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Um Sorriso no Horizonte

Nunca é tarde para se aprender a amar.


Mudanças
- Pai! – Gritara em tempos uma menina e gritava agora uma mulher.

Nunca tantas perguntas tinham sido feitas por um único ser. A curiosidade

transformava-a num gato, o sorriso num anjo e as atitudes numa fera.

Estava sempre preparada para agredir o pai com alguma das suas dolorosas

verdades, mas era incapaz de enfrentar a verdade nas acusações dele.

Então corria pela fazenda e refugiava-se no estábulo com o seu cavalo,

aquele que nunca tivera coragem de montar. Desde que a irmã mais velha

caíra dum cavalo e se sentara para sempre numa cadeira de rodas.

- Nívea? – O pai andava apressado pelos corredores à sua procura. Ouvia-a

mas não a via. Na claridade do corredor dos quartos, às vezes confundia a

filha mais nova com alguma empregada.

- Pai! – Nívea gritou de novo. Estava sentada à mesa do pequeno-almoço, e

preferia gritar a subir as escadas. O pai deu com ela respirando ofegante,

segurando um bilhete seu na mão.

- Vais com a tua irmã. – Garantiu.

- Não, não vou. – Disse a rapariga, barrando uma torrada com doce de

framboesas e lançando o bilhete para o fundo da sala.

Isabel, sua mãe, entrou nesse momento na sala atrás do marido, apoiando

as delicadas mãos nos ombros de José, olhando Nívea com curiosidade.

- Nívea a tua irmã precisa de ti. – Disse baixo, na sua voz dócil.

José, seu pai, deu a volta à mesa e aproximou o rosto do da filha,

sussurrando-lhe baixo a sua irritação.

- Nívea a tua irmã não pode andar, sabes bem que é incapaz de tratar disso

sozinha!

Nívea pôs-se de pé.


- Foi tola em andar a cavalo. Eu nunca vou cair. – Sorriu, grata pela sua

sorte. A irmã fora a escolhida para cair de um cavalo, ela não pretendia por

o pé em nenhum.

Quando se preparava para sair da sala onde tomara o pequeno-almoço, o

pai agarrou-lhe o braço com alguma violência.

Normalmente, José Melo não costumava magoar as filhas, ou negar-lhes um

capricho. Mas vendo a sua querida e doce Margarida presa a uma cadeira

de rodas, aspirando à vida, suspirando pelos cantos desejando cavalgar,

sorrindo aos pássaros e pintando delicadas rosas em telas baixas, que mais

poderia fazer se não magoar Nívea que tanto desprezo tinha pela irmã?

- Nívea se não vais com a tua irmã ajudar os deficientes motores, vais ao

estábulo receber o novo veterinário e tratador de cavalos. – Era uma

ordem, e o bigode rígido do pai tremia. Nívea, tentando não perder o

orgulho, ajeitou as calças de ganga.

- Antes homens a cheirar a cavalo que mongolóides.

- Nívea! – A sua mãe levou as mãos à boca e o seu pai largou-a, incapaz de

a olhar de frente, receando bater-lhe.

Nesse momento, Margarida entrou na salinha iluminada e sorriu docemente

a todos.

Nívea voltou-lhe o rosto. A irmã era tão bondosa que a magoava com tanta

generosidade. Fazia-a sentir-se baixa, má e frustrada. O que ela fazia num

ano de trabalho, tinha menos importância que um fardo de palha que

Margarida transportasse ao seu colo na cadeira de rodas até ao estábulo.

Era aplaudida, e a sua mãe, Isabel, chegava mesmo a telefonar às primas a

contar como a sua flor (tratavam Margarida pela espécie vegetal a que o
nome também se aplicava) pegara num fardo de palha, e praticamente sem

enxergar o caminho, insistira em depositá-lo no estábulo.

Há seis anos que Margarida perdera os movimentos das pernas. Mesmo nas

festas nas casas das vizinhas, enquanto Margarida ansiava pelos seus 18

anos com uns ainda débeis 17, e Nívea com 15 corria pelos campos

metendo a língua de fora a todos, as suas amigas e as de Margarida faziam

da cadeira de rodas uma brincadeira, e após escolherem entre si uma para

empurrar a cadeira, soltavam gargalhadas descendo a relva com uma

Margarida radiante sentada num trono andante.

Nívea perdia o olhar no horizonte e pensava que ela é que devia ter perdido

os movimentos. Fora a menina dos papás, a mais mimada. Chorava e tinha

um rancho inteiro a protegê-la contra as suas próprias invenções. A mãe

contava-lhe histórias enquanto, no andar debaixo, o pai ouvia Margarida,

com 15 anos a esboçar o seu marido perfeito. Falava num homem bom que

lhe pegasse na mão e lhe dissesse que desde pequeno sabia que se iria

casar com uma flor. Imaginava-se com o seu amante, numa noite de Lua

cheia. Ambos a sorrirem.

- Papá o nosso primeiro beijo vai ser à beira do lago… – Sussurrou uma vez.

E José, desatando a rir, mandou-a calar-se e lembrou-lhe a sua idade.

- Tem juízo garota. – Disse Nívea, saindo do colo da mãe.

Tinha 13 anos e fazia tranças à mãe há quase uma hora enquanto ouvia as

suas histórias de donzelas e cowboys.

Isabel riu-se da sua pequena e arisca Nívea.

- Falas como se fosses mais velha que eu. Mas não és, e vou-me casar

primeiro. – Sorriu Margarida, arriscando deitar-lhe a língua de fora.


- Oh Margarida! – Repreendeu o pai, rindo alto. Estavam no alpendre numa

noite amena. Havia uma simples brisa e a Lua estava encoberta por

nuvens. Os cavalos relinchavam no estábulo e os peões, perto das suas

casas, haviam acendido uma fogueira e tocavam viola baixo, cantando com

voz rude mas afinada.

Margarida fechava os olhos e o vento, mesmo ligeiro, afastava-lhe os leves

cabelos do rosto. Nívea, apercebendo-se de que o pai movia a perna ao

ritmo dos acordes da viola, e a mãe sorria timidamente, provavelmente

lembrando-se de quando se haviam casado, pulou para fora do alpendre,

berrando alto. Gritava de braços no ar perseguindo um animal invisível, e

quando se voltou deu com todos assustados, menos o pai, que abanava a

cabeça e que não acreditou quando ela lhes disse que vira um bicho na

erva. Nívea lembrou-se, subitamente, de ter seis anos e correr por ali, com

um rapazito filho de um dos fazendeiros da zona. Enquanto ela pisava

flores, perseguia pássaros e gritava, ele sentava-se, com um ramo na boca,

e olhava o céu. O céu para ele era muito importante, pois ele dizia acreditar

que todos os mistérios vinham de lá. Por isso, ele dissera-lhe uma vez, que

ela era muito bonita, mas que ele preferia o silêncio. Ele era mais velho que

ela, e ela não gostou dele porque era demasiado quieto. Porém, um belo dia

de Primavera em que ele regressava de umas férias na cidade, a sua alegria

em vê-la foi tanta que lhe pegou ao colo, inesperadamente, e a lançou num

lago. Riu-se alto e ela, pela primeira vez, detestara uma brincadeira.

Quando foi para casa pensou que gostaria de um marido assim, que a

desafiasse, mas não ele, porque ela não gostava dele. Ele era demasiado

alto para ela, e magricelas. É, o silêncio não tinha graça, mas tanta

comemoração também não.


- Mamã o que há no silêncio? – Perguntou, quando Isabel a deitou.

Isabel olhou pela janela. Os peões haviam-se recolhido e não haviam ruídos

na fazenda, excepto uma ou outra vaca que mugia de vez em quando, ou

alguma cabra que berrava.

- Há paz, querida.

Nívea assentiu, mas segundos depois perguntava, na sua voz ainda infantil,

que é que havia de tão bom na paz.

Isabel tentou dar uma resposta clara.

- Há a tranquilidade. A certeza de que tudo está bem e assim ficará durante

algum tempo.

- A tranquilidade é mentira mamã.

Isabel levantou-se e encostou a janela. Suspirou, estava cansada.

- Porquê?

- A tranquilidade engana-nos. Hoje estava tranquilo…mas as coisas não

ficaram assim por muito tempo porque eu berr…eu vi um bicho e berrei.

Isabel franziu o sobrolho, chamando à filha tola.

- Boa noite Nívea. Vou dar as boas noites à Margarida também.

E saiu do quarto, entrando no outro ao lado, onde Margarida a recebeu de

braços abertos, com um sorrido dócil no rosto.

Nívea pulou da cama e pousou o rosto nas mãos abertas. Lá em baixo ouvia

as confissões de uma filha a uma mãe.

- Mãe, ele disse que me amava.

- Filha, não acredites porque os homens mentem sempre.

- Mas mamã, tu casaste-te.

- Por causa de ti.

- A sério?
- Sim.

- Não o amavas? – À luz da Lua, a ingénua e destemida Nívea via apenas

um cabelo cor de ouro a brilhar, e uns olhos muito pequenos e vivos com

atenção às palavras de uma senhora muito magra que estava de costas

para a janela de Nívea e que falava baixo com receio de incomodar os

patrões.

- Querida, as pessoas nunca têm em vida as oportunidades que merecem.

- Então tem-nas em morte?

- Chega. Está frio, vamos entrar.

E calaram-se.

A partir desse dia, aquela frase tornou-se uma constante:

Os homens mentem sempre.

Nívea, furiosa, irrompeu pelo estábulo com um empurrão na porta, e olhou

em volta procurando o novo tratador de cavalos.

Como não o viu, após uma rápida olhadela, voltou-se de novo, disposta a

dizer ao pai que o veterinário não aparecera.

Deu de caras com um homem alto, forte, de chapéu de cowboy e sorriso

fácil, que lhe perguntou onde ia.

- Por amor de Deus meta-se na sua vida. – Tagarelou Nívea, julgando-se na

presença de um dos actuais empregados do pai, com os quais não tinha

qualquer tipo de contacto, pois quando saía de casa ia até à cidade mais

próxima com os amigos.

- De facto, ia perguntar-lhe se não seria a insolente filha do dono destas

terras… – Não se conteve, e sorriu de novo, embora não tão aberto quanto

da primeira vez.

Nívea levou as mãos às ancas e ergueu uma sobrancelha arrogante.


- Desculpe?

- Vim por causa dos cavalos…

- Depois desta apresentação é desnecessário.

Nívea não percebia nada de administração, mas sabia, e gostava, de dar

ordens. Passou então pelo caipira, e sentiu-se profundamente indignada

quando ele a voltou para si, agarrando-a por um braço e impedindo-a de

atravessar a ombreira do celeiro.

- O seu pai contratou-me.

- Está despedido. E largue-me! – Disse, sacudindo-se.

- Não vim aqui para ser admitido ou despedido, mas para me levarem a

conhecer a fazenda. – Informou.

Nívea olhou-o rudemente, contraindo os lábios.

- Então passeie sozinho.

E saiu, sem sequer voltar a olhar para o rosto moreno do tratador.

- Nívea! – Margarida sorria-lhe ternamente, vendo-a entrar em casa com

uma expressão revoltada.

- Então não foste ver os teus amigos deficientes? – Sorriu, sarcasticamente.

- Oh… – Margarida entristeceu.

- Motores. – Acrescentou Nívea, em tom de desculpa.

- Estás irritada com o quê? – Perguntou Margarida, delicadamente. Nívea

ergueu a sobrancelha. A irmã parecia conhecê-la tão bem que por vezes se

perguntava se não a julgava mal.

- O tratador de cavalos que o pai arranjou…é uma cavalgadura. –

Confessou, ajeitando o cabelo. – Vou para o meu quarto, não quero ser

incomodada.
Subiu as escadas, deixando Margarida de volta de um jarro de flores,

ajeitando-as.

Deitou-se mas não conseguiu dormir. Tinha um novo aborrecimento…

quando o tratador se queixasse ao seu pai, iria ouvir de novo que era uma

irresponsável.

Levantou-se e pensou em Margarida e nos deficientes motores. Afastou a

pequena pontada de culpa e de pena que sentira, e abriu um caderno, onde

escreveu as compras que faria no fim do mês. Estava a precisar de calças

novas. As que tinha já não a satisfaziam.

Margarida arranjava ainda as flores quando duas batidas na porta de casa a

fizeram olhar em volta, esperando a empregada. Como esta não vinha, e

voltaram a bater, encaminhou-se, na cadeira de rodas, até lá. Esticou-se

até à maçaneta, e olhou para cima, para o homem alto e robusto que ali se

encontrava, e que suspendeu um sorriso ao aperceber-se da sua situação.

Margarida, no vestíbulo, corou e tentou voltar a cadeira de rodas, para

empreender o caminho de volta, mas não conseguiu pois esta embatia na

mesinha que a mãe ali pusera a decorar. O rapaz, simpático, contornou-a, e

empurrou-a, até à sala ali ao lado, onde Margarida poderia movimentar-se

à vontade. Imaginou que fosse o veterinário que o pai anunciara que viria

para a levar a passear depois de conhecer a fazenda através de Nívea. Mas

a irmã voltara tão rápido…

Margarida vestia de claro, uma blusa simples, de algodão creme, com

mangas até ao cotovelo, e decote largo e redondo, até aos ombros muito

brancos. O rosto tinha algumas sardas e os olhos castanhos brilhavam,

interrogando-se quem era o homem. Os cabelos castanhos caíam pelos


ombros até as costas, escondidos pela cadeira de rodas. Vestia ainda uma

saia muito comprida, branca, que não deixava ver os pés.

- Boa tarde…quem é? – Perguntou ela, enquanto ele a olhava com

curiosidade.

- Sou o novo veterinário. Chamo-me Bruno Mendonça. – Sorriu,

amavelmente.

- Olá… – Margarida corou, ia apresentar-se e não poderia deixar de referir o

facto de não poder andar. – Margarida Melo, filha do José… – Sorriu

modestamente. – Não posso andar desde os quinze anos de idade…

- O que aconteceu? – Perguntou Bruno, sentindo-se na obrigação de estar

interessado na saúde das filhas do patrão, alem de ter que começar por

levar esta adorável jovem a passear.

- Caí…de um cavalo. – Continuou a sorrir com pesar.

O homem deu a volta à sala, observando as fotos de Margarida em criança

ao lado da sua égua, interessado, e então, vindo das escadas, o ruído de

Nívea a descer para a sala fê-los, ambos, olharem para esta, que os fixava

com o sobrolho erguido.

- Que faz esse homem aqui, Margarida? – Disparou, furiosa.

Bruno olhou-a com pena, e Nívea odiou o seu olhar. Num instante estava ao

seu lado, desafiadora e autoritária, exigindo respeito e lembrando-lhe da

sua posição ali; empregado.

- Vim falar com o seu pai, Nívea. Ele falou-me acerca do seu terrível feitio,

não fique demasiado contente porque me surpreendeu, na verdade assim

que abriu a boca com os seus modos autoritários, soube de quem se

tratava. – Disse Bruno, de um só fôlego, sempre calmo e pausado,

deixando Nívea de boca entreaberta, mas recuperando-se rapidamente


- Os empregados da cocheira não entram nesta casa. – Ripostou. – Saia por

favor.

- Nívea! Não sejas tão rude. – Ralhou Margarida, com o sobrolho franzido.

Raramente se zangava, mas assustava todos quando o fazia. O peito,

sempre sereno, parecia engolir mais ar do que o que seria suportável, e

todos se fixavam aí, receando que explodisse de ansiedade. – O Bruno veio-

me ajudar.

Nívea não podia acreditar no que ouvia. Um veterinário arrogante que viera

ajudar a sua irmã carenciada?

- Esta casa está doida. Não dês uma de boazinha Margarida, para que é que

precisas de um veterinário? Para te passear na tua adorável cadeirinha de

rodas? – Ironizou, inconsciente da dor que causava à irmã quando lhe

deitava à cara as suas limitações.

- Não fale assim com a Margarida! – Cortou Bruno, indignado.

- Oh, óptimo! Arranjaste outro defensor! Bem precisas, não é? Já não basta

a casa inteira. Precisas também de um estranho para me vir humilhar? –

Berrou Nívea, cada vez mais furiosa.

- Tenha calma menina. – Disse Bruno, aparentemente calmo. – Histerismo

na sua idade chama-se mimos. Vamos Margarida. – Concluiu, deitando

ambas as mãos à cadeira de rodas de Margarida e guiando-a até à saída.

Nívea sentiu-se humilhada e desprezada. Deu um murro num candeeiro que

o fez em estilhaços no chão, e subiu para o quarto, batendo a porta atrás

de si.

- Desculpe a atitude da minha irmã, Bruno. Ela é um bocadinho complicada.


Margarida, que respirava o ar puro da fazenda, descobria aos poucos que

iria gostar muito deste novo amigo. Bruno revelava-se divertido, sincero,

simpático e prestável.

- O seu pai pedira-me para conhecer a fazenda com a Nívea, ele alertou-me

sobre ela. Já estava um pouco à espera, mas ela é ainda mais interessante

do que eu pensava.

Margarida, sempre serena, via apenas o maxilar do veterinário recortado

contra o belíssimo céu, enquanto este a empurrava por um caminho de

cascalho, abriu a boca e voltou a fechá-la. Depois, sorrindo novamente,

perguntou-lhe, em tom de curiosidade.

- Acha a minha irmã interessante?

O veterinário não hesitou em responder.

- Acho. Tenho lidado muito com os animais, e perdoa-me – posso-te tratar

por tu? – Perdoa-me a comparação, mas a tua irmã tem alguma coisa de

selvagem dentro dela. Alguma coisa que a fere, que a faz ser agressiva com

as pessoas. Como uma égua. Precisa de ser amansada.

Margarida sorriu, embora um pouco ofendida. Nívea podia ser terrível, mas

ela adorava a irmã. Porém, não achou que Bruno tivesse intenção de faltar

ao respeito, parecia demasiado absorvido nos seus pensamentos.

- É. Ela é uma boa pessoa. Esforça-se demais para parecer má.

- Gostas muito dela, não é? – Perguntou docemente Bruno, exercendo mais

força na cadeira de rodas, para a elevar às pequenas escadinhas do

estábulo.

- Gosto.

Entraram no corredor do estábulo e Bruno deixou-a quieta, esperando que

ele regressasse. Entrou em alguns compartimentos e observou os cavalos.


Margarida preferira ficar de fora, recordando-se, pela milésima vez, da sua

terrível queda. Fechou os olhos e pensou. Pensou… «Se a Nívea pudesse

sentir, por momentos, o que eu sinto…seria horrível, seria horrível. Talvez aí

me amasse como a amo, me compreendesse como a compreendo, porque

eu já tive pernas saudáveis e eu já apontei os que não podem andar.»

- O seu pai tem cavalos maravilhosos… – Confessou Bruno, ao regressar.

- É, ele adora-os.

- Bruno! – Ouviu-se uma voz de homem, firme e rouca. Uma voz habituada

a dar ordens.

Era José, chegando de braços abertos.

Abraçou Bruno, e depois sorriu abertamente a Margarida, que estava

contente com o passeio.

- Felizmente chegou, Bruno. Receei ter que contratar outro veterinário.

- Aqui estou eu, José. Já não nos víamos há quê…? Cinco anos?

José passou a mão pelos seus ombros e sorriu-lhe. Não, há seis, aquando

do desastre da Margarida…chamei o teu pai para procurar a égua que

desaparecera, e tu vinhas com ele. Tinhas uns 23 anos nessa altura?

- Exacto. – Sorriu amavelmente Bruno.

- Janta connosco. – Convidou José, sorrindo abertamente ao filho de um

velho amigo. – Chama o teu pai.

- Não poderá vir, está a tratar de umas éguas para um fazendeiro. No

Norte. E não sei se deva jantar com vocês…

Margarida tentou abafar um risinho nervoso.

José entreolhou-os, e fez-se luz na sua mente.

- Viste a Nívea?
- Na verdade, lembrei-me perfeitamente dela. Quando a irmã sofreu o

acidente, ela espreitava entre todos, tentando perceber o que se passava.

Já nos conhecíamos… – Lembro-me que me empurrou, e nem pediu

desculpas. Acho que estava tão assustada quanto todos.

- Oh meu Deus, que faremos com a Nívea, Margarida? – Gracejou José.

- Deixemo-la aprender sozinha, pai.

- Haverá solução? – Brincou José.

- Todas as éguas podem ser domadas. – Afirmou Bruno, optimista.

Margarida sentiu-se um pouco constrangida mas José abraçou Bruno de

novo, e avançaram para ver as cocheiras de novo.

- Margarida, que fazes aqui? – Nívea entrou no corredor de onde se tinha

acesso a todas as cocheiras, e onde Margarida ficara de novo, na cadeira de

rodas.

- Que fazes tu aqui, que não gostas de cavalos? – Embora fosse uma

pergunta pouco simpática, o tom doce de Margarida não a traía, estava

emocionada, imaginando que a irmã viera por si, o que era verdade.

- Vim ver para onde aquele selvagem te tinha levado, e deixou-te aí? –

Disse, nos seus modos autoritários, aproximando-se da irmã.

Enquanto avançava, Margarida admirava a sua estatura. A linha firme das

suas ancas, a cintura, o casaco de ganga apertado, as botas de cowboy com

tendência feminina, as calças de ganga muito justas, o cabelo preso numa

bola na nuca, alguns fios desalinhados na testa caindo no belo rosto, com

olhos negros e frios, sempre rebeldes.

Entretanto, despertos pela nova voz, José e Bruno surgiram à porta da

cocheira de “Lis”, uma das éguas mais queridas da família Melo.


- Nívea? Que fazes aqui? – Perguntou José, que nunca vira Nívea perto dos

cavalos desde o acidente da irmã.

- Hum…vim buscar a …Mas, que faz aí com esse sujeito? Sabia que ele me

destratou?

- E tu, que terás feito para ele ser obrigado a destratar-te?

Bruno, em contraste com José, era alto, robusto, de ombros largos, rosto

moreno, expressão dura, ligeiramente divertida.

José tinha os cabelos grisalhos, era um pouco mais baixo, vestia-se como

um cowboy e tinha uma aparência firme, mas abatida.

- Prefere acreditar num estranho? Ele provocou-me. – Começava a erguer o

tom de voz, soando mal-educada.

- Irritas-te facilmente. – Assegurou José, piscando-lhe o olho, que era sinal

que devia calar-se. – Sê boa menina e leva a Margarida para casa. E avisa

que temos um convidado para o jantar.

Nívea voltou-se mal disposta, e empurrou a cadeira de Margarida, que

apenas esboçou um sorriso aos dois homens.

- Ela é complicada. – Troçou Bruno, quando a figura de Nívea empurrando a

cadeira de rodas pelo caminho de cascalho desapareceu de vista após a

inclinação da colina.

- E eu não sei? Há 19 anos que o sei.

- Não o achei nada simpático. Mas também tu…achas todos simpáticos. –

Resmungou Nívea, para uma Margarida sorridente que olhava as flores do

carreiro. Às vezes, Nívea invejava a sua calma.

- Eu achei, como já te disse. Tem sorriso fácil, é bonito…

- É grosseiro.
- Nunca estamos de acordo, pois não? – Margarida voltou a sorrir. Sempre

sorria. Que facilidade em sorrir!

