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MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia

ISSN 2318-0811
Volume II, Número 2 (Edição 4) Julho-Dezembro 2014: 677-696

Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek:


A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo*
Peter J. Boettke**
Resumo: O presente artigo afirma que o argumento de F. A. Hayek no livro O Caminho
da Servidão, além de uma demonstração dos limites da democracia, foi também um
exame das deficiências do socialismo. No entanto, esse aspecto específico do livro de
Hayek é comumente ignorado na literatura contemporânea da Escolha Pública. Este
artigo defende a posição de que Hayek, juntamente com os acadêmicos reconhecidos
mais frequentemente pela literatura, deva ser considerado um fundador da análise
econômica da política.
Palavras-Chave: Hayek, Escolha Pública

Hayek’s The Road to Serfdom Revisited: Government Failure in


the Argument Against Socialism
Abstract: This paper argues that F. A. Hayek’s argument in the book The Road to
Serfdom was as much a demonstration of the limits of democracy as well as it was
an examination of the foibles of socialism. Yet, this aspect of Hayek’s book is often
ignored within the contemporary Public Choice literature. This paper makes the case
that Hayek, along with the scholars more frequently recognized in the literature,
should be considered a founder of the economic analysis of politics.
Keywords: Hayek, Public Choice
Classificação JEL: B 53, P2, P16
*
Artigo publicado originalmente como: BOETTKE, Peter J. Hayek’s The Road to Serfdom Revisited: Government Failure in
the Argument Against Socialism. Eastern Economic Journal, Vol. 21, No. 1 (Winter 1995): 7-26.
Uma versão anterior deste ensaio foi apresentada no Eastern Economics Association Meetings em Boston, em março de
1994. O autor agradece àqueles que participaram naquela seção por seus comentários e críticas. Em acréscimo, gostar-se-ia
de agradecer a Gary Becker, James Buchanan, Milton Friedman, Robert Higgs, Steve Horwitz, Israel Kirzner, Daniel Klein,
Laurence Moss, Dave Prychtiko, Mario Rizzo, E. C. Pasour, Hans Sennholz, Alex Tabarrock, Viktor Vanberg, Karen Vaughn
e Edward Weick pelas conversas críticas sobre o tópico e pelas sugestões de aprimoramento aos meus argumentos. Os
comentários de dois árbitros anônimos e de Harold Hochman, o editor do Eastern Economic Journal, foram extremamente
úteis. A assistência financeira da Sarah Scaife Foundation para o suporte do Programa de Economia Austríaca da New York
University (NYU) é reconhecida com profunda gratidão. A responsabilidade pelos erros remanescentes recai toda sobre o
autor.
Traduzido do original em inglês para o português por Paulo Roberto Tellechea Sanchotene.
**
Peter J. Boettke é professor de Economia e de Filosofia da George Mason University (GMU), diretor do F. A. Hayek
Program for Advanced Study in Philosophy, Politics, and Economics do Mercatus Center na GMU, editor da Review of
Austrian Economics, e membro do Conselho Editorial da Procesos de Mercado: Revista Europea de Economía Política e da
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Economia e Direito. Cursou a graduação em Economia no Grove City College,
o M.A. e o Ph.D. em Economia na GMU e foi agraciado com o título de doutorado honoris causa da Universidad Francisco
Marroquín, na Guatemala, e da Universitatea Alexandru Ioan Cuza de Iași, na Romênia. Atuou como professor de várias
instituições de ensino superior nos EUA e na Europa. Publicou dezenas de artigos em diferentes periódicos acadêmicos,
editou e organizou diversos livros, e é autor, dentre outras, das obras Calculation and Coordination: Essays on Socialism and
Transitional Political Economy (Routledge, 2001) e Living Economics: Yesterday, Today and Tomorrow (The Independent
Institute, 2012).
E-mail: pboettke@gmu.edu
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
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Escolha Pública, como o mesmo ocorre com


Introdução os argumentos sobre a limitação do mercado
levantadas pela principal corrente neoclássica
Em simpósio sobre o livro The Fatal da economia. A posição de Hayek seria frágil
Conceit [A Arrogância Fatal]1, o economista analiticamente e retoricamente insípida, e,
e historiador Robert Higgs censurou a portanto, conclui Higgs, não se deve supor
ignorância de F. A. Hayek (1899-1992) sobre que a argumentação de Hayek seja capaz de
os desenvolvimentos contemporâneos na área convencer além de quem já seja profundamente
da Teoria da Escolha Pública [Public Choice]. favorável à posição hayekiana.
Higgs argumenta: Uso Higgs como paradigma não por
Lendo Hayek ninguém jamais saberia representar notável interpretação equivocada
da existência da Escolha Pública. Não há de Hayek, mas porque reflete uma opinião
qualquer menção a James M. Buchanan comum entre os pensadores pró-mercado
(1919-2013) ou a Gordon Tullock (1922- sobre o aparato analítico de Hayek3. Em outras
2014) ou a qualquer um de seus discípulos.
Tampouco Hayek aparenta ter alguma noção
sobre os problemas de Escolha Pública2. 3
Por exemplo, não se contesta a alegação de Robert
Higgs de que F. A. Hayek não citou a literatura
Segundo Higgs inexiste discussão sobre contemporânea de Escolha Pública. Hayek, realmente,
não citou essa literatura, como tampouco citou trabalhos
grupo de interesses, motivação para votar, contemporâneos de economia austríaca. Sua falha
problemas do carona [free-rider], normas em citar ambas linhas de literatura, no entanto, não
constitucionais, etc., no trabalho de Hayek. deveria ser tomada como falta de tratamento sobre às
Concede-se o fato de que tais comentários de questões desenvolvidas nessas literaturas. Hayek não
Higgs limitam-se ao livro A Arrogância Fatal, seria menos austríaco como economista por deixar de
citar trabalhos de Israel Kirzner e Murray N. Rothbard,
não fazem referência ao corpus hayekiano, mas sem contar Mario J. Rizzo, Gerald O’Driscoll, Roger
a impressão do leitor é que essa falha no último Garrison, Lawrence White e Don Lavoie, e qualquer
trabalho de Hayek é sintomática de algo que interprete da obra de Hayek a sugerir o contrário estaria
permeia as suas obras em economia e política “lendo-o mal”. Igualmente, o fato de Hayek não citar
como um todo. Nesse sentido, A Arrogância trabalhos de James M. Buchanan Jr., Gordon Tullock
ou outros acadêmicos de Escolha Pública não pode
Fatal é vista como uma mera consolidação dos ser tomado como negligência às questões analíticas
trabalhos anteriores de Hayek, e, de fato, de levantadas pela literatura da Escolha Pública.
acordo com Higgs, esse seria o problema. A Ademais, não se contesta a contenda de Higgs,
repetição de temas familiares em Hayek sobre expressada em correspondência privada de 16 de Junho
construtivismo racional e a função informativa de 1994, de que as posições de Hayek sobre políticas
públicas deixariam a desejar sob uma perspectiva
do sistema de preços seria insuficiente para libertária. Esse é um ponto recentemente enfatizado
uma fundamentação acadêmica rigorosa do por teóricos libertários, tais como Hand-Hermann
liberalismo clássico. Não somente se ignora Hoppe [HOPPE, Hans-Hermann. F. A. Hayek on
as questões levantadas pelos teóricos da Government and Social Evolution. The Review of
Austrian Economics, Vol. 7, No. 1 (1994): 67-93] e
Walter Block [BLOCK, Walter. Hayek’s Road to Serfdom.
Unpublished paper. Departament of Economics,
1
HAYEK, F. A. The Fatal Conceit: The Errors of
College of the Holy Cross, 1994]. Esses pensadores
Socialism. Chicago: The University of Chicago Press,
estão indubitavelmente certos, Hayek não era um
1988. [Em língua portuguesa a obra foi publicada na
libertário moderno. Não se sugere que se leia Hayek
seguinte edição brasileira: HAYEK, F. A. Arrogância
à procura de receitas de políticas libertárias, mas de
Fatal: Os Erros do Socialismo. Trad. Ana Maria
uma série de argumentos analíticos que desenvolverão
Capovilla e Candido Mendes Prunes. Porto Alegre:
o entendimento sobre os princípios organizacionais
Editora Ortiz / Instituto de Estudos Empresariais, 1995.
dos processos políticos. A possibilidade de a utilização
(N. do T.)].
consistente desses argumentos analíticos conduzirem a
2
HIGGS, Robert. Who’ll be persuaded? Human Studies posições políticas libertárias muito além do imaginado
Review, Volume 6, Number 2 (Winter 1988-89): 8-9. por Hayek está fora do escopo do presente artigo.
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palavras, enquanto muitos até demonstram Enquanto muitos estudiosos da Escolha


