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Abstract Introdução
Embora cuidem da doença, os serviços devem endopsíquica e que asseguram as bases da identi-
procurar valorizar os potenciais de cada pessoa. ficação do sujeito com o conjunto social” 2 (p. 8).
Segundo Nicácio 10 (p. 91): “Os NAPS não são es- Enriquez 11 descreve a instituição como um
truturas simplificadas como as instituições totais; sistema imaginário que capta os indivíduos em
são centros de atenção, de encontro, de produção seus próprios desejos de afirmação narcísica e de
de sociabilidade, de comunicação, de convivência, identificação, na sua necessidade de amor e fan-
de referência cultural”. tasias de onipotência. Desse modo, a instituição
O NAPS investigado é um dos cinco serviços funciona como um apoio psíquico ao sujeito que
de cuidados diários implementados no municí- aí se insere, ela delimita o núcleo básico de sua
pio durante no período de 1989 a 1992. A equipe identidade por meio dos grupos. Nesse sentido,
é composta por: psicólogos, terapeutas ocupa- podemos dizer que parte do psiquismo do sujei-
cionais, assistentes sociais, médicos psiquiatras, to é grupal e institucional.
acompanhante terapêutico, enfermeiro e auxi- Nas entrevistas realizadas no NAPS, era re-
liares de enfermagem. corrente a referência por parte dos trabalhadores
Os usuários recebem atenção em parte do mais antigos sobre o momento de constituição
dia ou durante o dia inteiro, inclusive à noite. do serviço. Este era tomado como um período
Estabelece-se um contrato de atendimento, dis- épico/heróico de fundação da instituição, de
cutido entre o profissional do NAPS, o usuário oposição veemente ao modelo manicomial e
e seu familiar. Tal contrato é reajustado sempre instauração de um novo modo de se lidar com
que necessário, adequando-se à situação de ca- a loucura.
da pessoa e particularidades de seu percurso. Há Conforme mencionado acima, as instituições
também aqueles que freqüentam atendimento se constituem também como sistemas simbóli-
ambulatorial, utilizando-se do serviço mais es- cos, elas se colocam como objetos ideais a serem
poradicamente. interiorizados por seus agentes. Segundo Enri-
quez 11 (p. 57), uma instituição “não pode viver
sem elaborar um ou mais mitos unificadores (...)
Análise sem contar e/ou inventar uma história que per-
manecerá na memória coletiva: mitos, ritos, he-
Segundo Enriquez 11, as instituições configuram- róis, sagas, cuja função é sedimentar a ação dos
se como elementos de regulação social global, membros da instituição, servir-lhes de sistema de
apresentando-se como conjuntos culturais, sim- legitimação e dar, assim, sentido às suas práticas e
bólicos e imaginários. Desse modo, elas ofere- às suas vidas. (...) Ela apresenta exigências e obri-
cem uma cultura, isto é, um sistema de valores, ga a todos a se moverem pelo orgulho do trabalho
normas, pensamentos que modelam as ações de a realizar: verdadeira missão de vocação salva-
seus agentes. Elas fornecem uma estrutura de re- dora”.
ferência não só para aqueles que nela se inserem Nesse sentido, os momentos iniciais do NAPS
como para a própria sociedade. Ao se investigar se configuram como esse momento heróico de
a ruptura com um modelo manicomial, deve-se radical contraposição ao manicômio. Conforme
considerar os efeitos sobre essa regulação social mencionado anteriormente, há de se conside-
mais ampla, tendo em vista que a existência dos rar que a cidade de Santos foi uma das pioneiras
manicômios garantiu não só uma resposta à lou- na construção de uma rede de serviços substitu-
cura pautada no paradigma médico-científico, tivos ao manicômio, tendo, na época, um forte
como também garantiu uma forma de discrimi- respaldo da administração municipal para o fe-
nação e cisão entre loucos e normais, entre sãos chamento do hospital psiquiátrico local e imple-
e doentes mentais. mentação das novas práticas.
