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Two Kingdoms

Dois Reinos
Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi

Para nossas esposas — Bonnidell, Charlene e Kimie

Sobre os autores
Robert G. Clouse (Bacharel em Teologia — Grace Theological Seminary;
Mestre e Ph.D. — University of Iowa) é professor de História na Indiana State
University. Foi presidente da Conferência Central da Renascença e diretor da
Conferência de Fé e História. Seus numerosos artigos foram publicados em The
Bulletin of the Evangelical Theological Society, Harvard Theological Review,
Grace Journal, Fides et Historia e outros. É co-editor de Protest and Politics:
Christianity & Contemporary Affairs e The Cross and the Flag. Contribuiu para
The New International Dictionary of the Christian Church, Evangelical
Dictionary of Theology, Great Leaders of the Christian Church e Dictionary of
Christianity in America. Também trabalhou como editor de The Meaning of the
Millennium; War: Four Christian Views; e Wealth & Poverty: Four Christian
Views.

Richard V. Pierard (Bacharel e Mestre — California State University;


Ph.D. — University of Iowa) é professor de História na Indiana State
University. É autor (ou co-autor) de Twilight of the Saints, Streams of
Civilization II, Bibliography on the Religious Right e Civil Religion and the
Presidency. Contribuiu para The New International Dictionary of the Christian
Church, Lion Handbook of the History of Christianity, Evangelical Dictionary
of Theology, Great Leaders of the Christian Church e Dictionary of Christianity
in America. Foi secretário-tesoureiro da Conferência de Fé e História e
presidente da Sociedade Evangélica Teológica.

Edwin M. Yamauchi (Mestre e Ph.D. — Brandeis University) é professor


de História na Miami University (Ohio) e editor sênior de Christianity Today.
Foi presidente da Conferência de Fé e História de 1974 a 1976. Além de
inúmeros artigos e críticas em vários periódicos, escreveu mais de uma dúzia de
textos de estudo durante um período de vinte e cinco anos, incluindo The Stones
and the Scriptures. Pre-Christian Gnosticism, The Scriptures and Archeology,
Harper’s World of the New Testament, Foes from the Northern Frontier e
Persia and the Bible. Também contribui para mais de trinta e cinco livros e
obras de referência, incluindo The New Dictionary of Christian Theology, The
Illustrated Bible Dictionary e Great Leaders of the Christian Church.

Conteúdo
Lista de ilustrações
Créditos
Prefácio

Parte 1: A Igreja primitiva e medieval (1-1450 d.C.)


1. A fundação da Igreja
2. A Igreja no Estado romano
3. Desenvolvimento doutrinário da Igreja
4. A Igreja depois de Constantino
5. Expansão européia da Igreja
6. A Igreja sob a monarquia papal
7. A Igreja medieval no Ocidente
8. A Igreja medieval no Oriente

Parte 2: A Igreja reformada e reavivada (1300-1789)


9. O declínio da Igreja medieval
10. Os impactos da reforma sobre a Igreja
11. Conflitos religiosos assolam a Europa
12. A Igreja se expande para além da Europa
13. Ortodoxia e absolutismo moldam a Igreja
14. Puritanismo e Pietismo despertam a Igreja
15. Ciência e Iluminismo desafiam a Igreja
16. A Igreja mostra vigor renovado

Parte 3: A Igreja global e em progresso (1789 - presente)


17. A Igreja numa era revolucionária
18. A Igreja numa era de ideologia
19. A Igreja numa era industrial
20. A expansão mundial da Igreja
21. A Igreja no crepúsculo do Ocidente
22. A Igreja no mundo dividido pelas guerras
23. A Igreja como instituição global

Epílogo: Desafios contínuos ao avanço da Igreja


Notas
Bibliografia
Índice de pessoas

Lista de ilustrações

Capítulo 1
Cronologia
Territórios romanos (50 a.C. — 100 d.C.)
Igrejas primitivas
As viagens missionárias de Paulo

Capítulo 2
Cronologia
O Coliseu em Roma
Expansão da Igreja primitiva
O Mithraeum de Carrawburgh no Muro de Adriano

Capítulo 3
Cronologia
Orígenes de Alexandria
Lugares dos Patriarcas da Igreja
Agostinho de Hipona

Capítulo 4
Cronologia
Igreja de Santa Sofia em Constantinopla
A expansão do monasticismo
Imperatriz Teodora, esposa de Justiniano

Capítulo 5
Cronologia
Cruz celta em frente a uma torre redonda irlandesa
Bonifácio, “apóstolo dos germânicos”
Missões para a Escandinávia e Europa ocidental

Capítulo 6
Cronologia
A dinastia carolíngea
A Europa no século 9º
A dinastia Hohenstaufen

Capítulo 7
Cronologia
As Cruzadas
Tomás de Aquino
Catedral de Rheims, na França

Capítulo 8
Cronologia
Impérios bizantino e carolíngeo
A expansão do Cristianismo no Oriente
Igreja de São Basílio em Moscou
Capítulo 9
Cronologia
Final do papado medieval
Moisés de Miquelângelo
Basílica de São Pedro em Roma

Capítulo 10
Cronologia
Quatro reformadores: Farel, Calvino, Beza e Knox
A Reforma
Catedral de Mainz na Alemanha

Capítulo 11
Cronologia
Soluções para as questões religiosas
As guerras religiosas
Oliver Cromwell

Capítulo 12
Cronologia
Impérios comerciantes dos séculos 16 e 17
Igreja russa ortodoxa de São Miguel em Sitka, Alasca.

Capítulo 13
Cronologia
Pedro o Grande
Estados absolutistas na Europa
George Frederic Handel

Capítulo 14
Cronologia
Francke em Halle, Alemanha
O crescimento da Áustria e Prússia-Brandenburg
Oposição dos ideais puritanos

Capítulo 15
Cronologia
A teoria geocêntrica
A Europa em 1715
Adam Smith

Capítulo 16
Cronologia
Exemplo da escrita de John Wesley
George Whitefield
Conde Nikolaus Ludwig Zinzerdorf

Capítulo 17
Cronologia
Denominações proeminentes nas treze colônias
Hannah More
A seita Clapham

Capítulo 18
Cronologia
Timothy Dwight
John Nelson Darby
Friedrich August Tholuck

Capítulo 19
Cronologia
Anthony Ashley Cooper, Sétimo Conde de Shaftesbury
Os males da Revolução Industrial
William Booth, fundador do Exército da Salvação

Capítulo 20
Cronologia
Samuel Crowther
Importantes sociedades protestantes missionárias estrangeiras
Mary Slessor

Capítulo 21
Cronologia
Nicholas I, Czar da Rússia
Dwight L. Moody
William Jennings Bryan
Capítulo 22
Cronologia
Presidente Woodrow Wilson
Judeus num gueto em Varsóvia
As desonras da guerra

Capítulo 23
Cronologia
O Cristianismo como fé global
Harold J. Ockenga
Desmond Tutu

Créditos
Fotos:
Divisão de Turismo do Alasca
Museu do Centro Billy Graham
Revista Christian History
Robert G. Clouse
Irmãos Loizeaux
Edwin Yamauchi

Outros:
Figuras - Ron Mazellan
Linhas do tempo, quadros e mapas - Mary Ragont

Prefácio
A história da Igreja é empolgante e nunca deixa de encorajar e inspirar os
cristãos onde quer que estejam. Isso porque as boas novas do Salvador
crucificado e ressurreto não se restringem a uma certa nação ou período. Quando
Jesus estava prestes a deixar Seu pequeno grupo de seguidores e voltar para o
Seu Pai no céu, disse-lhes que deveriam ir e fazer discípulos de todas as nações.
Eles receberiam poder do Espírito Santo para proclamar a mensagem do
evangelho, não apenas para pessoas ao seu redor mas também para os confins da
terra (Mt 28.19; At 1.8). Isso significou que desde o princípio o Cristianismo
teria dimensões globais. Nas páginas seguintes veremos como um movimento de
fé que se originou numa parte obscura do poderoso Império Romano cresceu e
se espalhou até que seu poder espiritual fosse sentido por todo o mundo.
Certamente a história do Cristianismo é marcada por fracassos bem como
sucessos. Isso não deve causar surpresa tendo em vista que a Igreja, apesar de
instituída por Deus (Mt 16.18), ainda era uma instituição humana e seus líderes
e membros viviam em um mundo onde o poder do pecado ainda exercia
domínio. A narrativa não irá esquivar-se das falhas e erros dos cristãos,
particularmente quando eles tornaram-se prisioneiros da cultura em que viviam,
pois isso faz parte da História como um todo. Quando as testemunhas de Deus
falharam e tudo parecia estar perdido, outros foram levantados e deram
continuidade à obra. Consequentemente, ao encerrar-se o século 20, há mais
seguidores de Cristo no mundo do que em qualquer outra época da História. O
fato é que, nas áreas em que a fé não havia tido grande impacto sobre a cultura,
a Igreja parece estar crescendo mais rapidamente.
Falar de dois milênios de história do Cristianismo é uma tarefa
intimidante mas cremos que uma nova narrativa dessa história será de grande
valor para a geração de crentes que estão entrando no terceiro milênio. Cada um
de nós passou três décadas lecionando História de um ponto de vista global e
estamos convencidos de que a Igreja deve ser compreendida desse modo.
Também encaramos o conteúdo com nossos próprios compromissos como
cristãos e lutamos com as questões da fé e com nossos estudos através do
envolvimento com a Conferência sobre Fé e História.
Tendo em vista que, em termos práticos, é impossível mencionar em um
único volume cada pessoa, idéia e movimento importante na epopéia da Igreja, a
necessidade fez com que fôssemos seletivos. Procuramos ser equilibrados na
forma como tratamos as várias manifestações de Cristianismo, mas optamos por
enfocar alguns de seus aspectos negligenciados. Assim, dedicamos mais espaço
à era moderna do que é costume em livros deste tipo enfatizando o
envolvimento dos protestantes evangélicos. Demos menos atenção às
controvérsias doutrinárias e eclesiásticas e ao desenvolvimento institucional de
denominações específicas e, no período moderno, nos concentramos
consideravelmente na Igreja fora das regiões anglo-americanas.
Fica a cargo do leitor decidir se fomos justos em nossa abordagem.
Contudo, quer este concorde ou não com nossas escolhas e ênfases, certamente
reconhecerá que a sobrevivência e crescimento da Igreja são um tributo
admirável ao poder de Deus no mundo. Afinal, essa é a mensagem implícita do
livro.
Desejamos mencionar com gratidão a ajuda recebida de Charlene Pierard
na preparação dos manuscritos, o constante apoio de nossos editores da Moody
Press — Gary Knussman, Joseph O‟Day, Robert Ramey — e nosso editor Gary
Thornton. Sem o seu encorajamento e paciência este livro nunca teria se tornado
realidade.
Parte 1
A Igreja primitiva e medieval (1 — 1450 d.C.)

Capítulo 1
A fundação da Igreja
O mundo nunca viu um regime político tão dinâmico e abrangente quanto
o império cujo centro era Roma. Os romanos usavam um sistema de datas
baseado no começo de sua comunidade, A.U.C. (ab urbe condita - “da fundação
da cidade [de Roma]”). Porém, um monge quase desconhecido, Dionísio
Exíguo, substituiu o cálculo romano por um novo método baseado no papel
central de Jesus Cristo como aquele que mudou o curso da História. Dali em
diante, os cristãos passaram a datar os acontecimento usando os termos a.C.
(antes de Cristo) e d.C. (depois de Cristo, ou anno Domini — “no ano de nosso
Senhor”). Assim, considera-se que o nascimento de Jesus foi no início do ano 1
e a fundação de Roma no ano 753 a.C. Esse sistema de datas introduzido em 525
d.C. tornou-se aceito no Ocidente e, mais tarde no mundo todo, mesmo que por
respeito aos membros de outras religiões, hoje em dia algumas pessoas
substituam a.C. por A.E.C. (“antes da era comum”) e d.C. por E.C. (“era
comum”).
A nosso ver, mais de dezenove séculos mais tarde, é absolutamente
notável que um judeu que viveu num canto quase desconhecido do Império
Romano e sofreu uma morte vergonhosa numa cruz, tenha inspirado um
movimento que espalhou-se por todo o mundo e transformou inúmeras vidas.
Até hoje, os cristãos crêem que Jesus de Nazaré não apenas era o Messias
prometido no Antigo Testamento (o “Cristo” ou “Ungido” que traria salvação e
livramento para o seu povo) mas também o Filho ressurreto de Deus.

O contexto político (Roma)


A fé cristã nasceu num período de transição política. Uma pequena
cidade-Estado na Itália que, alguns séculos antes havia se transformado numa
república, foi aos poucos espalhando seu poder por todo o mundo mediterrâneo
ao massacrar sua rival no norte da África (Cartago) e vencer os estados
helênicos sucessores do império de Alexandre o Grande no Oriente. No 1º
século a.C. Júlio César surgiu como um político ambicioso e um líder militar
implacável. No ano 60 a.C. formou uma aliança secreta (triunvirato) com
Crasso, o homem mais rico de Roma e Pompeu, um general jovem porém
brilhante. Juntos, Crasso e Pompeu haviam acabado com a revolta de escravos
de Espártaco em 71 a.C. e Pompeu havia sido designado para enfrentar
Mitrídates, a grande rival de Roma na região oriental do Mediterrâneo.
Enquanto estava no Oriente, Pompeu interveio numa disputa entre dois irmãos
pelo cargo de sumo sacerdote, entrou em Jerusalém (63 a.C.) e estabeleceu o
governo romano sobre a Palestina. A Judéia transformou-se num reino
subordinado e foi colocada sob supervisão romana. A fim de obter glória militar,
Crasso lançou-se a uma campanha imprudente contra os partianos que resultou
em sua morte na batalha de Carrae (Arã) no norte da Mesopotâmia em 53 a.C.
Numa brilhante série de campanhas como procônsul da Gália (50-51
a.C.), César ganhou a aclamação pública assustando Pompeu e a maioria do
Senado romano com seu poder cada vez maior. Desafiando a ordem do Senado
de deixar as armas, ele cruzou o rio Rubicão na região norte da Itália e marchou
para o sul em 49 a.C. fazendo explodir uma guerra civil que terminou com sua
vitória em Farsalo, Grécia, no ano seguinte. César perseguiu Pompeu até o Egito
onde este último foi morto por ordem do rei Ptolomeu XII. Enquanto estava no
Egito, César enamorou-se da lendária rainha Cleópatra, irmã e esposa de
Ptolomeu. Grato pela ajuda que havia recebido dos judeus quando estava sitiado
em Alexandria (Egito), César concedeu aos judeus privilégios especiais,
incluindo a permissão de observar o Sábado, isenção do serviço militar e o
direito de enviar ofertas ao Templo em Jerusalém.
Quando estava prestes a alcançar a posição de ditador absoluto, César foi
assassinado (44 a.C.) e o mundo romano mais uma vez caiu em guerra civil.
Dentro de um ano, um segundo triunvirato havia se formado e incluía o herdeiro
de César, Otaviano; seu braço direito, Marco Antônio e Lépido, governador da
região norte da Itália. Eles derrotaram as forças dos assassinos de César e
dividiram entre si o controle do mundo romano. Antônio, que era casado com a
irmã de Otaviano e havia recebido a região leste, ficou desesperadamente
apaixonado pela beleza de Cleópatra. Divorciou-se de sua esposa, casou-se com
a rainha egípcia e declarou o filho dela — ao invés de Otaviano — herdeiro de
César. Na guerra que se seguiu, Otaviano derrotou Antônio na famosa batalha
naval de Actium em 31 a.C. Antônio e Cléopatra cometeram suicídio no ano
seguinte.
Com isso, Otaviano viu-se sem opositores e, quando estabeleceu o regime
imperial em 27 a.C., o Senado o aclamou como Augusto (“honrado”). Ele
tornou-se o primeiro e, não sem controvérsia, o melhor dos imperadores
romanos. Com sagacidade, consolidou todos os principais poderes do Estado em
suas mãos e, ao contrário do arrogante César, não deixou de fora os senadores.
Foi responsável por muitas medidas de governo sábias e visionárias em relação
a Roma e às províncias. Em sua autobiografia gabou-se de ter transformado
Roma de uma cidade de tijolos em uma cidade de mármore.
A devoção de Augusto, retratada no Altar da Paz que ainda existe nos dias
de hoje, resultou na restauração de oitenta templos. Ele também procurou
regulamentar padrões morais e encorajar os casamentos e nascimentos e, de
acordo com o seu censo, a população da Itália cresceu quinze por cento num
período de vinte e dois anos. Foi nessa época que Jesus nasceu em Belém, na
Judéia, para onde seus pais tinham viajado por causa de um censo. Mesmo que
continuasse a haver guerras esporádicas nas fronteiras, Augusto havia iniciado a
era de “paz romana” (Pax Romana).
Apesar dos vários ofícios e poderes que havia acumulado tecnicamente
não terem como ser passados para um herdeiro, Augusto conseguiu contornar as
diversas restrições legais e nomeou seu enteado Tibério como sucessor. Isso
marcou a fundação da linhagem Júlio-Claudiana de imperadores. Um soldado
competente, que havia defendido a fronteira no meio do Danúbio, Tibério (14-
37 d.C.) tentou governar o império com cautela e dar continuidade às políticas
de Augusto. Seu reino, porém, foi arruinado por uma proliferação de
julgamentos de traição. Ao envelhecer, o imperador foi influenciado por seu
sinistro chefe da guarda pretoriana — Sejano — que no ano de 26 o persuadiu a
aposentar-se em sua luxuosa villa na ilha de Capri. Enquanto isso, Sejano
conspirou contra vários membros da família de Tibério, mas foi desmascarado e
sumariamente executado em 31.
Seu protegido, Pôncio Pilatos, serviu como procurador (governador) da
Judéia (26-36 d.C.). Inseguro com a perda de seu patrono e temendo que as
críticas à sua administração resultassem em sua demissão ou coisa pior da parte
de Tibério, ele mandou que Jesus de Nazaré fosse crucificado, mais
provavelmente em 33.
O imperador seguinte, Gaius Calígula (37-41 d.C.) era mentalmente
desequilibrado e conhecido por sua extrema crueldade e excessos sexuais. Ele
afirmava ser divino e exigia que o adorassem, mas sua tentativa de erigir uma
estátua de si mesmo no Templo judeu em Jerusalém não teve sucesso.
Assassinado depois de quatro anos de mau governo, Calígula foi sucedido
por seu tio Cláudio (41-54 d.C.). Vítima de poliomielite, Cláudio não era levado
a sério em Roma, porém mostrou-se um imperador cônscio que expandiu as
fronteiras do império e desenvolveu uma burocracia eficiente. Ele indicou
homens libertos (ex-escravos) para diversos cargos administrativos, incluindo
Palas como secretário do tesouro. Paulo realizou a maior parte de suas
atividades missionárias durante o reinado de Cláudio. O apóstolo ficou preso em
Cesaréia sob Félix, irmão de Palas e governador da Judéia. Infeliz na sua
escolha de esposas, a última mulher de Cláudio, a ambiciosa Agripina, chegou a
dar-lhe cogumelos venenosos para que Nero — o filho de um casamento
anterior — pudesse sucedê-lo no trono.
Nero (54-68 d.C.) começou bem o seu governo sob a orientação do
filósofo Sêneca e de Burro, chefe da guarda pretoriana e logo eliminou sua mãe
dominadora. Em 64 a capital foi devastada por um incêndio. Mesmo que
provavelmente não tenha sido responsável pelo fogo, apesar de acusações de
fontes antigas, evitou que a culpa fosse colocada sobre ele. Para isso fez da seita
que crescia rapidamente e que era conhecida como “os cristãos” os bodes
expiatórios, executando-os em seus jardins. Na perseguição que se seguiu, Paulo
e Pedro tornaram-se mártires em Roma.
Um megalomaníaco que construiu a grandiosa Casa Dourada para mostrar
as coroas que havia recebido nos Jogos Pan-Helênicos na Grécia e que ergueu
uma estátua de 30 metros retratando a si mesmo como Apolo, Nero tornou-se
cada vez mais paranóico à medida que via-se cercado de conspirações. Ordenou
que Sêneca e seu irmão Gálio (governador de Corinto diante do qual Paulo
apareceu) cometessem suicídio, mas a guarda pretoriana e o Senado voltaram-se
contra ele e Nero se matou, lamentando seu destino com estas palavras: “Morre
um grande artista”.
Depois de uma rápida sucessão de três generais e de um ano de luta
violenta pelo trono, Vespasiano (69-79 d.C.) saiu vencedor e estabeleceu a
linhagem flaviana de imperadores. Competente em seu serviço na Grã-Bretanha
sob o comando de Cláudio, ele havia sido orientado por Nero para reprimir a
revolta de judeus iniciada em 66. Quando foi aclamado imperador por suas
tropas, deixou a cargo de seu filho Tito a tarefa de completar a conquista de
Jerusalém. Vespasiano restaurou as finanças públicas, estendeu as fronteiras do
império e começou a construção de um imenso anfiteatro público, o Coliseu.
O breve reinado de Tito (79-81 d.C.) foi marcado por outro incêndio em
Roma, pela conclusão do Coliseu e pela inesperada erupção do monte Vesúvio
que soterrou as cidades de Pompéia e Herculano. Tito era bem aceito pelo povo,
exceto por seu envolvimento com a princesa herodiana Berenice (At 25.23).
Domiciano (81-96 d.C.), o irmão mais novo de Tito, governou como um
déspota. Exigia ser chamado de “Senhor e Deus” (Dominus et Deus) e perseguiu
tanto cristãos quanto judeus. O reinado de terror de Domiciano, durante o qual
João escreveu Apocalipse, foi interrompido por seu assassinato num golpe no
palácio.
O contexto religioso (Judaísmo)
Durante séculos, depois da destruição dos reinos de Israel e Judá pelos
assírios e babilônios, vários povos estrangeiros governaram a região ao sul da
Síria conhecida a princípio como “Cananéia” ou “Israel” mas chamada pelos
romanos de “Palestina”. Sob o governo assírio, a província de Samaria foi
habitada por estrangeiros que trouxeram consigo sua religião pagã. Os exilados
que retornaram a Judá — que havia passado a se chamar província da Judéia —
e que reconstruíram o Templo, questionavam a pureza racial de seus vizinhos e
os dois coexistiam num estado de hostilidade permanente. Os habitantes da
Judéia eram chamados de judeus e eram conhecidos por sua rígida observância
da fé histórica. Muitos judeus também se espalharam (na Diáspora ou
dispersão) por todo o mundo helênico da região leste do Mediterrâneo e o oeste
da Ásia.
Quatro décadas depois da revolta dos macabeus contra os governadores
sírios de Judá no século 2º a.C., estabeleceu-se um reino judeu independente em
128 a.C. pela família hasmonéia de sumo sacerdotes, sob o governo de João
Hircano. A fim de proteger sua posição os hasmoneus chegaram a fazer um
tratado de aliança com os romanos. Os anos seguintes foram marcados por lutas
constantes até que finalmente Pompeu interveio em 63 a.C. para acabar com os
conflitos civis. A Judéia tornou-se então um protetorado romano.
Na região sul da Judéia havia um povo conhecido como os idumeus. Eles
assentaram-se ali depois de terem sido expulsos de suas antiga terra natal de
Edom pelos árabes nabateus. Em 126 a.C., os governantes hasmoneus forçaram
esse povo a converter-se ao Judaísmo. Antipater, o governador da Iduméia, era
fortemente favorável aos romanos e persuadiu os judeus a socorrerem Júlio
César no Egito sendo que em troca, César nomeou Antipater procurador da Síria
em 47 a.C. Seu filho Herodes era amigo tanto de César quanto de Antônio e
ficou do lado dos romanos contra os partianos. O Senado o nomeou “Rei dos
Judeus” em 40 a.C. e o autorizou a governar sobre o reino da Judéia em favor
dos interesses de Roma como seu amigo e aliado. Em 37 a.C. Herodes depôs o
rei hasmoneu e casou-se com a princesa real num esforço para legitimar seu
governo aos olhos do povo judeu, sendo que muitos destes o consideravam um
usurpador estrangeiro. Quando Otaviano derrotou Antônio, Herodes mais que
depressa transferiu sua lealdade para o vencedor.
Normalmente conhecido como Herodes o Grande, ele foi o mais
extraordinário construtor da história dos judeus. Reformou completamente o
Templo, transformando-o num deslumbrante monumento arquitetônico que
ainda estava em construção nos tempos de Jesus (Jo 2.20). Também construiu
um magnífico palácio para si, um forte com vista para o Templo que ele chamou
de Antônia em homenagem a seu patrono, um porto marítimo de águas
profundas no Mediterrâneo chamado de Cesaréia e um assentamento para seus
veteranos em Samaria que passou a ser chamada de Sebaste, a palavra grega
para Augusto.
Um governante extremamente desconfiado e brutal, assassinou a maioria
dos principais hasmoneus, incluindo sua própria esposa e vários de seus filhos.
Um exemplo da paranóia de Herodes foi seu pânico diante da notícia de que um
possível rival (Jesus) havia nascido em Belém e sua ordem para matar todas as
crianças pequenas da região.
Depois de sua morte em 4 d.C. o reino de Herodes foi dividido entre seus
três filhos. Arquelau (mencionado em Mateus 2.22) foi seu sucessor na Judéia e
Samaria, mas seu governo foi tão ruim que Augusto respondeu a um pedido
formal da aristocracia judaica para tirá-lo de seu cargo e transformar o território
numa província romana. Ela passou a ser administrada por um procurador
imperial subordinado ao governador da Síria. Felipe governou sobre a região
gentio do nordeste (Lc 3.1) enquanto Antipas herdou a Galiléia e a Peréia (a
Transjordânia). Este último ordenou a execução de João Batista a pedido de sua
esposa Herodias. Também teve um breve encontro com Jesus quando Herodes o
enviou a ele para julgamento.
O governo procuratorial foi suspenso entre 41 e 44 d.C. quando foi
concedido a Herodes Agripa I, neto de Herodes o Grande — criado em Roma e
amigo pessoal tanto de Calígula quanto de Cláudio — o poder de governar sobre
um território na Palestina que eqüivalia aproximadamente àquele que pertencera
a seu avô. Depois de sua morte súbita registrada em Atos 12.23, foi restaurado o
governo procuratorial pois seu filho Agripa II foi considerado jovem demais
para governar. Paulo testemunhou diante do jovem Agripa (At 25.23 — 26.32),
que procurou evitar que uma revolta de judeus irrompesse em 66 e permaneceu
leal a Roma durante esse período difícil.
No 1º século depois de Cristo, havia diversas seitas judias importantes. Os
mestiços samaritanos da região norte da Judéia eram os mais desprezados. Eles
apegavam-se à sua própria versão do Torá (os cinco primeiros livros do Antigo
Testamento) e insistiam em prestar culto em seu lugar santo no monte Gerizim
(Jo 4.20). Jesus viajou por Samaria onde confrontou a mulher perto do poço e
chocou a sensibilidade judaica com sua história sobre um “bom samaritano”. Os
cristãos primitivos encontraram nessa região um público receptivo (At 8.4-25).
Ainda há em torno de quinhentos samaritanos em Israel nos dias de hoje.
Os saduceus afirmavam ser descendentes de Zadoque, o sumo sacerdote
nos tempos de Davi e Salomão. A maior parte deles pertencia à famílias
aristocráticas que controlavam o ofício de sumo sacerdote. Aceitavam somente a
autoridade do Torá e recusavam-se a acreditar em anjos ou na ressurreição do
corpo. O sacerdote principal que condenou Jesus e tentou impedir Pedro de
pregar sobre a ressurreição de Cristo era um saduceu. Tendo em vista que sua
única razão de existir era o Templo, eles não sobreviveram à destruição de
Jerusalém em 70 d.C.
Os saduceus eram maioria no Sinédrio, o concílio ou suprema corte dos
judeus, composto de setenta homens. Presidido pelo sumo sacerdote, o Sinédrio
tinha considerável autoridade para julgar casos religiosos mas a emissão de
sentenças de morte exigia uma ação do governador romano.
Os fariseus, um grupo bem mais rígido que era minoria no Sinédrio,
surgiu durante o governo dos sacerdotes-reis hasmoneus. O nome significa “os
separados”. Muitos deles eram escribas — mestres da lei que interpretavam as
Escrituras segundo as tradições orais que vinham desde Moisés. Eles
procuravam “cercar a Lei por todos os lados”, ou seja, tomavam as precauções
mais extremas para evitar qualquer violação da lei, por menor que fosse. Jesus
condenou esse zelo excessivo como sendo hipocrisia. Entre os mais devotos
mestres da lei que pertenciam ao partido dos fariseus, estava o Rabino Hillel que
proferiu a “Regra de Prata” — “Não faças aos outros o que não desejas que te
façam” — e Gamaliel, que foi mestre de Saulo de Tarso. Antes de sua
conversão, Saulo era um fariseu devoto.
Eles estavam dispostos a fazer acordos com os governantes romanos e
opor-se aos judeus que lutavam pela liberdade. Depois que a grande revolta foi
reprimida, o imperador Vespasiano permitiu que os fariseus abrissem uma
escola rabínica em Jâmnia e suas discussões orais, o Mishnah, foram escritas em
200 d.C. Estas discussões e os comentários feitos mais tarde e conhecidos como
Gemara formaram o Talmude, o grande repositório de tradições legais que os
judeus ortodoxos até hoje consideram como referência oficial para a fé e a vida.
Os essênios, um grupo extremista e separatista, não são mencionados no
Novo Testamento mas outras fontes da mesma época descrevem sua vida e
crenças. Sua comunidade em Qumram produziu os famosos Papiros do Mar
Morto, descobertos em 1947. Apesar de alguns essênios serem casados e
viverem em vilarejos, seu mais alto ideal foi alcançado em Qumram, perto do
Mar Morto. Os membros dessa comunidade eram celibatários, tinham
propriedades comuns a todos, praticavam repetidas imersões em água e comiam
juntos. Seu líder, cujo nome é desconhecido e que era chamado de “Mestre da
Retidão”, foi perseguido pelo sumo sacerdote. Eles procuravam dois Messias —
um sacerdotal da tribo de Levi e um nobre, de Judá. Pensavam estar vivendo os
últimos dias antes da guerra final entre os filhos da luz e os filhos das trevas.
Não se ouviu mais falar dos essênios depois da destruição de Qumram pelos
romanos em 68 d.C.
Em 6 d.C. uma pesquisa (censo) para a coleta de impostos romanos
provocou uma rebelião liderada por Judas da Galiléia e que não teve sucesso.
Ele considerava o pagamento de tributos por Israel para um governante pagão
uma traição a Deus. Seus seguidores eram conhecidos como zelotes pois
demonstravam zelo para com a lei de Deus. Apesar de, a princípio, seu grupo ser
um partido religioso, tornou-se rapidamente também um movimento nacional de
resistência. Dois dos filhos de Judas foram crucificados pelo procurador Tibério
Alexandre em 46 d.C. e um terceiro filho foi um líder na guerra contra Roma.
Um dos doze discípulos de Jesus foi chamado de “zelote” (Lc 6.15). Os
inimigos de Jesus que buscavam o apoio de Pilatos para executá-lo alegaram
que Jesus afirmava ser um rei. Paulo foi confundido com uma figura messiânica
egípcia que havia organizado oposição aos romanos em Jerusalém (At 21.38).
No final da década de 50, radicais zelotes começaram a assassinar judeus que
colaboravam com os romanos e as tentativas por parte dos governadores de
reprimir aquilo que estava tornando-se um movimento de guerrilha levou à
Guerra Judaico-Romana entre 66 e 74 d.C.
Mais tarde, uma outra figura messiânica — Simão Bar-Kochba — liderou
a segunda revolta de judeus de 132 a 135 que foi reprimida pelo imperador
Adriano. Jerusalém foi então transformada na cidade romana de Aelia
Capitolina, da qual os judeus foram banidos. Depois desse desastre, líderes
judeus perderam a esperança da vinda iminente de um messias que iria livrar o
povo da opressão estrangeira e estabelecer um reino de retidão. Tendo em vista
que eles não haviam esperado como o Messias por alguém divino, nascido de
uma virgem, crucificado e ressurreto, é compreensível que a maioria dos judeus
não considerasse Jesus como sendo aquele por quem eles procuravam.
Com a destruição do Templo, a sinagoga tornou-se a principal instituição
do Judaísmo, o local de reunião para orar e adorar. As sinagogas tiveram sua
origem no período pós-exílio e “lugares de oração” já existiam no Egito em 250
a.C. Os evangelhos relatam que Jesus ensinou e realizou milagres nas sinagogas
em Nazaré e Cafarnaum. Para formar uma sinagoga era necessário um quorum
de dez homens. Este era liderado por um “chefe da sinagoga” como Jairo (Lc
8.41) que trabalhava com um grupo de anciãos. Havia também um “assistente”
(hazzan) que cuidava dos rolos com as Escrituras (Lc 4.20).
Os cultos na sinagoga incluíam elementos como a recitação da prece
Shema (Dt 6.4-9), a oração em posição voltada para Jerusalém, a resposta
“Amém” da congregação, a leitura de trechos selecionados dos rolos do Torá
(At 15.21), tradução das Escrituras Hebraicas em paráfrases no aramaico, um
sermão e uma bênção. Em pé, uma pessoa recitava as “Dezoitos Bênçãos” às
quais no final do 1º século d.C. foi acrescentada uma décima nona, sendo esta a
maldição contra os minim ou hereges, em clara alusão aos cristãos.
Qualquer pessoa do sexo masculino podia ser chamada para orar ou ler
trechos das Escrituras. Em uma ocasião, Jesus leu uma parte do livro do profeta
Isaías na sinagoga de Nazaré. Um indivíduo qualificado também podia ser
convidado para dar o sermão (ver At 13.15, 42; 14.1; 17.2). Não há evidência de
que as primeiras sinagogas tivessem separado os lugares das galerias para as
mulheres, como era o caso na Idade Média.
Como principal construção da comunidade, a sinagoga era usada para
cultos religiosos, para lecionar para crianças e como lugar de julgamento e
punição para os que desobedeciam as leis (Mc 13.9; 2Co 11.24). Os apóstatas
podiam ser excomungados (Jo 9.22; 12.42). Na Palestina, há restos
arqueológicos de mais de cem sinagogas, três das quais construídas no 1º século
d.C.

