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Ilíada – Homero

Ftia era um pequeno reino da Tessália, governado por


Peleu. Já não muito jovem, Peleu apaixonou-se por Tétis, deusa
do mar e filha de Nereu, o deus do cabelo e da barba azul que
morava nas profundezas do mar Egeu, com a esposa Dóris e as
suas cinquenta filhas.

A bela Tétis, embora fosse uma das deusas menores,


desdenhava da paixão do mortal e fugia dele, transformando-se
em fogo, água, serpente ou feroz leoa. Mas Peleu não se
deixava intimidar e, finalmente, ajudado pelo deus marinho
Proteu, obrigou-a a que cedesse à sua paixão e a que anuísse em
ser sua noiva. Seria a única deusa a casar-se com um mortal.

Aos esponsais de Peleu e Tétis, realizados no monte


Pélion, na Tessália, compareceram todos os deuses e deusas
trazendo presentes consigo: dois cavalos imortais, uma espada,
uma armadura de ouro e outras oferendas. Éris, a deusa da
discórdia, foi a única que não recebeu convite, pois ficaria
deslocada no ambiente de alegria próprio do casamento.

Porém, no auge da festa, ei-la que surge entre os convivas;


e, furiosa devido ao desprezo a que tinha sido votada, vingou-
se atirando para o meio deles o pomo da discórdia: uma maçã
de ouro com a seguinte inscrição: "Para a mais bela." De
imediato, estalou entre as deusas a disputa pela posse da maçã;
disputa que se prolongou por muito tempo no Olimpo.

Menetes, governador da cidade de Opunte, que ficava


muito próximo de Ftia, tinha um filho chamado Pátroclo. Na
infância, este matara, sem querer, um amigo da mesma idade.
A conselho do pai, fugiu para Ftia, onde foi muito bem recebido
pelo rei Peleu que fez dele o companheiro de seu filho Aquiles.
A partir daí, a amizade estabelecida entre ambos tornou-se tão
sólida que nem por um só dia se separaram. Alguns anos mais
tarde, Pátroclo, à semelhança da maioria dos reis e príncipes da
Grécia, era pretendente à mão de Helena, filha de Tíndaro, rei
de Esparta, famosa em todo mundo pela sua beleza
extraordinária.

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Tíndaro estava muito preocupado com o grande número de


pretendentes e receoso de escolher o marido para a sua filha
entre eles, na medida em que ofenderia os rejeitados, dando
assim azo a inimizades tanto para si como para o eleito. E por
causa disso ia protelando a escolha.

Ulisses, que era o rei de Ítaca e o mais arguto deles todos


eles, apercebeu-se logo da situação; sabendo, como sabia, que
era apenas possuidor daquela pequena ilha e que poucas
probabilidades tinha, portanto, de ser o eleito, procurou Tíndaro
em segredo e sugeriu-lhe que deixasse a escolha nas mãos de
Helena. O rei ficou satisfeito com a proposta de Ulisses, como
prémio pelo bom conselho dado, pôde pedir a mão de Penélope,
sobrinha de Tíndaro, donzela de grande beleza, embora não tão
bela quanto Helena.

Tíndaro convocou os pretendentes e disse:

- Prometei solenemente e jurai pelos deuses do Olimpo que


continuareis amigos daquele que a minha filha escolher para
esposo. E que se, algum dia, ambos ou qualquer um deles for
alvo de ultraje, todos vós, como um só homem, vos unireis em
sua defesa.

Todos prestaram juramento perante Júpiter e as outras


divindades Olimpicas.

A preferência de Helena recaiui em Menelau, irmão de


Agamémnon, que era filho de Atreu, rei de Micenas, e o mais
poderoso dos chefes gregos. Terminadas as festas do
casamento, os pretendentes preteridos regressaram a suas casas
e Ulisses voltou para Ítaca, levando a sua noiva Penélope.
Pouco depois, Tíndaro morreu e Menelau tornou-se o rei de
Esparta.

Entrementes, no monte Olimpo, morada dos deuses,


prosseguia a disputa pela maçã de ouro entre três deusas rivais:
Juno, mulher de Júpiter e rainha de todos os deuses; Minerva,

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Ilíada – Homero

deusa da sabedoria e de todas as arte; e Vénus, deusa do amor


e da beleza.

Quando os deuses chegaram à conclusão que não sabiam


qual delas deviam escolher, determinaram que se designasse
um mortal para proceder à entrega da maçã à deusa que ele
considerasse com sendo a mais bonita. Encargo que foi
confiado a Páris, filho de Príamo, rei de Tróia. Premiou Vénus
que, em troca, lhe prometeu arranjar para esposa a mais linda
mulher do mundo.

A mais bonita de todas era, indiscutivelmente, Helena; mas


quando Páris chegou a Esparta, já ela estava casada há três anos.
Menelau recebeu Páris cordialmente e instalou-o no palácio.
Mas Páris conquistou de tal maneira o amor de Helena que, ao
deixar Esparta para regressar a Tróia o fez acompanhado por
ela.

Ao tomar conhecimento do facto, Menelau recorreu ao


irmão Agamémnon que convocou de imediato os antigos
pretendentes de Helena, recordando-lhes o juramento feito
outrora.

Todos responderam pressurosamente à convocatória, fieis


à palavra dada, fazendo-se acompanhar pelos seus soldados,
navios e destemidos chefes. Entre eles encontrava-se o
invencível Aquiles, filho de Peleu, e seu amigo Pátroclo, o
velho e experiente Nestor, o esperto Ulisses, Diomédes e os
dois Ájax.

Conseguiram reunir um grande exército e armada, com a


finalidade de irem a Tróia resgatar Helena e trazerem-na de
volta a Menelau e vingarem-se assim de Páris, que tão
vergonhosamente quebrara as leis sagradas da hospitalidade,
roubando a esposa daquele que tão bem o acolhera.

Comandados por Agamémnon, os gregos acamparam nas


praias de Tróia, cercando a cidade do rei Príamo. Mas se, por

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Ilíada – Homero

um lado, eles formavam um poderoso exército, por outro os


troianos tinham também muitos aliados e, assim, as
escaramuças e as lutas sucederam-se durante muito tempo na
planície fronteira à cidade. Se os gregos venciam por vezes,
outras tantas eram os troianos os vencedores, sem que nunca se
desse uma vitória decisiva. De vez em quando, os gregos
mandavam alguns navios velejarem ao longo da costa para
saquearem uma ou outra cidade das vizinhanças, a fim de
conseguirem alimentos, pois um exército daquela envergadura
precisava de muita comida; e, ao mesmo tempo,
desencorajavam possíveis aliados que quisessem mandar ajuda
aos troianos.

E assim continuou a guerra com Tróia durante nove anos.

No nono ano da guerra contra Tróia deu-se uma catástrofe


contra os gregos.

Pouco tempo antes, tinham saqueado a cidade de Lirnesso,


situada na parte sudoeste da costa troiana. A maior parte da luta
foi empreendida por Aquiles, o melhor guerreiro grego, filho
de Peleu, rei de Ftia, e pelos mirmidões, soldados do mesmo
rei, que fizera muitos prisioneiros e grandes pilhagens.

Entre os cativos encontrava-se Briseida que, na partilha do


saque, foi escolhida para ser escrava de Aquiles.

Logo a seguir a isto, Tebas, cidade vizinha de Lirnesso, foi


tomada pelos gregos; o maior quinhão das coisas apreendidas
coube, como de costume, a Agamémnon, ilustre rei da Grécia,
irmão de Menelau, que era o maior interessado na guerra. Entre
os prisioneiros, foi escolhida uma bonita donzela chamada
Criseida para ser escrava de Agamémnon, que a levou no seu
navio para o acampamento grego na costa troiana.

Criseida era filha de Cises, sacerdote do templo do deus


Apolo, homem de posses e muito conceituado. Tomado de
grande pesar pela perda da filha, Crises resolveu partir das

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Ilíada – Homero

ruínas de Tebas com grande provisão de ouro e prata, com a


finalidade de a resgatar aos gregos.

Na costa de Tróia, os gregos tinham disposto os seus


navios em três linhas ao longo da praia, entre duas línguas de
areia: os cinquenta navios dos mirmidões, fundeados mais para
ocidente, e os de Ájax, filho do rei Télamon, ancorados no
extremo leste. Entre os navios de Aquiles e os de Ájax, havia
outros dispostos em três filas, pois a extensão plana da costa
não era suficientemente longa de molde a que pudessem ficar
todos numa única fila.

Os primeiros a chegar ancoraram os navios na primeira


fila, junto à fértil planície troiana que se estendia entra a praia
e a cidade de Tróia propriamente dita, banhada pelo rio
Escamandro.

Entre os navios da primeira fila, estavam os quarenta que


o rei Protesilau trouxera de Fílace. Eram comandados por um
irmão de Protosilau, pois este morrera no cumprimento da
profecia que dizia que o primeiro grego a desembarcar em solo
troiano seria também o primeiro a morrer. Fora assassinado
pelo nobre troiano Eneias, quando saltava arrojadamente para a
praia enquanto todos os outros gregos se mantinham cautelosos.

Na segunda fila estavam, entre outros, os quarenta navios


vindos de Lócroda sob o comando de Ájax, homónimo do filho
de Télamon e também seu habitual companheiro de batalha,
mas, e ao contrário deste, de baixa estatura, embora valente,
intrépido e hábil na lança. Os seus, no entanto, lutavam apenas
com arcos e flechas, não usando nem lanças nem escudos.

Na terceira fila, mais perto do mar, estavam os cem navios


do ilustre rei Agamémnon, o maior número jamais visto sob as
ordens de um único comandante e, imediatamente ao lado
destes, os sessenta navios que seu irmão, o rei Menelau, marido
de Helena, trouxera de Esparta. Nesta fila ficavam também os
navios do rico Nestor, rei de Pilo, e as oitenta embarcações do

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Ilíada – Homero

jovem e intrépido rei Diomedes. No centro desta fileira,


encontravam-se os doze navios de Ulisses, rei da pequena e
rochosa ilha de Ítaca situada a ocidente da Grécia. Ulisses,
apesar de governar um pequeno reino, tinha muitos recursos,
era muito persuasivo quando pretendia atingir qualquer
finalidade e era, além disso, muito respeitado devido aos sábios
conselhos que dava.

Entre os altos cascos dos navios, que eram colocados e


suportes de pedra para evitar que apodrecessem, os dois largos
caminhos entre as fileiras eram entrecortados por estreitas
passagens. Junto dos navios da sua frota, cada comandante
grego tinha construído, para si e para os seus homens, cabanas
de madeira e de terra, bem cobertas e forradas com juncos
arrancados da margem do Escamandro; tinham construído
também abrigos para o gado e para os escravos e estábulos para
as mulas e os cavalos.

Exactamente no meio do campo, em frente aos navios de


Ulisses, ficava o local das assembleias, onde os reis e os
príncipes gregos, juntamente com os nobres, se reuniam em
conselho, para julgar ou discutir algo, bem com para oferecer
um sacrifício aos deuses no altar ali armado. Qualquer rei ou
príncipe tinha o direito de convocar a assembleia todos os
outros deviam comparecer. Foi a este lugar que Crises foi
levado para se confrontar com os chefes gregos, cada um
sentado no lugar que lhe competia, tendo para isso sido
convocados por Agamémnon.

Crises colocou-se diante deles, segurando as guirlandas


sagradas do templo e o ceptro do deus Apolo e suplicou aos
gregos que aceitassem o resgate que ele trouxera e lhe
devolvessem a filha:

- Eu vos saúdo, valoroso Agamémnon, e a todos vós,


valorosos guerreiros gregos! Queiram os deuses do Olimpo
conceder-vos a graça de arrasardes a cidade de Príamo e de
voltardes satisfeitos para os vossos lares! Mas suplico-vos,

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Ilíada – Homero

restituí-me a minha filha e aceitai a minha oferta, em atenção e


respeito por Apolo, filho de Júpiter.

Um rumor de aprovação percorreu o acampamento.


Instavam todos com Agamémnon para que entregasses Criseida
e aceitasse o soberbo resgate. Mas o rei, enfurecido, repeliu o
velho com estas palavras insultuosas:

- Retira-te e não voltes mais à minha presença! É inútil


ostentares o ceptro e as insígnias do teu deus. A tua filha ficará
comigo e irá para o meu palácio, onde tecerá para mim. Se
queres conservar a vida não me irrites com insistências.

A estas palavras, o velho acobardou-se e obedeceu. Seguiu


em silêncio a orla do mar tumultuoso. Mas quando se viu
distanciado, orou com fervor ao deus Apolo, filho de Júpiter e
Latona, seu inabalável protector:

- Ouve-me, tu que tens arco de prata! Se alguma vez, a teu


gosto, adornei o templo, ou te proporcionei prazer, queimando
em tua honra touros ou cabras, faz que, com as tuas flechas,
paguem os aqueus as minhas lágrimas!

Do longínquo monte Olimpo, lar dos deuses imortais,


Apolo ouviu-o e, tomado de ira divina, agarrou na sua aljava e
no seu arco de prata e veio tão velozmente através do céu e do
mar que até o próprio Sol ficou encoberto pela sua poderosa
cólera. Colocou-se a uma certa distância do acampamento dos
gregos e começou a alvejá-los com flechas afiadas e pestíferas.
Abateu primeiro mulas, cavalos e cães, mas depois começou a
atingir os homens e rapidamente a praia encheu-se de piras
funerárias que ardiam incessantemente.

Ao longo de nove dias, o acampamento grego foi assolado


pela peste; ao décimo, Aquiles, que era o mais jovem dos reis e
príncipes da Grécia, resolveu convocar os outros chefes para
uma reunião. Estando todos reunidos, ergueu-se e disse:

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Ilíada – Homero

- Meus amigos, não há dúvida de que um dos deuses está


zangado connosco. Se assim não fosses, não teríamos sido
atingidos por uma praga destas. Devemos, sem mais demora,
consultar um sacerdote, ou alguém entendido nestes assuntos,
para nos inteiramos sobre qual dos deuses ofendemos com a
nossa negligência, para que possamos oferecer-lhe sacrifícios.
e aplacar a sua ira. Se não o fizermos, não viveremos o bastante
para conquistar Tróia. Morreremos aqui na praia e não
vingaremos o rapto de Helena.

Quando Aquiles acabou de falar, levantou-se Calcas,


adivinho de grande renome, que sabia do presente, do passado
e do futuro. Cheio de ardor, assim falou:

- Nobre Aquiles, posso revelar-te qual dos deuses que está


descontente connosco e porquê. Mas, antes, jura que me
protegerás, pois temo que um dos nossos, o melhor de todos os
gregos, ficará aborrecido ao ouvir as minhas palavras. Promete-
me ajuda e então falarei.

- Nada tens a temer, Calcas - replicou Aquiles. - Diz-me a


verdade pois, enquanto eu viver, nenhum grego te fará mal.

Fez uma pausa e, olhando na direcção de Agamémnon


retomou a fala:

- Nem mesmo o grande rei Agamémnon, o melhor de todos


os gregos, te poderá causar-te qualquer dano. Sou eu que to
garanto.

- Sendo assim - disse Calcas, confiante -, direi por que


razão a peste nos atingiu. Foi-nos enviada pelo imortal Apolo,
não porque nos tenhamos esquecido de lhe oferecer sacrifícios,
mas sim porque o rei Agamémnon se recusou atender as
súplicas do velho Crises, que é seu sacerdote. Enquanto a
donzela Criseida não for devolvida a seu pai, livremente e sem
resgate, o deus continuará a castigar-nos.

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Ilíada – Homero

Agamémnon indignou-se a ouvir tais palavras e, quando


Calcas se calou, o grande rei permaneceu silencioso, consciente
de que todos o olhavam. Então, ergueu-se e replicou:

- As tuas palavras, Calcas, são sempre desagradáveis.


Nunca te ouvi proferir bons augúrios ou favores dos deuses,
mas advertências e da tua boca fluem com toda a facilidade os
maus presságios. Desta vez, acusas-me de ser responsável pela
ira de Apolo e por esta praga e afirmas que só de mim depende
a solução de tudo.

Recordando que todos os outros reis e príncipes se haviam


mostrado favoráveis a aceitar o resgate e a devolver Criseida ao
pai, continuou estendendo o braço num gesto colérico:

- Pois muito bem, o sacerdote recuperará a sua filha. Eu


não queria deixá-la partir, mas prefiro isso à morte de todos os
gregos. Ulisses preparará um navio para levá-la de regresso a
Tebas.

Um murmúrio de aprovação percorreu os gregos e


Agamémnon olhou em redor, descontente. Sabia-se culpado, a
culpa fora demonstrada perante todos, mas não estava disposto
a ser o único a arcar com as consequências. Ao ver Aquiles
junto do amigo Pátroclo, ambos sorrindo, pois parecia agora
certo que a cólera de Apolo ia agora terminar, Agamémnon
lembrou-se de que fora Aquiles a convocar a assembleia e que
era, portanto, o causador de todo aquele embaraço. E, de súbito,
exclamou:

- Sou o chefe e o maior entre os reis. Não é justo que só eu


fique sem os saques que escolhi. Mandarei Criseida embora
porque devo fazê-lo. mas em troca quero parte da pilhagem
doutro homem - talvez da tua, Aquiles!

Aquiles ergueu-se, com os olhos brilhantes, e respondeu-


lhe:

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Ilíada – Homero

- És o nosso chefe, rei Agamémnon, mas a tua pretensão é


enorme. Nada tenho contra os troianos que nunca roubaram o
gado ou os cavalos de meu pai, nem nunca devastaram os
nossos campos de trigo em Ftia. Entre Tróia e as terras de meu
pai as montanhas são muito altas e o mar é muito extenso.
Trouxe os mirmidões para a batalha contra os troianos por
causa da briga de teu irmão e para que ele pudesse reaver a
esposa pois, como nunca fui pretendente à mão de Helena, por
ser muito jovem na ocasião, nenhum juramento a isso me
obrigava. Lembra-te disto antes de insinuares, de uma maneira
vergonhosa, a partilha do meu quinhão.

Depois de curta pausa, continuou, inflamado:

- E o que é que o meu quinhão comparado com o que


arrebanhaste em todas as cidades que saqueámos? Por eu ter a
reputação de bom guerreiro e os homens de meu pai serem
muito valentes, cabe-me a maior parte da luta. Entretanto,
quando tudo termina, acaso recebo o quinhão que me é devido?
Não. Depois que tu, rei Agamémnon, fazes a tua escolha, só me
cabe uma pequena parte sem valor daquilo que sobrou e tenho
que me contentar com isso. Que proveito tirei da guerra contra
Tróia? Um pouco de ouro e prata e alguns escravos, não muitos,
uma vez que - e ao contrário de ti - aceito sempre resgate pelos
meus prisioneiros. Por todos os deuses, seria melhor eu partir
com os guerreiros de meu pai e voltar a Ftia do que permanecer
menosprezado aqui, e ajudar-te a conseguir mais riqueza.

- Foge, pois, se a tanto te incita o coração! - respondeu


Agamémnon.

- Não serei eu quem te peça que fiques por minha causa.


Outros, mais valorosos, continuarão a meu lado. És-me mais
odioso do que qualquer um dos meus aliados pois respiras lutas,
brigas e discussões. Vai-te, pois. Mas ouve bem esta ameaça:
Visto que Apolo me arrebata Criseida, mandá-la-ei para o seu
país. Eu mesmo, porém, irei à tua tenda e me apoderarei de
Briseida, tua escrava, para que saibas quão mais poderoso sou

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do que tu. Ninguém se atreva a dizer que me é igual, ninguém


se atreva a comparar-se a mim!

Tão irado ficou Aquiles que, por um momento, não pôde


falar nem sequer mover-se. Depois, segurando o punho de prata
da sua espada, teve ímpetos de avançar sobre Agamémnon e
matá-lo, ali, diante dos outros gregos. Mas antes que Pátroclo
tentasse retê-lo. a prudente Minerva, deusa da sabedoria, que a
tudo assistia do monte Olimpo, desceu rapidamente até eles
permanecendo, porém, invisível; e, postando-se atrás de
Aquiles, segurou-o pelos longos cabelos louros. O herói voltou-
se e reconheceu imediatamente a deusa, cujos verdes olhos
refulgiam de maneira terrível. Somente Aquiles viu a aparição.

- Porque vieste, filha de Júpiter? - murmurou. - Para


presenciar, acaso, o ultraje que o átrida Agamémnon me infere?
Fica, pois sabendo que tal insolência lhe vai custar a vida.

- Venho apaziguar a tua cólera, pois que me envia Juno, a


deusa de alvos braços, que a vós ambos estima. Não
desembainhes a espada. Limita-te a injuriá-lo com palavras, o
quanto queiras. O que vou dizer-te há-de cumprir-se: por tal
ultraje ser-te-ão, um dia, oferecidos maravilhosos presentes.
Domina-te e obedece.

- É preciso fazer o que mandas, embora o coração


recalcitre. Quem obedece aos deuses deles obtém protecção.

Assim falou Aquiles e recolocou na bainha a enorme


espada de punho de prata. A deusa voltou ao Olimpo, ao palácio
onde vive Júpiter com as demais divindades.

Ao sumir-se a aparição, Aquiles encrespou de novo o


átrida, dando rédea solta à sua cólera:

- Ébrio, que tens desfaçatez de cão e alma de cervo!... Rei


devorador dos vassalos! Se não fora porque comandas homens
abjectos e cobardes, a tua ofensa de hoje houvera sido a última.
Mas escuta a minha jura: um dia os aqueus sentirão a falta de
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Ilíada – Homero

Aquiles e tu, embora te aflijas, não poderás socorrê-los quando


sucumbirem junto dos barcos de chefe troiano Heitor, assassino
de varões. Hás-de, então, dilacerar o coração invocando os
deuses e pagarás com juros o erro de não teres sabido honrar o
melhor dos gregos.

Pronunciadas estas palavras, lançou ao chão o ceptro


cravejado de ouro e sentou-se. O átrida, por seu turno, estava
também exaltadíssimo. Eis que, rápido e do meio deles, se
ergueu Nestor, rei de Pilo. Era ele o mais velho dos chefes
gregos, sendo os seus conselhos sempre considerados de valor
e as suas palavras sempre ouvidas com repeito.

- Deveis envergonhar-vos de tudo isso! - exclamou. - O rei


Príamo e seus filhos regozijar-se-iam se vos escutassem agora.
Posso repreender-vos por ser bem mais velho que ambos. No
meu tempo conheci guerreiros, meus companheiros de batalha,
muito melhores do que qualquer outro aqui presente. Lutei ao
lado de Piritu o do próprio Teseu, contra os centauros que
habitavam as cavernas da montanha. Destruímos totalmente os
centauros, em luta tão feroz como provavelmente não veremos
outra. Se nem Teseu desprezou os meus conselhos, porque o
faríeis vós? Cessai a disputa, meus amigos. Agamémnon, deixa
Aquiles ficar com a escrava que é dele por direito, pois, como
bem sabes, ele é um esplêndido guerreiro, muito temido pelos
tróianos. Quanto a ti, Aquiles, és ainda muito jovem e deverias
demonstrar mais respeito para com um grande rei, senhor de
um domínio tão grande como talvez nunca venhas a ter.

- Tens razão, bom Nestor - respondeu Agamémnon - mas,


estou cansado da arrogância de Aquiles, do seu escárnio à
minha autoridade e do temperamento intempestivo que
constantemente revela.

Aquiles interrompeu-o:

- Não reconheço mais a tua autoridade, rei Agamémnon.


Se quiseres leva a rapariga contigo. Não o impedirei, pois

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tomei-a com o teu consentimento e o que um homem dá tem o


direito de tirar. Mas advirto-te, no entanto, que se tocares em
qualquer dos bens que trouxe comigo de Ftia, não será o sangue
troiano que manchará de vermelho a minha espada.

Levantou-se subitamente, envolveu-se no seu manto e,


chamado Pátroclo para que o acompanhasse, abandonou a
reunião sem olhar mais para Agamémnon.

Como Agamémnon ordenara, foi preparado um navio para


levar Criseida a Tebas, escoltada por Ulisses. Os gregos
ofereceram sacrifícios a Apolo e este acalmou.

Então Agamémnon, chamando seus arautos, Taltíbio e


Euríbate, disse-lhes:

- Ide até à cabana de Aquiles e trazei de lá a escrava


Briseida. Se ele se opuser, voltai para mo contardes, pois se
assim for irei buscá-la com meus guerreiros e Aquiles logo se
arrependerá da sua insolência e orgulho.

E com essas breves palavras os despachou. Contrariados,


seguiram os dois as dunas do mar estéril e chegaram às barracas
e às naus dos mirmidões. Encontraram Aquiles sentado junto
da sua tenda e da sua negra nau. Temerosos e respeitosos diante
do príncipe, detiveram-se, sem nada dizer nem pedir. Mas
Aquiles compreendeu o que se passava e disse:

- Salve, arautos, mensageiros de Júpiter e dos homens!


Aproximai-vos. Não sois culpados perante mim, mas sim
Agamémnon, que vos manda buscar a jovem Briseida.

Voltou-se para o amigo mais querido e ordenou:

- Vai buscar

Briseida e entrega-lhes, Pátroclo. E vós, arautos, sede


testemunhas, diante dos deuses e dos homens, do meu

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Ilíada – Homero

procedimento, no caso de um dia aquele cruel rei me pedir em


vão que salve o seu exército da ruína total.

Pátroclo fez o que lhe haviam mandado, mas Briseida


agarrou-se a ele chorando, pois quando fora capturada ele
tratara-a com muita gentileza e confortava-a dizendo-lhe que
Aquiles era jovem e ainda não tinha esposa e que, sendo ela
nobre, talvez casasse com ela. Apesar das suas lágrimas, não
havia outra alternativa e ela seguiu com os arautos pela praia,
até chegar aos barcos de Agamémnon, sempre a voltar-se para
olhar para trás.

Então Aquiles caminhou sozinho até à beira do mar, onde


as ondas se quebravam com estrondo e os rochedos
sombreavam as águas. E lá, chorando de raiva, suplicou a Tétis,
sua mãe, que viesse confortá-lo.

- Minha mãe, já que me criaste para uma vida tão curta,


vem em meu auxílio! Júpiter Olímpico deveria, ao menos, dar-
me um pouco de glória. Mas, pelo contrário, fui duramente
ultrajado pelo arrogante filho de Atreu!

Mal acabara de falar quando Tétis, surgida das


profundezas do oceano se encaminhou para ele e, pousando-lhe
a mão no ombro, lhe perguntou:

- Porque choras, meu filho?

Contou-lhe Aquiles o que se passara entre ele e


Agamémnon e, ao terminar, suplicou-lhe:

- Agora, minha mãe, vinga a honra do teu filho ultrajado!


Vai ao Olimpo e Júpiter fará o que lhe pedires, pois que o
auxiliaste uma vez ao desfazer a conspiração que contra ele se
tramava. Pede-lhe, então, que ajude os troianos para que
destrocem e expulsem os gregos, obrigando-os a que se retirem
para os seus navios e que se envergonhem do seu rei e que
Agamémnon pague bem caro o crime de haver ofendido o mais
valoroso dos guerreiros!
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Ilíada – Homero

Tétis respondeu-lhe, entre lágrimas:

- Pobre filho meu! Para que te fiz nascer se havias de ter


uma vida tão curta e infeliz? Sim, irei até aos píncaros nevados
do Olimpo e apresentarei a Júpiter a tua queixa. Entretanto, não
saias daqui. Mostra-te sempre irado para com os gregos, mas
não tomes parte nos combates. Júpiter foi aos festejos
oferecidos pelos etíopes, mas estará de volta dentro de doze
dias. E então, ajoelhar-me-ei a seus pés e estou certa de que
conseguirei o que desejas.

Com essas palavras se foi, deixando o filho a remoer a sua


mágoa contra Agamémnon e a sua saudade da linda Briseida.

Enquanto isso, Ulisses já havia chegado à cidade de Crisa


e entregava ao sacerdote de Apolo a filha que lhe fora tirada. O
ancião estremeceu de alegria ao receber a jovem e, ajoelhando-
se, pediu a Apolo que fizesse cessar a peste que dizimava os
exércitos gregos.

Satisfeito, Ulisses reconduziu a embarcação de volta ao


acampamento.

Aquiles continuava fechado na sua tenda e não se


apresentou nunca mais nas assembleias e nos combates. E
embora a vontade de lutar o perseguisse constantemente, pois
era belicoso por natureza, ali se deixava estar, consumindo-se
de cólera e tristeza.

Doze dias se haviam passado quando Júpiter, seguido do


seu cortejo, regressou às celestes moradas do Olimpo. Tétis,
que aguardava aquela ocasião, surgiu das brumas do mar e
correu à presença do poderoso deus. Ajoelhou-se a seus pés e,
afagando-lhe o queixo com a mão, fez-lhe esta súplica.

- Júpiter Olímpico, em recompensa pelos serviços que um


dia te prestei, peço-te agora que vingues o meu filho. Faz com
que os troianos prevaleçam na guerra até que Agamémnon

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Ilíada – Homero

devolva a Aquiles a donzela roubada e que todos os gregos lhe


prestem as devidas honras.

Não respondeu ele de imediato, mas Tétis continuou


insistindo, até que ouviu do poderoso deus as seguintes
palavras:

- O que receio é que tenhas vindo trazer discórdia ao


Olimpo. Se Juno, minha esposa, se aperceber da tua presença,
encher-se-á de ciúmes e excitará a minha ira. Já vive ela a dizer
que ajo em favor dos troianos. Peço-te portanto que te retires
imediatamente e que ela não saiba que aqui estiveste. Farei
depois o que desejas e, como prova, acenarei a minha venerável
cabeça, que é é mais alto penhor que, da minha palavra,
costumo dar aos imortais.

Dizendo isto, o grande deus franziu as negras sobrancelhas


e inclinou a cabeça. E todo o Olimpo estremeceu.

Tétis regressou à sua morada e o pai dos deuses


encaminhou-se para os seus aposentos. Lá encontrou Juno que,
sabedora da entrevista, lhe dirigiu esta queixa:

-Qual dos imortais veio entender-se contigo? Vives


afastado de mim, tramando coisas que me não contas.

Júpiter respondeu-lhe:

- Juno, não queiras conhecer todos os meus pensamentos!


Das coisas que decido com outros deuses, és tu a primeira a
saber. Mas quanto ao que premedito longe deles, não deves
indagar nem investigar.

Mas Juno ainda mais enfurecida, retrucou-lhe:

- Que estás a dizer? Se queres falar, fala e se, não queres,


fica em silêncio. Pouco me importa o que penses ou deixes de
pensar! O que me admira é que te deixes seduzir por Tétis, a
filha de Nereu. Bem que a vi ajoelhada diante de ti fazendo
16
Ilíada – Homero

súplicas a favor de seu filho. Bom será que ela não te tenha
convencido a abandonar os gregos à sua sorte.

O deus que comanda as nuvens respondeu-lhe:

Ó mulher insensata, que vives a desconfiar de mim! Por


causa das tuas desconfianças, cada vez estás mais afastada do
meu coração. Se as tuas suspeitas forem fundadas, pior para ti.
Cala-te e não me importunes, pois, de contrário, nem todos os
deuses do Olimpo te poderão salvar da minha cólera!

Amedrontou-se a venerável Juno ao ouvir tais ameaças,


baixou os olhos e quedou-se silenciosa. Nessa altura já os
ânimos estavam exaltados no Olimpo. Mas Vulcano, o filho da
deusa, procurou apaziguar os espíritos celestiais dizendo:

- Imploro-vos que tenhais calma. Se vos puserdes a discutir


como mortais, os nossos males tornar-se-ão insuportáveis e os
nossos festins perderão a graça e o sabor. Peço-te minha mãe,
que vás abrandar Júpiter, meu pai, para que não se enfureça e
não nos derrube a todos dos nossos tronos, pois ninguém o
supera em poderio.

Ao proferir estas palavras, Vulcano entregou-lhe uma


grande taça e acrescentou:

- Tem paciência, minha mãe, e faz da fraqueza força pois,


se assim não for, nem eu te poderei valer. Já uma vez, ao querer-
te livrar da cólera de meu pai, ele me agarrou por um pé e me
atirou para fora do Olimpo. Levei um dia inteiro a cair e fui
parar a Lenos, mais morto do que vivo

Juno sorriu das graças do filho e segurou a taça que ele lhe
oferecia. Vulcano dirigiu-se para o barril em que se encontrava
o saboroso néctar e distribui-o pelos outros deuses. E todos se
riram prolongadamente, ao vê-lo agitar-se de um lado para o
outro, atarefadíssimo. o banquete durou até ao pôr do Sol e os
imortais saciaram-se regiamente. Enquanto comiam, Apolo e as
musas entoavam cantos divinos ao som da lira.
17
Ilíada – Homero

Finda a festa, retiraram-se os deuses para os seu aposentos.


Só o pai dos deuses não conseguia dormir. Em sua mente,
procurava maneira de atender ao pedido de Tétis. Depois de
muito meditar, decidiu enviar a Agamémnon um sonho sedutor.
Chamou o sonho à sua presença e disse-lhe:

- Sonho falaz e enganador, vai à tenda de Agamémnon e


transmite-lhe estas palavras mentirosas: "Vencerás facilmente
os troianos se os atacares imediatamente, pois assim o
resolveram os imortais do Olimpo, por insinuação de Juno".

Assim falou Júpiter e o sonho partiu. E para melhor


enganar Agamémnon, tomou a forma do velho Nestor e foi
postar-se à cabeceira do chefe grego. Repetiu-lhe, uma por
uma, as palavras do senhor do Olimpo e retirou-se, depois de
se ter certificado que o rei tinha acreditado em tudo o que lhe
sugerira.

Ao levantar-se no dia seguinte, Agamémnon convocou a


assembleia dos chefes e contou-lhes o sonho que tivera. Todos
foram unânimes em aconselhá-lo que atacasse.

Todo o exército grego se pôs em marcha. Homens com


suas armas e armaduras brilhando ao Sol, cavalos relinchando
estridentemente atrelados às bigas, como grande onda vinda da
praia, espalhavam-se em direcção à planície, deixando para trás
apenas os escravos e os prisioneiros e alguns poucos doentes ou
feridos. Porém, no extremo oeste ficaram todos aqueles que
tinham vindo de Ftia com Aquiles. Cada chefe grego ía à frente
dos seus guerreiros, montado na sua biga e levando ao lado um
escravo para conduzir os cavalos. Os melhores guerreiros
cavalgavam junto do chefe. Na primeira fila iam os nobres nas
suas bigas, acompanhados também dos seus seguidores. E, por
último, iam os homens que lutavam a pé. E foi assim que o
exército grego avançou através da planície e somente Aquiles,
Pátroclo e os mirmidões permaneceram quietos pois, desde a
briga com Agamémnon, Aquiles nunca mais lutara, embora se
irritasse por ficar inactivo. Os homens sob seu comando

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Ilíada – Homero

permaneceram nos navios, consertando e afiando as suas


vestimentas e armas, jogando dados e outros jogos, praticando
a arte de lutar ou treinando cães de caça, bebendo e procurando
alimento para os seus cavalos nas margens do rio Escamandro
e vendo passar o tempo lentamente.

Os gregos avançavam qual avassalador incêndio. O chão


tremia sob o tropel dos cavalos que iam invadindo a planície.

Mas Júpiter, fiel à promessa que fizera a Tétis, enviou Íris


aos troianos para os prevenir da aproximação dos gregos.
Estavam eles reunidos em assembleia no palácio do rei Príamo.
Insinuou-se a deusa entre eles e, tomando a forma de um dos
filhos de Príamo, que se encontrava nas muralhas de vigia,
disse-lhes:

- Preparai-vos, troianos, que os gregos aproximam-se e


está prestes a terrível batalha. Vamos, Heitor! Se te atrasas, tudo
estará perdido! Reúne os teus guerreiros e corre a combater!

Suspendeu-se, então, a assembleia e todos correram às


armas. Entre os chefes troianos destacavam-se, para além de
Heitor, que era de todos o mais valente, Eneias, filho de
Anquises, Arquóloco e Acamas, os dois filhos de Antenos,
Pandaro, o bravo guerreiro a quem o próprio Apolo presenteara
com o seu arco, o admirável Glauco e muitos outros que seria
difícil de enumerar, pois, tanto do lado dos gregos como dos
troianos, havia muitos chefes destemidos e fortes.

Os dois exércitos defrontaram-se por alguns instantes,


atentos às vozes de comando e prontos para a arremetida.

Mas enquanto ambos os exércitos aguardavam o sinal de


ataque, destacou-se das fileiras troianas uma única biga e dela
desceu um jovem troiano notável pela sua beleza, revestido de
rica e brilhante armadura e com uma pele de leopardo pelos
ombros. Era Páris, filho de Príamo e Hécuba, o mais odiado dos

19
Ilíada – Homero

príncipes troianos por ter roubado Helena a seu marido


Menelau.

Páris, irresponsável e despreocupado, não estava


habituado a expor-se ao perigo nos campos de batalha. Mas,
nesse dia, intrepidamente e sem pensar nas consequências,
procurou o perigo. Brandindo duas lanças, desafiou o mais
bravo dos gregos para se bater com ele.

Ao vê-lo, Menelau pensou com satisfação que chegara


finalmente o momento de se vingar do homem que lhe havia
roubado a esposa e desceu de imediato do seu carro,
apresentando-se para aceitar o desafio. Era, de facto, o maior
guerreiro grego, valente e bom camarada de luta, sempre
disposto a ajudar os outros; e era, sobretudo, muito popular.

Mas quando Páris o viu, violento e ameaçador, de


fisionomia tão carrancuda, arrependeu-se do seu próprio
atrevimento e retornou de imediato às fileiras troianas como se
quisesse evitar o encontro com o marido de Helena.

Mau grado ser filho do rei, os troianos desaprovaram a sua


atitude e o seu irmão Heitor dirigiu-se-lhe com estas palavras
iradas:

- Páris, infeliz Páris, homem cobarde e efeminado! Por tua


causa fomos arrastados para esta guerra contra os poderosos
gregos e tu ainda nos cobres de vergonha, fugindo na hora do
combate! Não ouves o gargalhar dos valorosos gregos que, a
julgar pela tua figura, supunham que tínhamos um excelso
campeão? Mas o nosso herói não passa de um pusilânime,
incapaz de arrostar com as consequências dos seus actos!

E o belo Páris respondeu assim:

- As tuas palavras são justas e mereço-as. Mas o teu


coração é duro como a ponta de uma lança e não te dobras
diante de coisa alguma. Não deves repreender-me porque gozo
da protecção de Vénus, deusa do amor. Se ela me deu a bela
20
Ilíada – Homero

Helena, porque haveria eu de desprezá-la? Vamos, porém, ao


que importa. Se achas que devo brigar e combater, manda que
todos se sentem, de um lado os gregos e do outro os troianos.
Depois, eu e Menelau nos bateremos por Helena e o vencedor
ficará com ela e com todos os seus tesouros. Quanto aos outros,
farão um pacto de amizade e voltarão para casa com os seus
exércitos.

Heitor, surpreso e satisfeito com a resposta do irmão,


ordenou aos troianos que cessassem a luta até que ele falasse
com os gregos.

Então, dirigiu-se a ambos os lados, dizendo:

- Escutai as palavras de Páris, filho do rei Príamo, cujas


acções provocaram a guerra entre os nossos dois povos. Ele
lutará sozinho contra o rei Menelau, pela posse de Helena, se
cada homem aqui presente jurar respeitar o resultado da
contenda e o considerar também resultado da guerra.

Quando acabou, todos permaneceram calados durante uns


momentos. Então, Menelau, olhando para Agamémnon e
percebendo que o seu olhar era de aprovação, adiantou-se e
disse:

- Concordo com as condições, mas quero que o rei Príamo


venha da cidade e faça juramento em nome de todos os troianos
e dos seus aliados, acatando também esta decisão.

- Tantos gregos como troianos se alegraram com a


aproximação do fim da guerra, tiraram os capacetes,
colocaram-nos a seu lado e sentaram-se no chão para esperar,
enquanto Heitor enviava apressadamente dois arautos à cidade
a fim de convocarem Príamo.

Enquanto isso, a deusa Íris, tomando as formas de uma das


filhas de Príamo, foi aos aposentos da bela Helena e sussurrou-
lhe que fosse até à amurada observar o combate. Helena estava
entretida a bordar um magnífico manto real, no qual se achavam
21
Ilíada – Homero

representados soldados gregos e troianos e cenas de luta entre


os dois exércitos. Levantou-se, então, e saiu da sala em pranto
por se ter recordado do seu primeiro marido e da pátria que
abandonara. Chegou, muito rapidamente, às portas Ceias, onde
se encontravam reunidos os anciãos de Tróia que, devido à
idade, já não podiam combater.

Ao verem Helena aproximar-se, comentaram entre si em


voz baixa:

- Não é sem motivo que gregos e troianos enfrentam tantos


combates! Perante tal mulher, esses males parecem pequenos.
Nunca se viu beleza tão perfeita. Nem os deuses imortais se
podem gabar de possuir rosto tão formoso. Por isso, a sua
presença representa um grande perigo. É preciso mandá-la
embora o quanto antes, pois aqui seria um flagelo para nós e
perdição para os nossos filhos.

Príamo, que também vira Helena passar, chamou-a:

- Vem cá, minha filha. Senta-te a meu lado, se queres ver


o teu primeiro marido, os teus parentes e amigos. Sei que não
és culpada do que aconteceu, pois foram os deuses que
provocaram esta guerra tremenda. Diz-me, quem é aquele
guerreio imponente que mais parece um rei?

- Ah! - suspirou Helena, desfazendo-se em pranto. - Por


que razão não me levou a morte antes de eu vir para aqui trazida
por teu filho, abandonando meu lar, minha filhinha querida,
meus parentes e amigos? Aquele homem é o valente
Agamémnon, rei de todos os reis da Grécia e meu cunhado.

- E aquele outro, quem é? - perguntou Príamo, reparando


num guerreiro de ombros largos.

- É o astuto Ulisses, filho de Laertes, o homem mais sábio


e o melhor conselheiro dos gregos.

22
Ilíada – Homero

E assim prosseguiu Príamo, informando-se sobre os


guerreiros gregos, quando se aproximou um arauto que lhe
disse:

- Levantai-vos, ó majestade, pois os troianos e os gregos


reclamam a vossa presença para afirmar o pacto de amizade.
Páris e Menelau vão bater-se por essa mulher. O vencedor
ficará com ela e as suas riquezas. Quanto aos outros, após
firmar amizade com juramentos e sacrifícios, voltarão para as
suas terras..

Pedindo ao sábio Antenor, seu conselheiro, que o


acompanhasse, Príamo dirigiu-se rapidamente ao local onde os
dois exércitos o esperavam, seguido de mensageiros que
transportavam vinho e oferendas para um sacrifício.

Agamémnon levantou-se de imediato e, chamando


Ulisses, avançaram ao encontro do rei troiano, enquanto os
mensageiros traziam as oferendas. Os dois reis, depois de
cumprirem os devidos rituais sagrados, fizeram o juramento de
aceitar o resultado do combate individual como o fim da guerra.

Gregos e troianos animaram-se para assistir à luta, mas


Príamo disse que voltaria para a cidade, pois não podia ficar a
ver o seu próprio filho a lutar. E regressou a Tróia
acompanhado por Antenor, triste por causa do filho, apesar de
ser culpado e desprezível e de saber que o imortal Júpiter daria
a vitória a quem a merecesse.

