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DESENVOLVIMENTO RURAL, AGRICULTURA E NATUREZA:

novas questões de pesquisa1

Marie Anne Najm Chalita2

RESUMO: Este artigo visa analisar a trajetória da noção de desenvolvimento sob o aspecto da
relação sociedade-natureza. Essa trajetória confirma a tendência da natureza, inicialmente co-
locada em uma posição marginal nos debates sobre ciência/técnica e inclusão/integração soci-
ais, em ocupar um papel de destaque como elemento necessário à superação da crise de desen-
volvimento e ambiental por que perpassa a sociedade contemporânea. A associação entre estas
duas crises, inicialmente casual, tem aberto novas fronteiras teóricas e empíricas para se pen-
sar os rumos do desenvolvimento rural e da agricultura, já presentes no modelo endóge-
no/local e no modelo competitivo/global. Novas questões de pesquisa sugerem investigar a
forma como as redes sócio-técnicas de produção e reprodução desses modelos têm adquirido au-
tonomia ou têm se sobreposto como referências culturais de validação de estratégias de desen-
volvimento.

Palavras-chave: desenvolvimento rural, agricultura, natureza, meio ambiente, redes sócio-


técnicas.

RURAL DEVELOPMENT, AGRICULTURE AND NATURE:


new research issues

ABSTRACT: This paper analyzes the trajectory of the notion of development as a society-
nature relation. Such trajectory confirms the current tendency of nature - initially placed in
a marginal position within debates on science/techniques and social inclusion/integration - to
play an outstanding role as an element capable of surmounting the developmental and envi-
ronmental crisis of the contemporary society The association between those two crises, casual
at the beginning, has opened new theoretical and empirical frontiers to look over trends in ru-
ral development and agriculture, already present in the endogenous/local and in the competi-
tive/global models. New research issues suggest the investigation into the way the social-
technical networks of production and reproduction of those models have acquired autonomy or
have overlapped each other as cultural validation references of development strategies.

Key-words: rural development, agriculture, nature, environment, sociotechnical networks.

JEL Classification: 013, 031, Z1.

1A autora agradece ao Pesquisador Richard D. Dulley as sugestões a uma versão preliminar deste trabalho. Registrado no CCTC ASP-

04/2005.
2 Bióloga, Doutora em Sociologia, Pesquisadora Científica do Instituto de Economia Agrícola.

Agric. São Paulo, São Paulo, v. 52, n. 1, p. 97-113, jan./jun. 2005


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1 - INTRODUÇÃO diante da evidência que ciclos da vida biológica e


econômicos traçam a história humana segundo dife-
A natureza3 tem sido progressivamente con- rentes escalas tempo-espaciais. A irreversibilidade
siderada na reflexão sobre o desenvolvimento social da intervenção do homem, no que diz respeito ao
e econômico, mesmo que ainda esteja longe de ser domínio, à manipulação e à produção artificial das
incorporada como uma variável pertinente nas es- condições de reprodução da vida biológica, torna-se
tratégias pragmáticas utilizadas. Não é raro o pres- objeto de preocupação universal.
suposto de que políticas de controle ambiental, de Novas questões de pesquisa revelam modos
planejamento territorial e de proteção de áreas natu- através dos quais o argumento da expansão e linea-
rais estejam cumprindo o papel de garantir a repro- ridade do progresso como condição legada da razão
dução das condições materiais de existência da vida iluminista é contestado. Temas que procuram con-
biológica e econômica e que, ainda, em uma posição textualizar a agricultura diante dos processos sociais
menos conservadora, seja possível que a valoração de inovação tecnológica e produção de conhecimen-
da natureza possa ocorrer no momento da apropria- to são fundamentais para o avanço da reflexão tanto
ção dos recursos pela própria lógica econômica sobre a problemática do desenvolvimento quanto
hegemônica (Teoria da Modernização Ecológica) sobre a problemática ambiental. Esses temas estabe-
(SPAARGAREN, 2000). Sintomas de escassez e colapso lecem fortes e profícuos diálogos com a teoria social
dessas condições na sociedade moderna são, entre- de crítica à modernidade em torno dos vínculos que
tanto, realidades cada vez mais presentes, partes de se estabelecem entre sujeito e estrutura que as teorias
diagnósticos do impacto na atual qualidade de vida, voluntaristas, na sua forte oposição às estruturalis-
do impacto na sobrevida no planeta no futuro e do tas, teriam sucumbido. A natureza é um desses vín-
impacto nos circuitos de reprodução econômica. culos, dado que se expressa como cultura naquilo
Pode-se considerar que a noção de desenvol- que ela tem de simbolismo e de materialidade .
vimento caracteriza-se por ser uma relação socieda- As atuais análises sobre a agricultura e desen-
de-natureza, em outras palavras, a direção histórica volvimento rural recebem influências dessas abor-
da ação humana para a melhoria da qualidade e do dagens teóricas que, de certa forma, vêm ao en-
bem-estar das populações, tanto no plano empírico contro de transformações estruturais e dinâmicas
quanto no plano teórico, institui um determinado que já estavam ocorrendo no rural brasileiro desde
“lugar” da natureza, no tempo e no espaço. Ao invés os anos 80s. A noção de "ruralidade" como "modo de
de explicitar processos lineares e consensuados, esta vida constitutivo de um determinado ambiente",
relação revela ser altamente conflitante e complexa, mesmo em realidades de alta integração com o mer-
dado que cria novos e diferenciados (e sempre inde- cado, indica fenômenos de usos múltiplos do espaço
terminados) percursos de legitimação social das geográfico, pluriatividade, demanda por educação e
possíveis alternativas à crise atual do paradigma qualidade de vida, acesso a técnicas, circuitos de
central de desenvolvimento da sociedade industrial, produção e inserção cultural no mundo urbano e re-
des de sociabilidade diversas que envolvem os agen-
3Natureza entendida aqui como "natural", isto é, da ordem da tes econômicos da produção agrícola. A agricultura
materialidade física, química e biológica resultante do tempo familiar, por exemplo, não mais representa uma
geológico. Entretanto, a natureza entendida como portadora de
significados para a sociedade é da ordem da materialidade da
unidade de produção, trabalho e reprodução social
cultura. É esta segunda natureza - "cultural" - que é ao mesmo indissolúvel; ela abre-se às contingências e circuns-
tempo objeto e produto do desenvolvimento, sendo que a tâncias propostas "pela" e "sobre" a globalização e
natureza objeto do desenvolvimento modifica-se constantemen-
te. A natureza cultural artificializa-se cada vez mais e, ao con- modifica-se intensamente.
trário de afastar-se do "natural", apropria-se dele. Para uma Dessa forma, a noção de desenvolvimento
discussão diversa acerca dos conceitos de natureza, ambiente e
recurso ver Dulley (2004). rural surge posteriormente àquela de desenvolvi-