O ministério fundamental de Jesus


Há algumas importantes referências extrabíblicas sobre Jesus. O biógrafo
romano Suetônio (começo do século 2º) relata que Cláudio expulsou os judeus
de Roma “por causa dos tumultos que estes constantemente causavam, sendo
instigados pelo Chrestus”. Esta é, provavelmente, uma referência a Cristo. Atos
18.2 faz referência à chegada de Áquila e Priscila em Corinto “pois Cláudio
havia ordenado que todos os judeus deixassem Roma”.
O historiador Tácito, escrevendo em 115 d.C., descreve como Nero
culpou os cristãos pelo incêndio devastador de 64. Relata que “seu nome veio de
Cristo, que foi executado por sentença do procurador Pôncio Pilatos no reinado
de Tibério”. Plínio o Jovem, governador de Bitínia na região noroeste da Ásia
Menor, escreveu ao imperador Trajano perguntando o que deveria fazer com os
cristãos. Seus interrogatórios haviam revelado que eles “estavam se encontrando
num dia determinado antes do nascer do sol e recitando um hino em forma de
antífona a Cristo como Deus”.
Flávio Josefo, o escritor judeu que registrou uma extensa história de seu
povo, observa na obra Antigüidade Judaica, de 93 d.C., que o sumo sacerdote
Anás “realizou uma sessão judicial do Sinédrio e trouxe perante ele o irmão de
Jesus, o chamado Cristo — irmão cujo nome era Tiago — e alguns outros os
quais ele condenou de quebrar a lei e os entregou para que fossem apedrejados
até a morte”. Em outra passagem mais longa e controversa, na qual estudiosos
descobriram que um editor cristão havia mais tarde feito alterações no texto,
Josefo tratava de Jesus. As possíveis modificações estão em itálico:

Nesse tempo apareceu Jesus, um homem sábio, se é que deve ser chamado
de homem. Pois ele realizava feitos admiráveis, era mestre de pessoas que
recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre judeus como
entre muitos de origem grega. Ele era o Messias. E quando Pilatos, por causa de
uma acusação feita pelos líderes entre nós, o condenou à cruz, aqueles que antes
o amavam não deixaram de fazê-lo. Pois ele apareceu para eles no terceiro dia,
novamente vivo, exatamente como os profetas haviam dito destas e outras
coisas maravilhosas sobre ele. E até o dia de hoje a tribo de cristãos - assim
chamada por causa dele — não desapareceu. (Os Tempos Antigos 18.3.3)

Apesar de sem dúvida saber hebraico bem como grego, Jesus costumava
falar em aramaico, um dialeto semita que originara-se na Síria mas havia se
tornado língua internacional desde o século 8º antes de Cristo. Ele gentilmente
ressuscitou a filha de Jairo dizendo a ela “ „Talitha koum!’ (que significa,
„Menina, eu vos digo, levanta-te!‟)” (Mc 5.41) e realizou a cura de um homem
surdo e mudo ordenando “ „Ephphatah!‟ (que quer dizer, „Abre-te!‟)” (Mc 7.34).
Na cruz ele exclamou o profundo lamento “ „Eloi, Eloi, lama sabachthani?‟ -
que significa „Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?‟” (Mc 15.34).
Apesar de Jesus saber ler e escrever (Jo 8.6), ele não deixou nenhum
material escrito. É possível que os discípulos tenham anotado alguns de seus
dizeres, mas a maior parte era transmitida oralmente. Fora dos quatro
evangelhos, relativamente poucas citações de Jesus foram preservadas. A mais
conhecida é a passagem da Ceia do Senhor em 1 Coríntios 11.23-25. Várias
obras apócrifas, como O Evangelho de Tomé, também contém declarações
atribuídas a Jesus, mas a Igreja nunca as aceitou como sendo oficiais. Mateus,
Marcos, Lucas e João preservam muitos dizeres, mas o escritor de cada
evangelho selecionou alguns para um determinado público. Mateus, por
exemplo, que cita com freqüência o Antigo Testamento, dirigia-se a um público
de judeus cristãos.
Muitos estudiosos acham que o evangelho segundo João Marcos, que foi
companheiro de Paulo e Pedro (Cl 4.10; 1Pe 5.13), foi escrito aproximadamente
uma geração depois da morte de Jesus. Os outros evangelhos sinópticos, Mateus
e Lucas, usaram muito de Marcos e de uma fonte comum de dizeres chamada de
Quelle (“fonte”). Mateus foi um dos doze primeiros discípulos, enquanto Lucas
acompanhou Paulo em suas viagens e escreveu um segundo livro, Atos dos
Apóstolos. Tendo em vista que este último termina com Paulo em prisão
domiciliar em Roma antes do grande incêndio, provavelmente foi escrito por
volta de 62 d.C. Lucas deve ter composto seu evangelho antes dessa data.
O evangelho de João foi escrito bem mais tarde, perto do final do 1º
século, pelo apóstolo João ou por um seguidor próximo a ele. Há diversas
diferenças entre ele e os sinópticos. João concentra-se no trabalho de Jesus na
Galiléia. Nos sinópticos, Jesus ensina através de dizeres e parábolas curtas e
repletas de significado; em João ele faz longos discursos. Ele é mostrado como
“Filho do Homem” nos sinópticos enquanto João ressalta afirmações de sua
divindade e união com o Pai. João também especifica um objetivo evangelístico
— convencer os leitores de que Jesus é o Cristo e de que em seu nome podem
encontrar vida eterna (Jo 20.31).
Apesar de haver eternas “Buscas pelo Jesus Histórico”, muitos fatos
básicos sobre ele são indiscutíveis. Ele nasceu em Belém, filho de Maria, cujo
esposo era José — sendo ambos da linhagem de Davi — durante o reinado de
Herodes o Grande e Augusto. Ao contrário dos evangelhos apócrifos sobre sua
infância que surgiram no século 2º (e mais tarde) e que estavam cheios de
histórias dos milagres do jovem Jesus, apenas um incidente de sua infância é
relatado no Novo Testamento (por Lucas), quando o precoce menino de doze
anos separou-se de seus pais e participou de discussões com os mestres no
Templo em Jerusalém.
Os evangelhos falam dos irmãos e irmãs de Jesus, mas só o nome dos
primeiros aparece (Mc 3.31; 6.3; Mt 12.46; 13.55,56). Durante sua vida, eles
eram incrédulos quanto a suas afirmações (Jo 7.5), porém mais tarde dois deles
tornaram-se seguidores e contribuíram com as epístolas de Tiago e Judas. Tiago,
aliás, tornou-se líder da igreja em Jerusalém (At 15) e de acordo com Josefo, foi
martirizado em 62. Jesus cresceu em Nazaré, na Galiléia, uma vila tão pouco
conhecida que não é mencionada nem no Antigo Testamento, nem por Josefo e
nem no Talmude. Seu pai era carpinteiro e, ao que parece, morreu quando Jesus
era jovem.
Ele começou seu ministério público no décimo quinto ano do reinado do
imperador Tibério, depois de ser batizado no rio Jordão por seu primo João
(Batista). Reuniu um grupo de doze discípulos, alguns dos quais eram simples
pescadores como João, Tiago, Pedro e André. Em seu grupo ainda havia um
detestado coletor de impostos (Mateus) e um antigo Zelote (Simão), certamente
um mostruário de contrastes. Durante pelo menos três anos Jesus realizou um
ministério itinerante à partir de sua base em Cafarnaum, na margem oeste do
mar da Galiléia, mas em três ocasiões registradas em João ele viajou a Jerusalém
para o festival da Páscoa.
Jesus ensinava que Iavé estava estabelecendo o Reino de Deus e que as
pessoas precisavam aceitá-lo como Filho de Deus para que pudessem entrar
nesse reino. A consciência de Jesus quanto a seu relacionamento próximo com
Deus era caracterizada pelo uso extraordinário que fazia do termo aramaico
familiar para pai, “Abba” ao dirigir-se a Deus (Mc 14.36). Trabalhando como
enviando de Deus, tinha o poder de reinterpretar a lei de Moisés, curar os
enfermos e perdoar pecados. Ele afirmou que a lei deveria ser cumprida não por
meros atos externos mas pela pureza interior. Ensinou as pessoas a amar não
apenas seus amigos e companheiros judeus, mas também seus inimigos e até os
“cães” gentios.
Jesus realizou muitos milagres — chamados nos evangelhos de “atos de
poder” ou “sinais”. Dentre eles podemos citar quinze curas, cinco exorcismos de
demônios, cinco milagres sobre a natureza e a ressurreição de duas pessoas
mortas. Estes sinais convenceram os discípulos de seu mandato divino e
ganharam muitas pessoas para a causa, mas os descrentes diziam que seus
poderes vinham de Belzebu. O fato é que, em seus ensinamentos e atividades,
Jesus conseguiu ofender pessoas de todos os grupos de judeus, exceto os
samaritanos. Ao virar as mesas dos cambistas e afugentar os vendedores de
pombos nos arredores do templo, ele desafiou a autoridade do sumo sacerdote
saduceu. Ao intencionalmente curar num Sábado, criticando a observação estrita
da lei ritual pelos fariseus e chamando-os de hipócritas, ele deixou de fora os
membros daquela seita. Ao reconhecer como legítima a cobrança de impostos
(dai “a César o que é de César” - Mateus 22.21) ele irritou os simpatizantes
zelotes. Além disso, pode ter aludido aos essênios no Sermão do Monte quando
referiu-se a pessoas que ensinavam que deve-se amar o próximo e odiar os
inimigos (Mt 5.43).
Ele desencorajou aqueles que o viam como o Messias de acordo com as
expectativas populares, ou seja, aquele que iria estabelecer um reino político (Jo
6.15). Na verdade, ele revelou sua identidade messiânica a uns poucos
escolhidos, como a mulher de Samaria (Jo 4.26) e os doze, mas numa ocasião
mais tarde, nem Pedro podia acreditar que Jesus estava destinado a ser rejeitado
pelos líderes religiosos e a uma morte cruel (Mt 16.16-23).
Apesar de ter sido aclamado pela multidão que estava em Jerusalém para a
Páscoa no dia que mais tarde foi chamado pela Igreja de Domingo de Ramos, a
crescente oposição e hostilidade culminaram com a prisão de Jesus, um ato que
teve a ajuda de sua traição por um membro de seu círculo íntimo, Judas
Iscariotes. Ele foi examinado perante o Sinédrio, que havia se reunido
ilegalmente antes do amanhecer na sexta-feira, primeiro por Anás e depois
Caifás, o antigo e o então sumo sacerdotes. Quando perguntado diretamente se
era o Cristo (Messias), Jesus deu uma resposta sem rodeios: "Eu o sou, e vereis
o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens
do céu" (Mc 14.62; Dn 7.13). Isso convenceu os líderes religiosos de que ele era
um blasfemo, mas quando o entregaram ao governador romano para receber a
pena de morte, eles o acusaram de afirmar que era Rei dos Judeus.
O procurador Pôncio Pilatos havia tido muitos problemas com seus
súditos judeus e suas relações com eles nem sempre eram das melhores. Ele
percebeu que Jesus era inocente e queria libertá-lo, mas os principais sacerdotes
pressionaram para que ele fosse morto e a multidão do lado de fora do palácio
gritava pedindo a libertação de Barrabás que havia se envolvido numa
insurreição armada. Como a essa altura Pilatos estava preocupado com sua
própria posição em Roma, relutantemente ordenou a execução de Jesus.
Ele foi levado para fora da cidade, para um monte chamado em aramaico
de Golgotha (Calvário em latim) ou “lugar da caveira”. Alguns afirmam que a
Igreja do Santo Sepulcro foi mais tarde construída nesse lugar. Lá ele sofreu a
crucificação, uma forma agonizante de morte no abandono, ladeado por dois
ladrões. Porém, pelo fato da morte ter chegado tão rapidamente, os ossos de suas
pernas não foram quebrados como aconteceu com os dois homens que estavam
ao seu lado.
Tendo em vista que era proibido realizar enterros no Sábado, Jesus foi
sepultado às pressas num túmulo doado por seu admirador José de Arimatéia
antes do sol se pôr. Então, logo cedo no domingo, as mulheres que foram
terminar de embalsamar o corpo descobriram que a pedra circular que fechava a
entrada estava fora do lugar e o túmulo encontrava-se vazio. Alguns explicaram
esse acontecimento intrigante dizendo que seus discípulos haviam roubado o
corpo, mas durante os quarenta dias subseqüentes, Jesus apareceu vivo —
audível, visível e até mesmo tangivelmente — para seus seguidores em pelo
menos dez ocasiões. Como as mulheres na sociedade judaica daqueles dias não
eram aceitas como testemunhas legais, é notável que suas primeiras
manifestações tenham sido para elas ao invés de apóstolos como Pedro e João.
De acordo com o testemunho de Paulo (1Co 15.3-7), o Salvador ressurreto
também apareceu para o desolado Pedro que o havia negado três vezes e tinha
voltado ao seu trabalho como pescador, para o seu irmão Tiago e outros
quinhentos “irmãos”, sendo que a maioria destes ainda estava viva pelo menos
vinte anos depois do ocorrido. Ao invés de desaparecer de cena como os
essênios de Qumram, os discípulos de Jesus, inabalavelmente convencidos de
sua ressurreição, cresceram em força e número à medida em que pregavam as
boas novas de que Jesus era, de fato, o Cristo que havia morrido pelos pecados
de todas as pessoas e havia ressuscitado para garantir sua salvação.

A liderança proeminente de Pedro


Pedro é o discípulo que aparece de modo mais destacado nos evangelhos e
nos primeiros capítulos de Atos. Um pescador da região norte da Galiléia (Mc
1.16-18), ele e seu irmão André eram, a princípio, seguidores de João Batista.
Ele era casado (1Co 9.5) e Jesus certa vez curou sua sogra na casa da família em
Cafarnaum (Mc 1.29-31). Seu nome era, originalmente, Simão Bar-Jonas, mas
Jesus deu-lhe o apelido de “Rocha”, Cepha em aramaico e Petros em grego (Mt
16.18). Juntamente com Tiago e João, os filhos de Zebedeu, Pedro pertencia ao
círculo íntimo que testemunhou a ressurreição da filha de Jairo e a
transfiguração (Mc 5.37; 9.2).
Depois de sua vergonhosa negação quando Jesus foi levado preso, Pedro
foi transformado pela aparição do Cristo ressurreto. Quando o poder do Espírito
Santo desceu sobre os discípulos no dia de Pentecostes (o festival judaico de
Shabuoth, ou “Semanas”), de maneira ousada, ele pregou um sermão que levaria
à conversão de três mil pessoas. Pedro e João curaram então um mendigo
paralítico perto da entrada do Templo e apesar das ordens do Sinédrio para que
parassem, os apóstolos continuaram a proclamar a ressurreição de Jesus.
Quando Ananias e Safira mentiram sobre o quanto haviam dado para a
igreja, Pedro expôs o fingimento deles e o casal caiu morto sob o julgamento
divino. Ele também ofereceu bênçãos aos samaritanos que haviam aceito o
evangelho mas condenou o mágico Simão Magno que desejava comprar o poder
do Espírito Santo (essa é a origem do termo medieval “simonia” usado para a
compra de um ofício na Igreja).
Mais importante ainda, depois de uma relutância inicial em permitir
gentios na comunhão cristã, Pedro obedeceu a visão para receber bem a
Cornélio, um centurião romano (comandante militar). Porém, mais tarde teve
uma breve recaída e se recusou a comer com gentios e por isso foi repreendido
por Paulo (Gl 2.11-14). Apesar de sua missão ser, a princípio, com os judeus (Gl
2.7), no Concílio de Jerusalém Pedro apoiou a posição de Paulo de que os
gentios deveriam ser aceitos sem antes terem que tornar-se judeus.
Devido ao fato das atividades posteriores de Pedro não terem sido
registradas em Atos, é difícil reconstruí-las. Alguns cristãos em Corinto
declararam que ele era seu cabeça (1Co 3.22). Além disso, é dele o crédito pelas
epístolas de 1 e 2 Pedro, provavelmente enviadas de Roma. Mais tarde, dois
escritores — Inácio e Eusébio — fizeram referência ao seu martírio em Roma
durante as perseguições depois do grande incêndio e admiradores do século 2º
ergueram um santuário em sua memória na região do Vaticano. Há, porém,
poucas evidências de que ele foi o fundador da Igreja em Roma ou seu primeiro
bispo.

A missão de Paulo entre os gentis


Sem dúvida o maior missionário e teólogo da Igreja do Novo Testamento
foi Paulo, cujas atividades são relatadas em Atos. Antes chamado de Saulo, ele
era da tribo de Benjamim (Fp 3.5), nascido em Tarso, a mais importante cidade
da Cilícia, na região sudoeste da Anatólia. Seu pai judeu havia obtido a
cidadania romana que automaticamente passou para o filho. Apesar de Tarso ser
um centro para o estudo da filosofia grega, é bastante provável que Saulo tenha
saído de casa quando ainda era jovem para ser educado pelo famoso rabino
Gamaliel em Jerusalém.
Lá, tornou-se fariseu e superou seus colegas no zêlo pela lei (Gl 1.14). O
primeiro contato registrado de Saulo com a Igreja primitiva foi no
apedrejamento de Estevão — o primeiro mártir cristão — onde Saulo era um
observador conivente. Assustado com o crescimento do novo movimento, ele
tornou-se um dedicado perseguidor e foi responsável pela prisão de homens e
mulheres, forçando-os a negar seu Salvador publicamente e até mesmo
aprovando sua morte. Mais tarde, arrependeu-se amargamente do papel que teve
na perseguição da Igreja (1Co 15.9; Gl 1.23; 1Tm 1.13).
Não se contentando em eliminar essa “heresia” da Palestina, Saulo obteve
autorização dos sumo sacerdotes para atacar a comunidade cristã em Damasco.
Estava tão determinado a levar a cabo sua missão que, ao contrário do que era
habitual, viajou durante o calor do dia. No caminho, Saulo foi atingido por uma
visão brilhante do Cristo ressuscitado que o repreendeu por sua atitude. Por ter
ficado temporariamente cego devido à aparição, Saulo precisou ser guiado por
seu companheiro até a cidade. Apesar da maioria dos cristãos o temerem,
Ananias obedeceu à ordem do Senhor dada por uma visão dizendo para recebê-
lo como um irmão. Saulo voltou a enxergar e tornou-se um seguidor tão devoto
de Jesus quanto antes ele havia sido um opositor fanático.
Depois de sua conversão dramática, Saulo passou três anos na “Arábia”
(provavelmente na região onde hoje é a Jordânia) e em Damasco (Gl 1.17). Fez,
então, uma breve visita a Jerusalém e voltou para Tarso. Depois de dez anos,
Saulo foi chamado para auxiliar no ministério em Antioquia, a principal cidade
no norte da Síria e local onde os crentes foram chamados pela primeira vez de
“cristãos” (At 11.26). Acompanhado de Barnabé, ele foi a Jerusalém para ajudar
durante a grande fome de 46-47 d.C.
A igreja de Antioquia nomeou os dois como missionários e,
acompanhados do jovem João Marcos (Cl 4.10), primo de Barnabé, eles
partiram para Chipre e para o sul da Anatólia. Pregaram em Salamis e Pafos nos
extremos opostos da ilha. Saulo expôs os falsos ensinamentos de um mágico na
corte de Sérgio Paulo, o procônsul (governador) de Chipre e ganhou este último
para Cristo. Nesse ponto da narrativa, Lucas introduz o nome romano de Saulo,
Paulo (At 13.9), um nome em latim que significa “pequeno”.
Quando chegaram a Perga, no continente, João Marcos abandonou o
grupo (Por causa desse lapso, Paulo recusou-se a levar Marcos consigo na
segunda viagem missionária.). Saulo e Barnabé foram para o interior da Galácia
e visitaram Antioquia na Pisídia, Icônio, Listra e Derbe. Falando a princípio nas
sinagogas, tiveram mais sucesso em ganhar os “tementes a Deus”, gentios que
freqüentavam a casa de oração mas ainda não tinham se convertido
completamente ao Judaísmo através da circuncisão.
Depois de voltar para Antioquia, Paulo aparentemente repreendeu Pedro
por desassociar-se dos crentes gentios e escreveu uma carta para os gálatas
advertindo-os dos falsos mestres do legalismo que estavam minando o princípio
da salvação pela fé em Cristo, independente da lei mosaica. Por causa do grande
número de gentios que se haviam voltado para o Cristianismo, seguiu-se uma
enorme discussão sobre se deveria também ser exigida sua iniciação ao
Judaísmo através do ritual da circuncisão. Para resolver a questão, um concílio
da Igreja reuniu-se em Jerusalém por volta de 50 d.C. Paulo foi apoiado em sua
posição por Pedro e Tiago, o líder da igreja local. O concílio decidiu que os
gentios deveriam ser aceitos tal como eram, mas foram orientados a abster-se de
comida oferecido a ídolos, de comer carne contaminada com sangue e da
impureza.
Depois de um sério desentendimento, Barnabé e Marcos partiram numa
missão para Chipre enquanto Paulo levou Silas (também chamado de Silvano),
um cidadão romano de Jerusalém, numa segunda viagem para a Ásia Menor.
Enquanto visitavam novamente as igrejas na Galácia, o jovem Timóteo, que era
descendente de judeus, juntou-se a eles. Em algum ponto depois que os três
chegaram à costa oeste da Anatólia, o médico Lucas tornou-se um membro do
grupo. Na cidade de Troas (próxima da antiga Tróia), Paulo recebeu o famoso
“chamado macedônio”, uma visão de um homem no norte da Grécia que pedia
que ele “viesse ajudá-los”.
Logo em seguida eles cruzaram o mar Egeu e foram para Filipo, a maior
cidade da região. Encontraram com algumas mulheres judias num lugar de
oração e várias delas se converteram. Uma delas, uma rica comerciante de
púrpura chamada Lídia, os recebeu em sua casa. Quando Paulo exorcizou uma
jovem escrava que estava sendo usada para fazer adivinhações, seus donos
incitaram uma multidão contra eles e Paulo e Silas foram lançados na prisão. À
meia-noite um terremoto libertou todos os prisioneiros e o carcereiro
aterrorizado foi convencido por Paulo a voltar-se para Cristo pela fé. Quando as
autoridades ficaram sabendo que eles eram cidadãos romanos, foram libertados
imediatamente e receberam permissão para continuar a viagem.
Depois de evangelizar em Tessalônica e Beréia, Paulo chegou a Atenas.
Movido pela religiosidade da grande cidade ele pregou o seu famoso sermão
para o Concílio do Aerópago na Colunata Real na Ágora (e não no monte Marte
como é comum acreditar-se). Os filósofos gregos ouviram com atenção
enquanto Paulo declarava para eles a identidade do “Deus Desconhecido” que
eles adoravam, mas ficaram ofendidos com sua referência à ressurreição de
Jesus, um conceito que os gregos consideravam tanto impossível quanto
indesejável. Ele não ganhou muitos convertidos nessa metrópole intelectual.
O apóstolo teve bem mais sucesso no grande centro marítimo de Corinto.
Lá, trabalhou como fazedor de tendas junto com Priscila e Áquila que haviam
recentemente chegado da Itália. Começou a ensinar na sinagoga e converteu
algumas pessoas importantes. Isso perturbou a muitos dentro da comunidade dos
judeus e ele foi levado perante o tribunal do governador Gálio, irmão de Sêneca.
Tendo em vista que Gálio era indiferente quanto às práticas religiosas judaicas,
dispensou as queixas contra Paulo. Depois de um ano e meio, Paulo voltou para
Jerusalém.
A “Terceira Viagem Missionária” passou-se principalmente em Éfeso, a
cidade metropolitana da província da Ásia na região oeste da Anatólia. Com
uma população em torno de duzentos e cinqüenta mil pessoas, era a quarta maior
cidade do mundo romano. Nela encontrava-se uma das Sete Maravilhas do
Mundo — o templo de Artêmis, que os romanos chamavam de Diana. O templo,
que media aproximadamente 120 por 80 metros, era a maior construção do
mundo grego e a primeira desse tamanho a ser feita completamente de mármore.
Estátuas de Diana mostram seus seios cobertos por objetos, indicando que ela
era uma deusa da fertilidade.
O ministério de três anos de Paulo em Éfeso havia sido precedido pelo
ministério de Apolo de Alexandria, um orador inteligente e fervoroso. Faltava a
Apolo a compreensão da doutrina cristã básica, mas Priscila e Áquila que a essa
altura moravam na cidade, deram-lhe instrução. Durante três anos Paulo ensinou
na sinagoga e então durante os dois anos seguintes esteve diariamente na escola
de Tirano. Alguns estudiosos acreditam que ele passava as primeiras horas do
dia fazendo tendas e durante o meio-dia ia proclamar o evangelho. Ele falava
com tamanho entusiasmo que as pessoas deixavam de lado seu costumeiro
horário de descanso para ouvi-lo e através dessas palestras públicas é possível
que tenha ganho a amizade de oficiais proeminentes que mais tarde o alertaram
do perigo (At 19.31).
Ele não apenas superou os exorcistas judeus que lançavam suas
formulações ocultas numa fogueira (a gramata de Efésios, uma combinação de
letras sem sentido, semelhante ao nosso “abracadabra”, que era bastante
conhecida na Antigüidade) como também ganhou tantos pagãos para Cristo que
chegou a afetar os negócios lucrativos dos ourives que faziam estátuas de
Artêmis. Seu líder incitou uma multidão a protestar contra o trabalho
missionário de Paulo e foi somente com grande dificuldade que as autoridades
locais conseguiram dispersar o povo.
Durante sua estadia em Éfeso em 56 d.C. Paulo escreveu 1 Coríntios e
enquanto viajava pela Grécia mais tarde naquele ano, escreveu 2 Coríntios. Em
Corinto, escreveu sua magnífica epístola aos Romanos, que foi entregue por
uma diaconisa chamada Febe. Nessa carta ele desenvolveu sua teologia da
salvação pela graça por meio da fé em Cristo tanto para judeus quanto para
gentios. Em seguida, voltou para a Palestina com uma oferta que havia juntado
das igrejas gregas para ajudar os cristãos pobres na Judéia.
Apesar do profeta Ágabo ter advertido Paulo dos perigos que o
aguardavam em Jerusalém, ele foi assim mesmo. Para demonstrar que, de fato,
não era um apóstata do Judaísmo, Paulo concordou em acompanhar alguns
nazireus até o Templo e pagar por seus sacrifícios. Porém, espalhou-se um boato
de que ele estava trazendo um gentio para dentro da área que era reservada
apenas para judeus, o que causou um tumulto. A parte interna do Templo era
separada de uma outra área aberta para os não-judeus por uma parede de mais de
um metro que continha o ameaçador aviso de que qualquer gentio que entrasse
naquele local cercado estaria colocando sua vida em perigo.
A intervenção oportuna das tropas romanas do forte de Antônia salvou
Paulo de um linchamento. Ele pediu, então, uma chance de explicar a situação
em aramaico, o dialeto do povo, mas seu discurso enraiveceu tanto a multidão
que o capitão teve que colocá-lo sob custódia para protegê-lo. Ele estava prestes
a açoitar o prisioneiro (o açoitamento era usado durante interrogatórios) mas
parou quando Paulo revelou sua cidadania romana. Seguiu-se uma audiência
conturbada perante o Sinédrio, onde Paulo afirmou que, como fariseu ele estava
sendo questionado sobre sua crença na ressurreição.
Quando o comandante romano ficou sabendo de uma conspiração para
assassinar Paulo, levou-o sob guarda armada para Cesaréia, no litoral. Lá, um
advogado dos líderes judeus o acusou perante o procurador. Alguns dias mais
tarde, Paulo apresentou o evangelho a Félix e sua esposa judia Drusila — irmã
de Herodes Agripa II — de forma tão eloqüente que o governador “estremeceu”.
Porém, Félix estava mais interessado na possibilidade de receber um suborno do
que na mensagem de retidão e deixou que Paulo sofresse na prisão durante dois
anos (d.C. 57-59).
Quando Festo, o novo governador, encontrou-se com as autoridades dos
judeus, foi imediatamente confrontado com o caso. Ele recebeu bem o desejo de
Herodes Agripa II e sua irmã Berenice de ouvir a defesa de Paulo. O rei
reconheceu que as acusações contra ele eram infundadas mas rejeitou a
mensagem do evangelho: “Por pouco me persuades a me fazer cristão” (At
26.28). Porém, ao se dar conta de que não havia esperanças do caso ser
recusado, Paulo aproveitou seu direito legal como cidadão de apelar diretamente
à corte de Nero e Festo o enviou a Roma.
Tendo em vista que o inverno se aproximava, o navio no qual Paulo e dois
companheiros estavam viajando foi pego numa enorme tempestade e naufragou
na praia de Malta, ao sul da Sicília. Paulo, que já havia sobrevivido a outros três
naufrágios (2Co 11.25), persuadiu os soldados a não matar os prisioneiros que
estavam no navio, garantindo que nenhum deles iria escapar. Na primavera,
Paulo e sua escolta seguiram viagem até Roma onde ele foi colocado sob prisão
domiciliar. Apesar de estar acorrentado a um membro da guarda pretoriana,
tinha liberdade de receber visitas, incluindo uma delegação das sinagogas. O
livro de Atos termina com o apóstolo preso em Roma, um período que pode ter
durado até dois anos, de 60 a 62 d.C.
Durante esse tempo, Paulo compôs as epístolas da prisão — Filipenses,
Filemon, Colossenses e Efésios. Supõe-se que foi libertado porque seus
acusadores de Jerusalém não chegaram a tempo ou então não conseguiram
apresentar um caso convincente. Apesar de não haver nenhuma evidência direta,
ao que parece ele visitou novamente as igrejas na Macedônia e na Ásia Menor e
é possível que tenha até mesmo viajado para a Espanha (Rm 15.24). Durante
esse tempo, Paulo escreveu suas epístolas pastorais — 1 e 2 Timóteo e Tito.
Fontes cristãs posteriores sugerem que foi perto do final do reinado de Nero que
Paulo sofreu o martírio, misericordiosamente pela espada, como cidadão
romano, e não através da crucificação.
Outros judeus cristãos
O último dos doze apóstolos a falecer foi João, a quem Irineu atribuiu o
evangelho, as três cartas e o livro de Apocalipse. Acredita-se que tenha sido
bispo de Éfeso e que seu exílio na ilha de Patmos (Ap 1.9) aparentemente tenha
ocorrido durante a perseguição no reinado de Domiciano. Assim, Apocalipse
reflete as tensões daquela época.
Nem todos os judeus cristãos ficaram contentes com a solução de Paulo
para o problema dos crentes gentios. Na Galácia, seus opositores eram os
“judaizantes” que insistiam na importância da circuncisão. Indivíduos desse
grupo mais tarde escreveram obras apócrifas como O Evangelho dos Nazarenos,
O Evangelho Segundo Hebreus e O Evangelho dos Ebionitas, que são citados
pelos Patriarcas da Igreja.
Os ebionitas (literalmente “os pobres”) são mencionados por Irineu e
Orígenes. Eram judeus que aceitavam Jesus como o Messias ao mesmo tempo
que continuavam a afirmar que Paulo era um apóstata da lei, negavam o
nascimento virginal, praticavam a circuncisão, observavam o Sábado, a Páscoa e
outras festas judaicas. Vários outros grupos judaico-cristãos menores, como os
elcasaítas, sobreviveram a leste do Jordão até o século 5º.

Como funcionava a Igreja primitiva


Os cristãos da Palestina — quase todos judeus — ainda iam ao Templo
até sua destruição em 70 d.C. Também freqüentavam as sinagogas, apesar de
que mais para o fim do 1º século foram expulsos da maior parte das
congregações e, como mencionamos anteriormente, uma maldição sobre os
“hereges” foi incluída nas orações diárias. Tendo em vista que os cristãos se
encontravam regularmente no primeiro dia da semana, isso os diferenciava dos
judeus que se congregavam no Sábado. Ao contrário das várias purificações que
os judeus praticavam em seus miqvaoth (banhos rituais), o batismo cristão
tornou-se um rito de iniciação.
Além disso, os cristãos não tinham uma casta sacerdotal (kohanim), mas
assim como os judeus, escolhiam “presbíteros” (presbyteroy) ou “supervisores”
(episcopoi) que presidiam suas congregações. As reclamações dos judeus-
gregos de Jerusalém de que suas viúvas sofriam discriminação quando era
distribuída a comida levaram à seleção de sete homens como diáconos (diakonai
ou “servidores”) para cuidar das necessidades físicas dos crentes (At 6). Dois
deles — o mártir Estevão e Filipe — que evangelizavam em Samaria e
converteram o tesoureiro do distante reino de Meroé na Núbia, eram pregadores
eloqüentes. Algumas mulheres, como Febe, serviam como diaconisas e viúvas
mais idosas que eram sustentadas pela igreja participavam de vários ministérios
sociais (1Tm 5.9,10).
Apesar da maior parte dos cristãos ser de origem humilde, havia algumas
exceções dignas de menção. Erasto, o diretor de obras públicas, desempenhava
um papel-chave na comunidade de Corinto (Rm 16.23; 2Tm 4.20). Em Corinto
arqueólogos também escavaram algumas casas grandes (que obviamente
pertenciam a pessoas de posses) que podem ser parecidas com aquelas que eram
usadas para as reuniões da igreja, apesar de provavelmente terem capacidade de
abrigar apenas quarenta ou cinqüenta crentes.
Na verdade, durante grande parte de três séculos, os cristãos reuniam-se
em casas e não em construções públicas. A evidência arqueológica de uma
construção desse tipo é a “Casa de São Pedro”, próxima da sinagoga em
Cafarnaum. Uma estrutura bizantina posterior com uma forma hexagonal
marcava o local da Igreja primitiva, que era feita de pedras de basalto e
pavimentada com pedras arredondadas. Dentro dela, pesquisadores encontraram
objetos de barro, moedas e anzóis. O tipo de piso de pedra ilustra como podia-se
perder uma moeda entra as fendas (Lc 15.8). As paredes não tinham como
suportar um telhado de alvenaria, mas somente um feito de galhos, palha e terra
(ver Mc 2.1-12; Lc 5.18-26). Mais para o final do 1º século, as paredes e o piso
da sala principal foram rebocados, refletindo a transformação da casa em igreja.