Heitor e Ulisses tiraram à sorte para ver qual dos dois, Páris
ou Menelau, seria o primeiro a arremessar a sua lança contra o
outro, e a sorte decidiu que o primeiro seria Páris.

Os dois contendores armaram-se, tendo Páris posto a


couraça do seu irmão Licáon, por ser mais forte do que a sua.
Colocou-se cada um no local que lhe competia e Páris foi o
primeiro a atirar a lança que atingiu o escudo de Menelau, mas
ficou com a ponta dobrada. O escudo era muito resistente pois

23
Ilíada – Homero

era feito de camadas de couro forte, com uma superfície


exterior de bronze. Chegou a vez de Menelau e este, antes de
arremessar a lança, lembrou-se de implorar a protecção de
Júpiter.

- Deus imortal, pai dos deuses e dos homens, protector do


convidado e do hospedeiro, permiti que eu possa agora vingar-
me de Páris que tanto mal me causou, a fim de que a minha
vingança seja lembrada durante muitos anos e os homens se
abstenham de praticar más acções na casa de um hospedeiro
cortês.

Arremessou de seguida a sua lança com tamanha violência


que esta passou através do escudo e da borda da couraça de
Páris, chegando mesmo a rasgar-lhe a túnica de linho, mas sem
o ferir. Menelau puxou imediatamente da espada, correu em
direcção do seu adversário e atingiu-o no capacete com um
poderoso golpe. Mas a parte posterior do capacete, onde estava
presa a crista, era de um bronze tão forte que a espada se
quebrou em quatro pedaços que tombaram no chão. Mas
Menelau não se atemorizou e, mesmo desarmado, atirou-se a
Páris e, agarrando-o pela crista do elmo, derrubou-o e começou
a arrastá-lo para as fileiras gregas. Páris, quase sufocado pela
tira de couro que lhe atava o capacete apertado no queixo,
estava indefeso; repentinamente, a tira partiu-se e o elmo
soltou-se, ficando nas mãos de Menelau. Este atirou-o para
longe e precipitou-se de novo sobre Páris, pretendendo agarrá-
lo pelo cabelo e segurá-lo firmemente até poder apanhar a sua
lança do chão.

Mas a risonha Vénus, deusa do amor e da beleza, que tinha


sido eleita por Páris como a mais bela das deusas imortais, não
iria permitir que ele fosse assassinado e, envolvendo-o numa
nuvem, levou-o de volta a casa. E lá o deixou, surpreendido,
mas também agradecido por ter escapado com vida.

Menelau assistiu perplexo ao desaparecimento de Páris e,


pegando na lança, procurou-o furiosamente pelas fileiras

24
Ilíada – Homero

troianas, calculando que talvez estivesse escondido por algum


companheiro. Mas, em boa verdade, poucos troianos o teriam
feito, pois Páris era alvo de grande ódio devido à imensa
amargura que trouxera a Tróia.

Helena assistira à luta da torre de observação e vira Páris


completamente vencido por Menelau. Por isso, quando Vénus
lhe veio dizer que aquele a esperava em casa, mal pôde crer nos
seus ouvidos.

Apressou-se para ir ao seu encontro mas, enquanto seguia,


silenciosa e pensativa, depois de ter revisto Menelau, seu
generoso e fiel marido, intrépido e digno de respeito, a quem
ela amara e escolhera entre tantos outro pretendentes, lamentou
amargamente tudo o que fizera.

Encontrou Páris no seu próprio quarto, sorrindo satisfeito,


mais parecendo ter chegado de uma festa do que de um campo
de batalha.

Sentou-se sem olhar para ele e disse:

- Hoje fugiste de um homem que te é superior. Quantas


vezes te gabaste perante mim de tudo aquilo que farias se te
encontrasses alguma vez com Menelau num campo de luta!
Tendo escapado ileso hoje das suas mãos, ousarás desafiá-lo de
novo? Se o fizeres, serás um tolo!

Mas ele não se impressionou com as ásperas palavras dela


e respondeu-lhe:

- Não me culpes de nada, pois os deuses estavam hoje do


lado de Menelau. Noutra ocasião qualquer, talvez, quem sabe,
me concedam a vitória. Sê gentil, Helena, e torna a sorrir para
mim, pois continuo a amar-te. Em verdade, penso que gosto
ainda mais de ti agora do que no dia em que tão voluntariamente
abandonas a casa de Menelau.

25
Ilíada – Homero

Menelau, tendo procurado por toda a planície sem


encontrar o menor vestígio de Páris, voltou para junto de seu
irmão Agamémnon que lhe fez ver que, quer o pérfido Páris se
estivesse escondido, quer tivesse sido oculto por algum deus,
quer estivesse morto ou vivo, não faria diferença alguma. O
importante era que, perante todos, ele o derrotara. Em vista
disso, os troianos deveriam cumprir o juramento feito pelo rei
Príamo de devolver Helena, a fim de que a guerra terminasse.

E isso teria de facto sido feito, pois tanto os troianos como


os gregos estavam já esgotados com aquela luta de tantos anos.
Mas Júpiter, que do Olimpo tudo observava, lembrou-se da
promessa feita a Tétis e, chamando a sua filha Minerva,
ordenou-lhe que descesse à terra e induzisse um dos troianos a
violar a trégua.

Minerva, rude beleza de olhos faiscantes, prontificou-se


rapidamente a obedecer às ordens do pai. E, pegando nos seu
escudo ornado de borlas e no seu elmo de ouro indestrutível,
partiu imediatamente do Olimpo, brilhando qual estrela. Ia
muito satisfeita em cumprir as ordens de Júpiter pois, desde que
Páris dera a maçã de ouro à sua rival Vénus, ela ficara com má
opinião sobre Tróia e não desejava que a guerra terminasse sem
que a ofensa de Páris fosse castigada e sem que a cidade do rei
Príamo ficasse reduzida a ruínas.

Na planície fronteira à cidade, disfarçada de nobre troiano,


aproximou-se de Pandaro, um dos aliados dos troianos que
viera de Zeleia, cidade situada à beira dos abruptos penhascos
do monte Ida, e dirigiu-se a ele com palavras sedutoras.

- Valente Pandaro - disse ela -, a ti que és tão nobre, não te


parece uma vergonha que o campeão dos troianos tenha sido
derrotado por Menelau? Deverá um grego continuar a viver
para se vangloriar um dos filhos do grande rei Príamo? Não te
parece que seria uma boa acção, que traria muita honra entre os
troianos, se uma flecha do teu arco derrubasse Menelau? Nós,
troianos, sabemos que és tão hábil e infalível no manuseamento

26
Ilíada – Homero

do arco quanto o príncipe Páris. Vem pois, meu amigo, ver


como Menelau está bem ao alcance de uma flecha. Não hesites.
Mata Menelau e não somente os troianos te respeitarão, como
também Páris te dará ricos presentes, pois ficará grato ao
homem ousado e hábil que o livrará para sempre do marido da
rainha Helena.

Lisonjeado pelos louvores e seduzido pelas palavras


astutas, sem ponderar mais, Pandaro agarrou no seu arco,
colocou-lhe uma flecha com ponta de ferro e, antes que
qualquer pessoa o conseguisse impedir, alvejou Menelau ao
mesmo tempo que erguia uma prece a Apolo.

A flecha disparou, mas Minerva foi mais veloz e,


colocando-se diante de Menelau, se bem que invisível para toda
a gente, desviou-a do seu alvo. Apesar disso, a seta atravessou
o cinturão de couro e atingiu a pele do grego, tendo no entanto
a fivela de ouro impedido a penetração total; só a ponta de ferro
conseguiu fazê-lo e manchou de sangue a túnica de Menelau.

Agamémnon, que se encontrava ao lado do irmão,


exclamou horrorizado:

- Menelau, meu bom irmão, fui eu que te conduzi para a


morte, pois confiei temerariamente na boa fé dos nossos
inimigos. Dirão todos que causei a morte de meu irmão com a
minha ingenuidade. E quando a guerra terminar e os gregos
embarcarem de regresso, ficarás sozinho em solo estrangeiro
para seres profanado pelos troianos que, saltando cheios de
vaidade em cima da tua sepultura, se vangloriarão de que vim a
Tróia em vão, só para aqui te deixar.

Mas Menelau, pouco impressionado com o ferimento,


respondeu-lhe alegremente:

- Não passa de um arranhão. Repara como as farpas da


flecha ficaram presas na fivela do cinturão. Acalma-te meu bom

27
Ilíada – Homero

irmão, para que os meus homens não julguem que já estou a


meio caminho da terra de Plutão.

No entanto, Agamémnon, que conhecia bem a coragem do


irmão e a sua habitual maneira despreocupada de falar, não
ficou muito tranquilo e mandou que o mensageiro
Taltíbio fosse buscar o médico para examinar o ferimento.

Macáon limpou o sangue da ferida, colocou sobre ela ervas


medicinais e cobriu-a com tiras de linho.

Já sossegado por saber que o irmão estava fora de perigo,


Agamémnon passou a considerar a situação dos troianos,
chegando à conclusão que os deuses deveriam estar a favor de
si e dos seus, na medida em que os troianos tinham quebrado o
juramento. De seguida, ordenou aos gregos que se preparassem
para a batalha imediatamente, e pediu pessoalmente a cada
chefe que se empenhasse ao máximo na vingança da violação
das trevas.

Dirigiu-se, em primeiro lugar, aos cretenses que estavam


impacientes por vingar a traição dos troianos. Eram liderados
por Idomeneu que os exortava com palavras encorajadoras.
Idomeneu era um dos mais velhos comandantes gregos. O seu
cabelo estava a ficar grisalho mas era ainda um belo homem,
esbelto e forte e era, além disso, muito rico e bom
administrador.

Agamémnon entusiasmou-se com o arrebatamento dos


cretenses e disse ao chefe deles:

- Sempre te admirei, Idomeneu, mais do que a todos os


outros gregos, pois és dos mais valentes, quer no ardor dos
combates quer em façanhas mais pacíficas. Vamos, lança-te ao
combate como sempre o fizeste!

Idomeneu respondeu-lhe prontamente:

28
Ilíada – Homero

- Grande átrida, desde o princípio que acudi ao teu


chamado e prometi ser leal. Sempre o fui e serei. Mas é bom
que estimules também os outros gregos e entremos em combate
sem perda de tempo, porque os troianos quebraram o juramente
e precisam de ser castigados.

Ouvindo estas palavras, Agamémnon seguiu em frente,


satisfeito, e dirigiu-se aos dois Ájax.

- Valorosos Ájax! - exclamou. - Vós não precisais de


exortações, pois atirai-vos sempre à luta com inigualável
bravura. Oxalá encontrasse em todos os gregos coragem igual
à vossa! A cidade de Príamo seria tomada rapidamente e os seus
habitantes cairiam em nosso poder em poucos momentos de
combate.

Mais adiante, Agamémnon encontrou o velho Nestor, que


dava sábias e prudentes instruções aos seus homens. Ao ouvi-
lo, o príncipe átrida tomou-se de viva satisfação e disse-lhe:

-Ó velho prudente e experiente! É lamentável que não


tenhas pernas tão firmes como o coração e o espírito! Mas a
velhice impede-te o ardor da refrega. Triste coisa não
pertenceres ao grupo dos jovens!

Ao que o velho Nestor respondeu:

- Bem que o quisera, mas os deuses não concedem aos


homens todos os seus favores. Estarei, porém, entre os meus
guerreiros, exortando-os com os meus conselhos e dando-lhes
o exemplo.

E, assim, Agamémnon foi de um chefe a outro,


distribuindo elogios e incentivos, contente com o ardor que
encontrava em todos e cada um. Mas quando chegou,
finalmente, junto daqueles que estavam mais afastados, ou seja,
do rei Ulisses e dos seus seguidores vindos de Ítaca e dos
homens que tinham vindo da Trácia comandados pelo jovem
rei Diomedes, encontrou-os desarmados e ociosos, pois não
29
Ilíada – Homero

tinham, ouvido o chamamento para o combate por estarem


muito longe.

Agamémnon aborreceu-se com isso e disse a Ulisses:

- Porque razão ficaste aqui evitando a batalha e deixando


que outros lutem em teu lugar? Responderás, certamente, que
não ouviste o meu chamado. No entanto, sempre que convoco
os gregos para festejos, nunca deixas de ouvir por mais longe
que estejas.

Ulisses zangou-se por ter sido repreendido injustamente e


não hesitou em replicar:

- Rei Agamémnon, estarei a ser apelidado de cobarde por


não ter ouvido o seu chamado? Por acaso não me vê sempre em
todas as batalhas? Talvez seja porque não costuma estar lá para
ver. Deve-se sempre pensar antes de falar, para não se dizerem
coisas insensatas.

Percebendo que Ulisses se aborrecera com as suas palavras


irreflectidas e não querendo perder a ajuda de outro chefe
grego, Agamémnon apressou-se em desculpar-se:

- Não duvido da tua coragem, Ulisses, nem da dos teus


valentes homens, e estou também certo que não é necessário
despertar-lhes o interesse pela luta. Se falei erradamente,
perdoa-me, pois não era minha intenção menosprezar-te.

Foi, em seguida, ao encontro dos homens da Trácia e,


irritado pela altercação que acabara de ter com Ulisses,
começou logo a censurar Diomedes falando em alta voz à
medida que se ia aproximando:

- Lembro-me que Tideu, teu pai, era um homem muito


valente, sempre à frente dos seus soldados em todas as batalhas.
Parece-me que essa coragem está a faltar ao seu filho.

30
Ilíada – Homero

Diomedes, dominado de raiva, mordeu os lábios para não


disparatar, pois, sendo muito mais jovem que Agamémnon e rei
de menor importância, precisava de o respeitar. Mas Estenelo,
que estava a seu lado, não conseguiu suportar os insultos
dirigidos ao seu amigo, mesmo vindo do mais ilustre dos reis
gregos. Indignado, protestou:

- Isso é mentira, rei Agamémnon, e bem o sabeis.


Diomedes nada tem de cobarde.

Mas Diomedes interrompeu-o com um olhar severo:

- Acalma-te Estenelo. Por ser o chefe de todos nós, o rei


Agamémnon tem todo o direito de me repreender quando julgue
necessário. Se tomarmos Tróia, a glória será dele por ser o
chefe, assim como também será dele a vergonha se formos
derrotados. Assim sendo, faz sabiamente uso do seu direito de
exortação ou de censura. Vamos, pois, Estenelo, avançar contra
os troianos, levando em consideração as censuras de
Agamémnon.

E sem nada mais acrescentar, foi preparar-se para a


batalha, a fim de banhar em sangue troiano a dor provocada
pela injustiça que sofrera.

Estando tudo preparado, o exército pôs-se em marcha. Os


guerreiros iam tão silenciosos como se tivessem perdido o dom
da fala. Quase que nem respiravam atentos às vozes de
comando. As armas cintilavam, com brilho semelhante ao da
espuma do mar enfurecido.

Das hostes troianas, também em movimento, partia u


clamor surdo e desordenado. Como não falavam nem
entendiam todos a mesma língua, o resultado eram gritos
confusos, que mais pareciam berros de muitas ovelhas a serem
ordenhadas. De uns apoderava-se o medo, e outros descobriam
bons pretextos para a fuga. Entre eles campeava a Discórdia,

31
Ilíada – Homero

que percorria as turbas e fazia redobrar os gritos dos guerreiros,


lançando-lhes no coração o ódio fatal.

Os dois exércitos defrontaram-se e confundiram-se com


estrondo. Ouviu-se o estrépito das lanças que batiam nos
escudos e o ranger das couraças. De toda a parte erguiam-se os
brados dos que matavam e os gemidos dos que morriam. Rios
de sangue encharcavam a terra.

O primeiro a tombar foi um troiano, Equépolo, ferido pela


lança de Antíloco. O poderoso Elefenor, chefe dos abantes, ao
vê-lo caído, começou a puxá-lo pelos pés, desejoso de lhe
arrebatar as armas. Mas o generoso Agenor, vendo-o curvado a
puxar pelo cadáver, meteu-lhe a lança numa das ilhargas -—
que o escudo deixava a descoberto—e matou-o. E em torno do
cadáver de Elefenor, gregos e troianos encarniçaram-se na luta
quais lobos vorazes.

Ájax, filho de Télamon, atacou o famoso jovem Simoésio,


assim chamado por ter nascido nas margens do rio Simoente.
Não chegou o infeliz jovem a realizar os seus sonhos, porque
ali mesmo caiu trespassado pela lança do valente Ájax. Para ele
correu Antifos, filho de Pnamo, revestido de esplêndida
couraça e violento dardo lhe arremessou. Mas falhou a pontaria
e, em vez de Ajax, o atingido foi Leuco, grande amigo de
Ulisses. Enfurecido com a morte do companheiro, Ulisses
investiu com redobrado vigor contra a multidão de troianos.
Faiscava-lhe sobre a fronte o capacete de bronze e na mão
vigorosa refulgia a lança. Os troianos debandaram diante do
herói grego, mas nem todos fugiram a tempo. A lança de
Ulisses atingiu um dos filhos de Príamo, atravessando-lhe a
cabeça. O guerreiro tombou com estrondo e a armadura ficou a
retinir sobre o seu corpo já sem vida. Os gregos, vitoriosos,
Irromperam em vibrantes aclamações aos seus heróis e
retiraram os mortos do campo de batalha, aproveitando-se da
fuga dos troianos. Depois, correram para a frente, ganhando
terreno.

32
Ilíada – Homero

Mas o deus Apolo, que dos cimos do Olimpo observava o


que se passava começou a gritar para os troianos:

— Avante, troianos! Não deveis ceder à ofensiva dos


gregos! Eles não têm o corpo feito de pedra, nem sã insensíveis
aos golpes do cortante bronze! Aproveitai enquanto Aquiles,
seu mais valente guerreiro, remoendo a cólera contra
Agamémnon, não vem formar ao lado deles!

Tinham os gregos do seu lado Minerva, a gloriosa filha de


Júpiter, que percorria o campo e observava os pontos fracos,
estimulando os menos corajosos. Chegando junto a Diomedes,
resolveu fazer com que ele se destacasse por valorosa façanha.
E o herói encheu-se de coragem e avançou para o ponto onde a
batalha era mais renhida. Assemelhava-se à estrela do Outono,
que fulge mais bela depois de banhar-se no oceano.

Entre os troianos havia dois irmãos, Fegeu e Ideu, filhos


de um sacerdote, ambos muito experientes em combates. Iam
os dois no mesmo carro e lançaram-se sobre Diomedes. Mas
este atirou a lança que se foi cravar no peito de Fegeu e
derrubou-o. Atemorizado com a morte do irmão, Ideu fugiu,
abandonando o carro, sem se atrever a defender o corpo de
Fegeu. Diomedes apoderou-se então dos cavalos, que entregou
aos companheiros como presa de guerra.

Continuou depois a percorrer o campo de batalha,


semelhante a um rio caudaloso que tudo arrasta na sua corrente.
Vendo-o a correr daquela maneira, desbaratando as falanges
troianas, Pandaro, aquele que quebrara a trégua ferindo
Menelau, desfechou-lhe uma afiada seta. Atingiu-o no ombro e
o sangue avermelhou a couraça.

— Avante, troianos!—gritou Pandaro.—Acabo de prostrar


o mais valente dos gregos!

Mas Diomedes não se deu por vencido. Retrocedeu até ao


seu carro e mandou que o seu amigo Estenelo lhe arrancasse a

33
Ilíada – Homero

flecha. O sangue jorrando aos borbotões, batia contra as


malhas. Diomedes assim orou:

— Filha imortal de Júpiter, se alguma vez durante as


batalhas ficaste ao lado de meu pai, Tideu, ficai hoje comigo.
Ó Minerva, fazei com que Pandaro fique ao alcance da minha
lança e permiti que o mate.

Minerva ouviu-o. Devolvendo-lhe de imediato a agilidade


dos membros e colocando-se junto dele, disse:

— Cobra alento, Diomedes. Já infundi ao teu peito o


intrépido valor que distinguiu o teu pai e afastei a névoa que te
cobria os olhos, para que na batalha distingas bem os deuses e
os homens. Se um daqueles te vier tentará não pretendas lutar
contra os imortais. Mas se for Vénus, filha de Júpiter, fere-a
com o teu aguçado bronze. Em seguida, Minerva afastou-se.

Diomedes voltou a misturar-se com os combatentes. E se


antes ardia no desejo de lutar, sentiu naquele instante que se lhe
triplicava o brio. Um após outro, tombaram sob a ponta da sua
lança e o fio da sua espada, quatro Chefes troianos. Matava com
sanha e arrancava as armas aos adversários.

Eneias viu-o dizimar as fileiras troianas e foi, no meio da


batalha e da confusa agitação das lanças, em busca de Pandaro,
rival de um deus. Encontrou-o, irrepreensível e robusto, deteve-
se na sua frente e disse-lhe:

— Ai vem Diomedes, filho de Tideu, preparado para novas


matanças. Procura alvejá-lo com a tua flecha, bom Pandaro, e
assim salvarás muitas vidas troianas.

Pandaro, muito admirado, perguntou:

— Ainda está vivo? Vejo que os deuses hoje me fizeram


malograr. As minhas fechas atingiram dois reis gregos e, no
entanto, não consegui matar nenhum. O meu arco está sem
sorte. Teria sido melhor não o ter trazido comigo. Ter-me-iam
34
Ilíada – Homero

sido mais úteis um carro e um cavalo. Na cocheira de meu pai


havia carros recém-fabricados, cada um com a sua parelha de
cavalos. Ele aconselhou-me que escolhesse um e o trouxesse,
mas pensei que, estando Tróia sitiada, fosse difícil encontrar
alimento para os cavalos, e preferi confiar no meu arco e vir a
pé com os meus homens. Se sobreviver irei puder ainda ver o
meu lar e a minha esposa, desejo que me arranquem a cabeça
se não quebrar este arco indigno com as minhas próprias mãos
e o atirar ao fogo.

— Não desanimes, meu amigo - respondeu-lhe Eneias. —


Vem comigo no meu carro e juntos investiremos contra
Diomedes. Não creio que seja mais poderoso que nós dois, a
menos que tenha um deus por ele. Mas se isso acontecer, os
meus cavalos, que são da mesma estirpe dos do Rei Príamo —
os melhores de Tróia — , levar-nos-ão rapidamente para longe
do seu alcance. Vem, pois, comigo e segurarás as rédeas e o
chicote, enquanto eu luto ou, se preferires o contrário, eu me
ocuparei dos cavalos enquanto investirás sobre o inimigo.

Pandaro aceitou o convite de Eneias, mas disse:

— Os cavalos responderão melhor ao teu comando, pois


estão habituados à tua mão e à tua voz. Guia, pois, e eu
golpearei Diomedes com a minha afiada lança. Neste momento
tão perigoso, é melhor não corrermos o risco dos cavalos
estranharem as minhas mãos.

E dirigiram-se, a toda a velocidade, para o local onde se


encontrava o intrépido Diomedes. Ao vê-los aproximar-se,
disse Estenelo:

— Diomedes, vejo dois bravos guerreiros que avançam


para dar-te combate, ambos muito valentes. Um é o hábil
arqueiro Pandaro e o outro é Eneias, o próprio filho da divina
Vénus. Retira-te e não te exponhas a eles, se não queres perder
a vida.

35
Ilíada – Homero

Mas o corajoso Diomedes, lançando-lhe um sombrio olhar,


respondeu:

— Não tentes convencer-me, pois nunca me verás fugir a


um combate. Homens da minha linhagem não têm o hábito de
se esconderem na hora do perigo. Esperá-los-ei aqui mesmo e
de pé. E se os conseguir matar, apodera-te dos cavalos que são
de excelente raça, e leva-os para o nosso acampamento.

Enquanto assim falavam, chegaram os dois troianos com


os seus ligeiros cavalos. E Pandaro gritou para Diomedes:

— Valente Diomedes, conseguiste zombar das minhas


setas. Veremos agora se o teu corpo é impenetrável à minha
lança!

E, dizendo isto, atirou-lhe a arma, que furou o escudo e foi


cravar-se na couraça do filho de Tideu.

Sem se perturbar, o bravo Diomedes respondeu:

— Falhaste o golpe e agora pelo menos um de vós terá de


cair para saciar Marte, o feroz deus da guerra.

E atirando um dardo na direcção de Pandaro, atingiu-o em


cheio no rosto, atravessando-lhe a cabeça de um lado ao outro.
Pandaro tombou para o chão e logo ali expirou.

Eneias saltou do carro e enfrentou Diomedes, tentando


defender o corpo do amigo. Mas Diomedes, ligeiro como um
raio, agarrou numa enorme pedra e feriu Eneias numa perna, de
tal modo que ele caiu e não se conseguiu levantar. E teria
também morrido às mãos do guerreiro grego se Vénus, sua mãe,
não viesse em seu socorro, escondendo-o no manto brilhante
que trazia.

Enfurecido, Diomedes correu em perseguição de Vénus,


sabendo embora que se tratava de uma deusa, e feriu-a num
pulso. A graciosa divindade desfaleceu e deixou cair o filho.
36
Ilíada – Homero

Mas Apolo veio em seu auxílio e levou Eneias para a cidade de


Tróia. Diomedes bradou com voz forte:

— Bela filha de Júpiter, não vos satisfaz vencer fracas


mulheres? Afastai-vos das coisas da guerra pois, de contrário,
passareis a tremer só de nelas ouvir falar.

Descontente e gemendo de dor, Vénus regressou ao


Olimpo e foi acolher-se no regaço de Dione que, carinhosa mãe,
lhe fez desaparecer a dor lhe curou a ferida, enquanto a deusa
lhe narrava o sucedido, concluindo desta maneira:

— Que audacioso mortal! Tão atrevido está que é capaz de


desafiar até o próprio Júpiter.

Então, Apolo criou uma imagem semelhante à de Eneias e


deixou-a no campo de batalha para enganar os guerreiros, que
em torno dela se encarniçaram novamente em sangrentos
combates.

O funesto Marte, instigado por Apolo, desceu do Olimpo


e começou a percorrer as fileiras dos troianos, incitando-os com
as seguintes palavras:

— Ó filhos de Príamo, até quando deixareis que as vossas


tropas sejam desbaratadas pelo inimigo? Eneias, o mais bravo
guerreiro depois de Heitor, foi posto fora de combate. Não
fazeis nada para o vingar?

Ouvindo isto, Sarpedão, chefe dos lícios, disse a Heitor:

— Que é feito da tua valentia de outrora? Disseste um dia


que sozinho conseguirias defender a cidade. Onde estão os teus
irmãos e cunhados? Parece que fugiram todos e que só nós, que
aqui estamos apenas como aliados, é que combatemos. Será que
tens medo de ficar prisioneiro dos galegos?

Heitor sentiu-se ferido no seu amor próprio e, saltando do


carro, percorreu o campo em todas as direcções, estimulando os
37
Ilíada – Homero

guerreiros com novo ardor As suas palavras surtiram efeito,


pois os troianos atiraram-se ao inimigo em hostes cerradas.

Para ajudar os troianos, o terrível Marte escureceu o campo


de batalha com as trevas da noite e em toda a parte animava os
troianos, aproveitando-se da ausência de Minerva, a deusa
protectora dos gregos. Enquanto isso, Apolo foi até à cidade e
de lá trouxe o valoroso Eneias. O que veio dar novo alento aos
seus camaradas que se sentiram encorajados com a presença de
destemido guerreiro.

Perceberam os gregos que os troianos atacavam com maior


denodo, mas esmoreceram. Agamémnon exortava-os a que se
portassem como homens.

Heitor avançava, sem se deter, tendo já derrubado


numerosos adversários. A seu lado corria Marte, disfarçado sob
a forma de guerreiro. Até o bravo Diomedes, quando os avistou,
percebendo a figura do deus, retrocedeu ligeiramente e disse
aos companheiros:

— Aí vem o divino Heitor, perito no manejo da lança e


audaz na luta! A seu lado está sempre um deus que afasta dele
a morte. Agora é Marte que o acompanha. Afastemo-nos um
pouco, pois não devemos combater contra os deuses.

Naquele mesmo momento, noutro ponto do campo, um


guerreiro grego, filho de Hércules—o mais forte dos homens—
, defrontou-se com Sarpedão, chefe dos lícios, que combatia ao
lado dos troianos. Zombeteiro, exclamou o filho de Hércules:

— Que vieste aqui fazer e para que te metes a lutar com


homens mais fortes do que tu? Dizem por aí que és filho de
Júpiter, mas não pareces tal! Estás muito longe de ser valente
como meu pai, que aqui esteve outrora e arrasou Tróia com
poucos companheiros.

Sarpedão respondeu-lhe, porém:

38
Ilíada – Homero

— É verdade que Hércules destruiu a sagrada Tróia, mas


tu não farás outro tanto, porque agora mesmo perderás a vida!

Os dois guerreiros cruzaram as lanças. A de Sarpedão


atravessou o pescoço do grego, que caiu morto ali mesmo, e a
do filho de Hércules atingiu a coxa esquerda de Sarpedão que,
por sua vez, tombou ferido. Mas não era seu destino morrer
naquela hora. Assim, os seus companheiros afastaram -no da
luta. Ele gemia arrastando a lança, pois ninguém tinha tempo
para lhe arrancar o afiado bronze da coxa. Enquanto o
carregavam, Heitor passou e ele gritou, suplicando-lhe:

— Heitor, não consintas que eu caia nas mãos do inimigo!


Vem em meu auxílio, para que ao menos eu possa morrer
dentro da tua cidade, já que não posso mais ver a minha mulher
e meus filhos!

Mas Heitor nem sequer o ouviu, tal a pressa com que


avançava na ânsia de repelir os gregos. Os companheiros
deitaram-no, então, à sombra de um frondoso carvalho e, ao
contacto da brisa, reanimou-se o herói.

O chefe troiano, o divino Heitor, continuava a avançar e a


eliminar numerosos gregos, entre os quais guerreiros ilustres
como Orestes e Heleno

Mas quando as duas densas, Juno e Minerva, que amavam


os grego viram isso, disseram a Júpiter:

— Ó Pai, não vedes como Marte conduz a batalha,


destroçando os exércitos gregos? Até quando permitireis tais
violências? Ficareis zangado os em auxílio dos gregos?

— Fazei como quiserdes, mas convém que a Minerva, a


guerreira, caiba a de combater Marte, que já sofreu mais do que
uma vez às suas mãos.

Elas mandaram atrelar os cavalos ao carro de Juno e


dirigiram-se para a terra. Desceram nas planícies de Tróia, na
39
Ilíada – Homero

confluência dos dois rios que a banhavam, e lá deixaram os


cavalos a pastar. Juno tomou a forma de Estenor, o guerreiro
que tinha uma voz tão forte que gritava como cinquenta homens
juntos, e exclamou:

— Que afronta, ó Gregos! Quando Aquiles combatia ao


vosso lado, os troianos mal ousavam chegar às portas da cidade.
Mas agora obrigam-vos a retroceder para os vossos navios!

Minerva dirigiu-se a Diomedes que, junto dos seus


cavalos, procurava refrescar a ferida que Pandaro lhe fizera e
disse-lhe:

— Bem sei que sois a belicosa filha de Júpiter e por isso


vou falar-vos claramente. Não tenho medo nem estou cansado,
mas vós mesma me dissestes que não combatesse contra os
deuses e estou a ver Marte a correr no campo de batalha ao lado
dos troianos. — Não tenhas medo de Marte ou de qualquer
outro deus do Olimpo, pois podes contar sempre com o meu
auxílio. Ajudar-te-ei a por fora de combate aquele louco, que
ainda ontem me prometia favorecer os gregos e a gora já mudou
de partido, esquecido das suas promessas.

E, dizendo isto, puxou para trás o cocheiro do carro de


Diomedes e sentou-se ela própria a seu lado. Arrebatando o
chicote e as rédeas, Minerva dirigiu o carro directamente contra
Marte, que procurava naquele momento despojar um dos
gregos que tinha morto. Tentou ocultar-se com o elmo de
Plutão, deus que governa os mortos, para não ser reconhecida
por Marte. Este, com efeito, não a viu e avançou sobre
Diomedes, disposto a matá-lo. Mas a deusa desviou-lhe o golpe
e a sua lança falhou o alvo. Por sua vez, Diomedes atirou-lhe
um dardo que, conduzido por Minerva foi cravar-se na ilharga
do adversário. O deus soltou um urro tão tremendo que fez
estremecer gregos e troianos e fugiu apavorado para o Olimpo,
oculto numa nuvem.

40
Ilíada – Homero

Ao chegar às moradas celestiais, o intrigante Marte foi


queixar-se ao pai dos deuses, dizendo-lhe:

— Senhor, ficarás indiferente perante tais violências? Nós,


os deuses, estamos a padecer de males terríveis por causa da má
vontade de uns contra os outros. A tua filha é insensata e só faz
coisas abomináveis. Todos nós te obedecemos, excepto ela,
porque lhe fazes todas as vontades. Foi ela quem incitou o filho
de Tideu a exercer a sua fúria contra os imortais. Primeiro, ele
feriu Vénus no pulso; depois, atirou-se a mim como um
possesso. Não fosse a minha agilidade e ainda lá estaria,
sofrendo dores horríveis, ao lado dos míseros mortais.

Franzindo as sobrancelhas, o senhor do Olimpo respondeu:

— Não adiantam as tuas lamúrias, pois és o mais


intriguista dos deuses e o que menos aprecio. Parece que
herdaste o génio insuportável da tua mãe. Não te deixarei
padecer porque és meu filho. Se não, expulsar-te-ia do Olimpo

Assim falou Júpiter e mandou que o médico celeste o


curasse. Este derramou-lhe bálsamo na ferida e o belicoso
Marte ficou imediatamente são. Hebe deu-lhe um banho
perfumado e vestiu-lhe roupas magníficas, indo ele sentar-se
muito satisfeito ao lado de Júpiter. Pouco depois chegavam
Juno e Minerva, contentes por terem acalmado os ardores de
Marte auxiliado os seus amados gregos.

Os deuses tinham abandonado os terríveis combates, que


continuavam, no entanto, com grande mortandade de ambos os
lados. Os dardos dos dois exércitos confundiam-se na planície
que separa os rios Simoente e Xanto. Ájax, filho de Télamon,
forte sustentáculo dos gregos, enche-lhes o coração de fundadas
esperanças, ao abater o chefe dos trácios. A lança atingiu-o no
capacete e, não encontrando resistência bastante, penetrou-lhe
na testa. O véu impenetrável da morte cobriu-lhe os olhos.

41
Ilíada – Homero

O belicoso Menelau apanha Adrasto com vida. Os cavalos


desse chefe, aterrorizados, corriam desabaladamente pela
planície e fizeram com que o carro colidisse com um tronco de
árvore; libertando-se, fugiram em direcção à cidade.
Despenhando-se do carro, Adrasto caiu junto a uma das rodas ,
com o rosto no chão. Menelau aproxima-se dele, trazendo a
comprida na mão. Adrasto abraça-se aos seus joelhos
implorando clemência metendo-lhe que o pai daria preciosos
tesouros pelo seu resgate.

Tais palavras abalaram o coração de Menelau, que dava já


ordem a um seus para que levasse o guerreiro prisioneiro para
os navios quando Agamémnon acorreu indignado:

— Menelau, como poupas assim a vida aos nossos


inimigos? Achas, então, que os troianos te trouxeram grandes
benefícios! Nenhum deles deve ar ao nosso braço e que todos
os habitantes de Tróia pereçam sem sepultura e sem deixar de
si nenhum traço para a posteridade.

Menelau repetiu Adrasto com as mãos e Agamémnon


mergulhou a lança rpo do guerreiro, que tombou de costas.
Então, comprimindo-lhe Ito com o pé, o duro átrida arrancou a
arma e afastou-se.

Os troianos estava a bater em retirada diante dos gregos


que, comandados por Diamedes, continuavam a ganhar terreno.
Então, um dos filhos de Príamo, Heleno, que era excelente
adivinho, chamou Heitor e Eneias à parte e disse-lhes:

— Fazei as tropas recuar para as muralhas, pois é mais


seguro lá do que na planície. Exortai os homens incutindo-lhes
animo e coragem. Depois disso, tu, Heitor, entra na cidade e dá
instruções à nossa mãe. Dize-lhe que vá ao templo de Minerva,
abra a porta do santuário e deponha sobre os joelhos da deusa o
mais belo véu que houver no palácio, prometendo-lhe o
sacrifício de doze bezerros de um ano, para que ela se
compadeça das nossas mulheres e filhos e afaste da cidade o

42
Ilíada – Homero

filho de Tideu, esse valente lanceiro. Nunca vi homem tão


bravo como Diomedes. Nem o próprio Aquiles se lhe iguala, e
dizem que é filho de uma deusa.

Heitor seguiu as instruções de Heleno e voltou à cidade.


Entretanto, Glauco, filho de Hipóloco, e Diomedes, filho de
Tideu, avançavam ao mesmo tempo, prontos para o combate.
Quando já estavam próximos, Diomedes exclamou admirado:

— Diz-me quem és, ó bravo guerreiro, pois nunca te vi na


guerra e és o primeiro a demonstrar tamanha ousadia vindo ao
encontro de minha lança! Infelizes dos homens cujos filhos
experimentam o valor de meu braço! Diz-me se és algum deus
que baixou do céu, pois nesse caso não lutarei contra ti. Outros
já o fizeram e perderam-se. Mas se pertences ao número dos
mortais, aproxima-te e experimenta lutar comigo!

A isto responde o filho de Hipóloco:

— Bravo Diomedes, porque me fazes tantas perguntas


acerca da minha origem As gerações dos homens são como as
folhas das árvores. Lança-as o vento ao chão, mas as robustas
árvores produzem outras, que vêm por sua vez a fenecer. Assim
são os homens. Uns vão-se e outros os substituam Mas se
queres conhecer a minha origem, escuta. Na cidade grega de
Corinto havia um bravo guerreiro conhecido pelo nome de
Belerofonte. Falsos boatos acusaram-no de tramar contra o rei
e o insensato monarca acreditou no que diziam e resolveu matá-
lo. Receoso, porém, das consequência não quis executar a
sentença na sua própria cidade. Mandou-o, então entregar uma
mensagem ao rei da Lícia. A mensagem estava escrita em
caracteres cifrados para que Belerofonte não a entendesse e
continha a se seguinte frase: «Este homem é um traidor, faça-o
perecer.» Ignorando o perigo Belerofonte viajou para a Lícia.
Quando chegou ao palácio, o rei ordenou que lhe preparassem
um excelente festim, pois tratava-se do mensageiro de um
amigo seu.

43
Ilíada – Homero

Durante nove dias, tratou-o com todas as honras mas, ao


alvorecer do décimo, pediu a Belerofonte que lhe entregasse a
mensagem. Quando percebeu do que se tratava, começou a
cogitar sobre o modo como haveria de se desfazer do guerreiro.
Primeiro, mandou-o matar a invencível Quimera, monstro de
raça divina, que à cabeça do leão unia o corpo de uma cabra,
que terminava sob a forma de dragão e lançava constantemente
chamas pela boca. Vários heróis tinham, em vão, tentando
vencê-la. Belerofonre, porém, auxiliado pelos deuses, destruiu-
a com roda a facilidade. Depois, ordenou-lhe o rei que fosse
lutar contra a feroz tribo dos sólimos. Segundo se conta, foi esta
a batalha mais árdua da sua vida, mas saiu vencedor. Teve de
lutar também contra as Amazonas e destruiu-as. Depois dessas
façanhas, preparou-lhe o rei uma emboscada com os homens
mais fortes da região. nenhum deles voltou com vida e
Belerofonte, sozinho, regressou são e salvo ao palácio do rei.
Ao vê-lo, o monarca pensou: «Este homem é certamente
protegido pelos deuses e portanto não pode ser mau.» Chamou-
o, então, deu-lhe a sua filha em casamento e metade das honras
reais. Teve filhos, dos quais um foi de Sarpedão e outro,
Hipóloco, é o meu pai. Enviou-me ele a Tróia e exortou-me a
que fosse sempre o primeiro na luta e honrasse o sangue de
meus antepassados. É esta, pois, a linhagem de me orgulho.

Ao ouvir estas palavras, exultou Diomedes e saudou o


guerreiro, exclamando:

— Vejo, então, que somos amigos por parte de nossos pais.


O divino Eneu, meu avô, recebeu outrora Belerofonte no seu
palácio e os dois tornaram-se amigos. Se algum dia vieres a
Argos, faço questão que sejas meu Hóspede e eu serei teu
conviva quando for visitar as terras da Lícia. Poupemo-nos os
dissabores da luta. Há para aí muitos Troianos para enfrentar e
a ti não faltam gregos para combater. Mas devemos trocar de
armas, para que os esses guerreiros saibam que estamos ligados
pelos laços da amizade e não podemos, por isso, lutar um contra
o outro.

44
Ilíada – Homero

Dizendo isto, saltaram ambos dos carros, trocaram as


armaduras, apertaram as mãos e juraram fidelidade. Comentou-
se, mais tarde, que Glauco perdera com a troca, pois a sua
armadura era de ouro, enquanto a de Diomedes era de bronze.

Enquanto isso, Heitor chegava à cidade. Foi


imediatamente rodeado pelas mulheres e pelas filhas dos
troianos que combatiam, querendo saber noticias de seus
maridos, filhos e irmãos. Heitor aconselhou-as a que orassem
aos deuses sem cessar, para que protegessem os seres que
amavam. Seguiu depois para o magnífico palácio de Príamo,
onde encontrou Hécuba, sua mãe, que lhe dirigiu estas palavras:

— Meu filho, porque deixaste os perigos da guerra para


aqui vir? Os gregos levam-nos de vencida e vieste oferecer
sacrifícios a Júpiter? Espera um instante, que vou trazer-te um
pouco de vinho que of errarás ao pai dos deuses e aos outros
imortais. Depois, é preciso que tomes também um pouco desse
vinho para te reconfortares, pois muito cansado deves estar de
tanto combater.

Mas o grande e valoroso Heitor respondeu:

— Não, minha mãe, não me ofereças do teu excelente


vinho. Receio que me tire as forças e a coragem. Além disso,
não ouso oferecer sacrifícios a Júpiter com as mãos manchadas
de sangue e de lama. Mas vai tu ao templo de Minerva e
deposita-lhe sobre os joelhos o mais belo véu que houver no
palácio e promete-lhe doze bezerros de um ano, se ela se
apiedar da cidade, das nossas mulheres e dos nossos filhos, e
afastar de nós o filho de Tideu, o mais terrível dos lanceiros
gregos. Eu irei ter com Páris e instarei com ele para que retorne
ao combate. Porque é que a terra não se abre e não o devora, a
ele, o causador dos nossos males, que depois de tudo ainda se
acobarda perante o perigo!

Quando acabou de falar, a rainha Hécuba mandou


convocar todas as matronas da cidade, foi até ao seu quarto

45
Ilíada – Homero

onde tinha os véus guardados e, agarrando no maior e no mais


formoso de todos devido aos seus maravilhosos bordados, pôs-
se a caminho do templo. Ali chegada, fez como Heitor tinha
mandado e, depois, suplicante, orou à filha do grande Júpiter:

— Ó Minerva divina, protectora desta cidade, quebrai a


lança de Diomedes e fazei com que ele caia de rosto para o chão
diante das portas de Tróia. Prometemos ofertar-vos doze
bezerros de um ano, caso vos compadeçais da cidade, das
mulheres dos troianos e dos seus filhos.

