
pelo menos uma boa morte, sobretudo, se o seu amor por nós foi agradável ao
Senhor. Fazei, diz ele, o catálogo dos seus nomes, e uma vez por ano, ou antes, uma
vez por semana, percorrei-o, invocando aqueles que nele estão inscritos. Isto fará que
desejeis com mais ardor encontrar no Céu a feliz sociedade daqueles que vos eram
unidos na terra.
E quão grande será a alegria do vosso coração quando obtiverdes de Deus, por
sua intercessão, o que durante muito tempo debalde tiverdes solicitado! Pois não
duvido que, por seu intermédio, algumas vezes sejamos ouvidos.
Se eles nos amavam durante a sua vida e não ousavam repelir as nossas
súplicas, que não farão agora, visto que o seu amor se tornou mais ardente e estão em
grande honra junto de Deus!
S. Francisco Xavier invocava muitas vezes os religiosos da Companhia de
Jesus que tinham passado a melhor vida. Recorria a todos aqueles que tinha
conhecido e com os quais vivera; recomendava-lhes as suas empresas, considerava-
os como seus protetores na corte celeste, e confessava que suas orações lhe eram
duma freqüente utilidade.
S. Luís Bertrand, dominicano, compôs um catálogo com os nomes dos seus
mais queridos amigos, que julgava estarem já de posse da eterna bem-aventurança, e
invocava-os muitas vezes nas suas necessidades122.
Um livro que saiu à luz neste corrente ano de 1862, fornece-nos outro exemplo
muito semelhante. Na Vida de M. Émery, nosso superior de S. Sulpício, lê-se, a
respeito dos antigos padres desta Companhia que mais o tinham edificado por suas
virtudes:
“Em muitos de seus retiros, tomou a resolução de redigir, segundo o mapa das
sepulturas do seminário, uma nota que lhe recordasse os dias do falecimento
daqueles santos padres por quem tinha mais devoção, a fim de invocá-los nos
mesmos dias com fervor, e de render graças a Deus pela eminente santidade a que os
elevara”123.

122
P. de Barry, Sanctum faedus cum sanctis caeli civibus, cap. V.
123
Vie de M. Émery, 1ª. P., no. 52, t. I, p. 195.
95

Podeis fazer sobre esta piedosa prática a seguinte objeção: Acaso estarão no
Céu os meus parentes e amigos? Estarão eles no Purgatório?
É verdade que a Igreja não tem declarado onde eles estão. Mas a oração não se
desencaminha, e, entre o grande número dos que assim invocardes, alguns devem ter
já certamente chegado ao porto da felicidade.
Muitos e graves teólogos são de parecer que as almas do Purgatório podem orar
por nós; porque não são de pior condição do que os pecadores, inimigos de Deus.
Estão mesmo confirmadas na graça e amizade do Senhor, têm a perfeição do amor,
recordam-se de tudo o que nos devem, e podem conhecer as nossas orações pelos
seus anjos da guarda.
E por que não orariam elas a Deus por nós, visto que vêm algumas vezes pedir-
nos por si mesmas, como aconteceu com Santa Brígida a quem seu marido apareceu,
pedindo-lhe que fizesse celebrar missas e distribuísse esmolas por sua alma?124
Santa Catarina de Bolonha invocava freqüentemente as almas do Purgatório, e
dizia que tinha obtido de Deus, por sua intercessão, os maiores e mais numerosos
benefícios. “Muitas vezes mesmo, acrescentava ela, o que não tinha podido obter
durante muito tempo, pelas orações dos santos do Céu, consegui-o depois que recorri
a estas almas padecentes”125.

124
Révélations de sainte Brigitte, liv. Des Révélations extraor., cap. LVI.
125
P. de Barry, Sanctum faedus, cap. VI – Acta sanctorum, die 9 martii. Vita, auctore Grassetti, cap. XII,
no. 118
96

III

O reconhecimento no Céu é um estímulo para o zelo. – Zelo para o alívio


de nossos queridos defuntos. – Zelo para conversão dos pecadores. – Zelo para a
nossa própria santificação. – O Céu começa no tempo e continua na eternidade.
A glória só fará desenvolver o gérmen da graça. – Nós saberemos tudo o que
alguma pessoa fizer em nosso beneficio, e a nossa felicidade, como a sua, será
por isso maior. – Cada florão da coroa duma mãe será uma alegria a mais para
todos os seus filhos.