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mento agrícola (condições de produção relativas à além das fronteiras institucionais ou dos campos de
atividade econômica específica) e àquela de desen- pensamento e ação tradicionais, tornando-se objeto
volvimento agrário (condições de produção na soci- de disputa entre agentes econômicos e sociais em
edade inerentes ao processo histórico e estrutural torno de fronteiras móveis entre a certificação ambi-
mais amplo). Por isso, é uma noção que traduz alte- ental, a validação científica e a legitimação social4.
rações políticas, sociais e econômicas influenciadas Para fins deste ensaio, procura-se levantar, no
pelos novos condicionantes que o movimento mais encontro entre a teoria social e alguns elementos da
geral da sociedade gradualmente impõe às popula- realidade empírica, novas questões merecedoras de
ções e às atividades rurais, para além das condições pesquisa que focalizam a forma como se dá, na soci-
únicas da realização da prática econômica. edade contemporânea, o posicionamento da nature-
A análise do desenvolvimento rural, nesse za nos questionamentos sobre a ciência/técnica "no
contexto, supõe considerar as direções teóricas e as desenvolvimento" e sobre as possibilidades de inclu-
orientações pragmáticas adotadas sobre realidades são/integração sociais "pelo desenvolvimento". Ca-
identificáveis nas relações de força (conflitos) que as da um deles indica percursos e opostos significativos
estruturam. Portanto, essa análise é mais permeável de interesses na agricultura, legítimos para se pensar
tanto à (des)construção das meta-narrativas desen- a pertinência do desenvolvimento rural como rela-
volvimentistas quanto à consideração das referências ção sociedade-natureza.
culturais que atravessam o mundo rural, como é o Para tanto, foi analisada, primeiramente, a
caso da problemática ambiental, quando ela se pro- trajetória da noção de desenvolvimento e desenvol-
põe a rediscutir antigos pressupostos e certezas. vimento rural sustentável; em segundo lugar, tratou-
Enquanto relação sociedade-natureza, o de- se de situar a cultura como mediação entre socieda-
senvolvimento rural se estabelece segundo conteú- de e natureza na origem das diferentes propostas de
dos na produção e transmissão de saberes, ações e desenvolvimento rural; em terceiro, analisou-se a
procedimentos sociais, econômicos e políticos que ciência e a técnica como modos de apropriação sim-
representam distintos interesses. Orientações empí- bólica e material da natureza e, em último lugar, o
ricas (ou práticas) e teóricas concorrem para uma modo como o desenvolvimento assim reconstituído
definição legítima tanto da problemática ambiental torna-se central na teoria social contemporânea.
na agricultura quanto de sua pertinência para o de-
senvolvimento. A análise da problemática ambiental
requer, desta forma, uma leitura de seu papel, posi- 2 - DESENVOLVIMENTO RURAL E NATUREZA
ção e sentido na realidade e seu lugar nos temas e
obejtos que tradicionalmente pertencem ao desen- A teoria econômica afirma que o crescimento,
volvimento. Indica, por sua vez, o surgimento de acompanhado de melhoria na qualidade de vida, de-
novas questões competentes, conceitos e pesquisas ve incluir as alterações da composição do produto e a
em um contexto sincrônico de globalização, de gran- alocação de recursos pelos diferentes setores da eco-
des diferenças estruturais entre países e de aprofun- nomia, de forma a melhorar os indicadores de bem-
damento das desigualdades sociais. estar econômico e social (pobreza, desemprego, desi-
Em outras palavras, analisar conceitualmente gualdade, condições de saúde, alimentação, educação
a relação sociedade-natureza na agricultura e nas e moradia) como condição do desenvolvimento.
transformações do meio rural permite avaliar o desa-
juste entre a problemática do desenvolvimento e os 4De forma sucinta, estes processos (distintos em suas epistêmes e
esquemas de pensamento utilizados para sua com- métodos) dizem respeito, respectivamente, aos procedimentos
preensão. A relação sociedade-natureza aponta para de análise de impacto ambiental, aos métodos científicos de
caráter indutivo ou dedutivo e às dinâmicas de reconhecimento
complexidades cognitivas acerca da realidade para e aceitação social (coletiva).

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A "incorporação do natural da natureza" (va- mundo capitalista foram objeto de planos de recupe-
lorada econômica ou esteticamente enquanto tal) ou ração econômica. O capitalismo reformado do pós-
"a produção humana da natureza" (transformada guerra, impulsionado igualmente pela lembrança do
culturamente como nova natureza) propõem repen- sucedido na economia mundial na década de 1930
sar a frágil relação que a noção contemporânea de (crise de expansão do capitalismo), vai definir um
desenvolvimento mantém com a economia, princi- modelo de desenvolvimento tido como eficiente
palmente com as teorias econômicas ahistóricas e frente ao modelo soviético de gestão coletiva das for-
atópicas baseadas no fundamentalismo do mercado. ças produtivas, baseado na idéia do pleno emprego e
Bourdieu (2000, p. 11) conclui que a teoria econômi- do "Welfare State" (Estado do Bem-Estar Social) co-
ca deve romper com o julgamento anti-genético de mo objetivo do crescimento econômico e em uma
uma ciência dita “pura”, isto é, fundada em práticas economia mista e dirigida, com preponderância do
econômicas desenraizadas socialmente. Segundo mercado devidamente regulado, destacando o papel
este autor, a ciência que chamamos de “economia” dos empresários schumpeterianos (SACHS, 2004, p.
repousa sobre uma abstração originária que consiste 4). Entretanto, dada sua ineficiência em integrar
em dissociar uma categoria particular de práticas, ou aqueles países à Europa, o modelo não logrou impe-
uma dimensão particular de toda prática, da ordem dir a inserção de muitos daqueles países periféricos
social na qual toda prática humana está imersa. (como Polônia, Tchecoslováquia e Hungria) na área
O conceito de campo revela-se mais pertinen- de influência soviética.
te do que o de modelo ou teoria pois se define como A abordagem da teoria do crescimento norte-
um conjunto de posições e disposições de agentes ou a classificação dos países, realizada pelas Nações
que concorrem para uma definição legítima de inter- Unidas logo após a guerra, segundo seu nível de
venção na atividade econômica, inclusive, que con- renda por habitante e através da qual um país podia
correm para a configuração mesma do mercado: "A ser definido como “atrasado” em relação a outro
história do processo de diferenciação e autonomização leva “desenvolvido”. Durante o período de 1950-1956
à constituição deste jogo específico, o campo econômico constitui-se assim um campo importante de produ-
como cosmos que obedece às suas próprias leis e que confe- ção acadêmica sobre o subdesenvolvimento, sendo
re por isto mesmo uma validade limitada à autonomização que a Comissão Econômica para a América Latina
radical que a teoria pura opera, constituindo a esfera eco- (CEPAL) direcionou parte desta reflexão para a reali-
nômica como um universo à parte" (BOURDIEU, 2000, p. dade indiana e latino-americana. O central da teoria
16). A noção de desenvolvimento atravessa o campo cepalina, que referenciaria diretamente a teoria da
econômico mas não se limita a ele. Enquanto relação modernização, é que o crescimento econômico de-
sociedade-natureza vai ampliar-se para outras esfe- pende da produtividade física do trabalho, graças à
ras do mundo social. acumulação de capital e ao progresso técnico.
A noção fundadora da idéia de desenvolvi- Apesar das diferenças substanciais entre o
mento tem origem na idéia iluminista de progresso a bloco soviético e o mundo ocidental, o diagnóstico
qual assenta-se, por sua vez, nas idéias de riqueza e sobre a realidade e os desafios a serem enfrentados
evolução no pensamento neoclássico. Ela se refere à pelos países periféricos para alcançar o desenvolvi-
primazia da ciência sobre as atividades produtivas, à mento era bastante semelhante: queimar etapas do
inovação tecnológica, enfim, "à modernização das ins- processo de modernização, através do crescimento
tituições sociais e das formas de vida" (SUNKEL e PAZ, econômico pela via da industrialização e reforma
1980, p.26) como forma de maximizar o potencial agrária. Ambos os modelos partiam da idéia do pla-
produtivo. nejamento e direcionamento, pelo Estado, das traje-
Após a Segunda Guerra Mundial, os proble- tórias supostamente necessárias para que os países
mas estruturais dos países da periferia européia do periféricos repetissem as trajetórias já percorridas