Enquanto a rainha orava, Heitor dirigiu-se à casa de Páris.


Encontrou-o a limpar as armas e a couraça ao lado da bela
Helena, que estava ocupada a dirigir o trabalho das escravas.

Fitando Páris, Heitor censurou-o:

— Infeliz príncipe, como o teu procedimento é indigno. Os


guerreiros morrem à volta das muralhas por tua causa. E tu, que
devias ser o primeiro a combater, nada fazes de útil. Vamos,
age como um homem, antes que a cidade seja incendiado pelo
inimigo que se aproxima!

— Heitor — respondeu Páris —, aceito as tuas palavras


porque são justas. Não foi por medo ou cobardia que me retirei
da luta e sim porque tinha necessidade de estar só com as
minhas mágoas. A minha mulher já me persuadiu a voltar para
o campo de batalha e estou decidido a fazê-lo. Espera-me um
pouco enquanto visto as armas e em breve estarei a teu lado.

Ouvida a conversa entre os dois, assim falou Helena a


Heitor:

— Prezadíssimo cunhado, sei que não me estimas porque


fui a causadora de todos os males que estás a sofrer agora, mas
disso me arrependo amargamente. Senta-te um pouco e
descansa, pois és tu quem suporta o maior peso da luta. Ao que
Heitor respondeu:

46
Ilíada – Homero

— Helena, não te quero mal, mas não posso sentar-me a


teu lado. O meu coração inquieta-se pela sorte dos nossos
guerreiros, que devem estar a sentir a minha ausência. Peco-te,
porém, que insistas junto de Páris para que venha juntar-se a
mim antes que me vá da cidade. Primeiro vou até minha casa
para me despedir da minha mulher e do meu filhinho, pois não
sei se os voltarei a ver. Dito isto, Heitor retirou-se e em breve
chagava à sua morada, um dos mais belos palácios da cidade.
Mas lá não encontrou Andrómaca, a sua bela esposa, que tinha
ido até à muralha, receosa pela sorte do marido.

Aflito, Heitor interrogou as escravas:

— Dizei-me sem demora, mulheres, para onde foi


Andrómaca quando saiu do palácio? Terá ido visitar as minhas
irmãs ou cunhadas? Ou estará com as outras troianas no templo
da divina Minerva? Respondeu-lhe a camareira de Andrómaca:

— Não, senhor. Ela foi para a grande torre, pois ouviu


dizer que os troianos afrouxavam e que a força do inimigo
aumentava. Correu imediatamente para a torre, como
desvairada, e a ama seguiu-a com o menino ao colo.

Heitor saiu apressado, perfazendo o mesmo caminho.


Perto das portas s encontrou a mulher que, ao avistá-lo, correu
a atirar-se-lhe aos braços. Estava acompanhada por uma ama,
que estreitava ao colo o filhinho do casal. O pai chamava-lhe
Escamandrio, mas o povo baptizara-o de Astíapois o pai era o
mais forte defensor de Tróia e esse nome a isso se referia.

Heitor contemplou-o a sorrir e sem dizer palavra. Mas


Andrómaca, dada em lágrimas, disse-lhe:

— Querido Heitor, temo que a tua bravura venha a ser a


tua perdição.

Não tens pena do teu filhinho e de mim, que ficarei viúva


e infeliz? Expões-te demasiadamente e acabarás morto às mãos
do inimigo. Mas se eu te perder, melhor será que a terra se abra
47
Ilíada – Homero

a meus pés! Não tenho ninguém a não ser tu. O meu pai está
morto. O divino Aquiles matou-o quando destruiu Tebas e às
suas mãos pereceram também os meus sete irmãos. Minha
pobre mãe, que reinava junto aos bosques de Placo, ele a trouxe
cativa e só a devolveu mediante valioso resgate. Entretanto,
depois de restituída ao palácio de seu pai, a divina Diana matou-
a com uma das suas carteiras flechas. Tu és, pois, para mim,
pai, mãe, irmão e marido. Tem piedade de mim e deixa-te ficar
aqui na torre, para que não fiquem viúva tua mulher e órfão o
teu filhinho. Dispõe mais tropas Junto à figueira, por onde a
cidade é mais acessível e a muralha pode ser facilmente
escalada. Três vezes já a tentaram escalar bravos guerreiros
inimigos.

Heitor, de semblante grave, respondeu-lhe:

— Querida esposa, tudo isso me preocupa também. Mas o


que não posso admitir, de modo nenhum, é que troianos e
troianas me vejam fugir ao cumprimento do dever e me venham
a chamar de cobarde. Sei bem que um dia esta sagrada cidade
de Tróia há-de perecer juntamente com Príamo e o seu povo!
Mas não é por causa de Tróia, nem dos troianos, nem mesmo
por meu pai e minha mãe que tanto me aflijo e sim por tua
causa, minha querida esposa! Receio que um dia te vejas cativa
de um desses gregos vestidos de bronze, que te obrigue a
carregar-lhe água numa terra distante. E então, alguém dirá:
Aquela é a mulher de Heitor, o mais bravo guerreiro de Tróia.»
Que eu esteja morto nesse dia para não ver a tua dor, nem ouvir
as tuas queixas!

E, enquanto falava, Heitor estendeu os braços para abraçar


o filho. Mas o menino, amedrontado pelo brilho das armas e
pelo aspecto do pai, revestido de bronze da cabeça aos pés,
começou a chorar, refugiando-se no colo da ama. O extremoso
pai sorriu do temor do filho e, para não o assustar, tirou o
capacete e, beijando o filhinho amado, assim falou:

48
Ilíada – Homero

— Júpiter Olímpico e vós, deuses eternos, fazei com que


meu filho venha a ser ilustre entre os troianos e que um dia
possam dizer dele: «É ainda maior do que o pai!» E que venha
a ser ele a alegria da mãe!

Entregou o menino a Andrómaca, que o recebeu sorrindo


mas com lágrimas nos olhos. O coração de Heitor comoveu-se
com as lágrimas da esposa e, pegando-lhe na mão, acariciou-a
dizendo:

— Querida, não te aflijas por minha causa. Nenhum


homem será capaz de matar-me se não for esse o meu destino.
Mas ninguém pode escapar à sua sorte, seja bravo ou cobarde.
Volta para casa, para os teus trabalhos domésticos e o governo
do teu lar, e deixa a guerra para os homens.

E, dizendo estas palavras, apanhou o capacete de crinas e


voltou a colocá-lo na cabeça. A mulher foi para casa, mas virou-
se várias vezes para o ver e os seus olhos vertiam lágrimas de
sofrimento. Ao chegar ao palácio foi rodeada pelas escravas e
choraram todas juntas, pois tinham quase a certeza de que
Heitor não voltaria mais.

Páris, por sua vez, não quis ficar ocioso por mais tempo.
Envergou as armas, que brilhavam como o Sol, e dirigiu-se a
correr para as portas da cidade. Ali encontrou-se com Heitor, a
quem disse:

— Irmão, perdoa a demora. Não pude vir tão depressa


como querias

Ao que Heitor respondeu:

— Páris, o que mais lamento é que todos te chamem


cobarde, pois não o és. Mas deixas que tudo corra ao acaso, sem
te preocupares com as consequências. Por isso os troianos
falam mal de ti. Porém, vamos depressa para o campo de
batalha e deixemos isso para depois. Tudo há-de acabar em
bem, assim os deuses nos sejam propícios.
49
Ilíada – Homero

Heitor e Páris precipitaram-se para o meio da batalha


dispostos a matar ou a morrer. Ao vê-los, reanimaram-se os
troianos como o marinheiro que, cansado de movimentar os
remos, se alegra ao sentir o vento propício.

Logo de início, os dois fizeram grandes baixas no exército


grego e a sorte parecia pender para o seu lado. Mas Minerva, ao
aperceber-se dos estragos que iam fazendo nas tropas dos seus
protegidos, de um salto desceu do Olimpo e baixou sobre Tróia.
Ao seu encontro precipitou-se Apolo, que também observava o
que se estava a passar e queria a vitória dos troianos. Foi o
primeiro a falar:

— Filha de Júpiter, com tanta pressa baixaste à terra para


trazeres a vitória aos teus gregos? Sei que não tens pena dos
troianos mas, se me queres ouvir, façamos uma trégua.
Suspendamos por hoje a luta e o morticínio. Mais tarde, então,
a guerra continuará até à destruição de Tróia, visto que assim o
decidiram outros deuses poderosos.

Respondeu-lhe Minerva:

— Pensava justamente nesse plano. Mas que faremos para


deter a luta?

Retorquiu-lhe o filho de Júpiter :

— E fácil. Basta incitar o valente Heitor a que desafie


algum dos gregos a bater-se com ele em combate singular.

Assim ficou combinado entre os dois deuses. Ora, Heleno,


filho de Príamo, que servia também de oráculo aos troianos,
sentiu bem no coração o que as divindades tinham decidido e
falou assim a Heitor:

— Caro irmão, acredita no que te vou dizer. Sou adivinho


e conheço o pensamento dos deuses. Eles mandam que troianos
e gregos suspendam o combate e tu, sozinho, provoques o
melhor dos inimigos a lutar contra ti. E podes estar certo de que
50
Ilíada – Homero

a tua hora ainda não chegou. Revelaram-mo as deidades


imortais.

Heitor alegrou-se ao ouvir estas palavras e, empunhando a


lança, deteve as falanges troianas ordenando-lhes que
cessassem o combate. Percebendo que Heitor ia falar,
Agamémnon ordenou aos seus intrépidos guerreiros que
também parassem. E Heitor, erguendo a voz, disse:

— Escutai-me, filhos de Tróia, e vós, homens da Grécia.


O juramento que fizemos foi quebrado, embora não fosse por
culpa nossa. O grande Júpiter assim o quis e muitos trabalhos
ainda nos dará até que consigais, ó gregos, submeter a cidade
ou que sejais destruídos junto aos vossos navios. Mas entre vós
encontram-se os mais valentes helenos e desejo desafiar-vos a
um combate singular. Aquele, pois, que tiver coragem, venha
baterás comigo. E que os deuses sejam testemunhas. Se ele me
vencer, poderá levar as minhas armas como despojos para o seu
pais. Mas o meu cadáver será devolvido para que os troianos
lhe prestem as honras fúnebres. E do mesmo modo, se eu for o
vencedor, tomar-lhe-ei as armas e restituirei o corpo ao seu
povo para que lhe seja dada sepultura. E, um dia, quando
alguém passar pelo seu túmulo há-de dizer: «Ali jaz enterrado
um guerreiro valente que foi morto outrora pelo divino Heitor.»

Quando os gregos ouviram este discurso ficaram


silenciosos e sem movimento. Tinham medo de aceitar e
vergonha de recusar. De súbito, levantou-se Menelau muito
perturbado e censurou-os asperamente:

— Ó gente fraca e cobarde! Tal fraqueza mostra que gregas


vos deveria chamar—e não gregos! Grande opróbrio que
ninguém se apresente para defrontar-se com Heitor! Enfrentá-
lo-ei eu mesmo e que os deuses me concedam a vitória!

Enquanto falava, Menelau tinha envergado a sua bela


armadura. Mas da sua decisão veio dissuadi-lo o poderoso
Agamémnon, dizendo-lhe:

51
Ilíada – Homero

— Perdeste o juízo, Menelau? Não procures combater com


Heitor que é muito mais forte do que tu. Com ele teria medo de
combater o próprio Aquiles, o mais forte dos gregos. Vai
sentar-te e espera que outro se apresente, que esteja à altura de
medir-se com o filho de Príamo.

Com estas palavras, Agamémnon obrigou o irmão a sentar-


se. E como ninguém mais se atravesse a apresentar-se,
levantou-se o velho Nestor e dirigiu aos gregos estas
admoestações:

— Grande tristeza paira sobre nós! Que não diriam os


nossos antepassados se soubessem que os seus descendentes
agora se escondem com medo de Heitor? Antes prefeririam
morrer do que ver este dia vergonhoso. Fosse eu mais novo,
tivesse a idade que tinha outrora quando os homens de Pilo
combateram contra os da Arcádia! Então, ele, Heitor, o
destemido, encontraria o seu competidor!

Quando o velho Nestor acabou de falar, nove guerreiros


deram um passo em frente. De entre todos, o primeiro foi
Agamémnon. Seguiu-se-lhe Diomedes, o intrépido filho de
Tideu. Depois, avançaram os dois Ájax, já famosos pelas suas
proezas. Acompanharam-nos Idomeneu, Merfones, Eurfpilo,
Toas e Ulisses. Todos queriam lutar contra Heitor.

Ficou, então, combinado que tirariam à sorte e o escolhido


seria o combatente. Assim fizeram e cada um em seu intimo
pedia a Júpiter que o escolhesse. Lançaram os nomes dentro de
um capacete e Nestor retirou um deles. Todos ficaram
satisfeitos ao verificar que safra o nome de Ájax, filho de
Télamon, sem dúvida um dos mais valentes guerreiros. Ele
próprio também se alegrou e disse aos companheiros:

— Amigos, fui escolhido pelos deuses para esta tarefa e


estou certo de que sairei vitorioso e derrotarei o bravo Heitor.
E agora, enquanto me preparo, podeis rezar a Júpiter Olímpico
para que me proteja. Mas rezai em silêncio para que os troianos

52
Ilíada – Homero

não vos escutem. Ou então, se preferirdes, rezai bem alto, pois


não devemos temer coisa alguma. Ninguém me fará fugir pois,
como digno filho de Salamina, não sou inexperiente em
combates.

E Ájax, revestido da sua couraça e movendo as armas de


bronze, avançou com decisão e aproximou-se de Heitor, a quem
disse estas palavras ameaçadoras:

— Chega-te a mim, Heitor, e verás que entre os gregos há


guerreiros valentes, embora o corajoso Aquiles esteja ausente.

Agitando, por sua vez, o escudo, o filho de Príamo


respondeu:

— Divino Ájax, chefe de muitos povos, não te ponhas a


desafiar-me como se eu fosse criança ou mulher ignorante das
coisas da guerra. Conheço todas as artes guerreiras e estou
habituado à luta. Sei aparar a cutilada do inimigo, quer venha
da esquerda ou da direita. Sei conduzir o meu carro por entre
multidões de homens e cavalos e combater a pé. Conheço todos

os troques audaciosos e sei utilizá-los. Mas, com um


guerreiro ilustre como tu, prefiro combater frente a frente.

Dizendo isto, arremessou a lança e perfurou o escudo de


Ájax, sem contudo o atingir no corpo. Por sua vez, o bravo
guerreiro revidou o golpe e a sua basta penetrou no escudo de
Heitor, indo rasgar-lhe a túnica. Mas também não chegou a
ferir-lhe a pele.

Cada um retomou a sua lança e novamente os dois se


defrontaram, como dois leões enfurecidos. O filho de Príamo
atirou novamente a arma contra o escudo do adversário mas não
o rompeu, amolgando-se a ponta da lança. De um salto, Ájax
vibrou um golpe que feriu Heitor ligeiramente no pescoço, de
onde o sangue jorrou. Mas ele não se deu por vencido e,
agarrando numa enorme pedra que havia no chão, atirou-a
contra o adversário. A pedra bateu no imenso escudo de Ájax e
53
Ilíada – Homero

caiu. Este apanhou outra pedra muito maior e, com um impulso


do corpo, arremessou-a violentamente contra o escudo de
Heitor, que vergou os joelhos e caiu por terra. Veio, porém,
Apolo em seu auxilio e ajudou-o a levantar-se.
Desembainharam os dois as espadas e estavam novamente
prestes a atacar, quando acorreram dois arautos, um da parte
dos troianos e outro da parte dos gregos.

Separaram os dois contenderes com o ceptro e um deles


falou assim:

— Cessai, heróis, o combate homicida. O grande Júpiter


ama-vos igualmente e ambos demonstrasteis ser bons lutadores.
Escurece e é bom obedecer à noite.

Ájax respondeu:

— Falai a Heitor, a quem cabe decidir. Foi ele quem nos


desafiou. Portanto, ele que resolva e eu o seguirei.

E o grande Heitor, em resposta:

— Ájax, os deuses deram-te agilidade, força e coragem


sem par. Deixemos por enquanto o combate. Se a noite nos
manda fazer tréguas, obedeçamos-lhe. Amanhã
recomeçaremos a luta, até que a vitória se incline para um de
nós. Mas, antes, demos um ao outro magníficos presentes para
que entre troianos e gregos se diga: «Bateram-se eles
valorosamente e com toda a fúria mas separaram-se como
amigos.»

Assim dizendo, Heitor ofertou-lhe uma bela espada com


um vistoso talabarte e bainha, ao que Ájax retribuiu com um
cinturão de púrpura brilhante. Assim se separaram e os troianos
ficaram contentes de ver o seu chefe voltar com vida.

I Maior, porém, foi a alegria dos gregos, pois Ajam, sem


dúvida, levara a melhor na peleja. Conduziram o herói até à
tenda de Agamémnon, onde comemoraram o acontecimento
54
Ilíada – Homero

com um régio banquete, cujas honras couberam ao valoroso


filho de Télamon.

Terminado o festim, o prudente Nestor levantou-se:

— Valentes átridas—diz ele—e demais chefes do exército.


Elevado numero de guerreiros nossos pereceu hoje em
combate, avermelhando com o seu sangue a planície
verdejante, regada pelo rio Xanto. Ordena, pois, ó rei, que
amanhã, aos primeiros raios de sol, suspendamos os combates
para recolher e incinerar os corpos dos que morreram
gloriosamente. Guardemos os seus restos em túmulo comum e
nas proximidades desse túmulo apressemo-nos em construir
uma longa muralha com altas torres que, servindo de protecção
aos navios, nos possa também defender a nós mesmos.
Coloquemos nela sólidas portas, que dêem livre passagem aos
nossos carros, e cavemos fora da muralha um profundo fosso
que a acompanhe em toda a sua extensão e que possa deter os
cavalos e os guerreiros inimigos, se por acaso vierem eles a
tentar aproximar-se dos nossos navios.

Enquanto eram aceites com aplauso as sugestões de


Nestor, um pouco longe dali, na cidadela de Tróia, realizava-se
uma turbulenta assembleia convocada pelo temor, em face dos
acontecimentos do dia. Levantando-se, assim falou Antenor,
com gravidade e prudência:

— Troianos e demais aliados, atendei ao que vos digo.


Restituamos sem demora aos átridas Helena e suas riquezas,
pois quebramos um juramento sagrado e funesto futuro nos
aguarda se persistirmos nesta guerra.

Páris, esposo da bela Helena, não se conteve e protestou:

— Antenor, feriu-me vivamente a tua proposta que, se foi


apresentada seriamente, só pode ter partido de quem, por obra
dos deuses, não se acha em seu juízo perfeito. Quero declarar,
com firmeza, que jamais consentirei em separar-me de Helena.

55
Ilíada – Homero

Concordarei apenas em restituir as riquezas que com ela


vieram, às quais acrescentarei parte do que possuo!

Levantando-se por sua vez, Príamo pôs fim à discussão,


dizendo:

— Troianos e aliados nossos, recolhei-vos todos, embora


sem descuidardes a necessária vigilância. Amanhã irá Ideu até
aos navios transmitir aos átridas a proposta de Páris. Perguntar-
lhes-á, ainda, se concordam em fazer uma trégua para o
sepultamento dos mortos. Depois disso, retomaremos as armas
até que o destino nos dê a vitória, ou aos nossos inimigos.

No dia seguinte, encaminhou-se Ideu para os navios gregos


e, dirigindo. -se a Agamémnon e demais chefes reunidos,
comunicou-lhes o que estava autorizado a propor. Após tê-lo
ouvido, Diomedes tomou a palavra:

— Não devemos, de modo algum, aceitar que nos


devolvam nada, nem sequer a própria Helena. Tornou-se claro
para todos que os troianos nó terão capacidade de resistência
perante nós.

Virando-se para o mensageiro, Agamémnon transmitiu-lhe


a resposta dos chefes do exército: acordo apenas quanto à
trégua para proporciona aos mortos os cuidados devidos.

Providenciados esses cuidados de ambos os lados,


apressaram-se os gregos em erguer a muralha e as altas torres e
em cavar o fosso, largo e profundo, que lhes pudesse servir de
eficiente defesa contra um possível avança do Inimigo.

No dia seguinte, ao amanhecer, Júpiter convocou todos os


deuses em assembleia e disse-lhes:

—Deuses e deusas que aqui estais reunidos, prestai


atenção às minhas palavras. Pretendo hoje fazer a sorte pender
para o lado dos troianos e ai de quem se atrever a interferir!
Precipitarei no sombrio reino de Plutão e interditarei a entrada
56
Ilíada – Homero

do Olimpo a qualquer um que desobedecer às minhas ordens.


Ignorais porventura que sou muito mais forte do que todos vós?

Assim falou Júpiter e todos os deuses ficaram em silêncio,


pois ele parecia decidido a cumprir a ameaça. Depois de alguns
instantes, atreveu-se Minena a dizer:

—Meu pai, bem sabemos que a tua força é muito superior


à nossa. Mas temos pena dos pobres gregos que vão morrer. Já
que não o permites, não iremos combater a seu lado. Mas
poderíamos, ao menos, ajudá-los com sábios e prudentes
conselhos.

Sorriu o poderoso deus e respondeu-lhe:

—Sossega, filha querida. Não faças caso das minhas


ríspidas palavras, pois não foi contra ti que as dirigi.

Subiu, então, para o seu carro e, chicoteando os belos


cavalos de crina de ouro, voou para o monte Ida e de lá, sentado
no mais alto dos picos, ia observando o que se passava entre
gregos e troianos.

Pouco tempo depois, as tropas começaram a alvoroçar-se


nos preparativos para a luta. Os troianos iam dispostos a
defender-se com vigor redobrado, embora sabendo que,
numericamente, eram inferiores aos intrépidos helenos.

Não tardou muito que os dois exércitos se confrontassem


no campo de batalha. Entrechocaram-se escudos e espadas,
cruzaram-se lanças e começou a batalha. Lá dos píncaros do
Ida, Júpiter pesou a sorte dos combatentes e a balança pendeu
para o lado dos troianos. Nessa altura, o plenipotente senhor do
Olimpo enviou sobre as tropas gregas um poderoso raio que as
fez tremer de pavor.

Nem Idomeneu se conservou no seu posto. O próprio


Agamémnon recuou, acompanhado pelos dois Ájax. Só o velho
Nestor se manteve no seu lugar e, mesmo assim,
57
Ilíada – Homero

involuntariamente. Páris tinha morto um dos seus cavalos e o


carro mantinha-se, portanto, imóvel. Tentava,
desesperadamente, cortar as correios que prendiam o cavalo
morto, a ver se conseguia fugir dali com o que ainda lhe restava.
E teria sido apanhado nesses preparos pelo bravo Heitor, não
fora Diomedes ter vindo em seu auxílio. De passagem, chamara
Ulisses que corria em direcção aos navios:

— Ó nobre filho de Laerte, para onde foges tu, no ardor do


combate, como um vulgar cobarde? Cuidado, não vá o inimigo
ferir-te pelas costas! Vem comigo defender o velho Nestor das
mãos do mais perigoso dos adversários.

Mas Ulisses nem o ouviu, pois já estava longe, a


aproximar-se dos navios. Sozinho, Diomedes meteu-se entre os
combatentes mais avançados e parou junto dos cavalos do
velho, a quem dirigiu estas prudentes palavras:

— Meu velho amigo, estás demasiado alquebrado para


enfrentares tais guerreiros. Anda, salta para o meu carro e verás
como são ligeiros os cavalos que roubei a Eneias. Deixa os
animais ao cuidado dos teus camaradas e lancemo-nos no
encalço de Heitor, para que ele fique a saber quanto vale a
minha lança.

Assim falou e Nestor não se fez esperar. Subiram ambos


para o carro de Diomedes e dirigiram-se ao encontro de Heitor.
Como este vinha a correi na sua direcção, o filho de Tideu
arremessou a lança contra ele. No entanto não atingiu o filho de
Príamo mas sim o seu cocheiro, que logo tombou ferido de
morte. Muito triste ficou o herói com a perda do amigo mas não
podia deter-se. Encontrou, imediatamente, um substituto: o
destemido Arqueptólemo, a quem fez subir para o carro e
entregou as rédeas.

Naquele instante, um novo raio riscou o céu por cima das


cabeças dos gregos. Nestor deixou cair as rédeas das mãos,
apavorado com o sinal de Júpiter.

58
Ilíada – Homero

— Diomedes — disse ele —, não achas melhor


retrocedermos, antes que a demasiado tarde? Não vês que
Júpiter está contra nós e resolveu dar vitória ao filho de
Príamo?

Achou Diomedes que o velho tinha razão mas replicou:

— Tens toda a razão, sábio Nestor, mas muito me


aborrece dar motivo a que, algum dia, Heitor possa dizer aos
troianos: "O filho de Tideu, escorraçado por mim, fugiu que
nem uma lebre na direcção da segurança dos navios."Se tal
acontecer, prefiro então que a terra me devore.

Ao que o velho respondeu:

— Mas que dizes, bravo Diomedes? Ninguém, nem


gregos nem troianos, Meditaria em tal coisa, pois já
demonstraste bem a tua valentia.

E, nesta troca de palavras, começaram ambos a recuar.


Atrás deles, acompanhado por outros guerreiros troianos,
vinha Heitor que os perseguia atirando-lhes dardos e pedradas.
Entre as vozes, destacava-se a de Heitor, que bradava: —
Então, Diomedes, és tu aquele a quem os gregos atribuíam o
lugar de honra nos banquetes? Pois fica ciente que a partir de
hoje não voltarão fazê-lo! Foge, cobarde, foge! És tu o homem
que pretendia escalar as nossas Gralhas e levar como cativas
as nossas mulheres? Hesitante, o filho de Tideu ainda quis
fazer voltar os cavalos e enfrentar leitor, mas o deus desferiu
de novo o seu raio, anunciando a derrota aos figos. Estimulado
por aquele sinal, o chefe dos troianos incitava os seus
guerreiros e avançava sempre em perseguição de Nestor e de
Diomedes. Puxando Rédeas aos cavalos, interpelava-os
citando os seus nomes e gritava:

— Vamos! Depressa! Lembrem-se da carinhosa


solicitude de Andrómaca, que sempre vos deu os manjares
mais apetitosos e até vinho vos servia! Levem-me o mais

59
Ilíada – Homero

rápido que puderem, para que eu possa atravessar o escudo de


Nestor com a minha lança e derrubar o valente Diomedes!

E assim Heitor e os seus avançaram até à muralha que os


gregos haviam construído para defesa dos navios. E todos
fugiam diante dele, tal era o ardor com que investia.

Agamémnon, vendo que os seus homens se entregavam


ao desanimo e continuavam a recuar, inspirado pela divina
Juno, pôs-se a percorrer as tropas, procurando incutir-lhes
coragem. Subindo ao navio de Ulisses, que ficava no meio dos
outros, gritou o mais alto que pôde:

— Que vergonha, belos mas cobardes helenos! Onde está


o vosso orgulho? E a vossa arrogaria, quando dizíeis que
bastava um de vós para fazer frente a cem ou duzentos troianos?
Agora, basta Heitor aparecer e todos fogem como crianças
amedrontadas. Daqui a pouco ele virá sozinho lançar fogo aos
nossos navios! Ó Júpiter, ouvi esta súplica: permiti ao menos
que estes homens se salvem na fuga e não trucideis deste modo
todos os gregos que sempre vos honraram com os melhores
sacrifícios!

Assim falou Agamémnon e o pai dos deuses compadeceu-


se das suas lágrimas e deu-lhe a saber que as tropas não
pereceriam. E o sinal que lhe mandou foi uma águia que trazia
um veado preso nas garras, que deixou cair sobre o altar onde
os gregos costumavam fazer os sacrifícios.

Reanimaram-se os soldados e voltaram ao ataque. Como


sempre, Diomedes foi o primeiro a investir e logo de início
atravessou com a lança um dos mais arrojados troianos. Depois
avançaram Agamémnon, Menelau, Ájax e os outros chefes.
Entre eles achava-se Teucro, irmão de Ájax e hábil lanceiro.
Escondendo-se astuciosamente atrás do escudo de Ájax, Teucro
disparou um dardo que foi atingir Orsiloco, valente troiano. A
seguir, derrubou outro, e mais outro, e dentro de alguns

60
Ilíada – Homero

instantes nove guerreiros jaziam prostrados pelas setas do ágil


flecheiro.

A vista de tais sucessos, aproximou-se Agamémnon do


jovem Teucro e disse-lhe:

— Muito bem, Teucro, mata e fere sem descanso! Vamos,


surge como farol para nos conduzir à vitória! E eu te prometo
que, quando tomarmos Tróia, terás os melhores despojos depois
dos meus.

— Glorioso átrida — respondeu o jovem —, não preciso


de elogios para ter mais coragem. Ainda não parei de
arremessar dardos aos troianos mas não consigo atingir Heitor,
que sempre se esquiva aos meus golpes.

Quando acabou de falar, fez novamente pontaria na


direcção do chefe troiano. Não atingiu Heitor mas feriu outro
dos filhos de Príamo, que ali mesmo expirou. Pela décima vez
disparou uma seta com o mesmo intuito e falhou. Mas
Arqueptólemo, o cocheiro, ficou ferido mortalmente e os
cavalos recuaram desgovernados. Cebríones, irmão de Heitor,
prontificou-se a guiar-lhe os animais. Então, enfurecido com a
perda do segundo auriga, Heitor saltou do carro e, pegando
numa pedra angulosa, atirou-a sobre Teucro, no momento em
que este retesava o arco para o alvejar. A pedra atingiu-lhe o
ombro, o arco saltou-lhe das mãos e o herói caiu de joelhos
contorcendo-se de dor. Acudiu Ájax, pressuroso, e protegeu o
corpo do irmão com o seu escudo, enquanto outros o arrastavam
para os navios gregos.

Quando os troianos viram o grande arqueiro sair do


combate, redobraram de esforços e novamente fizeram os
gregos recuar até à muralha. Heitor avançava à frente, matando
todos os adversários com que se defrontava.

Ante esse espectáculo que divisava do Olimpo, a divina


Juno, não podendo mais conter-se, disse a Minerva:

61
Ilíada – Homero

— Então, indomável filha de Júpiter, ficaremos aqui de


braços cruzados, enquanto os valentes helenos perecem? Se não
fizermos alguma coisa, todos morrerão às mãos de Heitor.

— E que podemos fazer — ponderou Minerva —, se meu


pai, movido por sentimentos injustos e cruéis, se opõe aos
nossos desejos? Está agora determinado em fazer as vontades a
Tétis, só porque ela lhe beijou as mãos e toda humilde lhe
suplicou que vingasse seu filho Aquiles.

Depois destas lamúrias, as duas densas, armando-se da


cabeça aos pés, subiram para a sua brilhante carruagem e
prepararam-se para entrar na luta.

Mas Júpiter, dos cimos do monte Ida, observou a fuga das


duas deidades e o sangue subiu-lhe à cabeça. Mandou, então, à
mensageira Íris que fosse ao encontro de ambas e lhes dissesse:

— Voltai imediatamente, pois, de contrário, arrepender-


vos-eis amargamente. Paralisarei os cavalos e farei com que o
carro se quebre em mil pedaços. Além do mais, sereis
derrubadas e ficareis em tais condições que nem daqui a dez
anos terão sarado as vossas feridas.

Quando o Olímpico acabou de falar, Íris apressou-se em


sair ao encontro das densas. Transmitiu-lhes o recado de Júpiter
e aconselhou-as a que obedecessem.

Ao ouvir a ameaçadora mensagem, disse Juno a Minerva:

— Não adianta lutarmos contra Júpiter, pois ele é o mais


forte. Deixemos que ele mate troianos ou gregos, como bem
entender.

E, dizendo isto, fez meia volta com os cavalos e


penetraram ambas no Olimpo, indo sentar-se nas suas cadeiras
de ouro no meio dos outros deuses, tristes e derrotadas.

62
Ilíada – Homero

Por sua vez, o pai dos deuses abandonou o monte Ida e


voltou à celeste morada, indo sentar-se no seu trono de ouro, a
pouca distancia do lugar onde se encontravam Juno e Minerva.
Nenhuma delas se levantou para lhe falar mas Júpiter, que as
conhecia muito bem, disse-lhes:

— Porquê tamanha tristeza? Por que razão já não vos vejo


a lutar contra os troianos que tanto odiais? Sabei que nem todos
os deuses reunido poderiam alterar os meus desígnios. E uma
coisa vos digo: se me tivésseis desobedecido, nunca mais teríeis
entrado no Olimpo.

Minerva fervia de indignação mas ficou silenciosa. Juno


não estava menos furiosa e, não podendo mais conter-se,
explodiu:

— Está bem! Não podemos ir contra a tua vontade mas não


podes impedir que nos compadeçamos dos desgraçados que vão
morrer. E, sempre que tivermos oportunidade, haveremos de
dar-lhes bons conselhos, para que não morram todos expostos
à tua ira.

— Pois amanhã — respondeu a rir o senhor das nuvens—


verás coisas bem piores. Heitor não deixará de destruir os
gregos até que eles se resolvam a chamar Aquiles, lá donde ele
se encontra, na sua tenda perto dos navios.

E quando os deuses acabaram de discutir, o Sol mergulhou


no mar e a noite cobriu a terra com as suas sombras. Os troianos
lamentaram a escuridão que os obrigava a cessar a luta mas os
gregos alegraram-se, pois já não tinham forças para combater.

Heitor convocou os troianos para uma assembleia na


margem do rio e, apoiando-se na lança, ainda orgulhoso das
recentes vitórias, assim falou:

— Atenção, homens de Tróia, e vós outros, valentes


aliados! Pensei que ainda hoje destruiríamos os navios gregos
antes do regresso à cidade. Mas tal não permitiram as trevas que
63
Ilíada – Homero

nos obrigam ao repouso. É preciso, porém, que estejamos


vigilantes e por toda a parte acendamos fogueiras, para que o
inimigo não nos escape, fugindo nas suas rápidas naus. Ide
alguns de vós à cidade e trazei-nos bastante comida e vinho e
avisei lá os velhos e os meninos para que fiquem atentos, de
vigília nas muralhas. Por enquanto, são estas as minhas ordens.
Amanhã terei outras coisas a dizer-vos. Veremos, então, se o
valente Diomedes ainda se atreverá a enfrentar a minha lança e
me forçará a recuar para a cidade ou se sou eu que o prostrarei
morto, arrebatando-lhe as armas.

Os troianos exultaram ao ouvir as palavras de Heitor e


fizeram como ele havia ordenado. Desatrelaram os cavalos e
deram-lhes uma boa ração trazida da cidade. Acenderam
numerosas fogueiras e sentaram-se ao redor, na expectativa de
que o dia amanhecesse e lhes trouxesse a tão almejada vitória.

Enquanto a alegria reinava no acampamento troiano, eram


os gregos presa do sobressalto e do terror. Os mais bravos eram
os que mais desesperados estavam, por verem baldados os seus
esforços. Agamémnon passeava de um lado para o outro, sem
saber o que fazer. Por fim, chamou os arautos e ordenou-lhes
que reunissem todos os chefes em conselho, mas que o ficassem
cautelosamente para que disso não se apercebessem os outros
guerreiros, Dentro de alguns instantes, todos os chefes lá se
encontravam, cabisbaixos e tristes. Quando viu todos sentados,
levantou-se Agamémnon e, com lágrimas nos olhos, disse-lhes:

— Amigos meus! Chefes e conselheiros dos gregos! Estou


convencido de que o divino Júpiter nos arma uma terrível
desgraça e nos tenta destruir. tinha-me prometido que
regressaríamos vitoriosos à Grécia e que, antes disso,
destruiríamos as fortes muralhas de Tróia. Mas, agora, parece
comprazer-se com a nossa derrota. Portanto, não nos resta mais
que fugir com os nossos navios e regressar desonrados à pátria,
visto que jamais conquistemos Tróia.

64
Ilíada – Homero

Todos ficaram mudos ao ouvir tais palavras e em seus


semblantes transparecia a consternação e a surpresa. O primeiro
a falar foi Diomedes:

— Ó átrida, permite-me que me insurja contra essa tua


insensata ideia e não te encolerizes. Houve um dia em que me
insultaste perante todos, chamando-me fraco e cobarde, mas
eles testemunharam agora a minha actuação na guerra. Júpiter
te honrou, dando-te o ceptro e a chefia de todos os gregos. Mas
uma coisa tu não possuis: firmeza de animo. Se pretendes
voltar, parte, que os navios estão à tua espera e ninguém te
impedirá a fuga.

Eu, porém, ficarei e não faltará quem me acompanhe.


Estou disposto a bater-me até ao fim e Estenelo ficará comigo.
Sim, não sairemos daqui sem a vitória, pois foi para isso que
viemos e um deus nos guiou.

Aplaudiram todos entusiasticamente estas palavras e


chegou a vez do velho Nestor se levantar e falar deste modo:

— Diomedes, tu és um bravo e, além disso, um homem


sensato. Não há ninguém que não aprove as tuas palavras. E tu,
Agamémnon, antes de tomares qualquer iniciativa, convida os
chefes e conselheiros para um banquete na tua renda, pois todos
combateram arduamente durante o dia e estão cansados.
Depois, então, cada um de nós falará e tu aceitarás o conselho
mais prudente. Manda que as sentinelas fiquem de guarda e
acendam fogueiras, como fizeram os troianos, a fim de que não
sejamos apanhados de surpresa. Decididamente, esta será a
noite ou da nossa perdição ou da nossa salvação.

Como lhe parecesse de bom alvitre aceitar o conselho de


Nestor, Agamémnon convidou os chefes para comerem e
beberem em sua companhia. Findo o banquete, foi ainda Nestor
quem tomou a palavra:

65
Ilíada – Homero

— Glorioso átria, chefe de todos os helenos, ouve o que te


vou dizer. Tu és rei e por isso tens direito a maiores honrarias
do que qualquer um de nós. Por conseguinte, tens também a
obrigação de ouvir os conselhos dos mais sábios e mais
prudentes. Fizeste muito mal quando afrontaste o divino
Aquiles, o mais valoroso dos teus súbditos, arrebatando-lhe a
jovem Briseida e, dirigindo-lhe, além disso, os mais soezes
insultos. Nessa altura, não me quiseste ouvir, por mais que
tentasse dissuadir-te. Mas ainda é tempo. Envia uma embaixada
à tenda de Aquiles, com presentes magníficos, e procura
aplacar-lhe a cólera.

O príncipe de todos os guerreiros respondeu-lhe nestes


termos:

— Tens razão, Nestor, em censurar-me pelo que fiz.


Reconheço que agi oral e Júpiter tem-me castigado, destruindo
as nossas tropas. Agora, quero penitenciar-me e novamente
captar a amizade do grande guerreiro com ricos presentes: sete
tripodes inteiramente novas, que nunca foram ao fogo, dez
talentos de ouro, vinte caldeirões polidos e doze cavalos da
melhor raça, que vários prémios já ganharam nas corridas.
Além disso, dar-lhe-ei sete escravas, mulheres lindíssimas que
me couberam como despojos quando arrasei Lesbos. E juro
diante de vós que, quando arrasar Tróia e dividir o resultado do
saque, ele poderá escolher para si próprio vinte das mais belas
mulheres da cidade depois da bela Helena, pois nenhuma pode
ser mais formosa do que ela. E ainda lhe darei mais do que isso:
quando voltarmos à Grécia, receberá em minha casa honras
idênticas às do meu filho Crestes. No meu palácio, tenho três
filhas e dar-lhe-ei a mão daquela que ele escolher como esposa,
sem que necessite pagar dote algum, como é costume. Além da
noiva, levará ainda para casa tantos e tão magníficos presentes
como nunca homem algum deu a uma filha nubente. Sete
cidades ricas e populosas lhe darei, cercadas de campos
excelentes para a pastagem, e todas lhe pagarão tributos dignos
de um deus. Eis o que prometo a Aquiles, se ele se deixar
abrandar e consentir em voltar ao combate.

66
Ilíada – Homero

Quando Agamémnon acabou de falar, disse-lhe Nestor:

—Realmente, os teus presentes são magníficos e não há


quem os possa desprezar. Vejamos quem poderemos mandar à
tenda de Aquiles para lhe os trocar essas dádivas. Fénix poderá
ir, pois é muito estimado pelos deuses e Aquiles também o
estima. Depois o grande Ájax e o divino Ulisses, acompanhados
de dois arautos. E agora, que tragam água para lavarmos as
mãos e guardemos silêncio por alguns instantes, a fim de
suplicarmos a Júpiter que se apiede de nós.

Trouxeram os arautos a água, derramaram-na sobre as


mãos dos chefes e encheram de vinho as taças. Após as súplicas
ao deus olímpico, todos comeram e beberam até à saciedade e
saíram da tenda de Agamémnon. Nestor chamou à parte os que
deveriam levar a mensagem a Aquiles e recomendou-lhes que
tudo fizessem para abrandá-lo. E dirigiu-se em particular a
Ulisses, que era o mais eloquente e esperto de todos, ensinando-
lhe a melhor maneira de convencer o invicto guerreiro.

Os mensageiros de Agamémnon seguiram em direcção ao


acampamento de Aquiles. No caminho, enquanto andavam ao
longo da praia, rezaram com fervor aos deuses, pedindo-lhes
força de persuasão para convencer o herói.

Ao chegarem ao acampamento dos mirmidões, guerreiros


de Aquiles, encontraram-no a tanger uma lira e a entoar
canticos em que narrava altos feitos de heróis. Pátroclo, o
amigo fiel, ouvia-o atentamente.

Surpreendido com a visita dos embaixadores, Aquiles


levantou-se, no que foi imitado pelo amigo e, com um gesto de
cordialidade, saudou-os:

— Sois bem-vindos, amigos. Embora eu esteja


encolerizado contra o vosso rei, nem por isso vos estimo menos.

E, assim dizendo, fê-los entrar e sentar-se. Em seguida,


pediu a Pátroclo:
67
Ilíada – Homero

— Traz-me boa quantidade do melhor vinho para cada um


dos meus hóspedes, pois são os homens que mais estimo entre
os gregos.

Pátroclo apressou-se em obedecer ao companheiro. Depois


de beberem, o próprio Aquiles lhes preparou uma boa ceia de
carne de carneiro e de lombo de porco. Quando o assado ficou
pronto, serviu Pátroclo um pão muito branco e todos se
sentaram em volta da mesa, ficando Ulisses em frente de
Aquiles. Depois de matarem a fome e de saciarem a sede, Ájax
fez um sinal a Fénix. Ulisses apercebeu-se disso e, enchendo
novamente a taça com vinho, ergueu-a fazendo um brinde ao
ilustre anfitrião:

— À tua saúde, Aquiles! Na verdade, não nos têm faltado


banquetes. primeiro, na tenda de Agamémnon e, agora, na tua
companhia. Mas não percamos tempo a pensar em festas, pois
estamos na iminência de perecer todos as mãos dos troianos.
A não ser que novamente o teu braço se levante, em nossa
defesa, estamos fadados a perder nossos belos navios, pois
tornou -se evidente que Júpiter está contra nós. Heitor não
poupa ninguém, cônscio da sua força e de que os deuses o
favorecem. Agora mesmo, espera impaciente que o dia
amanheça, a fim de nos destruir completamente Decide-te,
Aquiles, vem livrar os gregos do perigo, antes que seja muita
tarde. Não te lembras já dos preceitos de Peleu, teu velho pai,
quando te mandou acompanhar Agamémnon? Disse-te ele:
«Meu filho, os deuses te dará valentia e força, se quiserem,
mas há alguma coisa que só depende de ti tira do teu coração o
orgulho, pois a bondade é muito mais valiosa. Evita a
discórdia, para que todos, moços e velhos, te louvem e te
estimem.» Foram estes os conselhos de teu pai e tu
esqueceste-os. Mas ainda há tempo para te arrependeres. Além
do mais, enviou-nos Agamémnon para te oferecer os mais
belos presentes como reparação da ofensa que te fez.