O Movimento de Luta Antimanicomial ins- Assim, temos na fala das entrevistadas, so-
taura um processo de transformação não só nas bre o início do trabalho do NAPS: “Para mim era
práticas ligadas à saúde mental, como também minha primeira experiência na saúde mental, há
carrega em si um potencial disruptivo dentro de 12 anos atrás. A gente era bastante jovem. Mas era
nossa própria sociedade ao colocar em questão a um projeto muito apaixonante, era um desafio
divisão entre normal e patológico, loucura e nor- muito grande (...), para a cidade era uma coisa
malidade. muito nova, esse gosto de desafio (...) Foi uma ex-
Segundo Kaës 2, a instituição não é apenas periência muito rica, (...) de muito aprendizado.
uma formação social e cultural complexa, ela re- Aprendizado tanto profissionalmente como pes-
aliza funções psíquicas múltiplas para os indiví- soalmente. Em termos das relações, em termos
duos na sua estrutura, na sua dinâmica e na sua do que é o humano, em termos dos direitos, da
economia pessoal. “Ela mobiliza investimentos e discussão de cidadania, da discussão sobre ética”
representações que contribuem para a regulação (Sandra – técnica).
“Primeiro eu acho que nós tínhamos um ideal mentalidade ideológica como modo de garantir
de romper mesmo com aquele modelo, que era o a segurança do sujeito e seu grupo.
manicômio, que era a institucionalização. Nossa! A ideologia sustenta e transmite a razão de ser
Era um ideal a qualquer preço. E nós não sabía- do conjunto, dando um lugar para cada sujeito
mos também, era tudo muito novo, muito difícil, no grupo, formulando um sistema de represen-
mas muito belo também porque nós tínhamos tações. Desse modo, o grupo e seus enunciados
muita vontade, muita disponibilidade” (Cláudia dão as condições necessárias para a constituição
– técnica). de um sujeito do discurso.
Nesse período há uma forte ênfase no discur- Se por um lado, os grupos são organizados
so político, o lugar de técnico se confundia com positivamente sobre identificações comuns, co-
o lugar de militante do movimento. Os pressu- munidades de ideais e crenças, por outro, ele
postos do movimento antimanicomial servem também se organiza negativamente sobre um
como um sistema de referência para o grupo, conjunto de renúncias e recalcamentos. Esse pó-
de tal modo que tudo que pudesse colocá-lo em lo negativo é configurado com base nas alianças
questão é rechaçado. É necessário apagar todas inconscientes, que: “situam-se nos pontos de en-
as marcas que pudessem lembrar a instituição lace das relações recalcadas mantidas pelos sujei-
manicômio. tos singulares e pelos conjuntos de que são parte
Um episódio ocorrido nessa época é bastan- interessada e parte constituinte. (...) As alianças
te ilustrativo desse momento do grupo. Numa inconscientes são formações da aparelhagem psí-
distração da equipe, uma usuária sai do NAPS e quica dos sujeitos de um conjunto intersubjetivo:
vai até a praia. Lá, ela é socorrida por um bom- casal, grupo, família, instituição. Elas determi-
beiro. O caso gera intensas repercussões na equi- nam as modalidades do vínculo entre os sujeitos
pe. Surge a idéia de se colocar uma porta para e o espaço psíquico” 12 (p. 269).
separar os quartos onde os usuários em situação O pacto denegativo se constitui como uma
mais aguda pudessem permanecer. Tal idéia é das modalidades de alianças inconscientes. Se-
tomada, por parte da equipe, como um ataque gundo Kaës 12 (p. 264), tal pacto seria: “aquilo
frontal ao projeto antimanicomial. Na fala de que se impõe em todo vínculo intersubjetivo para
uma das entrevistadas: “Tinha um grupo do qual ser consagrado, em cada sujeito do vínculo, aos
eu fazia parte, que achava que não podia isso, destinos do recalcamento ou da denegação, da
que a porta tinha um valor simbólico. A gente negação, da desaprovação, da rejeição ou do en-
tinha acabado com a idéia da porta, não podia quistamento no espaço interno de um sujeito ou
ter uma porta que fechasse (...) e aí uma parte da de vários sujeitos”.