Durante seu breve tempo de vida Jesus conseguiu confundir e ofender


vários grupos judeus. Quando foi morto, seus seguidores desesperaram-se e foi
só sua forte convicção posterior de que ele havia ressuscitado que os inspirou a
desafiar a perseguição e propagar o evangelho tanto para judeus quanto gentios.
Dentre os missionários, o que mais se destacou foi Paulo, que antes havia sido o
mais fanático dos perseguidores. Num esforço incansável, ele espalhou a
mensagem cristã por toda a Ásia Menor e Grécia. Suas cartas profundas
juntamente com os quatro evangelhos que retratam a vida e os ensinamentos de
Cristo, constituem o cerne do Novo Testamento. A crença dos judeus cristãos de
que o Messias tinha vindo e triunfado sobre a morte fez com que fossem capazes
não apenas de sobreviver ao tumulto da revolta judia e à destruição do Templo
de Jerusalém, como também de disseminar o evangelho por todo o mundo
mediterrâneo. Sua decisão crítica de que os gentios deveriam fazer parte da
comunhão sem antes exigir que se tornassem judeus garantiu que o Cristianismo
não seria apenas mais uma seita judaica, mas sim uma fé universal relevante a
todas as pessoas. Já no final do 1º século, os cristãos eram gentios em sua
maioria.

2 A Igreja no Estado romano


À medida que os cristãos propagaram as boas novas de salvação,
encararam imensos obstáculos, incluindo uma sociedade pagã hostil, grupos
religiosos rivais e perseguições esporádicas por parte das autoridades civis.
Apesar dessas barreiras, sua fé resistiu ao desafio das heresias divisoras e
espalhou-se rapidamente por todo o Império Romano no 2º e 3º séculos. Com a
adesão do imperador Constantino ao Cristianismo em 312 d.C., a natureza das
relações entre Estado e Igreja mudou drasticamente em relação ao que tinha sido
até então.

As religiões de mistério e o culto imperial


Como a religião tradicional greco-romana não conseguiu satisfazer a fome
espiritual das massas, várias das chamadas religiões de mistério vindas do
Oriente encontraram aceitação no mundo romano. Elas funcionavam como
sociedades secretas fechadas, cujos membros eram cuidadosamente escolhidos e
iniciados. Cada uma atraía um diferente segmento da sociedade.
Um dos primeiros mistérios a entrar em Roma foi o culto à Magna Mater
ou “Grande Mãe”, Cibele, da Ásia Menor e cujas origens remontam à Idade da
Pedra. Em 204 a.C., durante a invasão de Aníbal à Itália, desesperados, os
Romanos importaram Cibele como objeto de adoração, homenageando-a com
um templo no monte Palatino. Porém, foi só um século depois que os próprios
cidadão romanos passaram a ser aceitos dentro da seita. Cibele tinha um amante
chamado Átis que era infiel a ela. Sedenta de vingança, ele o levou à loucura de
modo que ele acabou se castrando. Por causa disso, era exigido que os
sacerdotes de Cibele fossem eunucos (Os comentários severos de Paulo sobre os
“judaizantes” em Filipenses 3.2 podem ser uma referência a esse ato de
castração.).
Um ritual sangrento do culto a Cibele era o taurobolium. Nele um
iniciante ficava em pé dentro de um buraco enquanto um touro era abatido sobre
ele, encharcando-o num banho de sangue. Suas festividades incluíam uma
procissão de sacerdotes que se flagelavam ao som de tambores e címbalos
enquanto pranteavam a morte de Átis. Durante o 2º século, a idéia de
ressurreição foi introduzida nessa seita, talvez como um reflexo do impacto do
Cristianismo.
Outra religião de mistério era uma versão atualizada do culto a Ísis-Osíris.
Para unir seus súditos, Ptolomeu I do Egito (323-285 a.C.) substituiu Osíris por
um deus greco-egípcio híbrido — Serápis — que serviu como novo consorte da
divindade feminina Ísis. Ela tornou-se popular rapidamente no mundo greco-
romano e, por volta de 150 a.C., essa era uma das seitas mais praticadas em
Atenas. Dentro de outros cinqüenta anos já havia entrado na Itália. Durante um
século as autoridades romanas tentaram reprimir a seita, mas Calígula a
favoreceu chegando até mesmo a construir um grande templo a Ísis e Serápis no
Campo de Marte. Domiciano e Cômodo foram outros imperadores que
homenagearam a deusa. Os coloridos rituais de origem egípcia incluíam
procissões com sacerdotes de cabeça raspada vestindo linho branco e
sacerdotisas chacoalhando sistros. O culto a Ísis atraía especialmente as
mulheres.
A principal religião de mistério da Síria era o culto à deusa Atargatis da
cidade de Hierápolis (Bambice) no rio Eufrates. Assim como os sacerdotes de
Átis, seus ministros também eram eunucos. Notoriamente, eram mendigos que
se flagelavam para chamar a atenção e receber esmolas. Nero tinha uma certa
consideração pelos ritos dessa deusa síria e Alexandre Severo construiu um
templo para ela em Roma.
Outra religião de mistério digna de observação era promovida por Júlia
Domna, esposa de Sétimo Severo. Ela era filha do sumo sacerdote do deus-sol
adorado em Emesa (Homs) na Síria. Quando seu sobrinho-neto Elagabalo
tornou-se imperador, ele elevou o deus-sol de sua cidade natal à posição de
divindade suprema do império. Porém, foi tão desprezado que seu deus não
gozou de muito favor, mas meio século depois Aureliano reintroduziu o deus de
Emesa como sol invictus ou “Sol Invencível”. Ele construiu um magnífico
templo em Roma e o aniversário do deus era celebrado no dia 25 de dezembro,
logo depois do solstício de inverno.
O mitraísmo, que girava em torno da deusa persa Mitras, era o mais forte
rival do Cristianismo. O primeiro contato entre os romanos e os adoradores de
Mitras foi resultado da conquista de Pompeu sobre os piratas da Cilícia em 67-
65 a.C., mas o mitraísmo só foi se desenvolver como religião de mistério 150
anos mais tarde. Os santuários do mitraísmo eram mithraea, pequenas
construções semelhantes a cavernas. É possível que houvesse centenas deles na
capital. Em alguns lugares, como em São Clemente e Santa Prisca, em Roma,
santuários mitraicos e igrejas conviviam lado a lado.
Em cada santuário mitraico havia uma tauroctonia, um relevo entalhado
de Mitras esfaqueando o touro. Pelo fato de apenas uns poucos textos mitraicos
terem sobrevivido, os estudiosos não tem certeza de qual é o significado exato
desse feito. Mitras normalmente aparece junto de duas figuras, Cautes e
Cautopates, que representam o nascer e o pôr do sol. Como alguns desses
relevos são acompanhados de signos do Zodíaco, é possível que a tauroctonia
tivesse significado astrológico. Os iniciantes, que eram todos homens, passavam
por sete graus que correspondiam aos cinco planetas conhecidos, ao sol e à lua.
No começo do 2º século, o mitraísmo havia se espalhado entre os mercadores e
soldados romanos, especialmente em áreas mais remotas do império como a
Grã-Bretanha, a Alemanha e o Danúbio.
O elemento religioso que ameaçou mais diretamente a sobrevivência do
Cristianismo foi o culto imperial ou “adoração ao imperador”. Suas origens
estão na declaração feita por Augusto e pelo Senado de que, depois de seu
assassinato em 44 a.C., Júlio César passava a ser “divino”. Como imperador,
porém, Augusto desencorajava honrarias divinas para si mesmo em Roma,
aceitando-as porém quando vinham do Oriente, onde Herodes o Grande
construiu templos para ele em Cesaréia e Sebaste. Quando Agripa criou o
Panteão em Roma, Augusto se recusou a tê-lo dedicado como um templo a si
mesmo. Foi somente após sua morte que o Senado o deificou.
Tibério proibiu a deificação de sua mãe, a imperatriz Lívia e o Senado,
que o considerava um imperador perverso, também lhe negou essa honra. O
cruel Calígula, porém, não apenas exigia as honrarias divinas para si mas
chegou até mesmo a deificar sua irmã Drusila quando ela faleceu. Cláudio não
se entusiasmava com honrarias divinas mas concordou em aceitar um templo em
sua homenagem na recém-conquistada província da Grã-Bretanha como sinal de
lealdade política.
O vaidoso Nero ordenou que se erigisse uma estátua gigantesca de Apolo
Hélio com seu próprio semblante, mas recusou a construção de um templo para
Divus Nero (“Nero divino”). Comentou que: “Um chefe de Estado não recebe a
honra de um deus até que tenha cessado de estar entre os homens”, mas quando
de sua morte o Senado lhe negou essa honra. Vespasiano, que era considerado
um bom imperador, brincou quando estava morrendo: “Ó céus! Devo estar me
transformando em um deus”. Tito, seu filho, querido pelo povo e cujo breve
reinado foi interrompido por uma doença, foi depois da morte elevado a
divindade por seu irmão Domiciano. Alguns estudiosos acreditam que
Domiciano, que exigia que as pessoas o chamassem de “Senhor e Deus”, pode
ter perseguido os cristãos pois estes se recusavam a reconhecer sua divindade.
Alguns também afirmam que o contexto de Apocalipse 13 era a instauração do
culto a Domiciano em Éfeso, que incluía uma enorme estátua dele.
O culto imperial tinha tanto significado político quanto religioso. Em
todas as províncias era organizado por magistrados civis como uma instituição
que refletia a lealdade a Roma. Os cidadãos abastados da Ásia Menor que
cuidavam dos centros de culto eram chamados de Asiarcas (At 19.31). Por volta
de setenta templos e santuários foram erigidos por toda essa província em
homenagem ao imperador. Apesar de, em muitos aspectos, os imperadores
serem tratados como deuses, não há evidências de que qualquer oração fosse
oferecida a eles pedindo a cura de doenças.
Os cristãos que estavam bastante dispostos a proferir preces pelo
imperador (1Tm 2.2) e obedecer as autoridades romanas (Rm 13.1-2; 1Pe 2.17),
não estavam, porém, prontos a fazer sacrifícios ao imperador. Os judeus também
haviam assumido essa posição, mas sua fé era tolerada como religio licita
(“religião reconhecida”) nacional. A nova seita de cristãos, que logo passou a
incluir muitos grupos étnicos, era suspeita de ser uma sociedade secreta imoral.
Aqueles que se recusavam a fazer sacrifícios para o imperador eram
considerados culpados de traição e julgados nesses termos.

Perseguição romana e mártires cristãos


As primeiras perseguições aos cristãos partiram de autoridades judias na
palestina. O primeiro mártir registrado nas Escrituras foi o diácono Estevão (At
6 — 7), apedrejado por uma multidão, possivelmente em 36 d.C. O próximo foi
Tiago — filho de Zebedeu e um dos doze apóstolos — morto por Herodes
Agripa I em 44 (At 12). De acordo com Josefo e Eusébio, Tiago, o irmão de
Jesus e líder da igreja de Jerusalém foi apedrejado como resultado da instigação
do sumo sacerdote em 62, logo depois da morte do governador Festo.
A expulsão dos judeus de Roma ordenada por Cláudio e registrada por
Suetônio pode ter sido resultado de um tumulto causado por cristãos judeus que
estavam pregando sobre Cristo nas sinagogas. Nero queria fazer dos cristãos os
bodes expiatórios do incêndio na capital em 64 d.C. Suetônio declarou
laconicamente: “O castigo foi infligido sobre os cristãos, uma classe de homens
dados a superstições maldosas”. A descrição vívida feita por Tácito da
brutalidade de Nero vem há séculos mexendo com a imaginação:

Consequentemente, para livrar-se da delação, Nero colocou a culpa e infligiu as mais


terríveis torturas sobre uma classe odiada por suas abominações, chamada pelo
populacho de cristãos. Christus, do qual o nome é originado, sofreu a pena capital
durante o reinado de Pôncio Pilatos... Além de sua morte, houve zombarias de todo o
tipo. Cobertos por peles de animais, eles foram rasgados por cães e pereceram, ou
pregados a cruzes, ou condenados pelo fogo e queimados, para servir de iluminação
noturna quando a luz do dia havia expirado. Nero ofereceu seus jardins para o
espetáculo.1

Uma fonte cristã mais recente (Sulpício Severo) relata: “Naquele tempo,
Paulo e Pedro foram condenados a morte, sendo o primeiro decapitado com a
espada enquanto Pedro sofreu a crucificação”. Algumas tradições populares,
porém, não tem fundamento histórico. Uma delas é de que Pedro estava fugindo
de Roma para evitar a perseguição de Nero e encontrou Jesus na Via Ápia. Ele
disse: “Aonde vais, Senhor?” (Quo vadis domine?) Jesus respondeu: “Vou a
Roma para ser crucificado novamente”. Foi então que o apóstolo voltou à
capital para encontrar-se com seu destino. Uma outra lenda afirma que Pedro
pediu para ser crucificado de cabeça para baixo.
Eusébio indica que, por volta do ano de 95, Domiciano baniu muitos
cristãos de Roma, inclusive sua sobrinha Flávia Domitila. Clemêncio, marido de
Domitila e primo do imperador, foi executado por “ateísmo”, que na época
significava a conversão ao Judaísmo. Só alguns séculos depois é que surgiu a
idéia de que Clemêncio era cristão. Outra evidência indireta de perseguição sob
o governo desse imperador foi a expulsão de João de Patmos (Ap 1.9) e alguns
comentários em I Clemente.
A carta do governador romano Plínio para Trajano (cerca de 112 d.C.)
contém uma referência explícita à perseguição. Ele pediu conselho ao imperador
sobre se deveria tomar medidas contra aqueles que eram acusados de serem
cristãos, tendo em vista que ele próprio não estava certo se “o simples nome de
cristão” era uma ofensa punível. Em todos os casos, ele acreditava que a
“teimosia e obstinação inabalável” desse povo deveriam ser punidas. Ele
também relatou que havia usado de tortura para interrogar “duas escravas, que
eles chamam de diaconisas”, para saber mais sobre as práticas cristãs.
Por algum motivo desconhecido, Inácio, bispo de Antioquia, foi para
Roma durante o reinado de Trajano e lá sofreu o martírio. Seu amigo próximo,
Policarpo, mais tarde também foi martirizado em Esmirna depois de recusar-se a
negar a Cristo com estas memoráveis palavras: “Oitenta e seis anos eu O servi e
Ele não me fez mal algum. Como posso, então, blasfemar contra meu Rei que
me salvou?”
A base legal para a perseguição dos cristãos ainda é assunto de debate
entre os estudiosos. Em várias ocasiões eles foram acusados de “traição”,
“crimes”, “atos vergonhosos” e “obstinação”. O preconceito e a falta de
compreensão alimentavam vários rumores populares. Os cristãos que se
recusavam a tomar parte nas cerimônias e atividades pagãs eram suspeitos de
serem desleais e anti-sociais. Por tratarem uns aos outros como “irmãos” e
“irmãs” e encontrarem-se em segredo, eram acusados de imoralidade.
Referências feitas na Ceia do Senhor sobre comer o corpo e beber do sangue de
Cristo davam origem a suspeitas de canibalismo.
Justino Mártir foi morto durante o governo do imperador estóico Marco
Aurélio, enquanto o heroísmo dos mártires em Viena e Lião no sudeste da Gália
(França) em 177 d.C. é um dos grandes episódios da história do Cristianismo.
Eusébio descreve como quarenta e oito cristãos foram mortos nos anfiteatros,
incluindo a escrava Blandina que foi chifrada por um touro, diante de multidões
pagãs sedentas de sangue. Marco Aurélio desdenhosamente chamou esses
mártires de tolos obstinados.
Seu filho Cômodo era um imperador farrista que se divertia com jogos de
gladiadores e deixou os cristãos em paz. Porém, uma dúzia deles foi executada
pelo governador da Sília no norte da África em 180 d.C. e muitos cristãos foram
mortos na província da Ásia. É possível que estes últimos fossem montanistas
tendo em vista que esse grupo tinha um zelo especial em procurar o martírio. Em
202, cinco foram mortos em Cartago, sendo as mais conhecidas dentre eles
Perpétua — uma mãe que ainda amamentava — e sua escrava Felícitas. O diário
de Perpétua, que registrou as visões que Deus enviou para encorajá-la, era
especialmente apreciado entre os montanistas, tendo em vista que enfatizavam a
importância de revelações diretas pelo Espírito Santo.
Leônidas, pai do conhecido estudioso Orígenes, foi morto em Alexandria
em 202. O filho desejava muito juntar-se ao pai, mas sua mãe frustrou a
tentativa ao esconder suas roupas. Mais tarde, em 206, oito dos alunos de
Orígenes foram mortos. Em 211 um soldado cristão foi executado ao recusar-se
a usar uma coroa de louros por estar associada ao paganismo. Tertuliano, que
elogiou o exemplo desse mártir militar, desencorajou os cristãos a servirem no
exército já que isso poderia levá-los a ter que aceitar práticas pagãs.
A primeira tentativa sistemática de eliminar o Cristianismo por todo o
império ocorreu em 250 sob o governo de Décio, um dos efêmeros “Imperadores
de Quartel”. Ele exigiu que todos fizessem oferendas em honra a ele próprio e
proferissem juramentos pela fortuna dele como demonstração de sua lealdade.
As pessoas tinham que obter um libelo, um documento que atestava que haviam
feito um sacrifício. Aqueles que se recusassem a participar desse ritual civil e
religioso encaravam duras conseqüências. Vários bispos foram executados,
inclusive Fabiano de Roma, Alexandre de Jerusalém e Bábilos de Antioquia.
Outro foram encarcerados, como Dionísio de Alexandria; Orígenes morreu
depois de ser submetido a tortura em 251. Durante essa época, literalmente
centenas de pessoas foram martirizadas por causa de sua fé.
Cipriano, bispo de Cartago, descreve em seus escritos os problemas
gerados pelas perseguições. Para seu desespero, amedrontada, a maioria dos
cristãos abandonava a fé e oferecia sacrifícios para se proteger. O próprio
Cipriano se escondeu e justificou esse ato referindo-se ao conselho de Jesus para
fugir (Mt 10.23). Alguns cediam ao comprar libelos sem ter na verdade feito os
sacrifícios.
Depois do falecimento de Décio, os líderes da Igreja assumiram posições
diferentes em relação àqueles que fraquejavam. Novaciano um antipapa de
Roma, adotou a postura mais rigorosa e excluiu todos aqueles que haviam
negado a fé. Porém, Cipriano e Cornélio, os bispos de Roma concordaram em
aceitar de volta à comunhão aqueles que haviam comprado libelos depois da
devida demonstração de arrependimento, enquanto aqueles que haviam de fato
realizado sacrifícios só seriam readmitidos em seu leito de morte.
Alguns anos mais tarde, Valeriano redigiu uma série de éditos voltados
para os líderes da Igreja. Esses éditos exilavam bispos, proibiam todos os
encontros de cristãos e legalizavam a demissão de servos cristãos da casa
imperial, sendo estes banidos para trabalhar em propriedades imperiais. Um dos
resultados foi a execução dos bispos Cipriano e Sisto II de Roma.
A perseguição final ocorreu sob o governo de Diocleciano, o último
grande imperador pagão antes de Constantino. Diocleciano e seu assistente
Galério ofenderam-se com cristãos que fizeram o sinal da cruz justamente
quando sacerdotes pagãos procuravam prever o futuro ao olhar as entranhas de
animais sacrificados. Assim, ele lançou quatro éditos, cada um mais severo que
o anterior. De acordo com Eusébio, “uma carta imperial foi promulgada por toda
a parte, ordenando a destruição das igrejas e a queima das Escrituras”. 2 Aqueles
que distribuíam as Escrituras ou outros objetos sagrados eram conhecidos como
traditores (traidores). Líderes da Igreja foram presos e pressionados a fazer
sacrifícios para o imperador. Somente na cidade de Nicomédia, duzentos e
sessenta e oito cristãos foram executados. Um segundo édito ordenava a prisão
do alto clero enquanto um terceiro édito lhes oferecia a anistia caso eles
fizessem sacrifícios. O quarto ordenava todos os cristãos a fazerem sacrifícios
ou enfrentar a pena de morte ou trabalho forçado.
A perseguição cessou quando Diocleciano se aposentou em 305. Galério
admitiu que essa política havia fracassado e lançou um édito de tolerância em
311, enquanto sofria de uma terrível doença que certos membros da Igreja da
época interpretaram como sendo castigo divino. Dois anos mais tarde,
Constantino deu fim a era de perseguição com um decreto: “Nosso propósito é
dar tanto aos cristãos como a todos os outros a autoridade de seguir qualquer
tipo de adoração que cada um deseje”.

A expansão da Igreja e sua crescente influência


Depois que os romanos destruíram o Templo e grande parte de Jerusalém
no ano 70 d.C. e em seguida a transformaram numa cidade pagã logo após a
segunda revolta dos judeus em 135, eles a declararam local proibido para judeus
e, por conseguinte, também para judeus cristãos. Com a posição de Jerusalém
gravemente enfraquecida, os cristãos desenvolveram novos centros em outros
lugares. Um dos primeiros a surgir foi Antioquia, no oeste da Síria, onde os
discípulos receberam pela primeira vez o nome de “cristãos” (At 11.26).
A uns duzentos e quarenta quilômetros a noroeste de Antioquia ficava a
importante cidade comercial de Edessa (hoje chamada de Urfa). Ela foi tomada
pelos romanos em 116 d.C. e completamente incorporada ao império em 216.
Quando foi que o Cristianismo chegou, de fato, ao leste da Síria ainda é uma
questão amplamente discutida pois as fontes de informações são bastante tardias
e de confiabilidade duvidosa. Uma lenda afirma que um discípulo de Jesus
realizou a evangelização de Edessa, mas o primeiro rei cristão foi Abgar IX que
governou no final do 2º século. A obra do 6º século, Crônica de Edessa, registra
que em 201 uma igreja lá foi destruída por uma enchente. É de acordo geral que
Edessa foi a primeira cidade-Estado autônoma que, como tal, adotou o
Cristianismo.
Os livros apócrifos Evangelho de Tomé e Atos de Tomé podem ter sido
escritos em Edessa no 2º ou 3º século. O primeiro é importante por seu caráter
extremamente ascético e o segundo, por seu retrato docético de Jesus. O
Cristianismo na Síria era conhecido por sua atitude negativa em relação ao
casamento e à procriação. O próprio discípulo Tomé teve uma interessante
carreira lendária. Apesar de um escritor afirmar que ele foi enterrado em Edessa,
outros dizem que ele levou o evangelho a Pártia (Pérsia) ou que ele chegou até a
Índia e lá foi martirizado. Sabe-se ao certo que o Cristianismo na Pérsia usava a
língua siríaca. Além disso, por causa das lutas com Roma que estavam
ocorrendo naquela época, os persas perseguiam os cristãos, considerando-os
aliados de seus inimigos no Ocidente.
O Cristianismo chegou à Armênia, a região montanhosa do leste do Mar
Negro, no 3º século quando Gregório, o Iluminador (cerca de 240-332), ganhou
o rei Tirídates para Cristo em 301. Assim, a Armênia foi a primeira nação que,
como tal, tornou-se cristã. Existem até hoje manuscritos bíblicos importantes e
composições cristãs na distinta escrita armênia.
Os estudiosos não sabem dizer com precisão quando o Cristianismo
chegou ao Egito, apesar de possivelmente ter sido levado por convertidos
judeus. A tradição de que Marcos fundou o Cristianismo lá é tão tardia (de
Eusébio, no 4º século) que muitos duvidam de sua validade. A idéia antes
amplamente aceita de que a principal forma de Cristianismo primitivo no Egito
era heterodoxa foi refutada pelos documentos em papiros encontrados lá há
poucos anos. Dos quatorze papiros cristãos que foram datados como sendo
anteriores ao ano 200, só um deles, um fragmento grego do Evangelho de Tomé
de Oxirinco foi considerado não-ortodoxo.
O primeiro convertido do Sudão (Núbia ou região do Alto Nilo) foi o
conhecido “eunuco etíope” evangelizado por Felipe (At 8.26-40), tesoureiro da
rainha Candace do reino de Meroé. Conforme seu uso por gregos e romanos, o
termo etíope significava “negro” (literalmente “queimado de sol”). Infelizmente,
não há nenhum vestígio textual ou arqueológico do Cristianismo ao sul do Egito
antes do 4º século. Nessa época, ele foi levado à corte de Axum — um reino na
região leste da Etiópia dos dias de hoje — por Frumêncio de Tiro. O rei Ezana
(320-60), que converteu-se ao Cristianismo, introduziu-o então no Vale do Nilo.
Cirene, na Líbia, possuía uma forte comunidade judaica e alguns cirineus
também tinham uma sinagoga em Jerusalém (At 6.9). Dentre os primeiros
convertidos cirineus estava Simão, que carregou a cruz (Mc 15.21) e seus filhos
Alexandre e Rufo (Rm 16.13) que não apenas ajudaram a evangelizar a
Antioquia (At 11.20) como talvez também sua terra natal. É provável que tenha
sido de Cirene que o evangelho espalhou-se para a Tripolitânia na região oeste
da Líbia e de lá para Cartago na Tunísia.
Cartago, originalmente uma colônia fenícia e depois a capital da África
Proconsular, era um importante posto remoto da civilização romana. Não se
sabe ao certo quando o Cristianismo chegou a essa metrópole, mas a cidade
vizinha de Sila foi, desde cedo, palco de vários martírios. Tertuliano, o primeiro
importante porta-voz do Cristianismo em latim, atuou na cidade por volta do ano
200. O mais antigo bispo conhecido de Cartago, Agripino, reuniu um conselho
nessa cidade em 220 para considerar o novo batismo dos hereges recuperados. O
bispo mais conhecido da cidade, Cipriano, pastoreou seu rebanho em meio à
perseguição de Décio e teve um papel importante nas controvérsias sobre a
readmissão dos desviados. Oitenta e sete bispos de toda a parte oeste da região
norte da África compareceram a um concílio no ano de 256.
No final do 2º século, a fé já havia se espalhado para a Alemanha, tendo
em vista que há relatos de cristãos em Mainz por volta do ano 200. Na metade
do 3º século havia bispos em Trier (a capital dessa província romana) e Colônia.
Materno, um bispo desta última cidade, compareceu aos concílios de Roma
(313) e Arles (314). Além disso, é possível que nessa época houvesse bispos em
Mainz e Augsburg.
O Cristianismo foi levado para a região sudeste da Gália (França) a partir
da Ásia Menor, onde as igrejas em Viena e Lião, no vale do Rio Reno eram
especialmente ativas. Eusébio registra que as notícias do martírio de cinqüenta
crentes em 177 d.C. foram transmitidas através de uma carta aos “irmãos das
províncias da Ásia e Frígia”. Irineu, um dos que tinha vindo do Oriente, foi
sucessor do mártir Pótino como bispo de Lião. Na metade do 3º século, bispos
haviam se estabelecido em Arles, Viena, Toulouse, Reims e Paris. Havia
dezesseis bispos da Gália no Concílio de Arles.
Mesmo que tanto o Novo Testamento (Rm 15.24, 28) quanto Clemente de
Roma sugiram que Paulo pode ter ido à Espanha, os cristãos espanhóis afirmam
há muito tempo que seu país foi evangelizado pelo apóstolo Tiago. Apesar de
suas relíquias serem veneradas no famoso santuário de Santiago de Compostela
(Santiago e San Diego são formas no espanhol para São Tiago), essa lenda só
tornou-se conhecida no 8º século. A primeira grande assembléia de cristãos na
Espanha foi o Concílio de Elvira (por volta de 305), que estabeleceu regras
rigorosas de penitência para várias infrações e exigiu o celibato do clero. Além
disso, Hósio, bispo de Córdoba, foi um influente conselheiro do imperador
Constantino.
Uma lenda popular na Grã-Bretanha afirma que José de Arimatéia levou o
Santo Graal (o copo usado na Última Ceia) para a ilha. Diz-se que uma árvore
de espinhos no mosteiro de Glastonbury brotou dos espinhos da coroa de Jesus,
que também foi trazida por José. As declarações de Tertuliano e Orígenes são
mais realistas ao declarar que o Cristianismo chegou à Grã-Bretanha em sua
época (começo do 3º século). Houve três mártires da Grã-Bretanha na
perseguição de Décio e cinco bretões participaram do Concílio de Arles. Há
extensas evidências arqueológicas da presença cristã na Grã-Bretanha datadas
do 4º século.
No tempo da ascensão de Constantino ao poder, entre cinco e quinze por
cento da população do império havia se tornado cristã. No ano de 325 (quando
ocorreu o famoso concílio de Nicéia) os cristãos eram maioria na Ásia Menor,
Trace, Chipre, Edessa e Armênia. Eram um importante segmento da população
na Síria, Grécia, Itália, Egito, África Proconsular, Numídia (Algéria) e no sul da
Gália, mas pouco representativos na Arábia, Mauritânia (Marrocos),
Tripolitânia, na costa do Mar Negro, norte da Gália, Grã-Bretanha, Alemanha e
região do Danúbio.