apreço à valorosa luta de Hayek contra o Pública colocariam o livro Capitalism, Socialism
socialismo e à liderança na ressurgência and Democracy [Capitalismo, Socialismo e
internacional da economia política liberal Democracia]5, lançado originalmente em
clássica (especialmente aos seus esforços 1942, de Joseph Schumpeter (1883-1950) como
relativos a Mont Pelerin Society), a crença é precursor, o trabalho de Hayek em ciências
que ele teria falhado em enfrentar tanto as políticas mal é mencionado em relação
revisões da teoria econômica socialista no desenvolvimento histórico da Teoria da Escolha
decorrer dos anos – os modelos socialistas Pública6. Isto é notável uma vez que Schumpeter
de mercado posteriores a Oskar Lange não viu qualquer dificuldade teórica na
(1904-1965), como os propostos por Leonid organização lógica do socialismo, enquanto
Hurwicz (1917-2008), ou os modelos de auto- o trabalho de Hayek tratou explicitamente
gestão dos trabalhadores desenvolvidos da espinhosa lógica econômica e política
por Jaroslav Vaněk, por exemplo – quanto do socialismo e do socialismo democrático7.
também os vários argumentos sutis em favor
do intervencionismo – neokeynesianismo e Hayek, 1899-1992. Critical Review, Fall 1991: 585-92;
Teoria das Falhas de Mercado – surgidas após BOETTKE, Peter. F. A. Hayek, 1899-1992. The Freeman,
a II Guerra Mundial. Mais inaceitável ainda, August 1992: 300-03.
seria a suposta ignorância de Hayek acerca 5
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, Socialism
dos desenvolvimentos pró-mercado na ciência and Democracy. New York: Harper & Row, 1942.
econômica, tais como direitos de propriedade [Disponível em português na seguinte edição brasileira:
e teoria de custo de transação, direito e SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo
e Democracia. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:
economia, monetarismo, macroeconomia Editora Fundo de Cultura, 1961].
neoclássica, escolha pública, etc. Ao contrário, 6
Por exemplo, os manuais básicos de economia da
a crítica complacente sustenta que Hayek Escolha Pública de Dennis Mueller [MUELLER,
se contentou simplesmente em bater numa Dennis C. Public Choice II. Cambridge / New York:
espécie de cachorro morto intelectual – o Cambridge University Press, 1989.1989], Joe Stevens
planejamento central4. [STEVENS, Joe. The Economics of Collective Choice.
Boulder: Westview Press, 1993] e David Johnson
[JOHNSON, David. Public Choice: An Introduction to
the New Political Economy. Mountain View: Mayfield
4
A essa opinião, escapam-lhe a força e a unidade do
Publishing, 1991], em nenhum desses há qualquer
programa de pesquisa de Hayek durante toda sua
menção a F. A. Hayek tanto na bibliografia quanto no
carreira. Muito pouco da obra de Hayek é dedicada
índice remissivo. Dentro do grupo dos acadêmicos de
a uma crítica do planejamento central, embora
Economia Política constitucional, entretanto, a obra
essa crítica compor o núcleo da análise de diversas
de Hayek aparenta ser considerada mais relevante
propostas alternativas para uma ação governamental
ao núcleo de desenvolvimento teórico – como seria
no direcionamento do processo econômico (incluindo-
evidenciado pela citação de Hayek a acompanhar o
se oferta e demanda de bens públicos, emissão de
cabeçalho da revista Constitutional Political Economy.
moeda, contraste entre legislação e direito [common
Ademais, James M. Buchanan e Viktor J. Vanberg são os
law], etc.). Um dos pontos mais desanimadores,
dois pensadores modernos que claramente representam
comum aos obituários publicados sobre Hayek, foi
a disposição, até intensa, dentro da tradição da Teoria
a total ausência nesses de apreço à teoria econômica
da Escolha Pública, de incorporar (e/ou revisar) a
subjacente ao liberalismo político de Hayek (isto é,
obra de Hayek sobre Direito e política no objetivo de
propriedade privada, programa liberal clássico de
forjar uma economia política e uma filosofia social
limitação governamental). Contudo, o capitalismo
revitalizadas. Outrossim, deve-se menção honrosa
liberal de Hayek foi formado pela influência “austríaca”
ao exame sobre planejamento burocrático de Gordon
no seu entendimento sobre a natureza dos processos
Tullock – lamentavelmente pouco considerado – em
econômicos. Portanto, a crítica sútil do planejamento
que o argumento hayekiano acerca do “problema do
central é muito mais uma questão de teoria econômica
conhecimento” compõe o núcleo de sua seção terceira.
que de política pública. Essa crítica teorética permeia
toda a obra hayekiana, da teoria do capital à filosofia 7
Sobre análise da lógica econômica e organizacional do
jurídica. Nesse respeito, ver: KIRZNER, Israel. F. A. socialismo por Joseph Schumpeter, ver: SCHUMPETER.
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
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Especificamente, é curioso que o livro The socialistas modificaram as expectativas sobre


Road to Serfdom [O Caminho da Servidão]8, as instituições democráticas, e como tais
originalmente lançado em 1944, de Hayek instituições, por sua vez, transformaram-se
não seja visto como uma obra que trata dos em instrumentos de um governo totalitário
problemas básicos da Escolha Pública sobre a devido a impossibilidade de atender às novas
operação da democracia, apesar de seu longo expectativas de maneira consistente com os
tratamento sobre os limites da democracia. princípios democráticos. Noutras palavras,
Sir Alan T. Peacock (1922-2014), por exemplo, Hayek conta uma trágica história na qual a
em seu livro Public Choice Analysis in Historical melhor das intenções pavimenta o caminho
Perspective [Análise da Escola Pública em para um inferno político, econômico e social.
Perspectiva Histórica] usa Hayek como Hayek questiona:
exemplo de teorista o qual decididamente não Poder-se-á imaginar maior tragédia do que,
faz parte da tradição da Escolha Pública9. De no esforço de modelar conscientemente
acordo com O Caminho da Servidão, a massa o nosso futuro de acordo com elevados
da humanidade, argumenta Peacock, reage ideais, estarmos de fato e involuntariamente
produzindo o oposto daquilo por que vimos
passivamente às iniciativas políticas. Hayek
lutando?10
seria tão culpado quanto John Maynard
Keynes (1883-1946), aponta Peacock, por
Para que se chegue a um entendimento
rejeitar o saber da análise da Escolha Pública
mais profundo do posicionamento de
quando aceita a premissa de que são ideias, e
Hayek, deve-se rever seus argumentos
não, interesses escusos, que regem o mundo
apresentados em O Caminho da Servidão,
dos negócios.
fazer um levantamento das reações dos
O Caminho da Servidão, no entanto, não se
seus contemporâneos a essa argumentação;
limitou a uma crítica do planejamento central
enfrentar os motivos subjacentes as seu mal
completo, isto é, do socialismo bolchevique.
entendimento tanto pelos contemporâneos
Tampouco limitou-se a um exame das ideias
quanto pelas gerações seguintes, e, finalmente,
que prepararam a ascensão do totalitarismo
explicar a constante relevância da tese de
nas versões bolchevique e nazista. Mais que
Hayek sobre o fracasso dos governos em
isso, o livro buscou explicar com as ideias
controlar ou superar o mecanismo de mercado
de forma consistente com os princípios
Capitalism, Socialism and Democracy. p. 172-99; liberais-democráticos.
SCHUMPETER, Joseph A. History of Economic
Analysis. Oxford / New York: Oxford University Press,
1954. p. 989]. Caso o socialismo fosse lidar com qualquer
problema operacional, Schumpeter afirmou, esse seria I - O Argumento Central
em nível das dificuldades prático-administrativas, e
não da esfera da lógica econômica pura como Ludwig O Caminho da Servidão não é um panfleto
von Mises e F. A. Hayek arguiam. “político” usual. Os fundamentos do texto
8
HAYEK, F. A. The Road to Serfdom. Chicago: The são sutis, e, de fato, o resto da vida acadêmica
University of Chicago Press, 1944. [Ao longo do texto de Hayek centrou-se no núcleo da mensagem
todas as citações da versão original em inglês serão
substituídas pela passagem equivalente em língua
dessa obra. O afastamento de Hayek de
portuguesa da seguinte edição: HAYEK, F. A. O questões técnicas da economia, como ele
Caminho da Servidão. Trad. Anna Maria Capovilla, mesmo informa o leitor no prefácio, “decorreu,
José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. São Paulo: sobretudo, de uma característica peculiar das
Instituto Ludwig von Mises Brasil, 6ª Ed., 2010. (N. do atuais discussões acerca dos problemas da futura
T.)].
9
PEACOCK Sir Alan T. Public Choice Analysis
in Historical Perspective. Cambridge / New York:
Cambridge University Press, 1992. p. 59-60. 10
HAYEK. O Caminho da Servidão. p. 32.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
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política econômica”11. Não há dúvidas da observações históricas. O objetivo do livro


pretensão inicial de Hayek em retornar com seria demonstrar as consequências sociais
toda a dedicação aos problemas da teoria das ideias. Nesse ponto, poder-se-ia dizer
econômica pura e, especificamente, à teoria do que a interpretação de Peacock sobre Hayek é
capital (sobre a qual The Pure Theory of Capital correta, não fosse essa incompleta. Apesar de
[A Teoria Pura do Capital]12 de 1940, fora ser verdade que Hayek toma as ideias como
somente o primeiro tomo de um projeto em forças-motrizes na história, a tragédia das más
dois volumes) após a finalização dessa obra, ideias é permitirem existir governos em favor
escrita no seu tempo livre. Hayek, no entanto, de determinados interesses privilegiados e
nunca voltou à economia. Ao invés disso, ele contra o bem comum. Ideias fornecem a infra-
embarcou numa nova carreira como cientista estrutura social na qual indivíduos perseguem
político, historiador das ideias, jusfilósofo, seus próprios interesses. Se tais ideias
etc. De fato, é perfeitamente legítimo arguir refreiam apropriadamente o comportamento
que, após 1944, Hayek abandonou os estudos egoísta dos indivíduos, o resultado não
de economia propriamente ditos para tornar- apenas será economicamente ineficiente, mas
se, alegadamente, um dos mais abrangentes politicamente e socialmente detestável.
teóricos em ciências sociais do século XX. O núcleo teórico da análise de F. A.
Ainda assim, ambos The Constitution of Liberty Hayek provém dos ensinamentos de Ludwig
[Os Fundamentos da Liberdade]13, de 1960, e von Mises (1881-1973) quanto à impossibili-
Law, Legislation, and Liberty [Direito, Legislação dade técnica de fazer-se cálculos econômicos
e Liberdade]14, cujos volumes foram lançados num sistema socialista15 – sendo socialismo
em 1973, 1976 e 1979, são, em diversas definido tradicionalmente como a abolição
maneiras, elaborações e refinamentos da da propriedade privada dos meios de pro-
argumentação primeiramente articulada no dução. A contribuição de Hayek para a ar-
que ficou conhecido como “o livro político” gumentação misesiana está na elaboração do
de Hayek. papel exato que o sistema de preços exerce no
O Caminho da Servidão é dividido em provimento de informações (ou conhecimen-
dezesseis capítulos compactos que leva o leitor to) necessários para a coordenação de planos
numa jornada através da história intelectual complexos16. Mises e Hayek demonstraram
e deduções lógica abstratas intercaladas por que o socialismo não é capaz de reproduzir
aquilo que a ordem da propriedade privada
11
Idem. Ibidem., p. 9. e o sistema de preços provém. Não há mente
HAYEK, F. A. The Pure Theory of Capital. Chicago:
12 ou grupo de mentes capaz de reunir o conhe-
The University of Chicago Press, 1940. cimento necessário para coordenar um siste-
13
HAYEK, F. A. The Constitution of Liberty.
ma econômico industrial complexo. Por outro
Chicago: The University of Chicago Press, 1960. [A lado, a ordem da propriedade privada e o sis-
obra foi publicada em língua portuguesa na seguinte tema de preços, tanto pelos sinais dos preços
edição brasileira: HAYEK, F. A. Os Fundamentos da
Liberdade. Intr. Henry Maksoud; Trad. Anna Maria
Capovilla e José Ítalo Stelle. Brasília / São Paulo: Editora 15
MISES, Ludwig von. Socialism: An Economic and
Universidade de Brasília / Visão, 1983. (N. do T.)]. Sociological Analysis. Trad. J. Kahane. Indianapolis:
Liberty Classics, 1981 [1922].
14
HAYEK, F. A. Law, Legislation and Liberty.
Chicago: The University of Chicago Press, 1973 / 1976 16
Em meu livro Why Perestroika Failed, a crítica Mises-
/ 1979. 3v. [Em língua portuguesa a obra foi publicada Hayek do socialismo é examinada em cada uma de
na seguinte edição brasileira: HAYEK, F. A. Direito, suas partes constituintes – incentivos de propriedade,
Legislação e Liberdade: Uma Nova Formulação dos complexidade informacional, natureza contextual do
Princípios Liberais de Justiça e Economia Política. conhecimento e organização política. Ver: BOETTKE,
Apres. Henry Maksoud; Trad. Anna Maria Copovilla, Peter. Why Perestroika Failed: The Politics and
José Ítalo Stelle, Manuel Paulo Ferreira e Maria Luiza Economics of Socialist Transformation. London:
X. de A. Borges. São Paulo: Visão, 1985. 3v. (N. do T.)]. Routledge, 1993. p. 46-56.
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
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monetários quanto pela contabilidade de lu- concorrência, a teoria socialista eliminara,


