Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
O a t o r n o p rroo c e s s o c o l a b o r a t i v o
d o TTee a t rroo d a VVee r t i g e m
M iriam Rinaldi
A
que cria, no bom e no mau sentido”.1
autoria no processo colaborativo do Teatro No processo colaborativo do Teatro da
da Vertigem é um assunto complexo, uma Vertigem, a discussão da autoria não se liga ex-
vez que há um paradoxo inerente à ques- clusivamente à construção do texto escrito. Na
tão. Esse paradoxo começa pelo autor do fala do light designer Guilherme Bonfanti, por
texto que resulta desse processo. Pois, se exemplo, percebemos a idéia de que essa auto-
por um lado o dramaturgo não é o único pro- ria se dá por uma espécie de filtragem: “Eu acre-
dutor do material e, portanto, não é o autor ex- dito na minha autoria dessa forma: comparti-
clusivo da obra, pois seu trabalho é a reunião de lhada. Num certo momento, com todo mundo,
materiais de diversos autores, por outro é sua a e aí é um campo aberto para todo mundo in-
assinatura do texto escrito que resulta do pro- terferir e trazer sugestões. Mas como sou eu
cesso. Assim sendo, ele deve ter plena determi- quem vai processar, organizar e finalizar, a au-
nação sobre suas escolhas, mesmo que estas te- toria se dá aí nesse lugar”.2
nham como conseqüência inúmeras reescrituras Do ponto de vista dos atores, a questão
do texto, a partir das críticas e das sugestões dos não deixa de ser delicada. É frustrante perceber
outros criadores. É o que reconhece Fernando que, das inúmeras proposições apresentadas no
Bonassi, dramaturgo do terceiro espetáculo do processo, nada foi selecionado, ou ainda ver que
Teatro da Vertigem, “Apocalipse 1, 11”, estrea- uma personagem, uma fala ou mesmo uma ima-
do no Presídio do Hipódromo, em São Paulo, gem foram cortadas. Pode ser mais frustrante
em 2000. Em entrevista à autora, Bonassi ob- ainda quando essa criação passa a ter o corpo e
serva que “com a experiência do Teatro da Ver- a voz de outro ator. Tomemos como exemplo o
tigem eu não me sinto à vontade para assinar o caso da figura Talidomida do Brasil, proposta
texto. Porque eu sou autor de algumas coisas e em workshop por Mariana Lima e interpretada
Miriam Rinaldi é atriz do Teatro da Vertigem e professora do Curso de Artes do Corpo da PUC-SP e
mestranda do PPG em Artes Cênicas da ECA-USP.
1 Fernando Bonassi em entrevista realizada pela autora em 17.02.1999.
2 Guilherme Bonfanti em entrevista realizada pela autora em 14.02.2005.
135
no espetáculo por Luciana Schwinden, que dá so, o ator não está na ponta ou na base da pro-
um depoimento sobre sua personagem: “A mi- dução artística, mas participa ativamente da cir-
nha Talidomida não tem nada a ver com a culação dos materias. Conhecer a origem desses
Talidomida da Mariana. Ela trouxe a idéia, que materiais, participar de sua produção e sua
era muito forte, mas o meu desenho de Talido- transformação, promover critérios de escolha
mida não tem nada a ver com o desenho dela. são alguns dos procedimentos que fazem dos
Depois disso veio o texto da Constituição, que atores autores do trabalho.