68
Ilíada – Homero

Em seguida, Ulisses passou a enumerar as dádivas que


Agamémnon prometia a Aquiles, no caso de ele regressar ao
combate. Mas, quando terminou, ouviu do indomável guerreiro
estas palavras:

— Nobre Ulisses, vou falar-te com franqueza e direi o que


penso e, que pretendo, a fim de que mais ninguém me procure
com essa finalidade Detesto quem pensa uma coisa e diz outra,
por isso levai a Agamémnon a minha resposta. Nem ele nem
ninguém me fará mudar de ideias. Nó me interessa passar o
resto da vida a lutar. O herói e o cobarde receber o mesmo
prémio e igual sorte lhes está destinada: a morte. Depois de me
expor tantas vezes nos mais renhidos combates, que lucrei eu?
Devastei dez cidades com os meus navios e, por terra, posso
garantir que arrasei onze no solo troiano. De todas elas recolhi
um sem número de riquezas, mas tudo entreguei a Agamémnon,
que se mantinha sempre na retaguarda, junto dos seus navios.
Ele, porém, guardava quase tudo para si e reparti muito pouco
com os seus melhores guerreiros. Contudo, o pouco que c
outros receberam para si guardaram. Mas a mim, o que ele me
deu, ele mesmo mo tirou. Portanto, arranje-se como puder! E
porque estão os gregos a combater os troianos? Não é por causa
do rapto de Helena? Então são só os átridas que têm o direito
de amar as suas mulheres? Todo o homem sensato ama a sua
esposa e eu também amava a minha, embora foste apenas uma
cativa. Podes dizer-lhe, também, que amanhã mesmo
embarcarei nos meus navios e com meus bravos remadores
espero chegar a Ftia dentro de dois dias. Lá tenho riquezas
imensas e fui tolo em deixar tudo para acompanhar
Agamémnon. E, quando eu me quiser casar, não faltarão belas
mulheres na minha terra ou noutras cidades da Grécia. Aquela
de quem eu mais gostar será minha esposa. Para isso não
preciso da filha de Agamémnon, nem me casaria com ela ainda
que fosse bela como Vénus e inteligente como Minerva.
Porque, para mim, a vida vale mais do que todas as riquezas de
Tróia. Disse-me um dia Tétis, minha mãe: ..Meu filho, há dois
caminhos que poderás seguir mas és tu quem deve fazer a
escolha. Se ficares na tua pátria, gozarás de vida longa mas
69
Ilíada – Homero

inglória. Pelo contrário, se partires e lutares em torno de Tróia


até o fim, terás vida curta mas a tua glória será imortal.» Outrora
eu pensava que a fama era o que mais importava. Agora, porém,
já não penso assim. Por isso, volto para a minha terra e
aconselho-vos todos a fazer o mesmo, pois Tróia jamais será
capturada. Levai a minha mensagem aos gregos, para que
procurem outros meios de salvação, já que este não surtiu
efeito. Fénix dormirá esta noite na minha tenda e, se quiser,
partirá comigo amanhã.

Ficaram todos estupefactos e momentaneamente


silenciosos perante a violência da inesperada resposta de
Aquiles, que deitava por terra todas as esperanças.

Quando Aquiles acabou de falar, o velho Fénix, com


lágrimas nos olhos, tomou a palavra:

— Já que estás resolvido a partir, Aquiles, já que as nossas


súplicas não te comovem, como poderei eu ficar longe de ti,
querido filho? Foi teu pai, o generoso Peleu, quem me mandou
acompanhar-te nesta guerra. Ao sairmos de Ftia, tu eras ainda
um jovem inexperiente e ignorante das coisas da guerra. Nem
sequer sabias falar nas assembleias e fui eu quem [e ensinou
tudo isso. Não poderia abandonar-te agora, nem que um deus
me prometesse fazer voltar aos tempos de rapaz, quando fui
residir em companhia de teu pai. Outrora eu habitava a formosa
Hélade, mas tive de deixá-la porque meu pai se zangara comigo
e conseguira das ferozes Erimias que jamais um filho meu se
sentasse no seu colo. Fiquei encolerizado com essa maldição e
senti desejos de matá-lo. Mas os deuses protegeram-me e
afastaram de mim esse mau pensamento. Sufoquei a minha
cólera, de molde a que um dia os meus conterrâneos não me
pudessem apelidar de parricida, mas não podia permanecer em
casa de meu pai. Todos, amigos e parentes, vieram suplicar-me
que não partisse, mas eu já tinha tomado a minha decisão.
Então, procuraram reter-me pela força. Durante nove dias e
nove noites revezaram-se, montando guarda ao palácio para que
eu não fugisse. Tudo em vão. Consegui escapar aos guardas,

70
Ilíada – Homero

atravessei a vasta Hélade e cheguei à opulenta terra de Ftia. Lá


fui bem recebido por Peleu, que se tornou meu amigo e, em
breve, passava a considerar-me seu filho. Deu-me imensas
riquezas e um reino para governar. Confiou-te também aos
meus cuidados e eu transformei-te no homem que hoje és. Não
passavas de uma criança arisca e só comparecias aos festins se
fosses acompanhado por mim. Sentava-te ao meu colo e metia-
te a comida na boca, segurando a taça em que tomavas o vinho.
Muitas vezes o derramaste nas minhas roupas, mas e não me
aborrecia, pois eras como um filho para mim. E, agora, peço-te
que me onças. Nem os deuses são implacáveis como estás a ser.
Mesmo ele deixam-se domar à força de orações e de sacrifícios.
Portanto, Aquiles, t também deves ceder ante o pedido de
Agamémnon e dos mais nobres dá helenos. Se ele não te tivesse
oferecido tantos presentes, nem te tivesse prometido outros e
permanecesse irado contigo, não te devolvendo o que
injustamente te tinha tirado, então eu não insistiria para que nos
viesse socorrer nesta grande aflição. Mas ele tudo fez e enviou-
nos à tua presença nós que somos os teus melhores amigos.
Deu-se outrora um caso semelhante, que me ocorre contar-te:

«Houve uma luta entre os curetes e etólios por causa da


cidade de Calidon, que os dois povos disputavam entre si.
Enquanto o valente Meleagro esteve em campo, os curetes
passaram mó momentos. Mas um dia ele aborreceu-se com a
mãe, por um qualquer motivo fútil, e não quis lutar mais.
Deixou-se ficar em casa ao lado da mulher, a bela Cleópatra, e
de nada valeram os rogos e súplicas do pai e dá amigos. A
própria mãe o foi procurar, pedindo-lhe, insistentemente, pá
que voltasse ao combate, prometendo-lhe o domínio das terras
e cidade conquistadas ao inimigo. Mas o orgulhoso Meléagro
mantinha-se surdo e quedo, sem se preocupar com a sorte de
seus concidadãos. Uma noite estando a dormir, foi despertado
pelo fogo que lavrava já no próprio quarto. Os inimigos tinham
escalado as muralhas e a cidade estava toda a ardi S6 então
Meléagro resolveu atender às súplicas dos parentes e amigo
Levantou-se, envergou as armas e entrou na luta. Conseguiu
realmente salvar os etólios mas não recebeu nenhum dos
71
Ilíada – Homero

presentes que antes lhe havias oferecido, pois somente se


decidira quando a desgraça tinha atingido a própria casa.» É por
isso que te digo, Aquiles, deixa-te abrandar e aceita a dádivas
de Agamémnon, para que um dia não te vejas obrigado a lançar
na guerra sem as vantagens que agora te oferecem.

Quando o velho Fénix terminou, respondeu-lhe Aquiles:

— Meu querido amigo, não tenho necessidade dessas


honras. Já está satisfeito com o que possuo e o que peço aos
deuses é apenas uma vida longa. E suplico-te: não insistas mais
e não te preocupes com Agamémnon. Não procures auxiliá-lo
tanto assim, pois então eu, que tanto te estime passarei a odiar-
te. O melhor é voltares amanhã comigo para Ftia. Por enquanto,
vamos dormir que já é tarde. Quando o Sol despontar no
horizonte, voltaremos a conversar e decidiremos o que fazer.

Em seguida, Aquiles fez sinal a Pátroclo para preparar a


cama do velho, dando a entender aos outros que era tempo de
partirem.

Mas Ájax não quis sair sem antes dizer:

— Devemos ir-nos, Ulisses. Temos que levar a resposta ao


nosso chefe. Não adianta ficarmos aqui, pois Aquiles ainda
guarda o mesmo rancor de outrora e não se importa com a
amizade de seus antigos companheiros. É um homem sem
coração e por causa de uma cativa despreza os amigos que tanto
0 estimam.

Ao que Aquiles respondeu:

— Divino Ájax, as tuas palavras calaram fundo em meu


espírito. Mas ainda sinto a cólera ferver-me no peito, quando
recordo a afronta que Agamémnon me fez, diante de todo o
exército, como se eu fosse o mais humilde dos escravos. Diz-
lhe, pois, que só me envolverei na guerra quando Heitor, depois
de ter morto inúmeros helenos, chegar aos meus navios e à

72
Ilíada – Homero

minha tenda. Então, apesar da sua bravura, farei com que se


detenha.

A embaixada partiu e os outros, incluindo o velho Fénix


que ficou com Aquiles, recolheram-se. Agamémnon e os outros
chefes gregos receberam estupefactos a resposta do filho de
Peleu. Pairou entre eles um silêncio de morte quando Ulisses
lhes transmitiu as palavras de Aquiles. Depois de alguns
instantes, levantou-se Diomedes e disse:

— Glorioso rei, prouvesse aos deuses que não tivesses


enviado súplicas a Aquiles nem lhe tivesses oferecido tão
valiosos presentes. Se já era insolente, mais insolente ficou.
Não pensemos mais nele, que virá quando quiser ou quando um
deus o trouxer. Reparemos as forças comendo e bebendo e,
depois, repousemos. E, quando a aurora despontar no céu
radioso, todos, a postos junto aos navios com ardor renovado,
talvez façamos os troianos retroceder dando tu, Agamémnon, o
melhor exemplo na luta.

Todos apreciaram e aplaudiram as palavras de Diomedes e


retiraram-se para as suas tendas, onde se entregaram ao prazer
do sono, que faz esquecer todas as preocupações.

Altas horas da noite, o sono dominava o acampamento dos


gregos. Mas Agamémnon, presa de uma angústia inexplicável,
não conseguia dormir. O seu animo vacilava e o espectro da
derrota enchia-o de pavor. Alongando o olhar para o
acampamento troiano, via o clarão das fogueiras e apercebia-se
da actividade das tropas, enquanto que do lado dos exércitos
gregos todos dormiam a sono solto. Lembrou-se, então, de ir
procurar Nestor e pedir-lhe um conselho, um plano que os
pudesse salvar a todos. A caminho encontrou Menelau, que
também não pudera conciliar o sono e que, envergando as
pesadas armas, vinha à sua procura. Ficaram ambos satisfeitos
com o encontro e Menelau foi o primeiro a falar:

73
Ilíada – Homero

—Para onde vais, meu irmão, assim armado, a estas horas


da noite? Pensas em enviar alguém para observar o que fazem
os troianos? Receio, apenas, que nào encontres ninguém que
queira correr esse risco.

— Não vejo nenhuma solução para escapar da derrota—


respondeu-lhe Agamémnon. — Não há dúvida que os deuses
imortais estão com Heitor e que me abandonaram. Apesar disso
vamos pedir conselhos ao sábio Nestor e ao astuto Ulisses, pois
talvez eles consigam engendrar um meio de escaparmos. Vai
acordar Ájax, filho de Télamon, Idomeneu, e os outros chefes
cujos barcos estão mais distantes, enquanto eu vou ao encontro
do velho Nestor.

Foi com boa vontade que Menelau se apressou a cumprir


as ordens do seu irmão, ansioso, como estava, por afastar da
mente os pensamentos que a atormentavam. Agamémnon,
empunhando uma tocha acesa, entrou n barraca de Nestor que
dormia tranquilamente.

— És tu, Agamémnon? O que se passa? — perguntou ele.

E Agamémnon expôs-lhe, de imediato, o motivo da sua


presença.

— Bom Nestor, não consigo dormir a pensar no


amanhecer. Temo que sejamos atacados durante a noite. Venho
em busca do conforto da tua sabedoria. Vamos, primeiro,
verificar juntos se os vigias estão atentos e depois chamamos
mais uma vez os nossos amigos, para ver se encontramos
alguma solução.

Nestor levantou-se imediatamente e, ainda a enfiar a túnica


e a atar as sandálias, disse a Agamémnon:

— Repreenderei Menelau por te ter deixado sozinho, numa


altura em que andas a acordar todos os chefes gregos. Deveria
estar a teu lado, justamente agora que mais precisas dele.

74
Ilíada – Homero

— Desta vez estás a ser injusto — disse Agamémnon


sorrindo. — Reconheço que ele evita tomar decisões, mas fá-lo
por puro respeito, para que eu possa manifestar sempre em
primeiro lugar a minha opinião e os meus desejos. Esta noite,
no entanto, levantou-se antes de mim e está, neste momento, a
dirigir-se para os barcos mais afastados para convocar todos os
chefes.

Nestor cobriu-se com o seu manto de lá vermelha e, junto


com Agamémnon, foi acordar Ulisses. Mais adiante
encontraram Diomedes, Estenelo e seus companheiros deitados
do lado de fora das barracas, todos armados e preparados para
um possível ataque de surpresa. Diomedes, quando soube da
convocação para uma nova assembleia, ofereceu-se para ir
chamar os que ainda não tinham sido avisados.

Nestor aceitou o seu oferecimento de bom grado e


Diomedes partiu à procura de Ájax de Lócrida. Nestor foi
elogiar pessoalmente os vigias que ia encontrando alerta nos
respectivos postos, pois é sabido que o justo louvor pode
fortalecer a coragem e a confiança de um homem.

Quando os reis e os príncipes gregos já estavam reunidos,


Nestor foi o primeiro a falar pois todos queriam ouvir o que ele
tinha a dizer.

— Nada há tão desesperador quanto a incerteza.


Deveríamos mandar um homem valente ao acampamento dos
troianos para os espiar e verificar se eles se estão a preparar para
um ataque nocturno, ou se, pelo contrário, vão dormir e esperar
pelo amanhecer para voltar à luta. Haverá aqui alguém que se
proponha executar essa missão? Presentes magníficos e
grandes honras receberia o autor da façanha.

Foi Diomedes quem prontamente respondeu:

75
Ilíada – Homero

— Irei eu. Tenho coragem e valor bastantes para isso, mas


ficaria mais tranquilo se levasse comigo um companheiro,
porque dois pensam e agem melhor que um.

Foram vários os guerreiros que se ofereceram para o


acompanhar: os dois Ájax, Meriones, filho de Nestor, Menelau
e o bravo Ulisses. Agamémnon, porém, propôs:

— Diomedes, já que tantos querem ir, escolhe tu aquele a


quem preferes levar contigo. Não te deixes dominar por
questões sentimentais ou quejandas. Escolhe o que te parecer
mais forte e mais valente.

— Já que me dás liberdade de escolha, levarei Ulisses,


excelente amigo, bravo guerreiro e espírito iluminado. Tal é sua
prudência que retornaremos incólumes até do meio de chamas
ardentes.

Ulisses limitou-se a responder:

— Deixa-te, Diomedes, de tantos louvares e partamos sem


demora pois a aurora aproxima-se. Somente nos resta uma
pequena parte da noite.

Em seguida, os dois começaram a preparar-se para partir.


Não levavam nem armaduras nem capacetes, pois o metal
poderia provocar ruído ao bater nalguma pedra, se precisassem
de se esconder, e os brilhantes capacetes poderiam reflectir a
luz das fogueiras dos troianos. Diomedes colocou um barrete
de couro do tipo usado pelos guerreiros comuns e pediu
emprestada uma espada, pois tinha deixado a sua na barraca.
Menones emprestou a Ulisses o arco e a aliava e um estranho
barrete de couro, incrustado com dentes de javali.

Despedindo-se dos companheiros, partiram. Poucos


passos tinham andado quando perceberam que uma garça,
mensageira de Minerva, os acompanhava. Vê-la, de facto, não
viram, devido à escuridão, mas ouviram-lhe o grasnido,
prenúncio de bons acontecimentos. Felizes com o augúrio,
76
Ilíada – Homero

invocaram a deusa da guerra e pediram-lhe protecção contra os


troianos. Em seguida avançaram cautelosamente, pisando
cadáveres e poças de sangue.

Enquanto isto se passava, no acampamento troiano Heitor


tinha convocado os seus chefes que, do mesmo modo, tinham
resolvido enviar um espião para observar o movimento das
tropas inimigas. Queria saber se haviam decidido fugir ou
continuar a luta. Quem se apresentou foi Dolão, filho do arauto
Eumedes, homem muito feio mas muito veloz, que fez esta
proposta a Heitor:

— Estou disposto a ir até aos navios ver o que se passa,


mas na condição de que me prometas, como recompensa, os
cavalos e o carro de Aquiles quando tivermos destroçado os
exércitos gregos.

Heitor ergueu o ceptro e jurou que todas aquelas coisas


pertenceriam ao herói, caso ele cumprisse satisfatoriamente a
sua missão.

O guerreiro partiu e já deixara para trás a multidão de


homens e animais quando foi percebido por Ulisses, que vinha
naquela direcção e aviso Diomedes:

— Toma cuidado! Lá vem um homem, talvez um espião,


ou alguém que procura cadáveres para os despojar. Deixemos
que ele passe e depois atacamo-lo. Se o fizermos prisioneiro,
muitas coisas poderemos saber.

Assim dizendo, esconderam-se os dois à margem do


caminho. O incauto guerreiro passou mas, um pouco mais à
frente, Diomedes e Ulisses caíram sobre ele e aprisionaram-no.
O homem acobardou-se e suplicou-lhes a chorar:

— Poupai-me a vida e eu vos pagarei regiamente o preço


da minha liberdade. Abundam o ferro, o bronze e o ouro no
palácio de meu pai, que tudo vos dará pelo meu resgate, se
souber que estou vivo mas prisioneiro dos gregos.
77
Ilíada – Homero

O esperto Ulisses respondeu:

— Acalma-te e responde ao que te perguntarmos. Que ias


fazer longe do teu acampamento? Procuravas cadáveres para
despojar? Ou foi Heitor quem te enviou para nos espiar? Fala a
verdade, pois, de contrario, arrepender-te-ás.

Dolão, tremendo como varas verdes, disse:

— Ai de mim! Foi Heitor quem me persuadiu a ir até lá,


prometendo -me o carro e os cavalos de Aquiles. Mandou-me
verificar o que estava o inimigo a tramar e se os guardas se
mantinham vigilantes.

Ao ouvir estas palavras, Ulisses começou a rir e, irónico,


respondeu:

— Com efeito, não foste nada exigente no pedir! Os


cavalos de Aquilo são difíceis de domar por alguém que não
seja filho de um deus ou de um deusa. Mas voltemos ao assunto.
Onde deixaste Heitor quando vieste par cá? Onde é que
guardam as armas e os cavalos? Diz-me: Como estão
organizadas as tropas e o que pretendem fazer pela manhã?

Temeroso, Dolão deu todas as informações que pediam os


espião gregos:

— Heitor acha-se em conselho com os demais chefes —


disse ele — perto do túmulo de Ilo. Quanto a sentinelas, sé
existem no acampamento dos troianos, pois os aliados não se
preocupam com a vigilância.

Ulisses interrompeu-o:

— E como dormem eles? Misturados com os troianos ou


separados? Responde com clareza, que isto é importante.

— Para que me fazeis tantas perguntas? —d isse-lhe


Dolão.— Se quiserdes penetrar no acampamento troiano, o

78
Ilíada – Homero

melhor é passar primeiro pelos trácios, que acabam de chegar e


descansam aparte, ao lado de Reso, seu chefe. Nunca vi animais
tão belos e tão grandes. O carro é de ouro e prata lavrada. E
agora, enviai-me para os navios ou então deixai-me aqui
mesmo acorrentado e na volta me direis se falei ou não a
verdade.

Mas Diomedes, olhando-o com desprezo, disse-lhe:

— Não penses, Dolão, que te vamos deixar partir agora,


apesar de nos teres dado boas informações. Porque, se assim
fizéssemos, não tardarias a voltar para nos espiares ou lutares
contra nós. E, se te matarmos, serás menos um para nos
combater.

O homem acobardou-se ainda mais e, ajoelhado, suplicava


por todos os deuses do Olimpo que lhe poupassem a vida. Mas
falava ainda quando Diomedes, com um golpe, lhe cortou a
cabeça e o despojou do que trazia. Agradeceram ambos a
Minerva a boa sorte e prosseguiram de acordo com as
instruções fornecidas pelo próprio Dolão. Os trácios dormiam
despreocupadamente e a seu lado jaziam as armas empilhadas.
Reso estava deitado no centro e, junto dele, os magníficos
cavalos descritas pelo troiano.

Apanhados de surpresa, os homens nem tiveram tempo


para reagir. Diomedes acutilava a torto e a direito e Ulisses ia
retirando os cadáveres para facilitar a passagem dos cavalos. A
treze guerreiros Diomedes tirou a vida, inclusive a Reso, seu
rei. Plisses libertou os belos cavalos, que conduziu para fora do
acampamento e, em seguida, com um assobio, avisou
Diomedes que era altura de se retirarem. Mas este hesitava
ainda, desejoso por causar maiores estragos nas forças
inimigas, quando ouviu a voz de Minerva que lhe dizia:

— Trata de voltar, ó valoroso filho de Tideu, antes que


algum deus desperte os troianos, pois então será difícil a tua
fuga.

79
Ilíada – Homero

Já não era sem tempo pois Apolo, aborrecendo-se com o


auxilio de Minerva a Diomedes, correu a despertar Hipocoão,
primo de Reso, que soltou um grito terrível ao ver os cadáveres.
Houve grande tumulto entre as tropas, mas os dois destemidos
guerreiros já estavam longe.

No caminho, passaram pelos arbustos para apanhar os


troféus retirados a Dolão e seguiram para os navios onde eram
ansiosamente esperados Receberam ambos muitos elogios dos
amigos que se aglomeravam para admirar os cavalos e faziam
perguntas impacientes. Depois disso, todos os reis e príncipes
gregos se sentiram mais encorajados e um pouco meão
apreensivos com o dia seguinte.

Diomedes amarrou os cavalos trácios junto com os seus e


os de Eneias. Os objectos retirados de Dolão foram colocados
por Ulisses na popa de seu navio para, no momento adequado,
os oferecer a Minerva, juntamente com o bezerro prometido por
Diomedes. Então ele e Diomedes banharam-se no mar e, depois
de beberem em honra de Minerva, deitaram-se para descansar
um pouco até o ralar do dia.

Ao amanhecer, os dois exércitos encontravam-se


novamente na planície. Agamémnon marchava à frente das suas
tropas. E, à frente dos troianos, avançava o bravo Heitor. Aos
primeiros embates as forças estiveram bastante equilibradas.
De ambos os lados iam tombando homens, mortos ou
gravemente feridos. Mas, por volta do meio-dia, os gregos
romperam as falanges troianas e investiram com fúria
redobrada. O primeiro a avançar foi Agamémnon, que prostrou
de imediato dois valentes adversários. Logo a seguir defrontou-
se com outros dois, filhos estes do grande Príamo. Num instante
derrubou-os do carro e matou-os. Os troianos foram muito
rapidamente obrigados a retroceder até à muralha. Nessa altura,
Júpiter que sentado no monte Ida a tudo assistia, enviou a
mensageira Íris com o seguinte recado para Heitor:

80
Ilíada – Homero

— Vai depressa, Íris, e diz a Heitor que, enquanto


Agamémnon estiver à frente, não deve atacá-lo e sim limitar-se
a exortar os outros guerreiros a que se mantenham firmes. Mas
quando Agamémnon for ferido, eu darei a Heitor grande força
e bravura para chegar até os grandes navios antes do pôr do Sol.

A mensageira divina desceu rapidamente do monte ida e


transmitiu a Heitor as palavras do deus. O chefe troiano saltou
do carro e começou a percorrer o exército, brandindo as armas
e reacendendo o animo dos guerreiros. O primeiro que saiu das
fileiras para enfrentar Agamémnon foi Ifidamas, herói trácio,
filho do ilustre Antenor. Arremessou a lança contra o chefe
grego, mas não conseguiu perfurar-lhe a couraça. Furioso,
Agamémnon investiu por sua vez e, com um golpe de espada,
feriu o pescoço do bravo Ifidamas, que ali mesmo adormeceu
no sono da morte. Seu irmão Coon, filho mais velho de
Antenor, perturbado com a triste cena, aproximou-se de
Agamémnon e vibrou um golpe que lhe atingiu o braço, um
pouco abaixo do cotovelo. Em seguida, julgando ter posto o
adversário fora de combate, começou a arrastar o cadáver do
irmão para evitar que o despojassem. Mas Agamémnon,
embora dominado pela dor do ferimento, não se deu por
vencido e atacou o jovem Coon, a quem trespassou com a
comprida lança.

Enquanto a ferida se manteve quente, Agamémnon


continuou a lutar e a matar. Mas alguns minutos depois
sobrevieram-lhe dores fortíssimas, que o obrigaram a ordenar
ao seu auriga que o conduzisse para os navios. De passagem, ia
exortando aos guerreiros para que não desanimassem e
prosseguissem com o mesmo ardor.

Ao presenciar a retirada de Agamémnon, Heitor gritou aos


seus:

— Avante, troianos, llcios e dardanios! É chegada a nossa


vez! Apelei para a vossa valentia, que o mais bravo dos helenos
retira-se da luta! Júpiter está connosco!

81
Ilíada – Homero

Com essas e outras palavras, Heitor, semelhante a


tempestade que agita o mar, conseguiu infundir coragem e
estimular o ardor de cada combatente. Ele próprio se atirou para
a frente com a fúria do leão e, quantos golpes vibrava a sua
espada, tantas cabeças inimigas saltavam dos respectivos
troncos. Às suas mãos pereceram nove chefes e uma multidão
de guerreiros. E o exército grego já estava prestes a debandar
quando o audacioso Ulisses, dirigindo-se a Diomedes, o
censurou com estas palavras:

— Então, filho de Tideu, onde está a tua valentia? Vem


para cá, meu bom amigo, e façamos frente a Heitor, porque
seria vergonhoso que ele nos fizesse fugir como crianças
amedrontadas.

O bravo Diomedes respondeu:

—Ficarei, embora pouco possamos fazer, porque é


evidente que Apitei protege os troianos e quer dar-lhes a vitória.

Dito isto, avançaram os dois contra a multidão dos


guerreiros troianos, dizimando-a e matando alguns de seus
chefes. Heitor, percebendo que os gregos, reanimados,
tomavam novamente a ofensiva, atirou-se contra os dois
guerreiros, que muitas falanges seguiam.

Ao vê-lo avançar, Diomedes e Ulisses tremeram mas não


fugiram aí combate. Atirou o primeiro a sua lança, que foi
chocar com violência no elmo de Heitor, sem conseguir
perfurá-lo. Estonteado com a pancada, recuou Heitor para o
meio dos seus, caindo de joelhos em terra. Restabeleceu-se
rapidamente, saltou para o carro e fê-lo recuar.

Vendo-o fugir, gritou-lhe Diomedes:

— Mais uma vez, cão medroso, escapaste à morte,


naturalmente com o auxilio de Apolo. Mas, amparado também
pelos deuses, hei-de dar cabo de ti quando de novo te encontrar.
Contentar-me-ei, agora, com outros dos teus guerreiros.
82
Ilíada – Homero

Protegendo-se atrás de uma coluna existente no túmulo de


Ilo, Páris avistou Diomedes e, preparando o arco, feriu-o com
uma seta no pé direito, aclamando:

— Ó filho de Tideu, não foi inútil o meu disparo! Só


lamento que a seta não te tivesse atravessado o peito, para nos
livrarmos das dificuldades em que nos estás a colocar.

Diomedes olhou para ele sem medo e respondeu-lhe,


furioso:

— Arqueiro cobarde, ladrão de esposas alheias, se tivesses


a coragem de lutar, frente a frente, de nada te serviriam o teu
arco e as tuas flechas. Tu te vanglorias agora, por a tua flecha
ter atingido o meu pé, mas na minha opinião essas ninharias
nada valem. Os golpes de um homem cobarde mais parecem de
mulher.

Páris riu-se dele, mas não esperou pela vingança e desceu


a correr para onde estava Heitor, no outro lado do campo de
batalha.

Com a ajuda de Ulisses, Diomedes sentou-se para arrancar


a flecha do pé. Mas o ferimento incomodava-o muito e,
aborrecido por ter que deixar Ulisses, com quem partilhara
tantos feitos ousados naquele dia, subiu para o carro ajudado
por Estenelo, que imediatamente virou os cavalos para retornar
aos navios.

Ao ficar só, Ulisses começou a pensar em qual seria o


melhor meio de agir: continuar a lutar e, portanto, arriscar-se a
ser capturado e morto, ou fugir enquanto era tempo. Mas essa
indecisão foi de pouca dura e resolveu preparar-se para se
defender. Embora sozinho, mas lutando com grande bravura,
conseguiu amontoar à sua volta vários adversários mortos. Mas,
num dado momento, foi atingido por uma lança; conseguiu,
porém, agarrar imediatamente aquele que o atingirá e matou-o.
Os troianos, percebendo que ele estava ferido, arremessaram-se

83
Ilíada – Homero

contra ele. Ulisses, diante do perigo, gritou por socorro, na


esperança de que algum grego o escutasse.

De facto, os gritos foram ouvidos por Menelau que lutava


próximo dali Reconhecendo a voz de Ulisses, que deveria estar,
portanto, em perigo, chamou Ájax, para juntos irem à procura
dele.

Correram os dois para o lugar de onde partia a voz e


encontraram Ulisses cercado e ferido mas defendendo-se
habilmente. Enquanto Menelau retirava o guerreiro do
combate, Ájax brandia a lança, procurando afasta: o grupo.
Com o seu aparecimento, os troianos começaram a recuar,
perdendo numerosos combatentes.

Enquanto isso, Páris, da sua posição atrás da coluna,


conseguia ferir outro valoroso guerreiro, Macáon, que era
também o médico do exército grego. Sobressaltado, recuando
pela vida daquele homem que valia por muitos guerreiros,
Idomeneu pediu a Nestor que o levasse no seu carro par.

Os navios.

No outro lado da planície, nas margens do rio Escamandro,


Heitor, por sua vez, infligia numerosas perdas aos gregos.
Percebendo a fuga dos traia nos diante de Ájax, Cebrion falou
assim a Heitor:

— Ájax está a fazer com que o nosso povo recue do outro


lado. Se não formos até lá, os troianos acabarão em fuga
desordenada. Corramos par. onde a batalha se trava com mais
ardor.

Heitor ouviu estas palavras e dirigiu-se para lá a galope. A


sua chegada o inimigo amedrontou-se, incluindo o próprio
Ájax. Atirou o escudo par. as costas e, cautelosamente, foi-se
afastando, sem olhar sequer para trás Parecia um leão que,
perseguido por cães e camponeses, tenta atacar tenra vitelas.
Mas assemelhava-se também ao asno teimoso que calmamente
84
Ilíada – Homero

pasta na erva fresca, pouco caso fazendo das crianças que Ihe
atiram pau. e pedras e que só se afasta depois de saciado. Assim
acontecia ao filho de Télamon. Atrás dele investiam os troianos,
atirando-lhe dardos e setas. Mas ele ora os enfrentava, ora se
afastava na direcção dos navios, perseguido sem dó pelas armas
dos adversários.

Simultaneamente, Nestor conduzia o ferido Macaon para


os navios Passou perto de Aquiles que, de pé à popa do seu
barco, observava o com bate, o viu e reconheceu. Este chamou,
então, Pátroclo e disse-lhe:

— Parece que as coisas não estão hoje a correr bem aos


gregos. Tenha certeza de que receberemos novamente e em
breve a visita dos conselheiros de Agamémnon, que virão
suplicantes à procura de auxilio. Acabei dá ver o carro de
Nestor, que transportava um ferido. Pareceu-me ser Macáon o
médico, mas o carro estava muito distante e ia a grande
velocidade de modo que não posso ter certeza. Se for realmente
Macáon, significa grande perda para os gregos pois, pelo que vi
desta luta, quando chegar o fim do dia haverá muito trabalho
para os médicos. Vai depressa, Pátroclo, e verifica se foi mesmo
Macáon que voltou gravemente ferido.

Pátroclo partiu imediatamente e foi pela praia até o local


onde estavam as embarcações de Pilos. Dirigiu-se à barraca de
Nestor, onde encontrou Macáon deitado, tendo Nestor a seu
lado.

Logo que viu Pátroclo, Nestor levantou-se para o receber,


convidando-o a sentar-se para beber uma taça de vinho.
Pátroclo agradeceu e explicou:

— Não me posso demorar, pois Aquiles enviou-me aqui s6


para saber se o homem que voltou ferido da batalha era Macáon.
Vejo que, infelizmente, assim é. Agora devo partir, pois
Aquiles aguarda o meu regresso e não quero deixá-lo à espera,
pois zanga-se facilmente com esse tipo de insignificâncias.

85
Ilíada – Homero

— Porque se preocupa Aquiles em saber quem esta ferido?


— perguntou Nestor. — Diomedes, Ulisses e o próprio rei
Agamémnon estão também feridos. Macáon foi alvejado por
uma flecha, pelo traiçoeiro Páris. Mas que importância podem
ter para Aquiles essas nossas infelicidades? Ele só se interessa
pela própria glória. Provavelmente está à espera de ver os
nossos navios incendiados para aplacar a sua raiva, não
somente com a morte de Agamémnon mas com a de todos os
gregos, seus amigos e antigos companheiros de batalha.
Quando formos derrotados completamente, é possível então
que o seu coração insensível se enterneça e ele se compadeça
de nós, mas já será demasiado tarde. Pátroclo, lembro-me que,
naquele dia em que eu e Ulisses estivemos em Ftia na casa do
rei Peleu, Aquiles e tu estáveis ansiosos para virdes connosco
para Tróia. E ao despedir-se do filho, o rei Peleu recomendou-
lhe que fosse sempre valente e se distinguisse dos demais na
arte de lutar. E lembro-me também das palavras de Menetes,
teu pai: Aquiles é filho de um homem mais poderoso do que eu
e algum dia reinará sobre mais terras do que aquelas sobre as
quais consegui reinar. Mas tu, meu filho, és o mais velho e o
mais sábio. Que nunca disso te esqueças e que sempre estejas
pronto para o guiar e aconselhar, pois ele estima-te e escutar-
te-á sempre.» Será possível que tu, Pátroclo, já te tenhas
esquecido das palavras de teu pai? Mesmo agora, que já
estamos quase perdidos, fala com Aquiles e pede-lhe por nós
todos, para que possamos salvar-nos. Se ele próprio não quiser
lutar, que mande ao menos os seus homens par a luta, pois eles
são valentes e estão em boa forma e nós estamos exaustos pois
lutamos em demasia e já sã podemos esperar a morte e a
derrota.

Pátroclo respondeu-lhe prontamente:

— Bom rei, dou-te a minha palavra de que farei tudo o que


estiver a meu alcance para convencê-lo a voltar.

Quando já estava de partida, Pátroclo deparou com


Eurípilo, que voltar da batalha, com uma flecha enterrada na

86
Ilíada – Homero

coxa. Ao vê-lo, sujo da poeira d batalha e com o sangue a


escorrer-lhe pela perna, exclamou penalizado

— Também tu, Euripilo! Que má sorte têm tido os gregos!


E com certeza que outros bons guerreiros gregos terão, esta
noite, as vidas ceifada pelas armas troianas.

— Bom Pátroclo — pediu Euripilo —, ajuda-me a ir até à


minha barraca, pois já não tenho forças para o fazer sozinho.

E mesmo sabendo que Aquiles o esperava, Pátroclo, sem


hesitar, passo o braço ao redor de Eurípilo e levou-o para a
barraca.

— Extrai-me a flecha da coxa, Pátroclo!—pediu-lhe


Eurípilo.—S que és muito hábil nisso e os nossos dois médicos
não me podem ajuda pois Podalirio está a lutar e Macáon
também foi ferido.

Pátroclo arrancou-lhe a flecha, limpou a ferida com água


morna e envolveu-a em tiras de linho. Fez isso tudo a conversar
frivolamente com Euripilo, para o manter distraído. Depois,
permaneceu ainda mais alga: tempo junto dele até se certificar
que a dor ia diminuindo e já não havia perigo.

Agora a batalha passara a ser travada junto às muralhas que


os grego tinham construído para a defesa dos navios. Em torno
da grande muralha o largo e profundo fosso cavado pelos
helenos dificultava ainda mais o acesso às embarcações gregas.
Mas Heitor, impetuoso como um furacão, avançava sempre,
concitando os companheiros a que não se detivessem diante de
nenhum obstáculo. Os cavalos relinchavam, empinavam-se e
recusavam -se a transpor a vala. Fizeram várias tentativas mas,
finalmente, os guerreiros concluíram que seria inútil tentar, pois
os carros não poderiam passar por ali. Foi então que Polidamas
se aproximou de Heitor e lhe disse:

— Chefe, será inútil e perigoso arriscar os cavalos neste


fosso. Do lado oposto existem estacas pontiagudas e os animais
87
Ilíada – Homero

não teriam ponto dá apoio. Seria, também, impossível descer e


manobrar os carros lá em baixo num lugar assim tão estreito.
Porque, se os helenos caírem sobre nós, quem quer que esteja
dentro desse buraco, não escapará. O meu conselho é c
seguinte: deixaremos os carros e os cavalos aqui à beira do
fosso, controlados pelos aurigas, e avançaremos a pé, em
fileiras cerradas, conduzidos por ti. Assim, os gregos serão
colhidos de surpresa e, se Júpiter nos ajudar, a vitória é certa.

Assim falou Polidamas e Heitor prontamente concordou.


Saltou imediatamente do seu carro, no que foi imitado pelos
outros troianos. Organizaram cinco batalhões dispostos por esta
ordem: à frente Heitor e Polidamas, comandando os guerreiros
mais valorosos; a seguir, Páris, Alcatos e Agenor; o terceiro
grupo era chefiado por Heleno e Deífobo, ambos filhos de
Príamo e Ásio; Eneias comandava o quarto batalhão, auxiliado
pelos dois filhos de Antenor, Arquíloco e Acamas; os aliados
marchavam às ordens de Sarpedão, que levava como
subalternos Glauco e Asteropeu, em quem depositava a mais
absoluta confiança.

Em fileiras cerradas, escudos unidos, os homens


avançaram cheios dá ardor, dispostos a só se deterem depois de
destruírem os navios gregos Todos, com excepção de Ásio,
deixaram os cavalos com os aurigas. Má aquele insensato
precipitou-se com o carro e, encontrando um porro aberto,
avançou muralha adentro, acompanhado pelos seus homens. O
gregos tinham deixado aquela porta aberta para que, ao recuar,
os guerreiros se pudessem refugiar atrás dos muros.

Quando os guardas viram Ásio e os seus companheiros a


avançar, aprontaram as lanças e fizeram-lhe frente. Enquanto
isso, os outros, do alto das muralhas, lançavam enorme pedras
sobre os troianos. As pedras caiam como flocos de neve num
dia dá Inverno e os capacetes ressoavam com as pancadas.
Eram muitos os guerreiros que tombavam e Ásio, apesar de
toda a sua fúria, não conseguiu avançar.

88
Ilíada – Homero

Heitor, com as suas aguerridas tropas, continuava a


investir. Mas, til súbito, avistou-se nos céus uma águia, que
adejava sobre as suas cabeças levando uma serpente nas garras.
O réptil levantou a cabeça e mordeu a aí no peito. Contorcendo-
se de dor, a águia afrouxou as garras e deixou cai a serpente no
meio do exército. Soltou, depois, um grito estridente e sumiu -
se nas alturas.

Todos estremeceram à vista do mau presságio e Polidamas


disse a Heitor:

— Heitor, parece-me que Júpiter não quer que avancemos


contra o navios helénicos. Esta águia representa os troianos e a
serpente os gregos E assim como a serpente, apesar de lacerada,
ainda conseguiu morder a águi e salvar-se, assim também nós,
que até agora temos tido mais valor, seremos rechaçados pelo
inimigo e sofreremos perdas irreparáveis.

Mas Heitor encolerizou-se com estas palavras:

— Oh! Profeta da má sorte! Com certeza que os deuses te


fizeram perder o juízo. Queres, então, que eu despreze os
desígnios e as ordens d Júpiter? Ordenou-me ele que
perseguisse os gregos até aos belos navio e prometeu que a
vitória seria minha e tu pretendes que eu fuja, só porque uma
ave sobrevoou as nossas cabeças? Que me importam os
augúrios? Só um me interessa: o que me ordena que defenda a
cidade. Por isso, tom cuidado. Se tentares fugir ou instigar os
outros à fuga, terei que tirar-te a vida com a minha lança.

Assim falou o bravo Heitor e foi o primeiro a avançar. Os


outros seguiram-no com entusiasmo. Do monte Ida, enviou
Júpiter uma nuvem de pó que envolveu os navios gregos e
obscureceu a visão aos seus defensores, favorecendo o ataque
dos troianos. Estes, confiados na protecção do deus,
esforçavam-se por abrir uma brecha na muralha. Arrancavam
as estacas, deitavam abaixo os parapeitos e por todos os meios
tentavam derrubar o muro solidamente construído pelo inimigo.

89
Ilíada – Homero

De um lado para o outro corriam os dois Ájax, instigando os


guerreiros a que resistissem com todas as forças à violenta e
perigosa investida.

Provavelmente, nunca os troianos teriam transposto as


muralhas se o sapiente Júpiter não tivesse dado a Sarpedáo uma
força sobre-humana, para se atirar qual leão sobre mansos
cordeiros. Voltando-se para Glauco, seu ajudante, disse-lhe
Sarpedão:

— Ouve-me, Glauco, porque será que na Lícia nos


tributam honrarias como a mais ninguém e nos oferecem os
lugares mais cobiçados, os melhores pratos nos banquetes, o
melhor vinho? Porque nos consideram como deuses e nos
deram vastos domínios? Certamente porque nos julgam
superiores em força e bravura a todos os outros Lícios. É
preciso, portanto, que sejamos também os primeiros no ataque
para dar exemplo aos demais. Então, os que nos virem hão-de
dizer: «Não há dúvida que aqueles dois merecem as honras que
recebem.» Em verdade te digo que, se escapando desta guerra,
ficássemos para sempre livres da velhice e da morte, eu não
avançaria na vanguarda nem te aconselharia a fazer o mesmo.
Mas, já que a morte é inevitável, procuremos a glória que não
perece.