Após uma pausa, dez segundos de silêncio, Margarida voltou a falar,

animada.

- Há algum tempo que não me empurravas.

Nívea, de resposta fácil, ia abrir a boca para dizer alguma ofensa, mas

depois não conseguiu. A irmã não merecia…não, hoje não merecia.

Apercebeu-se então, que, já que não podia estar na atacante, não sabia

dizer nada. Não havia nada de simpático que soubesse dizer.

Como uma mãe que amanheceu paciente para com a filha, Nívea dispôs-se,

em silêncio, em satisfazer os pequenos caprichos de Margarida, que a

deixavam radiante, fingindo-se de aborrecida.

- Que achas? A blusa branca ou a azul clara?

- A mim parecem-me as duas prestes a desmaiar. – Murmurou, enquanto

vestia um vestido fresco de verão, até à canela, que parecia torná-la um

pouco mais baixa. Soltou o cabelo, negro, e pôs até um pouco de perfume.

- Céus, Nívea, parece que vais sair com algum dos teus amigos.

- Não, o pai disse que tínhamos um convidado. Não quero parecer mal. –

Declarou, enquanto se olhava ao espelho, alternando os ângulos.

Margarida, de costas para Nívea, engoliu em seco. Se dissesse que o

convidado era só e apenas Bruno, começaria a histeria, e perderia aquele

momento de tréguas para ambas.

- Achas que leve as sandálias?

- Não dizem que pareces um anjo? Vai descalça. – Concluiu Nívea, avisando

que começava a perder a paciência. Apesar de terem quartos diferentes,


estavam ambas no quarto de Nívea, olhando-se uma ao espelho do

toucador, e outra na porta do roupeiro.

- Nívea…porque és tão dura contigo mesma? – Suspirou Margarida,

entristecida.

- E tu? Porque estás sempre a sorrir? Nem podes andar! Porquê tanta

alegria?

Margarida sentiu-se magoada com as palavras da irmã, e só por ser ela a

dizer-lhas. Ela sabia que não podia andar, não precisava que ninguém a

lembra-se. O seu peito começou a ofegar. Ergueu o queixo, e Nívea

surpreendeu-se por encontrar tanta determinação naquele rosto sempre

delicado.

- E tu? Para que te servem as pernas se não tens ninguém? Tratas as

pessoas como se fosses superior.

Nívea voltou-lhe as costas, sem saber o que dizer, não querendo mostrar-se

confusa. Sentiu as rodas da maldita cadeira seguirem-na, e Margarida

agarrou-lhe o braço.

- Aprende a amar Nívea, ou serás muito infeliz.

- Diz-me… – Começou Nívea, recuperando o fôlego. – És assim tão feliz?

Margarida girou a cadeira de rodas e baixou-se a custo para pegar numas

sandálias brancas.

Nívea pensou que não ia responder, mas perto da porta, quando Margarida

se preparava para sair, Nívea surpreendeu-se de novo. Não com as

palavras, mas com o sentido e a lógica que tinham na sua cabeça.

- Quando as pessoas olham para mim, têm pena. Acham-te uma sortuda.

No entanto, eu diria que se trata do contrário. – E saiu, fechando levemente

a porta.
Nívea, após torrar os miolos repensando as palavras da irmã, e após pensar

em não ir ao jantar, decidiu que não queria dar a Margarida o prazer de

pensar que a entristecera ou comovera. Se bem que o mais provável seria

que a irmã tivesse esquecido o incidente.

Desceu então as escadas da sua casa, encontrando um pequeno murmúrio

vindo da sala de jantar. A sua família, e provavelmente o convidado, riam.

Passou o arco que dava para a sala, e olhou para a mesa. No centro, à

cabeça da enorme mesa de carvalho coberta com uma toalha de linho

branco, José, vermelho de tanto rir. À sua direita, Isabel, que escondia o

rosto com o guardanapo. À esquerda e de costas para Nívea, Margarida. Ao

lado de Margarida, um homem de costas largas, cabelo aloirado que ria de

forma comedida.

Enfrente à visita, o lugar vazio para ser preenchido por Nívea, ao lado da

mãe.

Contornou a mesa e sentou-se. Fechou o rosto ao ver o caipira que o pai

contratara. Olhou para o arco, através do qual se viam as escadas, no

sentido de abandonar o jantar, mas depois decidiu-se por desprezar o

insignificante. Pensou, porém, que estavam a passá-la por parva. É claro

que todos sabiam que o convidado era o maldito com quem embirrara essa

tarde.

- Nívea, diz boa noite aos convidados. – Incitou José.

- José é melhor não… – Começou Isabel.

- Que eu veja, é só um convidado. E como é uma pessoa com quem não

pretendo ter qualquer tipo de relacionamento, abstenho-me de lhe dirigir a

palavra.

- És dura demais. – Balbuciou Margarida.


- E tu és tão melosa que enjoa. – Ripostou Nívea.

- Bruno, peço perdão. – Suspirou José, e só aí Nívea ergueu o olhar e fixou

o veterinário.

Vestia uma camisa branca, com as mangas dobradas, sorria

zombeteiramente, parecendo estar a divertir-se, e o cabelo fora do chapéu

tornava-o mais bonito. Espetava em todas as direcções, liso.

Nívea baixou o rosto, sentando-se. O maldito rústico fazia-a sentir-se como

se fosse uma criança mal comportada com o seu riso trocista.

- Não faz mal José, isto é, a modos que, bastante divertido. – Sorriu,

modestamente.

Nívea olhou para o prato sem vontade alguma de comer.

Fixou Bruno com raiva, fulminando-o, e ele retribuiu com um sorriso de

deleite. Ela sentiu o sangue ferver nas veias por saber que ele estava a

troçar dela.

Margarida interrompeu a discussão muda no preciso momento em que

Nívea ia inventar algo para o insultar.

- Gostou da nossa fazenda?

O sorriso jovem do veterinário fixou-se na beleza pura e genuína de

Margarida, e Nívea não pode evitar sentir-se desprezada.

José olhou-a em tom de repreensão, e erguendo uma sobrancelha, começou

a comer a sopa.

Nívea seguiu-o.

Durante a refeição, tanto Bruno quanto Margarida pareciam perdidos na

conversa com o outro. Nívea sentia-se enjoada com tanto “A sério? Eu

também!”. Captando toda a conversa, aparentemente desinteressada,

Nívea apreendeu que o caipira e Margarida haviam frequentado a mesma


escola, embora em anos diferentes, e que haviam até representado, na

mesma peça teatral, a mesma personagem; o cordeirinho.

Nívea ia a dizer “Ele não tem ar nenhum de cordeirinho”, mas Margarida

interrompeu-a de novo, no entusiasmo da conversa, e os dois voltaram a rir

alto, apercebendo-se de que ambos haviam lido “Os Maias”.

Depois, começaram um diálogo sobre o maldito livro, que Nívea nunca

sequer ouvira falar, e ficaram alheios ao resto. Nívea, cansada do olhar

baboso dos pais para com o “casalinho”, entornou o copo de limonada bem

na direcção de Bruno, que, encostado à mesa, viu o peito amarelo e sentiu-

o molhado, e levantou-se com alarido. Nívea pontapeou-o ainda em cheio

nas canelas, por baixo da mesa, ao levantar-se alarmada.

- Muitíssimas desculpas, senhor Bruno. – Acrescentou, aparentemente

despedaçada. O que a despedaçou, foi o sorriso humilde com que Bruno

acenou, limpando a camisa com um guardanapo de pano. Ela sentiu-se de

novo uma criança traquinas.

Margarida, quis levantar-se para o ajudar, mas como era óbvio, não podia.

Levou as mãos à boca e disse “Oh”.

Nívea, porem, ofereceu-se para o ajudar, contornando a mesa e molhando,

aparentemente sem querer, a ponta de um outro guardanapo no copo de

vinho de Bruno, e fazendo-lhe uma nódoa enorme na camisa, enquanto

esfregava o guardanapo para limpar a mancha anterior.

Enquanto encenava a sua peça, sentiu-se esquecer o seu papel por um

momento, corando, ao aperceber-se de que o olhar de Bruno estava fixo na

sua nuca.
Este, calmo como ela sempre o vira, agarrou-lhe na mão com delicadeza,

mas uma firmeza intensa, e tirou-lhe o guardanapo. Nívea arriscou erguer o

rosto para ele, e encontrou-o sereno, como durante o resto da noite.

Arrependeu-se de novo. Fora infantil. Depois da histeria, encenara aquele

espectáculo.

- Não faz mal. – Garantiu Bruno. – A minha mãe conseguirá tirá-la. Vou-me

embora. Desculpem, mas começa a ficar tarde.

- Oh…Adeus Bruno… – Disse Margarida, entristecida. – Mas não bebe nem

um café?

Após um aperto de mão a José, e outro a Isabel, assim como um beijo no

rosto de Margarida, e ignorando propositadamente Nívea, Bruno saiu, com a

camisa suja de limonada e vinho.

Nívea preparava-se para subir para o quarto quando o pai a travou.

- Que parvoíce foi essa, Nívea? – Estava zangado. – Convido uma pessoa cá

para casa, e tenho que a lembrar que tenho uma filha de 10 anos incapaz

de se comportar?

- Pai!

- Desta vez não vale a pena Nívea, não me dás a volta. Aquele copo caiu

porque quiseste, assim como o vinho, ou és assim tão desastrada? Se és,

és uma inútil, ponho-te num colégio de freiras e aprendes num instante a

comportar-te.

- Não conseguiria.

- Tens a certeza? – O rosto ameaçador de José, disse-lhe para se manter

calada.
Visto que não podia subir para o quarto, pois teria que suportar mais

repreensões, saiu para a noite, odiando a família e o forasteiro por acabar

com a pouca paz que tinha.

Caminhou alguns metros e apoiou-se numa velha árvore. Fechou os olhos,

que sentia a ferverem, e imaginou que fosse pelo ar frio e cortante da noite.

Nunca admitiria que estava prestes a chorar.

- Nívea?

A voz de Bruno surgiu atrás de si, e limpou as lágrimas antes de se voltar e

de o fulminar de novo, com o seu olhar desafiador.

- O que foi? Não me chateou convenientemente hoje? Não se ia embora?

- E tu? Não te divertiste suficientemente hoje, à minha custa? – Apesar do

tom de voz, não parecia zangado.

Nívea voltou-lhe as costas.

- És uma criança. – Declarou ele, perto do seu ombro.

Aquela expressão fê-la explodir.

- Que sabe de mim? Da minha família? Não sabe nada, por isso cale-se.

Parecem todos muito simpáticos, mas juntos fazemos um inferno.

- Odeia-os, portanto.

- Odeio-o a si, por ser tão inoportuno.

- Se odiamos, é porque, em algum sítio, está escondido amor.

- Por si?

- Pela sua família.

- Isso não me diz nada.

- Ama a sua família, porque tem sentimentos.

- Odeio-o a si, porque se mete onde não é chamado.


A troca de insultos e de tentativas de acalmar a fera demoraram alguns

minutos, porque depois ambos se calaram e Nívea baixou o rosto, sentindo

de novo o olhar de Bruno na sua nuca.

- A tua irmã é muito simpática.

- Acha? Devia acompanhá-la até aos seus amigos deficientes.

- É uma boa ideia. – Ponderou ele, e Nívea sentiu de novo que estava a ser

troçada.

- Nívea…porque leva tudo tão a sério?

- Cale-se e desapareça antes que mande soltar os cães. – Decretou ela,

impaciente. Voltou-lhe as costas e cruzou os braços, tendo que os descruzar

para se equilibrar quando ele a voltou para si.

- O que foi? Largue-me! - Levantou um pouco a voz, enervada.

O que se seguiu foi um momento que durou poucos segundos, no qual os

dois se olharam com intensidade na escuridão da noite. Pareciam duvidar

do interior do outro, e assim ficaram algum tempo, com Bruno segurando

Nívea pelos ombros, e ela sentindo-se humilhada.

Depois, largou-a e disse-lhe que entrasse, pois estava frio.

- Não me dê ordens. – Bufou ela, correndo até casa antes que ele voltasse

a dizer-lho.

Na manha seguinte, Nívea observou a calma de Margarida enquanto tomava

o pequeno-almoço.

José já tinha saído, e Isabel estava à mesa com ambas. Lisete deixou o

jarro de leite na mesa e voltou à cozinha, limpando as mãos ao avental e

desejando-lhe os bons dias.

- Nívea aquilo que fizeste…

- Mãe não comece.


- Nívea, por amor de Deus, tens que nos ouvir. – Disse Isabel, ansiosa.

Margarida sorriu, como sempre sorria.

- Mãe, deixa a Nívea, deixa-a aprender sozinha.

Isabel suspirou e começou a comer uma torrada.

- Vou à cidade, às compras.

- Faz o que quiseres. – Disse Isabel, mal-humorada.

Margarida balbuciou que gostaria de ir com a irmã, mas como era quase

evidente, não podia.

Enquanto guiava em direcção à cidade, o seu velho carro dos anos 70,

Nívea recordava-se da expressão da irmã, deleitada com as palavras do

veterinário. Ambos serenos, mas firmes.

Estaria aí a origem do respeito? Na calma, na segurança?

Estacionou à porta da mercearia do velho Rodrigues e apressou-se para a

secção dos produtos de higiene e tratamento corporal. Sempre que se

aborrecia, tinha essa necessidade de se mimar. Deparou-se com um creme

demasiado alto, que tentava alcançar sem êxito, num pequeno beco da

mercearia, velha, bafienta e escurecida, mas das mais bem abastecidas da

zona. Sem se aperceber, alguém perfumado se apeou de si e lha estendeu.

Ao voltar-se para trás, viu-se a sorrir a uma rapariga jovem, de cabelos

aloirados e sorriso rasgado.

- Desculpe intrometer-me. – Murmurou a rapariga.

- Oh, não tem importância alguma. – Nívea sorria de novo. Afinal, não era

assim tão difícil ser-se simpático. Observou a rapariga; vestia como um

cowboy. Calças de ganga, em boca-de-sino, justas nas coxas, cinto grande

de couro, chapéu, camisa com padrão às riscas, e botas. – Ajudou-me.


- Procurava uma coisa, não sei se poderá me ajudar. – Disse a rapariga,

mordendo o lábio. – Embora tenha nascido aqui, vivi muitos anos fora deste

sítio, e não sei das localizações. Combinei com o meu irmão de me

encontrar no posto de gasolina, entrei aqui para pedir informações, vi-a em

dificuldades, e como me pareceu mais simpática que o velhote do balcão,

vim até aqui. – Contou.

Nívea sorriu-lhe novamente, até precisava de abastecer, ou não poderia

regressar.

- Está de carro?

- Não, disseram-me que era perto.

- Então venha, eu levo-a.

Após pagar a conta da mercearia, Nívea encaminhou-se para o carro com a

jovem.

- Como se chama? – Perguntou, enquanto punha o carro em marcha.

- Ana.

Enquanto Ana se ajeitava no velho carro, Nívea começava a marcha-atrás,

dizendo-lhe o seu nome. Pareceu-lhe que ela a reconheceu pelo nome, mas

como não disse nada, a rapariga tirou rapidamente o assunto da cabeça.

Avançaram pelas pequenas ruas da cidade, e três quarteirões mais à frente,

viram o posto de gasolina surgir. Tinha um aspecto velho e decadente, mas

na verdade, era muito bom, com óptimos preços e bom serviço.

Mas houve algo que inquietou Nívea. Um homem que estava parado, de

braços cruzados, chapéu de cowboy, encostado a uma velha camioneta

creme de caixa aberta atrás.

- É aquele o seu irmão? – Perguntou Nívea, apontando através do vidro

discretamente.
- É sim. O Bruno. É um sucesso com as mulheres, vais gostar de o

conhecer. – Brincou Ana, ajeitando o chapéu.

Nívea parou o carro a dois metros de Bruno.

- Desculpe, lembrei-me que tenho uma coisa importante a fazer.

Ana saiu, agradecendo-lhe. Era alta, e quando Bruno se aproximou, nos

momentos em que ambas se despediam, Nívea, tentando ignorá-lo,

constatou que eram da mesma estatura.

Desejando um bom dia a Ana, fingiu que não o conhecia e empreendeu a

marcha, voltando à estrada de acesso à sua fazenda. Ia furiosa, era assim

que se retribuía a simpatia? Nunca fizera favores, agora que os fazia,

calhara-lhe logo a alma da irmã do patife para salvar. Bem, uma coisa

ficara provada: Bruno e Ana eram bem diferentes. Assim como ela e

Margarida.

A meio do caminho para a sua fazenda, o carro ameaçou parar. Distraída,

Nívea finalmente olhou para o nível da gasolina, encontrando-o no limite.

Dois metros à frente, o carro parou por completo. Faltavam ainda 5 km até

à entrada da sua fazenda, e mais um até à casa e garagens.

Saiu do carro e pontapeou o pneu. Agora teria que esperar que alguém

passasse. Com a visão de Bruno, nem sequer se lembrara que não tinha

gasolina suficiente para voltar.

Minutos depois, ouviu-se o barulho rouco de um motor velho.

Nívea afastou-se da berma e esperou. Ao longe, vinda da cidade, uma

camioneta creme de caixa aberta atrás levantava poeira na estrada, com o

rádio muito alto a tocar.

Nívea pensou em esconder-se, mas o carro não era invisível, faria papel de

idiota. Esperou então que Bruno passasse e a ignorasse, como ela fizera
consigo. Porém, após passar pelo seu carro, Nívea viu Ana olhá-la e apertar

o braço do irmão, e a camioneta parou. Ana chamou-a à janela, e Nívea

quedou-se, contra a sua vontade.

- Algum problema com o carro?

- Não, não é nada de importante.

- Queres boleia? Vamos para uma fazenda aqui perto.

Seria a sua?

Nívea cruzou os braços, aparentemente despreocupada.

- Não, não quero incomodar.

Bruno mantinha-se calado, ao volante, e isso enervava-a.

- Anda lá, pode passar alguém perigoso. Vamos até lá, chamamos alguém e

vêem buscar o teu carro.

- Não… – Começou Nívea, mas a voz forte de Bruno interrompeu-a.

- Chega de conversa, entra logo no carro. – Se ela era autoritária, ele era

muito pior que ela.

Sem mais objecções, receando portar-se como a criança que ele a acusara

de ser, Nívea fechou o seu carro, pegou a carteira e as compras, e

preparou-se para subir na caixa aberta da camioneta de Bruno.

- Nívea! Deixa estar, vem tu aqui com o Bruno, espero que se dêem bem.

Eu vou aí, já estou habituada, nesta estrada está sempre a saltar.

Tirou-lhe as compras da mão, pousou-as no banco de onde se levantava, e

subiu na caixa. Nívea voltou a ficar calada, sentando-se ao lado de Bruno,

com as compras no colo, e fechando a porta.

- Eu podia guiar, a Ana ia comigo e tu ias lá atrás. – Disse, baixo, de forma

que Ana não os ouvisse.


- Não me conheces, lembras-te? Shh. – Murmurou ele, como que entrando

no jogo do “faz-de-conta-que-não-te-conheço”. Nívea apercebeu-se que

ficara ofendido. – Além disso, ninguém guia o meu carro.

Acelerou pelo caminho de terra batida, com os pulsos fortes segurando o

volante e girando-o quando necessário, e o rosto duro fixo no caminho.

- Isso é uma atitude machista.

- O quê? Não ter confiança em ti?

- Nem na tua irmã, ela podia guiar.

- Pára de dar palpites pirralha, não estamos nos teus domínios.

Nívea mordeu o lábio com os dentes cerrados.

- Por mim, nunca os pisarias.

- O José não pensa da mesma forma. – Era arrogante e seco com as

palavras, e Nívea sentiu um prazer enorme em discutir com ele. Adorava

provocá-lo.

- Quando o meu pai se aperceber do quão rude é, pô-lo-á na rua num

instante.

- Em sonhos, miúda.

- Pare de me tratar como se eu fosse uma criança, sei que só diz isso para

me chatear. – Disse, de forma agressiva. – Com o balançar da camioneta,

Ana, lá atrás, não ouvia nada.

Finalmente, Bruno desviou os olhos da estrada e olhou-a, um olhar intenso.

Parecia que para ele, ela era insuportável.

Olhando-o também, sem querer perder aquela batalha de olhares

fulminantes, Nívea esperou que ele voltasse a tomar atenção à estrada.

Depois, quando ele o fez, fixou o olhar na estrada, e não falou mais.

Consciencializou-se do quão arrogante e aborrecida era.


Pela primeira vez na sua vida inteira, tinha a sensação de estar a espreitar

para dentro de si, e contrariamente ao que sentia em relação às pessoas

que já a conheciam, importava-se com o que este estranho pensava de si.

A meio do caminho, a camioneta parou também.

Bruno saiu e arregaçou as mangas, expondo uns braços bronzeados.

Nívea não foi capaz de desviar o olhar, e quando o fez, foi ruborizada,

odiando-se por não conseguir tirar os olhos das veias que dilatavam nos

fortes braços de Bruno enquanto ele abria o capot da velha camioneta.

- O que foi, Bruno?

Era a voz de Ana que desceu da camioneta, pulando para o solo de cascalho

e aproximando-se do irmão.

- É falta de água. – Disse Bruno, seriamente. – Tenho que ir buscar água.

Nenhuma de vocês comprou água?

Nívea saiu também do carro.

- Não, eu não.

- Nem eu. – Confirmou Ana.

- Então tenho mesmo que ir até à fazenda da Nívea buscar água.

Ana olhou de um para o outro.

- Fazenda da Nívea…?

- Sim…era para lá que íamos. – Continuou Bruno, calmamente, de olhar

baixo para o motor do carro.

- Não, Bruno. E ficamos aqui duas mulheres sozinhas? – Ana abriu muito os

olhos.

- É mais perigoso ainda uma mulher ir sozinha até lá.

- E se formos todos? – Sugeriu Nívea.


- Alguém tem que guardar a camioneta, podem roubá-la. – Lembrou Ana.

Nívea mordeu o lábio.

- Então eu vou, conheço bem estes caminhos.

Então, Bruno agarrou-a por um braço, sem a olhar, como que distraído, e

empurrou-a para dentro do carro.

- Deixa-te estar aí, não vás partir o dedo do pé.

Nívea sentiu-se humilhada de novo, e completamente furiosa, mas preferiu

calar-se do que recomeçar a histeria. Como pudera pensar que ela é que

era insuportável, quando Bruno era o homem mais irritante que alguma vez

conhecera?

Entretanto, Bruno e Ana discutiam quem haveria de ir até à fazenda de

Nívea, que era o sítio com água mais próximo, já que estavam a meio

caminho entre lá e a cidade, e poderiam voltar de carro, que seria mais

rápido.

Pouco depois, Ana, através do vidro do carro, acenou a Nívea e partiu.

Esta viu Bruno aproximar-se de novo do carro e pensou que se dirigia a si,

porém, abriu de novo o capot do carro e ela não viu mais nada.

Saiu então do carro e contornou-o.

- Porque é que foi a Ana?

Encontrou Bruno sem camisa, usando-a para limpar umas peças com

aspecto velho sujas de óleo.