A organização da Igreja
Uma vez que os primeiros discípulos eram judeus, eles visitavam o
Templo em Jerusalém e continuaram freqüentando as sinagogas até que foram
expulsos. Os apóstolos e outros mestres, dotados pelo Espírito Santo com uma
diversidade de talentos, compunham a liderança. Os diáconos e diaconisas eram
escolhidos para cuidar de assuntos quotidianos como a distribuição de comida.
Não havia um sacerdócio formal pois todos os crentes constituíam um
“sacerdócio sagrado” (1Pe 2.9), cujo sumo-sacerdote era Jesus exaltado. Seus
sacrifícios eram uma liturgia espiritual (Rm 12.1) que envolvia ofertas de louvor
e boas obras (Hb 13.15,16).
Com o tempo, começaram a fazer-se distinções entre os leigos (do grego
Laos, “povo”) e os clérigos ordenados e desenvolveu-se uma estratificação
dentro da Igreja. No final do 1º século, Clemente de Roma introduziu o termo
“leigos” e Clemente de Alexandria foi o primeiro a usar a palavra “clero” (tirada
da palavra grega kleros ou “destino”) para referir-se a indivíduos que exerciam
um ministério permanente na Igreja.
Durante os primeiros séculos, persistiu o ideal bíblico de sacerdócio dos
crentes. Tertuliano escreveu: “Não somos nós, leigos, também sacerdotes?”
Orígenes disse “Ou não sabeis que para vós também, ou seja, para toda a Igreja
de Deus e povo dos crentes, lhes foi dado o sacerdócio? "3 Mas a realidade era
muito diferente. Orígenes reclamou que os bispos das grandes cidades se
recusavam a permitir que “até mesmo os mais nobres dos discípulos de Jesus”
falassem. O próprio Orígenes criou uma controvérsia e tanto quando os bispos
da Palestina pediram que ele falasse em igrejas quando ainda não era ordenado.
Com o passar do tempo, a distância entre os dois grupos cresceu e o Concílio de
Cartago (398) acabou proibindo formalmente os leigos de ensinar na presença
de clérigos sem que estes últimos dessem seu consentimento.
Os diáconos ofereciam uma série de serviços nos primeiros séculos.
Distribuíam a ceia, ajudavam nos batismos, organizavam os lugares nas reuniões
e supervisionavam os bens da Igreja. Os diáconos também eram responsáveis
pelos enterros e encarregados dos cemitérios e ainda serviam de assistentes do
bispo. As diaconisas como Febe (Rm 16.1; 1Tm 3.11) tinham um papel vital na
Igreja primitiva. Elas auxiliavam no batismo das mulheres e ministravam às
mulheres enfermas. As Constituições Apostólicas (4º século) requeriam que as
diaconisas fossem virgens ou viúvas que tivessem se casado apenas uma vez e
que fossem ordenadas pelo bispo. Em geral, as viúvas ocupavam uma posição
semelhante à das diaconisas. Paulo aconselhou as mais jovens a se casarem
novamente (1Tm 5.14), enquanto as mais velhas (normalmente com mais de
sessenta anos) deveriam receber assistência da igreja, desde que fossem de bom
caráter e tivessem praticado boas obras. Orígenes declarou que em sua época a
“ordem das viúvas” era considerada uma parte da hierarquia eclesiástica. Elas
cuidavam dos enfermos e evangelizavam as mulheres pagãs.
O leitor (aquele que lia as Escrituras durante a liturgia) foi mencionado
pela primeira vez por Tertuliano. Na metade do século eles já eram considerados
uma ordem definida, normalmente o primeiro estágio na hierarquia clerical. De
acordo com a Ordem Apostólica da Igreja (de cerca do ano 300) “Uma pessoa
deve ser apontada para leitor depois de ter sido cuidadosamente provado... que
ela é capaz de interpretar de maneira clara, tendo em mente que assume o cargo
de um evangelista”. No 4º século, o leitor lia de outras partes das Escrituras, mas
os diáconos ou alto clero liam o evangelho. Além dos leitores, outras ordens do
baixo clero incluíam os acolitas, exorcistas e sub-diáconos. Na metade do 3º
século, de acordo com uma carta citada por Eusébio, os seguintes clérigos
estavam servindo em Roma: um bispo, quarenta e seis presbíteros, sete
diáconos, sete sub-diáconos, quarenta e dois acolitas e cinqüenta e dois
exorcistas, leitores e porteiros.
A palavra grega presbyteros, transliterada como “presbítero” significava
um homem de mais idade (Em inglês, a palavra “priest” — sacerdote — é
derivada de uma antiga contração saxônica de presbítero para prester ou
priester). No Novo Testamento, os presbíteros da igreja constituíam a liderança
coletiva de uma igreja local (At 11.30; 15.6; 1Tm 5.17). Pedro considerava-se
um presbítero (1Pe 5.1). Textos cristãos primitivos como a Epístola de Policarpo
indicam que havia diversos presbíteros encarregados de uma congregação. A
importante igreja de Alexandria era liderada por doze presbíteros.
No Novo Testamento, a palavra episcopos, traduzida como “bispo” ou
“supervisor” era simplesmente um outro termo para presbítero (At 20.17, 28; Fp
1.1). Clemente testificou que esse também era o caso em Roma no final do 1º
século. Porém, algumas décadas mais tarde em Antioquia, Inácio introduziu o
“monoepiscopado” que fazia distinção entre os presbíteros e um único “bispo”
que presidia sobre eles. Esse padrão de ministério dividido em três partes
(diáconos e presbíteros sob um único bispo numa cidade) já era prevalecente na
maioria das igrejas urbanas na metade do 2º século. Os presbíteros serviam
como uma junta de conselheiros para o bispo. Com o tempo, começaram a
formar-se sub-congregações (paróquias) além da própria igreja do bispo. O local
da igreja do bispo passou a ser conhecido como “catedral” pois era lá que ficava
sua cadeira (cathedra em latim). Nas diversas igrejas locais os presbíteros, que
começaram a ser chamados de “sacerdotes”, foram designados para “celebrar”
ou seja, exercer atividades como a Eucaristia (Ceia do Senhor).
O bispo gradativamente assumiu a maior parte das funções de pregação e
ensino na Igreja. Hipólito (3º século) relata que somente o bispo tinha o poder
de ordenar sacerdotes/presbíteros, apesar da congregação ter que ratificar as
escolhas que ele fazia. Em Alexandria, os doze presbíteros que lideravam ali
elegeram um novo bispo dentre pessoas de seu próprio nível. A aprovação da
congregação era necessária para a seleção de um novo bispo, mas era preciso
que houvesse a presença de três bispos para que um fosse ordenado. O bispo que
liderava uma província era conhecido como “bispo metropolitano”. Os mais
influentes eram aqueles da Cesaréia na Palestina, de Antioquia, Alexandria,
Roma e (depois de 330) Constantinopla.
A tradição Católica Romana mais recente afirma que Pedro foi o fundador
e primeiro bispo da Igreja em Roma. Lançando mão da autoridade escriturística
dada a ele em Mateus 16.18, a Igreja medieval considerava Pedro e seus
sucessores em Roma os “papas” (da palavra latina papa, “pai”) ou pontífices (do
latim Pontifex Maximus, o mais alto “construtor de pontes” ou sacerdote). A
mais antiga lista de bispos de Roma, compilada por Irineu, contém o nome de
Pedro e dois sucessores obscuros, Lino e Anacleto, bem como o primeiro bispo
claramente oficializado, Clemente (91-101 d.C.) que é conhecido através de uma
epístola aos coríntios.
Uma importante controvérsia sobre autoridade ocorreu quase no final do
2º século, quando Vítor I (189-98 d.C.), um africano que foi o primeiro bispo
claramente latino de Roma, ameaçou cortar a comunhão com os cristãos da Ásia
Menor por causa da controvérsia Quartodecimana. Os asiáticos seguiam a
prática judaica e ligavam a data da Páscoa com a saída do Egito, que caía no dia
quatorze (do latim, quartodeciman) de Nisan. Tendo em vista que essa data
vinha do calendário lunar, muitas vezes a Páscoa não era observada no domingo.
A Igreja romana insistia que, como Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da
semana, a Páscoa deveria sempre cair no domingo. Irineu de Lião, apesar de
concordar com a prática romana, interveio para conseguir que houvesse paz
entre as duas comunidades ao persuadir o pontífice romano a permitir que os
asiáticos continuassem com sua prática divergente.
Pelo fato dos “papas” nem sempre serem exemplos de virtude, muitas
pessoas questionavam sua autoridade. Hipólito, por exemplo, criticou duramente
o bispo Severino (198-217 d.C.) por ser desinstruído e avarento e acusou Calisto
(217-22) de erro teológico e disciplina frouxa:

Ele declarou que, se um bispo é culpado de qualquer pecado, mesmo um pecado


mortal, não deve ser deposto. Em seu tempo, homens que haviam se casado duas, três
vezes começaram a ser ordenados para o ofício clerical como bispos, sacerdotes e
diáconos. Porém, se também qualquer um sob as santas ordens viesse a se casar,
Calisto permitia que continuasse nas santas ordens como se não tivesse pecado.4
Hipólito também atacou Urbano I (222-30) e Pontiano (230-35), mas
então o imperador Maximino Trácio exilou tanto ele quanto Pontiano nas minas
da Sardenha. Sob condições desanimadoras os dois se reconciliaram e Hipólito
pediu aos que o apoiavam que aceitassem e reconhecessem a liderança da Igreja
romana. Outro conflito ocorreu durante o bispado de Cornélio (252-53). Ele era
a favor da readmissão daqueles que haviam se desviado durante a perseguição
de Décio, mas Novaciano e seus seguidores de linha dura da Espanha até a
Mesopotâmia opuseram-se violentamente à sua restauração.
Na metade do 3º século, Cipriano de Cartago apelou para o bispo de
Roma para confirmar algumas de suas decisões. Seu tratado Sobre a Unidade da
Igreja Universal (251) fala da “cadeira de Pedro” e enfatiza o papel do bispado
romano como ponto central da unidade da Igreja. Sua frase mais memorável é
“Não se pode ter a Deus como pai se não se tem a Igreja como mãe”. Ainda
assim, Cipriano discordava completamente do Bispo Estevão (254-57) na
questão do batismo. Este último reconhecia os batismos realizados pelos
novacianos e até mesmo pelos marcionitas, enquanto para Cipriano tais ritos
eram totalmente inválidos.

Os ataques pagãos e os apologistas cristãos


Romanos como Suetônio e Tácito viam o Cristianismo como uma
“superstição maldosa”. Os cristãos eram suspeitos de ateísmo, deslealdade,
imoralidade e canibalismo. Numa obra do 3º século intitulada O Otávio, numa
conversa entre um cristão e um pagão, o escritor norte-africano Minúcio Félix
coloca algumas dessas acusações na boca do porta-voz pagão, Cecílio:

Tendo juntado da ralé mais baixa do povo alguns homens ignorantes e mulheres
crédulas sempre prontos a acreditar em qualquer coisa, eles formaram uma turba de
conspiradores ímpios; em suas reuniões noturnas, jejuns solenes e refeições bárbaras o
laço de união entre eles não é nada de teor sagrado, mas sim o crime. É um povo que
fica à espreita na escuridão e aparta-se da luz, são silenciosos em público e falantes
pelos cantos; desprezam nossos templos e túmulos, insultam nossos deuses,
ridicularizam nossas cerimônias e, estando eles próprias precisando de piedade, se
permitidos, afirmaram apiedar-se de nossos sacerdotes; eles próprios seminus, com
desprezo recusam ofícios e dignidade.5

Ele acrescentou também: “Mais uma vez, dizer que um homem que sofreu
a pena capital por um crime e o madeiro da cruz são objetos de sua veneração, é
dar altares adequados para miseráveis abandonados e afirmar que eles adoram
aquilo que merecem adorar”.6 Até mesmo um homem culto como Fronto, tutor
de Marco Aurélio, afirmava que os cristãos eram culpados de imoralidade
durante seus banquetes. O satirista Luciano fez gozações dos cristãos ingênuos
que demonstravam generosidade até mesmo com charlatães.
Os ataques ponderados de Celso e Porfírio foram mais sérios. Celso, que
já foi chamado de “Voltaire do 2º século”, escreveu A Verdadeira Doutrina em
178 d.C. Apesar do original não ter sobrevivido, a maior parte do seu conteúdo
foi registrada em Contra Celsum de Orígenes, escrito aproximadamente setenta
anos depois. Celso ridicularizou o Deus do Antigo Testamento como sendo de
caráter antropomórfico blasfemo, enquanto seu próprio conceito de divindade
era de um ser desapaixonado e imutável que existia além da esfera do
pensamento humano. Para Celso, o ensinamento sobre a encarnação era
particularmente uma afronta. Ele não apenas negou que as profecias do Antigo
Testamento haviam se cumprido em Jesus, mas também repetiu a calúnia
(também encontrada no Talmude) de que Jesus era filho ilegítimo de um soldado
romano. Celso insistia que Jesus era, na realidade, um feiticeiro perverso que
havia aprendido seu ofício no Egito e que realizava milagres através da magia.
Quanto à ressurreição, as testemunhas desse acontecimento não eram confiáveis
e, de maneira alguma, corpos que haviam se decomposto podiam voltar a viver.
Celso também descreveu os cristãos como sendo um povo ignorante que fugia
de suas responsabilidades públicas.
Porfírio, que nasceu em Tiro em 233, era um crítico mais erudito. Alguns
acham possível que ele tenha sido um cristão na sua mocidade. Foi colega de
estudos de Orígenes de Alexandria e então mudou-se para Roma onde tornou-se
o principal seguidor de Plotino, o renomado neo-platonista. A obra de Porfírio
Contra os Cristãos, que o próprio Constantino ordenou que fosse queimada, foi
refutada por Eusébio, Jerônimo e Agostinho. Ele acusava Orígenes de fazer uso
de alegorias para disfarçar as dificuldades do Antigo Testamento e, assim como
os críticos liberais modernistas da Bíblia, afirmava que o livro de Daniel era
uma profecia escrita depois dos acontecimentos e apontava para aparentes
discrepâncias nos quatro evangelhos. Ele sugeriu que ou Jesus estava bêbado
quando repreendeu Pedro como sendo Satanás ou devia estar sonhando quando
deu as chaves do reino para uma pessoa como ele. Apesar de Jesus ter sido um
homem sábio, não deveria ter ficado apreensivo no Jardim do Getsêmani e nem
calado diante de seus acusadores. Se ele, de fato, havia ressuscitado dos mortos,
deveria ter se mostrado para Pilatos e para o sumo sacerdote ao invés de
aparecer para humildes mulheres. Porfírio também perguntou “O que foi feito
das inúmeras almas, que de modo algum podem ser culpadas, se aquele no qual
elas deveriam acreditar ainda não havia aparecido em meio a humanidade?”
Felizmente, a comunidade cristã primitiva possuía um grupo de instruídos
e articulados porta-vozes em favor da fé conhecidos como “Apologistas” (do
grego apologia, “defesa”). Estes, refutavam tanto os conceitos populares
errôneos como também as objeções ao Cristianismo apresentadas por
estudiosos.
De acordo com Eusébio, em 125 d.C., Quadrato e Aristides apresentaram
ao imperador Adriano alguns livros defendendo o Cristianismo. Em suas obras,
Aristides dividia a humanidade em quatro nações — bárbaros, gregos, judeus e
cristãos. Mostrava então a insensatez dos deuses adorados pelos bárbaros
(caldeus e egípcios) e pelos gregos, louvava os judeus por seu monoteísmo e
moralidade e argumentava em favor da superioridade do Cristianismo. Não se
sabe se Adriano leu essas apologias, mas ele mandou um documento para seu
governador Fundano instruindo-o a receber acusações contra os cristãos
somente se eles tivessem desobedecido alguma lei específica.
Sem dúvida, o mais importante apologista foi Justino Mártir. Nascido de
pais gentios na Samaria, Justino buscou a verdade através de diversas filosofias
antes de encontrá-la em Cristo. Ele é lembrado como o primeiro pensador
cristão que procurou reconciliar as afirmações da fé e da razão, o que pode ser
visto em suas duas apologias e em seu diálogo com Trifo, um judeu.
A extensa obra Primeira Apologia (cerca de 155 d.C.) de Justino,
dedicada ao imperador Antônio Pio e seus dois filhos adotivos, defendia a fé de
vários ataques pagãos. Ele argumentava que o Cristianismo não era uma
novidade, mas sim o cumprimento das profecias do Antigo Testamento, que
eram mais antigas que as filosofias gregas. As muitas citações dessas filosofias
revelavam seu pleno conhecimento de Eurípides, Xenofonte e especialmente
Platão. Aqui, Justino apresentou uma doutrina do Logos (a Palavra)
possibilitando que ele reconhecesse a existência da revelação parcial da verdade
em pensadores como Sócrates que havia vivido antes da vinda de Cristo, o
Logos completo. Todas as pessoas compartilhavam da Palavra “generativa”, mas
o Cristianismo era o único sistema de crença racional. Os mitos pagãos e as
religiões de mistério que se assemelhavam ao Cristianismo eram falsificações
demoníacas.
Trifo era um sobrevivente judeu da Guerra de Bar Koshba. Em algum
momento depois de 135 d.C. ele encontrou-se com Justino em Éfeso e o
questionou sobre a fé cristã. Justino almejava ganhar Trifo ao expor-lhe as
profecias do Antigo Testamento e citar prenúncios da cruz em objetos naturais.
Trifo ouviu com interesse mas objetou dizendo que não podia aceitar como
sendo o Messias um homem supostamente divino que havia sido crucificado
como um criminoso. Mais tarde, depois de mudar-se para Roma, Justino
escreveu uma obra mais curta, a Segunda Apologia para protestar contra um
caso específico de injustiça contra os cristãos naquela cidade. Por volta de 165,
ele e outras seis pessoas foram condenados por recusar-se a fazer sacrifícios
para o imperador, recebendo assim o nome de Justino “Mártir”.
Um de seus alunos foi o sírio Tatiano, que é mais conhecido por sua obra
Diatessaron, um tratado sobre os quatro evangelhos. Em Discurso aos Gregos
ele “disse adeus à arrogância dos romanos e ao contra-senso dos atenienses” ao
repetir histórias escandalosas sobre os filósofos gregos e denegrir as estátuas
eróticas e obras literárias dos gregos. Ele então contrastou tudo isso com a
pureza divina do Cristianismo.
A obra Súplica em Favor do Cristianismo de Atenágoras era dirigida a
Marco Aurélio e Cômodo no final dos anos 170. Ele refutava as acusações de
ateísmo mostrando que certos filósofos gregos também haviam rejeitado o
politeísmo em favor do monoteísmo. Sua menção explícita da Trindade é a mais
antiga referência conhecida à essa doutrina.
Por volta da mesma época, Teófilo de Antioquia escreveu um discurso
Para Autólico, no qual atacava o paganismo e o culto ao imperador e
argumentava em favor da prioridade de Moisés e dos profetas sobre os
pensadores gregos. Ele chegou até a elaborar uma cronologia detalhada do
mundo, datando a criação em 5.695 anos antes de seu tempo. A abordagem
filosófica desses apologistas podia ser observada na ênfase que davam a Deus e
ao seu Logos juntamente com um silêncio intencional sobre Jesus.
O já mencionado Minúcio Félix apresentou uma espirituosa defesa do
Cristianismo em Otávio. Sua abordagem era o uso de argumentos racionais ao
invés de citações das Escrituras. Um exemplo de seu método pode ser visto na
resposta de um cristão a seu companheiro de diálogo:

O fato de nosso número estar aumentando a cada dia não é prova de erro, mas sim
evidência de mérito; pois quando os homens vivem uma vida honrada, seus próprios
amigos permanecem constantes e a eles juntam-se outros. Por fim, reconhecemos uns
aos outros com facilidade, não por marcas externas como você imagina, mas pelo selo
da inocência e modéstia; amamos uns aos outros (o que o perturba), tendo em vista que
não sabemos como odiar; chamamos uns aos outros de irmãos (o que estimula sua má-
vontade), como se fôssemos filhos do mesmo Pai.7

Em alguns aspectos, essa obra assemelha-se à Apologia do grande


Tertuliano, cuja empolgante defesa do Cristianismo reverbera ainda hoje com
frases memoráveis. Apesar de ter sido treinado na retórica latina, Tertuliano era
rígido em sua posição contra a adaptação do Cristianismo à filosofia grega: “O
que, de fato, Atenas tem a ver com Jerusalém? O que a Academia tem a ver com
a Igreja? O que os hereges tem a ver com os cristãos? Longe daqui qualquer
tentativa de se produzir um Cristianismo estóico, platônico e dialético!” Foi
Tertuliano que disse que “o sangue dos mártires era a semente da Igreja”. Ele
declarou de maneira desafiadora: “Acabamos de surgir e já enchemos tudo o que
vocês tem — cidades, moradias, fortes, vilas, comércio e campos, tribos,
palácios, senado e fórum. Tudo o que deixamos para vocês foram os templos!” 8

O desafio do gnosticismo
O termo “gnosticismo” refere-se a vários movimentos religiosos dos
primeiros séculos de Cristianismo que afirmavam que a salvação era obtida
através de um “conhecimento” (grego gnosis) secreto da origem da pessoa.
Caracterizava-se por um dualismo cosmológico que colocava em oposição o
mundo espiritual e o material e fazia distinção entre o Deus transcendental e o
tolo criador do mundo material. A criação material era vista como sendo má,
porém havia “centelhas” de divindade encapsuladas no corpo de certos
indivíduos “espirituais” que estavam destinados à salvação. Esses indivíduos
não sabiam de seu conhecimento celeste, mas Deus mandou um “redentor” que
lhes trouxe a salvação na forma de um conhecimento secreto sobre sua origem e
seu destino. Uma vez despertados, os “espirituais” escapavam da prisão de seu
corpo na morte e passavam pelas regiões planetárias controladas por demônios a
fim de se reunirem com Deus.
Nos 2º e 3º séculos, escritores cristãos ortodoxos concentraram-se no
gnosticismo, acusando seus praticantes de imoralidade e retratando os diversos
grupos como sendo perversões heréticas. Apesar de alguns estudiosos afirmarem
que o gnosticismo existia antes do Cristianismo, na verdade apenas uma forma
rudimentar dessa crença existia no final do 1º século, possivelmente evidenciada
em vestígios de um Cristianismo docético (ver 1 João). Inácio de Antioquia
protestou firmemente contra os docetistas que negavam a encarnação de Cristo e
diziam que seu caráter humano e sofrimentos eram apenas aparências.
Mesmo que os Patriarcas da Igreja sejam unânimes ao considerar Simão
de Samaria como o primeiro gnóstico, o registro oficial mais antigo, Atos 8, o
descreve apenas como um mágico. De acordo com autores posteriores, Simão
também afirmava ser divino e ensinava que sua companheira, uma ex-prostituta,
era a reencarnação de Helena de Tróia. Seu sucessor, um outro samaritano
chamado Menander, lecionou em Antioquia algumas décadas mais tarde e disse
que aqueles que acreditassem nele não morreriam, mas sua própria morte
invalidou essa afirmação.
Satúrnio de Antioquia foi um discípulo de Menander. Ele ensinava que o
“Pai desconhecido” havia criado anjos que, por sua vez, tinham feito o mundo e
a humanidade. O homem era um ser impotente, como um verme, até que a
“centelha divina” o colocasse de pé. Cristo, o Salvador tinha apenas “aparência
semelhante” a de um homem e tinha vindo para destruir o Deus dos judeus, que
era um dos anjos criadores e para redimir aqueles que eram dotados das
centelhas divinas. Cerinto, um contemporâneo, afirmava que o mundo não tinha
sido feito por um Deus supremo, mas por um poder inferior, um “semi-ímpeto”
que desconhecia o Deus acima de tudo. Ele também dizia que “o Cristo” (um
poder divino superior) desceu sobre o Jesus humano na forma de pomba e
depois saiu dele antes da crucificação, tendo em vista que Cristo não podia
sofrer.
Um importante gnóstico foi Márcion, originário de Ponto na Ásia Menor e
que foi para Roma por volta de 140 d.C. Tamanho foi o seu sucesso em atrair
seguidores que ele organizou uma comunidade cristã à parte. Sua seita rival
ganhou convertidos de todos os cantos do império e constituiu um dos principais
perigos para a igreja ortodoxa no final do 2º século. Em certos aspectos, os
ensinamentos de Márcion diferiam do sistema gnóstico típico. Por ser incapaz
de conciliar o antropomorfismo do Antigo Testamento com o conceito filosófico
de Deus, ele concluiu que havia duas divindades — o Deus inferior do Antigo
Testamento e o Deus supremo do Novo Testamento. O primeiro destes, como
criador, apesar de não ser perverso, era incompetente e ignorante. O Antigo
Testamento era uma revelação válida para os judeus, mas não para os cristãos.
Ao invés de ter nascido de uma mulher, Jesus havia sido enviado pelo Pai e
aparecido repentinamente em Cafarnaum. Ele não experimentou o nascimento,
mas sofreu e morreu.
Basílides, que distinguiu-se em Alexandria durante o reinado de Adriano,
foi inspirado por Menander. De acordo com Irineu, ele ensinava que do Deus
supremo ou transcendente haviam “emanado” coisas como a Mente, o Logos, o
Entendimento, a Sabedoria e o Poder. Essas emanações, por sua vez, criaram
365 céus, sendo que o último e principal deles era o Deus dos judeus. Mesmo
como ser espiritual inferior, ele tentou atar a humanidade a ele. Para libertar a
humanidade, o Deus transcendente enviou sua Mente (no grego Nous) ao mundo
e ela habitou em Cristo, um homem que fazia milagres. Mas tendo em vista que
não podia sofrer, ele escapou da morte através de um ardil. Simão, o cirineu, não
apenas carregou a cruz mas também foi crucificado por engano, enquanto o
Jesus invisível estava por perto rindo.
Há paralelos impressionantes entre essa narrativa e dois tratados coptas
encontrados em Nag Hammadi no Alto Egito em 1945. Uma das mais
importantes descobertas já feitas de manuscritos relatando a história da Igreja
primitiva, esses tratados expandiram grandemente nossa fonte de conhecimento
sobre o gnosticismo.
Valentino, o mais famoso gnóstico, foi educado em Alexandria e dirigiu-
se para Roma por volta de 140 d.C. Depois de duas décadas de conflito com a
igreja de lá, ele mudou-se para Chipre. Vários de seus discípulos fundaram suas
próprias escolas gnósticas. Valentino argumentava que o mundo divino da
pleroma (“plenitude”) consistia em quatro dualidades juntamente com onze
pares de aeons (emanações) masculinas-femininas. A última dessas emanações
era Sofia (sabedoria), que encheu-se de curiosidade e desejo de saber o
Impossível. Sua revolta resultou na emergência do “semi-ímpeto” (identificado
com o Deus do Antigo Testamento) que criou o mundo e a humanidade. Sendo
que esta última era dividida em três classes: (1) a hílica, o material ou a carne
(criada do pó da terra); (2) um grupo intermediário, o psíquico ou “da alma”; e
(3) o pneumático, no qual foi implantado o elemento do espírito. Os hílicos eram
descrentes imersos na natureza e no universo físico. Os psíquicos eram cristãos
comuns que viviam pela fé. Os pneumáticos eram os verdadeiros gnósticos,
salvos pela consciência ou “conhecimento” da natureza divina de seu espírito.
Os estudiosos identificaram nada menos que cinco dos tratados Nag
Hammadi como sendo de Valenciano, apesar de nenhum deles afirmar
explicitamente sua autoria. É possível até que ele tenha sido o autor do famoso
Evangelho da Verdade. Os valencianos certamente foram os cristãos gnósticos
mais bem-sucedidos. Foram pioneiros nos comentários escriturísticos,
particularmente sobre o evangelho de João, que era seu favorito. O comentário
de Heracleon é a primeira obra conhecida desse tipo sobre qualquer livro do
Novo Testamento. Algumas de suas idéias chegaram até mesmo a influenciar
importantes pensadores como Clemente de Alexandria, mas evocaram fortes
refutações por parte de Irineu, Tertuliano e Orígenes.

O imperador Constantino e o Cristianismo legalizado


Para administrar o vasto império, Diocleciano instituiu numa estrutura
complexa chamada de Tetrarquia ou “governo dos quatro”. Ele reinava como
“Augusto” no Ocidente, assistido por seu “César”, Galério, enquanto
Maximiano governava no Ocidente com seu “César” Constâncio. Depois que
Diocleciano aposentou-se em 305, segui-se uma luta pelo poder exclusivo que
chegou a envolver sete rivais.
Constantino era filho de Constâncio e Helena, antiga empregada de um
bar. Quando seu pai, que havia se tornado Augusto do Ocidente, morreu em 306,
as tropas aclamaram o filho como seu líder. Apesar de Constantino ter buscado
ajuda divina contra seu inimigo Maxêncio voltando-se para o Cristianismo, é
muito pouco provável que ele o tenha feito para obter o favor dos cristãos, uma
vez que eles eram uma pequena minoria. Alguns vêem sua conversão como
sendo sincrética, pois o sol invictus foi reconhecido em seu arco triunfal em
Roma. Ele era de Ilíria, onde o culto ao sol era predominante e é possível que
isso o tenha predisposto ao monoteísmo. A maioria dos estudiosos, porém, está
convencida da sinceridade de Constantino, mesmo não tendo ele sido batizado
até pouco antes de sua morte.
A visão decisiva em 312 d.C. foi descrita por Lactâncio, um mestre cristão
de retórica e, mais tarde, tutor do filho do imperador:

Constantino foi orientado em um sonho a marcar o sinal celestial de Deus nos escudos
de seus soldados e, assim, juntar-se a batalha. Ele fez o que lhe foi ordenado e com a
letra X em forma de cruz com sua parte superior dobrada, ele fez a marca de Cristo nos
escudos [Este era o labarum ou monograma de Constantino, a combinação das duas
primeiras letras de Christos — o Chi e o Rho].9

Uma outra versão pode ser encontrada na obra A Vida de Constantino de


Eusébio: “Ele viu com seus próprios olhos o troféu que era uma cruz de luz nos
céus, acima do sol e, junto a ela, a inscrição „Conquiste por esta‟”. Seja como
for, ao seguir o sinal do céu ele derrotou as forças de Maxêncio na Batalha da
Ponte Mílvia, perto de Roma.
Em 313, Constantino e seu colega do Oriente, Licínio, concordaram em
conceder a tolerância aos cristãos e restituir as propriedades que haviam sido
confiscadas deles. Esse ato é normalmente conhecido como “Édito de Milão”,
apesar de haver uma número considerável de estudiosos que discutem o que
exatamente se passou em Milão. Constantino deu o Palácio de Latrão ao Bispo
de Roma, legalizou heranças que eram deixadas para as igrejas, começou a
construção de basílicas — as primeiras estruturas públicas a serem usadas como
igreja — e sustentou o clero, virgens e viúvas com fundos públicos. Sua mãe,
Helena, fez uma peregrinação à Palestina em 326 e, ao “descobrir” o lugar onde
Jesus havia nascido e onde tinha sido enterrado, ordenou a construção de igrejas
sobre eles e trouxe de volta muitas relíquias importantes.
Não tardou para que a cooperação com Licínio se desintegrasse, sendo
que este último expulsou cristãos de sua corte e do exército. Na guerra que se
seguiu, Constantino triunfou em Adrianópolis em 324 e tornou-se o único
imperador. Em 330 ele mudou a capital imperial para o leste, para a colônia
grega de Bizâncio no Bósforo e mudou o nome da cidade para Constantinopla.
As novas construções seguiram o modelo daquelas em Roma e incluíam um
palácio, um fórum e um hipódromo. Ao falecer em 337 ele foi sepultado na
Igreja dos Doze Apóstolos na nova capital. As igrejas ortodoxas orientais o tem
em tão alta consideração que até hoje referem-se a ele como o “Décimo Terceiro
Apóstolo”.
Para um mundo dividido por diferenças étnicas e de classes e repleto de
problemas econômicos e políticos, o Cristianismo ofereceu a visão da comunhão
em amor e paz nesta vida e esperança na vida eterna depois da morte. Mesmo
longe de ser infalíveis, quando fizeram o seu melhor, os cristãos demonstraram
em seu martírio uma vida de compaixão e fé que desafiava a morte. Apesar da
rivalidade das religiões de mistério, do desdém dos filósofos, dos preconceitos
do povo e da perseguição do Estado, os cristãos ganhavam cada vez mais
convertidos, incluindo homens de intelecto que poderiam defender a fé das
difamações e alertar a Igreja sobre o elitismo enganador das heresias como o
gnosticismo. No final, o Cristianismo triunfou na conversão do imperador
Constantino, um acontecimento de suma importância que trouxe benefícios
imediatos mas também problemas a longo prazo à medida que a Igreja e o
Estado foram tornando-se cada vez mais entrelaçados.

Capítulo 3 - O desenvolvimento doutrinário na Igreja


Ao mesmo tempo em que se defendia de ataques externos e heresias
insidiosas, a Igreja cristã também passou a definir suas crenças quanto às
Escrituras, a natureza de Cristo e a Divindade. Os cristãos tiveram que
esclarecer sua relação com o Judaísmo e seus escritos sagrados. Para realizar a
reflexão teológica, eles lançaram mão da filosofia grega e da retórica latina. A
fim de resolver questões doutrinárias e traçar a linha de separação entre
ortodoxia e heteroxia, realizaram-se diversos sínodos e concílios da Igreja, nos
quais considerações políticas, diferenças de personalidade e variações nas
tradições levaram a discussões acrimoniosas.
O desenvolvimento do cânon bíblico
O termo canon (grego: “régua” ou “vara de medida”) passou a ser usado
para a lista de livros reconhecidos pelos cristãos como textos divinamente
inspirados. A princípio tudo o que tinham eram as Escrituras Hebraicas. Estas
dividiam-se em três seções: a Lei (Torah) ou Pentateuco — os cinco livros de
Moisés, os Profetas (Nevi’im) e os Escritos (Ketuvim). Apesar de algumas
pessoas argumentarem que os judeus não reconheceram formalmente essa última
parte dos livros como sendo canônicos até 90 d.C., pesquisas mais recentes
tendem a localizar a data de sua aceitação oficial no 2º século antes de Cristo.
As Escrituras Hebraicas eram organizadas em vinte e dois ou vinte e
quatro livros que correspondem aos atuais trinta e nove livros do “Antigo
Testamento”, termo usado pelos cristãos. Eles foram escritos em rolos de couro,
sendo um dos exemplos mais antigos o Rolo de Isaías, encontrado entre os
famosos Papiros do Mar Morto da comunidade de Qumran. Outros escritos
judaicos incluem diversos livros e fragmentos conhecidos como os Apócrifos do
Antigo Testamento (aceitos pela Igreja Católica Romana como sendo canônicos)
e as Pseudo-epígrafos, obras que foram falsamente atribuídas a figuras famosas
como o livro de Enoque, que é citado em Judas 14. Na verdade, houve muita
discussão entre os Patriarcas da Igreja sobre a extensão do cânon do Antigo
Testamento. Alguns queriam incluir parte dos livros Apócrifos, outros
desejavam excluir Ester, pois nele Deus não é mencionado.
Com exceção de Jerônimo e Orígenes, os Patriarcas não eram fluentes em
hebraico. Conseqüentemente, para o período pós-apostólico, o Antigo
Testamento cristão era a Septuaginta, a tradução grega que havia sido preparada
em Alexandria no tempo de Ptolomeu, entre o 2º e o 3º séculos antes de Cristo.
Na verdade, a grande maioria das citações do Novo Testamento é originária da
Septuaginta e não do texto hebraico.
As Escrituras Cristãs surgiram gradualmente, ao longo de um extenso
período. Os Patriarcas apostólicos (final do 1º e começo do 2º século)
conheciam os evangelhos, Atos e algumas das epístolas. Clemente de Roma, por
exemplo, cita Hebreus e diversas epístolas paulinas, enquanto que as referências
de Inácio a sete das cartas de Paulo deixam implícito que já existia uma
coletânea delas. A carta de Policarpo aos filipenses (cerca de 110 d.C.)
menciona quinze livros. Certamente os Patriarcas apostólicos não tratavam essas
obras como Escrituras, da mesma forma como faziam com o Antigo Testamento,
mas, ainda assim, reconheciam que os livros eram imbuídos de autoridade
apostólica. De acordo com Justino (cerca de 155 d.C.), muitas igrejas estavam
usando os evangelhos juntamente com o Antigo Testamento em seus cultos.
Outra influência no desenvolvimento do cânon foi o movimento
montanista. Ele surgiu durante o 2º século na região ocidental da Ásia Menor,
onde Montano e duas mulheres — Prisca e Maximília — afirmaram ter a
inspiração direta do Espírito Santo e, num estado de êxtase frenético, fizeram
profecias. Os montanistas diziam ser totalmente possuídos pelo Espírito, que
estava iniciando uma nova era de revelação. Criam que a Nova Jerusalém
descrita em Apocalipse 21 se realizaria em breve na cidade de Pepuza, na Frígia.
Além disso, praticavam jejuns rigorosos, proibiam um segundo casamento para
viúvos, aceitavam de bom grado o martírio e apelavam para o evangelho de
João, para Hebreus e Apocalipse como justificativa para suas práticas rígidas.
Como reação, os críticos do montanismo questionavam a inspiração desses
livros.
Quando Márcion, um herege, rejeitou o Antigo Testamento mas foi o
primeiro a fazer uma lista formal dos livros cristãos (incluindo um evangelho
editado de Lucas e dez cartas paulinas), os Patriarcas da Igreja reagiram,
definindo seu próprio posicionamento em relação às Escrituras Hebraicas e os
primeiros escritos cristãos. Irineu (cerca de 180 d.C.) e outros, aceitavam
formalmente o Antigo Testamento, ao qual davam valor especial pelas profecias
cumpridas em Jesus. Ele também admitia abertamente que os textos apostólicos
eram Escrituras e foi o primeiro a usar os termos Antigo e Novo Testamento.
Reconhecia apenas os quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) como
sendo inspirados e argumentava que os evangelhos apócrifos, que àquela altura
já haviam proliferado, deveriam ser rejeitados.
Clemente de Alexandria (cerca de 200 d.C.) usava todos os livros do
Novo Testamento, exceto Tiago, 2 Pedro e 3 João. Assim como outros escritores
primitivos, ele também citou vários outros livros, mas os Patriarcas que se
seguiram fizeram cada vez menos citações dessas obras. No 4º século, alguns
manuscritos gregos do Novo Testamento ainda continham obras como a
Epístola de Barnabé, o Pastor de Hermas, 1 e 2 Clemente e o Didache. No 3º
século, Clemente, Orígenes e Hipólito de Roma concordaram na condição
canônica de vinte e dois livros. O Cânon Muratoriano, um texto em latim
possivelmente originado por volta do ano 200, apresenta uma lista de vinte e
quatro livros, deixando de fora Hebreus e 1 e 2 Pedro. O Novo Testamento
siríaco, o Peshitta (cerca de 400 d.C.), deixava de fora 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas
e Apocalipse.
Eusébio (cerca de 325 d.C.), outro escritor primitivo, mencionou três
categorias de escritos cristãos: (1) aqueles que eram universalmente aceitos
como Escrituras; (2) os livros que ainda eram questionados por algumas igrejas
e (3) os livros espúrios ou falsos. Vinte dos vinte e sete livros do Novo
Testamento encontravam-se no primeiro grupo. No segundo grupo estavam
Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse. Os outros livros
populares da época foram relegados à terceira categoria. Atanásio de Alexandria
listou todos os vinte e sete livros bem como os trinta e nove livros do Antigo
Testamento em suas Cartas Festais de 367, indicando assim que a maioria dos
cristãos tinha chegado a um consenso sobre o Novo Testamento.