E, palavras não eram ditas, precipitou-se com novo ardor


e Glauco acompanhou-o. Todos os lícios marcharam atrás dos
dois, fazendo estremecer Menesteu, que defendia a muralha
daquele lado. O guerreiro foi tomada de pânico e, olhando ao
longo da fortaleza, procurou socorro. Avistou os dois Ájax e
Teucro, recém-chegado da sua barraca, e gritou por auxílio.
Mas o estrondo das armas e o entrechocar dos escudos
impediam que se ouvisse a sua voz. Mandou, então, um arauto
aos valentes Ájax, suplicando-lhes que, pelo menos um dos
dois, viesse o mais depressa possível.

O bravo filho de Télamon prontificou-se a partir, levando


consigo o irmão Teucro, e deixou em seu lugar o outro Ájax e

90
Ilíada – Homero

o forte Licomedes, incumbidos de conduzir a luta e exortar os


guerreiros.

Dentro de alguns instantes, estavam os dois junto de


Menesteu, que se defendia desesperadamente, cercado pelos
lícios. Ájax avançou contra Sarpedáo, e Teucro feriu Glauco
num ombro. Este, não conseguindo lutar mais, afastou-se
cautelosamente para não ser visto pelos inimigos. Mas
Sarpedão, que tudo percebera, sentiu imensamente aquela
retirada, que lhe diminuía as forças. Mas, mesmo assim, não
cessou de combater e trespassou com a lança mais de um dos
bravos chefes gregos. Contudo, não conseguia romper as
fileiras gregas, nem estas o faziam recuar.

Por sua vez, Heitor redobrava de fúria e, num dado


momento, gritou para os seus homens:

— Avante, valorosos troianos! Saltemos o muro e


deitemos fogo aos navios gregos!

Estimulados pela voz do chefe, os guerreiros precipitaram-


se num s6 bloco. Possuído, subitamente, de uma força
extraordinária, Heitor apanhou uma pedra imensa, que dois
homens não conseguiriam levantar e, sozinho, ergueu-a como
se nada pesasse. Em seguida, atirou-a contra o sólido portão,
que se fendeu de alto a baixo e tombou pesadamente. O
estampido ressoou a léguas de distancia.

Então, pulou para dentro da muralha, brandindo a espada,


e gritou para que os guerreiros o acompanhassem. Os troianos
obedeceram. Uns escalavam o muro e outros precipitavam-se
pela porta aberta. E os gregos, em Fanico, fugiram
desordenadamente na direcção dos grandes navios.

Depois de levar os troianos até àquela conjuntura, Júpiter


deixou-se ficar lá pelos altos do monte Ida, indiferente ao que
se passava na terra. Estava certo de que nenhum deus se
arriscaria mais a desobedecer às suas ordens.

91
Ilíada – Homero

Entretanto, Neptuno, o deus do mar, que tinha uma


predilecção especial pelos gregos, andava muito aborrecido
com a vitória dos troianos. Não conseguindo conter-se por mais
tempo, resolveu aproveitar a distracção de Júpiter e, descendo
do cume donde assistia a tudo, mandou atrelar o seu carro de
ouro puxado por dois cavalos de paras de bronze e crinas
douradas. Vestiu-se também de ouro, subiu para o carro e,
dentro de alguns instantes, mergulhava no oceano e chegava-
lhe ao fundo. Todos os monstros e habitantes marinhos
saudavam o rei à sua passagem. Chegando a uma caverna
profunda e ampla que lhe servia de cavalariça, desatrelou os
cavalos, deu-lhes a ração divina e amarrou-os com fortes
cordões de ouro. Em seguida, marchou em direcção ao exército
grego.

Os troianos, guiados por Heitor, avançavam sempre, com


a impetuosidade do fogo e a força da tempestade.

Pretendiam incendiar os navios gregos ainda naquele dia.


Mas Neptuno, tomando a figura e a voz de Calcas, o profeta,
meteu-se entre os combatentes gregos e começou a encorajá-
los. Dirigiu-se aos dois Ájax e disse-lhes:

— Ficai firmes e não penseis em fugir. Sois naturalmente


os mais fortes e tendes de salvar o exército. Por mim, não receio
os troianos, apesar de serem comandados pelo invencível
Heitor. Ide até onde ele se encontra, obrigai-o a recuar e estou
certo de que um deus vos protegerá.

Enquanto falava, Neptuno tocou nos dois guerreiros com o


seu ceptro de ouro e eles encheram-se de coragem. As pernas
pareciam-lhes mais ágeis e os braços mais fortes. Quando
procuraram o falso Calcas para lhe responder, já não o
encontraram. Apercebendo-se daquele súbito desaparecimento
Ájax, filho de Oileu, disse ao outro:

— Estou certo, amigo, de que foi um dos deuses olímpicos


que esteve agora connosco, disfarçado sob o aspecto de Calcas.

92
Ilíada – Homero

Os deuses são fáceis de reconhecer. Até a maneira de andar era


diferente. Sinto-me ansioso por combater e os meus pés
parecem querer andar sozinhos.

Ájax, filho de Télamon, respondeu:

— O mesmo acontece comigo. As minhas mãos querem


agarrar a lança e sinto, em cada pé, como que um par de asas
invisíveis. Estou disposto a enfrentar, sozinho, Heitor e a lutar
até o vencer.

Enquanto os dois Ájax assim falavam, Neptuno ia juntando


os desanimados helenos e reacendia-lhes o animo. Ao ver que
os troianos tinham saltado a muralha, o medo e a fadiga
apoderaram-se dos gregos e, com lágrimas nos olhos, diziam
uns aos outros que estavam perdidos. Agora, porém,
estimulados pelo deus do mar, iam reorganizando as fileiras
para um contra-ataque, ao mesmo tempo que lhe ouviam as
exortações:

— Que vergonha, ó gregos! Porquê esse desanimo?


Garanto-vos que, se combaterdes com valor, conseguiremos
afastar os troianos para longe dos navios. Mas, se vos
entregardes e fugirdes, então não haverá remédio. Nunca pensei
que os meus olhos haviam de ver tal desgraça: os meus filhos
queridos a fugirem acobardados ante o perigo. Onde anda o
vosso rei? Embora ele tenha feito mal em ultrajar o valente
Aquiles, não é motivo para desistir da luta. Vamos, coragem! O
bravo Heitor está a aproximar-se dos vossos navios e vai
incendiá-los!

Palavras que bastaram para reacender o animo dos chefes.


De imediato e de todos os lados afluíram os guerreiros,
concentrando-se em torno dos dois Ájax. Fizeram unir os
escudos e brandiram as lanças, animados por um só desejo:
defender-se a todo custo.

93
Ilíada – Homero

Eis que Heitor se aproxima e, atrás dele, a multidão de


troianos. Porém, ficaram surpresos ao encontrar cerradas
falanges inimigas e foram obrigados a deter-se. Uma chuva de
dardos caia sobre as tropas e o próprio Heitor teve de recuar,
vacilante. Depois, voltou novamente ao ataque.

— Avante, guerreiros! — gritava. — Os gregos não


poderão resistir-me por muito tempo, ainda que se agrupem
poderosamente, pois Júpiter está comigo!

Atrás do chefe marchava Delfobo, filho de Príamo, que


comandava uma tropa de excelentes guerreiros. Sobre ele
precipitou-se Meriones, atirando-lhe um dardo que atingiu o
escudo e se partiu. Enraivecido por ter falhado o golpe,
Meriones afastou-se para ir buscar outra lança à sua tenda.

Entrementes, o herói Teucro, irmão de Ájax, matou o


guerreiro âmbrio, filho de Mentor, que muito se vinha
distinguindo entre os aliados dos troianos. Ferido no pescoço,
o guerreiro caiu pesadamente, qual tronco abatido na floresta.
Teucro baixou-se avidamente para despojar-lhe o cadáver, mas
foi visto por Heitor que lhe lançou um dardo. O projéctil
destinado a Teucro atingiu, porém, outro guerreiro. Ájax
aproximou-se correndo para defender o irmão das armas de
Heitor e arremessou-lhe a comprida lança. Mas Heitor era
invulnerável, pois tinha o corpo todo revestido por uma espessa
armadura.

Idomeneu, chefe dos cretenses, vendo Meríones a correr


para a sua barraca, disse-lhe:

— Meriones, tu és o mais querido dos meus amigos mas


não posso deixar de te censurar. Que fazes afastando-te assim
da carnificina?

Ao que o valente Merlones respondeu:

94
Ilíada – Homero

— Vinha à procura de uma lança, pois a minha quebrou-se


contra o escudo do arrogante Deifobo. Terás na tenda alguma
sobresselente que me possas dar?

Respondeu-lhe Idomeneu:

— Lanças, tenho muitas. Estão encostadas as paredes da


minha barraca. São armas excelentes que arrebatei aos troianos
mortos às minhas mãos.

— Eu também consegui arrebatar muitas mas estão nos


navios, muito longe daqui, e eu estou ansioso por voltar ao
combate.

— Traz quantas quiseres — disse Idomeneu—e voltemos


à luta porque, se continuarmos aqui inertes, os companheiros
poderão, com razão, censurar-nos.

Assim falou o chefe cretense e Merlones, depois de ir


buscar uma pesada lança, apressou-se a acompanhado ao
campo de batalha. Conquanto já entrado em anos, Idomeneu era
forte e lançou logo o terror entre os troianos. A sua chegada fez
recrudescer o animo dos gregos, que se atiraram à luta com
novo ardor. Na primeira investida matou Otrioneu, guerreiro de
Cabesos, que viera a Tróia como pretendente à mão de
Cassandra, a mais formosa das filhas de Príamo. Dissera ele ao
velho rei que daria à noiva um único e precioso presente:
libertaria Tróia dos invasores, por mais valentes que fossem. E
ali estava ele a cumprir a promessa quando a lança de Idomeneu
o trespassou. Vendo-o prostrado, exclamou zombeteiramente o
rei dos cretenses:

— Otrioneu, vai agora buscar a filha de Príamo! Mas


também nós faremos um acordo contigo e te daremos a mais
bela das filhas de Agamémnon, se vieres em nosso auxilio para
destruir a cidade de Tróia. E fica sabendo que também somos
bons sogros. Se aceitas, vem connosco aos navios para
tratarmos das condições do pacto!

95
Ilíada – Homero

Enquanto proferia estas palavras, Idomeneu ia arrastando


o cadáver por uma perna, quando Ásio se aproximou tentando
defender o companheiro. Vinha a pé, mas o cocheiro
acompanhava-o com o carro. Erguendo a lança, preparava-se
para a cravar no peito do seu adversário, mas este antecipou-se-
lhe e derrubou-o. Depois, atravessou-lhe o pescoço com a
espada. Ao ver o corpo ensanguentado do amo, cujas mãos se
contorciam no estertor da agonia, o cocheiro ficou
desorientado. Nem sequer se lembrou de fugir, abandonando os
cavalos. Um guerreiro aproximou-se por detrás e matou-o. E, a
seguir, apoderou-se dos belos animais e levou-os como presa
de guerra.

Deífobo enfureceu-se com a morte de Ásio e correu sobre


Idomeneu atirando-lhe a lança. Mas Idomeneu estava em
guarda e desviou-se a tempo. A lança voou por sobre o escudo,
roçando-o apenas, e foi atingir outro guerreiro, a quem tirou a
vida. Com uma exclamação insolente, Deífobo cantou vitória:

— Foste vingado, Ásio! Nas terras de Plutáo, onde te


encontras, terás em breve, companhia!

As tropas chefiadas por Idomeneu, irritadas com a


gabarolice de Deífobo, investiram com redobrado furor e
mataram três valentes adversários de enfiada. Deífobo percebeu
que, sozinho, não poderia enfrentar aquele ataque e saiu à
procura de Eneias, que se encontrava na retaguarda, amuado
porque Príamo não lhe dispensava as honras que a sua bravura
merecia. Enquanto assim se retraia, Alcatos, seu cunhado e
intimo amigo, fora atacado e morto por Idomeneu. Mas Eneias,
entregue à sua cólera, não estava a par disso. Foi ai que Deífobo
lhe veio trazer a notícia da morte do companheiro. Com o
choque recebido, Eneias esqueceu-se completamente do
motivo que o trazia afastado da luta e, reunindo todas as suas
forças, investiu contra Idomeneu disposto a matá-lo. Ao
verificar a aproximação de Eneias, de olhar brilhante e rosto
afogueado pelo ódio, Idomeneu chamou os seus companheiros:

96
Ilíada – Homero

— Meus amigos, não me deixeis aqui sozinho, pois o


terrível Eneias vem-me atacar. Ele é forte e ágil e tem a seu
favor a juventude que me falta.

Ao ouvir essas palavras, todos correram e foram colocar-


se a seu lado. Eneias, por sua vez, chamou em seu socorro
Deífobo, Páris e Agenor. Travou-se, então, um combate em
torno do cadáver de Alcatos. Os guerreiros envolveram-se
numa luta encarniçada, na qual sobressaiam Eneias e
Idomeneu. O primeiro arremessou a lança contra o adversário
mas este, furtando o corpo, conseguiu escapar. Como vingança,
o herói grego matou um guerreiro troiano mas não conseguiu
tirar-lhe a couraça porque os dardos voavam à sua volta.
Percebeu, então, que era chegado o momento de se retirar, pois
estava extremamente fatigado. Deífobo, que lhe votava ódio
mortal, saiu em sua perseguição. Mas o herói Merlones, ágil
como o deus da guerra, atirou-lhe a lança, que lhe trespassou o
braço, e o sangue escorreu da ferida aberta. Muito a
contragosto, foi então obrigado a abandonar a luta, auxiliado
por seu irmão Polites.

Do outro lado do campo lutavam Menelau e Heleno, filho


de Príamo, em combate singular. O primeiro a avançar foi
Heleno, que atirou uma flecha ao peito do seu adversário. Mas
a flecha resvalou, depois de bater na couraça, e caiu ao chão.
Adiantou-se Menelau e com a lança perfurou a mão de Heleno
que, não podendo mais suster o arco, deixou-o cair e correu a
sangrar para o meio dos companheiros com a mão levantada.
Acudiu-lhe Agenor, que extraiu o bronze da ferida e lhe
enfaixou a mão com uma atadura de lã.

Vieram outros guerreiros que se sucederam a Heleno


contra Menelau. Mas a todos o valoroso átrida vencia, enviando
muitos para o sombrio reino de Plutão.

Entretanto, Heitor nada sabia do que se passava naqueles


lados, pois ainda se conservava no mesmo ponto onde ficara
depois do assalto às portas. Já tinha morto um sem-número de

97
Ilíada – Homero

guerreiros, mas os dois Ájax, auxiliados por valentes


guerreiros, ofereciam-lhe firme resistência. Foi quando se
aproximou Polidamas e o preveniu de que os troianos estavam
a sofrer graves perdas no sector em que combatia Menelau.
Dirigiu-se, então, par lá e ficou perturbado ao saber que Heleno
e Derrubo estavam feridos e for de combate e o valoroso Ásio
fora morto por Idomeneu. Então, juntamente com Páris,
Polidamas e Ascânio, reorganizou a defesa. Júpiter, que até a.
não tinha dado importância à luta, voltou à vigilância e,
enraivecido com a protecção que o deus do mar estava a
proporcionar aos gregos, soprou a fúria sagrada no animo dos
troianos e reacendeu-lhes a coragem.

Desafiando Ájax, que estava próximo dele, Heitor avançou


com impetuosidade e os guerreiros acompanharam-no,
soltando gritos de júbilo a cada vitória alcançada.

Enquanto isto se passava, o velho Nestor, preocupado com


a situação, saiu à procura de Agamémnon, que encontrou
acompanhado de Ulisses e Diomedes a assistir aos combates.
Estavam os três aborrecidos porque não podiam, devido aos
ferimentos, auxiliar os seus guerreiros. Quando Nestor chegou,
puseram-se os quatro a discutir qual a melhor providência a
tomar.

Desesperado, Agamémnon chegou a propor a retirada


geral para os navios e a fuga. Ulisses discordou com indignação
e Diomedes propôs que, embora feridos, voltassem ao campo
de batalha. Sem tomar parte activa na luta, poderiam incentivar
os guerreiros e, talvez, mudar a sorte dos combates.

Assim o fizeram, no que foram auxiliados pelo deus


Neptuno que, disfarçado de velho, insuflou animo nas
desanimadas hostes gregas.

Do seu trono de ouro, Juno, rainha das densas, observava


o movimento das tropas helénicas. Desagradava-lhe ver que os
seus protegidos perdiam terreno e que Neptuno pouco podia

98
Ilíada – Homero

fazer, pois Júpiter mantinha-se atento na sua posição estratégica


no monte Ida. Começou, então, a engendrar um plano para o
distrair. Entrou no seu camarim, banhou o corpo todo com
ambrósia e pôs no rosto óleo divino e perfumado. Ficou
lindíssima, tal como era nos tempos de sua mocidade. Penteou
os cabelos, enlaçando-os com fios de ouro. Em seguida,
escolheu o mais belo dos seus vestidos e com ele se ataviou,
prendendo-o com alfinetes de pedras preciosas. Colocou nas
Grelhas um par de brincos cintilante e cobriu a fronte com um
véu lindíssimo, leve como a espuma do mar. Depois,
contemplou-se num espelho: estava realmente encantadora e
irresistível. Em seguida foi procurar Vénus, a deusa do amor, a
quem disse:

— Querida filha, queres prestar-me um grande auxílio,


apesar de estares zangada comigo porque gosto mais dos gregos
e protejo-os?

Respondeu-lhe a filha de Júpiter:

— Fala, esposa do deus poderoso, pois não te posso recusar


nada, desde que esteja ao meu alcance.

Com simulada intenção, Juno prosseguiu:

— Dá-me os teus filtros de amor, com os quais sabes


domar os deuses e os mortais. Preciso de fazer uma visita de
amizade ao Oceano e a Tétis, mãe dos deuses. Eles sempre
foram muito gentis para comigo e agora andam os dois em
desarmonia, sem grandes probabilidades de se voltarem a
entender. Se as minhas palavras tivessem o dom de os unir
novamente, ficar-me-iam eternamente agradecidos. Mas isso
não será possível, a menos q me dês os filtros mágicos.

Acreditando naquela mentira, Vénus respondeu:

— Poderia negar-me a satisfazer o teu pedido? Para tão


boa acção é e dente que podes contar com o meu apoio.

99
Ilíada – Homero

E, dizendo isso, entregou à deusa o seu famoso filtro do


amor.

Juno ficou satisfeitíssima e foi à procura do Sono, a quem


disse:

— Meu amigo Sono, já me fizeste alguns favores e espero


que desta ~ não me recuses o que te vou pedir. Quero que
adormeças Júpiter quanta ele estiver enlevado a conversar
comigo no pico do monte Ida. Para isso r preparei desta
maneira. Estará tão embevecido a contemplar-me que n se
aperceberá da tua aproximação. Em paga, dar-te-ei um trono
magnifico todo de ouro, feito pelo meu filho Vulcano, o mais
hábil artífice do Olimpo.

Mas o agradável Sono replicou-lhe:

— Prezada rainha, qualquer outra coisa podes pedir-me


que o farei. Mas não o que me propões. Posso adormecer
instantaneamente qualquer dos deuses, mesmo o incansável
Oceano, mas não Júpiter. Já uma vez me induziste a uma
aventura semelhante e quando ele acordou, de mau humor,
maltratou todos os deuses e enfureceu-se contra mim a tal ponto
que, se não fosse a Noite, ter-me-ia lançado para fora do
Olimpo, como castigo pelo que te auxiliei a fazer contra
Hércules.

Piscando os lindos olhos brejeiros, disse-lhe Juno:

— Amigo Sono, não te preocupes com o passado e lembra-


te que Júpiter ter ficou furioso porque se tratava de seu filho
Hércules. Mas agora é uma coisa muito mais simples. Ele não
estima assim tanto os troianos que vá brigar contigo por causa
deles. Vamos, faz o que te peço e em troca te da em matrimónio
uma das Graças, a mais formosa, por quem há muito mostras
paixão.

O Sono exultou com a promessa:

100
Ilíada – Homero

— Bem, nesse caso, se juras pelas sagradas águas do


Estígio que cumprirás a tua promessa, eu arrisco. Dar-me-ás
Pasitéia, por quem estou enamorado há muito tempo.

A deusa fez todos os juramentos exigidos e o Sono


prometeu ajudá-la fazer adormecer o celeste rei. Em seguida,
os dois voaram juntos, ocultos numa nuvem, e chegaram ao
monte ida, não muito longe do lugar onde Júpiter estava. Sono
escondeu-se no meio dos bosques e Juno aproximou-se do seu
divino esposo. Não tardou que o deus se apercebesse da sua
presença e, ao vê-la tão formosa, chamou-a:

— Juno querida, que vieste fazer aqui, tão longe do


Olimpo? Que desejas?

Respondeu-lhe a deusa:

— Vou visitar os meus amigos Oceano e Tétis, a ver se


consigo restabelecer entre eles o amor que há muito perderam.
E vim avisar-te para que, quando regressasses a casa, não me
procurasses em vão.

Júpiter, porém, enamorado dela, pediu-lhe:

— Deixa para depois essa visita de família e vem sentar-te


ao meu lado só uns instantes.

Outra coisa não desejava a astuciosa deusa. Aproximou-


se, pois, e a um dado momento, percebendo que o seu incauto
marido estava completamente embevecido com a sua
formosura, fez sinal a Sono e este, esgueirando-se do bosque,
veio postar-se atrás do deus, estendendo sobre ele o seu pesado
manto. Dentro de um minuto, Júpiter adormecia profundamente
e a esperta rainha voou para junto de Neptuno, a quem disse:

— Agora, meu irmão, Júpiter está a dormir e não acordará


tão cedo, pois encarreguei o Sono de o vigiar. Aproveita a
oportunidade e corre a auxiliar os gregos, que estão a ser
derrotados em todos os quadrantes.
101
Ilíada – Homero

Assim falou Juno, e Neptuno apressou-se a obedecer-lhe.


Entrou no campo de batalha e começou a exortar os gregos com
estas palavras:

— Avante, guerreiros! Não vedes que o filho de Príamo


vai destruir os vossos navios? Ele assim o jurou, desde o
afastamento de Aquiles, e cumprirá o juramento se não
recobrardes o animo. Não precisamos de Aquiles, deixai-o em
sua barraca, no seu eterno rancor, e mostrai que podeis passar
sem ele. Segui-me como a um chefe e levar-vos-ei à vitória!

Até os feridos se reanimaram ao ouvir as palavras do deus,


assim como o nobre Agamémnon, o sagaz Ulisses e o valente
Diomedes que, voltando às fileiras, cuidaram de dar as
melhores armas aos mais fortes, ficando os menos valentes com
armas mais leves. E assim reentraram na luta. À frente
marchava Neptuno, qual relâmpago, em sua divina fúria, e atrás
dele seguiam os chefes pregos.

Heitor, acompanhado pelos seus bravos troianos, saiu-lhes


ao encontro. Os dois exércitos defrontaram-se e entrechocaram-
se como vagalhões num mar revolto. As lanças, batendo nos
capacetes e nos escudos, produziam sons terríveis e os soldados
gritavam exaltados no ardor do combate.

Em dado momento, aproximaram-se Heitor e Ájax, filho


de Télamo que se encararam com um olhar sombrio. O chefe
troiano foi o primeiro a atacar. Atirou a lança ao peito do seu
adversário, mas falhou o golpe o bronze bateu no escudo e caiu
ao chão. Aborrecido pelo insucesso e também para evitar a
morte, Heitor procurou reunir-se aos companheiros.

Mas, quando recuava, Ájax agarrou numa pedra enorme e


arremessou com toda a força contra a parte superior do seu
escudo e por pouco na partiu o queixo ao herói troiano que se
estirou na lama.

102
Ilíada – Homero

Exultantes e certos de que iam aprisionar o bravo Heitor,


os gregos acorreram de todos os lados e precipitaram-se sobre
ele. Mas os chefe troianos formavam já em torno de seu
comandante uma barreira de protecção. Depois, arrastaram-no
para fora do campo e levaram-no para um barraca onde tinham
material e medicamentos de urgência. Deitaram-no e
borrifaram-lhe o rosto com água fresca. Heitor abriu os olhos e
respiro profundamente. Mas, quando tentou levantar-se, lançou
pela boca um golfada de sangue negro e tornou a cair
desmaiado.

Ao verem o chefe inimigo fora de combate, os gregos


investiram corto os troianos com furor redobrado. Em poucos
minutos, o chão cobriu-se d cadáveres. E então, o ágil e
corajoso Ájax, filho de Oileu, a todos sobre pujou na luta.

Enquanto o Deus dos deuses dormia a sono solto lá no alto


do monte Ida, os gregos infligiam, cá em baixo, perdas terríveis
ao exército troiano. Mas, ao cabo de algumas horas, o senhor
do Olimpo despertou e o seu primeiro cuidado foi o de procurar
com os olhos o campo de batalha. E qual não foi a sua surpresa
perante o espectáculo que se lhes apresentava: os troianos, em
fuga desordenada; e, no meio dos gregos, auxiliando-os no
ataque e na perseguição, Neptuno, o deus do mar. Só então
compreendeu Júpiter a cilada que lhe preparara a sua divina
consorte. Furioso por se ter deixado lograr, saiu à sua procura
e, lançando-lhe um olhar carregado, disse-lhe:

— Ah! Mulher fingida e trapaceira! Fizeste-me adormecer


para mudar a sorte da batalha! Ousaste desobedecer às minhas
ordens! Devias lembrar-te do castigo que de outra feita
recebeste, ficando pendurada no espaço com duas bigornas nos
pés e algemas nas mãos. Nem todos os deuses reunidos
conseguiram dominar a minha cólera e nenhum teve coragem
para me desafiar e socorrer-te.

Assim falou Júpiter. A venerável deusa baixou os olhos


medrosa e, sem ousar encarar o esposo, respondeu-lhe:

103
Ilíada – Homero

— Juro pelas sagradas águas do Estígio que não tenho


culpa que Neptuno esteja a ajudar os troianos. Se ele foi
combater do outro lado, foi por sua livre e espontânea vontade.
Se os gregos estão a vencer, não foi por eu os ter ajudado mas
sim porque são mais valentes. E ei tens a explicação de tudo!
Mas, se queres, eu mesma irei falar com Neptuno e lhe
transmitirei as tuas ordens.

Desarmado pela astúcia de Juno, o pai dos deuses sorriu e


disse:

— Está bem, minha querida. Façamos então as Fazes e, se


as tuas palavras são sinceras, tudo se arranjará. Corre e vai
chamar Íris e o arqueiro Apolo. Diz-lhes que venham sem
demora, pois tenho ordens a dar-lhes. Ela irá ao encontro de
Neptuno para lhe dizer que cesse imediatamente as
hostilidades. E ele irá ter com Heitor para o reanimar, a ele e
aos troianos, fazendo despertar-lhes o amor próprio. Aos
gregos, infundir-lhes-á medo, para que fujam
desordenadamente para junto dos navios de Aquiles. E podes
ficar descansada, minha querida Juno, que o resultado disso
tudo te vai causar uma grande satisfação. Pois, se até agora
protegi os troianos, não foi porque os estimasse mais do que aos
gregos, e sim para cumprir a promessa que fiz a Tétis, quando
me veio suplicar que desagravasse seu filho Aquiles.

Mal acabara de falar e já a rainha dos deuses, fazendo uma


grande reverência, coma em direcção ao Olimpo a fim de
transmitir as ordens do deus. Ao chegar à celeste morada, onde
os deuses estavam reunidos em assembleia, foi por todos
reverentemente saudada e Témis perguntou-lhe:

— Por que motivo estás tão perturbada? O filho de


Saturno, teu esposo, terá sido a causa desse terror?

Juno, torcendo as mãos, respondeu:

104
Ilíada – Homero

— Não me perguntem nada. Todos vós conheceis o seu


mau génio: é um espírito orgulhoso e não se dobra diante de
coisa alguma.

Enquanto falava, a venerável deusa foi-se sentando, no que


foi imitada pelos outros, ansiosos por saber o que se tinha
passado. Foi servida a refeição e ela, dirigindo-se a todos,
exclamou:

— Somos uns insensatos! Queremos fazer frente a Júpiter,


desobedecemos às suas ordens mas ele pouco se interessa com
isso, pois a sua força é muito superior à nossa e acaba sempre
por triunfar. Neste exacto momento, está ele a tramar terríveis
sofrimentos para todos e cada um de nós. A começar pelo deus
Marte, que talvez não saiba que mataram seu filho Ascáfalo.

Ao ouvir estas palavras, Marte levantou-se e começou a


arrancar os cabelos e a gemer, dizendo:

— Meus amigos! Tende paciência mas hei-de vingar o


assassínio de meu filho. Vou descer até aos navios gregos,
mesmo que depois Júpiter dê cabo de mim.

Enquanto falava, ia vestindo a pesada armadura e


empunhando a lança, disposto a executar as suas ameaças. Foi
preciso que Minerva interviesse.

Arrancando-lhe o capacete e tirando-lhe o escudo do


ombro, assim falou a deusa:

— Insano! Enlouqueceste? Que pretendes fazer? Não


ouviste o que Juno acabou de dizer? Não compreendeste as
ordens de Júpiter? Ainda nos arruínas a todos com as tuas
loucuras!

Com estas palavras, Minerva obrigou o furioso Marte a


sentar-se novamente no trono.

105
Ilíada – Homero

Juno chamou Íris e Apolo à parte e transmitiu-lhes a


mensagem divina. Nenhum dos dois vacilou um só momento.
Precipitaram-se das alturas como flechas e foram cair sobre o
campo de batalha, apressando-se a cumprir a missão que lhes
fora confiada.

Apolo foi encontrar Heitor já sentado na cama, respirando


bem, embora não totalmente recuperado do golpe de Ájax.
Aproximou-se, depois de pendurar o arco atrás da porta, e
dirigiu-lhe a palavra:

— Que fazes ai, Heitor, filho de Príamo? Porque te


abandonaram os outros guerreiros? Estás doente?

Com uma voz ainda fraca, o herói respondeu:

— E quem sois vós, 6 piedoso deus, que viestes visitar-me


na minha tenda? Não sabeis que foi o valente Ájax que me
lançou uma pedra quando combatíamos perto dos navios?

O divino arqueiro replicou:

— Sim, sou sabedor de tudo isso. Mas agora é tempo de


voltares à luta. Foi o próprio deus do Olimpo quem me enviou
para te reconfortar. Tem confiança, pois eu sou o próprio
Apolo, o deus da espada brilhante, que muitas vezes te salvei e
te livrei de mil perigos. Vamos! Exorta os teus companheiros e
eu estarei ao teu lado, auxiliando-te quando for preciso.

Palavras não eram ditas e já o guerreiro, de um salto, se


erguia do leito e, vestindo a brilhante armadura, se precipitava
para o campo de batalha. Levavam os gregos grande vantagem
sobre os adversários, batidos em todas as frentes. Mas quando
viram Heitor atravessar as fileiras troianas, assustaram-se e a
coragem abandonou-os num ápice.

Um dos chefes propôs, então, o seguinte: enquanto o


grosso das tropas voltaria aos navios, os melhores guerreiros

106
Ilíada – Homero

manter-se-iam firmes, de lança em riste, preparados para


enfrentar Heitor.

A sugestão foi unanimemente aceite. Os mais valentes dos


guerreiros colocaram-se ao lado de Ájax, Idomeneu, Teucro e
Meríones e prepararam-se para aguentar o embate. Os restantes
retiraram-se em boa ordem par a defesa dos navios.

Os troianos avançaram em massa, chefiados por Heitor


que, por sua vez, era guiado pelo divino Apolo, Os arcos
retesados dispararam as flecha os dardos voaram por sobre as
cabeças dos guerreiros e as lanças roubaras a vida a muitos
heróis. De inicio, o combate manteve-se mais ou menos
equilibrado. Mas quando Apolo soltou o seu grito de guerra, a
coragem abandonou os helenos e até os mais bravos se
precipitaram numa fuga desordenada. Heitor foi o primeiro a
iniciar a carnificina. Matou o chefe dos beócios e um amigo de
Menesteu. Eneias venceu e despojou raso, irmão de um dos
Ájax. Polidamas matou Mecisteu, e Páris assassinou Deloco. À
medida em que iam vencendo os adversários, os troianos
tentavam despojá-los das suas armaduras, que constituíam os
ambicionados troféus. Mas Heitor, de olhar sombrio, censurou-
os:

— Atacai os navios! Abandonai esses cadáveres


sangrentos, que serão pasto de cães ante os muros de Tróia!
Quem ficar para trás morrerá às minhas mãos!

Assim falando, Heitor vibrou no ar o chicote em sinal de


arrancada e todos se precipitaram em direcção aos navios. Ao
chegarem ao fosso, Apolo desmoronou o barranco, entupindo-
o. E por ali passaram as tropas numa correria vertiginoso. Para
lhes facilitar o avanço, o deus deitou abaixo o muro que tanto
trabalho e esforço custara aos gregos. Estes entraram em pânico
e recuaram até aos navios, única esperança que lhes restava.
Exortavam-se mutuamente e erguiam as mãos para o céu
implorando o auxílio dos deuses, sendo o velho Nestor, firme
sustentáculo e conselheiro dos helenos, o mais fervoroso nas

107
Ilíada – Homero

preces. Ouviu-se, então, um forte trovão nas alturas, sinal


evidente da aquiescência de Júpiter às preces dos seus fieis.

O sinal foi igualmente ouvido pelos troianos que


redobraram de furor, lembrando-se das promessas divinas.

Heitor, percebendo que se aproximava do seu objectivo —


lançar fogo à esquadra inimiga —, começou a excitar o animo
dos guerreiros com estas palavras:

— Troianos, lícios e dardanios! Júpiter está do nosso lado


e protege-nos Corramos todos juntos e precipitemo-nos sobre
os navios. Muitos morre rio, por certo, mas que ninguém se
assuste ao ver a morte de perto: a glória, espera quem morre em
defesa da pátria. Não vos preocupeis com as vossa mulheres e
os vossos filhos, pois os bens que possuirdes passarão para ele
e o vosso nome será eternamente abençoado e honrado pelos
sobrevivente de Tróia.

Ouvindo estas palavras, os guerreiros sentiram dentro de si


como que uma alma nova e uma energia incontrolável.
Formaram fileiras cerrada e caíram sobre o inimigo como feras
indomáveis. Em poucos instantes centenas de heróis perderam
a vida. Ájax andava entre eles procurando com a coragem que
ainda lhe restava, impedir que as tropas debandassem fugindo
vergonhosamente. O seu maior empenho era evitar que os
homens que transportavam os archotes se aproximassem das
embarcações. Mas, em dado momento, a sua resistência
fraquejou e a multidão de troianos invadiu a popa de um dos
navios.

Paralelamente a estes acontecimentos, no terreno da luta,


Pátroclo, o fiel amigo de Aquiles, apresentou-se-lhe na tenda a
chorar, pois convencera-se de que já não havia esperanças para
os gregos. Ao vê-lo naquela postura, o temperamental Aquiles
perguntou-lhe:

108
Ilíada – Homero

— Porque choras, Pátroclo? Pareces uma menina a correr


ao lado da mãe, pedindo-lhe que a leve ao colo. Recebeste
alguma noticia desagradável de Ftia? Sei que o teu velho pai
está vivo. Peleu, no seio do seu povo continua bem. Seria a
morte destes dois homens que mais nos afligira; Será que
choras por causa dos gregos, vendo que eles perecem junto às
embarcações, como castigo da sua injustiça?

Ainda soluçando, Pátroclo respondeu:

— Aquiles, não te aborreças com o meu pesar, pois é


grande a desgraça que desaba sobre os gregos! Os mais valentes
e fortes jazem ou mortos ou feridos. Diomedes, Ulisses e o
próprio Agamémnon foram atingidos e estão fora de combate.
Só tu não te importas com coisa alguma, ó homem implacável!
Não, não podes ser o filho de Tétis e de Peleu. Foste gerado
sem dúvida, por algum rochedo escarpado e é por isso que és
assim ao duro e inflexível! No entanto, se foi por acaso a tua
mãe que te proibiu que entrasses no combate, para evitar o
cumprimento de um qualquer oráculo permite então que eu me
apresente, revestido da tua bela armadura, à frente dos nossos
guerreiros. Eles estão bem descansados e seríamos um reforço
precioso para os esgotados gregos.

Aquiles, que ouvira as palavras de Pátroclo em silêncio,


respondeu-lhe indignado:

— Que disseste, Pátroclo? Sabes bem que não é nenhum


oráculo que me impede de entrar na luta, mas sim o meu
ressentimento contra Agamémnon. Ultrajou-me, roubando-me
a recompensa que de direito m pertencia, pois conquistei-a com
a força do meu braço. Mas isso são água passadas. É verdade
que jurei não voltar a combater a não ser quando os todos navios
fossem assaltados. Mas, desta vez, transigirei um pouco, já que
tanto me pedes. Vai, serve-te da minha armadura e das minhas
armas. Conduz os valentes mirmidões ao combate e à glória,
mas cumpre as minhas instruções à risca. Uma vez afastados os
troianos dos navios, trata de regressa Não te deixes levar pelo

109
Ilíada – Homero

entusiasmo da guerra, ainda que te pareça que poderias alcançar


maiores triunfos. Júpiter divino não quer que os bravo troianos
sejam vencidos senão por mim. Não te aproximes das muralha
de Tróia, pois os deuses protegem-nas, e um deles,
especialmente o arqueiro Apolo, poderia cair sobre ti e roubar-
te a vida.

Tal era a conversa de Aquiles e Pátroclo na tenda do bravo


filho de Peleo.

Ájax, entretanto, cansado dos repetidos golpes dos


troianos, cessara d resistir. Derreara o braço com o peso do
escudo e o capacete estava todo perfurado. Respirava com
dificuldade e o suor escorria-lhe em grossas bagas até ao chão.
Heitor avançou sobre ele e com a espada partiu-lhe a lança,
fazendo voar para longe a parte de bronze e ficando Ájax
apenas com a outra parte na mão. Vendo-se desarmado, o herói
não teve outro recurso senão fugir. Os troianos precipitaram-se,
então, numa grande gritaria e lançaram fogo ao navio. A chama
alastrou e altas labaredas envolveram toda a popa. A cena fora
presenciada por Aquiles e Pátroclo, que ainda conversavam na
tenda. De um salto, Aquiles pôs-se de pé e gritou para o amigo:

— Apressa-te, Pátroclo, já vejo sobre os navios as chamas


devoradoras! Reveste-te depressa com essas armas, que eu vou
reunir as tropas.

O guerreiro não esperou segunda ordem e começou a vestir


a resistente couraça. Colocou, depois, as cabeleiras, que
prendeu às pernas com fivelas de prata. Lançou aos ombros a
espada de bronze com incrustações de prata e sobraçou o
imenso escudo. Pôs o capacete de bronze, bem modelado e
sólido, tendo no alto um penacho de crina, que por si só bastava
para infundir pavor ao adversário, na cabeça. Em seguida,
pegou numa poderosa lança que não a de Aquiles, pois esta só
podia ser usada pelo próprio dono, pois nenhum outro mortal
suportaria o peso daquela arma. Depois de armado, Pátroclo
chamou Automedonte, o seu melhor amigo a seguir a Aquiles,

110
Ilíada – Homero

e mandou-o atrelar os cavalos ao carro. Dois dos animais eram


imortais e o terceiro, embora de raça terrestre e mortal,
emparelhava-se-lhes em todas as qualidades.

Saindo do acampamento a soltar o seu grito de guerra,


Aquiles organizou as tropas, que acudiram prontamente ao
chamado do chefe, pois há muito que os guerreiros para ali
estavam, inertes e desejosos de combater. A frota de Aquiles
era constituída por cinquenta navios, cada um deles com uma
tripulação de cinquenta homens bem armados e valentes. Os
diversos grupos eram comandados por cinco chefes, que
respondiam todos, porém, ao comando supremo de Aquiles.
Este, quando os viu reunidos, dirigiu-se-lhes nestes termos:

— Não vos esqueças agora, mirmidões, das ameaças feitas


aos troianos e das palavras arrogantes que por aí andáveis a
espalhar. Cada um de vós se atrevia a censurar-me a minha
obstinação em não querer entrar na luta. Dizíeis então que
preferíeis voltar a Ftia a ficar por aí inertes. Chegou o momento,
pois, de mostrardes a vossa coragem e força de ânimo.

Assim incitava os mirmidões, que já estavam ansiosos por


entrar em combate, insuflando-lhes furor e coragem.
Obedecendo à voz de coma n do, os guerreiros formaram em
fileiras cerradas, escudo unido a escude capacete tocando no
capacete vizinho. E, como se de um só homem s tratasse,
avançaram atrás de Pátroclo e Automedonte.

Quando o exército partiu, Aquiles entrou na sua barraca e


abriu um belíssimo cofre, que a mãe lhe tinha dado, e do seu
interior retirou uma taça magnífica, também presente de Tétis.
Ninguém podia beber naquela taça a não ser Aquiles, nem ele
fazia libações com ela a outro deus que na fosse o plenipotente
Júpiter. Depois de fechar o cofre, o herói purifico a taça com
enxofre, lavou-a com água límpida e encheu-a de vinho. Ente
de pé no meio da tenda, derramou algumas gotas no chão e,
elevando pensamento ao céu, dirigiu-se ao deus olímpico com
estas palavras:

111
Ilíada – Homero

— Ó Júpiter, rei de todo o Olimpo! Acabo de enviar para


o combati o meu amigo Pátroclo, chefiando numerosos
mirmidões. Dai-lhe a vitória por companheira. Fazei-o valoroso
e forte e que possa ele regressar são e salvo com todas as suas
armas e seus companheiros.

Assim implorou Aquiles, e Júpiter escutava a sua prece.


Em parte cedeu-lhe o que pedia, em parte negou-lho.
Terminadas as libações, o herói repôs a taça no cofre e dirigiu-
se depois para a porta da barraca, onde deixou ficar,
presenciando a luta entre os troianos e os gregos.

Antes de entrar em combate, Pátroclo exortou os


companheiros com este arrazoado:

— Mirmidões, bravos companheiros de Aquiles!


Combatei com denodo parra honrarmos o filho de Peleu, o
melhor de todos os helenos! Investi com toda a vossa coragem,
para mostrarmos ao átrida Agamémnon a sua enorme cegueira,
ele que ultrajou o mais valente de todos os guerreiros!

Dizendo isso, deu o sinal de ataque e as tropas


precipitaram-se para o local onde a luta se tornara mais
encarniçada.

Quando os troianos avistaram Pátroclo, vestido com a


reluzente armadura de Aquiles, foram tomados de pânico.
Perpassou por todos os espíritos a ideia de que o impetuoso
filho de Peleu tinha renunciado à sua cólera se decidira a
auxiliar os companheiros. Cada um procurava com os olhos um
lugar seguro onde se refugiar.

Assim que entrou na luta, Pátroclo matou o chefe dos


peónios, que combatia junto à popa de um dos navios. O herói,
atingido no ombro direito, rolou no pó, soltando gemidos de
dor. Apavorados, os peónios fugiram e Pátroclo conseguiu
extinguir o fogo que já destruíra quase metade de um dos
navios.