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pelos países centrais para alcançar o pleno desenvol- ximarem de uma abordagem evolucionista e sistêmi-
vimento, cuja condição necessária e única era asse- ca, acabam escapando da possibilidade do contraditó-
gurar o crescimento econômico. rio, principalmente na produção intelectual influenci-
A Teoria da Dependência da década de 1960 ada pelo marxismo ao longo dos anos 70s e 80s, a qual
que explicou o caráter dependente e associado das definiu como objeto de análise preferencial a expan-
sociedades latino-americanas ao capitalismo interna- são do capital no mundo (e na agricultura com obstá-
cional (CARDOSO e FALLETO, 1970), ao se apoiar nas culos específicos a superar).
noções de processo, sistema e estrutura passou a Nos anos 70s, o termo desenvolvimento rural
considerar o subdesenvolvimento como parte do foi criado para contrabalançar os efeitos negativos
processo histórico global do desenvolvimento, am- sobre os países do terceiros mundo, do “modelo de
bos simultâneos e vinculados funcionalmente. A desenvolvimento comunitário” (antecessor das teo-
Teoria da Dependência, variante das teses cepalinas, rias de modernização agrícola), adotado pelas agên-
teve a importância de definir o subdesenvolvimento cias internacionais de desenvolvimento já durante as
no Brasil como uma nova forma de dependência, em décadas de 1950-60, o qual apesar de apresentar-se
relação à economia colonial. como estratégia visando estimular a organização
Desta maneira, a idéia de evolução contínua participativa das comunidades rurais para a melho-
(enfoque do desenvolvimento como crescimento) ou ria da agricultura, saúde, educação e infra-estrutura
descontínua (enfoque do desenvolvimento como nas zonas rurais, objetivou estimular as mudanças
sucessão de etapas) foi sendo descartada (SUNKEL e preconizadas pela Revolução Verde (MOREIRA e
PAZ, 1980). A escassez de capital nas sociedades CARMO, 2004).
latino-americanas inviabilizou a superação do sub- A distinção político-ideológica entre as pro-
desenvolvimento via substituição das importações blemáticas de natureza agrária e agrícola, durante os
como instrumento que viabilizaria a industrializa- anos 1950-1980, facilitou a disseminação dos valores
ção, o que promoveu uma modernização da base modernizadores, visando o aumento da produção e
técnica da agricultura de forma dependente do capi- da produtividade e a adoção de uma racionalidade
tal estrangeiro. que mercantilizou totalmente o modo de vida rural,
A Teoria da Modernização constituiu-se, entre- rompendo com a autonomia que a agricultura goza-
tanto, em um desdobramento da teoria do crescimen- va no passado em relação à indústria. Nos anos 90s,
to econômico cuja tese central orientou-se pelo “efei- entretanto, o retorno do rural como objeto de pes-
to-demonstração”, segundo o qual os países peri- quisa revela as mudanças no perfil da composição
féricos deveriam provocar mudanças na estrutura das atividades ocupacionais dos agricultores e na
social pela difusão de valores, idéias e consumo de separação campo-cidade (urbanização das ativida-
tecnologias dos países de capitalismo avançado. A des ocupacionais, ingresso de profissionais liberais
ciência e a técnica seriam os instrumentos promotores na atividade agrícola, mudanças nos padrões educa-
do crescimento, idéia que instituiu os pacotes tec- cionais e culturais, redes de sociabilidade cotidiana e
nológicos da modernização agrícola e que subordinou institucional no mundo urbano, associativismo co-
historicamente, por condicionantes político-es- mercial) (GRAZIANO DA SILVA, 1999; VEIGA, 2001).
truturais, a política agrária à política agrícola no Bra- Nos anos 70s, o Programa de Desenvolvimento
sil. Rural Integrado procurou operacionalizar a moderni-
Nas ciências sociais, as noções de desenvolvi- zação da base técnica da agricultura, apoiado inicial-
mento e de modernização não foram tradicionalmen- mente em um considerável aparato institucional esta-
te objeto de análise por não terem status teórico e tal (crédito, pesquisa e extensão rural), que, pos-
legitimidade institucional, dado que eram dominan- teriormente, nos anos 80s e 90s seria crescentemente
temente consideradas categorias que, por se apro- incorporado no caso de muitos produtos agrícolas

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estratégicos para consumo nacional ou exportação, quanto no exterior.


pela integração dos capitais agrícola e industrial Do ponto de vista da internalização da pro-
(DELGADO, 1985), iniciando a mudança drástica no blemática ambiental dentre os agentes produtivos no
padrão de intervenção do Estado na agricultura campo, estas mudanças tem uma importância analí-
(BELIK, 1997). Assim é que, a partir dos anos 90s, tica considerável, uma vez que problemas de quali-
políticas inspiradas em enfoque que seriam chamas dade de vida (abastecimento de água potável, doen-
de neoliberais e uma profunda crise de financiamen- ças provocadas por lixo, esgotamento sanitário, alte-
to público geral retiraram o desenvolvimento rural rações microclimáticas) e ameaças em escala planetá-
do debate e da agenda nacionais. ria à vida biológica (buraco na camada de ozônio,
A progressiva internacionalização dos merca- aquecimento global, redução da biodiversidade, ero-
dos e uma intensa mobilidade do capital financeiro são, engenharia genética), que são assuntos de veicu-
ao redor do globo; a crescente (des)territorialização lação principalmente urbana, começam a ser conhe-
dos processos produtivos e sua estruturação em cidos e vivenciados como sendo produzidos tam-
bases transnacionais; o enfraquecimento do Estado- bém pela atividade agrícola. Agências de desenvol-
Nação e o fortalecimento de novos centros de poder vimento locais, nacionais e internacionais, freqüen-
que passam a operar em uma escala global; a rees- temente associadas, pesam na introdução de temas
truturação do mundo do trabalho e da produção, anteriormente estranhos aos agricultores. Somado ao
possibilitada pelas novas tecnologias de geração, esvaziamento populacional do campo, à formação
processamento e transmissão de informações, e, escolar (e universitária) dos filhos e à urbanização
mais recentemente, pelas aplicações da engenharia dos modos de vida e de representação simbólica, os
genética e da nanotecnologia molecular ao processo centros de inovação e disseminação tecnológica aca-
produtivo fazem surgir novas formas de subjetivi- bam encontrando um ambiente propício para que as
dade humana, construídas a partir da vivência em pressões acerca da finalidade e “bom uso” social da
uma “aldeia global” (IANNI, 1996). Os agentes pro- ciência ocorram longe das bases geográficas da pro-
dutivos são levados a se reorientar em um mundo dução. Este “distanciamento” leva a agricultura a se
cujos parâmetros definidos da integração dos países inserir como centro da discussão sobre os dilemas
periféricos não podem mais ser os anteriores. paradigmáticos da ciência, propiciando progressi-
Pode-se afirmar que o rural, ao encerrar defi- vamente que os agricultores interpretem suas rotinas
nitivamente a dicotomia entre as problemáticas a- e atividades produtivas como ambientalmente im-
grária e agrícola, estabelece-se como questão perti- pactantes em um mundo que se globaliza.
nente de investigação. Fronteiras móveis entre con- Nos anos 90s, a noção de desenvolvimento
ceitos, teorias e dimensões, associadas ao desenvol- endógeno veio ao encontro da gradual perda da
vimento rural, retratam a complexidade dos víncu- capacidade de regulação da agricultura pelo Estado
los que agentes econômicos estabelecem, fora do e de crise das instituições baseadas no corporativis-
âmbito exclusivo do mercado nos agronegócios (en- mo estatal e em um modo classista de sua ação de
quanto recorte analítico setorial), entre modos de representação política. As próprias agências interna-
vida, modos de representação simbólica e modos de cionais incorporam esta diretriz, considerada agora
reprodução material. O debate em curso sobre os essencial para a garantia das condições de autono-
transgênicos, por exemplo, projeta os agricultores mia do processo decisório baseado na lógica das
em arenas constituídas, mais ou menos formalmen- necessidades; ação baseada em suas próprias forças
te, para debater as conseqüências da manipulação e potencialidades, baseada em valores de uso, na su-
genética para a saúde humana, para o meio ambien- posta harmonia com a natureza e aberta ao câmbio
te e para a qualidade de vida, a médio e longo prazo, institucional e, desta forma, à intervenção na forma
junto com consumidores do produto, tanto no Brasil de redes sócio-políticas.