é do Bonassi. A frase “Me leva pra casa...” é mi- No entanto, é preciso reconhecer que a
nha e surgiu do próprio desconforto da cena, autoria no processo colaborativo está localizada
quando vocês (audiência) começaram a rir.”3 numa zona de fronteira, de acordos delicados e
A partir do exemplo acima, podemos per- tensos, pois tenta lidar com as exigências do co-
ceber que a autoria no processo colaborativo não letivo, ao mesmo tempo que reclama o reconhe-
está relacionada apenas à gênese dos materiais, cimento individual. Trata tanto da autoria de
mas à forma como eles se processam e se trans- grupo, à medida que todos são criadores e agen-
formam. No contínuo jogo de dar e receber que tes de múltiplas apropriações e transformações,
acontece entre os atores, existe uma operação quanto da autoria particular, que acontece
autoral de apropriação. Se por um lado esse pro- quando determinado artista opera a reunião, a
cesso exige desapego do ator – postura inerente filtragem ou a organização dos materiais apre-
a todos os artistas em processo colaborativo –, que sentados pelo coletivo.
deve aceitar o corte da cena bem escrita ou mes-
mo da personagem não realizada, por outro
deve ter disponibilidade de fazer da idéia do 2. W orkshop
Workshop
outro a sua própria. A generosidade é impres-
cindível em qualquer posição que se ocupe. No Teatro da Vertigem, o workshop é a
Se, a partir de certo ponto de vista, pode mais efetiva expressão autoral dos atores em pro-
ser decepcionante para o ator não realizar suas cesso colaborativo. Denominamos workshop uma
próprias idéias, por outro lado pode ser provo- cena criada pelo ator em resposta a uma per-
cativo vê-las executadas por outro ator, pois elas gunta ou um tema lançados em sala de ensaio.5
acabam por ganhar volume na multiplicidade Talvez Richard Schechner tenha sido um
das visões do grupo, uma vez que a “solução de dos primeiros criadores a definir o procedimen-
um problema é a somatória de todas as contri- to. Para Schechner, workshop é uma fase ativa
buições”.4 O que se percebe é que os materiais de pesquisa no processo de criação da perfor-
se transformam e se enriquecem no livre trânsi- mance, em que o artista tem liberdade de explo-
to entre os criadores. rar diversas possibilidades em ensaios. É o espa-
A colocação do ator nesse lugar de trânsi- ço da experimentação por excelência, em que
to, de pensar não apenas sua personagem, mas se chega à produção de protótipos (Schechner,
também a obra em seu todo, é um dos funda- 2003, p. 198-200). Mas a maior referência nes-
mentos do processo colaborativo. Nesse proces- se tipo de procedimento que, em geral, usa per-
136
guntas como ferramentas na construção de uma pois Bausch incentiva cada bailarino a se posi-
dramaturgia, é o processo criativo do Tanz- cionar individualmente com liberdade, sem
theater Wuppertal, dirigido pela coreógrafa e bai- qualquer tipo de censura (idem).
larina alemã Pina Bausch. O mesmo tratamento pode ser percebido
Um dos primeiros passos tomados por na maneira como Antônio Araújo encaminhou
Pina Bausch na criação de uma obra é a elabo- os workshops do Teatro da Vertigem em Apocali-
ração de perguntas ou palavras-chave associadas pse 1, 11.7 Numa reunião que precedeu o início
ao tema principal do trabalho, que servirão dos encontros, a orientação do diretor era para
como molas propulsoras da criação.6 Se lermos que os atores não rejeitassem nenhuma idéia, res-
apenas as palavras-chave ou as perguntas formu- peitando a primeira imagem ou impulso encon-
ladas no processo de criação de alguns espetá- trados, sem julgar o valor de sua produção. O in-
culos do Tanztheater, ficaremos sem saber ao teresse estava no que trouxessem de consciente e
certo qual o tema da obra, pois a abordagem de inconsciente em sua formação, suas fantasias e
Bausch acontece tangencialmente, buscando seus desejos em torno das idéias e das imagens
aquilo que está no entorno ou na atmosfera sugeridas ou expressas no texto bíblico do Apo-
sugerida pelo assunto principal. A título de calipse de João, uma das fontes do trabalho.