cros e prejuízos, traduzem para a linguagem infelizmente, as barreiras liberais contra
econômica a informação necessária a ser pro- pleitos para concessão de privilégios, e abriria
cessada pelos agentes econômicos gerando a porteira para a enxurrada de grupos de
os incentivos apropriados para a ação desses; interesse a demandar proteção estatal contra a
e não só provêm o contexto social para des- concorrência sob a bandeira do planejamento
cobertas empreendedoras necessárias para o socialista20.
uso efetivo dos recursos disponíveis, como le- Hayek até mesmo explicaria como o
vam a inovações e progresso tecnológico que fracasso do liberalismo laissez-faire contra o
asseguram prosperidade contínua17. socialismo originou-se do próprio sucesso em
O Caminho da Servidão prossegue sob a coibir os privilégios de natureza mercantilista.
premissa que essa proposição misesiana está Hayek afirma:
consolidada na literatura técnica18. A tarefa Diante dos inumeráveis interesses a
de Hayek em O Caminho da Servidão não era demonstrar que certas medidas trariam
estabelecer que o planejamento socialista não benefícios óbvios e imediatos a alguns, ao
poderia alcançar a eficiência dos resultados passo que o mal por elas causado era muito
mais indireto e difícil de perceber, apenas
do capitalismo, mas, além, era demonstrar o
regras fixas e imutáveis teriam sido eficazes.
que emergiria estruturalmente do fracasso do E como se firmara uma forte convicção de
planejamento socialista em atingir o resultado que era imprescindível haver liberdade na
almejado. O desvio pela história intelectual nos área industrial, a tentação de apresentá-la
três primeiros capítulos teria sido necessário como uma regra sem exceções foi grande
para mostrar que, a despeito da demonstração demais para ser evitada21.
misessiana, a crítica socialista à concorrência
debilitou efetivamente, entre o público em Portanto, se uma das reivindicações
geral e, especialmente, entre a elite intelectual, teoréticas da teoria moderna da escolha
a legitimidade das instituições liberais. pública é a demonstração da lógica dos
O parecer de Hayek que um dos maiores benefícios concentrados e custos dispersos,
avanços da teoria liberal foi desmascarar então, resta evidente o conhecimento de
a ação de grupos de interesse em buscar Hayek sobre tal princípio. Ademais, caso
privilégios é significativa para demonstrar a se considere a posição de Hayek sobre a
relevância de Hayek para a Escolha Pública. importância econômica da “segurança
O liberalismo, Hayek sustenta, conferira certa jurídica” (“the rule of law”), torna-se hialino o
“suspeita saudável” a qualquer argumento intento de Hayek em combater a lógica dos
que demandasse restrições à concorrência benefícios concentrados com uma norma fixa
de mercado19. Com essa crítica ao sistema de que eliminaria oportunidades para grupos
de interesse aparelharem a máquina pública
para usá-la em benefício próprio22.
MISES, Ludwig von. Socialism. p. 55-130; HAYEK, F.
17

A. Individualism and Economic Order. Chicago: The


University of Chicago Press, 1948. p. 77-91, 119-209.
Auburn: The Ludwig von Mises Institute, 1993. p. 189-
18
Como será argumentado, é essa premissa que levou 220; HOPPE, Hans-Hermann. The Economics and
a diversos mal-entendidos a respeito da obra de F. A. Ethics of Private Property. Boston: Kluwer Academic
Hayek, porque muitos – mesmo aqueles favoráveis Publishers, 1993. p. 93-110.
ao liberalismo – não entenderam o significado da 20
HAYEK. O Caminho da Servidão. p. 61.
demonstração de Ludwig von Mises.
21
Idem. Ibidem., p. 42-43.
19
Para um exame da teoria de grupos de interesse tanto
no liberalismo clássico em geral quanto na economia 22
Ver, por exemplo, O Caminho da Servidão, onde Hayek
austríaca em particular, ver: RAICO, Ralph. Classical afirmou que:
Liberal Roots of the Marxist Doctrine of Classes. As pessoas interessadas de perto numa questão não
In: MALTSEV, Yuri N. (Ed.). Requiem for Marx. são necessariamente os melhores juízes dos interesses
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
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Apesar das interpretações dadas por vinculadas uma a outra. Sua argumentação
Higgs ou Peacock, O Caminho da Servidão é comumente mal-interpretada como se
toca em vários temas caros à Escolha sugerisse que desenvolvimento econômico
Pública além dos benefícios concentrados seria apenas possível em uma ordem política
e custos dispersos. Em sua discussão sobre liberal. Fosse esse o caso, abundariam
a importância do estado de direito (rule of exemplos empíricos em contrário
law), por exemplo, Hayek antecipou um tema mostrando econômico em sociedades sob
que seria continuamente reiterado na obra ditaduras autoritárias. O argumento liberal
de James M. Buchanan. Normas, ao invés estaria refutado ou, ao menos, seriamente
de discricionariedade, por “atarem as mãos posto em causa25. O ponto de Hayek, por
do rei”, provêm a segurança jurídica (legal certo, era mais limitado e refinado que tão
certainty) necessária para o desenvolvimento estreita relação social de causalidade. Ele
da sociedade comercial. Hayek, de fato, argumenta que controle econômico não
descreve normas formais como “instrumentos controla somente
de produção” (instruments of production) 23, um setor da vida humana, distinto dos
numa fraseologia que ressoa na distinção de demais. É o controle dos meios que
Buchanan entre “Estado Produtivo” e “Estado contribuirão para a realização de todos os
Redistributivo”24. nossos fins. Pois quem detém o controle
exclusivo dos meios também determinará
Hayek fornece uma das mais
a que fins nos dedicaremos, a que valores
articuladas fundamentações da tese liberal atribuiremos maior ou menor importância
que as liberdades econômica e política são – em suma, determinará aquilo em que os
homens deverão crer e por cuja obtenção
da sociedade como um todo. Consideremos apenas deverão esforçar-se. Planejamento central
o caso mais característico: quando, num setor significa que o problema econômico
industrial, capitalistas e trabalhadores concordam será resolvido pela comunidade e não
numa política de restrição, explorando, assim, pelo indivíduo; isso, porém, implica
os consumidores, não há em geral dificuldade que caberá à comunidade, ou melhor,
na divisão dos lucros de forma proporcional aos seus representantes, decidir sobre
aos ganhos anteriores ou de acordo com algum
princípio semelhante. O prejuízo, porém, partilhado
por milhares ou milhões de consumidores, costuma
25
Para argumentos desse tipo, ver, por exemplo:
ser simplesmente menosprezado, ou não é levado PRZEWORSKI, A. & LIMONGI, F. Political Regimes
na devida consideração (p. 77). and Economic Growth. Journal of Economic
Hayek seguiu argumentando que “justiça” no Perspectives, Summer 1993: 51-69. Há diversos
planejamento requereria que ganhos e perdas problemas que imediatamente se revelam. Primeiro,
decorrentes das políticas públicas fossem igualmente não se trata de argumento liberal levantado por F.
considerados pela autoridade responsável, mas dada A. Hayek em O Caminho da Servidão nem por Milton
a complexidade da corrente de eventos e da natureza Friedman (1912-2006) em Capitalismo e Liberdade
indireta dos efeitos dessas políticas, não haveria [FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom.
motivação suficientemente forte para que o prejuízo Chicago: Chicago University Press, 1962]. Segundo,
“partilhado por milhares ou milhões” fosse incorporado ao a análise parte da premissa que desenvolvimento
processo de tomada de decisões de maneira adequada. econômico seja sinônimo de taxas de crescimento
A natureza discricionária do planejamento, no (isto é, as dificuldades de economia agregada não
entanto, obriga as autoridades a fazerem julgamentos são enfrentadas adequadamente). Finalmente, a
exatamente desse tipo. Abandonar a segurança estrutura política de facto da sociedade em questão é
jurídica (“rule of law”) pela discrição do planejamento deixada virgem nesses estudos. Por exemplo, na China
equivaleria, segundo Hayek, a um retorno não- contemporânea, muito do “sucesso” das reformas
intencional à regência por posição social (“rule of econômicas pode ser atribuído a descentralizações
status”) contrário à igualdade contratual. políticas de facto que ocorreram na metade para o final
da década de 1980. Ver: WEINGAST, B. The Economic
23
HAYEK. O Caminho da Servidão. p. 91.
Role of Political Institutions. Unpublished manuscript.
BUCHANAN, James. The Limits of Liberty. Chicago:
24
Hoover Institution on War, Revolution and Peace,
The University of Chicago Press, 1975. Stanford University, 1993. p. 33-40.
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
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a importância relativa das diferentes que os levaria a escolher tal alteração de