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Segundo Hermet (2002, p.21), tratar do tema trial. Como "produção das condições simbólicas de
do desenvolvimento exige considerar a forma pela reprodução material", o desenvolvimento sustentável
qual uma coletividade pode ter acesso a um maior passa a determinar a cultura como elemento media-
bem-estar, extraindo de seu próprio meio, à custa de dor entre sujeito-estrutura. A cultura passa a ter fun-
uma abertura ao exterior, todos os recursos que con- damental importância na filiação coletiva de sensibi-
tém e que permaneciam até então pouco utilizados lidades, esforços e ações na direção da produção de
ou sem exploração. Segundo o autor, o papel da novas materialidades.
cultura tem uma importância central na mobilização Segundo Navarro (2001), foi a "impossibilida-
das capacidades e recursos endógenos de desenvol- de de desenvolvimento" que trouxe novamente à
vimento de uma população ou comunidade na sua tona a reflexão sobre desenvolvimento. À medida
relação com seu entorno. Nas suas palavras, "esses que foi se afastando da condição única (e insuficien-
recursos lhes permitem realizar-se mais, através de uma te) do crescimento econômico, a noção de desenvol-
espécie de auto-revelação e de mobilização, não só de suas vimento vai definir-se também por condições de
potencialidades subjacentes, como também de capacidades qualidade de vida, de vivência democrática e de
inéditas surgidas de uma mutação das ditas potencialida- liberdade. Ao se afastar dos padrões encontrados
des. Esse processo evoca a imagem botânica de uma ger- nas sociedades de capitalismo avançado, vai se defi-
minação endógena normalmente associada a uma hibrida- nir por variáveis subjetivas de difícil mensuração e
ção exógena" (HERMET, 2002). universalização (CHALITA, 2003).
Projetos ambientais com financiamento exter- A contestação ao paradigma da economia
no, normalmente com contrapartida social por parte neoclássica que orientou o desenvolvimento no pós-
do poder público nacional, tornam-se formas de guerra através da tese de que com a combinação de
assegurar a captação de recursos financeiros para as know-how científico e planejamento racional pode-se
populações regionais. Esta localização de experiên- controlar e regular a soma de toda atividade sócio-
cias de desenvolvimento, somadas às estratégias de econômica, de modo que os recursos naturais pos-
descentralização de muitas políticas públicas e de sam manter sua capacidade de regeneração (concep-
criação de novas institucionalidades (incluindo ção do ambiente como um sistema aberto) e garantir
ONGs), redefinem territórios como conjuntos con- infinitamente a riqueza produzida e o bem-estar
gruentes inteligíveis de produção e circulação de individual (MARQUES e COMUNE, 2001), é resultado
saberes e atos comunicativos5. das evidências científicas da crise ambiental relativas
À questão do desenvolvimento endógeno se principalmente às falhas na camada de ozônio, efei-
soma, desta maneira, a idéia de natureza, instaurando tos do aquecimento global e finitude das fontes ener-
a noção de desenvolvimento como relação sociedade- géticas tradicionais, com conseqüências inclusive, ca-
natureza. É nesse âmbito que a cultura passa a ter da vez mais expressivas, na geopolítica mundial.
peso conceitual na noção de desenvolvimento que vai A teoria social contemporânea, frente a estas
passar por um processo de (des)construção conceitual evidências, adota a questão do desenvolvimento
para renovar-se sob o signo da "sustentabilidade". como pertinente, movida pela oposição à tese da
Este processo recebeu também a influência do desen- possibilidade de produção infinita visando a "distri-
cantamento das estruturas político-institucionais e das buição" e não a "redistribuição dos bens na garantia
premissas ideológicas anteriores que defendiam um do bem-estar para toda a população". Neste sentido,
determinado sentido da história da sociedade indus- O’Brien e Penna (1998) afirmam que esta questão
levou a que, conceitualmente, "desenvolvimento"
5Argumento central da teoria de Habermas, J. Théorie de l’agir (planejamento, a governança e a supervisão da não-
communicationnel. Paris: Fayard, 1987 é uma interação social e partilha dos recursos e da desigualdade decorrente,
cultural complexa de produção de significados comuns em uma
situação de caráter comunicativo. isto é, a garantia do bem-estar social, da cidadania) e

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natureza se vinculassem diante da globalização. construídos, redefinindo as possibilidades e, ao


A relação da sociedade com a natureza, na mesmo tempo, os limites na constituição de atores
conformação de um determinado "ambiente" (con- sociais e políticos. Desta forma, o mito desenvolvi-
ceito integrador que se origina da construção social mentista só pode ser contraposto neste movimento
do lugar das referências culturais entre o naturalis- de possibilidades e dificuldades e, neste sentido,
mo do século XIX e a visão da natureza no sistema também define o grau de incerteza da ampliação da
urbano industrial) (VARGAS, 2003), não indica porém questão ambiental para outros segmentos sociais e
a forma como a institucionalização da problemática de sua vinculação com a temática do desenvolvi-
tem possibilitado, objetivamente, o redimensiona- mento econômico e social.
mento do debate sobre crescimento econômico e Segundo Navarro (2001), o termo sustentável
melhoria na qualidade de vida. O que a problemáti- vem apenas acrescer o desenvolvimento rural da
ca ambiental tem colocado, de forma veemente, é variável ambiental. Entretanto, a variável ambiental
que esta questão passa pela arena tecnológica como não tem mesmo valor, peso e medida que aquelas
parte constituinte das dimensões do desenvolvimen- tradicionalmente utilizadas nas noções e definições
to (e não seu processo exclusivo). A tecnologia de- de desenvolvimento: ela define-se nas fronteiras dis-
terminaria, neste sentido, a forma como se explicita a ciplinares da biologia, economia e sociologia. Dessa
relação sociedade-natureza como universo de rela- forma, ainda que a noção de desenvolvimento rural
ções sociais anteriores à criação da própria técnica. sustentável não comporte a complexidade dos prin-
A retomada do tema do desenvolvimento cípios e processos ecológicos inerentes à sustentabi-
enquanto relação sociedade-natureza, porém, não se lidade ambiental, a noção certamente abrange muito
explica apenas pelos desafios colocados pela globali- mais do que variáveis unidimenrsionais equipará-
zação, mas também pelos fatos que constituíram o veis àquelas utilizadas para se definir sustentabili-
chamado ambientalismo e suas transformações in- dades políticas, institucionais ou econômicas (como
ternas, no caso do Brasil. De movimento histórico mecanismos e instrumentos de vivência e decisão
contra-cultural (anos 60s na Europa e EUA), penetra democráticas e de viabilidade econômico-financeira,
no país pela vertente acadêmica da ecologia política por exemplo).
e no movimento social das classes médias urbanas Estas dificuldades de ordem prática e teórica
para se ampliar, nos anos 70s-80s, junto às reivindi- são, ao mesmo tempo, razão da força dos projetos de
cações populares pela qualidade de vida (moradia, desenvolvimento locais e regionais e de fragilidade
saúde). O ambientalismo modifica-se gradativamen- de pensar, paradigmaticamente, o desenvolvimento
te ao dirigir suas críticas ao modelo econômico e como relação sociedade-natureza. A teoria do risco e
tecnológico de apropriação da natureza. Ao fazê-lo, o princípio da precaução têm modificado substanci-
institucionaliza-se como preocupação nas agendas almente as formas de sociabilidade produzidas pela
políticas e econômicas dos países e, atualmente, modernidade, assentadas na idéia de um progresso
propõe temas acerca das possibilidades de serem linear, seguro e buscado dentro do funcionamento
articuladas particularidades sócio-econômicas na- da sociedade democrática. A decisão sobre objetivos,
cionais com imperativos globais de proteção ambi- métodos e formas de controle dos processos de ino-
ental. Ferreira e Ferreira (1995) concluem que, no vação tecnológica é uma das questões mais impor-
caso do Brasil, como as representações e carências tantes do mundo contemporâneo uma vez que pode
relativas à pobreza ocupam o espaço privilegiado trazer conseqüências profundas para as práticas de-
dos processos de politização necessários à constitui- mocráticas, com a mesma força que a expansão do
ção da cidadania, penetrando na retórica oficial ou capitalismo transformou a sociedade do século XVIII.
nos movimentos sociais, a crise ecossistêmica recolo- A particularidade do risco é sua capacidade de mo-
ca sob outras bases a noção de direitos socialmente bilizar sem necessariamente justificar-se com fatos