Finalmente, que a esperança de torná-los a ver no Céu, de reconhecê-los e de


serdes por eles reconhecida, reanime o vosso zelo e vos faça trabalhar com mais
ardor no alívio destas pobres almas, na conversão dos pecadores e na vossa própria
santificação.
As almas do Purgatório são tão reconhecidas, que as pessoas que as têm
aliviado, têm recebido provas da sua gratidão, antes de se lhes reunirem na bem-
aventurança. Foi mesmo concedido muitas vezes a Santa Gertrudes, mui zelosa em
aliviar as almas do Purgatório, ver, durante a sua vida, e mesmo entreter-se com
aquelas que havia socorrido126.
Um dia, depois da comunhão, Gertrudes oferecia a adorável Hóstia pelo eterno
descanso das almas de todos os parentes dos membros da sua comunidade. Apenas
tinha acabado de fazer este precioso oferecimento, quando viu sair das trevas um
grande número de almas, semelhantes a faíscas ou estrelas:
“Senhor, exclamou ela, esta multidão de almas é só de nossos parentes?”
– Sou eu mesmo, respondeu o Senhor, o mais próximo de vossos parentes: sou
vosso pai, vosso irmão e vosso esposo. Todos aqueles que são especialmente meus,
tornam-se, portanto, vossos parentes e aliados, e quero que eles tenham parte nos
frutos das orações que fazeis pelos vossos parentes”127.
Continuai, pois, Senhora, a orar por vosso marido, por vossos filhos e por todos
os vossos parentes que já acabaram a sua peregrinação na terra. Se as suas almas,
como espero, estiverem já em lugar de refrigério, de luz e de paz, as vossas orações
aliviarão outros membros da família de Jesus Cristo, retirando-os das chamas
expiatórias para introduzi-los na infinita bem-aventurança.

126
Les Insinuations de la divine piété, liv. V. Cap. XV, XVI, XVII, XVIII, XXIV.
127
Ib., id., cap. XX.
97

Mas não limiteis aos mortos o vosso zelo; que seja católico ou universal, como
a Igreja.
Quantos pecadores e infiéis, entre os vivos, cujo regresso para Deus podeis
apressar por meio dos vossos cuidados, orações, esmolas e de todos os vossos
merecimentos! Tende compaixão da sua miséria; porque são cegos, levados à
destruição de todo o amor pela mesma desordem de suas mentirosas afeições.
A ninguém se aplica tanto, como aos condenados, o que S. Paulo dizia
dos pagãos: “Nenhuma afeição há neles – Sine affectione” (Rom., I, 31).
Se é verdade que o princípio natural das nossas afeições subsiste no inferno, só
o devemos entender assim quando ele é mau ou separado de Jesus Cristo. Desta
forma, só produz frutos muito amargos e um ódio eterno onde parecia haver um
grande amor.
Mas reconduzindo a seu Pastor as ovelhas desgarradas, e ao Pai de família os
filhos pródigos, preparareis no Céu a vós mesma um círculo de ternos e reconhecidos
amigos, que permitirão se vos apliquem estas palavras do profeta: “Erguei os olhos e
correi a vista em volta de vós; todos estes que se acham aqui reunidos são vossos.
Sereis deles revestida como dum ornamento; sereis rodeada por eles como uma
esposa ou uma mãe o é por seus filhos, ainda que os não tenhais gerado segundo a
natureza.” (Is., XLIX, 18. – LIV, l . )
Àqueles que tiverdes convertido, podereis mesmo dizer com o Apóstolo:
“Vós sois meus filhos muito amados, meus irmãos desejados, minha alegria e
minha coroa.” (Gal., IV, 19 - Philip. IV, 1)
Ao pensar, ao ver antecipadamente esta coroa de alegria que encontrareis no
Paraíso, quando chegar o tempo de deixardes este triste lugar de desterro, tereis a
consolação de dizer a vós mesma: Vou reunir-me àqueles que enviei para a Pátria,
vou vê-los e reconhecê-los, vou gozar dos testemunhos da sua gratidão e do seu
amor.
Podereis mesmo dizer àqueles que deixardes na terra o que o divino Mestre
dizia a seus discípulos:
“Vou preparar-vos o lugar para que habiteis comigo” (Joan. XVI, 2, 3); “Dentro
em pouco já me não vereis, mas bem depressa me tornareis a ver, porque vou para
junto do meu Pai. Também em breve tempo vos tornarei a ver, e o vosso coração se
regozijará, e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Joan., XVI, 26, 22).
Esta alegria de vos tornarem a ver, Senhora, será tanto maior naqueles que vos
conheceram, quanto mais tiverdes trabalhado na vossa santificação pessoal. Quando
98