A primeira cristologia
Um dos problemas mais espinhosos que teve que ser encarado pela Igreja
primitiva foi o desenvolvimento da doutrina de Cristo ou “cristologia” como é
chamada pelos teólogos. Nos evangelhos, Jesus refere-se a si mesmo por volta
de oitenta vezes como “Filho do Homem”. Essa frase, emprestada de Daniel,
expressa sua unidade com os seres humanos. Em outras partes do Novo
Testamento ela só é usada quatro vezes. Ao longo de todo o Novo Testamento,
Jesus também é chamado de “Filho de Deus”, um título com implicações
messiânicas e apocalípticas, como sugere o seu uso nos Papiros do Mar Morto.
Ele transmitia o relacionamento singular que Jesus tinha com Deus o Pai.
Durante seu ministério, como forma de respeito Jesus era chamado de “Senhor”.
Ele aceitava o título pois indicava que era o Senhor Deus (Sl 110, conforme
citado em Mc 12.35-37). Sua ressurreição demonstrou que ele era o “Senhor”
num sentido de exaltação (At 2.36; Fp 2.9-11) e isso foi reconhecido pelo uso
do termo aramaico Maranatha — “Vem, Senhor!” — na Igreja primitiva (1Co
16.22).
As aparições de Cristo depois de sua ressurreição não apenas
convenceram os cristãos primitivos de que ele havia ressuscitado dos mortos,
mas também que ele estava à direita de Deus. O apóstolo Paulo pregava que
Jesus era o Senhor crucificado, ressureto e exaltado. Suas epístolas repetem o
título Kyrios (Senhor) mais de 200 vezes e, como essa palavra grega foi usada
na Septuaginta para Yahweh, sua aplicação a Jesus transmite qualidades divinas
(Rm 10.13; 1Co 2.16).
Os evangelhos retrataram Jesus exercendo poderes divinos — curando os
enfermos, perdoando pecados e acalmando tempestades. Quando ele declarou
sua pré-existência e sua igualdade com o Pai, os judeus quase o apedrejaram por
blasfêmia (Jo 5.17,18; 8.58; 10.33-36). Dentre as passagens que afirmam
explicitamente sua divindade estão João 1.1; 1.18 (onde lê-se “único Deus”);
20.28; Romanos 9.5; Filipenses 2.6; Colossenses 1.19; Tito 2.13; Hebreus 1.8,9;
2 Pedro 1.1 e 1 João 5.20. Os cristãos primitivos compuseram hinos de glória a
Cristo, tendo como possíveis exemplos João 1.1-18; Filipenses 2.5-11;
Colossenses 1.15-20 e Apocalipse 5.9-14.
Essas declarações sobre Jesus Cristo no Novo Testamento deixaram por
conta dos teólogos a difícil tarefa de reconciliar sua humanidade e divindade.
Eles precisavam afirmar a unicidade de Deus sem negar o senhorio de Jesus e
afirmar o senhorio de Jesus sem diminuir a unicidade de Deus. Uma das
primeiras soluções foi sugerida pelos ebionitas, um grupo judaico-cristão do
final do 1º século. Eles viam Jesus essencialmente como um homem comum de
virtude extraordinária e pensavam que em seu batismo o Espírito Santo havia
descido sobre ele dando-lhe autoridade divina especial.
Soluções mais complexas, porém, foram propostas pelos líderes da igreja
latina e grega que costumam ser chamados de Patriarcas da Igreja.
Tradicionalmente eles são classificados como patriarcas “Pré-Nicenos” (antes de
325 d.C.) e “Pós-Nicenos” (depois de 325 d.C.).

Os patriarcas pré-nicenos
Os quatro patriarcas pré-nicenos mais importantes foram Irineu,
Clemente, Orígenes e Tertuliano.

Irineu
Irineu (cerca de 115-202 d.C.) foi um teólogo nascido em Esmirna (Ásia
Menor) e que mudou-se para a Gália onde se tornou bispo de Lião depois dos
martírios de 177. Um verdadeiro elo vivo com a era apostólica, ele havia sido
ensinado por Policarpo que, por sua vez, tinha conhecido o apóstolo João.
Na obra Demonstração ele fez uso de ensinamentos do Antigo
Testamento para apoiar doutrinas cristãs, mas de importância muito maior foi
sua obra Contra Heresias, uma refutação às idéias gnósticas. Contrário aos
gnósticos, ele afirmava a existência de um Deus que é também o Criador, a
bondade da criação e ressurreição física literal. Também insistia que a salvação
é obtida pela fé e não através de um conhecimento secreto. Em contraste com a
variedade absurda de revelações declaradas pelos gnósticos, Irineu reconhecia
apenas os quatro evangelhos e a unidade de doutrina encontrada na “Regra de
Fé” (regula fidei). Esse era o conteúdo principal dos ensinamentos que haviam
sido passados a uma sucessão de bispos desde os apóstolos e era muitas vezes
apresentado para os novos convertidos em preparação para o batismo como um
resumo das crenças. Lançando mão da doutrina de Paulo, ele apresentava Cristo
como o novo Adão que renova a criação e Maria como a nova Eva. Através da
salvação em Cristo os seres humanos tornam-se semelhantes a Deus e cumprem
seu destino original como portadores da imagem de Deus.

Clemente de Alexandria
Clemente de Alexandria (160-215 d.C.) foi um mestre que expressou a
doutrina cristã nos termos da filosofia grega. Nascido em Atenas, filho de pais
pagãos, depois de sua conversão ele dirigiu a escola de catequese em
Alexandria, a qual treinava crentes que ainda não haviam recebido o batismo.
Durante a perseguição de Severo (202), ele foi forçado a exilar-se na Capadócia,
onde veio a falecer.
Além de alguns ensaios menores, Clemente produziu a importante trilogia
Exortação aos Gregos, Instrutor e Miscelâneas. Na segunda destas obras ele
apresentava as regras para um comportamento apropriado e insistia que os
cristãos não deveriam enfeitar-se com jóias mas sim dar suas riquezas para os
pobres. Também afirmava que os homens não deveriam se barbear pois Deus
havia dado a eles a barba assim como dera às mulheres seus cachos de cabelo.
O terceiro livro é constituído de pensamentos não-sistemáticos e
aleatórios baseados em textos clássicos e criados para orientar o cristão maduro
rumo à perfeição através da verdadeira gnosis. Ao invés de encarar a filosofia
como uma inimiga, Clemente usou-a como aliada e mostrou que alguns cristãos
“temem a filosofia grega como as crianças temem os ogros — tem medo de ser
levados embora por ela. Se nossa fé é tal que pode ser destruída pela força do
argumento, então que seja destruída”.1

Orígenes
Orígenes (cerca de 185-251 d.C.) foi o principal estudioso da Igreja
primitiva. Nascido numa família de cristãos devotos em Alexandria, na
adolescência ele teve que começar a sustentar os familiares pois seu pai havia
sido martirizado. De acordo com Eusébio, em seu zelo juvenil, Orígenes tomou
Mateus 19.12 muito ao pé da letra e fez-se um eunuco “por amor ao reino dos
céus”. Renomado como adepto de um “estilo de vida simples”, ele não tinha
sapatos, possuía apenas um manto, jejuava regularmente e dormia no chão.
Como Alexandria era o mais importante centro de estudos do mundo
antigo, Orígenes estudou com o famoso neo-platonista Amônio Saccas e aos
dezoito anos de idade sucedeu Clemente como chefe da escola de catequese. Por
causa de sua reputação brilhante, Orígenes viajava muito, falava em várias
cidades e sua audiência incluía até mesmo a mãe do imperador Alexandre
Severo. Enquanto visitava Cesaréia, na Palestina, foi ordenado por seu bispo,
para o grande desprazer do bispo de Alexandria que se recusou a permitir que
ele voltasse para a escola de catequese. Assim, à partir de 231 ele passou a
morar em Cesaréia.
Orígenes, autor de mais de duas mil obras, foi um dos escritores mais
prolíficos da antigüidade. Ele era sustentando por um cristão rico chamado
Ambrósio, que deu a ele um grupo de setes estenógrafos. Primeiro grande crítico
textual da Bíblia, ele trabalhou durante quarenta anos na obra Hexapla, seis
colunas lado a lado de versões em grego e hebraico do Antigo Testamento.
Também produziu comentários sobre quase todos os livros da Bíblia, sendo os
mais conhecidos aqueles sobre Salmos e o evangelho de João.
Influenciado por Filo, um estudioso judeu do 1º século e por Clemente de
Alexandria, Orígenes defendia uma interpretação alegórica da Bíblia. Essa
metodologia olhava além do texto literal em busca de significados morais e
espirituais. Ele interpretava as Escrituras com equações simbólicas: “prata” é o
mesmo que “palavra”; “nuvens”- “santo”; “linho”- “castidade”; “garrafa”-
“corpo”; e assim por diante. A abordagem alegórica das Escrituras foi o método
preferido da Igreja medieval.
Apenas uma pequena parte da produção literária de Orígenes sobreviveu.
Sua obra teológica mais importante é Sobre os Primeiros Princípios, em que
usou conceitos platônicos para explicar a “geração eterna” do Filho vindo do Pai
como um processo de emanação, assim como o pensamento surge da mente e a
claridade vem da luz. Orígenes via o Filho como “um segundo Deus” que era
menor que o próprio Deus, mas superior a todos os seres criados. Assim, devia-
se orar apenas para o Pai e não para o Filho. Essa visão de relacionamento do
Filho com o Pai — subordinacionismo — era amplamente aceita nos 2º e 3º
séculos.
Orígenes foi o primeiro a interpretar a morte expiatória de Cristo como o
resgate de toda a humanidade das garras do diabo. Ele não considerava eterna a
participação do Filho na natureza humana, mas sim temporária. Na crucificação,
foi a alma humana de Cristo que sofreu, não o Logos divino, ou Verbo, que era
incapaz de sofrer. Ele também enfatizava o livre arbítrio do homem e a bondade
da criação e aceitava a idéia platônica de pré-existência das almas. Ele negava a
permanência do corpo ressurreto, vendo-o como um estágio no caminho
percorrido pelo crente rumo à transformação em espírito puro. Também sugeria
a possibilidade de que o amor de Deus mais cedo ou mais tarde traria a salvação
de todos, inclusive de Satanás e seus demônios.
O próprio Orígenes morreu durante a perseguição de Décio, mas seu
principal aluno, Gregório Taumaturgo (“Operador de Maravilhas”),
desempenhou um importante papel no estabelecimento do Cristianismo na
Capadócia, que mais tarde tornou-se um centro do pensamento cristão. Mesmo
controversas, as idéias de Orígenes foram uma influência predominante durante
séculos. Porém, graças ao agressivo caçador de hereges, Epifânio, bispo de
Salamis em Chipre (cerca de 315-403 d.C.), instalou-se uma reação contra
muitos de seus pontos de vista. Até mesmo Jerônimo que, a princípio era seu
admirador, acabou tornando-se um de seus críticos mais articulados. Os
ensinamentos de Orígenes foram condenados como heréticos pelo 5º Concílio
Ecumênico em Constantinopla (553), apesar de muitos estudiosos modernos
questionarem se aquelas eram, de fato, suas idéias ou idéias de seus
entusiásticos seguidores, os origenistas.
Tendo em vista que os primeiros centros do Cristianismo encontravam-se
na metade oriental do império — Alexandria, Antioquia, Éfeso e Constantinopla
— quase todos os Patriarcas da Igreja primitiva escreviam em grego. Até mesmo
a grande maioria de judeus-cristãos considerava o grego e não o latim como sua
língua e foi só em 189 d.C. que escolheu-se o primeiro bispo latino para Roma,
Vítor I. A linhagem lingüística também teve continuidade no norte da África. No
Egito e em Cirenaica falava-se grego enquanto na Tripolitânia e nas regiões
mais a oeste falava-se latim.

Tertuliano
Assim, o primeiro Patriarca “latino” proeminente foi Tertuliano (cerca de
155-215 d.C.), originário de Cartago. Filho de um centurião, ele estudou Direito
e é possível que tenha trabalhado em Roma. Converteu-se quando na meia-idade
e tornou-se imediatamente um fervoroso defensor do Cristianismo. Escrevia em
grego bem como em sua língua mãe, latim e conhecia filosofia, literatura,
história, lógica e psicologia. De sua enorme produção literária, trinta e uma
obras sobreviveram. Costuma-se dividi-las em três categorias — apologéticas,
controversas e moral-ascéticas.
A Apologia, uma defesa erudita da fé diante da perseguição mortal, é uma
das obras mais impressionantes desse tipo. Em Os Espetáculos, Tertuliano
denunciava os populares jogos de gladiadores e alegrava-se com a perspectiva
de que um dia, os oficiais romanos que condenavam cristãos a esses jogos,
seriam eles próprios envoltos pelo fogo do inferno. Ele urgia os cristãos a evitar
qualquer ocupação que envolvesse comprometimento com o paganismo,
incluindo serviços como professores, soldados ou oficiais públicos.
Apesar de estar pessoalmente familiarizado com os judeus, Tertuliano era
um crítico duro do Judaísmo. Em Contra os Judeus, ele declarava que Deus
havia passado por eles e que a recepção que os gentios ofereceram a Jesus
significava o fim do Judaísmo como fé. Ele era hostil à maior parte das
tentativas de se adaptar o Cristianismo à filosofia grega, porém suas obras
revelam a influência do estoicismo. Foi desse sistema pré-cristão que ele tirou a
idéia de que assim como o corpo de uma pessoa deriva do corpo de seus pais, da
mesma forma a alma é derivada de suas almas materiais, um ensinamento
conhecido como traducianismo. Foi o primeiro teólogo a articular uma doutrina
sobre o pecado original que esclarecia como a natureza pecaminosa de Adão
havia sido transmitida.
Dentre suas obras controversas está Contra Praxeas, um dos tratados mais
claros sobre a doutrina da Trindade. Ao que parece, ele foi a primeira pessoa a
usar o termo em si e expressar a idéia de três pessoas em uma única substância.
Ao afirmar a realidade física da encarnação em Contra Marcion e Sobre a
Carne de Cristo, Tertuliano refutou aqueles hereges que viam a humanidade de
Cristo apenas como uma aparência. Seu amor pelos paradoxos refletiu-se numa
famosa declaração sobre o evangelho de Jesus Cristo: “É imediatamente crível
pois é tolo. Ele foi enterrado e levantou-se novamente. Isto é certo pois é
impossível”.2
Mais tarde em sua vida, Tertualino dedicou mais atenção às questões
morais. Ele gostava do montanismo e por isso criticou a Igreja por ser
espiritualmente negligente. Apesar de em tempos anteriores de sua carreira ter
aconselhado pessoas a fugirem da perseguição, passou a rejeitar tal atitude. Em
Para Sua Esposa ele retratava as maravilhosas bênçãos do casamento cristão,
contrastando-as com os problemas de um casamento misto, no qual um marido
pagão criava dificuldades para uma esposa cristã. Na obra Sobre Monogamia,
Tertuliano seguia a linha montanista de oposição a um novo casamento depois
da morte do cônjuge. Em O Culto Feminino, juntava-se a outros puritanos na
história da Igreja e condenava as modas femininas por sua falta de modéstia.
Pedia às mulheres cristãs que escondessem sua beleza ao invés de realçá-la com
jóias, cosméticos e tintas e recomendava que tanto mulheres casadas quanto
não-casadas usassem véus.

Os patriarcas gregos pós-nicenos


Os patriarcas pós-nicenos são tradicionalmente divididos de acordo com a
língua na qual escreviam — se era grego ou latim. Dentre os mais notáveis
gregos estão Eusébio, Atanásio, os capadócios e João Crisóstomo.

Eusébio
Eusébio (cerca de 260-339 d.C.), bispo de Cesaréia na Palestina e
prolífico escritor, foi o “Pai da História da Igreja”. Apesar de ser participante
ativo das controvérsias de sua época, também era um estudioso da Bíblia,
apologista contra o paganismo e intérprete dos deveres do imperador. Mesmo
tendo publicado obras importantes em todas essas áreas, sua reputação vem da
História Eclesiástica, que delineia a história da Igreja desde a era apostólica até
o seu tempo. Com suas citações extensas de escritos anteriores, ela é uma rica
fonte de informações. Eusébio também foi uma figura de destaque nos debates
cristológicos.
Atanásio
Atanásio (cerca de 300-373 d.C.) foi ordenado diácono pelo bispo de
Alexandria, acompanhando-o como secretário ao Concílio de Nicéia e
sucedendo-o em 328. Atanásio com freqüência encontrava-se em conflito com o
imperador romano, os arianos e outras facções no Egito, o que o levou a ser
banido em cinco ocasiões e a passar mais de dezesseis anos no exílio entre 335 e
366. Suas obras encaixam-se em três categorias — teológicas, polêmicas e
ascéticas. Dentre as mais importantes estão Sobre a Encarnação, Apologia
Contra os Arianos e uma biografia de Antônio, o fundador do monasticismo.
Supunha-se que o Credo de Atanásio tinha sido escrito pelo grande bispo de
Alexandria, mas estudiosos descobriram que havia se originado no século 5º e
era uma compilação de várias fontes ortodoxas.

Os patriarcas da Capadócia
Os patriarcas da Capadócia foram os mais vigorosos defensores da
ortodoxia nicena contra os arianos no final do 4º século. Esse trio de teólogos —
Basílio de Cesaréia, seu irmão Gregório de Nissa e seu amigo Gregório de
Nazianzo — vinha da Capadócia, nos dias de hoje localizada na região leste da
Turquia. Basílio de Cesaréia (330-79), freqüentemente chamado de Basílio o
Grande, foi educado nas melhores escolas de sua época. Depois de uma breve
carreira secular, tornou-se um monge e através de seus escritos sobre a
organização monástica influenciou grandemente seu desenvolvimento tanto nas
igrejas do Oriente quanto do Ocidente. Depois de algum tempo, voltou para o
ministério público e em 370 aceitou o cargo de bispo de sua cidade natal, a
principal cidade da Capadócia. Lá, defendeu a ortodoxia nicena contra os
arianos e aqueles de questionavam a divindade do Espírito Santo.
Seu irmão mais novo, Gregório de Nissa (cerca de 335-95), era um
professor de retórica que em 372 havia sido designado bispo na cidade de Nissa.
Desse ponto em diante esteve continuamente envolvido na política eclesiástica e
nos conflitos com os arianos. No 2º Concílio Ecumênico em Constantinopla em
381 ele foi um dos defensores que mais falou em favor da posição de Nicéia. Na
obra Contra Eunômio, Gregório afirmava tanto a plena divindade quanto a plena
humanidade de Cristo, mas falava do corpo passivo de Cristo misturando-se
com sua divindade ativa, como uma gota de vinagre no oceano.
Gregório de Nazianzo (cerca de 329-90), um dos mais importantes
teólogos da igreja oriental, era filho do bispo de Nazianzo na Capadócia e foi
educado nos principais centros acadêmicos da região oriental do Império
Romano. Quando era aluno em Atenas, tornou-se amigo de Basílio e essa
ligação levou mais tarde à garantia de sua posição como bispo da vila de
Sasima. Em 379 Gregório tornou-se bispo de Constantinopla e lutou
vigorosamente em favor da ortodoxia nicena no concílio lá realizado. Todavia,
críticos o acusaram de ter assumido o cargo anterior sem nunca ter visitado sua
diocese, fazendo com que sua indicação para bispo na capital imperial violasse a
lei canônica. Sendo alguém que não gostava de controvérsias pessoais, Gregório
renunciou em 381 e voltou para sua casa em Nazianzo.
Ele foi um escritor brilhante que compôs milhares de poesias e compilou
uma coleção de suas próprias cartas. Seus Discursos Teológicos (380), que
incluem um eloqüente sermão do funeral de Basílio, estão entre os melhores
exemplos da retórica grega. Ele influenciou a refutação do apolinarianismo
(negação da plena humanidade de Cristo), a defesa da doutrina da Trindade e a
explanação da divindade do Espírito Santo.
João Crisóstomo
João Crisóstomo, o “Boca de Ouro” (cerca de 347-407), foi o mais
eloqüente pregador da Igreja primitiva. Nasceu num lar abastado em Antioquia
na Síria e estudou Direito com o grande retórico Libânio. Depois João desistiu
da carreira legal e tornou-se um monge, mas logo voltou à Antioquia e começou
a servir à igreja. Durante as décadas seguintes ele adquiriu a reputação de
pregador excepcional sendo alguns de seus melhores sermões dirigidos à
reforma moral da igreja e da cidade. Seus sermões eram tão poderosos que por
vezes a congregação os interrompia com aplausos. Numa ocasião, quando
repreendeu o público por bater palmas, o povo aplaudiu sua repreensão.
De todos os Patriarcas, apenas Agostinho se equipara a João Crisóstomo
no que diz respeito à quantidade de obras que sobreviveram. Existem mais de
seiscentos sermões, cada um dos quais deve ter precisado de pelo menos uma
hora para ser pregado. Aqueles que eram sobre os diversos livros da Bíblia
conferiram-lhe a reputação de ser talvez o maior de todos os pregadores
expositivos. Seus sermões eram marcados por uma profunda compreensão
espiritual, pela interpretação literal dos textos e uma aplicação prática imediata.
Infelizmente, suas duras críticas às práticas judaicas foram usadas por anti-
semitas da Idade Média e, desde então, têm exercido um impacto negativo sobre
as relações entre judeus e cristãos.
Por causa de sua fama, o imperador pressionou João Crisóstomo a tornar-
se bispo de Constantinopla em 398. Porém, ao contrário de muitos pregadores
conhecidos de tempos mais recentes, ele denunciava destemidamente a
imoralidade que prevalecia na vida pública bem como na Igreja e dava um bom
exemplo vivendo modestamente. Ao invés de realizar banquetes luxuosos, ele
comia sozinho. Interrompeu a construção de uma elegante residência para o
bispo e vendeu os caros pilares de mármore para ajudar a manter hospitais. Seus
rígidos padrões e críticas sinceras sobre a imperatriz Eudósia, a quem ele
chamou de “Jezabel”, causaram sua perseguição, tentativas de assassinato e
várias vezes fizeram com que fosse banido da cidade. Ele morreu no exílio em
407, mas seus restos mortais foram levados de volta para Constantinopla com
honrarias em 438. O filho de Eudósia (o imperador Teodósio II) arrependeu-se
publicamente dos erros de seus pais.

Os patriarcas latinos pós-nicenos


Os três patriarcas latinos que mais se distinguiram foram Jerônimo,
Ambrósio e Agostinho e, juntamente com Gregório o Grande, são conhecidos
como os “Quatro Doutores da Igreja Ocidental”.

Jerônimo
Jerônimo (cerca de 347-420 d.C.) foi um líder monástico, criador de
controvérsias e, acima de tudo, o tradutor da Vulgata, a versão oficial da Bíblia
em latim. Nascido de pais abastados na Dalmácia, foi educado em Roma, Trier e
Aquiléia, perto de Trieste. Inspirado pelo ideal monástico, Jerônimo tornou-se
um eremita e foi morar na Síria onde aprendeu hebraico com a ajuda de um
judeu cristão. Sua dedicação aos estudos era tanta que ele levou sua biblioteca
consigo para o deserto, mas então teve um sonho perturbador em que Jesus
questionava sua afirmação de que era um cristão dizendo: “Estás mentindo, és
um ciceroniano e não um cristão, pois onde estiver o seu tesouro, lá estará o teu
coração”. Durante os quinze anos que se seguiram, Jerônimo se recusou a
estudar a literatura clássica.
Apesar disso, sua reputação como aprendiz o levou a ser indicado para
secretário do bispo Damásio de Roma. Enquanto estava lá, Jerônimo
escandalizou seus colegas ao liderar estudos bíblicos para mulheres ricas,
ensinado-lhes grego e hebraico e urgindo-as a adotar um modo de vida ascético.
Depois da morte de Damásio em 384, ele deixou Roma na companhia de sua
amiga Paula e da filha desta, Eustáquia. Depois de visitar mosteiros no Egito,
eles se assentaram em Belém onde Jerônimo fundou um mosteiro e Paula um
convento. Para isso inspirou-se em seus amigos Rufino e Melânia que criaram
uma fundação monástica dupla semelhante no Monte das Oliveiras em
Jerusalém.
Jerônimo era um escritor de eficiência excepcional. Ele traduziu
importantes obras de Eusébio, Orígenes e Pacômio, o fundador do monasticismo
cenobita (comunal). Também compilou Sobre a Vida de Homens Ilustres, que
continha biografias de escritores pagãos e cristãos (inclusive ele próprio) e
produziu comentários cultos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento.
Em 382, Damásio pediu a Jerônimo que revisasse a antiga versão latina da
Bíblia e o resultado foi uma tradução mais precisa baseada nas línguas originais
da Bíblia. Muitos criticaram essa nova versão “Vulgata” (língua do povo),
inclusive Agostinho que acreditava na inspiração da tradução para o grego do
Antigo Testamento, a Septuaginta. Jerônimo chamou seus críticos de “asnos de
duas pernas” que preferiam beber de “córregos lamacentos do que da fonte
cristalina do grego original”.
Apesar da Vulgata não ter sido aceita imediatamente, mais tarde tornou-se
a versão preferida pela Igreja medieval e algumas das traduções de Jerônimo
afetaram o rumo da teologia católica. Sua tradução do particípio passivo grego
kecharitomene em Lucas 1.28 como a frase gratia plena (“cheia de graça”),
deixou implícito que Maria não era simplesmente favorecida com graça, mas
que tinha uma abundância de graça para oferecer a outros. Na época da
Reforma, Lutero descobriu que Jerônimo havia traduzido incorretamente a
palavra para “arrependimento” (metanoia) como “penitência”. Em 1546 o
Concílio de Trento decretou que a Vulgata seria a Bíblia oficial da Igreja
Católica Romana.
Jerônimo tratava com dureza aqueles que discordavam dele. Certa vez ele
denunciou Elvídio que sugeriu que Maria havia dado à luz outros filhos pois os
evangelhos falam dos “irmãos e irmãs” de Jesus. Jerônimo, por outro lado,
argumentava em favor da “virgindade perpétua” de Maria e dizia que eles eram
“primos”. Ele também atacou Joviniano — ex-monge que afirmava que a
virgindade não era superior ao casamento — dizendo que a virgindade era o
valor mais alto e que ele tinha esperanças de que o casamento gerasse filhos que
pudessem se apegar à virgindade. Em outras obras polêmicas defendeu a
veneração dos mártires, o monasticismo e o celibato clerical e escreveu contra o
pelagianismo.

Ambrósio
Ambrósio (cerca de 339-97), nascido em Trier, era filho de um oficial
imperial. Depois de praticar Direito por algum tempo, tornou-se governador
provincial da região norte da Itália. Em 374, após restaurar a ordem durante
amargos conflitos sobre o bispado de Milão, subitamente acabou sendo ele
mesmo a escolha popular para o cargo. Em oito dias ele foi batizado, ordenado e
empossado como novo bispo de Milão. Ambrósio tratou de colocar padrões
elevados para seus sacerdotes, exaltou a Virgem Maria e persuadiu muitas
mulheres a fazer os votos de castidade. Também escreveu hinos que
influenciaram a liturgia da Igreja medieval.
Ambrósio era um estudioso impressionante tanto do latim quanto do
grego, um bom orador e hábil administrador. Não apenas lutou contra a
restauração do paganismo como também foi um vigoroso defensor da ortodoxia
nicena. Num episódio dramático em 386, Ambrósio resistiu à ordem de
Valenciano de entregar sua catedral para os arianos declarando que “o
imperador na verdade está dentro da Igreja e não acima dela”. Partindo do
pressuposto de que a Igreja tinha supremacia sobre o Estado, acrescentou
enfaticamente: “são os bispos que devem julgar os leigos e não o contrário”. Em
390, quando o imperador Teodósio reprimiu brutalmente uma rebelião matando
sete mil pessoas, Ambrósio o excomungou e forçou-o a arrepender-se
publicamente. Na realidade, sua defesa dos direitos da Igreja lançou as bases
para a relação entre Igreja e Estado na Europa ocidental durante a Idade Média.

O maior de todos os patriarcas latinos


O maior de todos os patriarcas latinos foi o norte-africano Agostinho
(354-430). Nascido em Tagaste, na Numídia, estudou em Madaura e Cartago.
Apesar de seu pai só ter se tornado cristão bem mais tarde, sua devota mãe,
Mônica, orava constantemente pelo filho obstinado. Em sua obra autobiográfica,
Confissões, Agostinho conta sua juventude rebelde e as tentativas de escapar da
influência materna. Inspirado pelos escritos de Cícero, estudou filosofia e
juntou-se então aos maniqueus. Durante nove anos foi um “ouvinte” da seita,
mas desligou-se dela em 382, depois que um dos líderes não conseguiu
responder suas perguntas. Também viveu com uma amante durante treze anos,
sendo que esta lhe deu um filho, mas diante dos insistentes pedidos de sua mãe,
Agostinho deixou essa mulher para casar-se com outra mais respeitável. Quando
o casamento foi adiado, ele descobriu que não podia se conter e juntou-se com
outra concubina. Foi esse apetite sexual compulsivo que levou Agostinho a
proferir a infame prece: “Senhor, dá-me continência e castidade, mas não
agora”.
Em 382 saiu de casa para trabalhar em Roma e três anos depois tornou-se
professor na corte imperial de Milão. Lá, foi influenciado por Ambrósio, cuja
habilidade de fazer uso das idéias filosóficas gregas em suas pregações e
escritos bem como seus eloqüentes sermões chamaram a atenção do jovem
estudioso e o levaram a repensar a fé que havia rejeitado. Em Confissões ele
descreve como foi convertido. Num dia de verão em 386, ele pensou ter ouvido
uma voz de criança dizendo “Toma e lê, toma e lê”. Então virou-se e viu uma
Bíblia aberta em Romanos 13.13,14: “Andemos dignamente, como em pleno
dia, não em orgias e bebedices, não em impudícias e dissoluções, não em
contendas e ciúmes; revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a
carne, no tocante às suas concupiscências”. Naquele mesmo instante ele aceitou
a Cristo como seu Salvador e Senhor e a devota Mônica, que morreu logo
depois, viu suas orações serem respondidas.
Depois desse acontecimento dramático, Agostinho renunciou seu cargo de
professor e entrou em reclusão a fim de preparar-se para o batismo. Em 387
Ambrósio o batizou e ele voltou para Tagaste para começar uma comunidade
monástica. Durante uma visita a cidade de Hipona em 391, o povo o persuadiu a
aceitar a ordenação pelo bispo local, um grego que tinha dificuldade de pregar
em latim. O homem idoso deu a ele a tarefa de pregar e, quando da morte do
sacerdote grego quatro anos depois, Agostinho foi nomeado bispo de Hipona.
Ele trabalhou lá o resto de sua vida e destacou-se como pastor, pregador,
escritor, administrador e líder da igreja africana.
Quando os godos germânicos tomaram Roma em 410, o impacto foi
sentido em todo o império, sendo que os pagãos culpavam os cristãos pelo
desastre. Para refutar essas acusações, Agostinho escreveu sua obra-prima A
Cidade de Deus. Nela, argumentava que há duas “cidades” ou comunidades — a
Cidade do Homem e a Cidade de Deus. A primeira é temporal e transitória; a
segunda é espiritual e eterna. Também rejeitou o pré-milenialismo (também
conhecido como quiliasmo, da palavra grega para “um milhar”) da Igreja
primitiva e equiparou o reino de Cristo com seus santos a toda a história da
Igreja, negando assim a idéia de um reino futuro literal de Deus na terra. Foi o
primeiro teólogo ortodoxo a ensinar o amilenialismo.
A teologia de Agostinho tomou forma durante sua luta com três
importantes heresias: o maniqueísmo (388-405), o donatismo (394-411) e o
pelagianismo (412-30). O maniqueísmo era um religião sincrética e de
mentalidade missionária fundada por Mani (216-77). Ele cresceu entre os
elcasitas, uma comunidade judaico-cristã quase desconhecida na Mesopotâmia.
Aos vinte e quatro anos de idade, Mani recebeu uma revelação que o levou a
rejeitar sua tradição e aceitar uma forma de gnosticismo. Fazendo uso de
elementos de fontes babilônias, budistas, judaicas e cristãs, Mani ensinava que
ele era o sucessor de Platão, Buda, Zoroastro, Jesus e Paulo. O conceito
fundamental de seus sistema dualista era a existência de dois princípios que não
haviam sido criados: a Luz (Bondade) e as Trevas (Mal). O mundo criado é o
campo de batalha entre esses opostos. O conhecimento, o espírito e a alma são
manifestações da Luz, mas a ignorância, a matéria e o corpo revelam as Trevas.
Os fiéis são redimidos através da consciência dessa luta e ao adotar um estilo de
vida de abstinência de carne, vinho, sexo e trabalho. O próprio Mani viajou para
a Índia e Pérsia, onde a princípio foi aceito, mas por fim, seus inimigos na corte
persa acabaram arranjando para que fosse executado.
Em Contra os Maniqueus, Agostinho afirmava que o mal na verdade era
originário da vontade humana (isto é, do pecado original) e que não era um
princípio eterno. Deus é o único Criador e sustentador de todas as coisas, o mal
é a distorção de algo bom que a pessoa deveria ter. O mal físico vem da
imperfeição humana e o mal moral do exercício do livre arbítrio. Cristo
concedeu a vitória sobre ambas as formas de mal.
O donatismo, assim chamado por causa de Donato, o líder do grupo, foi
um movimento separatista no norte da África que insistia na “igreja pura”. Em
331, os donatistas censuraram Ceciliano, bispo de Cartago por ter sido
consagrado por aqueles que haviam negado as Escrituras durante a perseguição
de Diocleciano. Declararam que os sacramentos administrados por um clero tão
“impuro” não tinham valor e, conseqüentemente, deixaram o corpo principal da
igreja e começaram seu grupo separatista. Antes disso, em 314 o Concílio de
Arles tinha condenado os donatistas por sua prática do “rebatismo” e
classificado-os como causadores de cismas. Constantino tomou partido da linha
tradicional ou Igreja “católica”. Os donatistas, porém, recusaram sujeitar-se a ele
perguntado: “O que o imperador tem a ver com a Igreja?” No conflito que se
seguiu com as forças imperais, muitos donatistas foram mortos e alguns de seus
membros mais extremistas, os circuncélios, aterrorizaram as igrejas católicas do
norte da África.
Apesar de Agostinho a princípio ter defendido uma postura leniente em
relação aos donatistas, a violência da luta o levou a tomar a ofensiva. Ele
afirmou a universalidade da Igreja e comentou com sarcasmo: “Os sapos ficam
no seu pântano dizendo „somos os únicos cristãos!‟” A Igreja neste mundo vai
ser sempre um “corpo misto” e Cristo, que é o cabeça — e não os líderes
humanos — garante a validade dos sacramentos. Assim, a insistência dos
donatistas sobre o rebatismo é herética e eles merecem ser punidos. O
comissário imperial adotou a posição de Agostinho e tornou o movimento ilegal,
confiscando suas propriedades e multando aqueles que se recusassem a voltar
para a Igreja católica. Os argumentos de Agostinho, baseados em Lucas 14.23
(forçando as pessoas a compareceram ao banquete do senhor) tiveram um efeito
trágico quando a Igreja medieval fez uso deles para justificar a perseguição aos
hereges.
Mais tarde em sua vida, Agostinho dedicou seu tempo à questão
pelagiana. Pelágio era um monge britânico leigo que lecionava em Roma no
final do 4º século. Ele e seu principal discípulo, o combativo Celéstio, fugiram
para o norte da África antes da chegada dos godos e entraram numa longa
discussão com Agostinho. Pelágio foi então para a Palestina e desapareceu da
História, mas o debate literário continuou com outros pelagianos. Eles
ensinavam que o homem pode, através de seu próprio esforço, tomar os
primeiros passos rumo à salvação. Apesar do pecado de Adão ser um mau
exemplo, ele foi pessoal e não foi passado adiante para toda a raça. A natureza
humana dada por Deus permite que se escolha o bem e a obediência a Deus bem
como o recebimento da graça de Deus que é livremente oferecida ajuda as
pessoas a entrar no céu. Os pelagianos afirmavam que “Deus nos ajuda quando
escolhemos o bem”.
Em resposta a isso, Agostinho desenvolveu sua teologia da predestinação,
pecado original e graça. Ele ressaltava a predestinação de Deus, mas não de
forma que esta tornasse as pessoas isentas da responsabilidade por seus pecados.
Romanos 5.12 revela que toda a humanidade pecou através de Adão e que esse
pecado foi transmitido como acontece com uma herança legal. Os indivíduos só
podem ser salvos de sua situação de desespero pela graça de Deus. A fé em
Cristo infunde o amor de Deus na alma humana e o batismo remove a culpa do
pecado original.
Em 416 o Concílio de Cartago condenou a doutrina de Pelágio, mas a
guerra de palavras entre Agostinho e Juliano de Eclano, o líder pelagiano, não
cessou. O pelagianismo foi novamente condenado no Concílio de Éfeso em 431,
mas persistiu na França ao longo de todo o século.
Agostinho também ofereceu outras contribuições ao pensamento cristão.
Na obra Sobre a Doutrina Cristã, ele apresentou os assuntos que se deve saber a
fim de compreender a Bíblia. Um século depois, Cassiodoro usou essas idéias
para formular as “sete artes” que constituíram a fundação do ensino durante a
idade Média — gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, música e
astronomia. Além disso, o antigo libertino veio a crer que o único propósito
legítimo do sexo era a procriação. Esse princípio seria usado para justificar a
oposição da Igreja católica ao uso de contraceptivos, pois estes supostamente
frustravam o propósito natural das relações sexuais.
Apesar da maioria dos líderes cristãos antes de Agostinho terem sido
pacifistas, ele ensinava que uma pessoa deve servir no exército e ainda assim
seguir ao Senhor. Sua teoria da “guerra justa”, que ainda hoje é amplamente
aceita, consistia em dar um toque cristão às regras de guerra desenvolvidas por
pensadores clássicos como Platão e Cícero. A guerra deve ser feita para que se
possa restaurar a paz e obter-se justiça. Deve ocorrer sempre sob a direção de
um governante legítimo e ser motivada pelo amor cristão. Deve ser um último
recurso, depois que já se tentou de tudo sem sucesso. A guerra deve visar
objetivos limitados e não a destruição total do inimigo. Deve ser conduzida de
maneira honrosa e proporcional, sem violência desnecessária, massacres e
saques. A imunidade dos não-combatentes deve ser preservada.
Em 429, a tribo germânica conhecida como os Vândalos, entrou na África
e sitiou Hipona no ano seguinte. Foi quando Agostinho faleceu, desesperado por
achar que todo o trabalho de sua vida havia sido em vão, mas ele não podia estar
mais errado. Poucos indivíduos afetaram a Igreja e a civilização ocidental como
esse bispo de uma cidade quase desconhecida do norte da África.