Reparou que tinha um peito forte, mas, sentindo-se incomodada, voltou-lhe

costas, e fingiu que não estava a ligar a nada disso.

- Porque assim eu protejo a camioneta. A Ana cresceu aqui. – Foi a resposta

seca e sem emoção de Bruno.

- Também eu.
- Mas a Ana não é uma menina mimada como tu.

Nívea sentiu o sangue ferver. Que ódio, que ódio que lhe tinha.

- Olha para mim! – Disse, irritada, voltando-se. Bruno, após alguns

segundos, olhou para ela.

- O que foi, menina do papá?

Nívea, com as mãos nas ancas, desafiadora, estava vermelha de irritação, e

gritou, coisa que tinha evitado até aí.

- Porque é que fizeste isto? Confessa! Foi de propósito! Queres aborrecer-

me, espicaçar-me! Sabes que mais? Vou a pé até casa. Que se lixem as

compras.

E virou-lhe costas, seguindo as pegadas de Ana. Àquela hora, a estrada

parecia deserta; não passava um carro capaz de ajudar e Ana demoraria

pelo menos quarenta minutos a chegar aos empregados da sua fazenda, ou

mesmo à sua casa, embrenhados no meio da vegetação, e ainda a chegar à

propriedade.

Após dar dois passos, sentiu Bruno voltá-la. Era bem mais alto que si, e

puxou-a até que ela se comprimiu contra o braço que ele lhe estendera e

que recolhera, puxando-a. Vestira a camisola, que estava agora suja e

tresandando a óleo.

Estava junto ao peito dele, a alguns centímetros dos seus olhos, e de novo,

sentindo-se irritada, começou a tentar soltar-se.

- Não sejas infantil! Que vais fazer sozinha por aí? Se te sentes irritada,

senta-te e espera pela Ana. – Tentou arrastá-la de novo para a camioneta

mas ela resistiu.

Cerrou os dentes.
- Chega de me dar ordens e de me insultar! Tu é que és o pobretão, meu

empregado, lembras-te?

- Empregado do teu pai!

- Meu, também!

Bruno apertou-a com mais força, e pela primeira vez ela viu um laivo de

raiva no olhar dele, toda a sua fúria num simples gesto.

Nívea sentiu o sangue parar-lhe no braço, e tentou soltar-se com um grito

assustado, sentindo o braço dorido. Bruno largou-a.

Observou o vermelhão que ficara onde ele a apertara, e fixou-se de novo

nele.

- O meu pai vai saber disto.

- Conta-lhe, menina mimada. – Mas a voz dele não parecia tão segura de si

agora, olhava o braço dela, e ela compreendeu que temia que ela contasse

ao pai. Ou seria outro motivo…qual? Estaria arrependido? Preocupado?

Após alguns momentos de silêncio, nos quais Nívea esfregava o braço e

Bruno mantinha-se quieto em frente a si, Nívea ouviu-o suspirar, e esboçar

um “desculpa” baixo.

- É tarde demais, se temes perder o emprego, acho que já o perdeste.

- Temo que te tenha magoado.

- Porque sabes as implicações disso. – Confrontou-o.

- Sim sei, mas não são as que tu pensas.

- Tens muito apego a esse emprego não é?

- E tu estás desejosa para que eu o perca.

- Não quero ter que me cruzar mais contigo. – Concluiu, voltando-lhe

costas, ainda sentindo o braço dormente.

- Lamento, mas eu quero continuar a cruzar-me com a Margarida.


Nívea sentiu-se ruborizar de novo.

Ali, perdida nas suas divagações, pensara que o veterinário estava

interessado em si, e que ela podia espezinhá-lo, e de repente, apercebeu-se

mais uma vez de que o mundo não girava à sua volta.

- E a Margarida, quer-se cruzar contigo? – Tinha que dizer alguma coisa.

Bruno sorriu, um sorriso perverso, malicioso, mas delicioso. Pura troça.

- Não me digas que conheço a tua irmã melhor do que tu.

- Chega, não tens que dizer nada. – Finalizou, irritada.

Entrou no carro e fechou a porta.

Ficaria à espera de Ana ali mesmo.

Pouco depois, ouviu-se um relâmpago no horizonte, e começou a chover

copiosamente. Bruno demorou-se um momento, fechando o motor.

, encolhendo-se e olhando para o céu, ficou encharcado em três segundos e

correu para dentro da carrinha, sentando-se também.

- Queríamos água, aí temos água, e com abundância. – Murmurou Nívea.

- Sim, mas não posso simplesmente abrir o carro e deixá-la cair no

depósito. – No espaço apertado da cabine, tirou a camisa fina encharcada e

torceu-a pela janela, tocando em Nívea com o cotovelo, ao tirá-la.

Nívea corou. Que ridículo, porquê corar?

Bruno voltou a puxar a camisa para dentro, ajeitando-a toda torcida com a

mão.

- Dá-ma cá. – Pediu Nívea, irritada com a dificuldade dele em endireitar a

camisa molhada.

Bruno olhou-a de lado, desconfiando da sua capacidade de lidar com

tecidos. Porém, Nívea tirou-lha da mão, com uma expressão enfadada.


Endireitou-a no colo, mesmo molhada, e devolveu-lha, ficando com duas

roletas húmidas nas calças.

- Não sabia que a menina riquinha tinha contacto com a roupa dos pobres.

Será que ele tinha sempre que espicaçá-la?

- Não é roupa dos pobres, é apenas uma camisa.

- E tu endireitaste-a melhor que eu.

- Vantagens de ser mulher. – Cortou, evitando olhá-lo, que exibia o peito nu

ainda húmido. Para deleite e desespero de Nívea, que pousara as mãos

desconfortavelmente nos joelhos, e não sabia bem para onde olhar, o peito

dele era tão moreno como o resto do seu corpo.

- E quais são as outras vantagens de ser mulher? – Perguntou ele, olhando

em frente, esperando ver Ana.

Nívea ficou sem saber o que dizer, optou pelo silêncio.

Passados alguns instantes, Bruno pousou a mão sobre a sua, que por sua

vez, afagava o seu joelho.

- Hum…quais são essas outras vantagens?

Nívea olhou para ele, instintivamente.

Deve ter feito uma expressão surpresa, porque ele manteve-se sério, com

as sobrancelhas arqueadas numa expressão de menino inocente, parecia

até tenso. Nívea sentiu o peito inchar, e não soube de quê, assim como um

arrepio agudo que lhe percorreu as costas, ao sacudir a mão pesada de

Bruno da sua.

- Não somos estúpidas nem grosseiras como alguns homens. – Informou.

- E eu? Faço parte desse grupo de homens?

Nívea olhou ansiosamente para a estrada.

- A Ana deve vir aí.


- Que venha, não estamos a fazer nada de mal…

- Nem vamos. E agora, por amor de Deus, cala-te. – Pediu, sentindo o

cérebro a ferver.

- Embirrante.

- Farta. – E abriu a porta do carro, pousando o pé numa enorme poça de

lama. Pousou a outra perna, cambaleou, mas equilibrou-se. Fechou a porta

do carro e começou a caminhar para a sua fazenda, enfrentando a

tempestade.

Cruzou os braços, abraçando-se, sentindo a chuva gelada penetrar-lhe nos

ossos. Fechou os olhos para afastar as pingas das pestanas, afastou os

cabelos da cara, e abraçando-se de novo, começou a correr.

De inicio, ouvia apenas o ruído da chuva, depois, ouviu a voz de Bruno

chamando-a, ao longe, num tom firme.

Se o seu pai falasse assim, ela não faria metade do que aprontava, mas

sendo Bruno, não ligou, e continuou a correr.

À volta da estrada, havia uma terrível e escura floresta de pinheiros muito

altos, que o seu próprio pai mandara plantar há alguns anos, para obter

alguns lucros. Aqueles terrenos pertenciam à sua família, como muitos

outros, mais a sul. Enfrente, via apenas a cortina de chuva e a lama que lhe

enregelava os pés. Porém, conhecia muito bem aquele caminho, não se

perderia ali.

Pouco depois, ouviu o som de Bruno correndo atrás de si e, num acto de

loucura, enfiou-se na floresta.

Embora ainda fosse muito cedo, a floresta estava escurecida pela atmosfera

cinzenta, e haviam lobos no interior do bosque.


Rapidamente, perdeu o rasto ao som dos passos pesados de Bruno sobre a

lama, e a sua voz deixou de ser audível sob a chuva.

Duas horas depois, Nívea chegava à fazenda. Necessitaria apenas de alguns

minutos de carro, mas depois daquele duplo problema, demorara imenso

tempo, sentira medo, humilhação, e sentia-se completamente congelada,

dos pés à cabeça, que não parava de tinir.

Quando ultrapassou o portão da sua quinta, sabia que ainda lhe faltava um

pouco até casa, e mesmo vendo um cavalo a pastar por ali, não teve

coragem de o montar. A chuva tornara-se mais violenta entretanto, e

ameaçava estragar o dia de pasto das ovelhas.

Quinze minutos depois, entrava em casa, com as botas enlameadas, a

roupa toda colada ao corpo, o rabo-de-cavalo negro desfeito e o cabelo,

molhado e emaranhado, solto sobre os ombros e as costas.

A mãe levou as duas mãos à boca, e vindo de nada, um cobertor envolveu-

a.

Sentou-se no sofá, e só agora se apercebia da respiração acelerada e do

estado em que se encontrava. Mal sentia os pés.

Tão rapidamente quanto o cobertor, uma bacia de água era posta a seus

pés, e sentia-se aliviada, com o calor da água salgada aquecendo-a. Nívea,

recostando-se no sofá, olhou finalmente em volta, inteirando-se da

assistência.

Sobre o sofá branco, enfrente a si, Isabel olhava-a com preocupação,

abanando a cabeça. Margarida, mesmo a seu lado, na cadeira de rodas,

tirara-lhe as botas, que passara à empregada, e olhava-a com preocupação.

O pai estava sentado numa poltrona, a fumar cachimbo, a seu lado, no

braço do sofá, Ana olhava-a com uma expressão divertida, mas preocupada
também. E, finalmente, de pé, junto a um dos pilares da sala, Bruno, de

braços cruzados e as roupas de seu pai, que lhe ficavam justas, olhava-a

com seriedade. No fundo, deveria ter consciência de que, se lhe tivesse

acontecido alguma coisa, a culpa seria em parte sua.

- Tudo bem querida? – Perguntou Isabel, pouco depois de um trovão

ribombar e Margarida tremer.

Um clarão repetiu-se pela sala, e todos, excepto Bruno e José, se

inquietaram.

- Sim mãe, já está tudo bem. – Murmurou, sentindo a roupa congelar-lhe

as costas.

- És uma inconsequente. Uma criança de dez anos. O que é que te passou

pela cabeça? – Ralhou o pai, falando por fim. Fechando os olhos em tom

aborrecido, Nívea não respondeu.

- É melhor ires mudar de roupa Nívea. – Sorriu Ana, que estava sequíssima.

Provavelmente, chegara à fazenda antes da chuvada, e regressara de carro.

- O meu carro? Tragam-no de volta! – Lembrou Nívea, esbugalhando os

olhos.

- Sim Nívea, o Tobias já o foi buscar. – Informou Lisete, mulher de Tobias e

empregada da casa desde sempre, que segurava ainda as botas ensopadas

de Nívea.

- Deita isso fora. – Ordenou Nívea, esperando que com as botas fora de

vista, esquecesse aquele episódio. – Vou tomar banho.

Lisete saiu da sala e abanou a cabeça. Nívea sempre fora despistada, louca,

imprevisível. Porém, e a empregada não sabia porquê, mas adivinhava o

motivo, andava literalmente na Lua desde a tarde anterior. Mal comia, mas

isso, sempre sucedera. Só que agora, sentava-se e ficava calada. Ou


sentava-se e praguejava. Ou sentava-se e discutia com tudo e todas

principalmente com o convidado de José, Bruno Mendonça. Será que Nívea

não se lembrava dele? O menino, filho dos vizinhos. Ela tinha seis anos e

ele quase 16. Ele sempre quieto, e ela sempre eléctrica. Lisete lembrava-se

do sorriso nostálgico dele, enquanto observava Nívea a construir fortalezas

de pedra. E de uma vez que passara pela sua fazenda a cavalo, e estendeu

as mãos para que a menina subisse. Ela não subiu, pois tinha medo da

enorme besta.

Lisete, ao contrário dos pais de Nívea, julgava-o um tarado. Um rapagão de

quase dezasseis anos brincando, o dia todo, com uma menina de 6? Nívea

era bem constituída, tinha uns olhos encantadores, mas era o seu cabelo,

sabia-o Lisete, que ele sempre gostara.

Uma vez numa tarde de verão, ele lia um livro enquanto Isabel se abanava

com um leque no alpendre, conversando sobre o marido com a mãe dele,

Laurinda. Antes de o pai dele ir definitivamente para a capital, as duas

juntavam-se ali muitas vezes. Bruno lia aventuras, Nívea arrancava a

cabeça a bonecas e retalhava-as. Pelo canto do olho, e Lisete sempre

reparara enquanto lavava a roupa num canto do alpendre, Bruno olhava a

pequena Melo. Às vezes, um sorriso formava-se no canto dos seus lábios.

Lisete olhava a pequena e pensava sempre que ela estava descoberta.

Indecente. Depois acalmava-se. Lembrava-se do que a patroa dizia sobre

Nívea ser apenas uma menina inocente que não prestava atenção alguma a

rapazes. Isabel soltava uma gargalhada e acrescentava: “Esta pode ficar

solteira, se não se redimir”. Desde pequena que nunca se interessara pelo

sexo oposto. E nem por bonecas. A sua preferência surgiu quando entrou

para a escola. As meninas vestiam-se bem, brincavam com as suas


princesas de vestidos coloridos, inventavam romances. Embora nunca os

sentisse, como elas os sentiam, Nívea entregou-se àquele círculo e talvez

por isso, e não por ter procurado ser uma pessoa autêntica, tenha-se

permitido ficar tão arrogante e insensível.

O que se estava a recordar, era da maneira como Nívea, alheia a Bruno e a

todos, se voltou para Lisete e disse, suspirando e afastando o cabelo dos

ombros:

- Preciso de cortar este cabelo. À rapaz.

Ao que Bruno, aparentemente desperto do livro, gritou um sonoro “Não”.

Depois, parecendo mais infantil do que na realidade era, pois sempre fora

um menino responsável e agora era um rapaz maduro, acrescentou: - Aqui

o único com cabelo à rapaz sou eu.

Seria possível que, de novo, apenas Lisete reparasse naquela admiração?

Deitou as botas fora e lavou as mãos. Limpou-as ao avental e enfiou-se na

cozinha, preparando o jantar e pensando de si para consigo que as duas

filhas dos Melo andavam muito estranhas. Naquela casa ninguém via nada.

Parecia que só a empregada tinha olhos. A mais velha, Margarida, tinha

uma rosa branca ao lado da mesa-de-cabeceira nessa mesma tarde e

quando lhe ia encher o jarro com água, Lisete encontrara-a segurando-a e

levando-a aos lábios e ao nariz. De repente, Lisete deixou cair a colher de

pau na panela do arroz. Uma catástrofe apoderava-se daquela família! Para

afastar ainda mais as duas irmãs, já tão diferentes e tão separadas por um

abismo de capacidades, pareciam as duas, inevitavelmente, apaixonadas

pelo mesmo homem! Recuperando a colher de pau, Lisete continuou a

mexer o jantar abanando, negativamente a cabeça.

Não sabia o que haveria de as unir.


Laços

Quando Nívea enfiou a camisola de lã sobre o cabelo húmido, já lavado e

cheiroso, ouviu atentamente o que a irmã lhe dizia.

- O Bruno é muito simpático. Ofereceu-se para te procurar.

- Ninguém se tinha perdido, não havia nada para procurar.

Não admitiu que, em alguns momentos, se sentira à deriva entre as formas

maciças de madeira e pinhas.

- Mesmo assim, foi muito prestável.

- Chega Margarida! – Cortou, pondo-se de pé e ajeitando o cabelo. – Não

quero ouvir falar mais nisto. Anda, ainda não almocei. Que horas são?

- Quase quatro.

- Já? – Espantou-se francamente, não esperara estar tanto tempo fora de

casa.

- O Bruno vai almoçar aqui…espero que não armes nenhuma confusão.

- Ele é que me provoca.

- É mesmo? – O que era aquilo? Ironia no tom da doce Margarida. – Ou és

tu que te deixas provocar?

Nívea voltou-lhe o rosto e desceu as escadas.

- Tenho fome.

- Oh não! Pai, ainda não percebeu que não quero olhar mais para a cara

desse veterinário de meia tigela? – Nívea teve que se controlar para não

gritar quando, ao sentar-se no seu lugar à mesa, olhou de frente para

Bruno, que mais uma vez os acompanhava à refeição.

Lá fora, tiniam raios e trovões.

- Nívea! Não sejas tão rude, não vês como chove lá fora?
Nívea comprimiu os lábios, sentindo-se irritada de novo. Não, não queria

passar por egoísta, má e ingrata, mas a sua vontade, era pontapear Bruno

da sua vida para fora e nunca mais ouvir falar nele.

- Não sou cega.

- E também não és uma selvagem, por isso comporta-te civilizadamente. –

Lembrou José, que apreciava a companhia de Bruno. Margarida sentara-se

de novo ao lado de Bruno, e os dois olhavam-se sorridentes, como se o

mundo em volta não importasse.

Nívea deve ter corado até à raiz dos cabelos quando se apercebeu de que

estava a fazer uma birra infantil, e mesmo Ana olhava para si com

incredibilidade. Sentia-se tão diminuída…porque não sentia que crescera, se

todos os outros haviam crescido ao seu redor? E porque para si, apenas

para si, admitia que não crescera, quando, assim que se apanhava numa

briga, era incapaz de dar o braço a torcer, e de ver outra perspectiva que

não a sua? Comeu sossegadamente, sentindo-se apertada pelas suas

dúvidas interiores, sentindo-se como um gato selvagem, cuja família

morreu afogada, e que seria capaz de espantar mesmo a mão que lhe

estendesse ajuda.

- Pai…posso ir dar um passeio com o Bruno, no fim-de-semana? – A voz de

Margarida, ou talvez o nome de Bruno despertaram-na das suas reflexões.

- Claro que…

- Se fosse a ti, não saía com ele. – Aconselhou Nívea, lembrando-se…da

mão na perna? Que fora isso? Assédio sexual? Algo verdadeiramente

importante? Então porque é que aquele gesto lhe martelava na mente,

embora soubesse que lhe pertencia apenas a si e a ele? Teria a importância

desse gesto vindo de outro factor? Qual?


- Porquê Nívea, aconteceu alguma coisa? – Perguntou José, desconfiado.

- É Nívea, aconteceu alguma coisa? – Perguntou Margarida, delicadamente.

Nívea apercebeu-se de que a irmã, se tivesse que escolher entre a irmã que

a maltratava, ou o estranho que fazia as suas delícias ultimamente,

escolheria a irmã, e isso quebrou-lhe o coração. Sentiu lágrimas nos olhos,

e sentiu-se um ser desprezível.

Tanta bondade fazia-a sentir-se suja.

- Não, não aconteceu nada. – Concluiu, olhando Bruno nos olhos. Este não

parecia incomodado com nada, parecia que aquela mão fora fruto da sua

imaginação…ou talvez ele não se lembrasse porque na realidade fora só

uma mão sobre a sua mão, uma sacudidela, um gesto sem importância

alguma.

Quando acabou a refeição, Nívea foi até à sala, onde se sentou fixando o

fogo na lareira. Na sala de jantar, ouviam-se risadas de Margarida e de

José.

- Nívea…tudo bem querida? – A voz de Lisete despertou-a do transe em que

mergulhara.

- Senta-te aqui. – Pediu Nívea. A empregada fora como uma avó.

Lisete não gostava de tocar ou de utilizar nada dos patrões, mas ao

aperceber-se de que Nívea estava a precisar de apoio emocional, esqueceu-

se da sua função e sentou-se a seu lado no sofá imaculado dos patrões.

- Nívea…que foi querida?

- Lisete…tenho saudades das bolachas de manteiga que me fazias. – Foi a

primeira coisa que lhe saiu, e então sentiu as lágrimas alcançarem a

superfície, e brotarem, quentes e grossas, tão diferentes da chuva que

condicionava o dia lá fora.


- Oh querida…se fossem só as bolachas, eu fazia-te em cinco minutos duas

formas delas. Mas é mais alguma coisa, não é? – O sorriso de Lisete

mostrava a dentadura postiça um pouco gasta, mas era um sorriso que

tinha tanto de rugoso, como de bondoso. Resplandecia amizade.

- Esse homem, esse Bruno, não gosto dele. Mas a Margarida derrete-se com

ele. – Confessou, baixo, aninhada no abraço de Lisete, que cheirava ao

limão do detergente da loiça.

- Ele fez-lhe mal, menina? Diz Nívea, querida, se fez, conto tudo à sua mãe

e ele é corrido a pontapé. – Nívea não conseguiu evitar sorrir, e abraçou

mais Lisete.

- Não, ele não fez nada. – Não sabia se mentira se não, mas levara a

julgamento o gesto, e concluíra que seria ridículo dizer que ele “lhe tocara

na mão”, podia até levar a conclusões erradas acerca do motivo pelo qual

ela dava tanta importância ao gesto, e isso ela não queria nem imaginar.

- Nívea? – Era a voz do seu pai, que regressava da sala de jantar, com os

convidados. Quando viu Lisete e Nívea abraçadas, sentiu que o mundo só

podia estar de pernas para o ar. Nívea, tão fria, abraçada a uma empregada

quando nem o pai beijava?

- Ela já está bem senhor, ela já está bem. – Assegurou Lisete, limpando as

lágrimas a Nívea, e demorando-se um pouco a deixá-la. Quando se afastou,

a cadeira de Margarida, empurrada por Bruno, atravessaram-se à sua

frente, e Bruno desviou propositadamente o olhar do seu rosto vermelho,

como Nívea classificou como um acto de muito bom gosto, enquanto

Margarida estendia os dois braços para o rosto da irmã e lhe falava, num

canto de sereia:

- Estás bem mana? Alguém te magoou?


- Chega! Deve haver espectáculo no circo hoje, e eu devo ser o macaco.

Parem com isso! – Lisete sorriu. Era aquela a Nívea que conhecia, e

preferia-a assim, impulsiva, à outra, emocional.

Nívea, sacudindo um velho cobertor axadrezado das pernas, subiu para o

quarto, e de lá não saiu mais.

O resto do dia passou-o no quarto, mordendo canetas, pontapeando

objectos que, sem querer, deixara cair, e olhando pela janela. Tanto esforço

mental para tirar o maldito veterinário da cabeça, e para por em ordem as

suas ideias. Não, não era assim tão infantil e tola, como todos queriam que

ela se sentisse. Apetecia-lhe gritá-lo na cara de cada um deles.

Margarida entrou no seu quarto com um dos seus sorrisos escolhidos a

dedo, e aproximou-de de Nívea, que após dar umas voltar pelo quarto,

telefonara a uma amiga, à qual não tivera coragem de contar os

acontecimentos dos últimos dias, receando também perder a sua

credibilidade, e estava sentada na cama, a pintar as unhas dos pés de um

vermelho muito vivo.