necessidades26. curso. Isso é o que leva ao conceito de “bola
de neve” (“slippery slope”). O ponto em que
Quiçá a contribuição mais importante Hayek se afasta da interpretação extremada
de Hayek à escolha pública em O Caminho da Escolha Pública sobre incentivos na
da Servidão esteja em apontar a lógica política é o quanto ideias (por modificarem
organizacional implícita na substituição a infraestrutura social) podem mudar os
das decisões privadas dos indivíduos no inventivos enfrentados pelas autoridades
mercado pela tomada de decisões pela nas decisões sobre políticas públicas. Nesse
comunidade através dos seus representantes sentido, Hayek mistura ideias e interesses
por um plano coletivo. A argumentação de maneira mais sutil àquela disponível
de Hayek inclui tanto uma análise dos nos manuais de teoria da Escolha Pública,
incentivos enfrentados pelos representantes e ele faz de modo semelhante à importante
no contexto institucional de planejamento distinção de Buchanan entre níveis de análise
econômico centralizado quanto o processo pré-constitucional e pós-constitucional.
evolutivo engendrado por tais instituições Ao examinar a lógica organizacional do
para a seleção de líderes. Frise-se, a premissa planejamento central, Hayek avisa o leitor que
assumida aqui é que Hayek não procurou como o conhecimento econômico necessário
demonstrar a verdade ou falsidade da tese para planejar racionalmente a economia não
misesiana acerca da impossibilidade do estará disponível aos planejadores, esses
cálculo econômico no socialismo em O serão forçosamente obrigados a basear suas
Caminho da Servidão. A obra desenvolve- decisões em informações cuja forma é aquela
se como se a tese estivesse pacificada na prontamente disponível em tal contexto –
literatura técnica da teoria econômica. informações na forma de incentivo para o
Portanto, Hayek examinava a lógica exercício do poder público. O argumento
organizacional do planejamento central de Hayek fundamenta-se numa aplicação
e quais as transformações institucionais/ do princípio de vantagens comparativas
sociais ocorreriam em resposta ao fracasso de ao processo de seleção de lideranças num
tal planejamento em alcançar seus objetivos sistema de planejamento central. Dito de
propostos27. outro modo, da mesma maneira em que se
Obviamente, quando diante do próprio espera a divisão de trabalho em determinada
fracasso, as autoridades públicas poderiam sociedade refletir os custos de oportunidade
reverter o curso e mover em direção à adoção dos diversos produtores, deve-se esperar
de políticas econômicas de cunho liberal. que aqueles com a habilidade necessária
É crucial à tese de Hayek o demonstrado ao exercício do poder político sejam os
pela “escolha pública” que autoridades que cresçam dentro de aparelhos estatais
públicas, dentro de um contexto social no voltados ao planejamento central. Nesse
qual liberalismo (e suas instituições de sentido, Hayek contestava diretamente as
governança) foram solapados pela crítica opiniões de que os exemplos históricos
socialista, não sofrem qualquer incentivo e concretos desse tipo de ordem política,
como, digamos, na antiga União Soviética,
26
HAYEK. O Caminho da Servidão. p. 104. seriam “acidentes históricos” e/ou causados
27
Não é impossível tentar planejar centralmente por “más” pessoas, pelo que não poderiam
uma economia industrial complexa; impossível é servir de ilustração às dificuldades da
ser “bem-sucedido” na tarefa. Sucesso aqui significa realização de um planejamento centralizado.
atingir os propagados fins socialistas de acréscimo de A premissa que se somente pessoas “boas”
prosperidade, uso eficiente de recursos, eliminação dos
ciclos econômicos, eliminação do poder monopolista e
controlassem a agência de planejamento, os
distribuição equitativa de riqueza. resultados decorrentes seriam condizentes
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Peter J. Boettke 685

com os valores democráticos liberais é e trágica exposição das consequências de tal


simplesmente falsa28. Hayek escreveu: planejamento. É algo além do fato de uma
Há razões de sobra para se crer que “farândola” assumir o controle do aparato co-
os aspectos que consideramos mais ercitivo estatal e empregá-lo na opressão do
detestáveis nos sistemas totalitários restante dos cidadãos em prol de si mesma,
existentes não são subprodutos acidentais, apesar de o desejo de organizar a vida econô-
mas fenômenos que, cedo ou tarde, o
mica (ou a vida social em geral) estritamente
totalitarismo produzirá inevitavelmente.
conforme um plano científico não decorrer
Assim como o estadista democrata que se
propõe a planejar a vida econômica não do desejo de exercer poder sobre as pessoas.
tardará a defrontar-se com o dilema de Como giza Hayek, a imposição arbitrária de
assumir poderes ditatoriais ou abandonar poder é consequência, e não a causa, do de-
seu plano, também o ditador totalitário sejo de planejar cientificamente a economia.
logo teria de escolher entre o fracasso e o Para “realizar seu objetivo, os coletivistas pre-
desprezo à moral comum29. cisam criar um poder de uma magnitude jamais
vista até hoje– poder exercido por alguns homens
Nessa seara, “sucesso” requer talento sobre os demais – e de que seu êxito dependerá do
para um comportamento moral desinibido grau de poder alcançado”31. Mesmo socialistas li-
e inescrupuloso em relação à humanidade. berais, em oposição aos coletivistas, no anseio
Totalitarismo não é consequência de de planejar a economia, devem estabelecer
“corrupção” ou de “acidente histórico”, instituições de planejamento discricionário e
mas a consequência lógica de incentivos conceder autoridade a planejadores para que
institucionais da tentativa de planejar esses exerçam poder político de maneira a
centralmente a economia30. conferir a tarefa a eles delegada. A complexi-
Hayek, tanto neste ponto quanto no res- dade da tarefa implícita no ato de planejar ra-
tante de O Caminho da Servidão faz uma sutil cionalmente um sistema econômico requere-
ria que aos encarregados lhes fosse concedida
quase que absoluta discricionariedade. Con-
28
Como se verá, aqui é onde F. A. Hayek se afasta da
companhia de John Maynard Keynes. É de certa forma
sequentemente, deve-se esperar que somente
irônico que tenha sido Oscar Wilde (1854-1900) – e não, aqueles com vantagem comparativa no exer-
Keynes – a perceber a impossibilidade de misturar-se cício do poder discricionário sobreviverão.
planejamento econômico socialista e valores burgueses. O argumento de Hayek foi uma
Wilde afirmou no seu ensaio “A Alma do Homem sob o aplicação direta dos princípios econômicos às
Socialismo” que mesmo se o socialismo alcançasse uma
performance econômica melhor do que a economia de
instituições políticas do planejamento central.
mercado, isso seria ao custo da destruição da liberdade Não foi um argumento restrito a Hayek e
artística. O argumento de Hayek apenas acrescentar- não deveria ter sido algo controverso. Frank
se-ia às acusações contra o socialismo do tipo da Knight (1885-1972) fez algo similar, o que
de Wilde, demonstrando que o sistema socialista lhe permitiu adequadamente afirmar que
tampouco poderia superar a sociedade de mercado no
plano econômico.
autoridades encarregadas do planejamento
seriam obrigadas a:
29
HAYEK. O Caminho da Servidão. pp. 139-140.
[...] exercer seu poder impiedosamente
30
Para uma aplicação desse argumento do tipo para manter em funcionamento a estrutura
hayekiano no debate sobre a ascensão de Stalin dentro do de produção e distribuição [...]. Seriam
contexto soviético, ver: BOETTKE, Peter. The Political obrigados a isso querendo ou não; e a
Economy of Soviet Socialism: The Formative Years,
probabilidade das pessoas no poder serem
1918-1928. Boston: Kluwer Academic Publishers, 1990.
indivíduos para os quais a posse e o exercício
p. 34-38. Para uma aplicação do argumento no contexto
do socialismo descentralizado, tal como no caso da de poder seja enfadonho é equivalente a
Iugoslávia, ver: PRYCHITKO, David L. Marxism and
Worker’s Self-Management: The Essential Tension.
Westport: Greenwood Press, 1991. 31
HAYEK. O Caminho da Servidão. p. 146.
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
686

de uma pessoa caridosa trabalhar como Infelizmente, mesmo com o passar do


açoitador numa fazenda com mão-de-obra tempo e com um aumento na quantidade de
escrava32. pensadores tendentes a compartir da visão de
Hayek quanto ao fracasso do planejamento
Se a teoria da escolha pública significa governamental da economia, o modo de
“o estudo econômico da tomada de decisões análise daqueles montem-se antitético ao dele,
fora do mercado ou simplesmente da aplicação impedindo que percebam a originalidade da
da economia à ciência política”33, então o contribuição analítica de Hayek.
tratamento de Hayek à lógica organizacional
das instituições socialistas é indevidamente
negligenciada pela literatura contemporânea
de política econômica. Ademais, Hayek não se
II - O Espírito de Época
limitou a um exame do socialismo “pesado”,
A crítica socialista à ordem econômica
como também analisou a importância de
liberal alterou efetivamente os termos do
normatização ao invés de discricionariedade,
debate público no começo do século XX. A
os limites da democracia e a importância do
maioria dos participantes nos debates político
federalismo como entrave institucional à ação
e intelectual concordam que o liberalismo
democrática34.
laissez-faire falhara em providenciar equidade
Gostaria de sugerir que esse descaso
e condições sociais dignificantes. Assim
para com as contribuições de Hayek à Escolha
sendo, passou-se a exigir legislação de cunho
Pública poderia ser atribuída à “visão” e
progressista buscando corrigir as falhas da
“análise”, dois fatores siameses35. A maioria
livre concorrência. A grande depressão, a
de seus contemporâneos não compreenderam
qual pela interpretação popular à época
adequadamente as inovações no
comprovara que o capitalismo era tanto
posicionamento de Hayek devido a diferenças
injusto quanto também instável, contribui
visionárias que as tornaram insensíveis à
para a crítica do liberalismo laissez-faire. O
argumentação. Não o bastante, entre aqueles
sistema capitalista, caso fosse sobreviver ao
contemporâneos de visão semelhante, muito
mundo social-democrata (liberal) da década
poucos seguiram sua estrutura analítica36.
de 1930, teria que se sujeitar ao controle das
forças políticas democráticas cuja tarefa seria
32
KNIGHT, Frank. Lippmann’s The Good Society. domar-lhe as operações visando a proteção
Journal of Political Economy, Vol. 46, No. 6 (December
1938): 864-872. Cit. p. 869. do povo contra negócios inescrupulosos e
especulações irresponsáveis.
33
MUELLER. Public Choice II. p. 1.
Esse clima de opinião intelectual geral
34
Hayek discutiu federalismo em O Caminho da Servidão ao mesmo tempo alterou e foi reforçado pelo
no capítulo “As Perspectivas da Ordem Internacional”
(p. 193-206). Ver, também: HAYEK. Individualism
desenvolvimento da economia neoclássica
and Economic Order. p. 255-272; The Constitution of nas décadas de 1920 e 1930. Ao passo em
Liberty. p. 176-92.
35
Sobre “visão” e “análise” em fundamentação
Contudo, em um ensaio posterior, publicado
econômica, ver: SCHUMPETER. History of Economic
originalmente em 1940, Knight argui que o problema
Analysis. p. 41-45.
econômico fundamental do socialismo emerge
36
Por exemplo, considere-se a rejeição por Frank devido à natureza dinâmica da vida econômica a qual
Knight do argumento crucial misesiano a respeito da demanda adaptação e ajustes contínuos por parte de
impossibilidade de cálculo econômico sob o socialismo, quem decide em resposta a condições em constante
em: KNIGHT, Frank. The Place of Marginal Economics transformação – um componente-chave do argumento
in a Collectivist System. American Economic Review, original de Mises, evidentemente. Ver: KNIGHT, Frank.
(March 1936): 255-66; Idem. Lippmann’s The Good Socialism: The Nature of the Problem. In: Freedom
Society. p. 867-68. Knight cria que os problemas and Reform. Indianapolis: Liberty Classics, 1982. Ver,
do socialismo seriam políticos e não, econômicos. também: MISES. Socialism. p. 105, 120-21.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Peter J. Boettke 687