exemplo, recolhemos algumas palavras-chave Do ponto de vista do ator do Vertigem,
extraídas do processo de criação do espetáculo pode-se dizer que o workshop é a atividade que
Café Müeller, de 1978: “uma planta de amor; melhor potencializa as qualidades do depoimen-
lembrar-se, mover-se, tocar-se; despir-se, ficar to artístico autoral. Pois cada palavra ou pergun-
de frente; escorregar sobre o corpo de um ou- ta deve ser trazida para o campo pessoal do ator,
tro; procurar o que está perdido; a proximida- e associada a algum fato de sua vida ou de sua
de; não saber o que fazer para agradar” (Hodge, experiência. Dessa maneira, um enunciado de
1987, p. 69). Já em Bandoneon, espetáculo de caráter geral, como O Mal ou O Todo Poderoso,
1980, foram colocadas as seguintes perguntas: por exemplo, pode ser transferido para uma es-
“como é possível que alguém combine com cala íntima e sintetizado a partir do ponto de
você? O que vocês observam nas crianças e be- vista individual. Há também casos em que o
bês e lamentam terem desaprendido? Que ani- enunciado já é colocado de maneira pessoal,
mal você acha erótico e por que? O que vocês como acontece nas perguntas “o que é o apo-
desejariam se pudessem recomeçar outra vez?” calipse para você?” ou “o que você gostaria de
(idem, 1989, p. 21). dizer enquanto artista?”, que permearam a cria-
Depois da proposta, cada bailarino deve ção de Apocalipse 1,11.
responder às perguntas e às palavras-chave com Apesar de seu caráter aberto, para o Tea-
uma cena. Pode agir livremente, utilizando ou tro da Vertigem, o workshop deve respeitar al-
não movimentos de dança, músicas, textos, ob- guns critérios internos. Em primeiro lugar, todo
jetos ou a participação de outros bailarinos. Se- ator deve apresentar uma resposta/cena, mesmo
gundo Hoghe, critérios como certo ou errado que seja apenas um esboço, pois isso reflete o
não tem nenhuma importância nesse processo, compromisso de cada um frente ao grupo. Em
6 Durante o processo de criação e produção de um espetáculo, que dura em média de dois a três meses,
são lançadas para o elenco mais de cem perguntas.
7 Nos referimos aqui a Araújo por ter sido uma figura permanente dos três trabalhos do grupo. Fica
implícito que, no caso de Apocalipse 1,11, Fernando Bonassi colaborou na formulação das perguntas
e temas.
137
seguida, tenta-se evitar ao máximo o didatismo, namentos que gera o confronto de idéias e vai
procurando sempre uma metáfora para repre- garantir a qualidade do material de base. A di-
sentar uma idéia. A respeito desse assunto, An- versidade é, portanto, um dos critérios mais re-
tônio Araújo faz o seguinte comentário: “A idéia levantes na produção de materiais.
é um princípio, não um fim. O ator deve pro- Essa diversidade também aparecia na di-
curar a tradução artística para a idéia. Quando nâmica dos ensaios, acionada pelo intenso cro-
ela é explicada ou dita ela empobrece a cena. nograma de criação de Apocalipse 1,11, que re-
Tenho uma idéia, muito bem, mas como ela se sultou na produção de mais de 540 cenas,
traduz sensivelmente, com jogo, com teatro?”.8 apenas no período inicial dos encontros. A pro-
Pensando nas respostas/cena oferecidas dução diária e contínua de workshops, estudos e
pelos atores às questões propostas no workshop, improvisações fazia com que os atores se sentis-
é possível relacionar o processo do Tanztheater sem num permanente brainstorm, um fluxo
ao do Teatro da Vertigem, questionando o que contínuo de criação em que a sensação de trans-
as perguntas formuladas nos dois casos podem bordamento não dizia respeito apenas ao exces-
ter em comum. O que se percebe é que, em so de material produzido, mas também ao alar-
ambos os grupos, há uma valorização das expe- gamento daquilo que pode ser considerado o
riências vitais e do arquivo histórico de cada in- tempo padrão de uma produção teatral. Os en-
divíduo. Nesse sentido, as perguntas sempre saios da peça se estenderam por mais de um ano.