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Desenvolvimento Rural, Agricultura e Natureza: novas questões de pesquisa 105

inteligíveis. Nas palavras de Latour (2004), a socie- de mitos sobre moralidade, progresso e igualdade e
dade do risco instaura processos de decisão sem a sobre as melhores maneiras de ser estabelecida a rela-
disponibilização de todos os dados necessários para ção sociedade-natureza. Os elementos relativos à
a racionalização daqueles processos: "Como imaginar, relação sociedade-natureza e seus desdobramentos
de fato, uma decisão mais grave do que aquela que consis- em direitos e deveres, diante da crise ambiental, rece-
te, para uma velha nação como a nossa, a mudar de futu- bem diferentes variantes culturais dependendo dos
ro? E, portanto, é bem o dilema do princípio de precaução: variados contextos onde se enraízam. É essa adapta-
para o futuro radioso em direção do qual marchava o pro- ção que dá aos conceitos científicos de progresso e
gresso, puxado pela ciência, apresenta-se um futuro que desenvolvimento seus significados concretos.
obriga a que tomemos cuidado, que sejamos vigilantes, que Portanto, incluída naquela matriz contra-
prestemos atenção. Não mais o progresso da razão, mas cultural, a defesa do desenvolvimento rural susten-
'progressos' sobre os quais deve-se expor 'as razões' atra- tável como reação à globalização, ao incluir a variá-
vés de provas públicas e fatos discutíveis". vel ambiental, adotou inicialmente um caráter for-
temente normativo. Ao estabelecer uma crítica à
razão iluminista e à homogeneização da globaliza-
3 - DESENVOLVIMENTO RURAL, NATUREZA E ção (ALMEIDA e NAVARRO, 1997; PINHEIRO, 2000), a
CULTURA importância dos indivíduos e das diferenciações
culturais das comunidades humanas vai incorporar-
Antes das provas incontestáveis das conse- se no movimento social, nas políticas públicas e na
qüências do impacto futuro da atividade humana na produção acadêmica, seguindo um esforço conjuga-
reprodução da vida biológica em escala planetária, a do em revalorizar a “sociedade rural” e suas ativi-
vertente contra-cultural do ambientalismo na sua dades produtivas, modos de vida e características
dimensão histórica e universal era simultaneamente sócio-culturais, organizações e propostas societárias.
razão de sua força e fragilidade. A inexistência de Esse esforço constitui um movimento de resistência
uma base social objetiva, forjada e instituída por e de invenção criativa do social porque procura
lutas e a interação de muitos corpos sociais, culturais (des)construir pressupostos desenvolvimentistas in-
e políticos de diferentes tipos de sociedade, regimes tegradores que se baseiam na existência de uma ação
políticos e estilos de vida na sua constituição, torna- racional e soberana do Estado-nação.
se, segundo Gonçalves (1993), atributo explicativo O substrato daquela crítica ergue-se atualmen-
tanto de sua riqueza quanto de sua fragilidade, uma te a partir da tese de que a ciência e a técnica não seri-
vez que ao propor um projeto de um outro modo de am mais suficientes para garantir a segurança do
vida focado em uma mudança cultural profunda, futuro da humanidade, pelo contrário, o risco seria o
deixa de incidir sobre problemas urgentes e de or- traço intrínseco da sociedade contemporânea (BECK,
dem prática. 1992). Portanto, ao mesmo tempo em que esta crítica
A procura de uma definição legítima de de- acaba se estabelecendo na associação entre ambiente e
senvolvimento rural sustentável baseia-se em uma desenvolvimento, oposta à lógica de crescimento eco-
compreensão específica dos fenômenos econômicos, nômico do pós-guerra, ela acrescenta novas questões
sociais e políticos dado que a noção prejulga, indican- aos consolidados conceitos de democracia.
do sobre o que deverá atuar para alcançar o desen- O referencial teórico da crítica à modernidade
volvimento. Ao generalizar noções, e não conceitos reflete as grandes mudanças político-institucionais
científicos, associados a este atributo, a noção de de- ocorridas nas duas últimas décadas do século passa-
senvolvimento sustentável corre o risco de defender o do, assimiladas como crise dos paradigmas teóricos
contraditório (e perder sua força histórica), pos- da sociologia clássica. Apesar da crise do Estado (e
sibilitando a transferência, pretendidamente legítima, de sua relação com a sociedade civil), suplantando a

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106 Chalita, M. A. N.

análise polarizada das classes e da gênese e papel definir, desta forma, como uma região de intenso
tradicional das instituições na mudança social, ter conflito, no interior das fronteiras da teoria e da
ocorrido paralelamente à análise da crise ambiental, realidade empírica. Atualmente são mais conhecidas
a teoria social foi gradativamente incorporando esta duas grandes linhas de interpretação do desenvol-
última problemática como objeto de pesquisa (con- vimento rural contemporâneo:
forme as demais sociologias específicas) ou institu- 1) o eixo globalização/regulação/regime de alimen-
indo como objeto de pesquisa justamente os obstácu- tos que prioriza a análise das formas globais de
los não apenas de ordem institucional, como tam- dominação (GOODMAN; SORJ; WILKINSON, 1990); e
bém epistemológicos da incorporação da “natureza“ 2) as noções de localização e diversidade que aten-
na teoria social. tam para as especificidades dos contextos sociais
Essas discordâncias fazem parte do debate (MARSDEN et al., 1990).
sobre a modernidade e os processos de globalização Essas concepções de desenvolvimento rural de-
econômica e cultural (EHLERS, 1999), uma vez que finem distintas relações com a natureza, produzindo
como a mudança ambiental e as bases sociais da concepções de sustentabilidade diferenciadas: 1) no
cidadania encontram-se intimamente entrelaçadas, a primeiro caso, o rural é analisado na perspectiva da
problemática ambiental encontra hoje, na teoria e na reorganização global das atividades econômicas, do
prática sociais, um terreno fértil para sua legitimação progresso tecnológico em geral, da concentração pro-
e expansão. Dessa forma, a natureza não catalisa o dutiva devido ao aumento da produtividade e dimi-
debate proposto pela sociologia contemporânea, mas nuição da importância da terra, afetando indistinta-
ingressa e institui-se com considerável importância mente vários grupos e categorias sociais na agricultu-
histórica uma vez que a crise ambiental converge ra; 2) no segundo caso, o rural é analisado na perspec-
para novas interpretações da sociedade moderna, tiva da organização social e produtiva da agricultura
dentre elas a existência de um disseminado pessi- familiar, produzindo relações sócio-ambientais locais
mismo em relação ao desenvolvimento econômico (reconversões tecnológicas), abrangendo categorias
baseado na oferta infinita de recursos naturais, con- afetas à participação e cidadania.
templar as necessidades do conjunto da população. As novas configurações assumidas pelo espa-
Em síntese, a trajetória de internalização da ço rural, no primeiro caso, apontam que as mudan-
chamada questão ambiental na noção de desenvol- ças ocorridas têm caminhado no sentido de uma
vimento demonstra a ampliação progressiva dos maior segmentação do mercado de consumo, asso-
conteúdos significativos acerca da relação sociedade- ciadas ao refluxo das políticas de apoio à produção
natureza, para além de apenas um conjunto de valo- agrícola, bem como ao surgimento de novas formas
res pós-materialistas capazes de operar na mudança de organização da indústria e do setor de serviços
da qualidade de vida e para além de uma simples (processos de flexibilização e descentralização e de
externalidade negativa nas estratégias das mudanças resposta às exigências de redução de custos em um
sociais (bens e serviços ambientais e funções provi- mercado global cada vez mais competitivo); no se-
das ao homem pelo ambiente não transacionadas gundo caso, as mudanças observadas têm gerado
pelo mercado) (MARQUES e COMUNE, 2001). processos heterogêneos de mercantilização e diversi-
É no encontro da matriz contra-cultural do ficação do espaço rural como processos de inclusão e
ambientalismo histórico com a compreensão particu- integração sociais.
lar dos fenômenos mencionados acima que se pode No século XXI, a noção de desenvolvimento
distinguir a elaboração cultural de diferentes noções rural sustentável pode, por um lado, ser localizada
de ambiente no interior da relação sociedade-natu- no confronto entre a idéia de sustentabilidade ecoló-
reza que atravessam atualmente a reflexão sobre gica e, por outro, na idéia de industrialização susten-
desenvolvimento. Esta elaboração cultural vai se tável da agricultura. No primeiro caso, as estratégias