que a teoria econômica acadêmica foi Planejamento racional passou a ser visto como
tornando-se mais tecnicamente refinada mais do que mera alternativa viável a ser
e mais rarefeita na apresentação de seus debatida, tornando-se a única opção contra
teoremas básicos, a compreensão mais o caos. Políticas econômicas de cunho liberal
intuitiva e apreciativa dos processos rivais de clássico passaram a representar a crença
mercado que caracterizaram os economistas dos ingênuos e dos ignorantes. O mundo
clássicos e os primeiros desenvolvimentos moderno tornara-se complexo demais para
da economia neoclássica foi rejeitada como ideias provenientes dos séculos anteriores
não-científica37. O outro lado da moeda do terem qualquer valor prático.
desenvolvimento do modelo de competição John Maynard Keynes argumentou
perfeita e das condições estritas requeridas que, enquanto alguns podem ainda
foi o desenvolvimento da teoria das falhas prenderem-se a velhas ideias da política
de mercado. Diz-se que há falhas no mercado econômica liberal, “em nenhum país do mundo
sempre que a realidade capitalista não hoje essas são reconhecidas como sendo uma força
alcança as condições do modelo de perfeita séria”38. O fato significativo a ser lembrado é
competição dos manuais. Externalidades, bens Keynes considerar-se, além de ser visto por
públicos, monopólio, competição imperfeita e outros como, um realista dentro da tradição
instabilidade macroeconômica passaram a ser liberal clássica. Keynes não era um socialista
consideradas características das economias radical, mas um autoproclamado salvador
de mercado do mundo real e necessitariam de da ordem burguesa39. A ideia keynesiana
ações concretas e positivas dos governos para pregava uma intervenção racional dos
contrabalançar seus resultados socialmente governos para o aperfeiçoamento dos
indesejáveis. mecanismos e dos resultados da economia
Esses desenvolvimentos teoréticos de mercado. Ele propunha combinar a
trouxeram novas cores às interpretações socialização do mercado de capitais com
históricas. A Era Progressista nos Estados as tradições políticas novecentistas da Grã-
Unidos, por exemplo, passou a ser vista como Bretanha. Se imaginava a socialização dos
um movimento de interesse público no afã investimentos como a única solução para
de eliminar problemas sociais através de assegurar pleno emprego, tal reforma não
ações governamentais positivas. O cinismo aconteceria, na análise dele, no rompimento
em relação as propostas dos grupos de com a sociedade burguesa. Keynes concebia
interesse para controlar a livre concorrência, sua teoria como uma extensão do liberalismo
atribuído por Hayek corretamente ao clássico e não, uma rejeição. Sua defesa de
liberalismo novecentista, desaparecera em uma maior participação governamental no
favor de um otimismo quanto à capacidade planejamento da economia era, na opinião
das autoridades governamentais em corrigir dele, uma tentativa pragmática para salvar
o que havia de errado no mundo. o individualismo e evitar a destruição do
A grande depressão simplesmente sistema econômico vigente40.
solidificou a “vitória” da crítica socialista ao
liberalismo. O colapso das economias dos
Estados Unidos e do Reino Unido abalaram a 38
KEYNES, John Maynard. National Self-Sufficiency.
fé de toda uma geração no sistema capitalista. The Yale Review, New Series, Vol. XXII, No. 4 (June
1933): 755-69. Cit. p. 762.
39
KEYNES, John Maynard. Laissez Faire and
Communism. New York: New Republic, 1926. p. 129-
37
Para uma história do pensamento anti-Whig a respeito
30.
do ferramental da análise econômica e, nominalmente,
do modelo de competição perfeita, ver: MACHOVEC, 40
KEYNES, John Maynard. The General Theory
Frank. Perfect Competition and the Transformation of Employment, Interest and Money. New York:
of Economics. New York: Routledge, 1995. Harcourt Brace Jovanovich, 1964 [1936]. p. 378-81.
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
688

O espírito da época levou até mesmo a essa deslegitimação do constitucionalismo


alguém tão cínico às promessas políticas liberal e do Estado de Direito (rule of law) é
e intelectuais de aprimoramento humano um dos pontos cruciais de O Caminho da
através de legislação quanto era Frank Knight Servidão43. Para implementar o planejamento,
a declarar publicamente as virtudes do as autoridades não poderiam estar limitadas
comunismo41. Knight afirmou que a sociedade por regras formais, mas dotadas de poder
liberal falhara em prover a ordem social em discricionário. Ademais, planejamento (para
tempos de crise, e, portanto, que o comunismo que tenha algum significado coerente) requer
podia lamentavelmente estabelecer tão amplo consentimento, e democracia é capaz
desesperadamente necessitada ordem42. A de alcançar apenas um certo nível de consenso
impressão é de que todo mundo advogava – normalmente limitado a regras gerais que
por alguma forma de controle governamental estabelecem espaços para discordâncias.
e planejamento econômico para garantir Hayek expõe que
estabilidade e equidade durante os anos de planejamento cria uma situação na qual
1930 e 1940. Nesse clima de opinião intelectual é necessário para nós concordar com um
o desafio posto ao planejamento econômico número muito maior de questões do que
por seus críticos, Mises e Hayek, não foi estamos habituados: além disso, num
sistema planejado não podemos limitar a
compreendido nem tampouco tolerado.
ação coletiva às tarefas em torno das quais
Todavia, sem entender as dificuldades teóricas é possível haver acordo, pois é preciso
de tal planejamento, não se poderia entender haver consenso sobre todas as questões
as experiências decepcionantes decorrentes para que se possa seguir uma linha de ação,
das tentativas de planejamento tanto no seja ela qual for – esses são os aspectos que
mundo socialista quanto no democrático. A mais tendem a determinar o caráter de um
questão não era meramente de apologética sistema planejado44.
ideológica; o problema é que a visão ideológica
resultara num honesto ponto-cego analítico Nesse sentido,
em acadêmicos e intelectuais. a planificação conduz à ditadura porque esta
Os preconceitos intelectuais da época não é o instrumento mais eficaz de coerção e de
apenas falharam em enfrentar os problemas imposição de ideais, sendo, pois, essencial
econômicos do planejamento central, como para que o planejamento em larga escala se
torne possível. O conflito entre planificação
também ignoraram suas dificuldades
e democracia decorre, simplesmente, do
políticas. Juntamente com o cinismo da era fato de que esta constitui um obstáculo
anterior a pleitos por restrições contra a à supressão da liberdade exigida pelo
concorrência, a vitória da crítica socialista dirigismo econômico45.
à sociedade liberal também eliminara as
justificações para restrições sobre os governos Tal aviso, no entanto, não seria levado
democráticos desenvolvidos durante os em consideração à época. Limites tradicionais
séculos XVIII e XIX. O tratamento de Hayek à democracia tiveram que ser abandonados
para que legislações progressistas fossem
41
KNIGHT, Frank. The Case for Communism: From promulgadas. O saber liberal clássico referente
the Standpoint of an Ex-liberal. [1932]. In: Research in aos limites constitucionais foi perdido. Em seu
the History of Economic Thought and Methodology, lugar, uma visão ingênua sobre governança
Archival Supplement 2 (1991): 57-108.
passou a dominar o discurso público. O sistema
42
Milton Friedman revelou, em correspondência
privada, datada de 9 de agosto de 1994, sobre a primeira
versão deste artigo que, posteriormente, em resposta 43
HAYEK. O Caminho da Servidão. pp. 81-92.
a pedido de permissão para republicação dessas 44
Idem. Ibidem., p. 79.
palestras, Frank Knight respondera que “desejaria
despublicá-las”. 45
Idem. Ibidem., p. 86.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Peter J. Boettke 689