As primeiras controvérsias teológicas

Monarquianismo
A controvérsia monarquiana, que se desenvolveu por volta de 200 d.C.,
foi a abertura de dois séculos de discussões sobre a natureza da Divindade. Ela
enfatizava a unidade e a singularidade de Deus às custas das identidades
separadas de Pai, Filho e Espírito Santo. O monarquianismo dinâmico era uma
forma de adocionismo, idéia de que o Pai havia adotado o homem Jesus e lhe
concedido poder divino. Um dos principais proponentes dessa idéia foi Paulo de
Samosata, bispo de Antioquia (260-68). Ele objetava a adoração de Cristo e
ensinava que Jesus não era o Filho de Deus que desceu dos céus, mas sim um
homem inspirado “como nós, porém melhor em todos os sentidos, tendo em
vista que ele era do Espírito Santo”. Paulo foi um oficial de Zenóbia, rainha de
Palmira que controlava a Antioquia. Foi condenado nos sínodos de Antioquia
em 264 e 268.
Enquanto a atração do monarquianismo dinâmico limitou-se a
intelectuais, o mesmo não aconteceu com a outra vertente desse movimento, o
monarquianismo modalista. Ele afirmava que Deus havia se revelado como Pai,
Filho e Espírito Santo somente como uma sucessão temporária de formas ou
ações e não como partes eternas da Divindade. Outro nome dado a essa idéia era
Sabelianismo. Sabélio, um libanês, foi condenado em Roma (por volta de 220)
por ensinar que Deus era um ser único com três energias que apareceram na
História como Pai, Filho e Espírito Santo com o propósito de criação e salvação.
Tendo em vista que os modalistas preservavam a divindade plena de Cristo, essa
doutrina foi amplamente aceita, até mesmo pelos bispos romanos Severino e
Calisto. Ela atraía especialmente como resposta para o temor do homem comum
em relação ao politeísmo.

Arianismo
Arianismo — a controvérsia cristológica da qual o debate sobre
monarquianismo foi predecessor imediato — começou com um sacerdote de
Alexandria chamado Ário (cerca de 260-336) que declarou que o Filho não era
eterno, não era igual ao Pai, “não existia antes de nascer” e “não tem nada
próprio de Deus no que diz respeito à substância. Pois não é igual a ele nem
mesmo em essência”. Cristo era uma criatura que havia alcançado o favor
divino. As idéias de Ário ganharam muitos defensores, principalmente Eusébio,
bispo de Nicomédia, uma importante cidade próxima a Bizâncio. Ário era um
astuto divulgador que expressava suas idéias para o povo em forma de verso.
Chegou até mesmo a ganhar setecentas “virgens santas” para o seu lado da
discussão.
Em 325, um concílio local dos bispos de Antioquia condenou Ário. Mais
tarde naquele mesmo ano Constantino convocou o primeiro “concílio
ecumênico” em Nicéia, do qual participaram duzentos e cinqüenta bispos. O
concílio rejeitou a posição de Ário e afirmou que Cristo era “o verdadeiro Deus
do verdadeiro Deus, originado e não criado e uma substância (homoousios) com
o Pai”. A palavra chave homoousios foi sugerida por Constantino, influenciado
por seu conselheiro Ósio de Córdoba. Em 328, porém, Eusébio de Nicomédia e
Teógenes de Nicéia, que haviam sido exilados por se recusarem a condenar
Ário, receberam de volta seu bispado e o próprio Ário foi restaurado no Sínodo
de Tiro em 335.
Depois do seu falecimento em 337, Constantino foi sucedido por seus três
filhos — Constantino II (falecido em 340), Constante (falecido em 350) e
Constâncio (falecido em 361). Constantino II controlou o Ocidente; Constante,
o Ilírico e a África e Constantino o Oriente. Apesar de seus irmãos terem
aderido à ortodoxia nicena, Constâncio era um ariano convicto. Constantino II
ordenou a restauração de Atanásio que tinha sido exilado de Alexandria, um
gesto que foi fortemente apoiado pelo bispo Júlio de Roma.
Todavia, noventa e sete bispos reunidos em Antioquia rejeitaram a
declaração de Atanásio e promulgaram o Credo de Antioquia, que definia a
Trindade como três individualidades (hypostases) unidas por harmonia mútua
em uma única vontade. Para resolver as diferenças entre Ocidente e Oriente,
realizou-se uma conferência em Sárdica (nos dias de hoje Sofia, na Bulgária) em
342, mas os bispos do Oriente foram embora, condenando Atanásio com
veemência. Júlio e os bispos do Ocidente responderam de modo igualmente
emotivo.
Em 350 Constante foi morto numa insurreição e três anos mais tarde,
depois de ter se tornado único imperador, Constâncio permitiu a restauração do
Arianismo. Assim, três décadas depois do Concílio de Nicéia o mundo
“despertou com um gemido e viu que era ariano”, como disse Jerônimo.
Atanásio condenou o imperador dizendo que ele era “pior que Acabe” e
“precursor do anti-Cristo”.
Numa outra tentativa de resolver a disputa, um concílio em Sirmínio, em
356, esboçou uma formulação credal que, esperava-se, fosse aceitável a ambas
as partes. Essa declaração que mais tarde ficou conhecida como “a Blasfêmia de
Sirmínio” afirmava que o Filho era subordinado ao Pai e omitia o uso da
palavras homoousios. Depois da morte de Constâncio e do breve reinado de
Juliano, o Apóstata (361-363) e Valêncio no Oriente (364-78), a ortodoxia
nicena voltou a predominar em Constantinopla e a defesa obstinada de Atanásio
em favor da igualdade de Cristo com o Pai foi recompensada.

Apolinarianismo
Um esforço considerável feito para se opor ao Arianismo foi o
apolinarianismo, mas este acabou sendo apenas um sério desvio da ortodoxia.
Apolinário, bispo de Laodicéia (cerca de 315-92) e seguidor de Atanásio, era
filho de um conhecido retórico de Alexandria. Quando Juliano proibiu os
cristãos de ensinar os clássicos, Apolinário e seu pai desafiaram o imperador ao
rescrever textos bíblicos em formas literárias clássicas.
Em oposição aos arianos, Apolinário argumentava que, se a fusão do
divino com o humano em Cristo havia de fato ocorrido, ele devia ter um corpo
desprovido de personalidade humana. Como ele dizia, os seres humanos são
feitos de corpo, alma e espírito (mente) e esse último elemento é o que constitui
o cerne intelectual da personalidade. No caso de Cristo, o espírito foi substituído
pelo Logos (intelecto divino), pois era impossível duas personalidades se
fundirem tornando-se uma. Assim, ao mesmo tempo em que possuía Divindade
perfeita, faltava-lhe a humanidade completa.
Os apolinarianos argumentavam que somente um Filho que não é de
natureza semelhante aos filhos de Adão poderia redimi-los. Através de Cristo, o
intelecto humano é colocado sob o controle do intelecto divino (ou mente) e
recebe nova vida. Depois disso, a carne humana é santificada por sua união com
o corpo de Cristo e o novo intelecto dentro do cristão junta-se com Cristo e
compartilha da destruição da tendência ao pecado. Em resumo, o
apolinarianismo negava a plena humanidade de Cristo.
Esse ensinamento foi questionado com vigor pelos patriarcas da
Capadócia e pela Igreja de Antioquia. Gregório de Nazianzo, por exemplo,
objetou dizendo: “Aquilo que não foi suposto existir não pode ser restaurado; é
aquilo que foi unido com Deus que é salvo”. O apolinarianismo foi rejeitado nos
sínodos de Roma e Antioquia antes de ser finalmente condenado no 2º Concílio
Ecumênico de Constantinopla em 381. Influenciado pelos capadócios, que
opunham-se a todos os esforços de se negar a plena divindade do Filho ou do
Espírito Santo, o concílio também afirmou que em Deus há três hypostases
(substâncias individuais) e apenas uma ousia (essência).
Essa solução já havia sido aceita pela igreja do Ocidente, que definiu a
Divindade como uma Trindade de três pessoas em uma substância. Além disso,
o concílio reafirmou o “Credo de Nicéia” em 325 e ao mesmo tempo
acrescentou uma cláusula sobre a divindade do Espírito Santo e é essa versão da
confissão que é recitada nas igrejas nos dias de hoje.
Teólogos em Antioquia, porém, resistiram ao apolinarianismo
contendendo que o divino e o humano eram unidos em Cristo através de uma
harmonia ou propósito mas que não havia nenhuma unidade de essência por
assim dizer. A humanidade de Cristo era completa e Maria era mãe somente de
sua natureza humana. Isso levou a um outro conflito cristológico entre
Antioquia e Alexandria que girou em torno das idéias de Nestório, bispo de
Constantinopla entre 428 e 431.
Nestorianismo
Nestório, que havia sido educado em Antioquia, criticava abertamente o
uso do termo Theotokos (Mãe de Deus) para Maria e sugeriu em seu lugar
Christotokos (Mãe de Cristo) . Ele também enfatizava a completa humanidade,
bem como a divindade de Cristo. Ele declarou: “mantenho as naturezas
separadas, mas uno a adoração”. Isso levou a uma grave controvérsia na qual ele
foi acusado de negar a unidade dos dois aspectos de Cristo. No processo de
explicar sua doutrina, Nestório atacou os expoentes da cristologia alexandrina e
Cirilo, bispo de Alexandria (375-444), reagiu acusando-o de abuso.
A disputa acrimoniosa entre os dois centros religiosos resultou de
rivalidades teológicas, ambições pessoais e diferenças regionais. Os mestres de
Antioquia seguiam uma abordagem literal-histórica da exegese, ao contrário do
método alegórico dos alexandrinos. Os teólogos de Antioquia ensinavam que o
Logos eterno havia entrado no homem Jesus, enquanto que a escola alexandrina
afirmava que o Logos havia se tornado a pessoa de Jesus. Os de Antioquia
citavam Mateus 3.16 enquanto que os de Alexandria apelavam para João 1.14.
Cirilo e Nestório tornaram-se inimigos amargos. Porém, o astuto e
inescrupuloso Cirilo era o melhor político. Ele persuadiu o bispo Celestino a
convocar um sínodo em Roma para condenar Nestório e fez o mesmo num
sínodo em Alexandria. Mas a controvérsia se espalhou e em 431 o imperador
Teodósio convocou o 3º Concílio Ecumênico, em Éfeso, para avaliar as
acusações feitas por Cirilo. Temeroso de que não receberia uma audiência justa
no Concílio, Nestório se recusou a comparecer. A sessão foi aberta antes que os
representantes de Antioquia chegassem e Cirilo convenceu os 198 bispos a
condenar Nestório como herege. Quando os quarenta e três bispos de Antioquia
chegaram, realizaram uma sessão posterior na qual repudiaram a cristologia de
Cirilo. Diante do impasse, o imperador depôs os dois bispos, mas Cirilo com sua
astúcia conseguiu ser restaurado enquanto Nestório foi exilado num mosteiro e,
mais tarde, num oásis no deserto egípcio.
Os estudiosos reconhecem agora que Nestório não havia ensinado a
doutrina que mais tarde veio a ser chamada de nestorianismo, que afirmava que
o Jesus humano e o Cristo divino eram duas pessoas distintas. Porém, seus
seguidores adotaram essa idéia. A igreja que fundaram espalhou-se no sentido
leste para a Mesopotâmia, Pérsia, Ásia Central e até mesmo China.

Monofisismo
Uma outra controvérsia cristológica girou em torno de Eutiques (378-
454), líder de um grande mosteiro em Constantinopla. Ele afirmava que Jesus
tinha uma única natureza, uma natureza humana deificada, de modo que todos
os atributos humanos de Cristo pertenciam a um único ser, o Logos humanizado.
Depois da união da natureza humana com a divina, no momento da encarnação,
Cristo possuía apenas uma natureza. Conhecido como monofisismo, esse
ensinamento diz que a humanidade do Senhor foi totalmente absorvida por sua
divindade numa monófise (uma natureza).
Acusado de heresia e condenado por um sínodo em Constantinopla,
Eutiques, que era o superior de centenas de monges e uma pessoa de grande
influência na cidade, persuadiu Teodósio a convocar o chamado “Latrocínio” de
Éfeso (449) onde suas ortodoxia foi reconhecida. Mas quando o imperador
faleceu em 450, a situação de Eutiques sofreu uma reversão. A nova imperatriz
Pulquéria e seu marido Marciano apoiavam a posição do bispo Leão de Roma
que afirmou em sua “Epístola Dogmática” ou Tomo (449) que até mesmo depois
da união na encarnação, as duas naturezas de Cristo preservaram suas
características individuais. Isso aconteceu de modo tal que as qualidades podiam
ser comunicadas de uma para a outra, sendo que aquilo que era verdadeiro sobre
a natureza humana podia ser atribuído à natureza divina e vice-versa.
Para tratar do assunto, em 451 Marciano convocou o 4º Concílio
Ecumênico na Calcedônia, uma cidade próxima de Constantinopla. Quinhentos
e vinte bispos compareceram representando tanto as igrejas do Oriente quanto
do Ocidente e o concílio reverteu a decisão do “Latrocínio” de Éfeso. Além
disso, condenou a idéia nestoriana de separação de Cristo em duas naturezas e a
união feita por Eutiques de duas em uma. Tomando por base o Tomo de Leão, o
concílio concluiu que havia duas naturezas em Cristo — uma natureza perfeita
humana e uma natureza perfeita divina. A famosa definição calcedônia deixou
claro que em Cristo há “duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis,
inseparáveis”. E ainda:

Portanto, seguindo os santos Patriarcas, em uma única voz cremos em um só Senhor,


Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos; Deus
de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado,
consubstancial ao Pai.

Outras importantes decisões do concílio incluíram a afirmação do título


Theotokos; uma declaração de que os arcebispos de Roma, Constantinopla,
Alexandria e Antioquia seriam conhecidos como patriarcas; e a elevação de
Constantinopla na Igreja ao segundo lugar logo depois de Roma. A Igreja de
Roma, porém, rejeitou esse último ponto.
As definições teológicas dos quatro concílios ecumênicos (Nicéia,
Constantinopla, Éfeso e Calcedônia) foram aceitas pela maioria das
comunidades cristãs, mas nem todos concordaram com a formulação
cristológica da Calcedônia. Bispos do Egito objetaram o ensinamento das duas
naturezas: “Preferimos morrer nas mãos do imperador e do concílio do que em
casa”. E de fato, um patriarca favorável à cristologia calcedônia foi linchado por
uma multidão de cristãos em Alexandria.
Dentre os grupos monofisitas estavam as igrejas cópticas no Egito e na
Etiópia, a Igreja Ortodoxa Armênia (que, no século seguinte, rejeitou a decisão
do concílio sobre as “duas naturezas”), os jacobitas na região leste da Síria e a
Igreja de São Tomé, no sul da Índia. Isso explica porque a maioria dos cristãos
no Oriente Médio hoje em dia é monofisita.

Apesar do cânon final do Novo Testamento não ter sido estabelecido até o
4º século, no final do 2º século já existia comum acordo sobre oitenta porcento
do Novo Testamento. Suas apresentações vívidas de um Salvador ressurreto,
que foi tanto humano quanto divino, forçou os teólogos a usar conceitos
filosóficos gregos e terminologia legal latina em seus esforços de expressar a
natureza de Jesus Cristo e a Trindade. Durante o 4º século, as controvérsias
doutrinárias giraram em torno do relacionamento do Filho com o Pai; no 5º
século, concentraram-se na natureza do Filho. Apesar das vergonhosas
contendas entre os bispos e dos mal-entendidos e interpretações erradas das
idéias daqueles que diferiam, quatro concílios conseguiram expressar o mistério
divino em termos credais que satisfizeram a grande maioria dos cristãos —
católicos, ortodoxos e protestantes. Questões eclesiásticas, litúrgicas e políticas
mais corriqueiras, porém, continuam a perturbar e dividir os cristãos.

Capítulo 4 - A Igreja depois de Constantino


A conversão de Constantino permitiu que o Cristianismo “triunfasse”, isto
é, se tornasse a religião predominante do Império Romano até o final do 4º
século. Mas esse desenvolvimento trouxe consigo complicações, já que a Igreja
e o Estado tornaram-se cada vez mais entretecidos. Os esforços da hierarquia
eclesiástica de diáconos, sacerdotes, bispos e papas no sentido de manter tanto a
disciplina doutrinária quanto moral levaram a conflitos de personalidade e lutas
políticas dentro da Igreja. Porém, o reconhecimento oficial e o apoio financeiro
imperial tornaram possível a construção de igrejas e catedrais ricamente
decoradas.

Igreja e Estado
Como foi mencionado anteriormente, em 337 d.C. o império foi dividido
entre os três filhos de Constantino. Essa sucessão não foi tranqüila e só depois
de um longo período de guerra civil é que Constâncio, um defensor da posição
ariana, emergiu como único imperador em 350. Tomando para si o controle da
Igreja como “bispo dos bispos” (episcopus episcoporum) ele exilou líderes
como Atanásio, Hilário de Poitier e Libério, bispo de Roma.
Juliano, a quem os cristãos apelidaram de “o Apóstata”, filho de um meio-
irmão de Constâncio, foi seu sucessor no trono em 361 e sob seu incentivo
ocorreu o último e fútil ressurgimento do paganismo. Apesar de ser um leitor
ordenado, Juliano voltou-se contra o Cristianismo por causa da conduta
vergonhosa de Constâncio, que mandou executar seu pai e outros parentes e
tornou-se adepto do neo-platonismo. Talvez para evitar que os cristãos se
declarassem sucessores do Judaísmo, Juliano ordenou a reconstrução do Templo
em Jerusalém (A essa altura, os cristãos interpretavam a destruição do Templo
em 70 d.C. como o cumprimento da profecia em Daniel 9.27 e como julgamento
sobre os judeus por rejeitarem Jesus como seu Messias). Mas o projeto foi
frustrado por misteriosos incêndios ocorridos no local e que escritores cristãos
depois disso retrataram como sendo intervenção direta de Deus.
Juliano também desafiou os cristãos de outras maneiras. Decretou que só
aqueles que acreditavam nos textos clássicos poderiam ensiná-los, levando com
isso muitos cristãos a perderem seu cargo de educadores. Escreveu um texto
polêmico intitulado Contra os Galileus, que condenava os cristãos por
abandonarem as tradições judaicas e negava as afirmações do Novo Testamento
sobre o cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Perguntou
cinicamente por que havia tanta descrença se Cristo havia de fato realizado
todos os milagres descritos nos evangelhos. Desgostoso com a rápida
proliferação de relíquias dos mártires, ele protestou: “Vocês encheram o mundo
de túmulos e sepulcros”. Porém, Juliano expressava admiração pela preocupação
social dos cristãos: “Esses galileus ímpios alimentam não apenas os seus
próprios pobres mas os nossos também; nossos pobres não recebem nosso
cuidado”. Ele atribuiu o crescimento do Cristianismo às suas práticas caridosas.
Em 363, aos trinta e dois anos de idade o imperador lançou uma
campanha militar contra os sassanianos persas e durante uma batalha foi morto
por uma lança enfiada em seu abdômen. Os críticos cristãos consideraram sua
morte um julgamento apropriado, tendo em vista que ele havia buscado
orientação dos deuses pagãos através da leitura das entranhas de animais. Assim
também, gerações seguintes interpretaram Juliano como ícone na luta contra o
paganismo e da vitória final do Cristianismo, fazendo surgir inúmeras lendas a
seu respeito. A mais conhecida era sobre suas supostas últimas palavras: “Vós
conquistastes, ó galileu”. Outra história popular falava de um cristão que havia
sido martirizado por Juliano. Quando estava morrendo, seus atormentadores
perguntaram “Onde está o carpinteiro agora?” e ele respondeu: “Fazendo um
caixão para o seu imperador”.1
Um ano depois de sua morte, o reino foi novamente dividido. Valenciano
I (364-75) governou o império oriental que tinha Milão, Trier e Esmirna como
principais centros e no Ocidente, seu irmão mais novo Valêncio reinou em
Constantinopla. Valêncio foi o primeiro imperador a ter que lidar com as tribos
germânicas que avançavam sobre o império. O imperador seguinte, Teodósio I
(379-95), um espanhol e última pessoa a governador um império sem divisões, é
muitas vezes chamado de “o Grande”. Ele recuperou o controle tanto do leste
quanto do oeste rapidamente e em 381 negou aos arianos o direito de congregar
e ordenou que entregassem suas igrejas para os ortodoxos, dando assim o golpe
mortal no movimento dentro do império. Também convocou os bispos do
Oriente para um concílio em Constantinopla, que, conforme foi explicado no
capítulo 3, reafirmou os atos do Concílio de Nicéia, condenou o
apolinarianismo, reformulou o Credo de Nicéia e deu à “Nova Roma”, posição
semelhante à de Roma na Itália.
Teodósio prosseguiu eliminando as práticas pagãs, autorizando a
destruição dos seus santuários e apropriando-se dos seus bens para distribuí-lo
às igrejas. Encorajadas pela atitude imperial, multidões violentas destruíram
lugares sagrados de adoração pagã como o famoso Serapeu no Egito. Porém,
quando Teodósio massacrou brutalmente sete mil cidadãos de Tessalônica como
represália por causa de uma pequena insurreição, o bispo Ambrósio de Milão o
compeliu a fazer penitência pública.
Em 395 ele foi sucedido por seus dois filhos jovens, Honório no Ocidente
e Arcádio no Oriente. Muito do poder do Ocidente estava nas mãos de Estílico,
um vândalo germânico que era comandante das tropas de Honório. Honório foi
ameaçado pelos visigodos germânicos e buscou refúgio na cidade de Ravena, na
região nordeste da Itália. Sua irmã Gala Plácida (392-45) desempenhou então
um papel notável nos assuntos de Estado e da Igreja. Primeiro, ela foi feita
refém pelo líder visigodo Alarico e casou-se com o irmão dele. Depois da morte
de seu marido, ela passou pela corte de Honório para fugir das lutas políticas em
andamento na Itália e então mudou-se para Constantinopla. Quando Honório
morreu em 323, ela voltou para Ravena com seu filho pequeno Valenciano III e,
na realidade, governou em seu nome. Uma fervorosa defensora da ortodoxia,
opôs-se aos que apoiavam o pelagianismo e maniqueismo e foi uma importante
figura nos conflitos religiosos da época. Até hoje, seu túmulo em Ravena é
famoso por seus magníficos mosaicos.
Durante o século 5º, o oeste sofreu mais ataques das tribos “bárbaras” —
tanto dos hunos asiáticos como de vários grupos germânicos. A cidade de Roma,
propriamente, foi saqueada duas vezes no decorrer do século. O império do
Ocidente havia decaído tanto em termos de importância política que um chefe
germânico chamado Odovacer depôs o imperador em Ravena em 476, uma data
que mais tarde foi considerada a “queda de Roma”, mas na verdade esse
acontecimento passou relativamente despercebido na época.
No Oriente, o acontecimento mais importante depois da morte de
Teodósio foi a controvérsia engendrada pelas pregações severas de João
Crisóstomo durante seu breve mandato como bispo de Constantinopla (398-
403). Ele não apenas criticou outros bispos mas até mesmo a própria imperatriz.
Sob o governo de Teodósio II (408-50), foram construídos em Constantinopla os
famosos muros de Teodósio e foi compilado um grande código de leis. Ele
também envolveu-se no conflito pela definição de uma cristologia que tanto
dividiu os líderes da Igreja.
O maior dos imperadores do Oriente foi, sem dúvida, Justiniano (527-65).
Um comandante militar da Ilíria que sucedeu seu tio como imperador, ele foi o
último governante do leste cuja língua-mãe era o latim. Suas maiores realizações
foram a codificação das leis romanas (o Código Justiniano) e a construção da
famosa igreja de Hagia Sofia. Com sua cúpula espetacular de mais de 60 metros,
foi um dos maiores feitos arquitetônicos da história do Cristianismo.
O reino oriental veio a ser conhecido como império bizantino, derivando
seu nome de Bizâncio, a cidade anterior no mesmo lugar onde se encontrava
Constantinopla. Uma de suas características distintivas foi o Cesaropapismo, o
princípio de que o governante político também era o cabeça da Igreja. Assim,
Justiniano — que era um fervoroso defensor do Cristianismo ortodoxo —
obrigou setenta mil pagãos da Ásia Menor a se converterem. Também fechou as
grandes escolas de filosofia de Atenas — a Academia fundada por Platão e o
Liceu fundado por Aristóteles.
As forças de Justiniano recuperaram o controle de grande parte dos
territórios mediterrâneos que haviam sido tomados pelos invasores germânicos,
mas essas campanhas arruinaram a Itália. A imperatriz Teodora, que antes havia
trabalhado em um bar e que era uma mulher de grande perspicácia política,
exerceu a função de co-regente ao lado de Justiniano. Ela promoveu uma
reforma moral, a fundação de hospitais e as artes. Apesar de ela ser simpatizante
dos monofisitas, seu marido os perseguiu. Isso alienou do império bizantino
muitos cristãos no Egito e na Síria e preparou o caminho para o triunfo do Islã
no século seguinte.

A hierarquia clerical
No 4º século, a estrutura relativamente simples da Igreja, conforme foi
descrito no capítulo dois, tornou-se muito mais complexa. Os diáconos
continuavam desempenhando as funções eucarísticas e de serviço e até mesmo
lideravam algumas congregações rurais. Porém, uma determinação do Concílio
de Nicéia tirou deles qualquer autoridade para presidir a Eucaristia. Ainda
assim, como os diáconos tinham se tornado os assistentes especiais dos bispos,
muitas vezes eles eram mais estimados do que sacerdotes locais, especialmente
o Colégio dos Sete Diáconos de Roma, que para todos os efeitos práticos, servia
como gabinete do bispo. Quando o peso da responsabilidade tornou-se maior do
que os sete podiam suportar, criou-se em Roma o ofício de sub-diácono. No
final do 3º século o subdiaconato havia se tornado uma instituição comum.
O líder do diaconato era o arquidiácono, que exercia enorme influência.
Na verdade, os bispos eram muitas vezes escolhidos dentre os diáconos e alguns
até foram nomeados para a Santa Sé, como por exemplo Leão I (440) e Gregório
I (590), importantes figuras no desenvolvimento do papado. Entre outros bispos
importantes promovidos ao arquidiaconato estão Ceciliano de Cartago (311) e
Atanásio de Alexandria (328).
Uma outra ordem, a qual nos referimos no capítulo dois, era a das
“viúvas”, que eram apontadas porém não ordenadas. Suas funções, que incluíam
um ministério de oração e serviço com as mulheres da congregação, foi
assumida pela ordem das diaconisas no 3º século. Um documento daquele
período, a Didascália, explicava suas funções como sendo de ensino, cuidado
dos doentes, encontrar assentos para as mulheres nos cultos e ajudar nos
batismos. Essa última função mencionada era particularmente notável, tendo em
vista que as candidatas normalmente eram batizadas (imersas) nuas e também
era ungidas. Assim, o serviço das diaconisas era necessário a fim de evitar
acusações de impropriedade.
O requisito para a ordenação de diaconisa era que a mulher fosse solteira
ou viúva de um único casamento. Apesar do Código de Teodósio (438)
determinar que a idade mínima para uma diaconisa era sessenta anos, o Concílio
da Calcedônia (451) reduziu essa idade para quarenta anos e proibiu a mulher de
se casar depois da ordenação. Mas então o desenvolvimento da prática de
batismo infantil eliminou a necessidade de assistência das diaconisas nas
cerimônias batismais. No 6º século, dois concílios no Ocidente aboliram esse
oficio, mas ele continuou em alguns lugares, especialmente no Oriente.
O abismo entre o clero e os leigos (ver capítulo 2), que já era bastante
substancial no 3º século, foi ficando cada vez maior. A palavra “sacerdote”
(grego hieros, latim sacerdos) passou cada vez mais a ser usada para o líder da
congregação ao invés do termo da Igreja primitiva “presbítero” (ancião). À
medida em que a prática da monoepiscopacia (um único bispo) tornou-se norma,
os bispos foram assumindo as funções administrativas e de ensino enquanto os
deveres litúrgicos eram deixados para os sacerdotes. O Concílio de Nicéia
confirmou o direito do sacerdote de ministrar a Eucaristia sem a presença do
bispo, tendo em vista que, àquela altura, essa já era uma prática universal.
À medida em que cresceu o desejo de que aqueles que ministravam os
sacramentos fossem cerimonialmente puros, logicamente seguiu-se que alguns
exigissem do clero a abstenção sexual. Orígenes falou de “sacerdotes perfeitos
que mantém estado de pureza virginal em atos e em pensamentos”. Ambrósio
argumentou que o clérigo deveria estar livre da corrupção pelo sexo ao oferecer
os sacrifícios da Igreja. O Concílio de Elvira determinou que “bispos,
presbíteros e diáconos — na verdade, todos os clérigos que tem um lugar no
ministério — devem abster-se de suas esposas e não devem gerar filhos. Esta é
uma proibição total: aquele que assim o fizer, que lhe seja tomada a sua posição
no clero”.
A questão do celibato clerical foi discutida acaloradamente durante os
dois séculos seguintes. Justiniano exigiu que os bispos fosse celibatários e
ordenou que aqueles que eram casados mandassem a esposa para um convento
distante. Na igreja do Ocidente o celibato tornou-se finalmente uma regra
universal no século 13, em grande parte por causa dos problemas envolvidos na
herança de propriedades da Igreja pelos filhos dos clérigos. Porém, mesmo nos
dias de hoje na igreja do Oriente, ainda é permitido que clérigos de ordens mais
baixas se casem, porém os bispos devem ser escolhidos dentre aqueles que são
celibatários ou, em outras palavras, monges.
Também era esperado que os sacerdotes fossem indivíduos maduros e os
candidatos para o sacerdócio normalmente tinham de trinta a trinta e cinco anos
de idade. Os bispos geralmente serviam em ofícios inferiores antes de avançar
para um diocese e foi Damásio de Roma (366-84) que apresentou a primeira
lista de que se tem registro da progressão de ofícios pelos quais uma pessoa
passava antes de tornar-se bispo. Esse ideal de vez em quando era
desconsiderado, como por exemplo no caso de Ambrósio que foi batizado aos
trinta e quatro anos de idade e empossado como bispo de Milão oito dias depois.
O mais provável, porém, era que bispos recém-indicados tivessem de quarenta e
cinco a cinqüenta anos de idade. Freqüentemente eles indicavam seus sucessores
e o costume do 3º século de que três bispos estivessem presentes para a
ordenação de um outros tornou-se regra. Além disso, a ordenação de bispos
passou a ser prerrogativa dos bispos.
A ocupação de sés proeminentes por vezes transformava-se em situações
tumultuadas, como foi o caso da eleição de Damásio I. Os defensores dos dois
candidatos rivais atacaram uns aos outros ferozmente e em certa ocasião, uma
multidão de partidários de Damásio matou 137 pessoas ao invadir a basílica do
outro candidato.
Damásio é historicamente importante para o desenvolvimento da
instituição do papado pois foi o primeiro a declarar Roma a Sé Apostólica e
apropriar-se da autoridade supostamente dada a Pedro por Cristo em Mateus
16.18. Ele também trabalhou diligentemente para fortalecer a posição do
bispado de Roma em relação aos outros bispados, especialmente aqueles no
Oriente, promovendo a veneração de mártires e as peregrinações aos lugares
onde estavam enterrados em Roma (as famosas catacumbas) e transformando o
latim na língua litúrgica da Igreja romana. Também encorajou Jerônimo a
encarregar-se de fazer uma nova tradução em latim da Bíblia, a Vulgata que,
conforme já foi mencionado acima, acabou tornando-se o padrão da igreja
ocidental.
Com o declínio da importância política de Roma em si, os bispos do
século 5º aproveitaram a oportunidade para expandir a autoridade afirmada por
Damásio. Inocêncio I (401-17) interferiu em questões do Oriente ao apoiar João
Crisóstomo contra os patriarcas de Constantinopla e no Ocidente apoiou
Agostinho na controvérsia pelagiana. Ao fazê-lo, alegou o direito de servir
como o árbitro supremo das questões doutrinárias como nenhum outro bispo
romano havia feito antes.
Leão I (440-61), também conhecido como “o Grande”, insistia que Pedro
tinha primazia sobre os apóstolos. Como seus sucessores, os bispos de Roma
haviam herdado seu papel de líder e mestre e Pedro falava através deles. Leão
exerceu sua autoridade através da crítica severa ao maniqueismo e pelagianismo
e ao envolver-se com o Concílio da Calcedônia que adotou sua explicação sobre
Cristo como uma pessoa em duas naturezas.
Gelásio I (492-96) foi o primeiro a ser chamado de “Vigário de Cristo”.
Também proclamou a influente doutrina política das “duas espadas”. Esta
afirmava haver dois poderes que governam o mundo: o sagrado e o secular e que
o poder eclesiástico, sob a autoridade da Sé romana, era superior ao poder
temporal, como o do imperador.