funcionam como evocações, espécies de chama- Nesse longo processo, era natural que a
mentos ao depoimento pessoal. produção diária e contínua de workshops resultas-
Numa entrevista com Leonetta Benti- se em material bastante heterogêneo, com cenas
voglio (1986), Pina Bausch afirma que essa ca- triviais misturadas a outras com traço pessoal
racterística, tão marcante em seu trabalho, de bastante forte. Não havia como garantir a quali-
reconhecer o que há de pessoal e particular em dade dos workshops. Algumas perguntas ecoavam
cada bailarino, deve-se a Kurt Jooss, seu antigo na hora, outras não tinham resposta, a não ser
mestre. O que alimentava o trabalho de Joss era minutos antes da apresentação. Possivelmente
o interesse pela personalidade singular de cada essa alternância se deva tanto à qualidade das per-
dançarino, que servia como material de criação guntas quanto à suscetibilidade do elenco. E é
do espetáculo. Procedendo da mesma forma, uma oscilação que parece não dizer respeito ape-
Bausch defende a idéia de que o teatro é o espa- nas ao trabalho do Vertigem. Pina Bausch, por
ço das subjetividades e das recordações. Mas, ao exemplo, reconhece uma flutuação semelhante
contrário do que se possa imaginar, não inte- em seu processo e afirma que boas perguntas
ressa à artista apenas a história pessoal do baila- nem sempre dão bons resultados, o que a leva,
rino. As recordações trazidas à cena servem por vezes, a reformular uma mesma questão,
como iscas de recordações coletivas. apresentando-a de maneira totalmente diferente
Também no Vertigem, o sujeito é peça (Schmidt, 1983, p. 235). O mesmo aconteceu
imprescindível na formação do discurso cêni- no processo de Apocalipse 1,11, pois nem sempre
co, pois é exatamente a pluralidade de posicio- os atores apresentaram as respostas almejadas.9
138
10 Apesar de nosso foco ser o ator no processo colaborativo, é importante apontar que o depoimento pessoal
pode se dar em qualquer área de criação. Ele não é exclusividade do trabalho do ator.
139
Quando dizemos que o depoimento pessoal todologia de Grotowski era tirar do ator tudo o
é uma qualidade de posicionamento do ator, de que o obstruísse em relação ao movimento, à
sua opinião frente a alguma coisa, pode parecer respiração, e, mais importante, ao contato hu-
que se trata de um ator de palanque, com um mano” (Wolford, 2003, p. 200).
discurso verbal forte. De fato, não é isso. Muito Por se tratar de um ato de despudoramen-
do material proposto pode nos remeter a sensa- to, o depoimento artístico autoral pode ser facil-
ções a respeito do tema, por vezes com grande mente associado à idéia de um ator que grita, se
poder simbólico, não chegando a uma narrati- debate ou se desnuda em cena. Mas isso tudo
va linear. Ou, quando acontece de esse material pode acontecer sem que ocorra depoimento al-
advir da biografia do artista, pode conter uma gum. Não se trata de exibicionismo, mas antes
carga emocional inerente, que participa dessa de desarmamento, de um ato de “emergir de si
associação. Outras vezes, o depoimento pode vir mesmo” que envolve disciplina, a que Gro-
da leitura de um texto escrito pelo ator, numa towski se refere como uma oportunidade res-
circunstância que aparentemente afasta qual- ponsável (Grotowski, 1992, p. 211).