político democrático foi desenvolvido sobre aça à liberdade política. Keynes, por exemplo,
a perspectiva de tornar-se um regime no em resposta a O Caminho da Servidão, escreveu:
qual casa um dos cidadãos individualmente Deve-se dizer que o que se quer não é ausên-
inequivocamente expressaria as informações cia de planejamento, ou até mesmo menos
necessárias sobre a gama de bens e serviços planejamento; de fato, deve-se afirmar a qua-
públicos demandados o nível dos impostos se certeza de se querer mais. Contudo, pla-
nejamentos devem ocorrer em comunidade
a serem pagos. Democracia seria o modelo
onde o maior número de pessoas possível,
ideal de auto-governança. O espírito de
tanto líderes quanto seguidores, comparti-
época requeria uma expansão do poder lhem completamente a necessária posição
democrático, não, restringi-lo46. Diante moral. Planejamento moderado será mais
do fracasso da ordem econômica liberal, seguro se aqueles responsáveis por sua re-
governos democráticos poderiam facilmente alização estão com suas mentes e corações
corrigir o rumo através do uso sensato apontados na direção certa quanto às ques-
de planejamentos racionais. Caso a ação tões morais envolvidas47.
governamental falhe, não seria devido à
fraqueza estrutural inerente ao sistema Na medida em que “boas” pessoas este-
democrático (tal como a impossibilidade jam encarregadas, nada haveria de censurável
de o governo calcular racionalmente o uso num planejamento econômico central. Inclusi-
alternativo de recursos escassos sem os sinais ve, esse seria desejável.
de mercado). Bastaria aos agentes políticos A posição de Hayek não foi tratada com
juntar mais informações e trabalhar mais a a mesma gentileza de Keynes pela maioria dos
fundo na próxima vez. seus críticos, mas ele tinha quem o apoiasse.
Planejamento e expansão dos procedi- Joseph Schumpeter, por exemplo, escreveu,
mentos democráticos sobre áreas além do seu em 1946, uma resenha positiva no Journal of Po-
âmbito tradicional não eram vistos como ame- litical Economy48, como também fez, em 1945,
Aaron Director (1901-2004) no American Eco-
nomic Review49. Porém, a maioria mesmo das
46
Hayek entendeu bem tal desenvolvimento, tanto
que dirigiu uma crítica àquilo que poderia ser descrito resenhas acadêmicas mais influentes não fo-
como o “fetichismo democrático” da época, ou em suas ram favoráveis. Barbara Wootton (1897-1988)
palavras: escreveu uma crítica equilibrada e respeitosa
Hoje em dia, costuma-se concentrar a atenção na na obra Freedom Under Planning [Liberdade
democracia, julgando-a o principal valor que está
sob Planejamento]50 de 1945. Aliás, o livro de
sendo ameaçado. Isso, porém, não deixa de ser
perigoso. De fato, essa ênfase desmedida no valor Wootton foi escrito com tamanha qualidade
da democracia é responsável pela crença ilusória e
infundada de que, enquanto a vontade da maioria
for a fonte suprema do poder, este não poderá ser
47
KEYNES, John Maynard. Employment Policy. In:
arbitrário [...] The Collected Writings of John Maynard Keynes,
É injustificado supor que, enquanto o poder for Volume 27: Activities 1940-1946 – Shaping the Post-
conferido pelo processo democrático, ele não war World: Employment and Commodities. Edited by
poderá ser arbitrário. Essa afirmação pressupõe Donald Moggridge. London: Macmillan / Cambridge
uma falsa relação de causa e efeito: não é a fonte University Press / St. Martin’s Press for the Royal
do poder, mas a limitação do poder, que impede Economic Society. 1980. p. 387.
que este seja arbitrário. O controle democrático 48
SCHUMPETER, Joseph A. Review of F. A. Hayek,
pode impedir que o poder se torne arbitrário, mas The Road to Serfdom. Journal of Political Economy, Vol.
a sua mera existência não assegura isso. Se uma 54, No. 3 (June 1946): 269-70.
democracia decide empreender um programa 49
DIRECTOR, Aaron. Review of F. A. Hayek, The Road
que implique necessariamente o uso de um poder
to Serfdom. The American Economic Review, Vol.
não pautado por normas fixas, este se tornará um
XXXV, No. 2 (June 1945): 173-75.
poder arbitrário (HAYEK, F.A. Hayek on Hayek:
An Autobiographical Dialogue. Chicago: Chicago 50
WOOTTON, Barbara. Freedom Under Planning.
University Press, 1994. 86-87). Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1945.
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
690

que mesmo sendo reputado como uma críti- uma ausência de conhecimentos básicos de
ca, permitiu escritores liberais partidários de ciência política e uma ignorância sobre ciência
Hayek verem-no como se confirmasse a tese da administração, bem como de realizar um
dele51. Wootton foi uma exceção em meio aos ataque direto aos principais valores do regime
críticos de O Caminho da Servidão. democrático que expressaria uma atitude
Herman Finer (1898-1969), com seu livro autoritária em relação às pessoas comuns.
The Road to Reaction [O Caminho da Reação], Charles Merriam (1874-1953), ao
de 1945, marcou o tom, ao acusar O Caminho da resenhar em 1946 os trabalhos de Herman
Servidão de ser “a mais tenebrosa ofensiva contra Finer e Barbara Wootton em conjunto, relegou
a democracia surgida em país democrático em Wootton a um segundo plano, focando-se
décadas”52. A verdadeira alternativa à ditadura, endossar firmemente a crítica de Finer53. Ele
Finer assegurou a seus leitores, não seria refere-se ao livro de Hayek como “uma obra
individualismo econômico e concorrências, sobrevalorizada com baixo teor duradouro” e
mas um governo democrático totalmente colocou que não havia sido escrita polêmica
comprometido com o povo. O mundo de política mais efetiva desde a crítica de Henry
Hayek, de acordo com Finer, acarretaria em George (1839-1897) a Herbert Spencer (1820-
indivíduos sob o controle de aristocratas ou 1903) no livro A Perplexed Philosopher54, de
da burguesia endinheirada. Pessoas livres, no 1892. A obra de Finer, diferentemente da
entanto, governar-se-iam sem tais senhores. de Hayek, “transpira o espírito democrático
Planejamento econômico seria, simplesmente, da confiança e contém um plano progressista
democracia em ação, e justificar-se-ia sempre baseado na esperança e não no medo”55. Na sua
que houvesse uma ação governamental bem- própria resenha de O Caminho da Servidão,
sucedida. Finer acusou Hayek de utilizar publicada em 1944, Merrian antecipara-se à
uma linguagem confusa e ludibriante, de crítica de Finer de que Hayek seria confuso,
equivocar-se sobre o conceito de Estado de pouco erudito e arrogante, concluindo, contra
Direito (rule of law) por esse estar além da Hayek, que:
capacidade amadorística de compreensão Do planejamento bem feito emergirá
de Hayek, de ser preconceituoso no a liberdade humana em larga escala, o
entendimento sobre processos econômicos, de crescimento da personalidade humana, a
ter feito uma pesquisa pobre, de demonstrar expansão das possibilidades criativas da
humanidade. A evolução criativa consciente
– senhora-de-si ao invés de deixar-se levar
pelas circunstâncias – aponta o caminho aos
51
Ver, por exemplo, a resenha de Frank Knight na
qual ele sugeriu que “comparativamente pouco é dito
mais elevados níveis e mais altas ordens
explicitamente sobre o que Hayek, ou qualquer opositor da vida humana. O Caminho da servidão
de ‘planejamento’, no significado atual de ‘economia é não planejar, mas ficar à deriva, sem
planificada’ (um eufemismo para socialismo de estado), disposição para mudanças, sem capacidade
necessitariam discordar”. Knight seguiu acrescentando
que a impressão decorrente da leitura do livro seria de 53
MERRIAM, Charles. Review of Barbara Wootton,
“uma notória contradição entre, por uma lado, o tom e as
Freedom Under Planning, and Herman Finer, The Road to
implicações evidentes de praticamente todo o argumento e,
Reaction. American Political Science Review, Vol. XL,
por outro, os compromissos assumidos com qualquer posição
No. 1 (February 1946): 131-36.
de política social” (KNIGHT, Frank. Freedom Under
Planning. Journal of Political Economy, October 54
GEORGE, Henry. A Perplexed Philosopher: Being
1946: 451-54). Ver, também, a extensa resenha de John an Examination of Mr. Herbert Spencer’s Various
Jewkes (1902-1988) ao livro de Wootton: JEWKES, John. Utterances on the Land Question, with Some
Review of Barbara Wootton, Freedom Under Planning. Incidental Reference to His Synthetic Philosophy.
The Manchester School of Economics and Social New York: Charles L. Webster & Company, 1892.
Studies, January 1946: 89-104. 55
MERRIAM. Review of Barbara Wootton, Freedom
FINER, Herman. The Road to Reaction. Chicago:
52
Under Planning, and Herman Finer, The Road to Reaction.
Quadrangle Books, 1963 [1945]. p. v. p. 135.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Peter J. Boettke 691

para adaptação a novas possibilidades de (1907-2005) e prefaciaram a seção com ambas


emancipação humana, em adoração ao dizendo: “Tendo em vista o caráter ideológico do,
status quo56. e o grande interesse no livro do professor Hayek,
entendeu-se desejável publicar duas resenhas com
Esses são, admitidamente, os piores pontos-de-vista distintos”. A resenha de Roll,
exemplos do debate crítico à tese de Hayek. diga-se, aproxima-se do padrão de linguagem
Contudo, as duas resenhas de Merrian foram “acadêmica” estabelecido por Finer58. Hayek
publicadas em periódicos conceituados como teria sucumbido à tática retórica comum entre
a American Political Science Review e o The jornalistas analistas políticos, afirmou Roll,
American Journal of Sociology. A resenha de apesar do que seria de se esperar de cientistas
Joseph Mayer sobre O Caminho da Servidão, sociais experientes como Hayek de que esses
publicado nos Annals of the American Academy evitariam a tentação de igualar o socialismo
of Political Social Science foi tíbia57 – faltou-lhe com o nazismo. Roll acrescentou:
melhor compreensão sobre o ponto de Hayek Hayek poderia ter parado para refletir sobre
quanto ao planejamento, mas entendeu que os distintos desenvolvimentos na Alemanha
o livro trouxe pontos importantes sobre a e na União Soviética durante os poucos anos
soberania do direito (rule of law) num regime que antecederam à guerra, ele poderia ter
democrático em tempos de paz. Quando a tido a cortesia de, ao menos, reconhecer
American Economic Review trouxe a resenha os diferentes modos de como a guerra
de Aaron Director, os editores incluíram foi conduzida por nossos inimigos e por
nosso aliado: carece de demonstração que o
como contraponto a resenha de Eric Roll
campo de concentração em Majdanek seria
consequência inevitável de uma economia
coletivizada. A verdade é que Hayek
56
MERRIAM, Charles. Review of F. A. Hayek, The Road apresenta seus firmes preconceitos políticos
to Serfdom. The American Journal of Sociology, Vol. L,
através de uma tela de razoabilidade com a
No. 3 (November 1944): 233-35. Cit. p. 235. Ver também
transcrição de Hayek [1994, 108-123] do debate travado
qual ele tenta convencer o leitor59.
sobre O Caminho da Servidão entre Merriam e ele, cuja
transmissão deu-se por rádio. O tom das resenhas O espírito intelectual da época simples-
negativas publicadas nas revistas acadêmicas de mente impedia o reconhecimento e, muito
maior relevância se limitara a Hayek. Ao examinar o menos, a incorporação dos argumentos le-
livro Bureaucracy [Burocracia] de Ludwig von Mises, o
professor Pendleton Herring (1903-2004), de Harvard,
escreveu: 58
ROLL, Eric. Review of F. A. Hayek, The Road to
Caso esse volume tivesse sido escrito como Serfdom. The American Economic Review, Vol. XXXV,
documento de campanha, teria merecido atenção No. 2 (June 1945): 176-80.
em nível técnico como um artifício para ofuscar 59
Idem. Ibidem., p. 180. É suficiente afirmar que nos
o debate de respeito ao adágio: “não se podendo
tais “poucos anos que antecederam à guerra” na União
convencê-los; confunda-os”. Esse é oferecido,
Soviética ocorreram os expurgos políticos dos anos
contudo, como um trabalho sério de análise.
1930, bem como as consequências da coletivização e
Aquilo que mais incomodara Herring no livro de
industrialização sobre as massas. Todas as três políticas
Mises teria sido, aparentemente, a insistência desse em
stalinistas formaram em conjunto uma política de
afirmar que “as principais questões na política atual são de
genocídio tão hedionda quanto às promovidas pelos
natureza econômica e não podem ser compreendidos sem uma
nazistas, conforme se estabeleceu pela literatura
noção de teoria econômica”; desnecessário acrescentar,
histórica dos mais diversos perfis ideológicos, como
Herring mesmo informa o leitor, “um curso em teoria
pode ser verificado nas obras do historiador britânico
econômica como o apregoado pela ‘escola austríaca’”. Ver:
Robert Conquest e do historiador russo Roy Medvedev.
HERRING, Pendleton. Review of Ludwig von Mises,
Ver: CONQUEST, Robert. The Great Terror: Stalin’s
Bureaucracy. Annals of the American Academy of
Purge of the Thirties – 40th Anniversary Edition.
Political and Social Science, March 1945. p. 213.
Oxford / New York: Oxford University Press, 2007;
57
MAYER, Joseph. Review of F. A. Hayek, The Road to MEDVEDEV; Roy. Let History Judge: The Origin
Serfdom. Annals of the American Academy of Political and Consequences of Stalinism. New York: Alfred A.
Social Science, Vol. 239 (May 1945): 202-03. Knopf, 1972.
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
692