Pecados e disciplina eclesiástica


Esperava-se que o clero correspondesse a padrões mais altos do que os
leigos. Um concílio da Igreja no 4º século decretou que o clero não deveria
assistir peças teatrais apresentadas em casamentos e banquetes, indo embora
antes que os artistas entrassem em cena. Além disso, sacerdotes e diáconos não
deviam entrar em tabernas.
Era costumeiro esses concílios regulamentarem questões de doutrina e
comportamento através dos chamados “cânones”. Os exemplos mais antigos de
que se tem conhecimento são os oitenta e um cânones de Concílio de Elvira
(305) que eram de uma severidade extraordinária. Por exemplo, mulheres
consagradas que fossem infiéis aos seus votos de castidade, homens que
praticassem a homossexualidade e mulheres que tivessem abortos eram
excomungados para sempre. O Concílio de Ancira (314) determinou dez anos de
excomunhão para o pecado do aborto.
Desde o começo do 3º século, a palavra grega para “arrependimento”
(metanoia) foi traduzida para o latim como paenitentia. Esse termo significava
não apenas remorso mas também obras de “penitência” ou “satisfação” como
caridade, choro, oração, jejum ou abstenção de relações maritais durante
períodos que iam de cinco anos até o resto da vida. Fazia-se distinção entre
pecados menores ou “venais” (perdoáveis) e pecados “mortais” bem mais sérios.
De acordo com Tertuliano, estes últimos incluíam idolatria, assassinato e
adultério. Agostinho foi ainda mais longe e afirmou que qualquer violação dos
Dez Mandamentos exigia penitência pública.
Aqueles que eram acusados de cometer um pecado específico mas
arrependiam-se de suas ofensas passavam formalmente a fazer parte da classe
dos penitentes. Em algumas regiões eles tinham que usar um traje especial feito
de pele de cabrito e cortar o cabelo bem curto. Eram permanentemente excluídos
do clero, de cargos públicos e de relações maritais. Esses “pranteadores” ou
“genuflexores” não tinham permissão de entrar na igreja, precisando ficar em pé
no pátio anterior. Depois de terem realizado a penitência determinada, ocorria
uma reconciliação pública com a imposição de mão dos bispos. As exigências
cada vez mais severas das penitências levavam alguns a postergá-las até a hora
da morte.
No século 5º a confissão pública de pecados foi gradualmente substituída
pelas confissões particulares ou “auriculares” (ao ouvido), isto é, feita para os
sacerdotes. Essa prática foi grandemente estimulada pela devoção monástica
celta. A evidência mais antiga dessa forma de penitência particular encontra-se
nos anais do 3º Sínodo de Toledo (589). Este decretava que os crentes deveriam
confessar seus pecados durante a Quaresma e então ser publicamente
reconciliados na Quinta-Feira Santa antes de receber a ceia na Páscoa.

Os sacramentos e o culto litúrgico


A palavra latina sacramentum originalmente significa “juramento”, como
aquele feito pelos soldados; o recitar do credo antes do batismo era considerado
um juramento de ser servir a Cristo. Essa palavra era usada para traduzir a
palavra grega “mistério” e na Igreja primitiva veio a ter o sentido técnico de uma
cerimônia instituída por Deus para canalizar a graça divina ao crente como
indivíduo. Os sacramentos mais importantes dessa época eram o batismo e a
ceia, sendo que mais tarde a Igreja medieval acrescentaria vários outros
sacramentos.
A referência mais antiga ao batismo infantil encontra-se nos escritos de
Tertuliano que opunha-se à essa prática. Cipriano, porém, a aceitava e pedia aos
crente que não esperassem os costumeiros oito dias (o procedimento para a
circuncisão) para batizar seus bebês. Orígenes chegou a afirmar que o batismo
infantil era uma prática apostólica, mas diversas figuras proeminentes do 4º
século, inclusive os Patriarcas da Capadócia, João Crisóstomo, Jerônimo e
Agostinho, só foram batizados quando adultos. No século 5º, o batismo infantil
já era um procedimento normal na igreja do Ocidente e acabou sendo justificado
pela crença de que o pecado original era “lavado” no rito do batismo.
Quando adultos desejavam converter-se ao Cristianismo, antes tornavam-
se “catecúmenos”, ou seja, eram instruídos sobre o credo e a oração do Pai
Nosso e então examinados quanto ao seu conhecimento e conduta pessoal. O
processo podia levar até três anos, mas acabou sendo encurtado ao período da
quaresma. Os batismos normalmente aconteciam na manhã de Páscoa depois de
um jejum e uma vigília. Hipólito, o escritor do começo do 3º século descreve o
procedimento:

No sábado, aqueles que irão receber o batismo devem estar reunidos em um lugar
decidido pelo bispo. Será dito para eles que orem e se ajoelhem. O bispo colocará suas
mãos sobre eles e exorcizará todos os espíritos estranhos para que possam sair deles e
nunca mais voltar. E quando tiver terminado de exorcizar, ele deve respirar em seu
rosto e quando tiver feito o sinal sobre sua testa, orelhas e nariz, deve erguê-los. E eles
passarão a noite toda em vigília, alguém irá ler para eles e serão instruídos... Quando o
galo cantar, que antes sejam feitas preces sobre a água.2

Antes de entrar na água os candidatos voltavam-se para oeste (a região


associada a Hades), estendiam suas mãos e renunciavam a Satanás e suas obras.
Em alguns casos, chegavam a cuspir cerimonialmente em Satanás. Eram ungidos
no peito e no ombro com um óleo do qual os espíritos maus tinham sido
exorcizados. Depois do batismo, havia ainda uma outra unção com “crisma”, um
óleo aromatizado com bálsamo.
O relato de Hipólito continua: “E removerão suas roupas. E as crianças
pequenas serão batizadas primeiro... E em seguida batizarão os homens adultos
e por último as mulheres, que devem ter soltado o cabelo e removido os
ornamentos de ouro”. O sacerdote que estivesse oficiando e um diácono
assistente ficavam em pé dentro d‟água e faziam três perguntas a cada
candidato: “Credes em Deus Pai Todo-Poderoso? Credes em Cristo Jesus, o
Filho de Deus? Credes no Espírito Santo na Santa Igreja?” Depois de cada
resposta, o sacerdote imergia o candidato.
Até o 4º século, eram os bispos que presidiam sobre os ritos batismais.
Porém, como a prática do batismo de crianças foi tornando-se cada vez mais
comum, um procedimento realizado pelo sacerdote logo depois do nascimento
da criança, nem sempre era possível que o bispo estivesse presente. Isso levou a
um rito separado de confirmação, no qual o bispo impunha suas mãos e ungia a
cabeça daqueles que já haviam sido batizados pelo sacerdote. Concílios na
Espanha e na França nos séculos 4º e 5º orientaram os bispos a “confirmar” os
batismos realizados por sacerdotes.
Tertuliano identificou a imposição de mãos depois do batismo como dom
do Espírito Santo, o que levou a uma controvérsia sobre se o Espírito era dado
no batismo ou na confirmação. Inocêncio I declarou que: “Pertence somente ao
ofício episcopal que os bispos consignem e dêem o Espírito Paracleto”. Na sua
opinião, o Espírito Santo era concedido quando o bispo fazia o sinal da cruz e
ungia o batizado na testa com a crisma.
Uma das descrições mais antigas de outro importante sacramento, a ceia
ou Eucaristia (“ação de graças”) encontra-se nos escritos do 2º século por
Justino Mártir. Ele explicava que o rito incluía a apresentação do pão e de vinho
misturado com água, uma oração de ação de graças, o “Amém” congregacional e
a distribuição dos elementos feita pelos diáconos. No século seguinte a
cerimônia já havia se tornado mais elaborada. Hipólito relatou que incluía a
apresentação dos elementos por diáconos para o bispo, sua exortação “levantai
vossos corações” (sursum corda) e oração, uma narrativa da história da salvação
e as palavras de instituição de Jesus, a oferta formal (“oblação”) do pão e da
taça, a invocação do Espírito Santo e, finalmente, a distribuição do pão e do
vinho pelos sacerdotes e diáconos. Elementos acrescentados nos séculos 4º e 5º
incluem leituras do Antigo e Novo Testamentos, o cântico de salmos e aleluias,
sermões, orações, o Kyrie eleison (“Senhor tem piedade”) responsivo, o
trisagion (“Santo, Santo, Santo”) e outras orações como o Pater noster (“Pai
Nosso”).
Cipriano referiu-se à Eucaristia como “o sacrifício da paixão do Senhor”
que era oferecido pelo bispo atuando como sacerdote perante o altar. O patriarca
oriental Cirilo descreveu-a como “sacrifício propiciatório”. Para Ambrósio, ela
era aperfeiçoada pela consagração do sacerdote e não pelo recebimento dos
elementos, uma ênfase que lançou as bases para a doutrina posterior medieval da
transubstanciação.
Antes de começar o culto da ceia, os penitentes e aqueles que não haviam
recebido o batismo eram dispensados, isto é, pedia-se que saíssem (A palavra
Missa, que foi dada à cerimônia eucarística depois do século 5º, vem do latim
missa — demissão” — normalmente referindo-se ao momento em que era
pedido à congregação que alguns se retirassem no final do culto). Antes dos
penitentes saírem, o diácono proferia uma longa admoestação enquanto eles se
ajoelhavam, a congregação rezava o Kyrie por eles e os bispos concluíam com
uma oração de despedida. O culto então continuava com a ceia propriamente
dita.
No tempo de Cipriano, a Eucaristia era celebrada diariamente. Porém,
com o passar dos anos, ela adquiriu o caráter de um mistério temido e cada vez
menos pessoas observavam o rito. O lamento de João Crisóstomo reflete essa
mudança: “O sacrifício diário é em vão, nos colocamos em pé diante do altar em
vão; ninguém participa”.
Havia vários outros cultos nas igrejas. Além do culto normal de domingo
e da Eucaristia diária, havia as Laudas matinais (Matinas), as Vésperas à noite e
cultos especiais durante a tarde encerrando os jejuns às quartas e sextas. Dois ou
três capítulos do Antigo Testamento eram lidos durante os cultos diários, de
modo que todos os livros fossem lidos durante um período de três anos. Os
quatro evangelhos eram lidos na observação da Eucaristia num período de três
anos. Já no século 5º, textos específicos eram determinados para cada festa e os
lecionários (livros que ofereciam passagens das Escrituras) passaram a ser
usados.
Não tardou para que só o clero ordenado realizasse as pregações. Dentre
os melhor sermões da igreja primitiva que sobreviveram encontram-se as
duzentas homilias de Orígenes. A maior parte era sobre tópicos do Antigo
Testamento mas trinta e nove eram baseadas em Lucas. Esses sermões eram
apresentados extemporaneamente depois da leitura do texto daquele dia. Assim
como muitos pregadores dos tempos modernos, Orígenes mostrava-se
exasperado com a falta de atenção de algumas congregações em que “nem todos
entendem o que é dito, mas sua mente e coração estão nos negócios ou em atos
mundanos ou calculando seu lucro”.
Ainda há sermões de grandes nomes do púlpito na igreja oriental como
Basílio de Cesaréia e Gregório de Nazianzo; João Crisóstomo, o maior pregador
do Oriente, deixou seiscentos sermões. Este último instruía seus párocos
tratando de assuntos do quotidiano e, essencialmente travando um diálogo com
eles, mas por vezes sua língua podia ser afiada. Como ele disse aos ricos
cobiçosos de Antioquia, “O mundo foi feito para ser como uma casa dentro da
qual todos os servos recebem salário igual, pois todos os homens são iguais,
tendo em vista que são irmãos”. Crisóstomo era um orador cativante que
freqüentemente falava durante duas horas mas, por outro lado, um pregador
mais comum, Cesário de Arles (6º século) tinha que limitar seus sermões a
quinze minutos e ordenar que as portas da igreja ficassem fechadas para evitar
que seus ouvintes saíssem.
No Ocidente, Agostinho — que assentou-se aos pés de Ambrósio, ele
próprio um mestre da oratória de púlpito — foi o maior dos pregadores. Mais de
quinhentos dos seus sermões sobreviveram e sua obra Acerca da Doutrina
Cristã é considerada o primeiro tratado importante sobre homilética. Aliás, seus
sermões foram compilados na forma de “homiliários” — coleções de sermões
que outros pregadores podiam usar com suas congregações.
Como instrumentos musicais eram associados a festas pagãs, a prática
cristã era a música vocal sem acompanhamento, daí a expressão a capella
(“assim como na capela”). Há apenas umas poucas evidências de que os cristãos
talvez tivessem usado a lira e a cítara. Na verdade, um cânon de Basílio de 375
impunha uma penitência de sete semanas para um leitor que aprendesse a tocar o
violão; se ele continuasse a tocar, era excomungado. O órgão, instrumento usado
na corte imperial, só foi introduzido na Igreja depois do século 7º. Vários
escritores recusavam-se a dar ouvidos à objeção de que instrumentos musicais
eram usados no Antigo Testamento, afirmando que isso significaria ceder a
práticas judaicas.
Uma das primeiras coleções de hinos foi Odes de Salomão, do 2º século,
composta em siríaco. Algum tempo depois, Efraim o Sírio (306-73) fundou
corais em Edessa e compôs vários hinos em sua língua. Ele influenciou
grandemente Romano Melodo (485-560), o principal escritor de hinos
bizantinos da época e que escreveu kontakia, sermões em verso que eram
recitados. Um deles, chamado “Em pé” e dedicado a Maria, ainda é usado na
liturgia da Igreja Ortodoxa.
Apesar de Hilário de Poitier ter introduzido antes os hinos litúrgicos no
Ocidente, Ambrósio é comumente considerado o “pai da hinologia litúrgica”.
Ele é mais conhecido por seu uso do cântico na forma de antífonas, o cântico
alternado de versos dos Salmos feito por dois corais. Agostinho foi
profundamente tocado pela música litúrgica que ouvia na catedral de Milão e
registra em suas Confissões:

Mas quando me lembro das lágrimas que derramei ao ouvir o cântico na igreja nos
primeiros dias de minha fé recuperada, e de que agora sou tocado não pelo cântico em
si, mas por aquilo que é cantado, quando é entoado com uma voz clara e de modulação
adequada, mais uma vez reconheço o grande valor desse costume.

A música litúrgica consistia de cânticos monofônicos numa escala


diatônica. Líderes da Igreja como Atanásio, opunham-se a melodias elaboradas,
dança, o bater de palmas e o chacoalhar de sistros. Estes últimos eram vistos
como uma prática emprestada da adoração a Ísis.
Apesar de não existir nenhuma referência explícita a mulheres cantando
na Igreja nos dois primeiros séculos, elas sem dúvida participavam dos cânticos
congregacionais. No 3º século, Paulo de Samosata, Efraim de Edessa e outros
organizaram corais femininos. Por outro lado, alguns insistiam que a ordem de
Paulo para que as mulheres permanecessem caladas na igreja também se
aplicava ao seu cântico. Cirilo de Jerusalém declarou “as virgens devem cantar
ou ler os salmos silenciosamente durante a liturgia. Elas só devem mover os
lábios, de modo que nada seja ouvido, pois não permito que mulheres falem na
igreja”.
O costume de se usar meninos para a música litúrgica iniciou-se no 6º
século. Germano de Paris (falecido em 576) relata que no começo da missa, três
jovens cantaram o Kyrie eleison triplo, em uníssono. Como as leituras na igreja
estavam, na época, sendo entoadas, uma regulamentação de Justiniano permitia
que um menino se tornasse leitor aos oito anos de idade.

Dias santos e o calendário cristão


Desde os tempos mais remotos, os cristãos se encontravam para cultos no
primeiro dia da semana, supostamente porque foi nesse dia que ocorreu a
ressurreição de Cristo, apesar dessa justificativa raramente ser mencionada pelos
Patriarcas da Igreja primitiva. A obra Evangelho de Pedro do 2º século
identificava o domingo como sendo “Dia do Senhor” (ver Ap 1.10).
Aparentemente, para se distinguirem das práticas de influência judaica de
muitos dos primeiros crentes, os cristãos gentios deixaram de lado a observação
do sábado e passaram a fazer seus cultos no domingo. Outros escritores da
época homenageavam o domingo como o primeiro dia da criação. Finalmente,
em 321 o imperador Constantino transformou o domingo em feriado legalizado.
O dia exato do nascimento de Jesus é desconhecido. Os basilidianos
gnósticos do Egito (final do 2º século) comemoravam o batismo de Jesus no dia
6 de janeiro e no começo do 4º século muitos cristãos no Oriente já estavam
celebrando tanto seu nascimento quanto seu batismo nessa data. O dia seguinte
era dedicado à Epifania (“manifestações”) para os magos (homens sábios),
quando o povo cantava o hino de Efraim: “Toda a criação proclama, os magos
proclamam, a estrela proclama: Vede, o filho do rei está aqui”.
Em 274 o imperador Aureliano decretou 25 de dezembro o dia de
celebração do “Sol Invencível”, o primeiro dia em que havia um aumento
perceptível de luz depois do solstício de inverno. A menção mais antiga de uma
Festa da Natividade nessa data encontra-se num documento escrito em 336.
Alguns pensam que Constantino (que morreu em 337) pode ter escolhido esse
dia para o Natal por causa do respeito profundamente arraigado ao festival
popular pagão do solstício. Outros argumentam que a data foi escolhida para
substituir esse festival, isto é, para homenagear o “Sol da Justiça”. Firmemente
estabelecido no Ocidente dentro de poucas décadas, passou-se mais um século
antes que as igrejas do Oriente adotassem 25 de dezembro. As muitos
controvérsias sobre a pessoa e a natureza de Cristo contribuíram para a mudança
de ênfase do seu batismo para o seu nascimento. A única a não participar foi a
igreja armênia, que até hoje comemora a natividade no dia 6 de janeiro.
No 4º século a Epifania era considerada no Oriente um dia tão santo
quanto a Páscoa ou Pentecostes, tendo em vista que celebrava o nascimento de
Jesus, seu batismo, a adoração dos magos e também a transformação de água em
vinho em Caná. No Ocidente, a ênfase em seu batismo foi deixada de lado e
Agostinho a classificou como sendo de importância igual ao Natal pois, de
acordo com ele, era o dia no qual o Senhor havia se manifestado para os pagãos.
Os cristãos da Espanha foram os primeiros a observar o Advento, uma
época que precede o Natal, e o Concílio de Saragossa (380) estabeleceu um
período de três semanas. Durante o 6º século esse tempo havia aumentado para
cinco domingos, mas Gregório o Grande o reduziu para quatro. Algum tempo
antes do 6º século, a igreja do Oriente acrescentou no calendário os quatro dias
de festa da Virgem Maria — seu nascimento, a manifestação de Simeão no
Templo, a concepção de Cristo e a assunção dela aos céus. Mais tarde essas
festas foram trazidas para o Ocidente.
Uma comemoração elaborada da morte e ressurreição de Cristo
desenvolveu-se à partir do costume simples de se jejuar ás quartas e sextas. No
4º século, os cristãos observavam jejuns semanais às sextas e um período de
quarenta dias de abnegação em preparação para a Páscoa, tempo em que
abstinham-se de carne, peixe, ovos, laticínios e vinho. Esse período, conhecido
como Quaresma era o tempo durante o qual os catecúmenos preparavam-se para
o batismo e no qual se fazia as penitências. Era comum jogar cinzas sobre os
penitentes, costume que preconizou a prática da Igreja medieval de fazer o
mesmo com todos os crentes na Quaresma.
O ponto alto do ano cristão era a Semana Santa, culminando com o
“Pasch” ou Domingo de Páscoa. Pasch era o termo em aramaico usado para a
Páscoa dos judeus, que foi o pano de fundo para a Última Ceia e a idéia cristã de
Jesus como o cordeiro pascal (Mc 14.12-16; Jo 1.29; 1Co 5.6-8). No 2º século, o
Pasch era celebrado com uma vigília, jejum, leitura das Escrituras, cânticos e a
Eucaristia.
A princípio, acontecia simultaneamente com as festas judaicas (14 de
Nissan) . A Igreja de Roma, porém, insistiu para que a Páscoa fosse celebrada
num domingo pois era nesse dia que Jesus havia ressuscitado dos mortos.
Conforme discutimos anteriormente, muitos cristãos na Ásia Menor que
seguiam o calendário judaico resistiram a essa inovação, mas acabaram cedendo
. Por haver diferenças entre o Oriente e o Ocidente quanto a data do
acontecimento pascal em si, o Concílio de Nicéia determinou que a Páscoa seria
celebrada no primeiro domingo depois da lua cheia que ocorresse no equinócio
de primavera ou depois deste. Assim, a Páscoa podia ser comemorada já em 22
de março ou até 25 de abril.
Cinqüenta dias depois da Páscoa era Pentecostes, a festa da vinda do
Espírito Santo sobre os apóstolos (ver capítulo 1). Pentecostes já era observado
no 2º século e ocupava o segundo lugar em importância, depois da Páscoa.
Também era uma ocasião preferida para batismos e nas igrejas de fala inglesa,
veio a ser conhecido como “Whitsunday” por causa das roupas brancas (white)
usadas por aqueles que iriam receber o batismo.

O culto aos mártires e relíquias


Apesar de Estevão, a maioria dos apóstolos e muitos outros cristãos
primitivos terem sido os primeiros mártires da Igreja, o registro mais antigo de
culto aos mártires é a história de Policarpo de Esmirna, que foi morto em 156.
Seus restos mortais foram ajuntados e sepultados por cristãos que observaram:
“Lá o Senhor permitirá que nos reunamos em alegria e felicidade para celebrar o
aniversário de seu martírio”. Celebrações anuais dos mártires Hipólito, Calisto,
Ponciano e Fabiano já ocorriam no 3º século. Nessa época, as festas de Pedro e
Paulo começaram a ser observadas no dia 29 de junho.
Quando as perseguições acabaram, a veneração dos mártires em si foi
transferida para suas relíquias e acreditava-se que o lugar de seu sepultamento
possuía poderes especiais de cura. Conforme observou Gregório de Nissa, os
cristãos podiam ter uma experiência religiosa nesses locais de descanso final:
“Aqueles que os vêem, os abraçam como se fosse um corpo vivo com todo seu
vigor, eles usam dos olhos, ouvidos e boca, de todos os seus sentidos e então,
derramando lágrimas de reverência e paixão, dirigem ao mártir suas preces de
intercessão como se ele estivesse presente ali”. A princípio, pequenas capelas
(martyria) foram construídas sobre as criptas e mais tarde foram substituídas por
basílicas dos mártires. No final do 6º século, esses lugares eram centros de vida
eclesiástica.
A festa de um mártir incluía uma vigília e missa no local, com a leitura de
trechos das Escrituras e a narração do martírio. O banquete comemorativo
realizado ali muitas vezes tornava-se um acontecimento tumultuado. O Concílio
de Elvira proibiu mulheres de participarem das vigílias no túmulo de um mártir
por causa da bebedeira e desordem que poderiam ocorrer. Porém, só algumas
vozes isoladas como a de Vigilante de Aquitânia ergueram-se contra os excessos
nos cultos aos mártires. Agostinho também observou os abusos ligados ao culto
quando reclamou que as relíquias de determinados mártires eram divididas e
espalhadas e algumas eram até mesmo fabricadas.
Para combater o problema, o imperador Teodósio criou uma lei proibindo
a transferência, desmembramento ou venda de ossos dos mártires, mas ela foi
logo desconsiderada. Por exemplo, quando os túmulos de mártires nas
catacumbas eram ameaçados de ser pilhados por saqueadores, os bispos
romanos transferiam os restos mortais para uma igreja dentro da cidade. Assim,
as relíquias também eram simplesmente roubadas. É o caso das relíquias de São
Marcos que foram levadas para Alexandria pelos venezianos e São Nicolau de
Mira, levadas por marinheiros de Bari. A oferta tornou-se tão abundante que a
Igreja medieval exigia que o altar de cada igreja contivesse as relíquias de um
santo. Elas eram abrigadas dentro do próprio altar ou em caixas ricamente
ornamentadas conhecidas como relicários.

Arquitetura e arte cristã


Os primeiros cristãos encontravam-se em casas que foram gradualmente
sendo transformadas em igrejas domiciliares, mas depois da conversão de
Constantino, foram erguidas grandes construções chamadas basílicas. Elas eram
prédios retangulares, com duas fileiras de colunas no interior e um abside na
ponta e eram usadas pelas autoridades seculares como cortes legais. Quando
Helena, mãe de Constantino, fez sua famosa visita à Terra Santa, ordenou que
fossem construídas basílicas sobre uma gruta identificada como o local onde
Jesus havia nascido (Igreja da Santa Natividade) e o lugar tradicional do
Calvário e seu túmulo (Igreja do Santo Sepulcro). Outras basílicas foram
erigidas em Constantinopla e Roma, incluindo a de São Pedro no monte
Vaticano e a enorme Basílica de Latrão que tinha quase cem metros de
comprimento e capacidade para três mil fiéis.
Nas igrejas do Ocidente uma tela era colocada diante do santuário,
separando os sacerdotes da congregação, enquanto nas igrejas do Oriente uma
parede sólida com portas, a iconostatis, bloqueava completamente a visão dos
fiéis. A partir do 6º século foi acrescentada uma plataforma elevada chamada
ambo que era usada para leituras das Escrituras e sermões.
Toda igreja tinha um batistério que algumas vezes ficava num prédio
separado. Foram descobertos mais de trezentos batistérios construídos entre os
séculos 3º e 7º. Pelo fato das piscinas de batismo serem rasas, as pessoas eram
imersas ajoelhando e se curvando. A maioria dos batistérios era redonda ou
octogonal, tendo em vista que o número oito era considerado símbolo da
imortalidade.
Exemplos das primeiras formas de arte cristã, aproximadamente do ano
200, podem ser encontrados nas catacumbas romanas. Uma das obras mais
conhecidas é a Adoração dos Magos encontrada na catacumba de Santa Priscila.
Os três magos, vestidos em trajes persas são retratados oferecendo presentes
para a criança que descansa no colo de sua mãe. Um outro tema comum nas
catacumbas é o dos milagres de Jesus, como a transformação da água em vinho,
a multiplicação dos pães e peixes e a ressurreição de Lázaro. Alguns retratos
baseiam-se em modelos pagãos, como o jovem pastor carregando uma ovelha
para representar Cristo como o Bom Pastor. Ele também é apresentado como
mestre e legislador.
A princípio, sua paixão não era retratada. Foi só em 432 que a
crucificação foi tema do painel de uma porta numa igreja em Roma (São
Sabino). No 4º século, a iconografia imperial, que representava o imperador
como um semi-deus, começou a ser usada para Cristo como o poderoso
governante do universo. Outra importante forma de arte eram as esculturas em
relevos feitas em sarcófagos.
Uma grande influência no desenvolvimento da arte cristã foi o próprio
Constantino. No 4º século, ele era o maior patrono das artes e graças ao seu
generoso apoio, artesãos talentosos começaram a fazer objetos como cálices
usando os materiais mais nobres — marfim, vidro, ouro, prata e pedras
preciosas. Ele também ordenou que o interior das igrejas fosse decorado com
mosaicos brilhantes, feitos de pequenos quadrados de pedras e vidro de cores
vivas. Outros tipos de arte encontrados nas igrejas eram os afrescos nas paredes
e as esculturas de personalidades proeminentes.
A antipatia para com a arte séria expressada por indivíduos como
Tertuliano, que urgia os artistas que se convertiam a abondar sua arte,
desapareceu rapidamente. Já não se ouvia mais pontos de vista negativos como
aquele expressado por Eusébio, que repreendeu Constantina, irmã de
Constantino por solicitar um retrato de Cristo. Aliás, cristãos no Oriente
começaram a fazer figuras bi-dimensionais da Santa família e dos santos às
quais chamavam de ícones, imagens sagradas que eram veneradas..
A partir do momento em que Teodósio destruiu os templos pagãos e deu
suas riquezas para as novas igrejas fundadas nos mesmos locais, o século 5º foi
um período de criatividade extraordinária. Foi marcado pela construção de
igrejas elaboradas, batistérios, mausoléus, capelas de mártires e mosteiros em
centros como Roma, Ravena, Milão, Nápoles, Constantinopla, Tessalônica e
Éfeso. Até mesmo na distante cidade jordaniana de Jerash foram erguidas sete
basílicas.