equipe enlouqueceu. A gente achava que era um Tal pacto se dá a fim de que o vínculo no
absurdo isso, que era um retrocesso, que a gente grupo se organize e se mantenha, assegurando
tinha avançado a ponto de não precisar da porta” a continuidade de investimentos dos sujeitos e
(Sandra – técnica). seus benefícios. Desse modo, o pacto denegati-
Nesse momento, a coesão grupal se esface- vo tem uma função organizadora dos laços do
la, parte dos trabalhadores ameaça sair da ins- conjunto e também de defesa contra angústias
tituição. Por fim, a porta é colocada, contudo primárias. O descobrimento ou desagregação
ninguém consegue sustentar o ato de fechá-la. desses pactos no grupo geram efeitos violentos
Se a porta simboliza o aprisionamento vivido para os sujeitos aí inseridos.
no manicômio, ela também corresponde a uma No grupo em questão, nega-se a herança
forma de proteção, de divisão e discriminação. manicomial e suas relações de violência. O su-
Para além da memória do hospital psiquiátrico, perinvestimento narcísico do grupo, surge como
o grupo não pode suportar as diferenças dentro saída para superar antigas tradições, chegando
da equipe. a muitas vezes negar os limites do tratar dentro
Temos aquilo que Kaës 12 denomina como do modelo antimanicomial. As diferenças entre
momento ideológico do grupo, sua tendência à os profissionais são acobertadas pelo estatuto de
isomorfia. A indiscriminação e a homogeneida- militantes de uma causa comum.
de de pensamento são marcas desse momento. A falha do atendimento gera uma ruptura
O discurso antimanicomial garante a identidade do pacto e instala um processo de crise, ocasio-
do grupo. nando a desorganização da equipe e fantasias de
Segundo Kaës 12, a ideologia, assim como o destruição do grupo.
mito, cumpre uma função de manutenção do Outro momento de crise vivida pelos traba-
contrato narcísico do grupo. A mentalidade ide- lhadores do NAPS se dá por ocasião da mudança
ológica cumpre uma dupla função de ataque e de de gestão municipal, no final da década de 90. A
defesa. O duro embate contra um modelo mani- falta de respaldo da administração para os ser-
comial hegemônico gera o agarramento a uma viços gera um empobrecimento das práticas. A
desarticulação da rede, a falta de investimentos ria’. Eu não nego nada disso, eu seria maluco se
e de infra-estrutura limita o campo de ações pos- eu negasse que o programa de saúde mental em
síveis. Vemos a desmobilização da equipe e dos Santos passa por um instante de reconstrução,
projetos que, ao invés de se dirigirem ao territó- não é? Mas o que eu quero dizer? Que eu acho
rio, refluem para dentro da instituição, reforçan- que o atendimento ao psicótico não passa só pelo
do o modelo médico/ambulatorial tão criticado fornecimento de alimentação, por dar os passes,
anteriormente. ou por encaminhar para um trabalho protegido,
O desânimo dos trabalhadores ganha ares de acho que o profissional que acompanha o psicó-
luto pela perda de algo muito importante para a tico ele tem uma atuação que vai além disso, que
continuidade de uma proposta antimanicomial: vai por se pensar na clínica da psicose” (Jorge
o respaldo da administração política. – técnico).
“A gente estava assim, era o último suspiro. Se Assim, o discurso clínico que no primeiro pe-
você chegasse aqui há uns dois meses (...) era um ríodo do NAPS era questionado como portador
clima doente, de depressão. Às vezes, você chegava de uma herança manicomial, pode ser revisto e
e ficava ali, na sala aqui em baixo, não fazia nada! ressignificado dentro das novas práticas. É pre-
Não que você não quisesse, parece que não surgia ciso construir elos de passagem também para o
nada, não pintava nada. Quando estava alguém campo dos saberes tradicionalmente ligados à
muito mal, em crise, resgatava um pouco aquela assistência, reabilitando funções intermediárias
coisa, temos que cuidar, todo mundo se juntava, que se encontravam rompidas, criando espaços
cuidava daquela pessoa. Saía essa pessoa do surto, transicionais que possam garantir a criação de
todo mundo voltava para aquele estado crônico” novos modos de tratamento.
(Sandra – técnica).