- Nívea…queres que te ajude? – Ofereceu-se Margarida.

Nívea quase soltou uma das suas exclamações agressivas, mas depois

respirou fundo, para aliviar a tensão, e passou o frasco do verniz a

Margarida, disposta a mais uma hora de tréguas.

Margarida pintava-lhe as unhas com movimentos lentos e delicados, e não

falhava uma só pincelada, apesar de o pé de Nívea, por vezes, tremer.

- Então que tens feito, durante a tarde? – Perguntou Nívea, tentando

desenvolver uma conversa.

Margarida ergueu a cabeça para si, por um momento, e havia alegria no

seu olhar.
- Obrigada por perguntares.

Nívea torceu o nariz, modestamente.

- Não é preciso começares com os açúcares…vá, diz lá, que é que fizeste.

Disse-o de forma pouco agressiva, treinando-se para ser mais calma e

menos radical. Margarida voltou a sorrir. Apercebeu-se que aquilo dos

açúcares era hábito, e Nívea não podia lutar tão rapidamente contra os seus

hábitos.

- Conversei. E li.

- Hum…aquele tratador já se foi embora? – Perguntou-se interiormente se

era esse o ponto que tencionara atingir.

Margarida ergueu de novo o rosto para a irmã, arqueando as sobrancelhas

graciosamente.

- O Bruno? – Voltou a trabalho com expressão concentrada. – Sim, foi ver

se os cavalos estão bem instalados. Até aqui ainda não esteve muito com

eles.

- Folga…e a receber, possivelmente. – Rabujou Nívea.

- Não te importes com o nosso património, é tanto que mesmo os nossos

netos terão dificuldades em desaparecer com ele…espera, não mexas o pé.

Nívea queria mudar de posição.

- Depois queres que te pintes as tuas? – Ofereceu, mordendo o lábio.

- Pintas-me as da mão? – Perguntou Margarida, com uma expressão

surpresa, o peito ofegante, estaria a morrer de felicidade? Seria o afecto de

Nívea tão importante assim para si?

- Claro…que cor queres? – E puxando para si o cesto dos vernizes, Nívea

nem deu pela tarde que as envolvia. As gargalhadas e os risos de alegria da

irmã, foram absorvidos pela sua própria alegria, e nunca imaginara sentir-
se tão bem perto da sua irmã deficiente motora, tão limitada, mas tão

melhor que si própria.

Ao jantar, Nívea quase inchou de orgulho quando a mãe perguntou a

Margarida se ela pintara as unhas (coisa que nunca fizera, nem gostava de

fazer, mas Nívea imaginou que o fizera para socializar consigo) e Margarida

olhou Nívea com um sorriso rasgado e estendeu a mão à mãe, contanto que

Nívea lhas pintara.

Nunca um acto tão banal lhe soubera tão bem.

Não…não podia admiti-lo, sorriu para si.

Quando Nívea se deitou, sentindo ainda os ossos enregelados, teve que

lutar para afastar Bruno e a culpa que Margarida a fazia sentir, da mente.

Fechou os olhos com força e apertou bem a almofada. Lá fora, ouvia ainda

a voz daquela camponesa, explicando à sua filha a verdade acerca dos

homens.

Quando Nívea acordou, era relativamente cedo. Sentiu o frio da noite nos

braços, quando se destapou, pondo os braços para fora e coçando os olhos.

O quarto estava ainda azulado, e lá fora ouvia-se um ruído estranho. Uma

mistura heterogénea de vozes e relinchos.

Nívea enrolou-se no robe e abriu a janela de par em par, enquanto a

madrugada lhe enchia o quarto. Lá fora, José, Margarida e Bruno olhavam

deliciados para uma égua brava, presa por uma corda comandada por

Bruno. Margarida, na cadeira de rodas, estava lindíssima, iluminada pela

brancura e frescura do sol nascente. Sorria abertamente, e Nívea

apercebeu-se de que era exactamente assim que Bruno via a sua irmã: tão

sensível, educada, doce e serena, tão diferente de si própria.


Observou o orgulho do pai, enquanto Bruno manejava a corda do cavalo, e

Margarida, sorrindo de contentamento.

Fechou os pulsos. Não bastasse ser a ovelha da família, chegara um homem

que a enterrava ainda mais.

Desceu para o pequeno-almoço tossindo convulsivamente, e a mãe

aconselhou-a imediatamente a chamar o médico à fazenda.

Nívea, sempre contra toda e qualquer decisão dos restantes, recusou-se,

alegando que em breve ficaria bem.

Sabendo que ainda há pouco os vira lá em baixo, Nívea apercebeu-se de

que nem o pai nem a irmã estavam presentes à mesa.

- Acordaste muito cedo hoje, filha. – Cantarolou Isabel, de bom humor,

cobrindo uma torrada com doce de laranja.

- Ouvi barulho…a Margarida e o pai?

- Oh! – Isabel abriu um largo sorriso. – O Bruno comprou uma égua

selvagem. É dele, mas quis mostrá-la ao teu pai. A Margarida também

adora aqueles bichos, está lá com eles. Vão almoçar à casa do Bruno.

Nívea não pode evitar sentir-se excluída…mas assim era melhor, Bruno

era…desprezível.

Durante a tarde, sempre que ouvia o motor de um veiculo na estrada de

acesso, Nívea espreitava pela janela do quarto, escondida pelas cortinas,

fechando um livro qualquer que achara por ali e que constituiu a sua única

distracção enquanto a irmã não chegava. Normalmente, era Margarida ali, e

Nívea a passear por algum lado com as suas amigas, duas delas estavam a

passar férias em Milão, e outra estava na casa da avó, que partira uma

perna aquando de uma queda.


À terceira vez que ouviu um ruído, e correu para a janela, era apenas o

carro velho de um dos trabalhadores. Afastou-se furiosa consigo própria,

mas precisava de saber se Bruno também poria a “mão na perna” de

Margarida.

Pouco depois de se sentir com os nervos em franja, e fechar o livro, já ao

fim de tarde, ouviu vozes alegres mas sussurradas pelas traseiras da casa.

Precipitou-se para a outra janela do quarto e tentou ver de quem se

tratava, sem ser descoberta.

Era Margarida, empurrada por Bruno. E José? E porque vinham eles pela

porta de trás da casa?

Desta vez, porém, não vinham sós.

Um rapaz pouco mais magro que Bruno, mais jovem, de olhar infantil mas

pulso firme, avançava à direita da cadeira de Margarida. Tanto ele quanto

Margarida conversavam, sem se olharem. Bruno sorria de si para consigo, e

quando ergueu o rosto em direcção à janela de Nívea, e esta se precipitou

para longe da sua vista, soube que era tarde demais; ele vira-a.

E agora? Atirou-se na cama. Pensaria que ela estava perdidamente

apaixonada? Pensaria que era uma idiota? Infantil, como já dissera? Que os

espiara porque estava com ciúmes? Odiou-se por ter passado a sua

preciosa tarde à espera de Margarida. Ou de Bruno?

Quando as vozes entraram na sua sala, através da cozinha, Nívea teve o

bom senso de se deixar ficar no quarto, apesar do formigueiro que a impelia

a descer. Só esperava que Bruno não ficasse para jantar.

De facto, ao jantar, eram só o quarteto habitual; Nívea, Isabel, Margarida e

José, que não parava de abanar a cabeça com um sorriso.


- Que tarde maravilhosa que tivemos mamã, não foi pai? – Contava

Margarida, quando Nívea se sentara ao lado da mãe.

- A casa do Bruno é muito bonita, e além da sua irmã Ana, tem ainda um

irmão chamado Samuel.

Nívea serviu-se de bifes de peru com cogumelos e natas, e fingiu não tomar

atenção à conversa, enquanto um bichinho no estômago a impelia a aguçar

o ouvido.

- O Samuel é aquele rapaz que vos trouxe? – Isabel parecia encantada com

a história, tanto ou mais que José, se possível.

- É sim, viste como é bonito mãe? – Margarida corou.

- Nunca te ouvi falar assim de um homem Margarida! O Bruno é mais

bonito. – Ripostou Isabel, explodindo numa gargalhada.

Foi a vez de Nívea corar.

- O que foi? – Perguntou José, com um sorriso de entendimento no rosto.

- Nada, a comida está muito quente. – Mentiu Nívea.

A verdade é que quando a mãe referira a beleza de Bruno, ela tentara por

objecções, em pensamento, mas não conseguiu; concordava plenamente

que ele era muito bonito.

O resto da refeição foi o relato de Margarida, explicando como fora divertido

seguir a égua, enquanto Bruno tentava domá-la. Segundo Margarida, o

objectivo de Bruno era tornar uma égua tão mansa, que quando ele

sussurrasse, ela o seguisse para qualquer lado.

- Ele foi muito divertido. – Continuou Margarida, no quarto de Nívea,

enquanto dava as boas noites à irmã. Tal hábito adquirira há dois dias, mas

Nívea não desgostava totalmente. – O irmão também é extremamente

simpático, mas não é tão ligado aos animais.


- Sim, já sei. – Balbuciou Nívea, de mau humor.

Margarida ficou quieta por um momento, olhando sonhadoramente pela

janela, e Nívea baixou o rosto, concentrando-se na difícil tarefa de afastar

os lençóis da cama. Teria realmente havido uma “mão na perna”, ou talvez

uma “boca na boca”?

Na manhã seguinte, Nívea acordou com um terrível acesso de tosse, e a

mãe levou-lhe um chá à cama, repreendendo-a inúmeras vezes. Margarida,

que ficara de sair de novo com Bruno, como informou modestamente,

preferira ficar com a irmã, contando-lhe uma história, como prometera.

O médico apareceu por volta do meio-dia, acusando Nívea de ser uma

irresponsável, mas ela tossiu tanto, tentando ripostar-lhe, que quase

sufocou, ficando vermelha como um tomate.

Quando saiu, o médico informou a Isabel que a sua filha mais nova tinha

uma forte pneumonia e durante pelo menos uma semana não deveria por

os pés fora da cama.

Durante aquela fatídica semana, Margarida leu-lhe vários contos, que

escondiam uma lição de moral, e que Nívea se apercebeu que não eram tão

infantis quanto julgara.

Bruno esteve lá em baixo duas vezes, pedindo para ver Margarida, e

querendo saber da saúde de Nívea, por educação, mas Margarida não se

afastou da irmã, ripostando que estava numa parte importantíssima da

narrativa. A própria Nívea se sentia aborrecida nessas alturas, porque é que

a irmã não o convidava a subir? Ela podia protestar, não fosse ele pensar

que ela o queria ver, mas precisava urgentemente de embirrar com alguém,

visto que com Margarida era quase impossível.


O deleite inocente de Margarida, ao dar a conhecer cada uma daquelas

histórias à irmã, só se comparava com o da própria Nívea, ao ouvi-las.

Riram juntas, chegaram mesmo a contar piadas, e na última segunda-feira

de cama, uma semana após o diagnóstico, Nívea ficou séria de repente, e

pediu desculpas a Margarida, pelas vezes que lhe chamara deficiente

motora.

Margarida sorriu, como sempre sorria, e disse que lamentava que Nívea

tivesse levado a ofensa mais a peito que si própria, pois já esquecera o

assunto.

Na manhã de terça-feira, após um sonho demorado, acerca de cavalos e

uma longa estrada que levava a um arco-íris, Nívea acordou, tomou banho,

vestiu-se, penteou-se, e desceu as escadas, não totalmente recuperada,

mas muito melhor, decidida a acompanhar a irmã ao centro de deficientes

motores.

Não encontrou ninguém na sala, nem na cozinha, e tão pouco nos quartos,

então, tentou o pátio, e mais longe, os estábulos.

A caminho dos estábulos, Nívea apercebeu-se de que eram quase horas de

almoço, pelo que a mãe deveria estar de regresso do médico, o pai a

trabalhar nos estábulos, e Margarida numa das suas visitas.

Nívea teve que admitir que a principal razão que a levou aos estábulos foi o

receio de encontrar Margarida com Bruno, talvez em alguma cena íntima.

Atravessou a soleira dos estábulos e ouviu alguns animais baterem os

cascos no chão, enquanto remexiam na palha, nos seus compartimentos.

Após alguns espaços, ouviu a voz firme, mas simpática, de Bruno, falar

alto:

- José? Chegue aqui, venha ver, já nasceram os potros.


Nívea olhou em volta, estaria à espera de seu pai? O seu coração deu um

pequeno pulo de ansiedade. Ele estava ali perto.

Passando a porta do compartimento de onde viera a voz, Nívea sentiu um

cheiro estranho, a quente, e terra húmida ao mesmo tempo, e depois sentiu

um cheiro muito forte, e viu Bruno de cócoras, de costas para si, segurando

um cavalinho pequeno, com pernas compridas e escanzeladas, mal

aguentando-se em pé, e ainda húmido.

Levou a mão aos lábios.

Era uma visão de ternura infinita, Bruno passava as mãos ao longo das

pernas do potro, com carinho, verificando com os dedos se seriam

saudáveis, fortes, normais. Passou-lhe a mão na cabeça, empurrou-o com

delicadeza para perto de uma égua que estava deitada no chão, e retirou o

outro com alguma dificuldade, fazendo o mesmo.

- São bonitos não são? A Lis ficou um bocado fraca…mas recuperará

rapidamente. Os animais são fantásticos…para um bebé humano nascer

com este grau de desenvolvimento, teria que estar alguns três anos na

barriga da mãe…não acha…? José?

E então, virou-se para trás, e encontrou Nívea, encostada à parede, com

um rosto aparentemente assustado, recompondo-se apressadamente.

- Está tudo bem? Nívea não deverias estar em casa? – Colocou o animal

junto à progenitora, de novo, e ergueu-se, olhando-a com curiosidade.

- Já estou melhor… – Não se apercebera da falta que sentira dos olhos dele,

da certeza que ele sabia que ela existia. E tudo soava tão estranho na sua

mente, e talvez entorpecida pelos medicamentos, acabou por sorrir com

simpatia, tentando provar que, para ela, ele era só um homem normal. –

Vim só ver da minha irmã…ou de alguém, não estão em lado nenhum.


- Oh… – Bruno pareceu desapontado, e ao mesmo tempo intimidado pelo

seu sorriso. Ela nunca lhe sorrira. – Foram à missa.

- Segunda-feira…? – Duvidou. Bruno estava a cinquenta centímetros de si, o

corpo dele tapava a luz, e tinha dificuldade em vê-lo.

Agora com um súbito lampejo de compreensão, dos seus sentimentos em

relação a ele, Nívea sentiu-se confusa e desconfortável.

Manteve-se encostada à ombreira, de pedra fria, enquanto lá dentro os

animais remexiam-se, os potros mamando, e Bruno olhando-a.

- Acho que é missa pela alma dos teus avós.

Nívea lembrou-se, e acenou afirmativamente.

- E… – Tentou Bruno.

- O quê? – Respondeu ela, talvez mais rapidamente do que deveria.

- Nívea… – Deu um passo e alcançou-a, deitando-lhe as mãos à cintura

instintivamente. Seria da luminosidade ou ele parecia realmente

desesperado?

Nívea encostou-se à parede, olhando-o com ansiedade, sentindo-se

apreendida pela sua figura imponente, respirando sofregamente.

Por um lado, sentia um bicho que queria soltar-se, gritar com ele,

esbofeteá-lo, fazer queixa do seu atrevimento ao seu pai, mas por outro,

tinha o seu interior, o seu coração irrequieto, que batia tão velozmente que

ela receou desmaiar.

Bruno encostou o nariz ao dela, baixando-se, e quando os lábios de ambos

ameaçaram tocar-se, os peitos comprimindo-se contra o do outro, a voz de

Tobias surgiu fazendo eco no estábulo.

- Senhor Bruno? O José convidou-o para almoçar, só pude vir agora…tenho

estado de volta de uma vaca doente… Oh, menina Nívea! – Tobias vinha
avançado pelo estabulo, falando alto, e parou quando viu Nívea e Bruno, já

separados, olhando-o como se fosse um desmancha-prazeres.

Porém, Nívea sentia-se agradecida, tinha que pensar.

- Até logo. – Murmurou, fugindo dali, antes que Tobias os deixasse de novo

sozinhos.

- O quê? – Gritou, indignada.

Acabara de decidir, no seu quarto, entre as suas almofadas, que o beijo que

não acontecera e que lhe provocara tanta agitação era uma traição à irmã e

a si própria, pois Bruno era a pessoa mais detestável que conhecia.

O pior de tudo, é que se apercebera que sentira falta de implicar com ele,

de o observar, voltando depois o rosto quando ele a olhava. Que sentia

saudades das suas perguntas, afirmações e desafios, e, antes de mais

nada, nunca sentira algo tão controverso.

Agora, o seu pai estava em frente a si e dizia-lhe que Bruno acompanharia

Margarida às sessões de equitação com outros deficientes motores, e

vítimas de outras doenças. Nívea sentiu o peito quebrar-se em protesto: -

Não!

- Então? Que solucionas? Que mande um empregado tratar da tua irmã? Ou

vais tu?

Nívea segurou uma almofada e voltou o rosto ao pai. Olhou pela janela; no

pasto, um tratador segurava a rédea de um cavalo velho que galopava ao

seu redor, num círculo contínuo.

- Mas pai….a Margarida…

- A Margarida é uma pessoa sensível, emotiva. Fico orgulhoso dela por ser

tão prestável. – Cortou José.

Nívea perguntou-se se seria uma crítica a si própria.


- Que quer que eu faça?

José aproximou-se da porta e puxou a maçaneta.

- Tu sabes o que deves fazer.

Saiu, deixando Nívea retida na única solução que seria certo tomar:

Acompanhar a irmã.

Na sexta-feira Nívea pôs o orgulho de lado e ainda a recuperar da semana

que esteve doente, tossindo ocasionalmente, empurrou a cadeira de rodas

de Margarida até uma espécie de cerco onde se pratica equitação.

Nívea apercebeu-se que, antes de mais, o desejo de Margarida era o de vê-

la sensibilizada por aqueles rostos sofridos e lutadores, que protagonizavam

histórias de grande sofrimento e que mereciam, portanto, muito valor. O

mais fantástico em si, na doce e despretensiosa Margarida, é que não se

revoltava com a vida, com a sorte, com Deus, com nada. Aceitava

humildemente o seu fardo, e não se queixava, pelo contrario, ignorava o

facto, consciente das suas limitações, obviamente, e seguia enfrente,

ajudando quem estava pior que si própria.

A primeira coisa que Nívea reparou, enquanto as rodas da cadeira sulcavam

o cascalho do chão, foi nos sorrisos de cumplicidade entre crianças com o

síndroma de Down e as suas enfermeiras e assistentes, que lhes davam a

mão enquanto esperavam excitados pela sua vez de montarem o cavalo

negro que, de forma dócil, um tratador comandava.

Nívea teve que morder os lábios para não engolir como uma pedra tudo o

que dissera. Sentia-se de novo pequena e mesquinha perto de tanta força,

tanta determinação, tanto amor partilhado naquele singelo sitio tão perto

de si.

- Margarida eu… – Começou, confusa, pensando em recuar.


Temia emocionar-se, chorar ou confirmar a infantilidade com que ela

própria começara a admitir que tomava conta de si.

- Olha Nívea! – A voz excitada de Margarida apontava um rapazinho de uns

cinco anos, com o rosto deformado pelas marcas únicas do sindroma.

Quando viu Margarida, e para contribuir para o nervosismo de Nívea, o

rapazinho saltou do colo da senhora que lhe segurava a mão, e como um

macaquinho, franzino e bambo, e o sorriso rasgado marcado pela doença,

correu para o colo de Margarida, que o abraçou como uma mãe.

Era este o lado de Margarida que Nívea nunca quisera conhecer. O lado que

esmagava todas as suas expectativas, o lado que a enterrava e lhe cuspia

na cara que ela sim era uma inútil, sem escrúpulos, e não a sua irmã, tão

crescida e bondosa naquele ambiente. Outra grande confusão na cabeça de

Nívea foi o facto de tudo aquilo existir paralelo à sua vida fútil, e à vida fútil

de muitos outros, que, tal como ela fizera, para sua própria vergonha,

haviam condenado estas pessoas à exclusão social.

- Nívea, este é o Ricardo. Ricardo, disse-te que ias conhecer a minha irmã,

é a Nívea. – Sorriu Margarida, e, para espanto de Nívea, orgulhosamente.

Nívea sorriu afectadamente ao rapaz, sem saber o que dizer, e quando deu

por si, ele abraçara-lhe as pernas e não pretendia largá-la.

- Lina, a irmã da Margarida… – Murmurou contente, babando-lhe as calças,

fixando a senhora que permanecera sentada com os seus olhos rasgados.

Nívea sentiu lágrimas nos olhos, e repulsa.

Repulsa por ter sido tão maldosa, e raiva por o pai a ter obrigado

finalmente a ver aquilo que nunca desejara ver; a realidade, fora do seu

mundo de bonecas e caprichos. Nunca repulsa por aquela criança, e nunca

mais repulsa pela sua irmã, que a diminuía a olhos vistos.


- Leva-me ali Lina? Por favor, gostava de deixar a minha irmã com o

Ricardo. – Pediu Margarida, pausadamente, amigável como sempre.

Lina, que obviamente a conhecia, e que era na realidade uma quarentona

de cabelos caju pelo ombro, lisos e crespos, e o rosto sulcado de rugas,

abriu um sorriso amarelo e empurrou a cadeira de Margarida até ao oposto

do cerco, onde as crianças se amontoavam para montar.

- Quando for grande vou ter uma namorada como tu. – Murmurou Ricardo,

timidamente.

Nívea olhou para baixo, para onde ele ainda se encontrava, e franziu a

testa. Que lhe diria? Que sabia dele? Haveria quem se apaixonasse por uma

pessoa debilitada daquela forma? Poderia reproduzir-se, construir família?

Apercebeu-se que não sabia nada de outras realidades, e gostaria de dizer

que sim, que existem pessoas bondosas que se dedicam, de coração e

alma, a alguém assim. Que se podem reproduzir, claro, como todos os

outros. Sentiu-se uma ignorante.

- É claro que vais, mas nessa altura serei demasiado velha. – Acabou por

dizer, espantando-se por sorrir. Por um momento, sentiu o que Margarida

devia sentir ao ser tão gentil.

- Olha, o Jonas vai montar aquele cavalo. – O menino apontou outro, que

tinha a cabeça rapada e aparência pálida. – A Lina disse que temos que o

tratar bem, porque em breve ele vai ter com o menino Jesus, e tem que

falar bem de nós.

Nívea evitou olhá-lo. É claro que já vira outras crianças assim antes, mas

nunca se preocupara em olhá-las duas vezes, pondo-as no mesmo saco que

Margarida, que era sua irmã, e que tinha as vantagens de apenas a


aborrecer com a sua delicadeza, cheirar sempre bem, e ser linda como uma

verdadeira flor.

Agora conhecia o seu lado proteccionista e maternal. Emocionou-se, soube

que um dia, talvez, ambas estariam casadas, e os seus filhos brincariam

juntos.