vantados por Mises e Hayek no senso comum com os quais trabalhava, as técnicas de aná-
daquele tempo. Deles, tanto a visão quanto a lise que utilizava, todo seu modo de opera-
análise dos processos políticos e econômicos ção era de um economista austríaco. E, apesar
eram absolutamente incompatíveis com tudo de seu afastamento das questões econômicas
o que era sugerido pela cultura intelectual das formais, tal aparato analítico permaneceu in-
democracias ocidentais no período entre 1930 tacto. Hayek usou a teoria da ordem espontâ-
e 1975. Mesmo que houvesse manifesta oposi- nea de Carl Menger (1840-1921) e a teoria do
ção normativa da elite intelectual no Ocidente processo de mercado de Ludwig von Mises
quanto a aspectos do modo em que a União ao examinar a emergência das regras de pro-
Soviética estivesse introduzindo uma “nova priedade privada, o desenvolvimento do com-
civilização”, a tentativa do país em colocar mon law, o crescimento do comércio, as regras
a vida social sob uma orientação racional e de conduta moral, etc. Obviamente, Hayek
consciente embasada cientificamente, isso era era um acadêmico singular e lia vastamente
algo a ser aplaudido. Os fracassos econômicos as mais variadas disciplinas – ele não poderia
do sistema soviético eram atribuídos ao seu ser acusado de “economicismo” em sua obra.
atraso histórico, e os problemas políticos, à Ele simplesmente “lia” essa informação reco-
falta de uma tradição democrática na história lhida através das lentes analíticas austríacas.
russa. O nazismo alemão, pelo contrário, se- Isso é algo completamente perdido por aque-
ria uma consequência do caráter alemão e de les preocupados com o liberalismo de Hayek.
falhas do capitalismo, e não, da corrupção de O liberalismo provia Hayek com um conjunto
instituições liberais decorrente da introjeção de de problemas, mas maneira como Hayek os
princípios socialistas, como Hayek contestava. tratava era austríaca do começo ao fim.
O desenvolvimento histórico subsequen- Embora as visões que se mantém sobre
te parece ter persuadido muitos de que a visão “homens” e “sociedade” providenciarem as
de Hayek estava correta em essência60. Infe- bases da análise social, aquelas não constituem
lizmente, isso não se traduziu em reconheci- essa. Conforme disse Joseph Schumpeter:
mento de sua contribuição analítica à política Para que problemas sejam postos como tais,
e à economia, e isso não é menos verdadeiro é mister primeiro visualizar-se um padrão
quanto àqueles amplamente favoráveis à visão distinto de fenômenos coerentes como objeto
liberal clássica de Hayek como quanto aos que merecedor do recebimento de esforços
analíticos. Noutras palavras, esforços
se opunham radicalmente à sua visão.
analíticos são necessariamente precedidos
por um ato cognitivo pré-analítico que lhes
fornece matéria-prima61.
III - Confusões Analíticas
Assim, que um determinado problema
F. A. Hayek, acima de tudo, era um eco- é identificado, passa-se à sua análise, e os
nomista “austríaco”. Os problemas analíticos seus resultados não são neutros em relação ao
método de análise.
O estilo austríaco de análise de Hayek,
60
HEILBRONER, Robert. Analysis and Vision in the
History of Modern Economic Thought. Journal of
contudo, perdeu suporte nos anos 1940
Economic Literature, Vol. XXVIII, No. 3 (September e, desde então, encontra-se afastado da
1990): 1097-114. Para uma resposta à argumentação de corrente principal do pensamento econômico.
Robert Heilbroner (1919-2005) de que Ludwig von Mises Recapitulando a tese introdutória, economia
e F. A. Hayek possuíam uma maior visão presciente, da “Escolha Pública” era a aplicação da
mas do que não se seguiria, necessariamente, terem
uma análise econômica correta, ver: BOETTKE, Peter
análise econômica da corrente majoritária aos
J. Analysis and Vision in Economic Discourse. Journal
of the History of Economic Thought, Vol. 14, No. 1
(Spring, 1992): 84-95. 61
SCHUMPETER. History of Economic Analysis. p. 41.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Peter J. Boettke 693

processos de tomada de decisões políticas. Os e as diversas proposições-chave positivas


principais princípios dessa análise econômica derivadas da teoria austríaca (tais como sinais
são: 1) Comportamento de Maximização; 2) de preços relativos, contabilidade de lucros
Preferências Estáveis; 3) Equilíbrio.Economistas e prejuízos, heterogeneidade do capital,
austríacos, e Hayek em particular, rejeitam complementaridade dos bens de capital, etc.)
pelo menos duas dessas premissas, se não são empregadas na construção de uma teoria
todas as três62. Hayek, por exemplo, rejeita sobre como planos complexos serviriam numa
a hipótese do Homo economicus como sendo economia industrial. Em suma, a maneira
parte da tradição racionalista, em oposição à como os austríacos explicam o “equilíbrio”
tradição evolucionista na qual Hayek se auto- nos processos de mercado (caso seja permitido
posicionava63. Ademais, Hayek foi crítico usar-se o termo) é radicalmente distinta da
contumaz da ideia de competição perfeita e concepção dominante, e como tal representa
da preocupação de economistas para com uma distinta contribuição analítica à ciência
análises de equilíbrio64. econômica. A dificuldade de coordenar planos
Destarte, as contribuições de Hayek para econômicos com o passar do tempo e o papel
a análise de Escolha Pública vieram na forma vital exercido por um mercado de capitais
de uma aplicação da teoria econômica austríaca funcional no direcionamento desse processo
ao processo de tomada de decisões fora dos focam a atenção teorética às questões de
mercados. Indo além, eu diria que é na teoria cálculo econômico e descoberta empresarial.
do capital que as diferenças entre os austríacos No modelo-padrão de fluxo circular de uma
e outros economistas marginalistas se economia capitalista, por outro lado, esses
acentuam65. Na análise econômica majoritária, problemas não são salientados em modelos
a aplicação inflexível dos princípios acima formais porque os pressupostos subjacentes
descritos mascara a complexidade da resolvem por hipótese o problema da
estrutura de capital, banalizando a questão de coordenação pelo cálculo. Não é a visão
coordenação. Porém, na análise austríaca, a política e social que diferencia Hayek de
coordenação dos planos no decorrer do tempo outros acadêmicos; é o seu aparato analítico
(e em ambiente de incerteza) torna-se central, que força os demais acadêmicos a prestar
atenção à estrutura dinâmica do capital de
um sistema econômico. O mais desafiador
62
A premissa em aberto seria referente às preferências
estáveis. Economistas austríacos concordam com os
para os economistas da corrente majoritária é
teóricos da corrente majoritária de que a economia não o fato de a posição de Hayek, caso se prove
tem muito valor quando o assunto é origem e fonte mais consistente que a deles, essa obrigar a
das preferências. No entanto, isso não é o mesmo que a toda uma releitura dos desenvolvimentos
estrita conservação de uma presunção de estabilidade econômicos posteriores a II Guerra Mundial.
dessas preferências no tempo. Na análise Mises-
Rothbard da “preferência demonstrada”, mapeamentos
As análises-padrão da Escolha Pública
das preferências individuais poderiam de fato estar em seguiram a trilha da economia neoclássica
constante transformação. mainstream. A Escola da Virgínia, contudo, não
63
HAYEK. The Constitution of Liberty. p. 61. seguiu completamente, apesar de a Escola de
64
HAYEK. Individualism and Economic Order. p. 77-106.
Chicago certamente tê-lo feito – resultando na
impossibilidade de reconhecer a ineficiência
65
Frank Knight entendia a importância central da
teoria do capital para a estrutura analítica da economia
institucional de ações governamentais porque
austríaca, e por isso que como crítico, ele dedicou-se as análises de equilíbrio não são próprias para
tanto ao tema na sua resenha do Nationalökonomie de tal exame66. Se, por outro lado, os processos
Mises; mesmo que no livro não se tenha dado tanto
espaço a uma análise explícita da teoria do capital. As
aparências enganam, no entanto, pois a obra é – como 66
Como alternativa, o equilíbrio de um determinado
Knight sugeriu – quase que exclusivamente sobre conjunto de políticas públicas é explorado, por
teoria do capital. exemplo, como quando Gary Becker (1930-2014)
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
694