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Desenvolvimento Rural, Agricultura e Natureza: novas questões de pesquisa 107

de inovação tecnológica passam pela localização (de natureza passa necessariamente pela "cultura enquan-
acordo com as bases ecossistêmicas particulares às to conhecimento e uso prático da natureza" e, desta
atividades produtivas), portanto, não extensíveis a forma, torna-se um conceito polissêmico, dado que as
todas as realidades biofísicas e socioculturais; no formas relativas àquela relação são diversas, porém
segundo caso, as estratégias de inovação tecnológica presentes na complexidade social (e reconhecidas
vão agir na transformação dos ciclos naturais e dos como válidas).
processos biológicos, transformando a trama natural As noções de reestruturação (GIDDENS, 1989)6
da vida no plano dos genomas, portanto, genéricas e o conceito de rede sócio-técnica (LATOUR, 1997)7
nos seus princípios fundadores de relação com a possibilitam analiticamente inserir a dimensão ex-
natureza. Ambos os casos, relançam os debates sobre clusiva do sujeito (referenciado por um determinado
o desenvolvimento rural e, ao romperem barreiras Estado nacional) em um contexto global de elabora-
que separam o mundo social do natural, dentro de ção de estratégias e, portanto, estariam consoantes
distintas realidades e concepções de organização com a reflexão da teoria social contemporânea. A
social da produção e do mercado, vão propor novos valorização do “sujeito” leva a que o desenvolvi-
parâmetros para a reflexão sobre a modernidade na mento rural possa ser considerado um cenário inde-
realidade empírica e na teoria social. terminado no que diz respeito à apropriação social e
Entretanto, diante da ausência de uma "epis- econômica da natureza, isto é, dependente de am-
tême ambiental" (no sentido de um conhecimento plos processos de validação ambiental, social e eco-
científico para além das fronteiras entre as ciências nômica, envolvendo vários segmentos sociais dentro
naturais e as ciências sociais), o conflito entre aquelas e fora da agricultura, inseridos nas articulações dos
concepções politiza sobremaneira a forma como a ambientes locais com os globais.
natureza deve ser supostamente incorporada na Retomando as duas linhas contemporâneas
agenda social e econômica (apesar das evidências da de interpretação do desenvolvimento rural na atua-
crise ambiental e do esgotamento progressivo dos lidade, a crítica ambiental ao desenvolvimento rural,
recursos naturais a curto e médio prazo) e relativiza nas suas expressões reais, se configura tanto na defe-
a forma como a natureza é interpretada e apropriada sa que faz dos modelos endógenos e localizados de
na teoria social. desenvolvimento quanto na defesa que faz dos mo-
Estas dificuldades fazem com que a progres- delos globais de competitividade econômica8. Por-
siva institucionalização da matriz contra-cultural do tanto, reativa-se o debate entre os propósitos e limi-
ambientalismo impere na crítica à sociedade indus- tes do desenvolvimento rural e do desenvolvimento
trial como processo de elaboração da "sustentabili- agrícola. No primeiro caso, o desenvolvimento rural
dade". A explicitação da vinculação entre cultura e
desenvolvimento na teoria social contemporânea é 6Na sociologia da reestruturação, o agenciamento do indivíduo

dada por um determinado arcabouço teórico que (como condição reflexiva) é o que rompe a separação sujeito-
estabelece a crítica ao marxismo estruturalista ao estrutura.

ultrapassar a separação entre infra-estrutura e su- 7Na sociologia da tradução, uma rede é um conjunto de associa-

ções entre “humanos” e ‘não humanos”, que se encontram


perestrutura e suas determinações e a crítica à inte- conectados entre si através de diferentes conformações. Procura
gração sistêmica do funcionalismo dukheiniano. A romper com a dicotomia sociedade e natureza, a partir de uma
cultura pode ser definida como todo modo de vida abordagem simétrica, onde tudo deve ser objeto de explicação,
inclusive a separação entre natureza e cultura. Um fênomeno é
com determinadas propriedades que o caracterizam. entendido através da interação entre atores e não, necessaria-
É neste sentido que a cultura conforma-se às pressões mente, através dos fatos científicos.
materiais segundo um esquema simbólico definido 8Não se pode esquecer que os defensores da biotecnologia e

nanotecnologia molecular atentam para a possibilidade da alta


que não quer dizer que seja único. A noção de desen-
tecnologia poupar a natureza natural ou reproduzi-la indefini-
volvimento rural enquanto relação sociedade- damente em condições artificiais de laboratório.

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108 Chalita, M. A. N.

carece de processos de validação social (capacidade cordo com as características dos formatos tecnológi-
de generalização dos ganhos ambientais, sociais e cos da produção pela ciência da própria técnica. Am-
econômicos que o modelo propõe para contextos, bos os casos constituem referências culturais que
situações e segmentos sociais diferenciados e para instituem modelos paradigmáticos de relação socie-
relações produtivas assentadas em diferenciados dade-natureza (agroecologia e alta tecnologia, por
ecossistemas); no segundo caso, o desenvolvimento exemplo), baseadas em redes sócio-técnicas distintas
agrícola carece de processos de validação econômica que vão permear as redefinições de desenvolvimen-
(viabilidade de integração competitiva do país no to. Os pontos que as aproximam ou afastam em
mercado global, desconcentração de capital e gene- relação à problemática ambiental são temas instigan-
ralização dos benefícios conquistados em toda soci- tes e ainda em aberto para a pesquisa.
edade). A validação ambiental é imperativa nos dois Em síntese, a crise ambiental está colocando
casos, uma vez que ambos procuram apresentar em discussão as bastante estabelecidas linearidades
benefícios para a saúde e para o meio ambiente: entre cultura e razão prática dado que haveria inclu-
normas de biosegurança estão sendo crescentemente sive uma dimensão ética e filosófica a ser observada
demandadas em razão da indeterminação dos reais devido às questões de sobrevivência biológica. As-
impactos no ambiente das matrizes tecnológicas de sim sendo, a rediscussão sobre o desenvolvimento
produção envolvidas e das exigências crescentes dos insere-se não em termos apenas de capacitação social
mercados consumidores por qualidade. e econômica da sociedade resolver seus problemas
O que muda então nas concepções de desen- de ordem material imediata. A problemática ambi-
volvimento rural é o peso atribuído aos seguintes ental acrescenta, portanto, novas questões para a
elementos: conhecimento técnico-científicos produ- reflexão teórica e a realidade empírica: estas ques-
zidos de forma convencional em instituições de pes- tões tendem a emergir por dentro das análises sobre
quisa ou no campo da experiência; articulação ade- desigualdade social no mundo rural (produção fami-
quada para o aproveitamento de sinergias que oti- liar x produção empresarial), porém agregam tam-
mizem potencialidades para atender o exercício da bém novos temas em torno dos procedimentos da
democracia; outras formas de saberes locais incluin- inovação tecnológica como rede de legitimação em
do formas de gestão dos recursos e sua articulação instituições mais amplas do que aquelas de natureza
com interesses sociais; sustentabilidade e desenvol- econômica setorial, encontradas tradicionalmente na
vimento visando não apenas o ponto de vista técni- agricultura, e mais amplas do que aquelas que atu-
co-econômico (a maximização na reprodução dos am, exclusivamente, nos limites das fronteiras na-
recursos naturais), como também do ponto de vista cionais. É o caso do princípio da interveniência, por
da igualdade e justiça social, o que implica compro- exemplo, do Ministério do Meio Ambiente, CNTBio,
misso intrasocietário e intergeracional e participação Ministério da Ciência e Tecnologia, de associações
dos atores sociais envolvidos em um processo além de consumidores e de organizações não-governa-
dos usualmente adotados para prospecção de de- mentais.
mandas.
Se as palavras de Santos (2002) permitem
definir estas propostas, elas se situariam no confron- 4 - DESENVOLVIMENTO RURAL, CIÊNCIA E
to epistemológico entre o paradigma da ciência mo- TÉCNICA
derna (conhecimento-regulação) e o paradigma do
conhecimento (conhecimento-emancipação). O ar- O encaminhamento dos conflitos decorrentes
gumento ambiental de cada uma das concepções de dos processos de validação científica, certificação am-
desenvolvimento rural é distinto uma vez que define biental e legitimação social é complexo porque ambos
relações com seu entorno social e econômico de a- os modelos (endógeno/local e competitivo/global)