Observou Jonas, o menino de cabelo rapado. Teria cancro? Leucemia?

Deveria ter uns dez anos, era raquítico, mas como dois faróis no seu rosto,

dois belos e expressivos olhos azuis, que pareciam captar tudo à sua volta.

Nívea reparou como sorriu quando o seu corpo assentou no lombo do

cavalo, após ser erguido pelo tratador. E estava ali, absorta nos seus

pensamentos e no trote leve do cavalo, suportando a criança, e na atenção

do tratador e da mãe da criança (Nívea reparou que, apesar do cabelo,

haviam grandes semelhanças), quando sentiu uma mão puxar a sua ao de

leve, voltando-a para si.

- Nívea?

Era Bruno, e ela sentiu uma agitação crescente no peito. Retirou a mão da

dele, e avaliou a sua expressão, que dizia claramente “isto só pode ser uma

aparariçao”. Vinha acompanhado de outro rapaz, também alto, que Nívea

reconheceu como sendo o magricelas que estava com ele e com Margarida

no dia em que a irmã fora conhecer a sua casa, e que nem olhou duas

vezes para ela, empoleirando-se nas grades e sorrindo para as crianças.

Nívea sentiu-se corar ao recordar-se que quase o beijara, ainda mais

quando ele se chegou para mais perto, pousando os cotovelos na sebe, tal

como ela estivera momentos antes.

- Não acredito, a Margarida convenceu-te? Eu vinha buscá-la. – Sorriu ele,

e Nívea achou o comentário extremamente hipócrita.


Ainda há uns dias tentara beijá-la e ali estava a dizer, com naturalidade,

que viera buscar a sua irmã.

Nívea voltou-se e caminhou na direcção da saída. Os seus impulsos eram

incontroláveis e por muito que tentasse acabar com a sua infantilidade,

continuava a deixar-se cair em momentos em que a sua emotividade a

movia, sem lhe dar escolha.

Afastou-se até ao seu carro e quando ia a abrir a porta, Bruno alcançou-a e

voltou-a para si.

Não estava ali ninguém, estavam todos a assistir aos progressos das

crianças com os cavalos. Ela sentiu-se desamparada.

- Larga-me, estás a magoar-me. – Protestou, e dessa vez estava

verdadeiramente irritada com ele.

- O que foi? Achas-me bruto?

- O quê? – Ela olhou-o com indignação, enquanto ele lhe apertava os pulsos

junto ao peito.

- Cheiro mal? Feio, estúpido, bruto, rústico, qualquer coisa? – Insistiu ele,

desfiando um rosário de coisas com que ela não o identificada

normalmente, embora o desejasse, e naquela situação eram as únicas

coisas que lhe podia atribuir.

- Hipócrita! – Conseguiu bramir, soltando-se com um golpe de cotovelos. –

Ainda há dias me ias… – Calou-se, corando totalmente. Bruno olhou-a

procurando uma explicação.

- O quê?

- Na segunda-feira, ias-te aproveitando de mim. – Concluiu, após respirar

fundo, tentando demonstrar que o facto lhe era terrível. – E hoje pretendes

enganar a minha irmã?


Bruno franziu o cenho, hesitante.

- Estás preocupada com ela ou contigo?

- Han? Como te atreves! – Exaltou-se, preparando-se para o esbofetear,

mas ele agarrou-a de novo, e ela sentiu o sangue borbulhar de frustração.

- Larga-me! – A voz tremeu-lhe, ameaçando gritar, e por um momento

olhou-o na expectativa, e não soube dizer de quê. Esperava que ele a

beijasse? Que a largasse, que se separassem uma vez mais irritados com o

outro? E fora tudo uma ilusão, a mão na perna, e o toque suave e quente

dos lábios dele nos seus, que duraram uma fracção de segundo?

Bruno fixou o olhar no seu por um momento, como que avaliando a reacção

dela, e depois puxou-a decididamente, apertou-a contra si e beijou-a. O

peito de Nívea ameaçava explodir ao sentir-se apertado contra o dele. Um

misto de sentimentos e agitação, desde o choque emocional que sentira ao

ter contacto com aquelas crianças e depois a tensão de voltar a ver Bruno,

assim como as suas reflexões, desejos e receios envolveram-se enquanto

as duas bocas se engoliam literalmente, como que sugando tudo o que

pudessem do outro. Foi um beijo bruto, esfomeado, que os juntou como

nada antes os teria juntado, e que os lançou completamente nos braços do

outro. Nívea sentiu-se cair, mas os braços dele apertavam-na firmemente,

não aliviando, porém, a sensação de vertigem.

Quando Nívea o largou, sentiu-se tão confusa, que imediatamente lhe

atribuiu as culpas, estendendo a mão decididamente, esbofeteou-o,

gritando que ele nunca mais faria aquilo de novo, cheia de convicção.

Quando entrou no carro, batendo a porta e abandonando Margarida, perdeu

qualquer certeza e levou as mãos à testa.


Durante o caminho para a casa do pai, Nívea limpou os lábios várias vezes,

inconformada com as mudanças que sentia dentro de si. Chorou, e chorou

compulsivamente como nunca chorara, como nunca vira ninguém chorar.

Sentiu-se ainda mais ridícula, talvez a sua irmã tivesse mais motivos para

chorar do que ela, que se sentia violada, assediada, cativada pelo maldito

veterinário.

Quando chegou a casa, decidira que não o queria ver mais. Não era o

homem que ela tinha idealizado, porque ela nunca tinha idealizado nenhum

homem. Aos quarenta, via-se solteira, a passear com as amigas pelo centro

comercial. É, era isso mesmo, tinha que chamar uma das suas amigas para

ir dar uma volta até qualquer sítio, um sítio onde, com certeza, não se fosse

cruzar com Bruno.

Estava deitada sobre a cama, o rosto sobre os braços, pensando no terrível

dia que tinha vivido. E, o pior, não era o facto de Bruno a ter beijado, mas

sim o facto de ela ter gostado, quando a mãe bateu à porta e a abriu de

seguida, deixando entrar Margarida.

Nívea olhou-a e uma ruga desenhou-se no seu cenho. Completamente

encharcada, Margarida estava corada, sorridente, limpando os cabelos

rebeldes que se soltavam como tentáculos de um polvo nas suas costas e

pescoço.

- Então Nívea? Vieste-te embora? – Não o dizia com ressentimento, mas

com uma alegria espontânea que há muito que Nívea não via nela.

- Eu bem reparei, mas como o Bruno teve aqui para te buscar, e seguiu

para lá, pensei que tivesses bem acompanhada. – Sorriu a mãe,

estendendo-lhe uma toalha seca.


- E estava. – Concordou Margarida. – Agora sai mamã, por favor, quero-me

arranjar.

Isabel sorriu e saiu, deixando Nívea de mau humor, sentindo ciúmes da

irmã e raiva de Bruno. Ter-se-ia insinuado para a sua irmã?

- Porque é que não te vais vestir no teu quarto? – Inquiriu Nívea, voltando-

lhe o rosto e aconchegando-se nas almofadas.

A respiração de Margarida, ao tirar o casaco fino de lã, única peça seca da

sua roupa, era ofegante.

- Porque queria falar contigo, como nunca falámos.

Nívea sentiu uma contracção no estômago, mas a irmã, explodindo de

excitação contida na voz, não pareceu notar a sua inquietação.

Imaginou algo terrível, do género: Bruno pedira Margarida em casamento.

Mas não, o que se seguiu foi algo parecido.

- O que foi? – Perguntou, evitando olhá-la.

- Estou apaixonada, Nívea. – Disse Margarida, sem fôlego, sorrindo

abertamente. Um sorriso que Nívea nunca vira, apenas agora, e esta fixou a

irmã como se pretende-se ver marcas de Bruno nela.

- Estás? – Arriscou Nívea, sentindo o seu mundo desmoronar. Não, não

queria Bruno, mas queria ainda menos que a sua irmã ficasse com ele. Não

conseguia imaginá-lo a toda a hora lá por casa…Porém, ao imaginar a

situação, sentia que tinha mais raiva a Bruno que a Margarida. Por outro

lado, Margarida era de novo a protagonista e Nívea a má da fita.

- Muito. E ele… – Margarida continuou, ofegante, excitadíssima,

entrecortando as palavras na ânsia de prolongar a revelação. Nívea nunca

vira a irmã tão feliz, e voltando-lhe o rosto, sentiu lágrimas nos olhos de

novo. – Ele beijou-me. Nívea não imaginas…foi tão romântico! E depois


fomos tomar um banho de rio, nós e o irmão dele, tudo decentemente, foi

tão divertido, ele levou-me ao colo para dentro de água…foi maravilhoso.

Nívea esforçou-se por não falar com voz quebrada.

- O irmão dele?

- O Bruno… – Murmurou Margarida, deixando Nívea na expectativa.

- Sim. – Que era Bruno o homem dos sonhos de Margarida já ela sabia.

- E o Samuel. – Concluiu, de forma lírica.

- Mas…já contaste aos pais?

- Não, não quero que saibam já.

Nívea fechou os olhos e comprimiu-os contra a almofada. Ouvia a roupa de

Margarida cair no chão, ensopada, enquanto a sua doce irmã mudava de

roupa. Queria avisá-la, mas não conseguia. Sentir-se-ia mesquinha, e o que

Bruno pensaria, quando soubesse que Nívea contara aos sete ventos que

ele a beijara, e depois seduzira a sua irmã?

Nívea invejava ainda a sorte da irmã. Nunca vivera um autêntico romance.

Embora vivessem muito bem, a sua fonte de rendimentos, a quinta, era

muito afastada de todo o resto, por isso mesmo, conhecera as amigas na

escola, e os rapazes da vila eram todos muito emproados, e nunca se

interessara realmente por nenhum. Às vezes aparecia algum rapaz de fora,

mas partia antes que ela tivesse tempo de o conhecer bem. Bruno, como o

pai explicara uma daquelas noites, nascera ali e vivera por ali grande parte

da sua infância, mas desaparecera por uns tempos, para estudar na capital.

Agora, que estava de volta, tivera sorte em encontrar um emprego ali.

- Ajudas-me com a saia?

- Claro.
Nívea desceu para o jantar sem dizer uma palavra. A mãe estava alegre, ao

ver a felicidade súbita de Margarida, mas não lhe perguntou nada,

apercebendo-se de que ela não queria contar ainda. Já José, barafustava de

olho no jornal que trouxera da aldeia, acerca do aumento do preço do gado.

No final do jantar, quando Nívea se levantou para sair, o pai mandou-a

sentar amigavelmente, e ela aceitou, questionando-se de que se trataria.

- Nívea…tens-te portado bem. Hoje acompanhaste a tua irmã até ao centro

social, fiquei muito satisfeito contigo. Decidi dar-te um presente. – Sorriu,

consciente do quanto Nívea iria adorar a ideia.

- O quê pai? – Ela voltava a sentir-se animada por um momento.

- Adoras a nossa casa de praia, não é?

- Sim, mas é muito a Norte e nesta altura faz lá muito frio.

- Bem…como não tens mais nada para fazer, sugiro-te que cuides dos

negócios da família por lá. – José sentia que estava a dar um voto de

confiança à irresponsável Nívea. – Está lá um grande tratador de cavalos, o

Jack Parrot. Quero que leves dois dos nossos cavalos selvagens, e que

fiques por lá até ele os domar.

- Que diz pai? Não gosto de cavalos… – Murmurou Nívea.

- Gostas sim, amolece esse coração. A Margarida caiu, mas isso não

significa que também vás cair.

Nívea, Isabel e José dirigiram o olhar para Margarida, a fim de registarem a

sua reacção, e deram com ela risonha, acenando afirmativamente.

Nívea baixou o rosto. Sim, precisava de umas férias longe dali, longe da

doçura da irmã, da pressão que Bruno exercia sobre si, das saudades de ser

mimada, gostar de ser mimada, e vangloriar-se de conseguir tudo o que

queria, através do mimo.


- Sim pai, eu aceito.

Preparava-se para subir as escadas para o quarto, conformada e animada

pelas férias que lhe haviam sido propostas, e pensando o que levaria para

vestir, quando o pai a chamou de novo, ainda sorridente.

Para sua surpresa, Isabel e Margarida também sorriam abertamente:

- Não te preocupes com os negócios, ficarás pouco mais de uma semana, e

o Bruno fará tudo por ti…mas embora confie nele, achei melhor ter alguém

da família por lá, afinal, são assuntos do nosso interesse.

Nívea olhou para trás e ergueu as sobrancelhas.

Fantástico como o pai a embarcava para uma casa no Norte afastada de

tudo e de todos com um desconhecido…estaria assim tão fora de questão

uma relação amorosa entre os dois?

Talvez Margarida tivesse contado tudo.

Melhor assim.
A casa de praia

Nívea entrou na camioneta que o pai lhe dissera para utilizar na viagem,

após fechar o compartimento dos cavalos, que seria carregado pela

camioneta até à casa de praia, que ficava a cem quilómetros dali, para

Norte.

Fechou o rosto do sorriso de despedida para com a família, e sentiu-se de

novo culpada. Culpada por não avisar Margarida, por a ver abraçar Bruno

confiante, sendo que este também a havia tentado seduzir. Culpada por

aceitar passar uma semana com o maldito veterinário, de quem apenas se

queria ver livre, culpada por não ter argumentos suficientes para dizer que

não.

E a irmã, mal sabia ela que a sua própria irmã a traíra com aquele

desgraçado.
Acenaram à família de Nívea, a Ana e Samuel, os irmãos de Bruno, ambos

rodeando Margarida e sorrindo, e a camioneta desapareceu na estrada

numa nuvem de poeira.

Bruno guiava em silêncio, nem ele parecia particularmente contente com a

viagem. Nívea sentia-se de novo envergonhada, cerrava os punhos e

lembrava-se constantemente que não era ela quem tinha que ter vergonha,

mas sim ele.

A meio da viagem, a vegetação começou a ficar mais verde, o céu mais

carregado. Os cavalos batiam os cascos no compartimento lá atrás, e Bruno

desviou para uma pequena aldeia.

Saiu do carro e bateu a porta. Nívea imitou-o e encostou-se à chapa quente

da velha camioneta azul, observando Bruno encher um balde de água na

bica da aldeia e afagar a cabeça da égua que transportavam, enquanto o

animal ia bebendo.

- Enche esse balde, dá de beber ao Atlas. – Pediu Bruno, sério, sem sequer

se dar ao trabalho de olhar Nívea.

Esta descruzou os braços e decidiu mostrar que não era nenhuma

incompetente.

Encheu um balde de água e transportou-o, com dificuldade, até Atlas, um

fantástico mustang negro, bastante selvagem, que não admitia ser afagado,

como a égua Isis admitia, apesar de serem ambos impossíveis de montar.

O cavalo recuou, agitou a crina e bateu com as patas no chão.

- É só pousares o balde, ele é casmurro, mas vai beber.

Nívea fingiu que não o ouvia, mas pousou o balde na areia negra e húmida

do caminho de terra batida, salpicada pela água da bica, e olhou em volta.


As pequenas casas, escuras, estendiam-se numa espécie de avenida em

ponto pequeno, e lá ao fundo, num largo, três idosos conversavam de pé,

rodeados por dois cães que perseguiam um gato negro, na brincadeira.

Bruno encostou-se à camioneta, olhou-a durante algum tempo, e suspirou.

- E tu? Não tens sede? Não te apetece comer algo?

Nívea olhou-o durante um momento. Mal conseguia acreditar que estivera

nos braços dele, que o beijara. Só de se lembrar, sentiu uma volta no

estômago, um tremor nos lábios, e confessou estar com fome.

Entraram num estabelecimento velho, com cortinas escuras e pesadas,

cheirando a pó. Lá dentro, um idoso oscilava entre o lanche e o sono, numa

cadeira de baloiço, arreganhando as gengivas cada vez que tentava morder

uma enorme sandes de queijo.

- Boa tarde, está alguém a atender? – Perguntou Bruno, enfiando as mãos

nos bolsos de trás das calças e avançando à frente de Nívea até ao velho

balcão. Atrás do balcão, alem das prateleiras e armários, havia uma porta

para uma espécie de cozinha. À esquerda, na parede adjacente, havia um

quadro escrito a giz, meio apagado, da ementa.

- Cachorro quente? Aqui? – Murmurou Nívea, sentindo-se alegre pela

descoberta. Bruno não lhe negou um olhar simpático.

- Não é muito habitual. Ouviu? Está alguém a atender?

Nesse momento, a porta da cozinha abriu-se, e uma mulher enorme, gorda,

completamente redonda, forçou a ombreira da porta do fundo, de onde se

via um velho fogão, e olhou os recém-chegados.

- Boa tarde. Aviso já que a esta hora só se arranja um cachorro quente frio

com as salsichas de sexta-feira, mas posso fazer o meu molho especial. Não

vou ligar o fogão, que me dá tanto trabalho, para dois clientes.


Nívea e Bruno entreolharam-se, e, para surpresa dela, o humor continuava

a ser o seu estado de espírito. Sexta-feira? Era um esplêndido Domingo.

- Sirva-nos, então. – Bruno prontificou-se a arriscar o petisco.

Entraram na carrinha com os embrulhos dos cachorros quentes, e olharam

um para o outro antes de os abrirem. Nívea sentia as mãos húmidas da

gordura do interior do pacote.

Bruno foi o primeiro, e devia estar mesmo cheio de fome, porque

abocanhou uma boa parte da refeição.

Nívea olhou o molho amarelado e gorduroso que saía do pão e escorria pela

salsicha enegrecida, rija e fria, mas também mordiscou o pão.

Bruno emitia sons de prazer, e abanava a cabeça.

- Delicioso! – Murmurou, de boca cheia, preparando-se para outra dentada.

– Como serão quentes?!

Nívea sorriu e deu uma dentada maior no seu. Realmente, o molho era

delicioso. Uma mistura de cebola, manteiga, tomate, e algo mais que ela

não conseguia identificar.

- Bom não é? – Perguntou Bruno, limpando a boca a um guardanapo,

quando acabou de comer o seu. Estendeu a mão para a ignição, e ligava de

novo o carro quando Nívea foi capaz de saborear o pão. Também ela

engoliu uma quantidade maior, acenando e confirmando que o cachorro era

delicioso.

- Nunca tinha comido nada tão rançoso. – Riu ela, abertamente, quando

chupava os dedos após devorar a última migalha de pão com molho.

- Rançoso? Ou saboroso?! Admite, estava divino. – Ele estava realmente

animado. As suas gargalhadas eram deliciosas e ela pensou que poderiam


ter-se dado muito bem, se não tivessem começado tão mal, graças às

pretensões dela.

Nívea sorriu levemente, concordando com ele. Voltou o rosto para a janela,

e pensou em tudo o que gostaria de lhe dizer, mas algo a impedia.

Ao terceiro passo, Nívea espirrou. Haviam chegado à casa de praia, que

nunca lhe parecera tão decadente. As pareces parecia encaracoladas,

moldadas pela humidade. O mar estava revoltoso, as ondas eram grandes e

espumavam pequenas conchas e moluscos para a areia. A casa estava

cheia de pó, impregnada dum cheiro enjoativo a sal e maresia.

- O mar é bonito, não é? – Perguntou Bruno, de olhar perdido no mar

acinzentado, de fim de tarde sem um pôr-do-sol alaranjado. – Mas o céu é

mais.

- É. Ajuda-me com isto, se fazes favor. – Pediu Nívea, vendo-se, pela

primeira vez, sozinha com sacos de compras numa casa de pernas para o

ar, sem um único empregado por perto. Sozinha com Bruno.

Na cozinha, que dava para o mar, com móveis velhos, cujo papel com que

haviam sido forrados começava já a soltar-se, enrolando nas pontas, Nívea

teve consciência de que estava sozinha numa praia, com um homem que

podia denominar de perigoso, porque ela abrira uma porta no seu coração

que o permitia. De novo a agitação, a sensação de vertigem. Beijara-o.

Passou por Bruno, que vinha no corredor coberto de sombras para a ajudar,

e informou que ia à casa de banho. Fechou a porta e levou a mão ao peito.

Se, por um lado, queria afirmar que ele estava ali, e explicar-lhe tudo o que

sentia, e que nem sabia bem o que era, esperava que ele soubesse, por

outro, queria fugir, sentir a distância, e tinha uma revelação fora de

questão.
- Amanhã levamos os cavalos até ao tratador, ele tem instalações próprias,

para que possa trabalhar com eles sempre que possível, vai ser rápido. –

Bruno disse-o como se pretende-se lembrar a Nívea que também para si, a

situação era constrangedora.

Estavam ambos sentados à mesa, à luz das velas, o que era ridículo, e só

podia dever-se a uma tempestade, pois José tinha as contas em dia, e

Nívea comia o prato de esparguete que o cozinheiro Bruno confeccionara.

Não podia negar que estava muito bom, mas também não tinham trazido

todos os ingredientes necessários.

Após distribuírem os produtos pelos armários, e levarem as malas para os

respectivos quartos, separados, obviamente, Bruno fora verificar os

animais, enquanto Nívea se dava conta de que não tinham luz e a noite na

praia erra terrivelmente escura. O vento batia nas dunas, e a areia parecia

extremamente pálida, assombrada, uma miragem.

Depois, perante a necessidade de jantarem, Bruno ergueu as mangas e

deitou mãos ao trabalho, enquanto ela o observava, sentada, sentindo uma

sensação estranha. Uma espécie de premonição ou pressentimento. Uma

espécie de certeza.

Sentia uma calma enorme, parecia inconsciente. Quando, por breves

momentos, deixava de pairar no tecto da cozinha, e voltava a si, dava-se

conta da situação que proporcionara ao aceitar a oferta do pai, e sentia o

tal arrepio. De uma das vezes que o sentiu, Bruno mexia a massa e ela

ergueu-se para fechar a janela, logo enfrente ao lava-loiça velho, mas ele

antecipou-se.

- Deve estar perra – disse – deixa estar que eu fecho.


Ela afastou-se, e num instante ele fechou a janela. Depois, ela deu-se conta

que estava no caminho dele, e desviou-se, sendo que ele efectuou o mesmo

movimento, para se aproximar de novo do fogão.

Ela voltou a desviar-se para o deixar passar, mas era realmente uma

situação embaraçosa, e ele também se mexeu para a direita, ficando

bloqueados de novo. Pararam ambos e riram francamente. Nívea sentia-se

cansada.

Bruno surpreendeu-a. Segurou o seu rosto delicadamente, as mangas

dobradas no cotovelo, e sorriu-lhe pacientemente.

- Desculpa Nívea, prometo que não volta a acontecer.

E ela soube que ele se referia ao beijo.

Depois, ele beijou-lhe o cabelo, abraçando-a durante um momento, e ela

sentiu-se cair em espiral. Ele estava a ser paternal? Pois claro, ela era sua

cunhada. Sim…ele era seu cunhado. Sorriu afectadamente; por um

momento, preferia que ele não fosse, que ele não prometesse nada. Que

não pedisse desculpas pelo momento mais emocionante da sua vida.