nos esforçamos por santificar-nos, o Céu começa para nós no tempo para continuar
na eternidade.
Assim como a planta se despoja sucessivamente de seus grossos invólucros, até
a haste saída do tronco se coroar duma bela flor, assim pelo seu trabalho santificador,
a alma se despoja de tudo o que tinha de mais terrestre, e se transforma, pouco a
pouco, em Jesus Cristo, que se compara na Escritura à rosa dos campos, ao lírio dos
vales (Cant., II, 1). Para ela, o Céu começa pelo louvável desenvolvimento das suas
faculdades, e acabará pela sua completa dilatação.
Porque, mesmo no Paraíso, não seremos preguiçosos, mas ativos. Teremos
sempre alguma coisa que aprender, pois que Deus é um fundo inesgotável, e nunca
seremos capazes do infinito.
Para termos alguma idéia do que a glória causará então numa alma, bastaria,
pois, estudar e conhecer o que a graça produz agora na mesma, tirado o sofrimento e
a luta, que já não existirá. Toda a luz e amor que a graça produz em nós, não será o
gérmen que a glória desenvolverá? Ora, o que a graça nos dá presentemente para
iluminar os nossos espíritos e inflamar os nossos corações, é imenso e incalculável.
Imenso e incalculável também será o eterno peso de glória de que nos fala S.
Paulo (II Cor., IV, 17), isto é, o aumento de esplendor e caridade que nos merecem, a
paciência em nossas provações, a atividade para o bem, o zelo pela salvação das
almas e o cuidado do nosso progresso espiritual.
E assim como os condenados serão punidos por onde tiverem pecado (Sap., XI,
17), também os bem-aventurados serão recompensados por onde tiverem merecido.
Toda a mãe que se santifica educando seus filhos, receberá neles um aumento
de recompensa eterna.
Todo o filho que diz para consigo: Faço este sacrifício para honrar meus pais,
para que Deus abençoe meu pai e minha mãe, prepara-lhes, e prepara a si mesmo, um
aumento de eterna felicidade.
Com efeito, não será somente em conjunto, se assim posso falar, que
reconheceremos no Céu aqueles que nos foram queridos; conhecê-los-emos até por
miúdo, saberemos o que muitas vezes ignoramos na terra, saberemos tudo o que eles
fizeram ou sofreram por nós; veremos a recompensa que por isto o Senhor lhes
concede, e este espetáculo assim como este conhecimento, será uma das nossas
alegrias durante a eternidade.
99

Que este pensamento vos console de todos os esforços que tendes feito, de
todas as fadigas que tendes suportado para santificar vossos filhos, santificando-vos
também. Que aumento de recompensa não recebereis disto na glória!
Todos os escolhidos que vos amaram na terra, o contemplarão e dele se
regozijarão em vós. Não será assim que consideraremos a auréola das virgens, dos
mártires e dos doutores, e que, considerando-a, nos regozijaremos com aqueles
doutores, mártires e virgens que tivemos a felicidade de conhecer e amar?
A especial coroa que vos espera, será como a auréola da vossa maternidade
cristã. Será devida a todos os santos desejos, a todos os piedosos cuidados, a todas as
dores íntimas, ignoradas na terra por aqueles que foram o seu objeto ou causa, mas
que reconhecerão no reino do Céu, pois cada um destes desejos, destes cuidados e
destas dores terá produzido um florão da imortal coroa que brilhará sobre a vossa
cabeça. Os vossos filhos admirarão esta coroa, contarão todos os seus florões, e serão
por isso eternamente mais felizes.
Para vos excitar a adquirir ainda mais merecimentos ou direitos à eterna
recompensa, que doce e poderoso incentivo não tendes vós, pois, no vivo desejo de
irdes, para aumentar a sua glória com a vossa, reunir no Céu todos aqueles que mais
tendes amado, ou vê-los aí subir triunfantes para junto de vós!
Mas o Senhor dignar-se-á deixar-vos ainda por muito tempo no meio de nós,
tanto para felicidade de vossos filhos e de vossos netos, como para edificação de
todos os fiéis.
Tal é, pelo menos, o voto, tal é á súplica.
SENHORA,