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Desenvolvimento Rural, Agricultura e Natureza: novas questões de pesquisa 109

instituem-se na crença da ciência, o que dificulta o va. Assim, a crença não se estabelece como uma
distanciamento necessário à interpretação da relação eficácia mecânica permanente, no sentido de uma
sociedade-natureza pela própria sociedade. lógica conceitual que ordena a-historicamente o
Segundo a análise dos vínculos que se estabe- mundo, indefinidamente.
lecem entre cultura e razão prática, proposta por Sa- Entretanto, a sociedade industrial não conse-
hlins (2003), a razão instrumental pode constituir-se guiu ainda estabelecer uma crítica contundente e
em uma crença que opera da mesma forma que a cul- disseminada sobre suas bases estruturais que possi-
tura nas sociedades primitivas. bilite a ampla legitimação da vinculação entre pro-
Retomando Marx, nas sociedades pré-capita- blemática ambiental e inovação tecnológica. A razão
listas a relação dos trabalhadores (agricultores) com a instrumental é o que gera, nas palavras de Dur-
natureza e com eles próprios não era propriamente kheim (1986), a integração social e, nas palavras de
um produto social. Ela pertencia à ordem da natureza Pécaut (1989), a sociabilidade comunicativa, necessá-
porque não havia divisão social do trabalho. Aquelas ria para o reconhecimento, não apenas dos lugares e
sociedades caracterizavam-se pela imutabilidade, coisas, mas também dos diversos papéis sociais. Em
indivisibilidade entre cultura e razão prática, dada outras palavras, o progresso tecnológico não se deu
pela crença religiosa, logo, havia uma continuidade apenas com base na diferenciação de papéis sociais e
da cultura com a natureza. de interesses isolados; ele se consolidou transver-
A crença na ciência como via para alcançar o salmente na própria estrutura social como crença no
progresso conduz a uma condição de não- progresso e bem-estar contínuos, de forma que sua
historicidade da prática. Como afirma este mesmo legitimidade tornou-se o argumento cultural do
autor, "uma base econômica é um esquema simbólico da campo de sua própria validação científica. Os pro-
atividade prática - e não somente esquema prático da ativi- cessos de validação científica estão ainda muito lon-
dade simbólica. É a realização de uma dada ordem de senti- ge de influenciar as ações de desenvolvimento para
do nas relações e finalidades de produção, nas avaliações de além dos estreitos limites regionais e na velocidade
bens e determinações de recursos (SAHLINS, 2003, p. 44). necessária à superação das proporções que a crise
Nas palavras de Bourdieu (2000), a crença seria um ambiental vem tomando.
esquema generativo das práticas no sentido em O saber científico vai então se tornar objeto de
que ela é uma posição não-reflexiva diante da na- reflexividade quando um determinado grupo social
tureza, definindo a tradição dos lugares e das coi- organiza suas experiências e as comunica, tornando-
sas. Os esquemas simbólicos da crença na ciência as legítimas e lógicas. Passam a ser um produto soci-
que lhe são parte determinam a própria estrutura- al. O processo de legitimação requerido nas duas
ção da atividade econômica na sociedade industri- concepções de desenvolvimento rural (endóge-
al, nos moldes como as sociedades primitivas agi- na/local e competitiva/global), citadas no item ante-
am, instaurando uma totalidade que dá sentido ao rior, advém da indeterminação resultante da falta
mundo material. dos processos de validação das inovações tecnológi-
Na sociedade industrial, o saber científico, os cas respectivas (tanto, de um lado, a agroecologia
instrumentos e as matérias (técnicas) são produtos quanto, de outro, a biotecnologia e a nanotecnologia
do trabalho e da divisão do trabalho. Se a divisão molecular). Esta indeterminação faz lembrar as pa-
social do trabalho faz com que a história da relação lavras de Possas (1993, p.214) no que diz respeito à
sociedade-natureza seja arbitrária, a diversidade dupla tarefa analítica para se pensar as alternativas
cultural, revelada na prática e no pensamento soci- tecnológicas concretas (e de mercado): pensar a par-
ais, se contrapõe à soberania da ciência e tecnológica tir das transformações sobre as trajetórias existentes
como condição única do desenvolvimento, fazendo e a partir das potencialidades científicas e tecnológi-
com que esta história não seja nem linear nem relati- cas que se delineiam para a construção de um novo

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110 Chalita, M. A. N.