Nívea desceu as mangas que subira para lavar a loiça, lado a lado com

Bruno. De vez em quando os dedos dos dois tinham-se tocado, e era

ridículo, mas ela sentia que dar por isso era ser romântica como Margarida

era nas tardes que passava a ler romances para depois sorrir e dizer que

eles haviam tocado na mão do outro. E romântica, ela nunca fora.

Os homens mentem sempre.

Encostou-se ao lava-loiça e cruzou de novo os braços. Era agora totalmente

noite, não havia luz, e havia um ruído de vento a murmurar junto às

paredes forradas de madeira da casa.

Bruno secava-se com um pano velho que achara numa gaveta.


Suspirou e afirmou que estava cansado.

Nívea concordou, também ela se sentia cansada.

Deu dois passos em direcção ao corredor, mas apercebeu-se da escuridão

de que este estava tomado. Teve medo, mas não podia dizê-lo a Bruno, ele

chamá-la-ia de criança de novo. Talvez se oferecesse para a levar ao quarto

e contar-lhe uma história de veterinários até ela adormecer.

Nívea sentiu-se nervosa. Entrando no corredor, apalpou as paredes e

tropeçou na sua mala. Esquecera-se que a deixara ali. Bruno, logo atrás de

si, segurou-a. Ela sentiu de novo o formigueiro, mas era óbvio que ele não.

Bruno pediu-lhe que esperasse um momento, segurando-a por um braço

enquanto remexia nos bolsos à procura de um isqueiro.

Quando o achou, acendeu um castiçal de latão que Isabel deixara ali,

consciente dos problemas de abastecimento de energia eléctrica da casa.

Ao passarem pela sala, com a pequena vela a encher o corredor de

sombras, ao ser embalada pelo vento, Nívea viu, através das enormes

janelas da sala, através do alpendre, da praia, do mar, do céu, uma

escuridão imensa que a fazia tremer de nervosismo.

Quando era pequena e ia ali, Margarida dormia sempre com ela.

Nívea entrou no quarto e ficou com uma das velas do castiçal que Bruno

deixara para si, ao desejar-lhe boa noite num tom neutro.

Sentou-se na cama e ficou em silêncio por um momento.

Pensava em Bruno, nos pais, na irmã, e nos tempos felizes que haviam

vivido ali. Desde o acidente de Margarida, não tinham voltado a por ali os

pés. Seria demasiado triste. Já lá iam os tempos em que, pela mão de

Lisete, descia o pequeno relevo que se desenhava na areia húmida até ao


mar, e depois, pontapeava-o, lançava-o ao ar, ria, brincavam pulava, e

esses eram sempre momentos de extrema alegria.

Margarida, sentada na areia, corria com o velho cão da casa, o São

Bernardo, Napoleão.

Sentiu de novo as lágrimas nos olhos, mas outra coisa despertou a sua

atenção. A vela apagara-se.

Uma ventania momentânea batia nas janelas da casa e entrara pelas gretas

da madeira, percorrendo-lhe a espinha, fazendo oscilar a chama da vela, e

por fim deixando-a às escuras.

Levantou-se da cama, por instinto. Ouvia-se o ruído do mar a desenrolar na

praia. Um murmúrio parecido ao de fantasmas a falar entre si.

Recordou-se de que não trouxera a mala do corredor.

Não, não ia chamar Bruno, o corredor não era assim tão grande.

Abriu a porta e viu-se de novo na escuridão. Ouvia agora os relinchos dos

cavalos no compartimento no qual tinham viajado, atrelados à camioneta.

Batiam os cascos e relinchavam sem cessar. Também eles deviam estar

assustados.

Nívea deu um passo, dois passos na escuridão.

Tacteou a parede. Seguiu assim pelo corredor, até, sem querer, derrubar o

castiçal. Não se baixou para o apanhar, poderia bater na esquina do móvel

onde ele se encontrava. Mais dois, três passos, e voltou a tropeçar na mala.

Baixou-se para a agarrar, e ia a inverter a marcha, quando ouviu passos na

casa.

- Bruno…? – Murmurou.

Sentiu o medo e a adrenalina subirem. Arrastou a mala ao longo do

corredor.
Os passos aproximavam-se.

- Bruno? – Disse mais alto, mais exaltada.

Outro passo.

Tropeçou na mala que arrastava à sua frente, deitou a mão ao móvel do

castiçal, e caiu sobre este, perdendo-se, flutuando no tecto da sua casa de

praia. Até que alguém a agarrou e a sacudiu violentamente.

- Bruno?! – Gritou.

- Nívea!? – Bruno abanava-a com pouca delicadeza, na sua cama.

Sentou-se de um pulo e sentiu as gotas de suor na testa.

O que se tinha passado, era que ela abrira a porta e a mala estava lá,

Bruno provavelmente a tinha posto ali. Porém, aquele pesadelo assustara-a

realmente. Um pesadelo vivido na escuridão da sua casa, e acordou, vendo-

se de novo na escuridão, sem sequer distinguir a silhueta de Bruno.

Bruno apercebeu-se que ela acordara e largou-a.

- Sentes-te bem? Porque me chamaste?

Estava preocupado, e não fosse ele pensar que ela o chamara porque o

adorava perdidamente, ela contou-lhe o pesadelo, mas no fim arrependeu-

se, recostando-se na almofada e esperando que ele a chama-se de criança,

de novo.

- Já passou, então. Boa noite… – Disse ele, surpreendendo-a. Levantou-se

da cama, e ela sentiu-a mais leve. Beijou-a na testa, demorando-se. Ela

sentiu-se terrivelmente mal. Apetecia-lhe dizer-lhe que tinha dezanove

anos. Nem o pai lhe dava beijos na testa. Cunhado. Era seu cunhado.

Afastou-se até à porta, e daí disse:

- Prepara-te que o dia amanhã não vai estar nada agradável.


Nívea não soube dizer exactamente como aconteceu, mas o que era certo, é

que a primeira lembrança que tinha da manhã seguinte, era ela e Bruno,

correndo lado a lado, com as mãos na cabeça, segurando as chapas de

segurança das janelas. Uma terrível tempestade abatera-se sobre a

pequena praia, deserta, e Bruno ponderou a hipótese de irem para uma

pensão na vila.

Depois de Bruno encaixar as placas de segurança nos encaixes das janelas,

os dois entraram e fecharam a porta com alguma dificuldade.

Bruno ajeitou o cabelo e o casaco.

- Não pensei que o tempo fosse tão mau por aqui.

- Confesso que não me lembrava de uma tempestade assim.

Nívea deixou-se cair no velho sofá e ouviu as molas protestarem.

- O melhor é levarmos os cavalos à cidade, não estão nada bem ali.

- Como é que até neste momento só pensas neles? – Perguntou Nívea,

aborrecida.

- Porque foi por eles que vim.

O troco foi justo e Nívea viu-se na obrigação de o acompanhar até à vila.

Bruno bateu insistentemente à porta do veterinário até que ele abriu.

Ali era um pequeno consultório, mas abriam-se quilómetros de terreno que

se estendiam até aos pinhais ali perto. Os animais recolhiam-se nos

estábulos, quando estava mau tempo, ou passeavam pela enorme

propriedade, quando Jack Parrot achava conveniente.

O assistente de Jack abriu a porta aos dois jovens que chegavam

encharcados e chamou outra assistente, que correu a chamar Jack, que

estava na estrebaria.
Pouco depois, Jack, um quarentão que tinha vindo da Irlanda há sete anos

para realizar o seu grande sonho de ser tratador de cavalos ali, apareceu à

porta, preocupado.

- Os animais? – Nívea achou extremamente simpática a sua preocupação

com os convidados. Levantou-se, pousou a chávena de chá que lhe tinham

servido, e estendeu-lhe a mão.

- Nívea Melo. Prazer. Este é o Bruno Mendonça, o nosso tratador.

Jack apertou rapidamente a mão aos dois. Nívea sentiu que ele repelia o

toque deles. O cabelo, levemente arruivado, estava desalinhado, o joelho

sujo de lama.

- Posso ver os animais agora?

Nívea e Bruno deixaram os animais aos encargos daquele estranho ser,

que, não obstante ser rude e pouco educado, parecia ter-se erguido no ar,

tornando-se um pai babado, ao ver Isis e Atlas, o fantástico mustang.

Elogiou os cavalos, instalou-os imediatamente, e prometeu a Nívea tratar

deles em duas semanas.

Duas semanas…Nívea olhou de relance para Bruno. Ele enfiou as mãos nos

bolsos e assentiu. Avançaram com o pagamento pelos serviços do irlandês e

partiram de novo, desta vez com Nívea ao volante, por insistência da

própria.

- Que achaste do homem? – Perguntou ela, pouco depois, o olhar perdendo-

se na estrada. Lá em baixo via-se a praia, acinzentada, coberta de

nevoeiro, uma pequena aldeia, casas de praia, e a imensidão do horizonte.

Desciam uma enorme colina com o carro aos ziguezagues e Nívea

melancólica, esquivando-se das poças que a chuva provocara.

- Achei-o antipático, mas competente.


Nívea sorriu francamente.

- Acho que ele já não sabe lidar com pessoas.

Bruno deu uma risada. Nívea ficou a sorrir também, aquela risada tinha-lhe

soado bem.

De repente, voltou a não saber bem como se sentia. Bruno ali ao seu lado,

um cenário tão diferente do diário, uma mistura de sentimentos dentro de

si, e outra coisa mais especial.

- Sinto falta da minha irmã. – Confessou, sinceramente. Quando deu por si,

já o tinha dito e Bruno olhava-a com serenidade.

- Acho que já chegou a altura de perceberes o seu valor. – Disse,

calmamente.

Nívea mordeu os lábios com modéstia e acenou afirmativamente.

Só lamentava que Bruno se tivesse apercebido da preciosidade que era a

sua irmã ainda antes que ela.

Desceram do carro, que deixaram nas traseiras da casa, e avançaram,

tapando o rosto das investidas do vento que arrastava areia.

Fecharam a porta com dificuldade e puderam abrir finalmente os olhos.

Sorriram de novo.

- Sinto-me no meio de uma tempestade tropical. Esta é a minha ilha

deserta. – Brincou, aproximando-se da janela e apontando a areia que

formava círculos junto ao solo. O mar estava agitado.

Bruno manteve-se em silêncio.

Com o ruído do mar como fundo, Nívea só conseguia ouvir a sua respiração.

Estava calmo, tão calmo, que o peito dela se agitou. Estava de costas para

ele, mas sabia que ele estava ali.

Haviam algumas coisas que teria gostado de lhe dizer.


Quando ia a quebrar o silêncio, ele interrompeu-a.

- Vou tratar do almoço, fica por aí.

Ela não discutiu. Deve ter sorrido de forma triste, porque até Bruno sentiu a

nuvem escura que se formara sobre os dois, de repente.

Nívea sentou-se no sofá assim que ele entrou na cozinha.

Fixou o olhar no horizonte e pensou que tudo o que queria encontrar lá, era

um sorriso.

A ideia fê-la rir-se de si própria.

Não sejas tola Nívea. Um sorriso no horizonte.

Como seria esse sorriso? O sorriso de Deus? Do futuro? De um homem?

Quem? Bruno? O sorriso da esperança? Mas um sorriso é um sinal bom não

era? Não pode ser nenhuma desgraça…

Talvez fosse só o sorriso matreiro com que a Lua nos olha à noite.

Recostou-se no sofá de palha, coberto com mantas aconchegantes e nem

deu pelo sono. Começou a pestanejar mais lentamente, ouvindo o ruído das

panelas e da água na cozinha. Era impressão sua, ou Bruno cantarolava

qualquer coisa, lá dentro?

Embalada pela voz longínqua de Bruno, e pela maresia, fechou os olhos e

adormeceu, com um leve sorriso esboçado no rosto, voltada para a janela.

O seu ultimo pensamento, foi o quanto gostaria de poder estar ali;

exactamente onde estava, e ter Bruno lá dentro, também exactamente

como ele estava. Mas o que mudava, era o que estava dentro deles. Um

raciocínio complicado. Nívea queria tudo exactamente como estava, com a

diferença que na sua mente sabia que Bruno a amava, e ela também

admitia que o amava.

Disparate.
Pensou, e o seu sorriso, enquanto sonhava, abriu-se para o horizonte.

- Nívea?

Era a voz de Bruno, que lhe tocava no ombro para a acordar.

- Hum? – Pareceu-lhe que o ambiente estava muito mais escuro. Teria

anoitecido? – Já é tarde?

- Já caiu a noite Nívea, continuamos sem luz. Não te chamei para o almoço,

desculpa, estavas a dormir bem.

Ele sentou-se na ponta do sofá. Perguntou-se se ele a teria observado a

dormir..

- Tens fome?

Nívea endireitava-se ao lado dele e sentiu uma manta de lã quente

escorregar para o chão. Bruno tapara-a. Teria ficado ali, a vê-la dormir?

Esse pensamento fê-la sentir-se bem.

- Não. Que fizeste durante a tarde?

- Pensei em fazer o mesmo que tu, mas não estava com sono. Li.

- Leste? O quê?

- Um livro sobre cavalos.

- Como é que não adivinhei? – Ela sorriu, recostando-se no assento. - Foi

aborrecido?

- O quê? – Falavam ambos baixo, como se não quisessem acordar uma

criança que dormia.

- Estares sem ninguém para falar a tarde inteira.

- Não, gosto de pensar.

- Acerca do quê? Da vida?

- Acerca de que mais poderia pensar? – Ele suspirou. Parecia cansado.


- Cavalos? – Ambos sorriram por um momento. O rosto dele estava virado

para o interior da casa, por isso mesmo, ela não o via, estava escondido na

sombra.

Nívea bocejou.

- Gostava de dar um passeio à beira mar. – Confessou.

Preguiçosamente, e segundos depois, após o eco da afirmação de Nívea se

dissipar no ar, Bruno ajeitou as calças nas coxas e levantou-se, também ele

bocejando.

- Anda.

- Onde?

- Dar o passeio à beira mar.

- Contigo? – Não o perguntou por mal, pareceu-lhe apenas…”bom de mais”.

- Se preferires ir sozinha…mas acho que podemos deixar a máscara de

inimigos para usarmos quando estamos perto da família, não?

Nívea riu baixo.

- Eu trouxe a minha. – Brincou. – Mas tens razão, hoje também não me

apetece usá-la. Diz-me, tem chovido? – Calçava as botas, que

miraculosamente, também lhe haviam saído dos pés. O cunhado paternal.

- Não, parou logo depois de almoço. – Vou buscar uma manta, até já.

Nívea enrolou uma no seu próprio corpo e aproximou-se da janela. Tinha

escurecido bastante, mas havia ainda um último raio de luz que tornava a

atmosfera azulada. O dia parecia perfeito para um passeio…romântico à

beira mar.

Passou as duas mãos pelo rosto. Sentiu-se relaxar um pouco. Porquê

romântico e não…amigo? Não, não havia nada entre ela e Bruno, já estava

na hora de aceitar isso, e logo agora que havia admitido que estava
apaixonada pelo homem que dizia que amava a sua irmã. Não valia nada,

não podia valer nada. E ela agora tinha a certeza, entre ver-se feliz, ou ver

a sua irmã, preferia mil vezes ver Margarida feliz. Era tão simples e

modesta, que seria impossível para Nívea ser feliz sabendo que a irmã não

o era, principalmente se a irmã não o fosse por culpa sua.

Caminharam em silêncio, durante um momento, à beira mar.

Nívea sentia de novo uma nuvem em cima de si e de Bruno, será que ele

também se apercebia? O que ela sentia, era de tal forma intenso e

devastador, que ela receou, ao abordar a questão em pensamento, não

deixar de gostar dele tão depressa, ou, pior, nunca deixar, ou, pior ainda,

nunca voltar a gostar de ninguém, pelo que teria que ser feliz pela irmã,

vendo-a casar, ter filhos, partilhar tudo com o seu marido perfeito que

cozinhava, adorava animais, e com certeza seria um óptimo pai.

Sentaram-se na areia perto do mar.

Bruno sentou-se encostado a si, e ela cedeu à sua máscara, e encostou a

cabeça no ombro dele.

- Teve um dia estranho, não teve? – Perguntou, baixo, fechando os olhos e

sugando o aroma do corpo de Bruno.

- Acho que sim. Tens frio?

Nívea sentia apenas as costas serem tocadas pelo vento.

- Um pouco. – Confessou.

Bruno passou um braço pelos seus ombros, e ela arriscou olhar para cima,

para ele.

Ele sorriu. Ela sentiu-se destroçada. O olhar dele parecia…parecia protegê-

la, como se fosse uma filha, ou talvez a sua cunhada, o que ela se via cada

vez mais próxima de se tornar.


- Nívea… – Ele parecia querer dizer algo, mas ela tapou-lhe os lábios e

pediu-lhe que não dissesse nada.

- Por favor…não vale a pena. – Não queria ouvir falar de Margarida agora,

por muito que gostasse da irmã.

Baixou de novo o rosto, e sentiu que não estava mais confortável nos

braços dele. Pareceu-lhe estar a tentar usurpar o cunhado à irmã. Ajeitou-

se na areia. Afastou-se dele, sentada. E abriu um sorriso enregelado.

- Podemos entrar agora? Estou mesmo com frio.

Era mentira, mas a sombra de Margarida sobre os dois havia estragado

tudo. Nívea, porém, não se sentia no direito de culpar a irmã de coisa

alguma. A irmã fora simpática, meiga, enquanto ela perdera tempo a atirar

pedras. A irmã merecia o bolo. E o bolo preferia a irmã.

Bruno, porém, puxou-a por um braço até perto de si de novo, e abraçou-a

contra o seu peito. Tocou os seus cabelos com os lábios e respirou o seu

perfume. Depois, voltou o rosto dela para si, e desta vez sendo ele a

impedi-la de falar, beijou-a.

Desta segunda vez, foi um beijo calmo, saboreado.

Nívea fechou os braços sobre o pescoço de Bruno e comprimiu-se contra

ele. Queria poder repetir aquele momento sempre que quisesse, guardá-lo

na memória e aceder a ele sempre que precisasse de se sentir

verdadeiramente bem. Era paz o que sentia ao tocar os lábios dele? Ao

senti-los dançar com os seus? Quando o beijo terminava tudo parecia voltar

ao normal.

Mas o sentimento de culpa era ainda maior que o regozijo. Sentia-se mal.

Empurrou-o com delicadeza.


- Desculpa. Disseste que nunca mais aconteceria… – Murmurou ela, contra

a sua própria vontade.

- Nívea…ninguém tem que saber. – Assegurou Bruno. E nem nesse

momento, em que ele dizia claramente que a sua irmã poderia ficar

afastada de tudo, ela conseguiu pensar mal dele.

- Não pode ser…não merece…ela não merece. – Murmurou Nívea,

começando a chorar, e odiando-se por ceder às emoções.

Levantou-se rapidamente e correu para casa, ignorando os chamamentos

de Bruno.

Atirou-se para a cama após fechar a porta do quarto. Fixou o tecto e sentiu

as lágrimas escorrerem pela face, dos lados, deixando-a molhada e

desesperada.

Não conseguiria trair a irmã, mas os seus sentimentos exigiam uma

resposta, e Bruno estava disposto a dar-lha, nem que fosse durante duas

semanas.

Nívea voltou-se para a janela, virando costas à porta e limpou as lágrimas.

Fechou os olhos na escuridão.

Se Margarida tivesse ali, tê-la-ia abraçado.

Espero que sejas feliz.

Teria dito. E a sua irmãzinha ia sorrir. Como sempre.

- Nívea…? Vou ver dos cavalos…achei que podias querer ir…sabes, podias

tentar montar outro mais dócil que ele lá tenha…

Nívea acordou. Sentiu as pálpebras inchadas e pestanejou com dificuldade.

Abriu a janela e deu de caras com um dia esplêndido. Céu azul, andorinhas

esvoaçando, o mar calmo. Não parecia que no dia anterior quase haviam

voado agarrados às chapas das janelas.


- Nívea, ouviste?

Olhou para a porta, Bruno batera três vezes e agora falava do outro lado,

com a voz clara. Já estava acordado há algum tempo.

- Nívea estás bem?

- Sim, podes entrar, já estou acordada.

Ele abriu a porta com delicadeza e olhou-a. Ela deu-lhe os bons dias e

sorriu.

- Sabes uma coisa que estás a aprender com a tua irmã? – Ele sorriu

modestamente. Nívea sentiu o coração bater velozmente. Noutra ocasião,

teria aproveitado a deixa para lhe dar uma resposta à altura.

- O quê?

- O sorriso. – Ele parecia pensar que ela se deleitaria com tal comentário,

mas ela só se sentiu pior.

Sim, a minha irmã têm um sorriso lindo. Só escusavas de o elogiar, ou de o

comparar ao meu.

Pensou, irritada.

- Vens comigo? Anda. Ensino-te a montar.

Por um momento, Nívea pensou voltar-se para a janela e ignorar o convite.

Fixaria o oceano, ficaria melancólica, e passaria o resto do dia enfiada em

casa.

Subitamente, apercebeu-se da fome que sentia. Não almoçara nem jantara

no dia anterior. Pensou também na queda da sua irmã. Tinha que saber

porque é que ela arriscara tudo. Tinha que também ela arriscar.

- Ok, eu vou, mas só depois de me empanturrar de panquecas e um bom

almoço.

Bruno prometeu que faria o melhor, só para ela.


- Não sei se consigo. – Murmurou Nívea, fixando um mustang jovem, de

aspecto arisco, negro.

- Já lhe disse que é o cavalo mais manso que tenho aqui. Tem muitos dias

de trabalho. Meses. – Assegurou Jack, com a sua expressão pouco

persuasiva. – Para mim bastam horas. – Era pouco modesto.

Já Bruno, esse sorria abertamente.

- Sobe Nívea, tenho a certeza que consegues.

Nívea fixou o céu e suspirou.

Bem, o dia está bonito, os passarinhos cantam…e, estranhamente, apetece-

me subir, e se cair…acho que não estou em dia de me aborrecer muito.

Era um pensamento estúpido, mas era uma vontade e um receio, e nesse

dia não estava para receios.

- Bruno… – Murmurou, estendo-lhe uma mão. Fixaram os olhos do outro

durante um instante, como se ele lhe transmitisse confiança, e ela meteu o

pé no estribo.

- Bem, eu vou andando, não tenho a tarde toda.

Jack afastou-se, carrancudo, em direcção ao campo onde os animais

pastavam. Aí, deteve-se a examinar a ferradura de um animal ainda jovem,

também selvagem.

Bruno posicionou-se atrás de Nívea e ajudou-a a erguer-se pela cintura até

que ela se sentou no cavalo e segurou, tremulamente, as rédeas.

- Bruno eu… – Balbuciou.

- Eu ensino-te…pega-lhe assim…

- Não. Não é isso. Eu sei montar. Estava com a Margarida, no dia que ela

caiu. Vi tudo, quase caí do meu cavalo a seguir, com o susto. Lembro-me

de estar lá em cima e a ver no chão, e o ajuntamento de pessoas perto


dela. – Contou, com amargura. Se Bruno realmente amava Margarida, a

expressão que demonstrou não foi suficiente para transparecer o seu amor.

Parecia apenas pena. – Só não quero cair Bruno, não me deixes cair. –

Pediu.