Do vosso muito humilde e dedicado servo,

F. Blot
Strasburgo, 15 de Agosto de 1862.
100

ORAÇÕES

Para tornarmos a ver no Céu as pessoas que nos são queridas

Oração à Santíssima e adorável Trindade

Um só Deus em três Pessoas que se conhecem e se amam, fizestes-nos à vossa


imagem, dando-nos o conhecimento e o amor, com o vivo desejo de sermos sempre
unidos. Não permitais que este traço de semelhança convosco seja destruído pela
morte, em nenhuma daquelas pessoas que tenho conhecido e amado neste mundo. E,
visto que vos dignastes unir-nos pelos laços da família, e nos permitistes ligarmo-nos
ainda por uma estreita amizade, não consintais que tudo quanto tendes unido jamais
se separe!
Não fizestes esperar ao velho Tobias, que os filhos de Jerusalém se reuniriam
junto de Vós? (Tob., XIII, 17). Não tendes por agradável que o sacerdote vos
suplique, no santo altar, que lhe façais ver seu pai e sua mãe nos esplendores da
glória? Não desvieis de mim a vossa divina face, mas ouvi a minha prece, quando
vos suplico com todo o fervor de que sou capaz, que me concedais também a graça
de tornar a ver no Paraíso todos aqueles que me foram queridos na terra,
particularmente a alma de N... que amo sempre ternamente.
Espírito de luz e de amor, consolador por excelência, Vós que sois a cadeia
unitiva do Pai e do Filho, e que unistes os nossos corações, derramando sobre eles a
caridade, dignai-vos fazer conhecer a essa alma cuja ausência me é tão dolorosa,
quanto desejo unir-me a ela, quanto a amo ainda, que sacrifícios estou pronto a fazer
para apressar a sua entrada no lugar de refrigério e de paz, para eu mesmo entrar aí
após ela, de sorte que, por uma indissolúvel união, não façamos senão um coração e
uma alma para vos amar e bendizer, com o Pai e o Filho, por todos os séculos dos
séculos. Assim seja.
101

II

Oração a Nosso Senhor Jesus Cristo

Divino Jesus, que pusestes em vosso Coração todas as nossas legítimas


afeições para abençoá-las e santificá-las, e vos dignastes gozar das alegrias da
piedade filial e mesmo dar aos homens o doce nome de amigo: Onde estão agora,
Senhor, estes meus amigos e parentes? Estão no Céu, junto de Vós e de vossa Mãe
muito amada, a quem reconheceis como Ela vos reconhece? Ah! quanto desejo, eu
também, reconhecer minha mãe na glória celeste e ser por ela reconhecido, torná-la a
ver com meu pai e meus irmãos, e tornar a ver juntamente todos os meus parentes e
amigos!
Ó Deus de amor, Deus do tabernáculo e da Santa Mesa, cujo corpo nos reúne
num mesmo banquete neste mundo e guarda as nossas almas para a vida eterna,
guardai, guardai também todos os membros da minha alma, todos os membros do
meu coração, isto é, todas as pessoas que amo; guardai-as para a vida, guardai-as
para a eternidade, e fazei que nos encontremos todos no banquete dos Céus. Fazei,
sobretudo, que aí encontre a alma que me era especialmente querida. Que ela e eu
nos reconheçamos, que eu saiba tudo o que ela faz em segredo por mim, e que lho
agradeça eternamente na Pátria dos bem-aventurados. Assim seja.
102

III

Oração à Santíssima Virgem, a S. José e a todos os Santos

Ó Maria, Mãe de Deus e minha Mãe, que depois da ascensão do vosso amado
Filho, suspiráveis ardentemente por vos reunirdes a Ele no Céu, e tivestes, com o
privilégio da vossa gloriosa Assunção, o de torná-lo a ver triunfante, de contemplá-lo
daí por diante sem interrupção com os mesmos olhos que tanto gozavam com a sua
vista na terra. Ó doce consoladora dos aflitos, intercedei por mim, intercedei pela
pessoa querida que eu choro, a fim de que ela e eu nos reunamos, nos reconheçamos
e nos amemos ainda na eternidade, como o filho e a mãe sob a vossa vista, e junto do
vosso Coração maternal.
Pai putativo de Jesus, e fiel S. José, vós que estivestes no limbo e soubestes,
por experiência, quão longos são os dias da expectação, qual deve ser a vossa alegria
quando reconhecestes a alma do Salvador que ali desceu para anunciar a todos os
justos a sua próxima subida ao Céu! Ah! retirai, retirai prontamente do Purgatório,
onde talvez ainda esteja penando, a alma de para quem imploro, hoje, instantemente,
a vossa poderosa proteção! Orai por ela, orai por mim, a fim de que tenhamos a
felicidade de nos tornarmos a encontrar e reconhecer na celeste Pátria, no meio dos
inefáveis esplendores que Nosso Senhor Jesus Cristo derrama sobre todos os anjos e
santos.
E vós, bem-aventurados escolhidos, que fostes parentes ou amigos na terra, e
que sempre sois sensíveis à graça de vos encontrardes reunidos junto de Deus, orai
para que os meus parentes e amigos e companheiros de luta da Contra-Revolução
formem, convosco e comigo, uma cidade e família, onde todos se reconhecem e se
amam eternamente. Assim seja.

A. M. D. G.

Vous aimerez peut-être aussi