quer emotividade. Portanto, não há uma forma Diante de tal ato, tem-se a sensação de
pré-estabelecida para o depoimento. estar compartilhando de algo único, que merece
O que se pode afirmar é que o depoimen- deferência, pois o que era segredo de um indi-
to artístico autoral exige um campo de amorali- víduo passa a ser o segredo de um grupo. A par-
dade, onde é permitido expressar-se com liber- tir daí, forma-se um círculo de proteção em sala
dade. Antonio Araújo chama tais revelações de de ensaio, que garante o mergulho na criação e
“desvelamentos”, e o significado do conceito dá estabelece um grau de cumplicidade forte, um
à prática do depoimento uma nova dimensão pacto de silêncio diante das revelações, como
(Araújo Silva, 2002, p. 84). A origem dela está apontado pelo ator Roberto Áudio no processo
claramente associada às idéias de Jerzy Gro- de Apocalipse 1,11: “Às vezes era muito difícil
towski, que enfatiza a importância de trazer um ver um amigo em tamanha exposição, e, por isso
“eu” para a performance, diminuindo o espaço mesmo, me expor ao extremo se tornou uma
existente entre “quem você é” e “o que você re- questão de respeito. [...] Percebi que, a cada dia,
presenta”, na relação entre ator e personagem o grupo se tornava mais forte à medida que tra-
(Grotowski, 1992 e 1996, p. 78). Para Gro- balhávamos com nossas fraquezas”.11
towski, a exposição pessoal é o ato de atingir a Há uma instância em que o ator do Tea-
própria individualidade e, para tanto, não é ne- tro da Vertigem opera na exposição de seu “eu”,
cessário aprender coisas novas, mas ao contrá- conjugando o material da pesquisa com sua vi-
rio, eliminar barreiras. Trata-se da via negativa são pessoal e subjetiva. Nessa fase do trabalho,
de trabalho, a que Lisa Wolford se refere da se- é muito comum que o ator se posicione não
guinte forma: “Ao contrário dos programas de pretendendo ser outra coisa senão “ele próprio”,
treinamento que têm por objetivo dar ao ator o performer.12 Porém, no resultado cênico per-
um conjunto de habilidades, o objetivo da me- cebemos que ele se comporta, age e fala como
11 Os atores do Teatro da Vertigem. “O que fazemos em sala de ensaio”. Em: Teatro da Vertigem, op. cit.,
p. 47.
12 “O performer é aquele que fala em seu próprio nome, enquanto artista e pessoa, e como tal se dirige ao
público ao passo que o ator representa sua personagem” (Pavis, 2001, p. 284).
140
sendo um “outro”, o ator.13 O que acontece, como “ele próprio”, sem nenhuma intenção de
portanto, na passagem entre o material bruto ser “um outro”, no transcorrer dos ensaios esse
do workshop e a cena acabada do espetáculo? “eu” vai se distanciando, ou melhor, projetando-
Imbuído do material de leitura e sob a in- se para se constituir em um “eu personagem”.14
fluência dos procedimentos em sala de ensaio, Um dos fatores que implica na subjetiva-
o ator participa da criação da obra colaborando ção das personagens nos espetáculos do Teatro
com textos, falas, imagens, gestos, intervenções da Vertigem se deve ao fato de que, ao interpre-
no espaço, figurinos, desenhos de luz, sugestões tar uma dramaturgia convencional, o ator re-
musicais e personagens. Os materiais de sua cria a personagem por meio das palavras escri-
criação são apresentados e se desenvolvem no tas e das ações descritas nas rubricas pelo autor
espaço propositivo da cena e a idéia da perso- do texto. Em Apocalipse 1,11 aconteceu o in-
nagem nasce da experiência dos ensaios, como verso: o texto cênico adquiriu forma literária ao
resultado de um mergulho interno. O que se longo da pesquisa.15 Apesar de terem como
percebe é que o ator se alimenta da realidade ponto de partida as figuras e as alegorias bíbli-
para buscar em si mesmo as ressonâncias dela, cas, as personagens do espetáculo não tinham