- Espera, tive uma ideia.

Nívea assustou-se quando sentiu a pressão do corpo de Bruno sobre o

cavalo, enquanto subia e o animal dava patadas no chão, de desconforto.

Depois, Sentiu o corpo de Bruno colado ao seu, atrás de si, e as duas mãos

na sua cintura.

- Mas Bruno, nós os dois…não é mais perigoso? – Embora sentisse que não

devia, mas gostasse do toque de Bruno na pele nua da sua cintura, Nívea

sentia-se de novo uma traidora, e pior, se o destino se queria vingar dela

devidamente poderia mandá-la ao chão, como mandara a pobre Margarida

sem que essa sequer merecesse.

- Eu não te deixo cair Nívea, não te preocupes.

Avançaram com o cavalo a passadas lentas enquanto saíam do estábulo.

Lá fora, Nívea teve a estranha sensação de que o animal iria partir em

corrida pela colina que se estendia até um vale, lá bem em baixo. Porém,

Bruno tomou as rédeas das suas mãos, e ela segurou-se ao tronco dele

como pôde, sentindo o animal iniciar o trote.

- Pára, assim magoa-me. – Pediu. Imediatamente, Bruno acalmou o animal

e voltaram a um passo mais lento.

Deram algumas voltas pelo recinto, e Nívea acabou por se habituar ao

andar do bicho, embora continuasse a sentir-se magoada nas pernas, exigia

bastante esforço físico manter-se naquela posição. Esta situação agravava-


se pela proximidade de Bruno, que não lhe permitia descontrair o corpo,

pois sentia-se em estado de alerta.

Quando, por fim, regressaram ao estábulo, o sol caía no horizonte e os dois

entravam de novo no estábulo e Bruno descia do cavalo com a sua

habilidade proveniente da prática.

Segurou-a pela cintura e pousou-a à sua frente, sorrindo-lhe abertamente.

Via-se que estava feliz.

- Fiquei muito contente por teres montado. Cavalos são a minha outra

grande paixão. – Ela baixou o rosto, timidamente. Que lhe queria ele dizer?

Falaria em Margarida de novo. Ele continuou, alegremente.

- Viste? Morreste?

- Não, a questão é se vou conseguir fechar as pernas tão depressa. –

Apesar de se sentir bastante desconfortável, sentiu-se bem disposta e

gracejou. Endireitou as calças e quando voltou a olhar Bruno, ele ainda a

olhava e sorria, o rosto iluminado pela luz difusa e dourada do por do sol.

Bonito como só ele era a seus olhos.

- O que foi?

Ele segurou o seu rosto nas mãos e beijou-a. Foi um movimento rápido,

mas carinhoso. Foi um beijo curto, um beijo daqueles que um casal que se

conhece há anos e que tem três filhos partilha dez vezes por dia. O beijo do

bom dia e da boa noite. Um beijo que perturbou Nívea. Mas, afinal, vindo de

Bruno, o que é que não a perturbava?

- Bruno não sei se está certo…

- Nívea tens 19 anos. – Cortou ele, e voltou a beijá-la, desta vez mais

demoradamente, apertando-a com alguma insistência.

Ela abraçou-o.
Saíram do estábulo lado a lado, com ela debaixo do seu braço. Jack

apareceu, e pela primeira vez desde que eles o conheciam, gracejou:

- O cavalo ficou bem depois da jornada? Sentiu-se um pouco a mais, não?

Nívea não pode pensar em mais nada, se não em como ela se sentira bem,

e continuava a sentir-se, e em como gostaria que isso fosse para sempre.

Em casa, Nívea aceitou aconchegar-se no peito de Bruno, quando este se

sentou no sofá. Ficaram em silêncio durante muito tempo, e apesar de se

sentir mal, por estar a trair a sua irmã, Nívea sabia que, no fundo, Bruno

estava a ser sincero com ela. Enquanto ela respirava o seu cheiro, ele

pegou-lhe na mão e aconchegou-a junto ao seu peito. Beijou-lhe o cabelo.

O silêncio, que devia doer-lhe na garganta, fazia-a sentir-se bem. Sem

palavras não teria que mentir, não teria que ouvir promessas que

simplesmente não podiam existir. O silêncio afinal era benéfico. Havia paz e

tranquilidade. E a paz e a tranquilidade fazem as pessoas felizes.

De repente, enquanto estavam naquele momento tão calmo e, ao mesmo

tempo, tão intenso, Bruno tocou-lhe no queixo e fê-la olhá-lo. Ela não pode

evitar sentir o seu coração pular. Ele aproximou-se do seu rosto,

demoradamente, e, finalmente, beijou-a. Uma vez mais, todo o corpo dela

se arrepiou.

Primeiro calmamente, saboreando os seus lábios, e depois os dois

abraçaram-se, cruzaram as pernas, envolveram-se como duas serpentes

que se enrolam noutra. Onde acabava um e começava o outro? Nos lábios

que se devoravam. Nívea, porém, sentindo-se cada vez mais mal, por

imensas perguntas que não conseguia responder, largou os lábios dele e

enterrou o rosto no seu peito, começando, subitamente, a chorar.

- Isto está errado.


Sentando-se no sofá, Bruno olhou-a indignado e também um pouco

maldisposto.

-O que foi agora?

- Não sejas tão exigente.

- Pensei que querias fazer amor comigo. – Disse de forma franca.

- Nunca to disse. – Pensando naquilo naquele momento, apercebeu-se que

estivera quase a acontecer. E que ela o desejara tanto quanto ele.

Depois de endireitar a camisola, ele pôr-se de pé, a uns passos dela, que

gesticulava enquanto voltava a falar.

- A minha irmã não merece isto.

- Isto o quê?

- Estás a tentar enganar-me? Nesse caso não vales nada! – Estava nervosa

e irritada, e conseguia apenas acusá-lo de todos os crimes possíveis.

- Enganar-te? Porquê?

- Não mintas nem finjas! Realmente, não vales nada! A minha irmã está

apaixonada por ti! Não me digas que não reparaste!

Bruno pareceu, realmente, estupefacto. Assistindo à reacção dele, Nívea

afastou-se em direcção ao corredor.

- Realmente, és um falso! – Gritou, e ele tentou alcançá-la, mas ela fugiu

pelo corredor. Ele seguiu-a.

- Que dizes? Não tenho nada com a tua irmã!

- Beijaste-a seu ordinário! E querias enganar-me também a mim! Não sei

como pude ir na tua conversa.

Limpando as lágrimas, Nívea fechou-se no quarto. Bruno bateu à porta

furiosamente.

- Abre já!
- Não, não abro, e se tentares pular pela janela juro pela Margarida que te

parto o candeeiro na testa!

- Nívea! Não tenho nada com a tua irmã, aliás eu pensava que ela…eu

nunca pensei que ela… – Ele parecia transtornado.

- Cala a boca e desaparece!

Nívea lançara-se na cama, a chorar. Nunca odiara tanto alguém. A frase de

alguém que dissera “Odiamos aqueles que amamos, pois todos os outros

nos são indiferentes”, surgiu na sua mente. Enterrou o rosto na almofada,

não queria que ele a visse ou ouvisse. Odiara tudo aquilo. Porém, a vida

não era tão fácil como tinha sido até ali.

Pensou:

«Vou pedir ao meu pai que o despeça», mas surpreendeu-se ao descobrir

que não teria coragem de fazer isso. Teria deixado os mimos de lado? Teria

crescido? Mas não seria realmente caso para o despedir?

Conseguiu, entre lágrimas e pensamentos confusos, fechar os olhos e

adormecer, cansada e confusa. Amava-o, ou não o amava? E o amor, o que

era isso? Levantou-se e fez a mala, decidida a ir-se embora assim que

pudesse, de preferência de madrugada, enquanto ele estivesse a dormir.

Depois, deixou-se cair na cama e tudo se tornou ainda mais confuso e

distante, até que se fundiu no nada.

- Vamos embora imediatamente!

Duas mãos fortes agarravam-na firmemente e levantavam-na da cama.

- Que é que…?

Ao reconhecer Bruno, sentou-se na cama e afastou-se dele.

- Sai daqui! Como é que entraste?


- Acho que te esqueceste de adormecer com o candeeiro na mão. – Ele

estava realmente furioso. Agarrou-a por um pulso e ergueu-a.

- Larga-me ou conto tudo ao meu pai!

- Voltaste a ser criança? Ou nunca deixaste de ser? Confessa Nívea, achaste

piada ao facto de conseguires controlar alguém com o teu corpo, com o teu

sorriso, com a tua voz, não foi?

Ela não conseguiu responder. Que dizia ele?

- De que é que estás a falar?

- Parece que do mesmo que tu quando me disseste que a tua irmã está

apaixonada por mim.

- Não compreendo do que estavas a falar. – Ripostou ela, segurando a mala

enquanto ele a arrastava para o corredor.

- Nem eu. Já tens as coisas?

- Sim, está tudo aqui.

Puxou-a pelo braço e deixou-a no alpendre a seu lado, enquanto trancava a

porta e verificava se fechara todas as janelas. Apontou-lhe o carro e ela

sentou-se no lugar ao lado do condutor. Baixou o rosto. Não queria que ele

a visse chorar.

Como? Como é que tudo aquilo acontecera? Como é que se apaixonara por

um tratador de cavalos? Estranhamente, verificou no seu coração que a

profissão dele ou de qualquer outra pessoa não lhe importava mais. Havia

todo um universo dentro de cada ser, a sua profissão é apenas um meio de

se transportar para a sociedade e conseguir o pão de cada dia.

Bruno havia-a mudado. E ela mal dera pela mudança. A maior mudança

fora, sem dúvida, descobrir o quanto gostava de Margarida. Escondeu o

rosto no ombro. Bruno tapava as janelas com tábuas, nem olhava para o
carro. Ela sentia-se de novo envergonhada. Sentindo o seu orgulho ser

ferido, por necessidade própria, correria para casa assim que o carro

encostasse no carreiro, abraçaria Margarida, e dir-lhe-ia que Bruno as tinha

enganado a ambas. Que ela se tinha apaixonado mas que, se a irmã

entendesse perdoá-lo, ela prometia portar-se bem e esquecer aquela

paixoneta tola.

Quando ele se sentou ao seu lado, tomando o volante. A paixoneta tola

encheu o seu coração de tristeza. Qual seria a decisão da irmã?

Durante a viagem, nem Nívea nem Bruno procuraram falar. Ela manteve o

rosto voltado para a paisagem que se abria para o horizonte. Pensava em

como conhecera Bruno, em como ele a irritara. Em como a irmã, tal como

ela, fora ingénua.

«Ele beijou-me», dissera, sorrindo docemente, como sempre fazia. Nívea

teve que evitar as lágrimas, fechando os olhos com insistência. E a mão na

perna. Significaria alguma coisa para Bruno? E que confusão haviam criado

em torno daquele homem? E o cavalo? Lembrou-se de repente.

Abandonaram o cavalo do seu pai por causa de uma questão estúpida de

corações, traições e atracções. Não conseguiu conter as lágrimas e estas

soltaram-se. Conseguiu chorar baixo, sem que ele suspeitasse, absorvido

pela condução. Sentiu-se de novo uma menina mal comportada. Os homens

mentem sempre, formou-se de novo na sua mente, e acenou com a cabeça,

enquanto o carro tropeçava, dando a força da sua concordância com aquela

frase ao gesto.

Precisava insistentemente de ser livre. Uma imagem estranha formou-se na

sua mente. Longe dos problemas e de tudo. Era ela com os cabelos ao

vento, os olhos fechados, as lágrimas secas, correndo com ambas as mãos


nas rédeas de um cavalo que corria velozmente pelas encostas da sua

fazenda. Era exactamente disso que precisava para se sentir bem naquele

momento. O medo de cair, como a irmã caíra, haviam-na afastado de

prazeres que Bruno, sem saber, lhe devolvera.

Quando chegaram perto da fazenda, a respiração de ambos acelerou e

quase se entreolharam, desviando as cabeças em seguida. Ambos se

perguntavam o que aconteceria a seguir. Nívea contaria tudo a José e

Bruno seria posto na rua? E Margarida? Choraria? Prometeria odiar a irmã

para todo o sempre? E se estivesse a sorrir, com um gato no colo e

Napoleão nos pés, como teria Nívea coragem de dizer o que quer que fosse

que lhe roubasse a tranquilidade?

O seu coração apertou-se e o motor parou. Bruno tentou dizer-lhe algo,

mas ela não aguentou mais a pressão. Saiu, bateu com a porta e correu

para casa como pensara fazer. Bruno seguiu-a de mãos nos bolsos, no seu

passo firme.

Abriu a porta e fez a curva no pequeno vestíbulo, vendo-se de frente para a

sala de estar onde alguém ria alto. Reconhecendo, após controlar o pilar de

mármore, Isabel, Nívea voltou a sua atenção para os convidados. Era

Samuel, irmão de Bruno, e Ana.

Margarida estava sentada ao lado de Samuel, e ria também. Era felicidade

pura o que Nívea via no seu rosto?

Bruno estacou atrás de si.

José, que aproveitava o meio da tarde, momento do dia em que era quase

impossível pôr-se a cabeça ao sol, para beber um café e ler o jornal. Todos

pareciam ter-se calado subitamente, olhando de Nívea, de boca


entreaberta, olhos brilhantes e inchados, e para Bruno, ainda de mãos nos

bolsos e olhar cansado, esperando que Nívea começasse.

- Já voltaram? – Foi Ana quem falou, pondo-se de pé.

Samuel imitou-a mas um pormenor que Nívea não reparara saltou a seus

olhos: Samuel dava a mão a Margarida, e não lha largou quando se pôs se

pé para receber Bruno e Nívea.

- O que aconteceu, Nívea? – Perguntou José, também ele pondo-se de pé.

- Pai eu… – Começou Nívea sem, no entanto, conseguir continuar.

Foi então Bruno quem falou, e as palavras pareceram martelos no coração

de Nívea.

- Samuel…vejo que conseguiste pedir a mão da Margarida, como querias.

Nívea olhou, imediatamente, a irmã que sorriu a Samuel, corando. Na sua

mão, na mão que Samuel segurava, havia um pequeno e delicado anel de

noivado.

- Nívea não sabes o que tens perdido! – Continuou Isabel.

- A tua irmã vai-se casar em Setembro. – Contou José. – Ainda falta, mas

vai ser uma bela festa.

Nívea não conseguia falar. O que estava a acontecer? A irmã dissera-lhe

que amava Bruno…dissera-lhe? Margarida nunca dissera um nome. Não fora

especifica a esse ponto. Falaria ela de Samuel como o homem que a tinha

beijado?

O silêncio caiu de novo sobre a sala. A empregada entrou com uma bandeja

de biscoitos e também ela se calou, olhando dos patrões para os convidados

e para os recém-chegados.

- Nívea, não estás feliz? – Perguntou Margarida, delicadamente.


Nívea baixou o rosto. O coração ameaçava saltar do peito. Bruno estava

mesmo atrás dela. Porque é que não lhe dissera? Porque é que a havia

trazido até ali, assim? Porque é que estava tudo tão confuso? Porque é que

sentia uma necessidade enorme de pegar Bruno pela mão e pedir-lhe que

lhe explicasse tudo? Ao mesmo tempo uma voz arrogante e mimada dizia-

lhe que ninguém lhe devia explicações, porque ela não queria saber de

nada. A irmã nem sequer lhe confiara o nome do homem que amava! Do

homem com quem se ia casar! Porque tinha ela que ser sincera com todos?

Odiou todos nesse momento, crescendo em si a Nívea de todos aqueles

anos. Haviam-na feito de tola. Haviam conspirado algo nas suas costas?

Haviam achado que ia morrer de alegria por saber que Margarida, a

inválida, se ia casar antes dela? A culpabilidade daqueles pensamentos na

sua mente perturbou-a ainda mais. Controlou o impulso de os mandar todos

passear, mordeu o lábio com amargura, voltou-se, deu um encontrão a

Bruno com o ombro, e saiu. Saiu e correu. Correu até ao estábulo. No

estábulo estava tão cega de raiva que abriu a cancela ao primeiro animal

que encontrou e montou-o. Montou-o e deixou-o guiá-la pelos campos,

contra o vento, contra todos. Voltou a chorar. Atrás de si ouvia vozes que a

chamavam, mas não quis ouvir nenhuma, não quis olhar, não quis reparar

que todos estavam ali, fora de casa, preocupados consigo. Fechando os

olhos e abrindo os braços, ouviu a voz da alma distante que dissera à sua

filha “os homens mentem sempre”. Porque é que a sua mãe não a avisara

do mesmo? Porque Isabel era a típica mulher de casa. A mulher que

concorda sempre com o marido e que avisa os filhos dos resfriados e do mal

que faz comer muito chocolate, mas que não lhes fala de menstruação,

sexo ou contracepção. É a mãe que acredita no conhecimento à priori, nas


ideias inatas. A mãe que não abre os olhos às suas filhas, da mesma forma

que Nívea se estava a recusar a abri-los agora. Agora que todos gritavam o

seu nome. No momento seguinte, algo bateu na sua cabeça e ombro com

uma força tremenda, e ao abrir finalmente os olhos, estava de novo no

chão, não via nada, tudo era luz e escuridão. As costas estavas doridas e o

cavalo continuara em direcção à liberdade, relinchando pelos campos afora.

E tudo era confuso. E algures, ouviu a voz de Bruno e sentiu a sua mão na

sua perna. E viu o rosto da irmã chorar como não chorava há muito tempo,

e viu pessoas desconhecidas. E ouviu o pai praguejar, e sabia que a

empregada tinha levado a mão à cabeça e fechado os olhos. Bruno. O seu

amado? A maior contradição da sua vida. Subira num cavalo.


Um novo olhar sobre o mundo

Abriu os olhos e voltou a fechá-los no momento seguinte.

Ouvia murmúrios, porque é que ninguém acendia a luz?

- Acendam a luz. Acordei. – Murmurou, confusa.

Recordou-se então da queda e, reagindo, tentou mexer-se. Levantou a

cabeça, as mãos e os braços. Depois as pernas. Estava tudo bem.

Suspirando, voltou a abrir os olhos.

- Mãe? Acende a luz…Margarida estás aí? Onde é que estou?

Ouviu um soluço abafado e depois alguém pedindo a essa pessoa que se

calasse. Delicadamente. A sua mãe…ouvia de novo o seu murmúrio.

Chorava.

Seria o inferno? Teria morrido? Em pânico, assustada, sentou-se na cama

com as forças que tinha, sentindo as costas doridas, e gritou, histérica.

- Acendam a luz pelo amor de Deus! – Ninguém respondia. Alguém

encaminhou Margarida para fora do quarto. Nívea ouviu as rodas

deslizarem. Pelo som do pavimento, não estava em casa. Todos os seus

sentidos estavam aguçados. Levou a mão aos olhos, esperando encontrar

um lenço, uns óculos, qualquer coisa ocultando-lhe a visão.

- Nívea… – Era a voz angustiada da sua mãe, falando baixo ao seu ouvido.

Nívea sobressaltou-se e estendeu a mão, agarrando-lhe o braço. – Está um

dia lindo lá fora.

- Mamã…morri? Porque me diz isso? Como está um dia lindo? Lá fora? Onde

estou? Digam-me por favor. Cheira a éter…!

Sentiu outra mão, uma mão mais áspera e forte pegar-lhe na outra mão,

que apertava os cobertores.


- A tua mãe quer dizer que não é preciso acendermos a luz. O sol está a

brilhar.

Nívea assustou-se com o diagnóstico que começava a formar-se na sua

cabeça.

- Então abram os estores. – Insistiu, sentindo lágrimas formarem-se nos

seus olhos.

- Está tudo aberto filha. – Isabel chorava de novo e a porta abriu-se, sendo

que alguém entrou.

- A jovem já acordou? Vejo que sim. Nívea…como se sente? – Era a voz

calorosamente profissional e desprovida de emoção de um médico.

- Sinto-me às escuras.

O médico aproximou-se dela e agarrou-lhe o rosto. Ela voltou a sentir-se

sobressaltada. Ele abria-lhe os olhos e devia estar a observá-los. Ela

esperava, a qualquer momento, ouvi-lo dizer que estava cega.

- Deslocou a retina. – Foi a conclusão. – Como eu previra.

Nívea, ansiosamente inquieta, agarrou um braço que julgou ser o seu.

- Diga-me, estou cega? É isso?

- Lamento, mas sim. Talvez o problema se resolva com uma cirurgia, mas

não é totalmente certo que volte a ver.

Abrindo a boca e sentindo-se morrer interiormente, Nívea escondeu um

grito do mundo. Sentiu-se enlouquecer.

A partir daí viveria sem luz?

Gritou e mandou-os a todos embora, sem saber ao certo quantas pessoas

estavam na sala. O seu pai…pronunciara-se? Bruno teria finalmente visto o

quão infantil e ridícula ela conseguia ser? Estaria em casa, repreendendo-se

por ter dado demasiada importância a uma menina?


Fechou os olhos sem notar qualquer diferença na visão. Atirou-se para a

cama e rodeou o rosto com os braços, deixando-se chorar alto, depois de

ouvir a porta bater e a última pessoa sair.

Endireitou-se na cama, ainda a chorar. Levou de novo a mão ao rosto.

Tocou os olhos, chorando convulsivamente, tão confusa quanto assustada.

Puxou os cabelos para as costas e recostou-se na cama.

Calou-se por um momento e pareceu-lhe ouvir um ruído nesse instante.

- Quem ficou aí? Enfermeira? Doutor? Mãe?

Ninguém lhe respondeu e ela calou-se, voltando-lhe costas na cama e

sabendo que alguém tinha ali ficado. Escondeu o rosto na almofada e

pensou com determinação que tudo aquilo era um sonho e que em breve

acordaria. Estava convencida que era a enfermeira ansiosa por lhe aplicar

um calmante assim que a apanhasse a jeito.

Quando a enfermeira entrou no quarto, na manhã seguinte, Bruno estava

ainda sentado na mesa-de-cabeceira de Nívea e segurava, na sua mão, a

dela.