de ajuste de desequilíbrios foram o núcleo de mercado67. O Teorema de Arrow, por


da estrutura analítica, então imperfeições, exemplo, poderia ser reinterpretado como
ineficiências e a maneira como indivíduos uma aplicação da tese de Mises sobre a
reagem às circunstâncias, essas tornam- impossibilidade de um processo de tomada de
se cruciais para a análise. Instituições e decisões via voto democrático. Na falta de um
as informações e incentivos que essas sistema de preços, atores seriam confrontados
geram movem a análise. Resultados por uma série de sinais incoerentes sobre
econômicos não são invariáveis em relação como deveriam orientar seu comportamento.
às instituições – inclusive àquelas de Ao invés de fazer-se valer de ofertas e
governança democrática. demandas de mercado, a comunidade é quem
A análise de escolha pública dentro da deve decidir como alocar um recurso escasso.
tradição austríaca enfatizaria a ignorância Tome-se um terreno baldio, por exemplo, o
estrutural a qual os atores devem enfrentar qual poderia ser usado para: (1) Um parque
em situações fora do contexto da economia comunitário; (2) Uma escola de ensino
fundamental; ou (3) Um estacionamento.
Sem um sistema de preços para guiar o uso
explicou o sistema de seguridade social como um
dos recursos, um consenso comunitário
equilíbrio-resposta às “falhas de mercado” no mercado deve ser alcançado. Contudo, como Kenneth
de capital humano (BECKER, Gary. A Treatise on the Arrow demonstrou, até mesmo num simples
Family. Cambridge: Harvard University Press, 1991. exemplo como esse, votação majoritária
p. 369-74), ou como quando George Stigler (1911-1991) por pareamento de alternativas pode não
sugeriu que subsídios à indústria açucareira fosse um
resultado eficiente pela evidência de que ninguém
produzir o consenso requerido (um resultado
conseguira providenciar alternativa de menor custo altamente formal que ecoa o debate de Hayek,
(STIGLER, George. Law or Economics? Journal of Law em O Caminho da Servidão, sobre os limites
and Economics, Vol. 35, No. 2 (October 1992): 455- de consensos derivados democraticamente).
68). Ver, também, o artigo de Gary Becker, no qual é O parque pode vencer a escola, e a escola
exposta uma argumentação teórica para a “eficiência”
do processo competitivo entre grupos de pressão num
pode vencer o estacionamento, mas o
sistema democrático (BECKER, Gary. Public Policies, estacionamento venceria o parque – violando
Pressure Groups, and Dead Weight Cost. Journal o princípio matemático da transitividade.
of Public Economics, Vol. 28, No. 3 (December A famosa conclusão atesta que o resultado
1985): 329-47) – ou seja, com alto grau de acesso ao pode ser eficiente somente caso o sistema
sistema político. A Escola da Virgínia, por outro lado,
procura expor as ineficiências econômicas associadas
político seja ditatorial, ou as alocações serão
a variadas políticas públicas. A verdadeira questão ineficientes, mas democráticas. Simplesmente,
a ser levantada é se tais escolas podem explorar não há maneira em eu as alocações possam
consistentemente tais problemas ao mesmo tempo ser eficientes e democraticamente derivadas.
em que preserva o comprometimento com a teoria de Certa linha de argumentação popular
preço neoclássica. Em correspondência privada datada
de 13 de setembro de 1994, Gary Becker fez objeções
entre acadêmicos da Escolha Pública, como
a esta interpretação da Economia Política de Chicago.
Não é possível responder-lhe neste artigo, mas se crê
que noções de eficiência e equilíbrio, seja no mercado 67 Uma tentativa experimental de produção de
ou no ambiente político, são mais problemáticas do uma teoria moderna sobre processo político, um
que se admite normalmente nos estudos sobre Política híbrido austro-Escolha Pública, pode ser encontrado
Econômica ao estilo da Escola de Chicago. Muitas das em: WAGNER, Richard. To Promote the General
questões de teoria econômica, metodológica e filosófica Welfare: Market Processes vs. Political Transfers.
associadas à noção de eficiência assumida por Chicago San Francisco: Pacific Research Institute for Public
foram endereçadas por acadêmicos de várias escolas Policy, 1989. p. 207-12]. Para uma aplicação desse tipo
de pensamento no simpósio “Can Economists Handle de teorização à situação político-econômica na antiga
Change?”, publicado como: BOETTKE, Peter J. & União Soviética e, em particular, na era Gorbachev,
RIZZO, Mario J. Advances in Austrian Economics, ver: BOETTKE. Why Perestroika Failed: The Politics
Vol. 1, 1994. p. 3-196. and Economics of Socialist Transformation.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Peter J. Boettke 695

James M. Buchanan e Gordon Tullock, era a correspondência entre oferta e demanda


acusar tal resultado de trivial. Por que seria de qualquer bem dependem do contexto
surpreendente? Apenas uma visão ingênua de institucional dentro do qual ocorre o
democracia poderia esperar que classificações processo68. Hayek não ignorava os problemas
de preferências individuais pudessem ser de Escolha Pública: ele simplesmente alterou
hialinamente agregadas de forma a refletir o tratamento analítico desses problemas em
sem sombra de dúvidas “a vontade do certas direções que diferem do tratamento
povo”. Esta era uma resposta perfeitamente mais tradicional encontrado na literatura.
razoável para acadêmicos trabalhando dentro A inabilidade da democracia em alcançar
de uma tradição democrática constitucional. consenso significa que os teóricos devem
Contudo, o resultado de Arrow era importante reconhecer os limites do processo de tomada
exatamente porque deveria ter estourado a de decisões democráticas e passar a focar a
bolha daquelas democracias ingênuas do tipo atenção para pesquisas sobre as estruturas
da que caracterizava a crítica de Finer a Hayek. de governança que permitam resultar em
E, ademais, retornando aos comentários consequências eficientes. Não se deve esperar
introdutórios referentes às críticas a Hayek do processo político, como tampouco do
do tipo das de Higgs – esse desafio à processo de mercado, que esse alcance uma
habilidade do governo democrático em alocação perfeita de recursos. Ambos são
produzir consenso além de um certo escopo imperfeitos. Diferentemente do processo de
limitado de questões é o que define a análise mercado, no entanto, políticas democráticas
hayekiana de bens públicos (isto é, de quais não geram incentivos e informações que
são os processos de descoberta da demanda permitam a detecção e correção de seus
no fornecimento de bens públicos, e de quais próprios erros. Não se pode esperar que
instituições compensariam pelas dificuldades surja, decorrente do processo político, o tipo
de cálculo em dotações não-mercadológicas?) de adaptações espontâneas que ocorrem
e de externalidades (ou seja, de quais normas no mercado para corrigir ineficiências de
de propriedade e/ou tecnologias contratuais momento. Pelo contrário, são necessários
internalizariam efeitos externos). Essa é a gerenciamento e regulamentação conscientes.
razão por que Hayek, por exemplo, no exame Ao invés de adaptação espontânea, política
de problemas dos bens públicos em Direito, demanda adaptação consciente, e existem
Legislação e Liberdade, apesar de aceitar certos limites epistemológicos para tal procedimento.
aspectos dos argumentos analíticos da teoria-
padrão das falhas de mercado, ele mesmo
assim chega a uma conclusão completamente Conclusão
diferente dessa em relação à produção e
distribuição de bens públicos. Em especial, O Caminho da Servidão de Hayek é tão
Hayek defende que o governo assuma posição relevante agora quanto quando foi publicado
não-exclusiva mesmo quando é possível há setenta anos, quiçá o seja até mais. Ao ser
determinar tecnicamente esse ser o único publicado, serviu de aviso ao Ocidente liberal-
capaz de fornecer tal bem nas circunstâncias democrático de que a via para o totalitarismo
de momento. Tal posição não é resultante de não é aberta por bandoleiros revolucionários,
“má economia” combinada com devaneio mas pelos mais nobres ideais. Presentemente,
ideológico (por exemplo, supondo problemas testemunha-se o colapso do sistema estatal
remotos de parasitismo (free-rider), mas, socialista, e a tentativa de trilhar-se a rota
pelo contrário, ela decorre da consideração da democracia política e da prosperidade
analítica de Hayek sobre as dinâmicas de
mudança tecnológica e do seu reconhecimento 68
HAYEK. Law, Legislation and Liberty. Vol. 3, p. 41-
que os requerimentos informacionais sobre 64.
Uma Retrospectiva sobre O Caminho da Servidão de Hayek: A Falha de Governo no Debate Contra o Socialismo
696

econômica. Tais questões não encontram era a principal asserção filosófico-política


resposta numa leitura dessa obra-prima de de O Caminho da Servidão, uma afirmação
Hayek. Encontra-se, no entanto, um conjunto decorrente de argumento analítico quanto à
de ferramentas analíticas e insights os quais natureza da tarefa do planejador. A vitória
podem ser empregados no enfrentamento será em vão caso as revoluções de 1989
dos problemas do mundo atual. terminem simplesmente por rejeitar o regime
Quanto a isso, Hayek deixou como totalitário do Partido Comunista apenas
herança: (1) Um refinamento do teorema para embarcar num processo de ditadura
misesiano quanto à impossibilidade de cálculo sancionada por um sistema multipartidário
econômico na ausência de propriedade em disputa pelo controle do processo
privada; e (2) Um exame da lógica de transição. Muito da Europa Central e
organizacional das instituições criadas para Oriental já falhou na incorporação das lições
substituir o sistema de propriedade privada constitucionais da democracia liberal. Vive-
na alocação de recursos escassos.A força da se um momento constitucional, mas não
análise de Hayek estava em demonstrar que há sinais de que o “fetiche democrático”
essa lógica não era uma função da forma alardeado por Hayek tenha diminuído.
de governo que inspirara a substituição Ademais, deve-se transmitir incansavelmente
das escolhas privadas no mercado por um às pessoas nos países do antigo bloco
processo de tomada de decisões coletivas. comunista (e nos países capitalistas) que nem
Independentemente se democráticos ou todas as formas de governo democrático são
autoritários em sua legitimação, os incentivos igualmente efetivas em relação à salvaguarda
institucionais produziram uma pressão lógica da economia de mercado. A não ser que
em direção totalitarismo. instituições “habilitantes” sejam estabelecidas,
Na Europa Central e na Oriental e e que ajustes espontâneos dos mercados
na antiga União Soviética essa lógica é sejam permitidos para balizar os processos
mal compreendida, se as elites intelectuais de tomada de decisões mercadológicas,
insistem que política democrática seja adotada a pobreza de um período terrível apenas
como o valor revolucionário de 1989, e não a será substituída por outra, em sequência, e
liberdade econômica. Que não pode haver pelo desapontamento de pessoas as quais já
qualquer liberdade política significativa sem suportaram mazelas demais.
um alto grau de liberdade econômica, esse

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