112
Ilíada – Homero

Novamente se travaram ferozes combates pessoais entre os


chefes, ficando alguns ali para pasto dos corvos. Um pouco
aliviados, os guerreiros gregos respiraram com confiança ao
verem os navios libertos do fogo destruidor. Mas a luta
prosseguia cruenta, ante a resistência do inimigo.

Ájax não perdia Heitor de vista, pois o troiano continuava


a resistir, embora percebendo que o rumo da batalha tinha
mudado. Mas Heitor sabia defender-se, cobrindo os largos
ombros com o imenso escudo e desviando-se habilmente das
setas que sobre ele choviam.

Não demorou muito, porém, para que os troianos fugissem


em debandada, saltando o fosso com os carros e os cavalos.
Muitos rolaram para o interior da profunda vala.

Pátroclo continuava a atacar, instigando os companheiros


a perseguirem os fugitivos. Conseguiu fazer uma barreira com
os seus combatentes, cortando a retirada a grande parte dos
troianos e comprimindo-os contra os navios. Em breve, os dois
batalhões atacavam-se em luta corporal. O chefe dos mirmidões
era quem mais se destacava, ferindo a torto e a direito sem
complacência.

Quando Sarpedão viu os seus companheiros mortos por


Pátroclo e os outros em fuga desordenada, censurou-os
acerbamento:

— Que vergonha, ó lícios! Para onde fugis com tal pressa?


Vede que eu mesmo vou enfrentar o chefe inimigo, pois quero
conhecer de perto o triunfador que tantos males está a causar
aos troianos!

Falou e saltou do carro com as suas armas. Pátroclo, que o


ouvira, saltou também e atiraram-se um contra o outro, como
se atacam aos gritos, no alto do rochedo, dois corvos de bicos
recurvos e garras afiadas. O primeiro a atacar foi Sarpedão.
Arremessou uma após outra duas lanças, uma das quais matou

113
Ilíada – Homero

um dos cavalos de Aquiles, o único que eta mortal. A outra


passou a voar sobre o ombro esquerdo de Pátroclo e não o
atingiu. Sem tirubear, Pátroclo respondeu ao golpe e a sua lança
foi direita ao coração do adversário. Nos últimos estertores,
Sarpedão chamou pelo companheiro:

— Glauco, meu amigo, toma o meu lugar no comando dos


lícios. Incita-os à guerra e à vingança. Serei um eterno motivo
de desonra para ti se consentires que o inimigo me despoje das
minhas armas. Exorta e reanima os guerreiros e eles te
obedecerão!

Assim falando, soltou o herói o último suspiro. Glauco


sentiu uma de imensa pela perda do amigo e lamentou ser
incapaz de lhe prestar ajuda pá causa de estar ferido num dos
braços. Dirigiu, então, uma ardente súplica Apolo, para que o
curasse do ferimento, permitindo-lhe assumir assim o comando
dos lícios e livrar da profanação o cadáver do amigo.

Atendido pelo deus, que prontamente o curou, infundindo-


lhe no Corpo e na alma grande vigor, Glauco exortou os
companheiros a lutar a lado do corpo de Sarpedão e, indo à
procura de Heitor, disse-lhe:

— Pouca atenção, Heitor, tens dado aos aliados que, longe


da pátria e dos amigos, estão aqui a sacrificar-se por tua causa.
Sarpedão, o grande chefe dos lícios, está morto, atingido pela
lança de Pátroclo. Defendam ao menos o seu cadáver, não
consentindo que o inimigo, irritado pelas muitas perdas que lhe
temos infligindo, o ultraje.

Heitor ficou abalado com a notícia pois, embora Sarpedão


fosse estrangeiro, era o chefe dos lícios e grandemente
apreciado por todos e considerado um dos baluartes de Tróia.

Conduzidos por Heitor, os troianos retomaram


decididamente o ataque esforçando-se por afastar os gregos do
cadáver de Sarpedão, a fim de evite que o despojassem.

114
Ilíada – Homero

Conseguiram até matar um dos mais valentes mirmidões, que


mexia já no corpo do guerreiro abatido. Atirou-lhe Heitor cor
uma enorme pedra à cabeça, rachando-a de alto a baixo. Mas
Pátroclo enfureceu-se com a morte do companheiro e avançou
com redobrado ímpeto, matando alguns dos fortes guerreiros
troianos e obrigando o inimigo a retroceder, inclusive Heitor.

Meríones matou o famoso Laógono, ferindo-o por baixo


do queixo Desejoso de vingança, Eneias atirou-lhe com a lança.
Apercebendo-se disso, Meríones desviou o corpo e a arma foi
cravar-se no chão. E assim si encarniçava a luta em torno do
cadáver, que já era difícil de reconhecer tão coberto estava de
poeira e de sangue.

Por fim, acabaram os troianos por ceder terreno e o próprio


Heitor vendo-se desamparado dos deuses, subiu rápido para o
carro e afastou-se concitando os guerreiros a segui-lo. Os
gregos arrancaram do peito de Sarpedão a reluzente armadura.
Nesse momento, porém, Júpiter ordenou a Apolo que descesse
até ao campo de batalha e subtraísse o cadáver das mãos dos
seus profanadores. Sem perda de tempo, Apolo obedeceu.
Retirando o corpo do alcance das armas dos guerreiros, lavou-
o, ungiu-o com óleo, vestiu-o com ricas roupagens e mandou
transportá-lo para a Lícia, a fim de ser entregue aos chorosos
parentes e amigos, para que lhe prestassem as últimas
homenagens e lhe dessem condignas exéquias.

De acordo com as ordens de Aquiles, Pátroclo deveria


abandonar o campo de batalha e regressar à sua tenda logo que
conseguisse afugentar os troianos dos navios. Mas o herói já
não se podia conter. Entusiasmado com as vitórias sucessivas
que ia alcançando sobre os adversários, esquecera
completamente as recomendações do amigo e só pensava numa
coisa: conquistar a cidade. E teria realizado o seu desejo se
Apolo não estivesse decidido a proteger os troianos, cumprindo
as ordens de Júpiter. Três vezes Pátroclo investiu contra um dos
ângulos da muralha e três vezes foi repetido pelo deus que, com
as suas mãos imortais, lhe empurrou o brilhante escudo. Mas

115
Ilíada – Homero

quando, pela quarta vez, voltou ao ataque, Apolo enfureceu-se


e gritou:

— Retira-te, Pátroclo! Não é a ti que está destinada a glória


de conquistar a altiva Tróia. O próprio Aquiles, que é muito
mais forte do que tu, não conseguirá devastá-la!

Reconhecendo a voz de Apolo, Pátroclo retrocedeu sem,


contudo, desistir da ideia de transpor as muralhas da cidade.
Então, o deus do arco de prata aproximou-se de Heitor,
disfarçado sob a forma de jovem guerreiro, e disse-lhe:

— Heitor, porque evitas assim os combates? Não deves


hesitar. Avança contra Pátroclo e vê se o dominas. Pode ser que
Apolo te conceda a vitória.

O bravo Heitor sentiu reacender-se-lhe no peito a indómita


coragem que o tinha abandonado por alguns momentos.
Mandou Cebrion guiar os cavalos para o campo de batalha, pois
naquela ocasião achava-se junto as portas da cidade. E, sem dar
importância aos outros guerreiros inimigos, avançou na
direcção de Pátroclo. Este, ao vê-lo aproximar-se, desceu do
carro e esperou-o com a lança na mão esquerda. Com a direita,
apanhou uma pedra e atirou-a à cabeça de Cebrion, derrubando-
o. O homem cair pesadamente com o crânio fracturado e teve
morte instantânea. Ao vê-lo cair de cabeça para baixo, como se
estivesse a mergulhar, Pátroclo escarneceu:

— Que grande habilidade a deste homem! Que belo


mergulho! Na verdade, os troianos são excelentes
mergulhadores!

E, preferindo essas palavras, Pátroclo atirou-se sobre o


cadáver, ansioso por despojá-lo. Heitor, por sua vez, saltou do
carro e a luta travou-se em torno do corpo do auriga. Com a
ferocidade dos leões que se atiram à mesma presa, os dois
encarniçavam-se na luta, um procurando atingir o outro com a
lança pontiaguda. Para junto de Heitor correram os troianos e

116
Ilíada – Homero

os gregos vieram reunir-se a Pátroclo. Os dois exércitos


engalfinharam-se e o combate generalizou-se mais uma vez.
Como dois ventos apostos que se chocam numa floresta,
destruindo os arbustos e arrancando os troncos mais grossos,
assim eles se precipitaram um sobre o outro, numa luta de
extermínio.

O corpo do infeliz auriga jazia no chão, desfigurado,


coberto de poeira e de sangue. Por sobre ele os arcos
desfechavam revoadas de flechas e rijas pedradas estalavam
nos escudos dos guerreiros. As lanças voavam, indo cravar-se
no solo ou no peito dos heróis.

Até à hora do pôr do Sol, a sorte pendeu para o lado dos


gregos. Vinte e sete bravos troianos pereceram as mãos de
Pátroclo. Mas, quando a noite começou a descer, Apolo meteu-
se na luta e, sem que Pátroclo o pressentisse, vibrou-lhe uma
forte pancada na espádua e nos ombros. O herói sentiu
escurecer-lhe a vista e as pernas fraquejaram. Apoio tirou-lhe,
então, o capacete e a couraça e quebrou-lhe a lança. Vendo-o
indefeso e aturdido, Euforbos, jovem e valente guerreiro
troiano, feriu-o nas costas com a lanças Mas a ferida não foi
mortal. Entretanto, quando ele tentava levantar-se para se
ocultar atrás dos companheiros, foi visto por Heitor, que lhe
trespassou o ventre com o afiado bronze. Pátroclo tombou,
agonizante.

— Então, Pátroclo! — zombou o chefe troiano. — Querias


saquear Tróia e levar para a rua pátria as mulheres e os filhos
dos troianos? Insensato! Não pensaste que eu próprio te
impediria de levar a cabo os teus funesto planos? Aquiles,
apesar de valente, já não te pode ajudar.

Pátroclo ainda respondeu, com voz débil:

— Podes gabar-te, Heitor, mas não foste tu que me


venceste. Apolo arrancou-me as armas e deixou-me sem defesa.
Depois, Euforbos feriu-me com a lança e só então, em terceiro

117
Ilíada – Homero

lugar, é que me atingiste. Nem sequer tens direito aos meus


despojos. Se não fossem os deuses, nem vinte troianos dos mais
valorosos conseguiriam derrotar-me. Ouve mais uma coisa: tu
também não viverás muito, pois a morte já anda à tua espreita.
Morrerás em breve, às mãos do grande Aquiles.

Com estas palavras, Pátroclo expirou. Mas Heitor, que não


o percebera, replicou:

— Que estás para aí a dizer, Pátroclo? Pode ser que seja eu


que vença o indomável filho de Peleu.

Dito isto, Heitor arrancou a lança do cadáver e correu para


Automedonte, o cocheiro de Pátroclo, ansioso por se apoderar
dos cavalos imortais de Aquiles. Mas Automedonte já ia longe,
guiando os rápidos e formosos corcéis.

Ouvindo os gritos de triunfo dos troianos pela vitória de


Heitor e querendo averiguar o que acontecera, Menelau
aproximou-se e, ao saber que Pátroclo fora morto, dirigiu-se até
onde estava o cadáver.

O homem que ferira Pátroclo pelas costas, ao ver Menelau


junto ao cadáver, saiu das fileiras troianas com uma lança,
dizendo:

—Afasta-te, rei Menelau, e deixa-me despojar o morto.


Fui, hoje, o primeiro a ousar golpear Pátroclo. Portanto, o seu
corpo pertence-me e vou levá-lo para Tróia a fim de receber as
honras de meu povo. Afasta-te, filho de Atreu, se não quiseres
morrer também, atravessado pela minha lança.

E, dizendo isto, levantou a sua arma em atitude


ameaçadora, mas Menelau não se moveu. Com o escudo sobre
o corpo e a lança na mão direita, manteve-se ao lado do corpo
de Pátroclo, para o guardar para Aquiles.

—Um homem não se deve gabar do facto de os deuses Ihe


terem concedido um pouco de glória—respondeu-lhe
118
Ilíada – Homero

Menelau.—Volta para junto dos teus companheiros e pára de


provocar-me ou, de contrário, não viveras para te vangloriar em
Tróia.

O troiano atirou, de imediato, a sua lança contra Menelau,


que aparou o golpe com o escudo. No entanto, o troiano não
conseguiu defender-se da lança que lhe foi atirada por Menelau
e tombou morto.

Menelau teria carregado facilmente com o corpo de


Pátroclo para fora do campo de batalha, pois os outros troianos,
atemorizados com a morte do seu companheiro, não ousavam,
de momento, enfrentar o rei de Esparta; mas Heitor, desistindo
de perseguir os velozes cavalos de Aquiles, olhou para trás e,
vendo Menelau, correu imediatamente em direcção dele.

Menelau, sentindo que muito em breve estaria cercado de


inimigos, pensou: "Como posso fugir e colocar-me a salvo,
deixando aqui o bom Pátroclo que lutou por minha causa? Por
outro lado, se permanecer aqui e lutar sozinho contra Heitor e
todos os troianos, logo estarei morto ao lado de Pátroclo e
seremos duas vitórias para os nossos inimigos.," Mas, apesar de
pensar assim, continuou ao lado de Pátroclo e chamou os seus
companheiros, esperando que Ájax, filho de Télamon,
aparecesse. Adjuntos, apenas os dois, Ájax e eu — pensou —,
poderíamos aguentar estes troianos e salvar o corpo de Pátroclo
para Aquiles.»

Mas Ájax não o ouviu e ninguém veio em seu auxílio. Por


fim, e mau grado a sua bravura, viu-se obrigado a recuar,
abandonando o cadáver e indo à procura de Ájax. Heitor
aproveitou-se da sua retirada para arrancar a couraça de Aquiles
do corpo de Pátroclo.

Menelau foi ao encontro de Ájax e disse-lhe:

—Vem depressa, bom Ájax, pois juntos poderemos salvar


o corpo do bravo Pátroclo dos troianos. É quase certo que a sua

119
Ilíada – Homero

couraça já deve ter sido arrancada, mas talvez possamos, ao


menos, levar o seu cadáver a Aquiles.

De faca, Heitor, depois de guardar a couraça e o elmo de


Pátroclo no seu carro, preparava-se para lhe decepar a cabeça,
dizendo: «Este corpo alimentará os cães de nossa cidade, mas a
cabeça irá servir de troféu nas muralhas de Tróia.. ..., quando
foi subitamente interrompido pela chegada de Ájax e fugiu.

Então Ájax, tendo Menelau a seu lado, permaneceu junto


do corpo de Pátroclo; o seu imenso escudo, que tantas vezes
abrigara Tencro quando este atirava as flechas, protegia agora
Pátroclo. E tão resolutos e firmes se mantinham ambos, lado a
lado, que, por um momento, nenhum troiano se atreveu a
enfrentá-los.

Mas Glauco, ainda amargurado com a morte de Sarpedão,


aproximou-se de Heitor e disse-lhe com desprezo:

—Não te envergonhas, Heitor, de fugir assim ao combate?


Como é que hás-de defender a cidade só com o auxílio dos teus
guerreiros? Já nenhum lício tem incentivo para combater os
gregos, pois tu pouco te importas com a sorte dos teus aliados!
Não deixaste abandonado o cadáver de Sarpedão, teu hóspede
e teu amigo, para que o inimigo dele se apoderasse e o levasse
como presa de guerra? Ele, que tudo sacrificou para salvar
Tróia e a ti próprio! E tu nada ousaste, nada fizeste para, ao
menos, o preservar dos cães! Por esses motivos, se os Ikios me
ouvirem, ir-nos-emos todos embora e Tróia verá chegar os seus
últimos dias. Se fosses mais corajoso e intrépido, já há muito
que estaríamos de posse do cadáver de Pátroclo. Então, os
gregos se prontificariam a entregar-nos os despojos de
Sarpedão em troca dos de Pátroclo. Mas não! Tu tiveste medo
de Ájax e não aceitaste o combate frontal porque ele é mais
valente do que tu.

De cenho carregado, Heitor respondeu:

120
Ilíada – Homero

—Porque me censuras, Glauco? Sempre te considerei meu


amigo e pensei que me conhecias o bastante para não duvidares
da minha coragem. Bem sabes que não receio o combate, pois
já tenho dado boas mostras de valentia e audácia nesta guerra.
Mas é preciso não esquecer que a vontade de Júpiter sempre se
realiza e foi ele quem me impediu a fuga. Entretanto, não te vós
e observa o que vou fazer. Verás então se sou cobarde.

E, dizendo isto, gritou para que os homens, que levavam a


armadura de Pátroclo, se detivessem. Despojando-se então das
suas armas e da sua couraça, revestiu-se com as de Aquiles, que
ele próprio arrebatara a Pátroclo.

Mas Júpiter, que do cimo do monte Ida continuava a


presenciar a luta, viu o que Heitor estava a fazer e aborreceu-
se:

«Desgraçado! — pensou ele. —Vestiste a armadura do


divino Aquiles, guerreiro a quem todos temem. Eu não devia
fazê-lo mas, por enquanto, dar-te-ei ainda alta glória, visto que
não voltarás para ofertar à tua Andrómaca as armas de
Aquiles.»

Após este pensamento, Júpiter fez com que a armadura se


adaptasse perfeitamente ao corpo de Heitor. Em seguida,
infundiu-lhe no espírito a força da bravura.

Magnífico, sob a esplêndida armadura, Heitor avançou


para o campo de batalha e todos ficaram pasmados, tal era a sua
semelhança com o divino Aquiles. Animados pela aparição do
chefe, que a todos dirigia uma palavra de estimulo, os troianos
e seus aliados investiram contra os gregos, certos de que lhes
seria facílimo arrebatar o ambicionado cadáver. Mas inúmeros
foram os que tombaram sem vida neste encontro, pois os gregos
tinham decidido não permitir, à custa de que sacrifício fosse,
que os troianos arrebatassem o cadáver de Pátroclo. E os
troianos, por seu lado, estavam mais dispostos a morrer do que
a abandonar o intento que os movia.

121
Ilíada – Homero

Primeiro avançaram os troianos, obrigando os gregos a


recuar. Mas estes não fugiram para longe e Ájax fê-los voltar,
animando-os com a sua bravura pois, logo a seguir a Aquiles,
era ele o mais forte e valente de todos. Ájax investiu
exactamente no momento em que um guerreiro troiano
começava a arrastar o cadáver por uma perna. O infeliz expirou
logo ali, ferido pela lança de Ájax. Heitor procurou vingar o
companheiro, mas sua lança não atingiu Ájax e sim outro
guerreiro, Esquédio, chefe dos fócios.

Entretanto, Aquiles ignorava ainda a morte do seu amigo.


Os gregos combatiam longe dos navios, ao lado das muralhas
de Tróia. Pelo seu espírito não passava a mínima suspeita da
desgraça. Pelo contrário, estava persuadido de que Pátroclo
retornaria cheio de vida. Tétis, sua mãe, que lhe havia
comunicado os grandes desígnios de Júpiter, nada lhe dissera
da perda daquele que ocupava o lugar mais importante dentro
do seu coração.

Enquanto os heróis se engalfinhavam na feroz disputa, os


cavalos imortais de Aquiles, afastados do local de combate,
choravam a perda de seu excelente guia, a quem muito
estimavam. Lembravam-se de que muitas vezes Pátroclo os
havia conduzido à vitória, guiando-os com mãos firmes e
seguras. E agora, ao vê-lo morto, os pobres animais deixavam
pender a cabeça em sinal de luto e pesar, não dando importância
às chicotadas de Automedonte que queria que eles se
movimentassem.

Aquela tristeza, porém, não passou despercebida a Júpiter,


que se compadeceu deles dizendo:

— Fiz muito mal em vos ter dado — a vós, que sois


imortais — a um homem que, apesar de rei, é mortal como
todos os homens. Pois, de todas as coisas que respiram sobre a
terra, não há nada mais digno de lástima do que o homem. Mas
Heitor não vos possuirá. Já basta que ele se tenha apoderado
das armas de Aquiles.

122
Ilíada – Homero

E, assim falando, insuflou-lhes novo ânimo e os animais


desataram a correr, conduzidos por Automedonte a cuja voz
obedeceram como dantes. E Heitor não conseguiu apanhá-los,
embora tivesse grande desejo de o fazer.

Entretanto, a luta recrudescera e os troianos exerciam cada


vez mais pressão sobre os gregos. Menelau e Ájax, à frente,
procuravam deter o avanço do adversário. A um dado
momento, disse o segundo ao primeiro:

— Vê se consegues encontrar Antíloco, filho de Nestor, e


pede-lhe que vá sem demora anunciar a Aquiles que o mais
querido dos seus amigos pereceu em combate.

Menelau aquiesceu mas, antes de se retirar, disse aos dois


Ájax e a Meríones:

— Meus amigos, não vos esqueçais de que, em vida,


Pátroclo foi sempre um bom e fiel companheiro. Não o
abandoneis, portanto, agora que o destino lhe foi tão cruel.

Dizendo isto, Menelau afastou-se à procura de Antíloco.


Não tardou que o encontrasse na ala esquerda da batalha,
incitando os companheiros à luta. Aproximando-se, disse-lhe:

— Trago-te uma noticia bem desagradável, Antíloco!


Pátroclo foi morto! Corre, pois, e vai informar Aquiles do que
se passou. Talvez ele nos ajude pelo menos a transportar o
cadáver para os navios, porque Heitor já lhe arrebatou as armas
e a brilhante armadura.

Antíloco teve um gesto de espanto. Encheram-se-lhe os


olhos de lágrimas e a voz ficou-lhe presa na garganta. Sem dizer
palavra, entregou as suas armas a Menelau e correu em direcção
à tenda de Aquiles.

Menelau, por sua vez, regressou ao combate e foi


encontrar-se novamente com Ájax a quem disse:

123
Ilíada – Homero

— Dei o recado a Antíloco, que partiu imediatamente para


levar a mensagem. Mas duvido que Aquiles possa vir agora,
pois sem as suas armas não pode combater. Portanto, o melhor
é planearmos um meio de retirar o cadáver deste tumulto.

— Tens razão, Menelau — respondeu Ájax, filho de


Télamon.—Façamos o seguinte: tu e Meríones apanhai o
cadáver e procurai afastar-vos o mais depressa possível,
enquanto eu e Ájax, filho de Oileu, combateremos Heitor e os
troianos.

Menelau e Meríones pegaram no corpo de Pátroclo e


começaram a levá-lo em direcção aos navios. Vendo isso, os
troianos redobraram de furor e caíram sobre eles. Mas, de cada
vez que os dois Ájax os enfrentavam, eles estremeciam e não
ousavam enfrentá-los. Assim se revezaram gregos e troianos na
iniciativa do ataque e a peleja prosseguiu com fúria crescente.

Enquanto prosseguia a batalha pela disputa do corpo de


Pátroclo, o veloz mensageiro Antíloco chegava à presença de
Aquiles. Encontrou-o muito preocupado junto dos navios e
entre lágrimas transmitiu-lhe a triste noticia:

— Nobre filho de Peleu, é triste e desoladora a mensagem


que te trago! Pátroclo foi morto em combate e Heitor despojou-
o das suas armas. Agora, lutam todos em torno do seu cadáver.

Ao ouvir tais palavras, Aquiles atirou-se ao chão e,


apanhando a terra com as mãos, atirou-a para a cabeça e
arrancou os cabelos em desespero. Abundantes lágrimas
inundavam-lhe a face e não cessava de suspirar e lamentar-se
profundamente. As escravas, aproximando-se, também fizeram
coro com sua dor. Antíloco, por sua vez, chorava e falava com
Aquiles, tentando consolá-lo.

Mas Tétis, a mãe do herói, ouviu lá no fundo do mar as


suas lamentações e acudiu pressurosa:

124
Ilíada – Homero

— Meu filho, porque choras? Conta-me o que se passou.


Não obtiveste de Júpiter que os gregos, privados de teu auxilio,
fossem rechaçados para os seus próprios navios e, sofrendo
terríveis perdas, muita falta sentissem de ti?

Soltando profundo suspiro, Aquiles respondeu:

— É verdade, minha mãe, que tudo isso me conseguiste.


Mas de que adianta isso, se o meu querido amigo Pátroclo
morreu nesse combate; ele a quem eu estimava mais do que a
todos os outros e tanto quanto a mim mesmo? Foi Heitor quem
o matou e o despojou depois das suas armas, aquelas armas
prodigiosas que os deuses tinham dado a meu pai. Quanto a
mim, não desejo mais viver senão para me vingar. Heitor há-de
pagar com a vida a morte de Pátroclo!

Então, a deusa de pés prateados censurou-o:

—Meu filho, não fales assim! Não sabes que o teu destino
está ligado ao de Heitor e que, depois da morte dele, seguir-se-
á a tua?

Entre soluços, Aquiles retrucou:

— Pois que eu morra, minha mãe, já que não pude


defender o meu querido companheiro! Eu, o mais valente, o
mais forte de todos os helenos, não pude impedir a morte do
meu melhor amigo! Maldita seja a cólera que semeia a
discórdia entre os homens, como entre mim e Agamémnon!
Mas o que passou não deve ser relembrado. Irei agora ao
encontro de Heitor e pouco me importa se o meu destino é
morrer logo a seguir a ele. Ninguém escapa ao seu destino, nem
mesmo os próprios deuses. Portanto, minha mãe, não procures
dissuadir-me de entrar no combate, pois já me decidi a esse
respeito.

Tétis, então, respondeu-lhe:

125
Ilíada – Homero

— Está certo, meu filho, que vingues a morte do teu


companheiro e livres os gregos da derrota final. Mas não podes
combater sem armas e elas estão em poder de Heitor. Espera
até amanhã e novas armas te trarei; armas ainda mais belas e
poderosas, fabricadas especialmente por Vulcano.

Dizendo isto, Tétis retirou-se e subiu rápida ao Olimpo,


impaciente por mandar preparar com presteza novas armas para
o seu filho.

Entretanto, no campo de batalha, os gregos fugiam diante


de Heitor. Nem os dois Ájax aguentavam mais a defesa e, sem
dúvida, o chefe troiano teria arrebatado o cadáver de Pátroclo
se a mensageira Íris não tivesse chegado à tenda de Aquiles com
esta mensagem de Juno:

— Levanta-te, valente filho de Peleu, e corre em defesa do


cadáver de Pátroclo, em torno do qual se trucidam muitos
guerreiros. Esforça-se Heitor, mais que todos, por arrebatar o
corpo, pois o seu intento é cortar-lhe a cabeça e espetá-la num
poste. Não podes permitir que aquele que foi o teu maior amigo
sofra tal ultraje.

— Como posso apresentar-me no combate — respondeu o


herói — se não tenho armas e a minha mãe proibiu-me de sair
daqui até que voltasse com uma nova armadura fabricada por
Vulcano?

— Basta que apareças junto ao fosso, assim mesmo como


estás, e os troianos, amedrontados, fugirão. O que permitirá que
os guerreiros sosseguem um pouco. Embora breve, será
precioso o descanso.

Aquiles correu até ao fosso e soltou o seu grito de guerra.


Obedecendo ao conselho da mãe, não entrou na luta. Mas a sua
presença foi suficiente para encher de pavor as fileiras troianas.
Três vezes a sua voz se ergueu acima do tumulto e três vezes os

126
Ilíada – Homero

troianos recuaram. Até os cavalos pressentiam a desgraça


iminente e, sacudindo as crinas, faziam retroceder os carros.

Os gregos aproveitaram-se da confusão dos seus


adversários e retiraram o cadáver de Pátroclo do campo de
batalha. Em seguida, depuseram-no sobre um carro e formaram
um cortejo, no qual se incorporou Aquiles, que o acompanhava
chorando e lamentando-se. Aquele era o seu amigo querido, que
ele mesmo tinha mandado para a luta, revestido com as suas
próprias armas! E agora ali estava ele, desfigurado, morto,
longe da pátria!

Quis a deusa Juno abreviar aquele dia penoso e ordenou


que o Sol se pusesse antes da hora habitual. Assim, os bravos
guerreiros gregos puderam descansar um pouco após tantos
revezes.

Por sua vez, os troianos reuniram-se em assembleia para


discutir o que deviam fazer, pois estavam cansados de lutar e
temerosos com o retorno de Aquiles.

Primeiro falou Polidamas, cujos conselhos eram sempre


muito acatados:

— Acho que agora devemos voltar à cidade e prepararmo-


nos para defender as suas muralhas já que Aquiles, que no
passado deixou tantas mulheres troianas viúvas e fez tantos
prisioneiros, está novamente contra nós. E, desta vez, a piedade
não morará no seu coração. Exigirá a vingança «trema pelo seu
amigo morto e devemos temer a sua ira. Voltemos a Tróia,
montemos guarda esta noite e pela manhã iremos para as
muralhas e nem Aquiles, nem outro grego qualquer, conseguirá
penetrar nelas.

O seu conselho era sábio, como sempre, mas Heitor


replicou, indignado:

— És um cobarde, Polidamas, e recuso-me a seguir o teu


conselho. Nem eu te atenderei, nem nenhum outro homem o
127
Ilíada – Homero

fará, pois não o permitirei. Acamparemos aqui na planície esta


noite e descansaremos. Pela manhã, atacaremos novamente os
navios. E se realmente Aquiles tem intenção de voltar à luta, é
ele quem deve temer-nos, pois estarei pronto para enfrentá-lo
com a minha afiada lança. E, se os deuses o permitirem, terá o
mesmo fim do seu querido amigo e poderão ir juntos para a
terra de Plutão.

As suas palavras ousadas foram recebidas com euforia por


muitos troianos que gritavam em sinal de aprovação, mas os
outros, que preferiam seguir o conselho de Polidamas,
permaneceram em silêncio, receando desagradar a Heitor.

Entretanto, os gregos passaram a noite a chorar a morte de


Pátroclo. Aquiles, sobretudo, não cessava de se lastimar. De pé,
no meio dos guerreiros, lamentava:

— Na verdade, nem sempre os deuses estão dispostos a


satisfazer os desejos dos mortais. Eu tinha prometido a
Menécio, pai de Pátroclo, que lhe traria o filho coberto de glória
e que juntos repartiríamos os despojos de Tróia. E agora ele está
morto. Eu também não regressarei à casa de Peleu, pois é meu
destino morrer longe da pátria. Mas não descansarei, nem meu
amigo será enterrado, enquanto não lhe trouxer as armas e a
cabeça de Heitor.

Tendo assim falado, ordenou Aquiles aos companheiros


que pusessem um grande recipiente ao lume e aquecessem água
para que, sem demora, se lavasse o corpo de Pátroclo. Em
seguida, untaram-no com um precioso óleo e cobriram-no com
um fino lençol.

Enquanto isto se passava na terra, no Olimpo a mãe de


Aquiles dirigia-se à morada de Vulcano, o ferreiro dos deuses.
Encontrou-o muito atarefado no fabrico de vinte magníficas
trípodes, destinadas a ornamentar um dos principais salões do
Olimpo. Tinham rodinhas de ouro nos pés, de modo que
podiam andar sozinhas pelos aposentos do palácio e dirigirem-

128
Ilíada – Homero

se para os seus lugares sem precisar de guia. Estava Vulcano


ocupado nessa tarefa quando Tétis entrou na forja, de modo que
não a viu. Foi a bela Cáris esposa do ilustre ferreiro, quem veio
rebarba-la tomando-a pela mão, disse-lhe

— Ó deusa que tanto aprecio, qual o motivo da tua amável


visita? Diz-nos o que desejas e teremos todo o prazer em servir-
te.

Assim falando, levou Tétis para o interior da casa e fê-la


sentar-se num magnifico trono de prata. Depois chamou o
marido:

— Vem depressa, Vulcano, mesmo como estás. Tétis


deseja falar-te.

— Ah! Entre todos os imortais não há ninguém —


respondeu ele dá onde estava — a quem eu tanto estime e
venere como a Tétis, a deusa dos pés prateados! Foi ela quem
me salvou, escondendo-me numa das grutas do oceano, quando
a minha mãe, a divina Juno, quis precipitar-me do Olimpo por
eu ter nascido coxo. Por isso nada lhe posso recusar. Prepara-
lhe um banquete enquanto eu arrumo a oficina.

Guardou as ferramentas, limpou o suor do rosto e veio ao


encontro de Tétis. Sentando-se perto dela, disse-lhe:

— Tétis, que muito venero, diz-me o que desejas e tudo


farei para servir-te desde que esteja ao meu alcance.

Narrou-lhe a deusa tudo que se havia passado com o seu


filho a partir da briga com Agamémnon. Contou-lhe a morte de
Pátroclo e como Aquiles ficara privado de suas armas. Depois,
acrescentou:

— E foi por isso que aqui vim: para suplicar-te de joelhos


que fabriques para o meu filho armas excelentes com que ele
possa vingar a morte do seu amigo.

129
Ilíada – Homero

Vulcano respondeu-lhe, prontamente:

— Não te aflijas, Tétis. Hei-de fabricar uma armadura tão


extraordinária que espantará todos os homens que a virem.
Farei o capacete, o escudo e a lança de acordo com o herói a
quem se destinam. Ah! Pudesse eu afastar de teu filho o destino
cruel que o persegue!

Então, o deus voltou para a sua forja e pôs mãos à obra.


Primeiro, atirou ao fogo uma boa quantidade de bronze, cobre,
ouro e prata.

Depois apanhou com uma das mãos o martelo, com a outra


as tenazes e começou a fazer o escudo. Modelou uma roda
imensa, utilizando principalmente o bronze, e malhou repetidas
vezes para torná-lo forte e resistente aos golpes de lança.
Terminada a estrutura do escudo, começou a lavrá-lo com
desenhos maravilhosos. De suas mãos de artista ia surgindo a
imagem do céu com todas as estrelas e constelações. Depois a
terra com seus rios e montanhas, com todos os pormenores em
relevo. Mais abaixo, figurou duas cidades: numa reinava a paz,
noutra a guerra. Na primeira desenhou uma bela avenida na
qual transitavam cortejas nupciais e havia festa e danças nas
quais participavam os jovens. A cidade em guerra estava
cercada por altas muralhas defendidas por homens armados
contra um exército que a sitiava. Via-se o entrechocar das armas
e o sangue a escorrer dos feridos.

Reproduziu também no escudo um campo de terra lavrada,


onde rústicos camponeses realizavam a colheita. Um pouco
adiante havia um homem a beber vinho, demonstrando evidente
satisfação. Desenhou também uma vinha e um grupo de moças
que colhiam as uvas, enquanto um menino cantava ao som de
uma lira de ouro.

Sempre com incomparável perícia, Vulcano esculpiu no


escudo algumas vacas que se dirigiam para férteis pastagens.
Adiante elas encontram um touro debatendo-se nas garras de

130
Ilíada – Homero

dois poderosos ledes. Os pastores aparecem e incitam os cães


contra as feras, mas eles nada podem fazer e o touro perece.

O artífice divino fez também surgir no escudo de Aquiles


um rebanho de brancas ovelhas, espalhadas sobre vale ameno.
Outra cena era um grupo de lindas moças que, de mãos dadas,
executavam uma dança festiva. Trajavam tónicas alvíssimas e
os cabelos eram coroados de rosas. No centro, um poeta cantava
ao som da lira e uma grande multidão assistia ao espectáculo.

Concluído o prodigioso escudo, Vulcano aprontou


rapidamente a couraça, o capacete e as caneleiras, empregando
o melhor material que encontrou na sua oficina. Juntou, depois,
todas essas armas e foi entregá-las à mãe de Aquiles, que o
aguardava no salão do palácio.

Rápida como o gavião, Tétis baixou do Olimpo e foi ao


encontro do seu filho.

Quando Aquiles recebeu as armas das mãos de Tétis, a sua


ira, como que por encanto, sumiu-se. Não cessava de as admirar
e de soltar exclamações de júbilo. Por fim, disse à sua divina
mãe:

— Ninguém duvidaria que tais armas só poderiam ter saído


de uma oficina celeste. São realmente magníficas! Vou
envergá-las imediatamente e lançar-me ao combate. O que me
custa é abandonar o cadáver do meu amigo, não vão as moscas
e os vermos desfigurar a sua bela aparência.

— Tranquiliza-te, meu filho — disse Tétis. —Protegê-lo-


ei na tua ausência, mesmo que tenha de permanecer aqui
durante um ano inteiro. E quando voltares encontrá-lo-ás no
mesmo estado. Agora vai e convoca todos os guerreiros,
preparando-os para a grande ofensiva. Mas, antes de mais nada,
reconcilia-te com Agamémnon.

Com estas palavras, fez avivar em Aquiles o antigo rancor


e o espírito belicoso. E o herói saiu pela planície, convocando
131
Ilíada – Homero

os guerreiros para uma assembleia. Ao ouvir a voz de Aquiles


todos se apresentaram, mesmo os homens que costumavam
ficar na retaguarda encarregados de cuidar dos navios. O último
a chegar foi Agamémnon, apoiado à lança, pois ainda não se
restabelecera completamente dos ferimentos.

Quando todos estavam reunidos, Aquiles tomou a palavra:

— Glorioso átrida Agamémnon, teria sido bem melhor


para ambos se nunca tivéssemos rompido os laços de amizade
que nos uniam. Devíamos ter sabido dominar os nossos
impulsos e evitar que o ódio nos corroesse a alma. Juntos
teríamos impedido que tantos gregos perecessem sob os duros
golpes do inimigo. Mas, por causa de uma mulher, permitimos
que os nossos guerreiros sofressem tantas derrotas. Maldito o
dia em que saqueei a cidade de Lirnesso e trouxe Briseida como
escrava! Antes Diana a tivesse atravessado com uma seta, em
vez de eu a ter trazido para servir de discórdia! Mas não falemos
de coisas passadas. Por mim, não guardo ressentimentos e
espero que faças o mesmo. Vamos, pois, ao combate! Veremos,
então, se os troianos continuarão, noite e dia, a rondar-nos os
navios.

Sentou-se depois de ter falado e os gregos, através de gritos


de aprovação as suas palavras, demonstraram a alegria que
sentiam pelo seu regresso à luta. Quando por fim o tumulto
cessou, Agamémnon, sem sair do seu lugar, disse:

— Meus amigos e prezados guerreiros — afirmou ele —,


por várias vezes me culpastes por ter brigado com Aquiles e por
tudo o que essa briga nos causou, mas as coisas sucederam por
vontade dos deuses e eu não tenho culpa. Os deuses dão aos
mortais aquilo que desejam. Se agi insensatamente, também os
deuses, às vezes, o fazem. No entanto, apesar de não merecer a
culpa, retratar-me-ei perante ti, Aquiles. Enviarei
imediatamente para os teus barcos as oferendas que, através de
Ulisses, te prometi há dois dias atrás.

132
Ilíada – Homero

— Manda-me os presentes ou não, como queiras, pois isso


não me interessa agora. Não é hora de tratarmos de frivolidades.
Há algo importante que preciso realizar imediatamente.
Portanto, ordena aos gregos que se armem para partirmos para
a batalha.

Agamémnon revelou na fisionomia que não lhe agradara o


pouco respeito com que Aquiles recebera a sua oh erra; mas
Ulisses ergueu-se logo a seguir e, sorrindo, disse:

— Aquiles, tem mais um pouco de paciência. Não queres,


com certeza, que os gregos partam já para a luta. Deixa-nos
retomar o animo e coragem, comendo e bebendo bem. Aquele
que está bem alimentado luta sempre melhor. E, enquanto a
nossa refeição está a ser preparada, deixa que o nosso chefe
Agamémnon te traga os presentes que te prometeu, para que
todos os vejam. Recebe de boa vontade esses presentes e aceita
a homenagem de Agamémnon, para que o fim da discórdia seja
presenciado por todos.

Agamémnon, animado pelo apoio de Ulisses, insistiu com


Aquiles, dizendo:

— Tem mais um pouco de paciência, recebe os presentes


que te oferecemos e, depois de oferecermos libações aos
deuses, poderemos sentar-nos juntos para comer.

Mas Aquiles não concordou e retrucou-lhe:

— Rei Agamémnon, deixa esses assuntos para uma hora


mais adequada. Talvez quando houver uma trégua ou, então,
quando a luta tiver terminado. Agora não tenho disposição para
isso. Pátroclo foi assassinado por Heitor e convidas-me para um
banquete! Por minha vontade, os gregos lutariam hoje sem
comer e só depois dos mortos terem sido vingados é que
comeriam até fartar. Deixa-os comer, se é mesmo necessário,
mas que o façam depressa. Quanto a mim, não consigo pensar
nem em comida nem em bebidas, só em morte e em vingança.

133
Ilíada – Homero

Pátroclo jaz na minha barraca, morto e frio, com o corpo


cortado e dilacerado. Não comerei, nem beberei, enquanto não
o tiver vingado.

Uma vez mais, Ulisses tentou acalmá-lo com palavras


suaves:

— Aquiles, és o maior guerreiro grego, bem melhor do que


eu a batalhar, mas sou mais velho e mais experiente na vida e,
portanto, melhor nos conselhos. Assim sendo, acata a minha
opinião. Velemos os nossos mortos com o coração e não com o
estômago. Durante uma guerra morrem muitos homens e, se
todos agissem como tu, os seus antigos companheiros não
poderiam fazer uma pausa nem para comer nem beber e, fracos,
seriam certamente eles a sucumbir de seguida perante o
inimigo. Não nos vamos limitar a velar os nossos mortos mas
vamos, também, comer e beber para nos fortalecermos e
vingarmos mais facilmente os nossos companheiros já
falecidos.

Aquiles nada mais disse e recebeu os presentes que eram


trazidos dos barcos de Agamémnon e colocados diante dele:
sete trípodes, vinte caldeirões, muito ouro, doze cavalos, sete
mulheres habilidosas e, por último, Briseida.

Como sacrifício aos deuses imortais, Agamémnon matou


um animal que foi atirado ao mar pelo arauto Taltíbio.
Terminada a cerimónia da oferenda, Aquiles levantou-se e
disse:

— Como disse o rei Agamémnon, não há dúvida de que


foram os deuses que o privaram do seu juízo e nos enviaram
toda esta adição. E agora, amigos, fazei uma rápida refeição
para que possamos ir ao encontro dos troianos.

E, sem sequer olhar para os presentes de Agamémnon,


voltou para a sua cabana.

134
Ilíada – Homero

Os mirmidões juntaram todos os presentes e carregaram-


nos para os
barcos de Aquiles, conduzindo também as mulheres e os
cavalos. Quando Briseida entrou na barraca de Aquiles e viu o
corpo de Pátroclo, estendido sobre a cama, ajoelhou-se ao lado
dele e, chorando, disse ao amigo morto:

— Querido Pátroclo, que sempre foste tão bom para mim,


será que não haverá fim para as minhas tristezas? Vi o meu
marido e os meus três irmãos morrerem e perco agora o meu
melhor amigo entre os gregos. Infeliz Pátroclo, nunca me
esquecerei de ti, nem tão pouco da tua bondade para comigo, e
lamentarei para sempre a tua morte.

Tudo estava preparado para o banquete. Quando, porém,


foram convidar Aquiles, ele recusou-se com animo decidido:

— Não, meus amigos, peço-vos que não insistais. Não


poderei nem comer nem beber enquanto não vingar a morte de
Pátroclo. Posso esperar muito bem até ao pôr do Sol sem me
alimentar e estou cerro de que não me faltarão as forças.