Esta é a história da minha irmã Nívea, e não a minha. Como Margarida,

comecei por ser uma criança normal. Corri, persegui a Nívea, era ela ainda

pequena, apaixonei-me pelos meus primos (que desapareceram na

Austrália há uns sete anos) e cavalguei. Cavalguei sempre com gosto, feliz

por ter aquele fragmento de liberdade nas minhas mãos. Feliz porque para

mim felicidade sempre foi sinónimo de liberdade. Julgava que esse valor era

meu, e que eu não o poderia, de forma alguma, perder. Mas perdi. Tal

como a Nívea experimentou, no auge da própria liberdade, quando o vento

nos corta os cabelos e limpa o rosto, há sempre perigos. Perigos que


devemos ter em conta e que têm como única finalidade tirar-nos essa

liberdade. Inveja, talvez seja a vingança da Natureza. Tal como vi a Nívea

acordar tarde demais para o ramo que a atingiu (é claro que o cavalo

esquivou-se, o animal não era cego), e vi-a depois cair aos meus olhos,

soube que algo tinha dado uma volta tremenda na sua vida. Levei as mãos

à boca e escondi o rosto no peito do Samuel, sempre a meu lado. Senti o

coração apertado e, não é que tenha levado a peito todos os insultos que

ela me fez, mas, no meu interior, uma voz repetia-me “é o castigo, é o

castigo por te ter tratado como inferior”. Sei que esse castigo pertenceria

apenas a mim caso eu lhe tivesse ripostado. Caso tivesse sido

desagradável. Caso tivesse sentido inveja das suas duas pernas para andar,

para dançar, para subir num cavalo, para subir as escadas. Mas nunca

senti. Contentei-me com o que tinha e fiz aquilo que a maioria das pessoas

não faz: Aproveitar ao máximo as suas capacidades e utilizar as suas mãos

para ajudar. Interessei-me por crianças necessitadas, por deficientes

motores como eu. Por pessoas que não conseguiam dizer o que sentiam no

seu interior. Talvez por causa do acidente eu seja sempre uma pessoa

diferente. Perdi o interesse e não vejo importância nem preocupação nas

coisas banais com que todos se enervam e que todos procuram ter em

ordem. Dia de cabeleireiro. Dia de manicura. Dia de Santo isto, Santo

aquilo. Roupa a condizer? Quando me falavam nestas coisas, voltava o

rosto e sorria. A minha máscara foi sempre o sorriso. Não que me sentisse

mal, com esse sorriso nunca transmiti ironia, incompreensão ou desprezo.

Esse sorriso transmitia paciência. Sempre que uma situação se enredava na

minha mente, sempre que algo não estava como eu queria…sorrio. E

sempre que estou feliz, também sorrio. Sei que a Nívea sempre estranhou
esse gesto. Achava estranha a minha capacidade de sorrir. Mas sim, eu

sorria, porque para mim os problemas dela e da minha mãe sempre foram

disparatados. O jantar que não estava feito a tempo e o casaco que

encolhera quando fora a lavar na máquina.

Para mim, essas coisas sempre me deram vontade de rir.

Achei interesse noutras coisas que marcaram toda a minha vida.

O conseguir ajudar alguém como eu, ou pior que eu. O aconselhar alguém

capacitado a nível físico. Nessas alturas, enquanto aconselhava as pessoas

a não questionarem com tanta rudeza o sentido das coisas, lembrava-lhes

que existem factos, situações e objectivos: Só eles contavam e só para eles

agimos. Aí via-os sorrir. Achavam uma filosofia tola, mas era a que eu tinha

usado, e que tinha funcionado. E enriqueciam-me todas essas experiências

porque compreendia que ao mesmo tempo que essas pessoas se focavam

no seu interior, perguntando a alguém “inferior” sobre o que ia nas suas

cabeças e corações, eu focava-me no exterior, nas pessoas em si, e

aprendia com os outros, com os “capacitados”, com os superiores que, com

o seu andar rápido, não tinham tempo para compreender o que ia no seu

interior.

Voltando à minha irmã.

Nessa altura, a Nívea tinha dezanove anos, encho-a sempre de elogios

quando falo da Nívea que mais tarde se tornou, da Nívea que, sem ver as

cores do mundo, identificou os defeitos das coisas com o seu faro e

perspicácia e também ela se voltou para os outros. Porém, nesta altura, era

uma Nívea arrogante e mimada que se sentia profundamente frustrada.

As suas amigas, falsas como tudo e fúteis como só elas, entraram no

quarto do hospital e ficaram de boca aberta. Tive dificuldade de perceber se


ansiavam por contar a experiência pela qual uma das suas amigas estava a

passar, ou se aquilo realmente as estava a marcar. Alguém que há

semanas fora com elas ás compras, simplesmente cega?

Fizeram-lhe perguntas de alguma ingenuidade e ignorância que a

perturbaram mas ás quais ela respondeu com paciência.

- Não vês mesmo nada?

- Doem-te os olhos?

- Sentiste a retina saltar?

Cada uma mais espantada que a outra.

Eu, que nunca me enervo ou irrito, mandei-as irem ao refeitório comer

qualquer coisa, pois estavam muito magras. O comentário surtiu efeito e

desapareceram as três no corredor comentando o facto de terem

conseguido que a dieta fizesse efeito.

A Nívea olhou-me e abriu os braços.

- Vem cá. – Disse, de lágrimas nos olhos.

Agora sem galinhas indiscretas, ela abraçou-me e murmurou um tímido

“desculpa”.

É claro que desculpei, já estava desculpada. Nunca tinha pensado duas

vezes acerca das suas ofensas.

Mas deixem-me continuar, deixem-me explicar-vos como é que esta lição

de vida acabou.

Nívea acordou e sentiu algo quente no seu ombro. Era Margarida que a

acariciava, sorrindo. Soube-o quando a irmã falou.

- Como estás, dorminhoca?

- Igual.
- Igual não é resposta.

- Não sei como estou Margarida, e também não vou saber como vou estar

quanto tiver 40 anos, 60 ou oitenta. Se me casar, não conhecerei o rosto do

meu marido, e se, por acaso, tiver filhos, nunca saberei se são ou não

parecidos comigo. Se sorrires, não vou saber que estás a sorrir, e a mãe e o

pai nunca mais vão estar a ao alcance da minha vista. Vou-me esquecer de

tudo o que vi e o meu mundo, acordada ou a dormir, vai ser sempre escuro,

e os sonhos a única maneira de eu ver as cores. O resto, serão apenas

vozes e vultos. E essas vozes e vultos serão a minha vida. – Uma lágrima

caiu-lhe. Mantinha o olhar vidrado, perdido. Margarida mordeu o lábio e

manteve-se em silêncio. Não queria dizer nada à irmã. Os pais estavam a

sofrer imenso, e ela tinha consciência da pergunta que se faziam: Duas

filhas tão bonitas, porquê as duas bafejadas com tão pouca sorte? Uma

deficiente motora e outra cega. Limpou uma lágrima nos seus próprios

olhos que viam a irmã destroçada, esbranquiçada e iluminada pela luz

dourada do sol apenas no rosto. Os cabelos negros caíam pelos ombros e

custava a Margarida imaginar que a irmã estava às escuras. Não tinha

qualquer reflexo visual.

- Só queria saber se te sentes bem.

- Fecha os olhos.

- Hum? – Margarida imaginava o que a irmã lhe ia dizer. Ia dizer-lhe:

“Sentes-te bem com os olhos fechados?”

- Fecha.

- Já fechei. – Mas era uma pequena mentira, pois julgava ter percebido o

que a irmã lhe queria dizer.

- Fecha-os mesmo. – Por causa da insistência, esta fechou-os.


- Já está.

- Agora diz-me: Não tens vontade de os abrir?

Margarida sentia-se incomodada, como qualquer pessoa se sente quando se

vê desprovida de visão. Quando está escuro, quando não há luz na rua ou

numa divisão da casa. Imaginou o incómodo daquelas pessoas que se

movimentavam com varas para não pisarem poças, para não atropelarem

outras pessoas, para não esbarrarem em paredes, para não caírem em

buracos. E o facto de perder a capacidade de ver o mundo assustaria

qualquer céptico.

- Tenho. Mas Nívea, tens que…

- Não tenho que nada. Neste momento não existe “mas” para mim. Existe

uma vontade enorme de abrir os olhos e ver o mundo. Existe a vontade de

parar o tempo e voltar atrás. A vontade de nunca ter subido no maldito

cavalo. A vontade de mudar as coisas. A vontade de matar o médico e de

lhe arrancar da boca que o meu problema tem cura. Só isso, não há “mas”.

Margarida fechou a boca. Que poderia dizer? Baixando o rosto, voltou a

erguê-lo com um sorriso, ao menos que a sua tristeza motivasse alguém.

- E eu? Que me disseram a mim? Nunca mais vais poder andar. Não vais

poder dançar no teu casamento. Não podes andar por ai sozinha, és um

estorvo para todos. Não podes ir às compras sem arrastar alguém contigo.

Não és uma única pessoa, mas um conjunto formado por ti, pela cadeira de

rodas e pela pessoa que a empurra. Não vais poder ir a uma discoteca, não

podes sentir a areia enterrar-se nos pés enquanto corres à beira mar. Não

vais poder fazer de cavalinho aos teus filhos e netos. A tua vida sexual há-

de ser um pequeno fracasso. Vais ser complexada. Vais ser uma inútil. No

momento, foi tudo isso que senti. Imaginei o meu futuro como uma mancha
negra que se avizinhava. Mas aos poucos, cada vez que acontecia algo que

eu não esperara, como poder passear pelo jardim empurrando a cadeira,

disse-me que posso construir uma casa espaçosa e andar nela. Que o meu

marido há-de estar sempre comigo e os meus filhos vão passear ao meu

colo na cadeira de rodas e vamos rir muito. E depois percebi que ainda

chegava aos meus pés, se me esticasse muito. E que é um conforto ter

sempre as costas direitas, e quem nos empurre. – Riu-se, e Nívea achou-se

de novo egoísta, e riu com ela. Sim, haveria de aprender a viver assim, mas

seria tão doloroso. E tão demorado…quantas vezes não acordaria e não

tropeçaria nalguma cadeira enquanto, ensonada, pensava que tinha fechado

totalmente a janela e por isso não via nada?

Estendeu a mão à irmã e esta deu-lha de novo.

- Gosto muito de ti, minha pequenina. – Disse Margarida sentindo que,

finalmente e pelas piores razões, Nívea precisava de si.

Enquanto as duas irmãs descobriam o quanto precisavam uma da outra,

trocando carinhos e lamentações, Bruno patrulhava os corredores do

Hospital e conversava com o médico. Pediu-lhe, por favor, que explicasse o

que tinha acontecido e as hipóteses de cura.

- Ela deslocou a retina. O nervo foi afectado. É um caso difícil. – O médico

baixou o rosto. – Enfim. A medicina está sempre a avançar.

- Não lhe posso dar esperanças? – Perguntou Bruno, que precisava

insistentemente de lhe dizer algo que a ajudasse, que a animasse. Que a

fizesse a ser a criança mimada que ele descobrira nela, e pela qual se

interessara.
- É melhor não Bruno. Conheço bem o pai dela, o José Melo. Terei sempre o

caso dela em mente. Por enquanto, é melhor que ela vá aprendendo a lidar

com a situação. Podia conviver com pessoas como ela…

- Ela é muito orgulhosa, e está magoada, revoltada com a vida. Não posso

pedir-lhe isso agora.

O médico ergueu o sobrolho.

- Pretende casar com esta rapariga, não pretende? – Se aprendera a dizer

às famílias que um ente querido tinha morrido, porque não perguntar aquilo

ao jovem veterinário? Não tinha tempo para rodeios. Conhecia o coração

das pessoas.

A resposta de Bruno, portanto, não o surpreendeu.

- Desde a primeira vez que a vi.

Um sorriso no horizonte

Bruno sabia que tinha que falar com ela. Tinha que ter a certeza que ela

não o odiava, que finalmente percebera tudo, que não beijara porque se

sentira sozinha, ou porque se sentira apenas atraída por ele. Para Bruno,

isso não bastava.

Sentado num banco no corredor do Hospital, ao lado do quarto onde Nívea

ficara, esperava-a, assim como a Isabel e Margarida. Nívea tivera alta.

Imaginando-a sair do quarto a qualquer momento, recordou-se do rosto

dela em pequena.

Ele vira-a nascer, achara-a um bebé chato e traquinas. Babava-se e estava

sempre suja de doces e lama. Depois, viu-a dar os primeiros passos. Uma

vez Isabel, Nívea ainda pequena, Laurinda e ele se haviam encontrado


numa mercearia, a mãe da criança entregou-lhe a mão da sua filha de três

anos, enquanto procurava a carteira na mala. Aborrecido, Bruno levou-a

pela mão, suja de chocolate, até à saída, e sentaram-se à porta do

estabelecimento. Lá dentro, Laurinda e Isabel conversavam.

A criança, irrequieta, apontou algo no centro da praça, ele, com quase 13

anos, olhou maldisposto. No largo, o guarda passeava-se com um belo

cavalo. Se era algum dia especial, Bruno não o sabia.

- Sim, é um cavalo. – Disse, ainda aborrecido. – Também tens muitos na

tua fazenda.

- «Cabalo». – Disse a criança, repetindo-o.

- Não! – Nem sabia falar! Olhou ansioso lá para dentro, esperando que a

mãe se despachasse. Ele tinha que lavar o seu cavalo antes de anoitecer. –

- Ca-va-lo. – Explicou ele, com pouca paciência.

- «Cabalo». – Repetiu Nívea, com teimosia.

Bruno voltou-se para ela, para a fazer ver os seus lábios.

- Ca-va-lo. Repete.

Apontando o guarda que desaparecia na esquina, Nívea repetiu o que havia

dito antes. Só então Bruno, ao abanar a cabeça, reparou nos seus olhos

negros e vivos, cor de café no rosto daquela criança tão pequena.

Neles via-se toda a sua obstinação.

- És teimosa. – Disse-lho, sorrindo e admirando-a. – Eu também sou.

E ainda eram os dois. Um dia ele dir-lhe-ia que naquele fim de tarde o seu

cavalo não tomou banho pois ele estava ocupado com uma pirralha de olhos

escuros que não sabia dizer “cavalo” à porta da mercearia e, mais tarde, no

alpendre da sua casa, após insistir com a mãe para convidar Isabel para um

chá.
A porta do quarto abriu-se finalmente e Bruno sentiu-se desconfortável. As

três mulheres saíam, Isabel apoiando Nívea. Esta estava como ele sempre a

vira. Bem constituída, um pouco retraída por medo de se precipitar nos

movimentos, o cabelo negro solto, um casado de ganga. Os olhos perdidos,

mortos para sempre. Cegos. Margarida avançava na cadeira de rodas e

parou perto dele, com a vara da irmã na mão.

A cena despedaçou-lhe o coração. Precipitou-se para elas e tomou-a

debaixo do braço, guiando-a até ao meio do corredor. Ela reconheceu-o

pelo cheiro e não barafustou. Até para isso se sentia cansada. Alem disso,

sentia-se mais segura com ele ali.

- Dona Isabel… – Começou Bruno, que planeara algo naqueles dois dias que

Nívea esteve internada. – Dá-me licença de levar a Nívea a um local?

- Não sei se ela deve sair assim… - Disse Isabel, confusa de cenho erguido.

Preocupada com a saúde da filha, esperou que o médico se aproximasse e

perguntou-lho.

- É claro que deve. – O médico sorriu. Estava cansado, como todos ali. – Ela

deve partir à conquista deste novo mundo.

Bruno olhou-a. Precisava de saber como ela estava a lidar com a situação.

Ela nem se mexeu, de cabeça ligeiramente baixa e o olhar fixo no chão.

Olhar esse que não via. Margarida também zelava pela irmã

insistentemente. Nívea, por fim, falou em tom amargo.

- É um mundo que não sei se quero explorar.

Bruno, Isabel e Margarida olharam o médico que mexeu os lábios apenas,

assegurando-lhes que era uma reacção “normal”.

- Então, posso levá-la? – Bruno interrompeu aquele silêncio em que todos

olhavam Nívea com pesar.


- Quero ir para casa. – Afirmou Nívea, quieta no mesmo lugar. Apesar de

apreciar a companhia dele, embora as coisas não estivessem resolvidas,

sentia-se demasiado pequena diante do mundo. Precisava de sentir o

cheiro, o toque da sua casa e do seu espaço.

- Nívea ouviste o que o doutor disse. Vai-te fazer bem. – Assegurou Isabel,

com um sorriso meigo.

Demasiado deprimida para protestar, aquela que dissera tantas vezes “não

sou cega”, com um enorme desprezo por aqueles que sabia que eram,

acompanhou Bruno, no meio da escuridão e do desconhecido, até à carrinha

deste.

Enquanto guiava, Bruno, agora sozinho com Nívea, olhava-a

insistentemente de relance. Sentia-se mal imaginando que ela dava pelo

seu olhar, mas não conseguia evitar. Ela parecia sem forças, totalmente

derrubada. Como sempre fizera, desviou o olhar para a janela e manteve o

rosto de fora durante toda a viagem. Com a diferença que agora não via o

mundo passar por si, como se ela o dividisse em mil fragmentos com a

velocidade do carro.

Aquela não era mais a Nívea que ele conhecera e que o entusiasmara tanto

pelo seu carácter arisco. Era uma Nívea que precisava insistentemente da

sua protecção e da sua mão para a guiar. Ficar com alguém assim era uma

promessa para toda a vida. Uma promessa de respeito, compreensão e

amor. E era um desafio a si mesmo ser feliz com ela, e fazê-la igualmente

feliz. Mas tinha que tentar. Talvez se tivesse sido sincero de principio…

Ela teria desprezado e espezinhado os seus sentimentos. A sua reacção

naquele momento era para ele um mistério.


Para Nívea a viagem não passou de uma prova cruel e desagradável de

como seria a sua vida dali em diante, e de como veria o mundo:

Como um local onde se tropeça, cheio de ruídos que precisava de

identificar. Cheio de caminhos, curvas, encruzilhadas que ela não

reconhecia. Um labirinto de locais desconhecidos. Os solavancos do carro,

as paragens em sinais, as esquinas, as vezes que buzinava. Tudo parecia

estranho e ela sentia-se perdida. Perguntava-se frequentemente “O que se

passa?”. Apetecia-lhe perguntá-lo também a Bruno.

Não sabia onde estava quando bruno parou o carro, o contornou, abriu a

porta e a ajudou a sair.

Nívea sentiu-se pisar cascalho, mas não reconhecia o cheiro nem os ruídos

do local. Ouvia algumas aves, e algumas plantas. Mas não as reconheceu

pelo cheiro.

- Onde estamos? – Perguntou, desconfiada, enquanto ele a guiava pela

mão.

- Não querias ir para casa?

Nívea parou e recusou-se a continuar, apurando os sentidos.

- O Napoleão?

- Podemos trazê-lo, se quiseres.

- Como assim? Não estamos na minha casa? – Começava a ficar enervada.

Sentia que ele estava a troçar dela.

- Estamos sim. – Concluiu ele, emocionado. – Anda.

Puxou-a por umas escadas de madeira até um alpendre, aparando-a

quando ela tropeçava.


Já no alpendre, enfrente à porta, apenas se ouviam os pássaros piar

naquele fim de tarde. Nívea disse-lhe que não estava em casa, ele estava a

mentir-lhe.

- Entra, deixa-me mostrar-ta.

Ansiosa, e assustada pelo desconhecido, ela recusou-se.

- Mostrar o quê? Não vejo nada.

- Não sejas tão limitada.

- Limitada? – Ele abrira a porta de madeira que rangeu e puxou-a para

dentro mas ela tentou resistir, ao que ele insistiu.

- Onde estamos?

- Vá lá, não tenhas medo.

Suavemente, Bruno pousou-lhe as mãos no vidro frio de uma moldura,

sobre um armário de madeira. Ela tocou a superfície gelada, sentindo-se

nervosa, e retirou a mão precipitadamente.

- Quem está na foto? Onde estamos?

- Bem… – Ele encolheu os ombros modestamente, olhando-a e orgulhando-

se dela. Chegara o momento. – Esta pode ser a nossa casa e aí pode ficar a

nossa fotografia de casamento.

O peito de Nívea agitou-se e ela comprimiu os lábios. Soltou um ruído. Não

era uma risada nem um impulso de choro. Talvez fosse surpresa e emoção.

- Que casamento?

Bruno aproximou-se dela. Ficaram a um passo de distância. Ele tocou-lhe

nos cotovelos carinhosamente e ela não recuou. Esperava a resposta.

- Já te disse. O nosso. Quer dizer…agora que estás cega, pensei que talvez

me pudesses aceitar. – Rio. Nívea juntou-se a ele e perdeu uma lágrima.

Realmente, gostava dele. Muito. Mas haviam coisas que não sabia explicar.
- Já te tinha aceitado antes, só que não sabia…

Murmurou, e ele sorriu de si para consigo, olhando-a. Nívea continuou a

falar, e uma sombra passou no seu rosto. Culpa.

- Mas a minha irmã…

- A tua irmã e o meu irmão estão apaixonados desde que se conheceram,

por isso, por favor, não os metas pelo meio. Eles serão felizes no

casamento deles.

Nívea sentiu-se aliviada. Aos poucos, abriu um sorriso.

- Queres-te casar com uma mulher que confunde farinha com café?

- Confio no faro da minha futura esposa. – Ripostou, rindo de novo.

- Já te disse que eras uma menina linda?

- Quando nos conhecemos? – Não havia pretensão, ironia ou vaidade na

sua voz.

- Sim, mas não quando tu pensas. Não naquele estábulo. Foi quando

éramos pequenos. Vi-te nascer, peguei-te ao colo e dei-te a mão.

- Nunca mo disseste. Deixaste que te tratasse mal. – Lamentou.

- Foi tudo mais romântico assim, não foi? – Ambos sorriram,

modestamente. Ela afastou-se dele e quase embateu na janela.

- O que há lá fora? – Quis saber.

- O que tenho pena que não possas ver. Um pôr-do-sol magnifico sob

colinas magnificas. E cavalos.

Mordendo os lábios e suspirando, Nívea fez uma revelação que ele não

esperara ouvir.

- Apetece-me montar um.

Depois de uns segundos de silêncio, Bruno ficou contente e respondeu-lhe.


- Havemos de montar muitos, mas receio que depois de a tua irmã ter

ficado sem andar, e tu sem ver, eu fique sem poder ter filhos. Nesta família

os cavalos não dão muita sorte.

Ela riu alto, na direcção que ouvia a voz dele.

- Sorte a tua que não és da família.

- Por enquanto.

Ficaram os dois silenciosos durante um momento.

- Quantos filhos queres ter? – Continuou Bruno, e o rosto dela endureceu.

- Nenhum.

- Porquê? – Espantou-se. O seu sonho sempre fora ter muitos filhos

espalhados pela fazenda.

- Porque não quero tê-los sem poder vê-los. – Explicou, francamente.

- Criancinha mimada. – Brincou ele, procurando esconder a decepção.

- Gostava de ter filhos cujo rosto eu soubesse como é. – Parecia invadida de

esperança, paz e generosidade quando o disse.

- Estás a falar de quê?

- Quero adoptar crianças com a síndrome de Down e fazer por elas tudo

aquilo que até aqui nunca fiz por ninguém.

Ficarão ambos em silêncio.

- Opões-te? Já não queres casar comigo?

Emocionado, ele respondeu-lhe:

- Mais que nunca. – A sua mudança maravilhava-o. Assombrava-o.

- Então abraça-me. – Pediu, sem se mover, recortada contra o pôr-do-sol

na velha janela poeirenta.


- Pensei que nunca mo pedirias. – Murmurou, avançando para ela e

rodeando-a com os dois braços. Feliz, de olhos fechados e contente com o

que via (ou não via), Nívea murmurou contra o peito do noivo:

- Sabes…eu tenho um cavalo. Chama-se Apolo e nunca o montei.

- Temos que mudar isso, e rapidamente.

E ambos, abraçados a um futuro próximo concordaram, em silêncio, que

havia, de facto, um sorriso no horizonte de ambos. Um sorriso que nem

Nívea nem Bruno viam, mas que ambos sentiam.

Fim

(26-06-2006)

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