num processo que Renato Cohen considera uma pré-existência literária, anterior à sua for-
mais caracterizado pela “extrojeção – tirar coi- ma cênica. O processo de criação delas estava
sas de si –, do que pela introjeção – receber a intimamente ligado ao repertório pessoal de
personagem” (Cohen, 2002, p. 105). cada ator, confundindo figura e fundo, o “eu” e
Contudo, o longo percurso que vai do o “outro”. Uma vez apresentadas ao público,
workshop à cena está pleno de materiais que vão tornaram-se criações autônomas, em que o “eu”
se sobrepondo e transformando o material bru- do ator se tornava o “eu” da personagem.16
to do workshop numa ação complexa, conse- A performer Marina Abramovic conside-
qüência de muitas camadas dramatúrgicas. Des- ra essa diferenciação entre a autobiografia e uma
sa forma, por mais que um ator apresente-se perspectiva mais geral como inerente ao seu
13 Sobre a distinção entre o “eu” e o “outro”, performance e teatro, Marvin Carlson fala de forma bastan-
te clara: “Apesar do teatro tradicional ter considerado o ‘outro’ como uma personagem da ação dramá-
tica, encarnado (por meio da representação) por um ator, a arte da performance moderna, em geral,
não está preocupada com essa dinâmica. Seus profissionais, quase por definição, não baseiam seu tra-
balho em personagens previamente criados por outro artista, mas em seus próprios corpos, suas próprias
autobiografias, suas próprias experiências específicas numa cultura e num mundo, transformados em
elementos de performance por meio da consciência deles próprios num processo de mostrarem-se para
um público” (Carlson, 2002, p. 150).
14 No texto “Restoration of behavior”, Richard Schechner afirma que qualquer tipo de performer apre-
senta a recuperação de um comportamento, mesmo que seja a recuperação daquilo que ele pensa ser “si
mesmo” (Schechner, 2003, p. 28).
15 Josette Féral, ao analisar o texto “Treinamento intercultural”, de Richard Schechner, traduz o termo
“texto de representação” [performance text] para “texto performático” [texte performatif], ou seja, um
texto indissociável de sua forma cênica (cf. Féral, 1999).
16 Esse procedimento fica bastante claro na personagem Talidomida do Brasil, por exemplo, que nasce de
elementos autobiográficos da atriz Mariana Lima. Se essa criação fosse estritamente expressão do “eu”
de Mariana, a interpretação dessa personagem, ou figura, ficaria comprometida se realizada por um
outro ator.
141
processo criativo: “Todo verdadeiro artista é outro ator ter que assumir essa personagem,
meio assim. Eu penso que você tem que chegar poderá modificar seu desenho, mas não altera-
a uma síntese. Você sempre deve começar de rá aquilo que ela representa, nem suas qualida-
você mesmo, mas no processo o resultado que des essenciais.
vem ao público deve ser transcendental e geral. Talvez a palavra “personagem” possa pa-
Ele deve tornar-se de todo mundo. Mas come- recer inapropriada em se tratando dos seres
ça com o pessoal, sempre. [...] Então, quão mais ficcionais de Apocalipse 1,11. Seja pela sua na-
fundo você mergulha em si mesmo, na verdade, tureza impura, conseqüência das múltiplas
mais universal você parece” (Kaye, 2002, p. 21). contribuições no processo colaborativo, seja pe-
Em outras palavras, se um ator do “Verti- los “contornos incertos”17 que apresentam no
gem” apresenta uma personagem que se pareça resultado cênico, ou por sua reticente função
com ele mesmo, quando mostra essa persona- narrativa, tais “criaturas”18 parecem estar distan-
gem ao público suas características passam a tes da concepção de personagem da dramatur-
funcionar como parte constituinte do caráter gia tradicional. Mas ainda assim são tidas como
ficcional dessa personagem. Se acontecer de um “um outro”, estejam fora ou dentro “de mim”.
142
Referências bibliográficas
143