E, assim falando, foi sentar-se afastado dos outros, todo


entregue à sua dor. Ulisses, Nestor e o velho Fénix vieram ter
com ele, tentando distraí-lo daquela obsessão. Mas Aquiles
esquivou-se, dizendo:

— Prefiro ficar só. Antigamente, quando me preparava


para alguma batalha, era o próprio Pátroclo que preparava a
minha refeição e comíamos e bebíamos juntos, antes de irmos
enfrentar o inimigo. Agora ele jaz ali, morto. Acham que eu
poderia comer e beber sozinho?

Colocou as mãos sobre o rosto e mais uma vez invocou o


amigo desaparecido:

— Ó Pátroclo, nenhum homem jamais teve amigo melhor


que tu. Nunca sentirei desgosto tão profundo quanto este que
sinto agora, nem que eu viva para receber de Ftia a noticia da
135
Ilíada – Homero

morte de meu pai, nem que me venham de Ciro avisar que o


meu filho está morto. Conheço e aceitei o meu destino de não
sair de Tróia vivo. Mas pensava que tu voltarias a Ftia para
contar a meu pai a minha morte e irias buscar o pequeno
Neoptólemo a Ciro e acabarias de o criar. Mas isto não mais
acontecerá!

E lá do Olimpo, Júpiter, que o observava, apiedou-se dele


e disse a Minerva:

— Minha filha, que andas a fazer que não vês o sofrimento


daquele excelente guerreiro? Desce imediatamente, vai
consolá-lo e dar-lhe forças e alimento divino, que o preserve da
fome imperiosa.

Minerva, que não esperava outra coisa, transformou-se


num falcão, abriu as asas e baixou como flecha sobre o
acampamento grego. Aproximou-se de Aquiles e, sem ser
percebida, verteu-lhe no estômago o suave néctar e a deliciosa
ambrósia, bebida e alimento dos deuses. E voltou rapidamente
para as celestes moradas.

Aquiles não dera pela presença da deusa mas logo sentiu


que o animo lhe voltava e dele se apoderava o antigo ardor
belicoso. Levantou-se e começou a vestir a armadura que
Vulcano lhe forjara com especial carinho. Primeiro, calçou as
cabeleiras, ajustando-as com fivelas de prata. Depois, protegeu
o peito com a couraça, suspendeu do ombro a espada de bronze
e pegou no escudo. Este, de tamanho descomunal, cobria-lhe
completamente a elevada estatura, despedindo um fulgor que se
difundia a grande distancia. Por fim, colocou na cabeça o
pesado capacete. Vulcano fizera-o invulnerável e entretecera-
lhe o penacho com fios de ouro.

A seguir, Aquiles experimentou as armas, para ver se se


ajustavam bem ao corpo. Verificou que estavam perfeitos, o
que nem poderia ser de outra maneira, pois um deus as
fabricara. Em seguida, subiu para o seu carro e entregou as

136
Ilíada – Homero

rédeas a Automedante, o mesmo cocheiro que havia conduzido


Pátroclo. Aquiles dirigiu a palavra aos seus dois cavalos
imortais:

— Vamos, Xanto e Bálio! Levai-me ao campo de batalha!


Mas espero que desta vez não deixeis o vosso chefe
abandonado como fizeste a Pátroclo.

Os deuses deram voz aos animais e um deles respondeu:

— Ó poderoso filho de Peleu! Não foi por nossa culpa que


Pátroclo foi morto. Apoio feriu-o para que Heitor se cobrisse
de glória. Tu hoje regressarás são e salvo do combate, mas o
dia da tua perdição não está longe. Também serás vencido por
um deus e por um homem, e não por culpa nossa.

Observou-lhe Aquiles:

— Conheço o meu destino e não precisas de mo lembrar.


De momento só penso em derrotar os troianos e vingar a morte
de meu amigo.

E, fustigando os corcéis, lançou-se para a frente.

Quando tudo estava preparado para a batalha, dos píncaros


do Olimpo Júpiter convocou os imortais para uma assembleia,
durante a qual assim falou:

— Estou apreensivo, deuses imortais, com o resultado da


batalha que se avizinha. Aprecio contemplar do alto a animação
da guerra mas receio que os gregos, chefiados por Aquiles,
arrasem a cidade de Tróia. É que não é isso que está marcado
pelo destino. É preciso, pois, que todos vós baixeis ao campo
de batalha para intervir. Que cada um ajude o partido que mais
lhe interessar.

Os deuses, que não desejavam outra coisa, desceram


pressurosos para a Terra. Juno, Minerva, Neptuno, Mercúrio e

137
Ilíada – Homero

Vulcano foram colocar-se ao lado dos helenos. Tomaram o


partido dos troianos Marte, Apolo, Diana, Latona e Vénus.

Enquanto os deuses se tinham mantido afastados da luta,


os gregos avançavam sem que nada os pudesse impedir. Mas
quando os imortais se meteram no campo de batalha,
estabeleceu-se a confusão. Minerva, de pé na borda do fosso,
gritava instigando os seus guerreiros. Do outro lado, Marte
soltava gritos espantosos, impelindo os troianos à ofensiva.
Neptuno abanou as montanhas e os rios foram projectados para
fora dos seus leitos. Em resposta, o deus Apolo começou a
desferir setas pontiagudas sobre as tropas gregas.

Enquanto isso, Aquiles procurava Heitor, pois era com ele


que desejava bater-se. Mas foi Eneias que Apolo fez levantar-
se contra o filho de Peleu, insuflando-lhe coragem e vigor.
Tomando a forma de um dos filhos de Príamo, o deus
aproximou-se de Eneias e perguntou-lhe:

— Então, Eneias, onde estão aquelas promessas


audaciosas que fazias aos troianos, dizendo-lhes que
combaterias frente a frente com o divino Aquiles?

Eneias respondeu:

— Porque me incitas a defrontar-me com aquele terrível


guerreiro? Bem sabes que não seria essa a primeira vez que eu
desafiaria Aquiles. Já uma vez, quando ele destruiu a cidade de
Lirnesso, escapei de tombar às suas mãos. Júpiter livrou-me do
perigo, ajudando-me a fugir. Não, não posso enfrentar Aquiles,
pois ele anda sempre protegido por um deus que dele afasta a
morte e lhe prepara o caminho da vitória. Mas se ao meu lado
também estivesse um dos imortais, não lhe seria tão fácil
vencer-me, embora ele se gabe de ser o melhor de todos os
guerreiros.

Apolo, continuando disfarçado, retrucou-lhe:

138
Ilíada – Homero

— Ora, Eneias, se Aquiles é filho de uma deusa, tu também


o és. Pelo que dizem, a tua mãe foi Vénus, a filha de Júpiter.
Portanto, a tua linhagem é superior à dele. Tétis não é mais do
que uma filha do oceano. Avança contra ele e não temas as suas
injúrias e ameaças.

Com essas palavras, Apolo incutiu coragem no espírito de


Eneias que, sem hesitar, avançou para as primeiras fileiras.
Juno avistou-o correndo na direcção de Aquiles e reuniu os
deuses para deliberar:

— Neptuno e Minerva — disse ela —, vede bem o que


pode acontecer. Eneias, instigado por Apolo, avança contra
Aquiles. É preciso que um de nós o obrigue a retroceder, ou que
vá então imediatamente para junto de Aquiles, levar-lhe forças
e palavras de conforto. Que ele saiba que é amado pelos
melhores dos deuses e que os protectores dos troianos pouco
valem.

— Não vos preocupeis com isso — disse Neptuno. —Nós


somos os mais fortes e não devemos fazer provocações.
Fiquemos por perto a observar o que se passa. Se, porém, Apolo
ou Marte se meterem e procurarem atrapalhar Aquiles, nós
entraremos em luta e obrigá-los-emos a refugiarem-se no
Olimpo.

Todos os deuses concordaram com a ideia e foram sentar-


se sobre a muralha, envolvidos em espessa nuvem. Apolo e
Marte, por sua vez, galgaram um monte que havia à entrada da
cidade e lá instalaram o seu posto de observação.

Os dois exércitos já invadiam a planície e as setas, como


faíscas, cortavam o espaço. Eneias e Aquiles vinham na frente,
avançando um para o outro.

O primeiro a atacar foi Eneias. Inclinou a cabeça, levantou


o escudo e, de lança em riste, precipitou-se sobre o adversário.

139
Ilíada – Homero

Aquiles esperou-o, desdenhoso, e, quando o viu bem próximo,


disse-lhe:

— Eneias, porque abandonaste os teus companheiros de


retaguarda? Vieste desafiar-me na esperança de um dia reinar
sobre os troianos. Perdes o teu precioso tempo! Ainda que me
derrotasses, não obterias grandes vantagens. Príamo está velho,
mas é forte e viverá muitos anos. Além disso, tem filhos para
lhe sucederem no governo de Tróia. Ou será que os teus
patrícios te prometeram um belo domínio, melhor do que o dos
outros, terras imensas e campos férteis, se me matares? Já te
esqueceste do dia em que te fiz correr aterrorizado pelo Ida
abaixo? Nem sequer ousaste olhar para trás. Naquele dia
protegeu-te o rei do Olimpo, mas agora será inútil que peças o
seu auxílio. O melhor é que te retires para junto dos teus
companheiros. Vamos, some-te da minha vista, antes que seja
tarde!

Eneias, enfurecido, replicou:

— Filho de Peleu, não me amedrontas com as tuas


palavras. Também tenho língua para responder aos insultos e
lança para revidar aos ataques. Já nos conhecemos há muito
tempo. Sei que és filho do irrepreensível Peleu e da deusa Tétis.
Mas tu também deves saber que meu pai é o generoso Anquises
e minha mãe a deusa Vénus. Um pai terá hoje que chorar a
morte de seu filho. Mas para quê ficarmos aqui a trocar injúrias
e a falar da nossa linhagem? A minha decisão está tomada: em
guarda!

Dizendo isto, Eneias arremessou a pesada lança contra o


imenso escudo do seu adversário. O bronze ressoou com
estrondo, mas o ferro não conseguiu atravessar as cinco
camadas metálicas do poderoso escudo.

Por sua vez, Aquiles contra-atacou. O escudo de Eneias


não era tão resistente como o de Aquiles, de maneira que a lança
perfurou-o inteiramente, mas não atingiu o corpo do herói.

140
Ilíada – Homero

Passou-lhe por sobre o ombro e foi cair longe. Impaciente, o


filho de Peleu, soltando um terrível grito de guerra, sacou da
espada. Eneias pegou numa pedra e esperou-o. Então, um dos
dois teria perdido a vida se Neptuno não tivesse intervido.
Vendo que a morte pairava sobre a cabeça de um dos guerreiros,
disse aos outros deuses:

— Eneias não tarda a ser vencido por Aquiles e morrerá só


porque deu ouvidos as insinuações de Apolo. Mas para que há-
de padecer esse inocente, o melhor dos troianos, que não se
cansa de oferecer sacrifícios a todos
os deuses do Olimpo? Vamos salvá-lo pois, de contrário,
Júpiter ficará furioso! Ele já decretou que este homem e seus
descendentes hão-de reinar sobre Tróia em sucessivas gerações.

Respondeu-lhe Juno:

— Faz o que melhor entenderes. A mim e a Minerva pouco


nos importa que os troianos pereçam todos e que a cidade de
Tróia seja totalmente destruída.

Correu Neptuno para o campo de batalha, atravessou a


multidão de guerreiros e, chegando próximo do lugar em que
estavam os dois contendores, lançou uma névoa sobre os olhos
de Aquiles e suspendeu Eneias nos ares, levando-o para a
retaguarda. Quando o depositou no chão, dirigiu-lhe esta
censura:

— Porque te metes a combater Aquiles, sendo ele mais


forte do que tu e mais protegido pelos deuses?

Voltando, depois, para junto de Aquiles, colocou-lhe a


lança aos pés e dissipou o nevoeiro que o impedia de ver.
Aquiles percebeu que tinha sido enganado e exclamou:

— É extraordinário! A minha lança está aqui mas o meu


contender desapareceu! Vejo que os deuses também o
protegem! E eu que ansiava eliminá-lo do combate! Mas não
faz mal, ainda há muitos traia os para provarem a minha arma.
141
Ilíada – Homero

Disse e correu pelas fileiras incitando os guerreiros com


estas palavras:

— Vamos! Que cada guerreiro enfrente um inimigo, pois


eu sozinho não posso enfrentar todos. Nem os próprios deuses
poderiam com essa multidão. Farei o máximo que estiver ao
meu alcance e creio que nenhum troiano passará impune diante
de mim.

Por sua vez, Heitor fazia um apelo semelhante aos


troianos:

— Guerreiros! Não tenhais medo de Aquiles! Não poderá


cumprir todas as suas ameaças, embora seja forte e ágil como
um leão. Eu próprio vou defrontar-me com ele para o vencer!

Com essas palavras reanimou os seus combatentes e todos


se puseram em marcha como se fossem um sã homem.

Mas Apolo insinuou-se junto de Heitor e disse-lhe:

— Não te exponhas a combater contra Aquiles, pois ele é


mais forte do que tu e matar-te-á!

Ouvindo isso, Heitor desistiu do seu intento e recuou para


o meio dos guerreiros. Entretanto, Aquiles, cheio de valentia,
arrojava-se sobre os guerreiros mais bravos e ia fazendo
vitimas. Uma destas foi Polidoro, o mais moço dos filhos de
Príamo. Quase menino ainda, seu pai não queria deixá-lo entrar
na luta. Mas ele, habituado a receber louvares porque era ágil e
sempre vencia nas corridas, teimara em meter-se no campo de
batalha. Ao vê-lo passar junto de si, Aquiles enviou um dardo
que lhe atravessou as costas. A infeliz criança, soltando um
grito de dor, caiu de joelhos e ali mesmo expirou.

Quando Heitor viu o irmão morto não pode mais conter-


se. Agarrou firmemente a lança e precipitou-se sobre Aquiles.
Este saltou-lhe ao encontro e disse com insolência:

142
Ilíada – Homero

—Ah! Aí vem o homem que matou o meu amigo e a quem


eu mais desejava enfrentar nesta guerra! Vamos acabar com isto
de uma vez para sempre! Se tens pressa de morrer aproxima-te,
Heitor!

Mas este, sem se amedrontar, respondeu:

—Aquiles, não penses que sou criança para me


aterrorizares com as tuas palavras. Sei que és superior a mim,
mas os deuses podem decretar que a minha lança te arranque a
vida de um só golpe.

Assim falando, arremessou-lhe, com toda a força, a sua


lança. Mas Minerva soprou o dardo e desviou-o de Aquiles. O
herói, com grande fúria, ia já a cair sobre Heitor quando
interveio Apolo e o ocultou dentro de uma nuvem. Três vezes
ele investiu contra o nevoeiro, na tentativa de ferir seu
adversário, mas em vão!

—Miserável! — exclamou, furioso. —Não fosse a


protecção de Apolo e terias afinal perecido às minhas mãos.
Mas no próximo encontro não escaparás à minha vingança!
Enquanto isso, irei tirando a vida a muitos dos teus homens.

Assim falando, saiu Aquiles pelo campo de batalha


fazendo grande carnificina nas hostes inimigas e tirando a vida
aos mais fortes guerreiros. Devastava como voraz incêndio tudo
o que se lhe antepunha à passagem.

O exército troiano, batido por Aquiles em todas as frentes,


fugia para as margens da vertiginosa corrente do rio Xanto, o
sagrado rio que provinha do Olimpo. Refaziam agora, em
sentido contrário, o mesmo caminho por onde haviam passado,
vitoriosos, conduzidos por Heitor. Para confundi-los ainda
mais, Juno fez baixar do céu um espesso nevoeiro, que não lhes
permitia ver bem o caminho da fuga.

Acometidos de pavor, homens, cavalos e carros


despenhavam-se no turbilhão das águas do rio. Os que não
143
Ilíada – Homero

sabiam nadar logo morreram, mas os outros ainda ficaram a


debater-se na correnteza. Sobre estes, caiu Aquiles qual
demónio com a espada flamejante desembainhada. Dentro de
poucos momentos os corpos bolavam na superfície e as águas
avermelhavam-se com o sangue dos guerreiros. Eram como um
cardume de peixes miúdos perseguidos por um delfim
gigantesco. Procuravam ocultar-se nas furnas e fendas das
rochas, mas lá os ia abater Aquiles, sedento de vingança.

Quando começou a sentir-se cansado de matar, o guerreiro


arrastou para fora do rio doze dos mais jovens guerreiros
troianos, atou-lhes as mãos atrás das costas e entregou-os a
companheiros de confiança para que os levassem aos navios.
Ali deveriam pagar com as suas vidas a morte de Pátrodo. Feito
isto, voltou mais uma vez ao rio. Um dos filhos de Priamo,
Licáon, achava-se perto da margem, sem lança nem capacete,
lutando para se livrar da impetuosa torrente. Tempos atrás,
Aquiles tinha-o derrotado e feito prisioneiro. Vendera-o como
escravo, mas um amigo de Príamo resgatara-o e ele pudera
voltar a Tróia, onde se encontrava apenas há doze dias. Por isso,
ao vê-lo agora a surgir das profundezas do rio, Aquiles ficou
surpreendido pois não soubera do resgate. Dirigiu-lhe então
estas palavras irónicas:

— Oh! Grande milagre vêem os meus olhos! Um dos


troianos a quem aprisionei é-me devolvido pelas águas do
Xanto! Mas, se escapaste ao cativeiro, não te livrarás agora da
ponta da minha lança!

Ouvindo as ameaças do inflexível Aquiles, o infeliz


prostrou-se de joelhos e suplicou-lhe a tremer:

— Ó grande Aquiles! Aqui estou a teus pés como


suplicante e não como guerreiro. Poupa-me a vida e leva-me
prisioneiro como outrora fizeste Haveria de render-te bom
preço e não terias necessidade de matar-me para vingar a morte
de Pátroclo. Pensas que sou irmão de Heitor, o assassino de teu
maior amigo, mas não, não somos filhos da mesma mãe.

144
Ilíada – Homero

Assim falava Licáon, julgando comover Aquiles. Mas este


interrompeu-o com voz endurecida:

— Insensato, não me venhas com promessas de resgate


que não me interessam. Enquanto Pátroclo vivia, eu achava que
era preferível poupar os troianos e vendê-los como escravos,
como fiz contigo uma vez. Agora, porém, nenhum escapará à
morte e muito menos sendo filho de Príamo. Para que te
lamentas? Pátrodo era muito melhor do que tu, e, todavia,
morreu. Eu mesmo sou o mais forte de todos os guerreiros e
minha mãe é uma deusa. Contudo, não escaparei ao meu
destino. O meu dia chegará em breve. Porque te hei-de poupar?

Dizendo isto, enterrou a espada no peito de Licáon e


separou-lhe a cabeça dos ombros. Em seguida, levantou-o por
um pé e atirou-o ao rio com estas palavras:

— Vai-te para lá servir de alimento aos peixes! E vós


todos, troianos para lá ireis também, pois não tendes outra
saída. De nada vos servirá este rio, ao qual sacrificas muitos
rebanhos desde tempos imemoriais. Apesar da vossa devoção
ao Xanto, não escapareis da minha ira até que eu me sinta
vingado pela morte de Pátroclo.

O Xanto, a quem os troianos chamavam de Escamandro e


era de origem divina, ficou muito perturbado com as palavras
de Aquiles e começou a pensar num meio de salvar os seus
devotas e de impedir as façanhas do filho de Peleu.

Foi então que Aquiles se defrontou com Asteropeu,


descendente do rio Áxio. O Xanto, que já estava irritado com a
morte de tantos homens, resolveu dar coragem àquele
guerreiro, a fim de que ele pudesse enfrentar a fúria e Aquiles.
Este, ao vê-lo avançar, perguntou-lhe com desdém:

— Quem és tu que ousas defrontar-te comigo? Infelizes


daqueles que e atrevem a tanto! São filhos de pais fadados à
infelicidade!

145
Ilíada – Homero

Mas, sem se perturbar, o ilustre Asteropeu respondeu-lhe:

— Porque me perguntas acerca do meu nascimento? Eu


venho da fértil

Peónia e sou chefe dos guerreiros peónios que vieram em


auxílio dos troiaos. O meu pai é o formoso rio Áxio, que lança
no oceano as águas mais elas e límpidas do mundo. E agora,
que já te satisfiz a curiosidade, vamos ao combate!

Assim falou e, retesando 0 arco, disparou uma flecha


certeira que atingiu Aquiles no cotovelo. O sangue jorrou
manchando o solo. Mas, sem vacilar, Aquiles revidou o golpe.
Atirou a lança que, errando o alvo, foi penetrar no barranco da
margem. Puxou, então, da espada e correu sobre Asteropeu, que
procurava arrancar a lança da ribanceira. Três vezes o tentou e,
à quarta, quando se esforçava por quebrar a lança, foi atingido
por Aquiles, que lhe vibrou uma cutilada mortal. O herói
tombou sem vida Aquiles, triunfante, exclamou:

— Aí tens o que querias! Para que vieste lutar com um


homem mais Arte do que tu? Se eras da raça de um rio, eu me
orgulho de ser da raça de Júpiter, do mais forte, do mais
poderoso de todos os deuses. Tens ao teu lado uma grande
corrente, vê se ela pode ajudar-te agora.

Assim falando, precipitou-se Aquiles sobre os outros


peónios, que fugiam em debandada, após terem presenciado a
morte de seu chefe. Um a um, ia matando os mais valentes. E
maiores vítimas teria feito se o rio, cada vez mais irritado, não
o tivesse detido com estas palavras:

Aquiles, tu és o melhor de todos os guerreiros, mas com as


tuas insolências ofendes os próprios deuses. Se Júpiter te deu
permissão para matar s troianos, vai fazê-lo longe daqui. As
minhas águas são calmas e aprazíveis e tu encheste-as de
cadáveres. Já estou satisfeito com a tua bravura. Basta de tanta
carnificina!

146
Ilíada – Homero

Farei o que me pedes, ó Escamandro! — respondeu


Aquiles.— Mas não cessarei de matar os troianos até que os
tenha obrigado a recuar para a cidade e me haja defrontado com
Heitor. Quero ver qual de nós sai vencedor nesse combate de
vida ou morte.

Disse isso e pulou para o meio do rio, na ânsia de perseguir


os fugitivos.

Furioso, o rio começou a encapelar as suas águas, que se


erguiam a uma altura espantosa. De uma extremidade à outra,
fugiam as águas como um milhão de touros mugindo ao mesmo
tempo. Vagalhões imensos atiravam às margens os cadáveres
das vítimas de Aquiles. Depois, disposto a exercer vingança, o
rio avançou contra Aquiles, açoitando-o com as suas águas
revoltas. Os pés de Aquiles escorregavam e ele mal podia
suster-se. Por fim deslizou e tombou na ribanceira. Ao cair,
agarrou-se com ambas as mãos a uma árvore frondosa que
havia na margem mas, com a base gasta pelas águas, a árvore
desprendeu-se do barranco e atravessou-se na corrente
formando um dique. Aquiles, de um salto, galgou a margem e
correu pela planície, em fuga. Mas o Xanto ainda não estava
satisfeito e fez com que as suas águas corressem atrás do
fugitivo.

Novamente as águas do rio se levantaram em turbilhão e


atiraram-se para fora do leito, espalhando-se sobre a planície.
Num dado momento, Aquiles olhou para trás e, ao ver aquele
fantástico volume de água a correr em sua perseguição, sentiu
o ânimo a vacilar. Não seriam todos os deuses que vinham
sobre ele, despejando o vasto Olimpo?

Já sentia a terra faltar-lhe sob os pés e não conseguia


manter-se em equilíbrio. Então, dirigindo-se a Júpiter,
formulou-lhe uma prece:

— Júpiter Olímpico, não haverá um deus piedoso que me


possa salvar deste rio? Tantas promessas recebi e agora todos

147
Ilíada – Homero

me abandonam sob o peso desta calamidade! A minha mãe


tinha-me dito que eu viria a perecer, atravessado pelas flechas
de Apolo, junto às muralhas de Tróia. Antes tivesse eu morrido
às mãos de Heitor, o mais excelente dos guerreiros troianos!
Assim um bravo morria às mãos de outro bravo. Em vez disso,
o que me acontece? O destino reserva-me ignominiosa morte,
afogado nas águas deste rio, sem ao menos me ser dada a glória
do combate!

Neptuno e Minerva ouviram-lhe as queixas e vieram


prostrar-se ao seu lado. E, tomando-lhe as mãos, confortaram-
no com estas palavras:

— Não tenhas medo, Aquiles. Aqui estamos nós para te


ajudar, com permissão de Júpiter. O rio acalmar-se-á e tu não
perecerás sem antes teres rechaçado os troianos para dentro das
suas pesadas muralhas.

Reanimado pelas palavras dos deuses, Aquiles recomeçou


a marchar pelo terreno inundado. A custo conseguia
desembaraçar-se dos cadáveres e das pesadas armaduras que
juncavam o caminho.

Entretanto, o Xanto não sossegara ainda a sua fúria. Pelo


contrário, cada vez se encapelava mais para embaraçar os
passas de Aquiles. Com o intuito de impedir o avanço do herói,
resolveu convocar o Simoente, Outro rio que corria pela mesma
planície.

— Caro irmão — disse ele —, vem reunir as tuas águas às


minhas, para ver se conseguimos deter este homem. Do
contrário, antes do pôr do Sol ele terá destruído a grande cidade
de Príamo. Os troianos já não têm forças para se defenderem.
Faz um apelo às tuas fontes e vem para cá arrastando pedras,
árvores e rochedos para atirá-los contra este insolente.

" Ouviu o Simoente o chamamento do irmão e avançou


com toda a sua fúria, precipitando-se no encalço de Aquiles.

148
Ilíada – Homero

Este já se achava mergulhado ate à cintura, fazendo esforços


desesperados para se livrar das águas.

Ao ver a situação de seu protegido, Juno chamou Vulcano


e disse-lhe

— Corre, meu filho, e ateia um fogo ao turbulento Xanto.


Eu irei buscar o Zéfiro e o Noto para soprarem uma
avassaladora ventania e facilitarem o incêndio. Queima tudo:
árvores, arbustos e as próprias águas do rio. Mas não te deixes
aplacar por súplicas nem imprecações. Só te detenhas quando
eu te fizer sinal.

Não esperou Vulcano segunda ordem e, precipitando-se do


Olimpo; sobre as margens do rio, ateou-lhe um violento
incêndio. O sopro dos dois Ventos poderosos, o Zéfiro e o Noto,
fazia com que as chamas se erguessem a uma altura espantosa.
O Xanto não viu outra solução senão render-se inclinando-se
diante de Vulcano, disse-lhe:

— Nenhum dos deuses pode rivalizar contigo e muito


menos eu. Está bem. Uma vez que assim queres, deixarei de
perseguir Aquiles. Que se defendam os troianos como
puderem!

Assim falou o rio com as suas águas em ebulição. Juno,


que o escutara atentamente mandou Vulcano apagar o fogo e a
calma voltou a reinar no vale banhado pelo Xanto.

Depois de apaziguado o Xanto, a luta reacendeu-se entre


os deuses do Olimpo, cindidos em dois partidos. O plenipotente
Júpiter, nos cimos do Olimpo, observava-os empenhados
naquela contenda como se fossem míseros mortais e divertia-se
perante tal espectáculo. Primeiro foi Marte quem atacou
Minerva, dirigindo-lhe estas palavras injuriosas:

— Porque te metes a semear a discórdia entre os deuses,


mulher intrigante? Lembras-te do dia em que instigaste
Diomedes para que me ferisse? Pois agora vais-me pagar!
149
Ilíada – Homero

Dizendo isso, arremessou-lhe a lança, que bateu no escudo


mas não o perfurou. Furiosa, Minerva investiu contra ele,
atirando-lhe uma enorme pedra ao pescoço. Marte tombou e
Minerva, ridicularizando-o, disse:

— Isto é para aprenderes a não ser convencido! Quem te


mandou lutar com quem é muito superior a ti? E para que
desobedeceste a Juno, colocando-te ao lado dos troianos?

Gemendo muito, Marte amparou-se ao braço de Vénus e


encaminhou-se para o Olimpo. Mas a deusa das densas,
observando aquele par desigual, disse a Minerva:

— Olha, filha de Júpiter! Não vês como Vénus vai levando


aquele desgraçado através do campo de batalha e o põe a salvo
do combate? Vai atrás deles e ataca-os!

Minerva não queria outra coisa. Correu sobre a deusa e


deu-lhe uma violenta pancada no peito, fazendo-a tombar sem
sentidos. E ali ficaram estendidos no solo os dois deuses.
Minerva, vitoriosa, exclamou:

— Eis ai os protectores dos troianos! Não passam de uns


grandes molengões e cobardes. Fossem como eles os que
defendem a cidade e há muito tempo que poderíamos ter
terminado esta guerra, depois de arrasar as muralhas de Tróia!

Juno sorria satisfeita, enquanto o poderoso Neptuno se


dirigia assim a Apolo:

— Porque ficamos aqui nesta inércia, quando os outros já


nos deram o exemplo! Não nos fica bem regressarmos ao
Olimpo sem termos ao menos combatido. Para que procuras
ajudar os cobardes troianos em vez de fazeres como nós?

O arqueiro Apolo, porém, respondeu-lhe:

150
Ilíada – Homero

— Com razão me chamarias de insensato se eu me pusesse


a combater contigo por causa dos pobres mortais. Briguem eles
entre si. Nós, os deuses, devemos ficar acima dessa contenda.

Dito isto, Apolo afastou-se, pois tinha aversão a brigar com


o velho Neptuno, seu tio paterno. Mas a sua irmã, Diana, deusa
dos bosques e da caça, começou a censurá-lo:

— Não passas de um cobarde, Apolo. Para que vives a


gabar-te, dizendo que matas de longe e enfrentas qualquer um?
Para que levas esse arco ao ombro? Será para dele tirar música?
Quando estavas no palácio de nosso pai costumavas dizer que
poderias lutar contra Neptuno e vencê-lo num combate frente a
frente. Mas tudo não passava de mera gabarolice!

Apolo achou melhor não responder mas Juno, que ouvira


as palavras de Diana, repreendeu-a severamente:

— Como ousas rebelar-te contra mim? Quando atiras


sobre os mortais costumas esconder-te atrás das árvores. É
melhor que te metas com os bichos do mato em vez de vires
com insolências contra quem te é muito superior.

Dizendo isso, a deusa agarrou-a pelos pulsos, tirou-lhe o


arco do ombro e com ele deu-lhe vigorosas pancadas nas costas
e nas orelhas. Diana contorcia-se e as setas caíam do carcás.
Humilhada, fugiu para o Olimpo e foi queixar-se a Júpiter. Lá,
seu pai, sorrindo com ternura, perguntou-lhe:

— Quem te maltratou assim, minha filha?

Respondeu-lhe, queixosa:

— Foi Juno, tua esposa. Atirou-se contra mim como uma


fera. Ela é quem semeia todas as intrigas no Olimpo, causa de
todas as brigas e discórdias.

Júpiter ouvia e procurava consolá-la. Mas não a levava


muito a sério.
151
Ilíada – Homero

Enquanto isso, os outros deuses iam abandonando o campo


de batalha. Uns voltavam alegres, outros descontentes e
indignados. Só Apolo se deixou ficar para trás, pois andava
apreensivo com os helenos. Receava que antes do fim do dia
eles assaltassem as muralhas e penetrassem na cidade de Tróia.

Aquiles continuava a avançar, matando todos os que


estivessem ao alcance da sua espada. O velho Príamo, de pé
sobre a muralha, contemplava estarrecido aquele prodigioso
guerreiro que não encontrava obstáculos no caminho. Os
troianos fugiam sem ao menos tentar detê-lo.

Lamentando-se muito, Príamo desceu e ordenou aos


guardas que abrissem as portas para que os guerreiros vencidos
pudessem encontrar refugio atrás das muralhas. Assim fizeram
e as tropas em fuga desordenada penetraram na cidadela. Os
gregos, chefiados por Aquiles, também teriam entrado se Apolo
não tivesse instigado o valente Agenor a bater-se contra o
invencível herói.

De lança em riste, o ilustre Agenor esperou o feroz


adversário. E quando o viu bem próximo, gritou-lhe:

— Detém-te, Aquiles! Pensavas que já não havia homens


valentes em Tróia, capazes de se defrontarem contigo? Pois
aqui finda a tua glória!

E, assim falando, desferiu com mão firme um golpe de


lança. Mas Aquiles, bem protegido pela sua couraça, nada
sofreu. Puxou da espada e avançou decidido contra Agenor. Tê-
lo-ia certamente morto se Apolo não o tivesse ocultado num
espesso nevoeiro. Aproveitando a confusão do seu adversário,
Agenor afastou-se em direcção à cidade. Apolo tomou, então, a
aparência de Agenor e mostrou-se a Aquiles, que começou a
persegui-lo pela planície, sempre muito próximo dele, mas sem
nunca o alcançar. Enquanto isso puderam os troianos refugiar-
se dentro dos muros de Tróia, felizes por terem escapado à fúria
homicida do poderoso filho de Peleu.

152
Ilíada – Homero

Todos os troianos se tinham refugiado já detrás das


muralhas e procuravam saciar a sede que lhes queimava a
garganta. Todos menos um, Heitor, que se deixara ficar do lado
de fora, disposto a esperar por Aquiles e a bater-se com ele.

O velho Príamo, que presenciara o desenrolar do combate


e a fuga dos troianos diante do filho de Peleu, procurava
dissuadir Heitor daquela resolução funesta:

— Ó meu Heitor, não esperes sozinho por este homem,


assim sem auxilio de ninguém. Ele é mais forte e não te poupará
a vida! Se os deuses o odiassem tanto quanto eu, por certo já
estaria a servir de repasto aos cães e abutres. Muitos filhos meus
pereceram às suas mãos mas se ele te matasse, Heitor, não
somente eu e a tua mãe, mas também todos os homens e
mulheres de Tróia ficariam inconsoláveis! Vem para dentro da
cidade, meu querido filho! Tu és a única esperança de salvação
que nos resta. Vem, antes que sobre a minha velhice caia a
desgraça de ver todos os meus filhos trespassados pela espada
de Aquiles, minhas filhas arrastadas para o cativeiro e meus
netinhos atirados ao c hão durante a luta. A mim também não
faltará quem me tire a vida e me ultraje o cadáver, pois o
inimigo não respeita os cabelos brancos da honrada senectude.

Príamo falava e chorava, mas nada demoveu Heitor do seu


propósito. Por outro lado, Hécuba, mãe de Heitor, fazia
tentativas inúteis para convencei o filho:

— Heitor, meu querido filho, se tens algum amor a tua


mãe, volta para a cidade! Tens razão em querer repetir o
inimigo mas não te exponhas dessa
maneira. Se Aquiles te mata, nem ao menos poderemos prestar-
te as honras da fogueira, nem poderemos chorar em volta do teu
leito. Lembra-te do sofrimento da tua esposa e do teu filhinho,
que ficará órfão.

Mas foram vás todas as súplicas. Heitor estava decidido a


esperar por Aquiles e a desafiá-lo para o combate. E enquanto

153
Ilíada – Homero

aguardava a aproximação do seu inimigo, vacilava-lhe o


espírito ante estas cogitações:

«Infeliz de mim se me abrigar atrás das muralhas! Não


faltará quem me censure e me chame cobarde. O primeiro será
Polidamas, que tanto m^t aconselhou a recuar quando ainda era
tempo! Agora envergonho-me dá aparecer diante dos troianos,
tendo sido o causador da sua derrota. Receie que as nossas
mulheres venham a dizer: "Heitor, confiado na sua força deitou
Tróia a perder!" Não, o melhor é aventurar-me: ou matarei
Aquiles ou ele me matará. Antes morrer com honra, que viver
como cobarde. Não seria melhor tirar este capacete pesado,
desembaraçar-me do escudo imensa e ir ao encontro de
Aquiles, prometendo-lhe devolver Helena com sua jóias, o
tesouro que Páris trouxe de Esparta e todas as riquezas de Tróia
contento que ele prometesse deixar-nos em paz? Mas. . . que
ideia é esta Apresentar-me desarmado diante dele como
suplicante? Ele não teria a menor compaixão e matar-me-ia
como se mata um cão! Não, é preferível espera-lo aqui mesmo
e lutar com ele enquanto me restarem forças!»

Com esses pensamentos a perpassarem-lhe pela mente,


Heitor mantinha-se imóvel e expectante. Aquiles já vinha perto
e o filho de Príamo pôde divisar-lhe o aspecto feroz e as armas
cintilantes que despediam terríveis reflexos. Nem o deus da
guerra tinha semblante tão carrancudo e horrendo como o de
Aquiles naquele momento. Quando Heitor o fitou de perto, foi
tomado de tão grande pavor que desatou a correr em volta da
muralha. O rápido pálida precipitou-se sobre ele e corriam
ambos com uma espantosa agilidade. Assim, chegaram ao lugar
das fontes que alimentam o rio Escamandro. Era ali que as
lavadeiras costumavam lavar a roupa dos heróis. Má s, naquele
momento, foi pena que ninguém lá estivesse para presencia a
vertiginoso corrida. Se se tratasse de um concurso, o prémio
seria uma rãs ou a pele de um animal. Mas o que estava em
jogo, de momento, era a própria vida de Heitor, que não corria
como um homem disputando um prémio. Parecia antes um

154
Ilíada – Homero

cavalo que foge ao combate, depois da morte do guerreiro que


o conduzia.

Já tinham dado os dois três voltas à cidade quando os


deuses se debruçaram do Olimpo para os observar, fazendo
apostas sobre quem seria o vencedor. Então, Júpiter Olímpico
tomou a palavra:

— Lamento que Heitor esteja a ser perseguido por Aquiles.


É um excelente homem e sempre me honrou com sacrifícios e
preces. Vede como Aquiles corre atrás dele furioso e dizei-me:
devemos ou não salvá-lo da morte?

Foi Minerva quem assim respondeu:

— Que estás ai a dizer, meu pai? Pretendes poupar um


homem que há tanto tempo está marcado pelo destino?

Júpiter procurou tranquilizá-la:

— Acalma-te, minha filha. Deixei-me levar pela cólera.


Procede como quiseres.

Era o que Minerva queria ouvir. Rapidamente desceu do


Olimpo e foi ao encontro de Heitor. Continuavam os dois a
correr, mas já eram evidentes os sinais de cansaço de ambos.
Entretanto, nem um conseguia escapar, nem o outro podia
alcançado. Quando passava perto das portas Céias, Heitor
lançava olhares desesperados naquela direcção, mas Aquiles
logo se aproximava, repelindo-o para a planície, e fazia sinais
aos seus companheiros para que não desferissem as setas, pois
queria reservar apenas para si a glória daquele combate.

Foi quando Minerva chegou junto dele e disse:

— Descansa um pouco, Aquiles, enquanto eu vou incitar


Heitor ao combate. Ele virá com certeza e, então, alcançaremos
sobre ele brilhante vitória, mesmo que Apolo o tente auxiliar.

155
Ilíada – Homero

Ouvindo as palavras da deusa, Aquiles obedeceu


prontamente. Parou e apoiou-se à lança para descansar,
enquanto esperava o inimigo. A deusa afastou-se e, tomando a
forma de Denodo, herói troiano, aproximou-se de Heitor
disfarçando a voz:

— Caro irmão — disse ela —, já deves estar fatigado desta


corrida. Vim ajudar-te. Juntos enfrentaremos Aquiles sem
receio.

Heitor respondeu:

— Deífobo, eu já te considerava o mais querido dos meus


irmãos e agora ainda te quero mais. Só tu tiveste a coragem de
vir em meu auxilio, enquanto os outros se conservam
indiferentes e temerosos.

— Querido irmão, nosso pai e nossa mãe não queriam que


eu viesse. Abraçavam-se a mim, suplicando-me que não me
arriscasse. Mas eu não consegui ficar porque receava por ti. E,
agora, enfrentemos Aquiles. Ou o matamos ou morremos
Juntos.

Tendo falado assim, a deusa reacendeu a coragem no


espírito de Leitos Guiou-o até junto de Aquiles e desapareceu,
sem que ele o percebesse, deixando-os frente a frente.

— Filho de Peleu — disse Heitor —, não fugirei mais de


ti. Estou resolvido a terminar esta luta, quer vença, quer seja
vencido. Mas quero fazer um acordo contigo. Se eu sair
vencedor, levarei as tuas armas, mas entregarei o teu corpo aos
guerreiros gregos sem te mutilar nem ultrajar, para que eles te
prestem as devidas homenagens. Tu farás o mesmo comigo se
saíres vitorioso.

Mas Aquiles, franzindo as sobrancelhas, replicou: :

— Heitor, bem sabes que me és odioso. Portanto, nada de


propostas que não aceito. Assim como não há possibilidade de
156
Ilíada – Homero

um acordo entre homens e leões, assim também entre mim e ti


não pode haver pactos nem juramentos. Um de nós dois cairá
nesta luta e o vencedor há-de saciar a sua sede de vingança até
ao fim. Faz um apelo a todas as tuas forças porque não terei
piedade nem contemplações.

Assim falando, Aquiles arremessou a lança contra Heitor.


Mas ele baixou-se e o bronze ficou espetado no chão, a alguns
passas de distancia. Minerva correu a apanhá-lo e entregou-o a
Aquiles. .

Heitor não o percebeu e escarneceu do adversário:

— Erraste o alvo, Aquiles. Mentiste ao dizeres-te


informado do meu fim próximo. Agora, vê se eu tenho mais
sorte, pois pretendo enterrar-te a lança no corpo até ao cabo.

E dizendo isto arremessou a lança. Acertou no escudo, mas


não conseguiu atravessá-lo. Aborrecido por ter atirado sem
proveito e ter ficado, ainda por cima, sem a lança, começou a
chamar Deífobo para lhe dar outra arma. Mas Deífobo, que não
era outra senão Minerva disfarçada, tinha desaparecido! Heitor
compreendeu imediatamente que havia sido enganado e
exclamou:

— Ah! Os deuses estão contra mim e trouxeram-me aqui


para que tu me matasses. Agora compreendo que o meu fim está
próximo. Nada mais importa! Morrerei corajosamente e a
minha memória será venerada por todos os troianos.

Disse isso e atirou a espada. Aquiles desviou o corpo e


conseguiu evitar o golpe. Depois enristou a lança e avançou
numa arremetida furiosa.
Heitor estava protegido da cabeça aos pés pela resistente
armadura. Só havia um ponto vulnerável: entre o pescoço e os
ombros. E foi ali que Aquiles o feriu. O bronze furou a pele e
desceu até ao peito. Heitor caiu, ainda com vida, mas
mortalmente ferido, e Aquiles gritou-lhe:

157
Ilíada – Homero

— Tolo, pensaste que depois de matar Pátroclo estavas


livre de perigo? Não estavas à espera que eu o vingasse? Pois
agora hei-de lançar-te aos cães e aos abutres, enquanto que a
ele, Pátroclo, todos os gregos prestarão homenagem!

Heitor, quase desfalecendo, ainda teve forças para


suplicar:

— Aquiles, eu não te pedi que me poupasses a vida, mas


peço-te que não entregues o meu corpo aos cães para ser
mutilado. Meu pai e minha mãe oferecer-te-ão magníficos
presentes para que lhes restituas o cadáver do filho. Aceita-os e
permite que eles me prestem as honras da fogueira!