paradigma e de novas trajetórias. Entretanto, hoje reprodução da natureza, também não focaliza a de-
considera-se que as incertezas do processo de inova- sestruturação do argumento cultural que reproduz a
ção tecnológica situam-se para além dos limites do crença na modernidade. Estabelece-se como condição
mercado na sua acepção material. alternativa, mas não se choca com a tradição dos luga-
Segundo Hannigan (1995), o fato de as noções res, das coisas e dos papéis sociais porque não disputa
de desenvolvimento rural comportarem uma media- com a alta tecnologia, insere-se em redes de validação
ção cultural entre a sociedade e a natureza torna a científica distintas.
abordagem construtivista (em oposição à realista) Segundo Sahlins (2003), a cultura, ao interpre-
mais adequada para o entendimento de suas dife- tar a natureza, possibilita a “naturalização do ho-
renças e potencialidades. A representação social do mem” e a “humanização da natureza”. A atividade
natural seria aquela capaz de posicionar a sociedade econômica gera uma ação sobre a natureza cujos
em relação ao risco tecnológico e baseia a noção de efeitos acabam modificando o homem, uma vez que
responsabilidade e precaução na evidência que a não há perenidade (sentido imutável) daquela inter-
dimensão tempo-espaço só tem sentido no tempo- pretação instaurando-se um movimento dialético.
espaço da consciência humana, que tem uma dimen- Entretanto, as provas da crise ambiental (obtidas nos
são histórica mais restrita do que o fato ecológico. anos 1990), levaram a que a relação simbólica e sin-
Dessa maneira, a abordagem construtivista possibili- crônica entre o homem e a natureza passe agora por
taria contornar as dificuldades impostas pela ruptu- outro tipo de mediação: a incerteza diante da amea-
ra tempo-espaço dos impactos ambientais na socie- ça à vida biológica em escala planetária. A impossi-
dade contemporânea a partir do momento em que o bilidade de previsão dos fenômenos ambientais,
verdadeiro sentido da democracia em uma socieda- devido ao desencaixe tempo-espaço, não possibilita
de de risco é a garantia do direito universal da hu- mais que este movimento sincrônico entre homem e
manidade a rejeitar o que não se conhece. Ocorre, natureza, mediado pela cultura, traga respostas i-
entretanto, que a ciência ecológica parte do pressu- mediatas ou probabilísticas sobre a temporalidade e
posto que o homem não pode realizar uma interpre- a localização dos impactos nas estruturas materiais
tação cultural da natureza uma vez que ocupa uma dos ciclos econômicos e biológicos. A cultura do
posição a partir de dentro do objeto que pretende risco não mais, no sentido dado por Sahlins (2003),
observar. Neste sentido, a démarche construtivista instaura uma lógica conceitual da estrutura econô-
não poderia delimitar e descrever os riscos realistas mica, mas provoca um deslocamento da relação
da inovação tecnológica. cultura-razão prática como se dava linearmente na
A crença na ciência pela sociedade e a divisão sociedade industrial. O sentido causa-efeito dos
social do trabalho destinaram à ciência processos de impactos ambientais é desestruturado e desestabili-
validação que são próprios e com grande poder de zado, joga o conflito para o campo da política, do
diferenciação e autonomia em relação aos outros pro- jogo democrático em torno do questionamento da
cessos da vida social. A totalização do entendimento ciência e das estratégias de desenvolvimento.
do ser e do devir da humanidade é fragmentado em A crise ambiental e a crise da distribuição dos
verdades apenas relativas, mas que confortam. É frutos do desenvolvimento estão na base da cultura
dessa crença estruturadora da materialidade da socie- da incerteza diante do risco e colocam a ciência e o
dade contemporânea, que se compreende uma certa progresso técnico em uma posição em que devem
complacência e imobilismo diante dos riscos da alta justificar seus métodos, objetivos e resultados. O risco
tecnologia. A agroecologia, por sua vez, ainda que causa, dessa maneira, novos conflitos de afirmação e
seja um processo de inovação tecnológica (ALTIERI, legitimação das práticas científicas: como a ciência só
2002) que instaure novas institucionalidades e assegu- pode ser reflexiva se o processo de produção e inova-
re as condições requeridas ao bem-estar coletivo e à ção tecnológica passa por redes de validação e decisão

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Desenvolvimento Rural, Agricultura e Natureza: novas questões de pesquisa 111

que lhe são totalmente alheias (e imunes aos poderes nir como estabelecendo uma ordem institucional
que lhe são exclusivos), o princípio da precaução determinada, mas não única. Em outras palavras, a
torna-se manifestação principal do senso comum (isto crença na ciência estabelece uma razão prática na
é, manifestação exterior ao campo científico específi- sociedade que faz parte daquela crença, pois se baseia
co). Invariavelmente, esse princípio torna-se um dos na generalização de relações simbólicas autênticas
freios à soberania da razão e da prática científica que porque são constitutivas desta razão. Os processos
deve curvar-se à lógica do determinismo e da finali- afirmativos de um ou de outro processo de inovação
dade social, ameaçando seus procedimentos, proces- tecnológica são distintos: enquanto em um caso trata-
sos e avanços, apesar do percurso histórico e episte- se da reflexividade como estabelecimento radical da
mológico necessário à sua diferenciação daquela do prática democrática; no segundo, trata-se da demar-
senso comum (BACHELARD, 1996; BOURDIEU; CHAM- cação do que é verdadeiramente científico e distante
BOREDON; PASSERON, 1983). Este seria o grande dilema das apropriações ideológicas. São, entretanto, tipos
contemporâneo para se pensar a relação sociedade- ideais.
natureza. Em outras palavras, os processos de validação
Os desdobramentos das posições favoráveis científica, legitimação social e certificação ambiental
ou não favoráveis à demonstração da finalidade nem sempre se somam para dar coerência aos pro-
social da ciência são importantes principalmente no cessos sociais de produção do progresso tecnológico.
que diz respeito às interpretações sobre o próprio Assim, as experiências propostas em torno do de-
conceito de natureza: a validade da reprodução da senvolvimento rural sustentável, que insistem no
"natureza natural" estaria superada porque ela não resultado finalístico da ciência e da técnica, podem
existiria mais, tratando-se apenas de produzir inde- usufruir da certificação ambiental e de um certo grau
finidamente uma "natureza humanizada (ou uma de legitimação social. Entretanto, ao não comparti-
nova natureza)". A razão instrumental como crença lharem de redes sócio-técnicas compostas por agen-
pode, nesse sentido, assimilar o argumento ambien- tes em posições complexas e diversificadas necessá-
tal, nos dois casos, como sendo válido e legítimo, rias para uma mais ampla legitimação social (como
porém diferentemente: no primeiro caso por força da demonstração de respostas em escala, reprodutibili-
tradição (o homem diferencia-se da natureza para dade e custos de formação) restringem-se nas suas
servir-se dela, mas não controlá-la) e no segundo pretendidas disputas, no campo científico, com a alta
caso por força do controle social dos processos ino- tecnologia sobre as possibilidades de formular res-
vativos (o homem deve diferenciar-se na natureza postas à crise ambiental. Os processos de inovação
para controlá-la e recriá-la). científica e geração tecnológica a partir do saber local
É nesse sentido que se compreende como a e do saber científico (agronômico) podem revelar
problemática ambiental pode estar incorporada nas também outras dificuldades de legitimação social.
duas interpretações e usos na natureza: a razão ins- Se as redes sócio-técnicas de validação da prá-
trumental interpreta a natureza como infraestrutura - tica científica, respectivas às duas propostas de de-
organização da vida material do homem através da senvolvimento rural, estruturam-se em contextos
ciência e das conquistas tecnológicas (agroecologia e sociais e institucionais diferenciados e se o argumen-
biotecnologia/nanotecnologia molecular) – de forma to ambiental particular a cada uma delas internali-
diversa, mas ambas na crença no progresso e bem- zou-se respectivamente em distintos segmentos
estar social. A problemática ambiental surge como um sociais da produção e reprodução material, isto não
sistema total de significações em ação no mundo (e quer dizer que as distintas referências culturais da
sobre a natureza), que estabelece também um proces- relação sociedade-natureza invalidem-se mutua-
so que qualifica o sentido da experiência prática como mente.
uma relação naquele sistema e que poderíamos defi- O conceito de rede sócio-técnica (LATOUR,

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112 Chalita, M. A. N.

1997) e as formas como se instituem os processos de zamento cultural da razão iluminista. Em outras
certificação, validação e legitimação, vêm estabelecer palavras, a relação sociedade-natureza ordena tanto
a possibilidade de analisar o campo conflitivo da a razão prática de forma reflexiva (concepção utilita-
produção, disseminação e resultados de diferenciados rista consciente da natureza) quanto a razão prática
processos de inovação tecnológica, em outras pala- de forma não reflexiva (no sentido de que a relação
vras, imprimir-lhes um sentido de viabilidade históri- com a natureza é o próprio fundamento da socieda-
ca. de industrial, portanto inconsciente).
A construção da relação sociedade-natureza
necessária ao avanço dos problemas de desenvolvi-
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS mento e ambientais é um projeto societário que deu
apenas seus primeiros passos no mundo dos fatos e
O processo mais determinante hoje na agricul- das idéias.
tura é a necessidade de estabelecer uma dinâmica
democrática que assegure a produção de benefícios
sociais e econômicos e, ao mesmo tempo, dê perma- LITERATURA CITADA
nentemente justificativas e provas de segurança.
Este processo depende de correlações de for- ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas para uma agri-
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(tradição), indissociada da razão instrumental, im-
possibilite a crítica cultural desta relação ou as dife- CHALITA, M. A. N. Programa RS Rural: contexto, definições
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Recebido em 10/02/2005. Liberado para publicação em 13/05/2005.

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