Desta vez, na fala dos entrevistados, ao papel
de técnico ou militante se sobrepõe o de funcio- Conclusão
nário público em uma conotação pejorativa. É
recorrente neste momento uma certa nostalgia Desenvolvemos essa análise com o propósito de
com relação ao passado do NAPS. Termos como contribuir com uma compreensão dos efeitos
“antes e depois”, “antigamente e hoje em dia”, são das transformações no âmbito da atenção à saú-
freqüentes nas entrevistas. Novas rupturas dos de mental, no que diz respeito a sua dimensão
contratos narcísicos do grupo se instalam, levan- psíquica, compreendida com base no sistema de
do o grupo a se apegar a seus mitos de origem. apoio representado pelos grupos e pelas insti-
Encontramos em tal contexto, com a perda da tuições.
segurança que o ambiente oferecia, uma limita- A mudança de paradigmas com relação ao
ção dos espaços transicionais e uma redução da tratamento no campo da saúde mental, exem-
capacidade criadora. As funções intermediárias plificada aqui pelo NAPS analisado, aponta para
do grupo não conseguem dar conta da crise que processos de crise. Consideramos que a supera-
se instaura com a mudança de gestão. Segundo ção desta também abarca aspectos psíquicos em
Kaës 13 (p. 26), a crise é vivida essencialmente co- jogo neste momento.
mo uma “ruptura da relação inter e intra-subjeti- Se a contraposição ao modelo manicomial
va, no jogo das dependências dos grupos e socieda- objetiva transformações da cultura, ela remete
des”. Tal ruptura mobiliza angústias catastróficas, também a mudanças com relação às alianças
ameaçando a integridade egóica do sujeito. inconscientes, aos contratos narcísicos e inves-
Há uma perda do apoio institucional e con- timentos psíquicos que se dão nos grupos prota-
seqüente perda do apoio psíquico. O enquadre gonistas desse processo. As transformações não
grupal já não dá mais conta de suas funções de se dão apenas na ordem do explícito do discurso
continência, gerando um sentimento de desor- e das práticas, mas também atingem o âmbito
ganização e esvaziamento. daquilo que subjaz inconsciente e encoberto nos
Se por um lado há um movimento de apatia grupos.
e de apego aos mitos de fundação da instituição, O abandono de antigos códigos norteadores
por outro, há também um movimento sustenta- das práticas envolve a transformação dos laços
do por parte da equipe de investir no trabalho, de significação vigentes. Ainda que os códigos
buscando incrementar as ações técnicas desen- anteriores sejam inadequados, eles asseguravam
volvidas pelos profissionais. um modelo de condutas e representações co-
“Muitas vezes a gente pergunta: então a gen- muns no que tange ao lugar do técnico, à relação
te tem esses pacientes, o que nós podemos fazer profissional/paciente, à concepção da doença. A
com eles, né? Como atender esses pacientes? Aí a transformação desse modo de regulação provoca
equipe fala: ‘mas nós não temos carro’. A equipe um momento de fragilidade que é vivida como
fala: ‘é, mas a rede de saúde mental está precá- uma ameaça contra o próprio sujeito e seu grupo
Resumo Colaboradores
O presente artigo tem como objetivo desenvolver uma M. Y. Koda colaborou na revisão da literatura, elabora-
reflexão acerca do processo de constituição dos servi- ção da metodologia, análise dos resultados e redação
ços de atenção em saúde mental pautados pelos pres- do artigo final. M. I. A. Fernandes contribuiu na elabo-
supostos do Movimento de Luta Antimanicomial. Com ração da metodologia, análise dos resultados e revisão
base nas contribuições da psicanálise e da psicologia do artigo final.
social, desenvolvemos uma análise sobre os conflitos e
dilemas vividos em um Núcleo de Atenção Psicossocial
(NAPS) localizado no Município de Santos, São Paulo,
Brasil. Este trabalho é um desdobramento de pesquisa
de mestrado realizada no Departamento de Psicologia
Social e do Trabalho, Instituto de Psicologia, Universi-
dade de São Paulo. Utilizamos entrevistas semi-estru-
turadas realizadas com trabalhadores do NAPS. Pela
análise das entrevistas, constatamos que o processo de
transformação no modelo de assistência à saúde men-
tal mobiliza aspectos de ordem psíquica no grupo de
trabalhadores. Podemos observar uma série de confli-
tos e angústias ligadas à mudança do apoio institucio-
nal representado pelo NAPS ao longo de sua história.
A dificuldade de se lidar com as diferenças na equipe
ou o desamparo vivido em função de mudanças da
administração local são analisados na interface entre
sujeito e instituição.
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Versão final reapresentada em 24/Nov/2006
Aprovado em 03/Jan/2007