Mas Aquiles respondeu-lhe com dureza:

— Deixa-te de súplicas e lamúrias! Príamo não receberá o


teu corpo, nem que me pague o teu peso em ouro.

Moribundo, Heitor murmurou:

— Eu já devia conhecer-te melhor e saber que tens um


coração de pedra. Mas deverias ser um pouco mais moderado
no teu furor, para que um dia os deuses não te façam o mesmo,
quando fores derrotado por meu irmão Páris e por Apolo, diante
destas mesmas muralhas.

Dizendo isto, Heitor pendeu a cabeça e expirou. Apesar de


o ver morto, Aquiles ainda exclamou:

— Morre, miserável! Agora, o destino funesto pode vir ao


meu encontro quando o quiserem os deuses eternos.

Então, arrancou a lança do cadáver e despojou-o da


ensanguentada armadura. Acorreram logo os outros guerreiros,
a ver de perto aquele que Ihes infligira tantas derrotas. E todos
desfariam um golpe no corpo inanimado, preferindo palavras
de ódio e desprezo.

158
Ilíada – Homero

Em seguida, Aquiles amarrou os pós de Heitor ao seu carro


e, chicoteando os cavalos, começou a correr pela planície,
arrastando atrás de si o corpo do herói. A bela cabeça de Heitor,
antes tão majestosa, ia varrendo o chão com os seus cabelos
castanhos e cobrindo-se de pó. Assim permitiam os deuses que
no seu próprio torrão natal fosse ultrajado o corpo do herói.

Hécuba, a mãe de Heitor, chegava naquele momento à


muralha, a tempo de ver o corpo do filho arrastado na lama. No
primeiro instante não o reconheceu. Mas num dos solavancos
do carro a bela cabeça de Heitor virou-se, ficando com o rosto
à vista. A infeliz mãe soltou um grito de dor e caiu desmaiada.
O pai chorava e lastimava-se, não se conformando com a
desgraça que sobre eles se abatera. O clamor era geral, estavam
todos consternados com a morte do ilustre guerreiro e a custo
conseguiam reter o ancião que se arrojava em direcção as portas
Céias, louco de dor, querendo ir ao encontro do filho. E, como
tentavam impedir-lhe esse gesto tresloucado, ele dizia:

— Amigos, deixai-me ir aos navios gregos! Quero


humilhar-me diante daquele homem e suplicar-lhe que me
entregue o corpo de meu filho. Talvez ele se apiede de minha
velhice e me respeite. Também ele tem um pai idoso, Peleu, e
pode ser que compreenda a minha dor. Muitos filhos me
roubou, mas nenhum era tão querido como Heitor, o mais
excelente dos filhos e o melhor de todos os guerreiros! Se ao
menos tivesse expirado nos meus braços!

Assim falava Príamo e os anciãos que o cercavam tinham


o rosto banhado em lágrimas. As troianas acompanhavam, por
sua vez, as lamentações de Hécuba:

— Ah! Meu querido filho! Porque me poupa o destino


quando tu já não vives? Tu sempre foste o meu maior orgulho!
Por roda parte ouvia homens e mulheres elogiarem as ruas
façanhas. Consideravam-te como a um deus e em ti
depositavam as suas esperanças de salvação! Agora que a morte

159
Ilíada – Homero

velou os teus olhos para sempre, s6 nos resta a destruição e


ruína!

Enquanto isto se passava nas muralhas, a mulher de Heitor


continuava no palácio, ignorando o que acontecera ao seu
marido. Nem sequer sabia que ele tinha ficado fora das portas,
decidido a enfrentar Aquiles. Naquela ocasião achava-se em
seus aposentos, ocupada em tecer um magnífico tapete
destinado a comemorar a vitória dos troianos. Levantou-se do
tear e ordenou às criadas que pusessem o caldeirão no fogo,
para preparar um banho quente para o marido.

— Ele não tarda a chegar — dizia ela. — Quando volta do


combate, vem tão sujo de lama e de sangue e tão necessitado de
banho!

Infeliz Andrómaca! Mal sabia que Heitor não mais voltaria


ao lar e que naquele momento era arrastado no pó, atado ao
carro de Aquiles!

De repente, começou a ouvir os gritos e os gemidos que


vinham da torre. Um pressentimento funesto atravessou-lhe a
mente. Dirigindo-se às criadas, perguntou-lhes:

— Ouvistes esses gritos? Ouço lamentos da minha sogra.


Terá acontecido alguma coisa aos filhos de Príamo? Talvez a
Heitor, que está sempre a expor-se nos combates, sempre à
frente dos companheiros. Receio que se tenha adiantado demais
e Aquiles lhe tenha barrado a entrada, perseguindo-o na
planície. Tenho de saber já o que aconteceu! Venham d ú duas
de vós e acompanhem-me até à torre.

Dizendo isto, atravessou o aposento, louca de aflição, as


pernas a tremer e o coração aos saltos.

Ao chegar à torre, Andrómaca lançou um olhar angustiado


pela planície, procurando o esposo nos grupos de guerreiros.
Mas o que viu foi aquele doloroso espectáculo: o corpo de

160
Ilíada – Homero

Heitor a agitar-se como fardo inútil, amarrado ao carro do


vitorioso Aquiles.

Nada mais pôde ver. Toldaram-se-lhe os olhos, sentiu a


terra faltar-lhe por baixo dos pés e caiu para trás sem sentidos.
Em volta dela agruparam-se as irmãs de Heitor, tentando
ampará-la. Mas dentro de alguns minutos voltava a si para
sentir mais vivamente a dor:

— Heitor, Heitor! Para que me deixaste sozinha, neste


desespero horrível! Que será de mim e de nosso filhinho, tão
pequeno ainda? Sem tua protecção, só nos restam a negra
miséria e o cativeiro, porque não tardará o dia em que Tróia
será destruída. Tu, que eras a salvação da cidade, estás sem
vida, ultrajado por aquele homem cruel! E vais arrastado e nu,
quando há aqui tantos mantos finos e macios, tecidos por
cuidadosas mãos femininas... Uma vez que não os poderás usar,
farei com eles uma fogueira, que será a única homenagem que
te poderei prestar!

Assim se lastimava Andrómaca, e as troianas faziam coro à


sua dor. Todas estimavam Heitor e consideravam-no a única
pessoa capaz de salvar a cidade. A sua morte significava, pois,
a perda de todas as esperanças. Não houve um só guerreiro e
uma só das mulheres que não lhe chorassem o
desaparecimento como se se tratasse de um filho ou de um
irmão querido.

Enquanto Tróia ficava imersa em profunda tristeza pela


morte dá Heitor, os gregos dispersavam e dirigiam-se para os
seus navios, excepto os mirmidões, aos quais Aquiles dera
ordens para que se conservassem em vigília. Depois, reunindo-
os em torno do cadáver de Pátroclo, disse-lhes:

— Companheiros, antes de desatrelarmos os nossos


cavalos, vamos prestar as últimas homenagens a Pátroclo e
chorar a sua morte. Depois banquetear-nos-emos Juntos.

161
Ilíada – Homero

Assim o fizeram todos e Aquiles, aproximando-se do leito


em que jazia o morto, exclamou:

— Pátroclo, podes ficar contente comigo, lá no domínio de


Plutão onde te encontras. Estou a cumprir a promessa que te fiz:
Heitor será lançado aos caís e mandarei degolar os doze
guerreiros troianos que aprisionei diante da tua fogueira.

Dito isto, fez as tropas acamparem e mandou que lhes


servissem um banquete fúnebre em homenagem a Pátroclo.
Muitos bois, carneiros e ovelhas foram imolados para aquela
cerimónia. Quando já todos tinham comido e bebido, chegou
uma comitiva da parte de Agamémnon, convidando Aquiles a
ir à sua barraca. Embora relutante, Aquiles acedeu ao convite.
Ao chegar lá, os chefes ordenaram que preparassem água
quente para o caso de Aquiles desejar limpar-se do sangue e da
lama que lhe sujavam todo o corpo. Mas ele respondeu firme e
decidido:

— Não, não me lavarei antes que Pátroclo tenha sido


levado à fogueira. Tenho de comer porque a fome a isso me
obriga mas, quando o dia amanhecer, peço-te Agamémnon, que
mandes juntar lenha em bastante quantidade para acender a pira
funerária. Convém que se faça isso o mais breve possível, para
que as tropas não fiquem mais tempo nesta inércia.

Todos concordaram com as suas palavras e sentaram-se à


mesa com bom apetite. Depois retiraram-se para as suas tendas,
pois estavam cansados e sonolentos. E Aquiles mais que
ninguém, pois sentia-se exausto do combate com Heitor.
Procurou um lugar junto dos companheiros e deitou-se,
entregando-se logo ao sono. Mal tinha, porém, fechado os
olhos, e eis que um sonho terrível veio perturbar o seu repouso.
Viu diante de si o cadáver de Pátroclo ser arrastado no pó, tal
como havia feito com Heitor.

Depois, o morto disse-lhe estas palavras:

162
Ilíada – Homero

— Aquiles, dormes esquecido já do amigo que partiu?


Peço-te que me sepultes depressa, para que me seja permitido
atravessar o rio e ingressar na reino de Plutão. E providencia
para que, na mesma urna em que puseres as minhas Ancas,
também as ruas sejam recolhidas, pois não tardarás a seguir -
me e é bom que não nos separemos nem depois de mortos.

O decidido Aquiles, ainda em sonhos, respondeu:

— Porque me recomendas todas essas coisas? Prometo que


as cumprirei à risca mas agora, visto que não nos tornaremos a
ver, abracemo-nos pela última vez.

Dizendo isto, Aquiles estendeu os braços mas nada


conseguiu agarrar. A sombra esvaiu-se e ele despertou
sobressaltado. A aurora já havia espalhado os seus primeiros
clarões no céu e o poderoso Agamémnon mandara acordar toda
a gente.

Organizou-se, então, um imenso cortejo. À frente ia


Meríones, conduzindo as mulas. Seguiam-se os lenhadores com
os seus machados e cordas. Depois de longa caminhada,
chegaram às vertentes do Ida, onde começaram a abater as
árvores para a fogueira. Aos golpes dos machados, viam-se
tombar ao chão os pesados carvalhos. Os lenhadores iam
rachando os troncos em pedaços menores e colocando-os nas
mulas. Meríones ordenou que depusessem a lenha na praia, no
lugar indicado por Aquiles para a construção do túmulo de
Pátroclo e do seu próprio.

Feito isto, ordenou Aquiles aos mirmidões que vestissem


as suas armaduras e atrelassem os carros. Em seguida,
organizou o cortejo desta maneira: na frente os carros com os
seus combatentes, no centro o corpo de Pátroclo transportado
pelos seus companheiros e, fechando o cortejo, os milhares de
guerreiros que constituíam a infantaria. Ao lado de Pátroclo ia
Aquiles, a pé, sustentando-lhe a cabeça.

163
Ilíada – Homero

Chegando ao lugar da fogueira, depuseram o corpo no


chão e empilharam a lenha. Depois Aquiles mandou dispersar
as tropas, pois só os chefes deveriam assistir à cerimónia.

Quando os infantes se retiraram, mandou atear fogo à


lenha e lançou o corpo do amigo sobre a fogueira bem como os
doze troianos que trouxera para aquele fim.

Durante toda a noite as chamas arderam a grande altura e


ouviu-se o crepitar da madeira. Quando o fogo se extinguiu,
Aquiles chamou Agamémnon e disse-lhe:

— Átrida, agora é preciso regar com vinho esse montão de


cinzas, de maneira que não fiquem em brasa viva. Depois
recolhamos os ossos e as cinzas de Pátroclo numa urna de ouro.
Para não haver engano, lembra-te de que ele ficou no centro da
fogueira. Nessa mesma urna quero que mais tarde guardem os
meus ossos, quando o meu destino se tiver cumprido. Quanto
ao túmulo, não é necessário fazer coisa monumental. Depois de
terminada a guerra, os sobreviventes mandarão construir um
amplo e magnifico monumento em sua memória.

Imediatamente, mandou Agamémnon que os guerreiros


executassem as ordens de Aquiles. Não demorou muito para
que tudo estivesse concluído mas, quando iam retirar-se,
Aquiles fez-lhes sinal que esperassem. Mandou vir do seu
acampamento vários prémios que tinha preparado de antemão
para os heróis que mais se distinguissem nos jogos que ia
organizar: cavalos, carros, trípodes, caldeirões, ânforas e outros
objectos de utilidade. Depois, de pé no meio de todos, assim
falou:

— Agora, meus amigos, darei inicio a vários jogos em


homenagem ao meu saudoso amigo com uma corrida de carros,
cujo vencedor ganhará os cavalos e o carro de Pátroclo. Quem
tiver coragem e bons cavalos que se apresente!

164
Ilíada – Homero

O primeiro a avançar foi Diomedes. A seguir,


apresentaram-se Menelau, Eumelo, Antíloco e Meríones.
Subiram todos para os seus carros e, segurando nas rédeas,
aguardaram o sinal de partida. Aquiles indicou o caminho a
seguir e nomeou o velho Fénix como juiz.

Dado o sinal, os cavalos precipitaram-se em grande


velocidade. O mais veloz de todos era, sem dúvida, o carro de
Diomedes, o filho de Tideu.

Espalhados pela planície, os gregos faziam apostas sobre


quem seria o vencedor e com isso exaltavam-se os animas.

Na pista, os heróis esforçavam-se por tomar a dianteira uns


aos outros. Ao passar pelo trecho mais estreito do percurso,
Antíloco entalou Menelau e passou-lhe à frente. O átrida gritou-
lhe com indignação:

— Imprudente, de que te adianta vencer pela fraude? Se


queres correr, fá-lo onde houver mais espaço e os carros não
corram o perigo de chocar!

Mas Antíloco continuou a chicotear os cavalos e chegou


em segundo lugar, depois de Diomedes. A seguir a ele, e com
uma pequena diferença, chegou Menelau, seguido por
Meríones. Em último lugar surgiu Eumelo puxando, abatido, o
belo carro e os cavalos. Sofrera um acidente, o hábil filho de
Admeto.

Ao vencedor Aquiles entregou, conforme prometera, o


carro e os cavalos de Pátroclo. Depois, voltando-se para
Eumelo, disse-lhe:

— Foste o último mas nem por isso és inferior aos outros.


Não podes receber o primeiro prémio, que coube a Diomedes,
mas levas o segundo: esta bonita égua de seis meses.

Mal acabara Aquiles de falar e Antíloco reclamou.

165
Ilíada – Homero

— Aquiles, isso não é justo, pois quem chegou em segundo


lugar fui eu. Não tenho culpa dos danos que Eumelo sofreu no
seu carro. É ele um homem excelente mas, se tivesse invocado
melhor os deuses, talvez não lhe tivesse faltado o fôlego na
corrida. Tens ouro e riquezas em abundância na tua barraca: se
queres, pois, recompensá-lo, dá-lhe alguma coisa do que te
pertence e todos ficaremos satisfeitos. Mas a égua cabe-me a
mim, por direito, pois fui o segundo a chegar.

Aquiles riu-se das palavras de Antíloco, que era um dos


seus melhores amigos, e respondeu-lhe:

— Está bem, Antíloco. Darei a Eumelo esta couraça que


tirei de Asteropeu. É de bronze e estanho, muito valiosa. Creio
que ele ficará satisfeito e tu podes ficar com o teu prémio.

Menelau, que ouvia em silêncio a discussão e estava


irritadíssimo com Antíloco, interveio dizendo:

— Antíloco, perdeste o juízo? Até aqui julgava-te um


companheiro leal mas fizeste batota para me passares à frente.
Ou então, jura aqui, de pé diante do carro e dos cavalos,
segurando na mão o chicote com que ganhaste a corrida, jura
por Júpiter que não atrasaste o meu carro usando de fraude!
Caindo em si, Antíloco respondeu:

— Desculpa-me, Menelau. Sou mais moço do que tu e


sabes bem o que é o ardor da mocidade. No momento só pensei
em vencer a corrida e o que fiz não foi para te irritar, pois
estimo-te e respeito-te. E, para te provar que estou arrependido,
restituo-te a égua, que te cabe por direito, e ofereço-te ainda
qualquer jóia que escolheres de entre as que possuo. Não quero
que a nossa amizade sofra as consequências da minha
leviandade.

Disse isto e, conduzindo a égua pelas rédeas, foi entregá-


la a Menelau. Este sentiu-se comovido com as palavras do
amigo e respondeu:

166
Ilíada – Homero

— Eu também não sou duro e sempre me deixo comover


pelas boas palavras. A égua era minha porque a ganhei na
corrida, mas agora volta a ser tua, porque com ela te presenteio.

E assim terminou o incidente. Menelau devolveu a égua a


Antíloco e reservou para si o terceiro prémio, um caldeirão
novo e de belo aspecto. Meríones, que foi o quarto a chegar,
recebeu dois talentos de ouro. Sobrou o quinto prémio, uma
ancora de prata. Aquiles entregou-a a Nestor, que já era velho
demais para as corridas, mas auxiliara sempre muito os gregos
com os seus sábios e prudentes conselhos.

Ainda se organizaram vários outros certames, mas o mais


empolgante de todos foi o combate corpo a corpo, disputado
entre Ájax, filho de Télamon, e o astuto Ulisses. Durante muito
tempo os dois rolaram no chão, sem que nenhum conseguisse
dominar o adversário. Por fim, Aquiles interveio, separou-os, e,
declarando a luta empatada, deu prémios a ambos. O último dos
jogos realizado naquele dia foi o arremesso de dardos e o
vencedor foi Agamémnon.

Terminados os festejos, as tropas dispersaram-se e os


chefes recolheram às suas tendas.

No acampamento dos gregos todos dormiam a sono solto,


excepto Aquiles. O intrépido filho de Peleu revolvia-se no leito
sem conseguir conciliar o sono. Pensava em Pátroclo, no
excelente amigo que sempre fora, nas façanhas gloriosas que
tinham realizado juntos e nas dificuldades que tinham
atravessado, auxiliando-se um ao outro. E, quanto mais
recordava, mais o pungiam as mágoas. Para afugentar as
lembranças que o perseguiam, levantou-se e pôs-se a caminhar
a esmo ao longo da praia.

Mas quando o Sol começava a ralar no horizonte, atrelou


os cavalos, amarrou ao carro o cadáver de Heitor e deu três
voltas, arrastando-o, em torno do túmulo de Pátroclo. Depois,

167
Ilíada – Homero

deixou o corpo ali mesmo, com o rosto voltado para o chão. Em


seguida, recolheu-se à sua tenda.

Entretanto, Apolo apiedara-se do infeliz troiano e cobrira-


lhe o corpo com a sua égide de ouro para que, apesar da fúria
de Aquiles, ele se conservasse intacto.

Durante doze dias Aquiles repetiu a façanha mas, ao cabo


desse período, o próprio Júpiter já estava irritado com aquela
falta de respeito pelo morto. À excepção de Juno, Minerva e
Neptuno, os restantes deuses sentiam a mesma coisa. Por fim,
o deus plenipotente resolveu tomar uma iniciativa. Chamou a
mensageira Íris e mandou-a ao fundo do mar para dizer a Tétis
que viesse à sua real presença.

Estava a mãe de Aquiles numa profunda gruta, rodeada de


outras divindades marinhas, e chorava a sorte do filho que
deveria morrer breve, longe da pátria. Quando Íris lhe
transmitiu a mensagem de Júpiter ela apressou-se em correr ao
Olimpo para ouvir a palavra do deus.

Ao chegar, encontrou os deuses reunidos em torno de


Júpiter, ao lado de quem se foi sentar, no lugar que lhe cedeu
Minerva. Então o pai dos deuses, saudando-a, disse-lhe:

— Tétis, foi muita gentileza tua atender ao meu


chamamento apesar dos desgostos que te oprimem. Sei que
estás triste por causa do teu filho, cujo destino não tardará a
cumprir-se, mas vou-te dizer porque foi que te chamei. Entre
nós reina a discórdia há nove dias e o motivo não é outro senão
o desrespeito de Aquiles para com Heitor. Podíamos roubar-lhe
o cadáver, mas não o fazemos por rua causa, para não te
magoar. Mas é preciso que vás imediatamente à presença do teu
filho e procures convencê-lo de que deve entregar Heitor a
Príamo, quando este se apresentar diante dele oferecendo-lhe o
preço do resgate.

168
Ilíada – Homero

Assim falou Júpiter e Tétis aquiesceu, dirigindo-se à tenda


de Aquiles, que não cessava de chorar e lamentar-se.
Aproximando-se dele, disse-lhe com voz meiga e carinhosa:

— Meu filho, porque não cessas esses lamentos? Poucos


dias te restam de vida e, em vez de procurares aumentar a tua
glória, permites que o teu coração se endureça com essa
crueldade sempre renovada. Foi Júpiter quem me mandou
procurar-te e dizer-te que deves devolver Heitor ao velho
Príamo, quando este vier resgatá-lo.

— Está bem, minha mãe — respondeu Aquiles. — Já que


o deus o ordenou, entregá-lo-ei assim que alguém o venha
buscar.

Enquanto isso, voava Íris para a cidade de Tróia e disse ao


velho pai de Heitor, logo que chegou:

— Da parte de Júpiter venho assegurar-te que o teu filho


te será entregue por Aquiles, assim que te apresentes em sua
barraca levando o preço do resgate, acompanhado apenas de um
guia.

Príamo correu ao encontro de sua esposa e narrou-lhe o


que acabara de ouvir da mensageira divina. Disse-lhe que
estava disposto a apresentar-se sozinho no acampamento de
Aquiles, com os mais ricos e belos tesouros de Tróia. Mas
Hécuba, supondo que ele estivesse com o judo transtornado
pela desgraça, exclamou:

— Infeliz de mim! Agora sã faltava que tu perdesses o


juízo! Queres então ir à presença daquele homem feroz que
matou tantos filhos teus? Não vês que se ele te apanha não terá
piedade de ti, nem respeitará a tua velhice? Não, para nós não
resta outro consolo senão chorar o nosso querido Heitor, sem
esperanças de o reaver!

E o velho Príamo, sem vacilar, replicou:

169
Ilíada – Homero

— Foram os deuses que me mandaram, Hécuba. Portanto,


não me embaraces nem procures impedir-me. Irei até lá, mesmo
que seja meu destino morrer diante dos navios gregos. Depois
de abraçar Heitor, pouco me importa que Aquiles me mate.

Disse isto e começou a tirar das arcas os objectos mais


preciosos que ia encontrando: tapetes, tónicas, taças de ouro,
jóias e dinheiro. Ao sair, encontrou os nove filhos que ainda lhe
restavam a perambular pelas salas do palácio. Empurrando-os
com o ceptro, censurou-os amargamente:

— Sai da minha frente, cobardes que não sabeis lutar!


Antes Aquiles vos tivesse matado e me tivesse deixado Heitor.
Era ele o único de quem não me envergonhava, s6 ele era o
orgulho da minha velhice! Vós outros não passais de
mentirosos e fanfarrões e só servis para comer e beber. Ide
depressa atrelar os cavalos e levai estes objectos para o carro!

Os rapazes apressaram-se a obedecer às ordens do pai è


trouxeram para o pátio um dos melhores carros do palácio, nele
colocando os objectos preciosos que se destinavam ao resgate
de Heitor. Mas quando Príamo ia tomar assento na carruagem,
aproximou-se Hécuba trazendo na mão uma taça de ouro cheia
de vinho saboroso. Apresentando-lhe a taça, disse-lhe ela:

— Toma, meu esposo, e faz uma libação a Júpiter


Olímpico. Pede-lhe que te livre dos inimigos e te reconduza são
e salvo ao palácio. Bem sabes que eu não queria que fosses ao
encontro de Aquiles. Mas já que te obstinas, vai! Antes, porém,
implora fervorosamente a protecção do deus!

— Mulher — respondeu Príamo —, até agora foi a coisa


mais acertada que disseste. Sim, beberei em honra de Júpiter e
ele me acompanhará nesta empresa.

Dizendo isto, o velho ergueu as mãos ao céu numa prece


ardente. Em seguida, tomou a taça das mãos de Hécuba e bebeu

170
Ilíada – Homero

o vinho. Feito isto, subiu para o carro e dirigiu-se


apressadamente para os belos navios gregos.

Mas Júpiter havia escutado as suas preces e apiedou-se do


infeliz ancião. Chamou Mercúrio, seu fiel mensageiro, e
mandou-lhe que acompanhasse Príamo até ao acampamento
grego, mas de modo que ninguém o visse antes da entrevista
com Aquiles.

Enquanto isso, os filhos de Príamo acompanhavam-no


pelas ruas da cidade e todos choravam como se o ancião se
encaminhasse para a morte.
Ao chegarem, porém, à planície, despediram-se dele e
regressaram a Tróia. Foi então que Mercúrio se aproximou e,
segurando nas mãos do velho, lhe disse:

— Para onde vais, ó ancião, à noite, com estes cavalos e


mulas? Não tens receio dos gregos? Com a tua idade, como te
poderás defender se alguém te atacar para te roubar as riquezas
que levas? Mas podes ficar tranquilo, pois estou disposto a
acompanhar-te e a proteger-te. Interesso-me por ti porque és
muito parecido com o meu velho pai.

— Feliz do homem que possui tal filho! — exclamou


Príamo. — Agora vejo que os deuses estão comigo, visto que
me enviaram um companheiro tão prestável e forte como tu.

— Diz-me a verdade, ancião. Para onde levas todas essas


riquezas? Estarás a abandonar a cidade e a fugir apavorado para
outra região? Agora que Heitor, o melhor de todos os
guerreiros, está morto, já não tens esperanças de salvação?

Muito surpreendido por ouvir falar de Heitor, Príamo


interrogou-o:

— Quem és tu que falas tão bem do meu filho? Quem são


os teus pais? ?

171
Ilíada – Homero

— Faço parte do exército de Aquiles e sou seu ajudante.


Viemos no mesmo navio e combatemos juntos. Vi muitas vezes
o teu filho nas batalhas e tive oportunidade de apreciar a sua
bravura.

— Se és ajudante de Aquiles — perguntou ansioso o velho


—, poderás dizer-me se o corpo de meu filho ainda se conserva
perfeito junto aos navios ou se foi lançado aos cães?

— Tranquiliza-te, ancião. O teu filho ainda se conserva tal


como no dia de sua morte. Com certeza que os deuses o
amavam muito, pois o têm preservado da putrefacção.

— O meu filho nunca se esqueceu dos deuses que habitam


o Olimpo. Por isso, naturalmente, os deuses não o esqueceram
nem mesmo depois de morto.

Trocando estas palavras, iam-se os dois aproximando do


acampamento de Aquiles. Quis Príamo dar ao jovem um
presente em retribuição pelos serviços que lhe prestava, mas ele
recusou delicadamente:

— Não posso aceitar nada das tuas mãos, pois seria uma
infidelidade para com o meu chefe. Mas vou conduzir-te até ele
e ninguém te fará dano algum.

Dizendo isto, Mercúrio saltou do carro e, com a sua


varinha mágica, incutiu o sono nos guardas que estavam de
sentinela. Assim puderam passar livremente e chegar à tenda de
Aquiles. Não era uma tenda vulgar, mas uma verdadeira casa,
digna de um príncipe. A porta era fechada com tranca de ferro,
tão pesada que eram necessários três homens robustos para
abri-la. Mercúrio com uma só mão abriu-a e, voltando-se para
o ancião, disse-lhe:

— Grande Príamo, eu sou Mercúrio, um dos deuses


imortais, que vim por ordem de Júpiter para te ajudar. Agora
não necessitas mais de mim e não convém que Aquiles nos veja
juntos. Entra, ajoelha-te diante dele e lembra-lhe a veneração
172
Ilíada – Homero

que tem por seu pai, suplica-lhe pelo amor de sua mãe e ele
comover-se-á.

Dito isto, voltou Mercúrio para o Olimpo e Prumo


penetrou na tenda de Aquiles. Este preparava-se para fazer a
sua refeição e estava acompanhado por dois amigos. O ancião
entrou sem ser visto e, ajoelhando-se diante de Aquiles,
abraçou-se aos seus joelhos, procurando segurar a mão que
tinha morto tantos dos seus filhos. Grande foi o espanto de
Aquiles e dos seus companheiros mas, sem lhe dar tempo de
falar, Príamo disse-lhe:

— Ó poderoso Aquiles! Lembra-te de teu pai que já é tão


velho como eu e que, como eu, está sujeito a inúmeras
desgraças. Pode ser que ele seja um dia atacado por inimigos
ferozes mas, sabendo que tem um filho para o defender, o seu
coração encher-se-á de esperança. Eu também tive muitos
filhos. Mas aquele que constituía o orgulho da minha velhice, o
único que nos podia livrar do perigo, mataste-o tu, o meu
querido Heitor, quando estava a defender a sua pátria! E é por
ele que venho interceder. Trago-te imensas riquezas e peço-te
que as aceites em troca de meu filho. Compadece-te de mim,
Aquiles, porque hoje faço o que homem algum faria: beijo as
mãos do assassino de meu filho!

Ditas estas palavras, o velho desatou a chorar. Aquiles


sentiu que o ódio desaparecia do seu coração, ao ver aquele
homem indefeso prostrado pela dor e pela desgraça. Lembrava-
se de seu pai, também velho e sozinho na pátria distante, e
lágrimas abundantes corriam-lhe pelo rosto. De súbito, pôs-se
de pé e, lançando os braços em volta do ancião, fê-lo erguer-se
e disse-lhe:

— Pobre homem, como deves ter sofrido! Como tiveste


coragem de vir sozinho ao meu encontro, ao encontro de quem
te matou tantos filhos? Mas deixemos isso por ora. Vem comer
e beber connosco e esqueçamos por uns momentos as nossas
mágoas e tristezas, ainda que seja impossível não as sentir.

173
Ilíada – Homero

— Não, Aquiles, não me obrigues a comer e a beber


enquanto o meu filho jaz abandonado entre os navios. Entrega-
mo depressa e aceita os magníficos presentes que te trouxe.

Franzindo as sobrancelhas, irritado, respondeu-lhe


Aquiles:

— Não me fales mais nisso, ancião. Eu já pretendia


entregar-te o teu filho, pois assim mo pediu minha mãe, por
ordem de Júpiter. Mas não insistas, que eu seria capaz de me
enfurecer novamente, lembrando-me do amigo que ele matou.

Ouvindo essas palavras, o velho calou-se, recuando a


cólera do príncipe. Aquiles levantou-se e deu ordens para que
as escravas fossem buscar o corpo de Heitor, o lavassem e o
envolvessem numa preciosa túnica. E que, em seguida, o
depositassem no carro de Próximo. Feito isso, voltou à barraca
e, sentando-se junto do velho, disse-lhe:

— O teu filho repousa já no teu carro, para onde o fiz


conduzir. Ao amanhecer, poderás levá-lo para Tróia e prestar-
lhe as homenagens que quiseres. Mas agora tratemos da ceia.

Ditas essas palavras, Aquiles fez servir ao seu hóspede


uma lauta refeição. Quando terminaram de comer e beber,
puseram-se os dois a conversar e Príamo não se fartava de
contemplar Aquiles, pois nunca imaginara que ele fosse assim
tão belo e tão forte. Por sua vez, Aquiles admirava o velho
Príamo pelo seu ar majestoso e distinto e escutava com atenção
as suas palavras. Já era tarde quando o ancião lhe pediu:

— Agora, Aquiles, dá-me uma cama para dormir. Desde


que o meu filho morreu, não mais os meus olhos se fecharam e
sinto-me imensamente fatigado. Só hoje, sabendo que o meu
filho me seria restituído, consegui comer e beber. Creio que esta
noite poderei também dormir um pouco.

Aquiles mandou prontamente que as escravas preparassem


um leito confortável para o ancião e, depois, disse-lhe:
174
Ilíada – Homero

— Convém que durmas lá fora, porque receio que algum


guerreiro venha à minha tenda para deliberar sobre a guerra,
como é de costume. Se eles te vissem por aqui seriam capazes
de avisar Agamémnon que procuraria, então, impedir o resgate
do cadáver. Mas diz-me com franqueza: quantos dias queres
para realizar os funerais de Heitor? Quero sabê-lo para impedir
que se reiniciem os combates durante esse período.

E Príamo, comovido, respondeu:

— Se tu consentes que todas as cerimónias se realizem


conforme o cultato, fico-te muito agradecido. Precisaremos de
doze dias, pois não temos mais lenha na cidade e é necessário
ir buscá-la às montanhas. No duodécimo dia estaremos livres e
prontos para combater.

Aquiles concordou:

— Está bem, farei como desejas. Podes ficar descansado


que, durante esse período, os gregos não atacarão Tróia.

Depois disso cada um recolheu ao respectivo leito. Dormia


o velho Príamo quando foi acordado por estas palavras de
Mercúrio, o mensageiro dos deuses:

— Levanta-te, Príamo, e partamos quanto antes. Aquiles


aceitou o resgate de Heitor mas, se os outros guerreiros te vêem
aqui, será difícil que os teus filhos consigam o teu próprio
resgate.

O velho estremeceu e levantou-se. Em silêncio,


encaminharam-se os dois para a carruagem, onde se encontrava
o corpo de Heitor.

Conforme o fizera antes, Mercúrio adormeceu a guarda e


assim puderam passar sem serem incomodados pelas sentinelas
gregas. Chegados às margens do Xanto, o deus despediu-se e
voltou ao Olimpo. Príamo continuou sozinho a viagem e
chegou em breve às portas da cidade. Cassandra, a mais bela
175
Ilíada – Homero

das suas filhas, foi a primeira a reconhecer o velho pai. Ao ver


estendido sobre o carro o corpo do irmão, pôs-se a gritar:

— Troianos e troianas, correi a ver Heitor! Correi, se vós


ainda sois os mesmos que o aclamavam quando voltava dos
combates coberto de glórias!

Não ficou ninguém dentro das muralhas da cidade. A


população inteira acorreu às portas Céias, por onde Príamo
entrava naquele instante. As primeiras a chegar foram Hécuba
e Andrómaca. A esposa de Heitor, inclinando-se sobre o corpo
inanimado do marido, chorava e clamava:

— Ó meu querido Heitor! Porque nos abandonaste a mim


e ao teu filhinho, tão pequeno ainda! Ele, que era a tua alegria,
não chegará à mocidade porque sem ti a cidade será destruída
pelos poderosos gregos e morreremos todos!

Acompanhava Hécuba as lamentações da esposa de Heitor


e todos tinham uma palavra de carinho à memória do mais
ilustre guerreiro de Tróia. Por fim, apareceu também Helena, a
causadora de tantas desgraças, clamando:

—Heitor! Foste tu o único que nunca me desprezaste nesta


cidade. Nunca ouvi da tua boca uma palavra de censura e
sempre me defendias quando alguém me lançava no rosto a
minha culpa. Agora todos me detestam pois, sem o querer, fui
eu a causa da tua morte!

Finalmente, Prumo levantou as mãos, impondo silêncio:

— Troianos e troianas, cessei por enquanto os vossos


lamentos. Vamos preparar a fogueira e as cerimónias fúnebres.
Aquiles concede-nos doze dias de tréguas para homenagearmos
o nosso querido Heitor.

Falou e todos entraram em actividade. Dirigiram-se uns


para as florestas a fim de apanhar lenha, enquanto outros
preparavam o banquete fúnebre. E, quando tudo estava
176
Ilíada – Homero

preparado, celebraram-se em Tróia, com toda a pompa, os


funerais do seu mais ilustre guerreiro.

Epílogo

Depois da morte de Heitor, a guerra de Tróia continuou e


a situação tornou-se difícil para os troianos que tinham perdido
o seu melhor guerreiro. Os gregos conseguiram levar, por mais
de uma vez, a batalha até às muralhas de Tróia.

E foi num desses dias que se concretizou o destino de


Aquiles. Chefiando os gregos contra os troianos, estava ele a
lutar junto às portas Céias onde Páris, evitando sempre os
perigos da batalha, estava escondido. Quando viu Aquiles ao
alcance do seu arco, atirou-lhe uma flecha. Nunca antes tivera
um alvo tão perfeito e Aquiles, que Páris nunca ousaria
enfrentar, caiu morto. E, assim, o maior guerreiro de todos foi
abatido por um homem de pouca coragem e nenhum valor.

Ájax e Ulisses salvaram o corpo de Aquiles dos troianos e


levaram-no de regresso aos navios, colocando-o num ataúde na
praia. Nela, todos os reis e príncipes gregos se uniram aos
mirmidões para o velar. Do mar profundo veio sua mãe Tétis,
com as quarenta e nove filhas de Nereu, para chorarem a morte
de Aquiles. Um grande medo apoderou-se dos gregos que
queriam fugir, mas o velho Nestor chamou-os, dizendo:

— Não há nada que recear. É a imortal Tétis e as suas irmãs


que vieram chorar pelo filho morto.

Os gregos choraram junto das densas e assim Aquiles foi


velado por homens mortais e deusas imortais, durante dezassete
longos dias. E no décimo oitavo dia os gregos queimaram o
corpo de Aquiles em alta pira com jarras de óleo e mel. No dia
seguinte, tiraram os seus ossos das cinzas e colocaram-nos
numa urna, oferecida a Tétis por Vulcano. E nessa urna
puseram também os ossos de Pátroclo e nela erigiram, como
Aquiles lhes pedira, uma imponente sepultura.

177
Ilíada – Homero

Nos jogos em homenagem a Aquiles, Tétis prometeu que


daria as belas armas de seu filho ao mais valente grego. Tanto
Ulisses como Ájax, filho de Télamon, julgavam-se
merecedores, mas Agamémnon, que desejava agradar a Ulisses,
deu-lhe as armas e Ájax, desapontado e zangado, enlouqueceu
e matou-se.

Páris não viveu muito tempo para se vangloriar do seu


triunfo. Ferido por um arqueiro grego morreu, mais tarde, em
virtude dos ferimentos. E Helena, solitária e sem amigos em
Tróia, amargamente arrependida de ter deixado Menelau, ficou
agradecida pela protecção que Neófobo, irmão de Páris, lhe
ofereceu.

Sem Aquiles e Pátroclo, os mirmidões ficaram sem chefe.


Então, Agamémnon mandou buscar Neptólemo, o jovem filho
de Aquiles, a Ciro, sem o qual, como disse Calcas, o profeta,
Tróia nunca seria tomada. Embora ainda menino, Neptólemo
herdara a coragem e a habilidade do pai. Veio voluntariamente
para a guerra e foi voluntariamente que os gregos o seguiram
como seu novo chefe e Ulisses deu-lhe as armas de Aquiles.

Entretanto, a guerra de Tróia arrastava-se e os gregos,


vendo que não poderiam tomar a cidade pela forçar decidiram
tomá-la através de um estratagema. Há muito quem diga que
foi Ulisses quem urdiu toda a artimanha e, pelo que se conta
dele, é bem provável que seja verdade.

Os gregos construíram um enorme cavalo de pau, oco, em


cujo bojo se esconderam cinquenta dos mais ousados
guerreiros, entre eles Menelau, Diomedes, Estenelo, Ulisses e
o jovem Neptólemo.

Os gregos, chefiados por Agamémnon, puxaram os navios


para a água, queimaram as barracas e zarparam fingindo que
iam para a Grécia, deixando para trás apenas o cavalo de pau.
Mas só navegaram até a ilha de Tenedos, um pouco adiante da
costa, e lá ficaram à espera.

178
Ilíada – Homero

Espantados e contentes por verem terminado o longo cerco


e a sua cidade novamente livre, os troianos saíram pelas portas
Céias, atravessaram a planície e foram até à praia. Lá, entre as
cinzas do acampamento, estava o cavalo.

— É oferta dos deuses — disseram alguns.

— É armadilha — ponderaram outros.

— Vamos destruí-lo — gritaram.

Mas o rei Príamo falou:

— É um presente sagrado. Não deve ser destruído. Vamos


levá-lo par a cidade.

E recusou-se a ouvir os protestos dos que pretendiam


adverti-lo.

Então, o cavalo foi arrastado para dentro da cidade e


homenageado como se fosse oferta dos deuses. E lá ficou,
enfeitado com flores, com pétalas e guirlandas nas paras. E
durante todo o dia os troianos alegraram-se por a guerra ter
terminado e a cidade estar salva.

Quando veio a noite, os gregos abriram a porta secreta do


cavalo ao mesmo tempo que Agamémnon regressava e voltava
a desembarcar na praia troiana. As portas Céias foram abertas
para ele e para todos os outros gregos, por aqueles que já
estavam na cidade.

Os troianos que, pela primeira vez em dez anos, dormiam


tranquilamente sem vigias para guardar as muralhas, foram
surpreendidos pelos gregos que invadiram a cidade matando,
saqueando e incendiando.

O rei Príamo foi morto nos degraus do seu próprio palácio.


Ulisses e Menelau mataram Deífobo. Astianax, o filho de
Heitor, foi arrancado dos braços da mãe e atirado de cima das

179
Ilíada – Homero

muralhas, para que não vivesse para vingar o pai. Pela manhã,
restavam apenas alguns guerreiros troianos. Eneias tinha
escapado e fugido da cidade.

Agora, que não sobrara ninguém para defender Tróia, os


gregos derrubaram os muros e dividiram os saques entre eles:
toda a grande riqueza da câmara de tesouros de Príamo e as
mulheres.

A rainha Hécuba coube ao lote de Ulisses, mas não


sobreviveu muito tempo. A infeliz Andrómaca coube a
Nept61emo e tornou-se escrava do filho daquele que matara o
seu amado esposo.

Helena foi arrancada da casa de Deífobo por Menelau, seu


marido. Mas este fora sempre generoso e de bom coração e ela
ainda era a mais bela mulher do mundo. Por isso, perdoou-lhe
e regressaram juntos para Esparta, onde viveram felizes por
muitos anos.

Terminada a guerra, os gregos foram-se embora, mas a ira


de Vénus ainda acompanhava muitos deles. Ájax, de Lócrida,
afogou-se na viagem e Diomedes, quando chegou à Grécia, viu
que tinha perdido o seu antigo reino, mas ganhou outro e viveu
muitos anos.
Quando Tencro chegou a Salamina, seu pai, o rei Télamon,
expulsou-o por ter regressado sozinho, sem seu irmão Ájax.

Agamémnon voltou para Micenas, levando Cassandra,


filha de Príamo. E lá, no seu esplêndido palácio, foi assassinado
pela sua esposa Clitemnestra e por Egisto, seu primo.

Idomeneu teve um acidente no seu navio, a caminho de


Creta, e, quando finalmente chegou a casa, encontrou o seu
reino usurpado por outro.

Ulisses regressou ao seu pequeno reino na ilha de fraca,


mas somente depois de terem decorrido dez longos anos de
estranhas aventuras.
180
Ilíada – Homero

Só Nestor, que era muito amado pelos deuses, conseguiu


chegar a Pilo, depois de uma curta e boa viagem, e viveu
respeitado por todos, por muitos anos ainda, rodeado de muitos
filhos. Mas mesmo ele teve a sua quota de sofrimento, pois
deixou o filho Antíloco morto nas terras de Tróia.

E assim terminou a longa guerra entre gregos e troianos,


guerra que nada trouxe de bom nem para vencedores, nem para
vencidos.

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