Monasticismo
Começando no final do 3º século, o movimento monástico trouxe uma
nova dimensão à vida cristã. Foi uma reação à crescente corrupção e
institucionalização da Igreja. Já no tempo de Constantino, aproximadamente dez
por cento da população do império era cristã e um século mais tarde o número
daqueles que professavam a fé chegava perto dos noventa por cento. Como o
crescimento extraordinário levou a um declínio no zelo, muitos crentes sinceros
decidiram deixar a sociedade e dedicar-se a exercícios espirituais e à preparação
para o outro mundo. Esses monges e freiras, que abriam mão de todos os
confortos físicos, rejeitavam o sexo e casamento e comiam e dormiam pouco
tomaram o lugar dos mártires como novos heróis dos fiéis.
O mais importante dentre os primeiros líderes foi Antônio do Egito (cerca
de 251-356). Ele foi o fundador do monasticismo anacorético, isto é, aquele em
que os monges viviam solitários como eremitas. De rica família copta, aos vinte
anos de idade Antônio tornou-se profundamente convicto da ordem de Jesus
para o jovem rico vender todas os seus bens, dar o dinheiro aos pobres e segui-lo
(Mt 19.21). Assim ele vendeu todas as suas propriedades e assumiu uma vida de
eremita sob a orientação de um asceta mais velho. À medida em que progrediu
em sua vida solitária, foi cada vez mais para dentro do deserto e por fim passou
vinte anos nas ruínas de um forte próximo ao Mar Vermelho. Durante todo esse
tempo ele lutou contra poderes demoníacos que desafiavam sua devoção a
Cristo. Ele os venceu através de jejuns, vigílias, oração e estudo da Bíblia.
Quando Antônio voltou para a civilização, ele era mais do que um herói.
Assim como os próprios mártires, era um modelo de santidade. Ele curava os
enfermos, mediava controvérsias e ensinava a sabedoria que havia aprendido. À
medida em que discípulos eram atraídos até ele, foram sendo criadas
comunidades informais de eremitas que imitavam a conduta desse exemplo
espiritual. A obra de Atanásio A Vida de Antônio espalhou sua fama por toda a
Igreja e quando de sua morte, milhares de cristãos ascetas já viviam no deserto
do Egito.
Outro líder dos primórdios do monasticismo, o egípcio Pacômio (cerca de
292-346) deu origem ao monasticismo cenobita ou comunal. Depois de tornar-se
cristão, primeiro ele passou seis anos vivendo como um eremita. Então, em 323
ele recebeu uma visão para fundar um mosteiro no remoto vilarejo de Tabenesi
na região sul do Egito. Quando chegou ao fim de sua vida, havia fundado mais
oito mosteiros e dois conventos na mesma região, com um total de sete mil
membros. Moradores de suas comunidades dedicavam-se à castidade, pobreza e
obediência. Oravam até doze vezes por dia, mas a austeridade praticada por eles
não era tão severa quanto a dos ancoretas. Por causa do trabalho de homens
como Antônio e Pacômino, o monasticismo egípcio cresceu nos séculos 5º e 6º
chegando a ter cinqüenta mil monges vivendo como eremitas ou em
comunidades.
Do Egito, o movimento espalhou-se para a Palestina onde Hilário (293-
371) estabeleceu-se em Gaza e introduziu o monasticismo ancoreta. Os eremitas,
que viviam no deserto da Judéia em celas ou cavernas separadas chamadas de
lauras, sujeitavam-se a um abade e reuniam-se aos sábados à noite para realizar
a vigília e Santa Ceia. Jerônimo também passou vários anos como eremita na
Síria e quando voltou para o Ocidente a serviço de Damásio, procurou gerar
interesse no ideal asceta. Sua promoção do monasticismo perturbou muitos em
Roma pois as pessoas de lá viam com nojo as roupas esfarrapadas, o cabelo
despenteado e o mau cheiro dos ascetas. Porém, como foi mencionado no
capítulo 3, Jerônimo saiu em 385 para fundar um mosteiro no Oriente e duas
mulheres o acompanharam. Uma outra mulher foi antes dele e outra ainda
juntou-se a eles mais tarde, sendo que todas dirigiram conventos.
Essas quatro mulheres — Melânia a Anciã, Paula, Eustáquia e Melânia a
Jovem — eram de origem aristocrática, mas paradoxalmente, obtiveram grande
liberdade e prestígio com uma vida de renúncia. Elas não apenas usaram sua
grande riqueza para sustentar empreendimentos monásticos como também
estudaram literatura religiosa, copiaram as Escrituras e serviram de conselheiras
sobre questões teológicas.
Algumas formas de monasticismo oriental eram de um ascetismo
incomum, como na Síria onde uma nova forma de rejeição ao mundo era
praticada pelos “estilitas” (termo grego para “pilar”). Estes eram eremitas que
fugiam não horizontalmente para cavernas, mas verticalmente para o alto de
pilares isolados. O mais conhecido foi São Simão Estilita (cerca de 390-460).
Ele começou como um simples eremita nos padrões egípcios, passando dez anos
em uma cela solitária próxima a Antioquia. Então, em 423 construiu um pilar e
foi subindo cada vez mais até que em 430 ele já estava a quase dois metros de
altura. Durante trinta anos ele sentou-se numa coluna com apenas um metro de
diâmetro com uma corrente ao redor do pescoço e dedicou-se à meditação e
conflito com os demônios. Sua devoção atraía peregrinos que buscavam suas
orações e conselhos e sua opinião chegou a ser solicitada por vários imperadores
e pelos Concílios de Éfeso (431) e da Calcedônia (451). Essa notável
demonstração de ascetismo foi levada ao extremo por Daniel o Estilita (falecido
em cerca 490) que herdou o pilar de Simão e ali viveu durante três décadas.
Dizia-se que quando de sua morte, suas pernas estavam completamente
putrificadas. À medida em que as divisões entre ortodoxos e monofisitas cresceu
em intensidade e o número de estilitas aumentou tornou-se comum encontrar
santos de pilares empoleirados em colunas vizinhas gritando insultos teológicos
uns para os outros na paisagem Síria.
O monasticismo chegou à Capadócia no 4º século e os teólogos Basílio de
Cesaréia (o Grande) e Gregório de Nazianzo foram figuras de destaque no
movimento. Basílio é especialmente importante porque pedia aos seus monges
que cuidassem das necessidades físicas dos pobres e enfermos e sua Regra, que
os orientava a viver em comunidades e não como eremitas, influenciou
profundamente o desenvolvimento do monasticismo na igreja oriental. Um
discípulo tanto de Basílio quanto de Gregório foi Evágrio Pôntico (345-99) que
saiu de Constantinopla rumo a Jerusalém e veio a ser influenciado por Melânia,
a Anciã. Ela o encorajou a adotar uma vida ascética e então ir para o Egito onde
ele viveu no deserto. Primeiro monge a escrever extensivamente, Evágrio
apresentou a idéia de que através do ascetismo e meditação era possível elevar-
se acima da tentação e viver sem pecado.
O ideal do monasticismo espalhou-se rapidamente para a igreja ocidental.
O trabalho de Martinho de Tours foi especialmente importante. Soldado da
Panônia (Hungria), ele deixou o exército, tornou-se um monge e fundou o
primeiro mosteiro na Gália em Ligugé, próximo a Poitiers por volta de 360.
Depois de sua eleição como bispo de Tours em 372 ele continuou vivendo como
monge numa fundação que abriu em Marmontier. Um biógrafo e admirador,
Sulpício Severo, escreveu sobre Martinho pouco depois da morte dele: “Pois
apesar do caráter de nosso tempo ser tal que não lhe ofereceu a oportunidade do
martírio, ainda assim ele irá compartilhar da glória do mártir”. Martinho foi a
primeira pessoa que não havia sido mártir a ser elevada à posição de santo
(“canonizada”) pela Igreja.
Outra figura importante do Ocidente foi João Cassiano (cerca de 360-
433). Depois de passar dezessete anos em mosteiros na Palestina e no Egito, foi
para Marselha por volta de 415 e fundou mosteiros tanto para homens como
mulheres. Suas obras Conferências — um relato de suas discussões com líderes
do monasticismo oriental — e Institutas — um conjunto de regras para a vida
monástica — popularizaram a experiência oriental no Ocidente. Posteriormente,
elas foram usadas por escritores monásticos e continuam até hoje a ser clássicos
da devoção e misticismo cristãos.
Da Gália o movimento monástico espalhou-se para a Irlanda, onde
conforme será mostrado no capítulo cinco, a forma celta de Cristianismo
consistia no monasticismo. Na verdade, nos séculos 5º e 6º, todo o clero da
Irlanda era composto de monges. A instituição também foi introduzida na região
norte da Grã-Bretanha por Niniano (cerca de 360-432), um admirador de
Martinho de Tours e de seu estilo de vida monástico que evangelizou o povo
conhecido como os pictos.
A figura mais criativa do monasticismo no Ocidente foi Benedito de
Núrsia (cerca de 480-550). Veio de uma família abastada que o enviou para
Roma a fim de ser educado. Porém, ele ficou desgostoso com a corrupção da
cidade e retirou-se para uma região remota onde viveu como eremita em uma
caverna. O lugar de retiro de Benedito foi logo descoberto por pastores e muitas
pessoas foram até ele em busca de consolo e conselhos. Outros eremitas
reuniram-se ao seu redor e sob sua liderança formaram-se doze comunidades.
Depois de um conflito entre os grupos, ele partiu com um pequeno bando de
seguidores e fundou um mosteiro cenobita em Monte Cassino, uma montanha
isolada entre Roma e Nápoles.
Para esse mosteiro ele escreveu uma Regra que tornou-se o padrão para os
monges do Ocidente. Fazendo uso de idéias de Basílio, João Cassiano e de uma
regra anônima, ela retratava o mosteiro como uma comunidade estável, auto-
sustentável e devotada a Cristo. Seus membros renunciavam todos os bens
pessoais, eram celibatários e permaneciam lá para o resto da vida. O líder da
comunidade era o abade que deveria ser obedecido sem questionamentos, mas
em troca era exigido que ele consultasse os membros sobre questões que
afetavam a todos. As tarefas dos monges eram divididas em três tipos: eles
adoravam a Deus, trabalhavam nos campos e estudavam a Bíblia. Benedito não
via com bons olhos o ascetismo extremo e sua Regra não era tão rígida quanto
as da tradição monástica do Oriente.
Os Beneditinos faziam um esforço sincero para praticar o Cristianismo
autêntico numa época de crescente indiferença. Isso podia ser visto no ciclo de
cultos bem como em suas atividades diárias. Seus cultos aconteciam em sete
horários fixos de oração: as Vigílias às duas da manhã, as Laudas ao raiar, as
Primas às seis da manhã, as Terças às nove da manhã, as Sextas ao meio-dia, as
Vésperas às quatro e trinta da tarde e as Completas às seis da tarde. Mas também
era exigido que os monges trabalhassem nos campos e realizassem tarefas no
mosteiro. Essa ênfase sobre o trabalho contribuiu enormemente para a
valorização do trabalho na sociedade ocidental. Além disso, o mosteiro era um
centro de desenvolvimento nos estudos. Em suas escolas os monges aprendiam a
ler e escrever, criavam bibliotecas constituídas da Bíblia, obras dos Patriarcas e
literatura clássica secular, livros estes que eram meticulosamente copiados á
mão. Sem essas bibliotecas, a maior parte do conhecimento da antigüidade
clássica teria se perdido.
Ainda assim, com freqüência havia tensão entre os líderes monásticos e a
hierarquia eclesiástica. Com exceção dos celtas, a maioria dos monges era leiga.
Benedito, por exemplo, recusou a ordenação, Jerônimo e Martinho foram
ordenados contra sua própria vontade e o eremita egípcio Amon (cerca de 350)
cortou fora sua orelha direita para tornar-se desqualificado à ordenação. Um
escritor, João de Nicópolis, expressou a típica antipatia monástica pelo
sacerdócio ao aconselhar: “Se desejas escapar dos problemas, não deixes o
deserto, pois no deserto ninguém pode ordená-lo bispo”.

Nos três séculos depois da conversão de Constantino a Igreja consolidou


seu poder e prestígio. Na Europa ocidental a liderança cristã ofereceu
estabilidade durante as invasões germânicas e o colapso da ordem política
romana. Liturgias elaboradas foram formuladas para celebrar o batismo e a
Santa Ceia e diversos dias santos foram acrescentados ao calendário cristão. Ao
contrário do estabelecimento do Cristianismo e do conseqüente declínio da
devoção pessoal, o movimento monástico oferecia uma alternativa espiritual
autêntica. Os monges constituíam a força missionária que iria liderar a expansão
do Cristianismo para outras terras nos séculos seguintes.

Capítulo 5 - A expansão européia da Igreja


Lutas internas e migrações bárbaras transformaram drasticamente a
situação política no oeste do Império Romano durante os séculos 4º e 5º,
dividindo-o em vários reinos hereditários germânicos. Entre os séculos 5º e 10º
o Cristianismo espalhou-se além das fronteiras do antigo Império Romano
chegando aos celtas na Irlanda, aos alemães a leste do Reno e aos eslavos na
Europa central. Ao mesmo tempo, ele resistiu aos ataques que assaltaram a
Europa de três direções — os vikings do norte, os magiares do leste e os
muçulmanos do sul. Os dois primeiros grupos acabaram convertendo-se à fé
cristã, mas o último ocupou os centros tradicionais do Cristianismo no Oriente
Médio e Norte da África e invadiu a Espanha.

As migrações germânicas
Apesar de suas origens serem envoltas em mistério, ao que parece,
durante o primeiro milênio depois de Cristo as tribos germânicas concentravam-
se nas regiões costeiras do Báltico e do Mar do Norte. Aos poucos elas
empurraram para fora os povos celtas que haviam ocupado a área que hoje é
conhecida como Alemanha e no 1º século antes de Cristo fizeram contato com
os romanos que se expandiam. No século seguinte, detiveram o avanço romano
a leste do Reno e determinou-se uma fronteira (chamada de limes) entre eles. O
que se seguiu foi uma paz instável e germânicos individualmente e em pequenos
grupos infiltraram-se no Império. Muitos deles serviam o exército ou
simplesmente se assentavam lá. Mas, à medida que ocorreu um crescimento
populacional além das fronteiras imperiais, as tribos isoladas começaram a se
unir, formando confederações maiores. Ao longo da costa do Mar do Norte e da
península dinamarquesa ficavam os anglos, saxões e jutos. No vale do Reno
estavam os francos e alemães, enquanto os vândalos, burgúndios e lombardos
situavam-se nas áreas dos rios Oder e Vístula. Os ostrogodos e visigodos
assentaram-se a oeste e noroeste do Mar Negro.
Outro grupo de fora eram os hunos, um povo nômade das estepes centrais
da Ásia, lendários por sua coragem e crueldade. Eram excelentes cavaleiros que
lutavam como arqueiros com armas leves e que depois de não conseguirem
entrar na China voltaram-se para o oeste. Os historiadores discordam sobre quão
centralizada era a organização dos hunos mas fica claro que suas unidades de
cavalaria eram extremamente eficientes. Quando chegaram à Europa central,
aterrorizaram os godos que viviam ao longo das fronteiras imperiais. Sua
presença desencadeou uma nova onda de migrações tradicionalmente chamada
de “invasões bárbaras”.
Os povos mais ameaçados de imediato foram os visigodos que pediram
permissão para cruzar o Danúbio e assentar-se dentro do Império. O
Cristianismo já havia se arraigado em seu meio graças ao trabalho de Ulfilas
(cerca de 311-381). Descendente de capadócios, ele viveu entre os godos como
prisioneiro e depois foi levado para Constantinopla. Lá, tornou-se um cristão e
aprendeu grego e latim. Em 341 foi ordenado pelo bispo ariano Eusébio da
Nicomédia e voltou para os godos como missionário. Um homem de grande
aptidão lingüística, ele criou um alfabeto usando letras gregas para representar
sons góticos, colocou a língua em forma escrita e traduziu a Bíblia para ela.
Porém, conforme observou Filostógiro, um historiador da época, Ulfilas deixou
de fora os livros de Reis “pois são apenas histórias de batalhas e as tribos
góticas tinham um gosto especial pela guerra e precisavam ser contidas e não
incentivadas nesse sentido”. A conversão dos visigodos ao Arianismo teria um
impacto profundo em suas relações com outros povos cristãos à medida que
deslocaram-se pelo Império.
563 589 627
Columba 3º Concílio Batismo de
funda Iona de Toledo Edwin
389-461 496 516 596 603 680-754 863
Patrick Batismo de Conversão Missão de Batismo de Bonifácio Cirilo e
Clóvis de Agostinho Aethelberh Metódio
Sigismund à Inglaterra t enviados à
o Morávia
400 550 750 900
410 453 568 570-632 711 732 793 894
Os Morre Os Maomé Invasão da Batalha de Os vikings Conversão
visigodos Átila o lombardos Espanha Tours saqueiam do rei da
saqueiam huno invadem a pelos Lindisfarne Boêmia
Roma Itália mouros
466-511 795 786-809
Clóvis Primeiro saque viking da Harun al-
Irlanda Rachid

Em 376 o imperador Valêncio relutantemente permitiu que os godos


entrassem em seus domínios e deu-lhes algumas terras em troca de serviço
militar. Porém, os oficiais romanos gananciosos e corruptos que eram
responsáveis por assentar os visigodos em Trace obrigaram-nos a pagar por
suprimentos que o imperador tinha prometido dar a eles. Durante as negociações
para resolver esses problemas surgiram hostilidades e em 378 o próprio
Valêncio liderou um exército para tratar com os godos rebeldes. Na batalha que
se seguiu em Adrianópolis, as forças imperiais foram derrotadas e o imperador
foi morto. Apesar desse acontecimento ser tradicionalmente considerado um
ponto crítico na história do Império Romano, nos últimos tempos os estudiosos
tem atenuado a importância de Adrianópolis. Isso porque a batalha ocorreu
numa parte do Império que sobreviveu por mais mil anos. O novo imperador,
Teodósio I, reconheceu os godos como foederati, aliados que juravam servir
junto aos exércitos romanos e assentou-os em terras imperiais na Bulgária. Mas
tarde, ele usou-os em seu esforço para restabelecer o controle sobre o Império
Ocidental.
Ainda assim, os visigodos estavam descontentes com sua situação. Sob a
liderança de Alarico eles rebelaram-se em 396, destruíram a Grécia e em 402
invadiram a Itália. Alguns anos mais tarde, voltaram-se contra a própria “Cidade
Eterna” (Roma). A princípio, Alarico foi comprado com um suborno, mas então,
em 410 seus visigodos saquearam a cidade, algo que não havia acontecido em
oito séculos. Quando Jerônimo, na distante Belém, ouviu sobre esse desastre,
escreveu: “Quem poderia acreditar que Roma não luta mais pela glória, mas por
sua própria existência e não chega nem mesmo a lutar, mas sim compra sua vida
com ouro?”
Enquanto Alarico invadia a Itália, as tropas romanas da fronteira
germânica foram chamadas de volta. Isso permitiu que várias tribos germânicas
se deslocassem livremente para dentro do território imperial, sendo a mais
importante delas a tribo dos vândalos. Em 409 eles avançaram no sentido sul,
para a Espanha, mas com a ajuda dos visigodos os romanos os empurraram para
o norte da África. Como recompensa por sua ajuda, os visigodos obtiveram
permissão para assentar-se na região sudoeste da França e, mais tarde, na maior
parte da Espanha.
No final do 6º século, aproximadamente duzentos mil visigodos
governavam uma população de oito milhões de hispano-romanos. Estes últimos
eram, em sua maioria, católicos (trinitarianos) enquanto a aristocracia guerreira
dos visigodos era ariana. Como essa foi a origem de graves tensões entre os dois
grupos, o rei Reccared (586-601) decidiu adotar a visão católica de seus súditos
e no 3º Concílio de Toledo, em 589, persuadiu os bispos arianos a fazer o
mesmo. Isso permitiu que a assimilação entre os dois povos desse início a um
período de cooperação bastante próxima entre a Igreja e o Estado que durou até
a conquista muçulmana da Espanha no 8º século.
Como reação ao Arianismo que ainda continuava, o Concílio formalmente
inseriu a cláusula filioque (“e do Filho”) no Credo de Nicéia para definir a
processão do Espírito Santo. Mais tarde, a igreja do Oriente iria apresentar
objeções quanto à emenda como sendo uma inovação (Na verdade, os líderes da
igreja oriental sentiram-se desprezados por não terem sido consultados sobre
esse assunto.). Essa ação veio da parte de Isidoro, bispo de Sevilha que serviu
como conselheiro de diversos reis visigodos. O mais impressionante dentre uma
sucessão de vários bispos, Isidoro era especialmente crítico em relação as
atitudes anti-semíticas de seus companheiros espanhóis (já havia uma grande
população de judeus em seu meio). Além disso, também tinha suspeitas quanto
ao Cristianismo bizantino (oriental). Além de suas outras atividades, ele
produziu muitas obras influenciais, incluindo a mais antiga enciclopédia
medieval, Etimologias. Os escritos de Isidoro foram usados especialmente pelos
líderes da igreja irlandesa e inglesa.
Sob a liderança de Gaiserico, os vândalos cruzaram o Estreito de Gibraltar
em 429 e dominaram a região ocidental do norte da África. Construíram então
uma poderosa esquadra e atacaram as ilhas do Mediterrâneo e o sul da Itália. Em
455 capturaram e saquearam Roma de modo ainda mais completo do que
haviam feito os visigodos em 410. Os vândalos eram arianos extremamente
devotos que perseguiram os católicos e exilaram cinco mil clérigos no deserto
do sul. Em 484, um concílio em Cartago — que era controlada pelos vândalos
— chegou até mesmo a declarar que o catolicismo era uma heresia. Depois da
morte de Gaiserico, o reino entrou rapidamente em declínio e a região foi
reconquistada por Justino em 534.
Enquanto isso, os hunos que haviam se localizado temporariamente a
norte do Danúbio e aterrorizado tanto tribos germânicas quanto eslávicas
serviram como soldados mercenários e receberam dinheiro de tributo dos
imperadores romanos. Porém, em 450 o imperador recusou-se a continuar
fazendo o pagamento combinado e então Átila, o único governante dos hunos
desde 445, liderou um exército para dentro do império. Em 451 uma
confederação de galo-romanos, visigodos e outros germânicos derrotou suas
forças numa batalha próxima a Chalons, na França, e forçou sua retirada para o
Danúbio. No ano seguinte ele atacou a Itália e encontrou pouca resistência, mas
Leão I dirigiu-se para o norte, vindo de Roma e persuadiu o líder dos hunos a
sair. O motivo real de sua retirada dos territórios italianos aparentemente
indefesos pode ter sido uma epidemia que devastou o exército de Átila. Em 453
Átila faleceu e acabou-se a ameaça dos hunos sobre o império mas em lendas
cristãs posteriores ele ficou conhecido como o “flagelo de Deus”, o temível
instrumento da vingança divina.
Durante o século 5º duas invasões do Império do Ocidente levaram à
formação de importantes estados hereditários. Em 493, Teodorico (cerca de 455-
526) estabeleceu um reino ostrogodo. Ele era filho do governante ostrogodo da
província romana da Panônia (Hungria) e foi educado na corte imperial em
Constantinopla. Um cristão ariano, ele tornou-se sucessor da liderança tribal em
475. O imperador ficou aliviado quando ele e seus godos dirigiram-se para o
norte da Itália, depuseram de lá aquele que se dizia imperador, fundaram uma
nova capital em Ravena e restauraram a estabilidade. Apesar de ser um líder
guerreiro, Teodorico também foi um eficiente administrador que tinha uma bom
domínio do sistema imperial romano e apoiou-se em oficiais romanos ao invés
de dar a administração civil para os godos. Na verdade, ele estabeleceu uma
sociedade dupla, romana e gótica, cada uma com suas próprias leis, governantes
e práticas religiosas. O lado militar ficou sob domínio dos godos e a cultura foi
controlado pelos romanos.
Mesmo sendo arianos, Teodorico e seus líderes demonstraram uma
tolerância admirável em relação à fé católica dos nativos italianos. “Não
podemos comandar a religião de nossos súditos, tendo em vista que ninguém
pode ser forçado a crer contra sua vontade”. Porém, pouco antes de sua morte,
Teodorico teve sérios mal-entendidos com a população romana que não gostava
muito de seu governante ariano. Ele acusou diversas figuras proeminentes de
traição, inclusive Boécio (cerca de 480-525), o maior filósofo cristão da época,
que foi executado. Enquanto estava na prisão, Boécio escreveu sua famosa obra
Consolo da Filosofia.
Cassiodoro (cerca de 447-570) é o melhor exemplo do uso de católicos
por um governante ostrogodo ariano em sua administração. Ele colocou os
estudos literários a serviço da religião cristã ao colecionar e preservar tanto
escritos clássicos quanto cristãos. Suas obras sobre Teologia e ciências humanas
foram amplamente utilizadas na Idade Média. Depois da morte de Teodorico, o
reino ostrogodo desintegrou-se rapidamente e foi reincorporado pelo Império
Bizantino de Justiniano em 552. A essa altura, a cidade de Roma havia se
transformado em símbolo de atraso cultural e econômico.
Os burgúndios eram uma tribo germânica deslocada pelos hunos que
avançou no sentido oeste indo para o sudeste da França no final do século 5º.
Apesar de serem arianos, eles tinham um bom relacionamento com os católicos
latinos dentro dos antigos centros católicos que ocupavam e em 516, seu rei
Sigismundo decidiu converter-se ao Cristianismo católico. Um acontecimento
muito mais importante foi a invasão dos francos, uma coalizão de povos
germânicos, que assentaram-se no norte da França. Eles foram a única tribo
germânica a entrar no império como pagãos e não como cristãos arianos.
O primeiro grande rei franco, Clóvis (466-511) colocou sob seu governo
todas as diversas tribos e infligiu derrotas sobre os visigodos, burgúndios e
alemanos. Apesar de ser pagão, Clóvis era casado com Clotilda, uma princesa
católica. De acordo com a lenda franca, Clóvis estava lutando contra os pagãos
alemães quando voltou-se para o Deus de sua esposa para pedir ajuda. Ele
prometeu aceitar a Cristo se saísse vitorioso e quando a guerra terminou em seu
favor, ele e mais três mil dos seus guerreiros foram batizados no dia de Natal em
496 pelo bispo de Rheims. Clóvis foi o primeiro governante germânico a tornar-
se católico e sua conversão foi o acontecimento político-religioso mais
importante desde a conversão de Constantino pois estabeleceu os alicerces de
alianças posteriores entre os francos e o papado.
Porém, esse ato não levou a uma vida santa. Gregório de Tours relata
vividamente em sua História dos Francos (573-91) como era o estilo de vida
dissoluto, as brigas, intrigas e assassinatos que caracterizavam o governo dos
sucessores de Clóvis, os merovíngeos. Gregório, o principal líder da Igreja
durante o período merovíngeo, recordou-se com carinho da vida de São
Martinho de Tours — que tanto havia feito para converter os camponeses
cristãos e expandir o monasticismo na Gália — e comparou-a com a triste
situação do seu tempo. Os governantes merovíngeos, por exemplo, não tinham
nenhum escrúpulo quanto a tomar posse de propriedades da Igreja e nomear
bispos de sua preferência. Um grupo extremamente violento, eles lutavam
constantemente entre si e chegaram a levar ofertas de ação de graças ao
santuário de São Martinho depois de terem cortado a garganta de seus rivais. A
própria disciplina clerical tornou-se tão ruim a ponto de dois bispos terem que
ser depostos por violência e adultério.
Apesar do Cristianismo franco ser somente de aparência, os governantes
batizavam seus filhos e, no século 7º, quase toda a população havia recebido o
batismo. Mas poucas pessoas dedicavam-se à sua fé, a ceia era tomada
raramente e quase não se prestava atenção nos sermões do clero. Há registros de
que Hilário de Arles gritava com aqueles que saíam do culto antes do sermão,
dizendo que eles não teriam como sair tão facilmente do inferno e Cesário de
Arles trancava as portas da igreja para impedir que seus párocos saíssem antes
de ele pregar.
O último povo germânico importante a entrar no Império foram os
lombardos. Justiniano havia permitido que ficassem na Panônia como aliados
contra os ostrogodos e seus soldados participaram em sua guerra na Itália. Mas,
ao destruir o único poder que tinha como mantê-los afastados, os lombardos
arianos conseguiram voltar à Itália como conquistadores em 568. Eles
dominaram a maior parte da região central e norte da Itália, impuseram seus
costumes sobre essa área e tornaram-se rivais do papado pelo controle da Itália.
No século seguinte, os lombardos mudaram para a ortodoxia católica.
No final do 6º século, vários estados hereditários germânicos tinham
ocupado o território do Império Romano ocidental. Mas seria errado falar da
“queda de Roma”, como acontece com tanta freqüência na literatura popular. O
fato é que os imperadores do século 5º simplesmente abriram mão ou perderam
o controle do território do Império para governantes germânicos. Teoricamente,
esses povos eram subordinados à autoridade do imperador, mas na realidade ele
não recebia nenhum benefício material deles e não podia exercer autoridade
sobre seus súditos germânicos. Assim, o Império do Ocidente simplesmente
delegou o poder e deixou de existir. Porém, a cultura romana manteve sua
continuidade à medida em que as tribos eram assimiladas em diferentes graus e
diziam ser cristãs.

O Cristianismo nas ilhas britânicas


O Cristianismo havia se estabelecido entre o povo na Grã-Bretanha
romana e é possível que até trinta bispos estivessem em serviço até o final do 4º
século. Deste modo, as invasões anglo-saxônicas podem ter enfraquecido mas
não extinguiram a igreja celta. Quando as unidades militares romanas foram
retiradas por volta do ano 400 para lidar com problemas no continente, a Grã-
Bretanha ficou sujeita aos ataques dos pictos e irlandeses. Os saxões foram
contratados como mercenários para oferecer defesa contra esses invasores.
Assim, eles entraram na Grã-Bretanha da mesma forma como os francos e
visigodos entraram no Império e assumiram um papel na sociedade que antes
havia sido desempenhado pelo exército romano. Por causas desses acordos, cada
vez mais saxões, juntamente com anglos e jutos, se estabeleceram nas regiões
leste e norte da Grã-Bretanha, mas poucos eram cristãos.
As obras que fazem referência à história primitiva do Cristianismo pós-
romano são de Nênio (cerca de 800) — que menciona o ministério de Patrício na
Irlanda e o lendário rei Artur que lutou contra anglo-saxões — e do Venerável
Bede (673-735), um monge de Wearmouth e Jarrow no norte da Inglaterra.
Apesar de haver poucas informações concretas, sabe-se que Niniano levou o
evangelho aos pictos no sudoeste da Escócia no final do 4º século. Ele fundou
uma famosa igreja no mosteiro em Whithorn e ministrou para os povos dessa
área remota. O povo de Gales foi evangelizado no 6º século por um asceta quase
desconhecido chamado Dewin ou São Davi, que fundou uma dúzia de
mosteiros. Quando no século 11 os galeses declararam sua independência da
igreja inglesa, afirmaram de modo ousado o fato pouco provável de que David
tinha sido nomeado “arcebispo de toda a raça britânica” pelo patriarca de
Jerusalém.
Não se sabe ao certo quando o Cristianismo chegou à Irlanda, mas uma
crônica antiga relata a existência de um indivíduo chamado Paládio que foi
enviado de Roma em 431 para ser bispo dos “irlandeses crentes em Cristo”.
Porém, o verdadeiro crédito pela evangelização dos irlandeses é dado a São
Patrício (cerca de 389-461). Tudo o que se sabe ao certo sobre ele vem de seus
dois escritos que sobreviveram: As Confissões e Cartas aos Soldados de
Caróticus. As biografias posteriores de São Patrício são adornadas por
elaboradas lendas e histórias de milagres.
De família cristã da Grã-Bretanha, Patrício foi capturado por invasores
aos 16 anos de idade e levado como escravo para a Irlanda. Depois de passar
seis anos trabalhando como pastor, ele escapou e voltou para sua família. Logo
depois disso, recebeu uma visão na qual ouviu a voz dos irlandeses clamando
para ele “pedimos-lhe, menino, que venha andar entre nós mais uma vez”.
Respondendo a esse chamado ele estudou num mosteiro em Gales e então foi
para a Irlanda. Chegou por volta de 432, já consagrado como bispo e passou os
próximos trinta anos lá. Ele pregou, fundou várias igrejas e mosteiros e até
mesmo converteu membros da família do Alto Rei em Tara. Em 444 fundou sua
catedral em Armagh, que tornou-se o centro educacional e administrativo da
igreja irlandesa.
A característica singular da igreja fundada por Patrício era que ela
baseava-se na organização monástica e não na diocesana e no clero catedral.
Essa estrutura foi resultado da peculiar sociedade irlandesa pois as terras eram
divididas entre oitenta a cem clãs variáveis (reinos) e praticamente não havia
cidades. Numa situação tão flutuante, era impossível estabelecer dioceses fixas.
Os mosteiros, que possuíam terras e rebanhos, normalmente eram controlados
por abades indicados pelos chefes (reis) locais. Uma outra razão para a ênfase
monástica era a capacidade dos monges de preencher dentro da sociedade
irlandesa o lugar que antes havia sido ocupado pelos mágicos (druidas) e poetas,
que tinham desempenhado o papel de sacerdotes e estudiosos. Na sociedade
pagã anterior à alfabetização, esses indivíduos haviam memorizado as leis,
genealogias e lendas que permitiam a conservação de registros desses reinos e a
base “histórica” para sua existência separada.
Assim, os monges assumiram o papel das elites existente e puderam
ganhar a população para Cristo. Eles também ficaram conhecidos por seu
asceticismo e dedicação a um estilo de vida simples. Ao mesmo tempo, contudo,
tinham grande entusiasmo pelos estudos, o que pode ter sido encorajado por
estudiosos do continente que haviam fugido antes das invasões germânicas. O
melhor latim da Europa era ensinado nas escolas monásticas daquela época e os
irlandeses eram especialistas no ensino do latim como língua estrangeira pois
nunca haviam feito parte do Império Romano e compartilhado de sua cultura.
Para eles, isso viria a ser uma vantagem ao dedicarem-se ao evangelismo entre
os povos germânicos. Como a tradição de serem itinerantes permaneceu forte
entre os monges irlandeses, eles puderam realizar uma obra missionária eficaz.
A Irlanda era, essencialmente, o centro literário, artístico e cultural do Ocidente,
sendo prova disso obras com ilustrações ornamentais como O Livro de Kells e
Os Evangelhos de Lindisfarne (começo do 8º século) e as elaboradas esculturas
de cruzes celtas encontradas na ilha.

Agostinho de Canterbury
O maior papa do início da Idade Média, Gregório I, tinha um forte
compromisso com a renovação da Igreja no Ocidente. Estava particularmente
interessado na expansão do Cristianismo para a Inglaterra anglo-saxônica. Diz a
lenda que, quando ainda era um monge, ele viu meninos ingleses colocados à
venda no mercado de escravos romanos. Ele perguntou: “Quem são eles?” e a
resposta foi “Anglos”. Então Gregório disso “Eles não são anglos e sim, anjos”.
Seja como for, ele havia de fato planejado com cuidado a missão para a Grã-
Bretanha.
Em 596 ele enviou um grupo de quarenta monges sob a liderança de
Agostinho, o prior de um importante mosteiro em Roma. No ano seguinte, eles
chegaram à corte do rei Etelberto de Kent, uma figura de destaque entre os doze
governantes anglo-saxões da Grã-Bretanha. Tendo em vista que sua rainha Berta
(filha de um rei franco) já era cristã, Agostinho pôde persuadi-lo a receber a
Cristo e o rei foi batizado em 603. Como a capital do rei Etelberto era em
Canterbury, ele ofereceu a Agostinho — que havia sido nomeado arcebispo por
Gregório — um palácio para usar como sua sede episcopal. Por isso o centro do
Cristianismo inglês veio a se localizar naquele lugar ao invés da cidade maior
que era Londres. Gregório também aconselhou Agostinho a adaptar práticas
pagãs ao contexto cristão ao invés de condená-las por completo e através desse
meio, ele ganhou os anglo-saxões para Cristo.
Seguiu-se um longo e confuso período de lutas entre os reis anglo-saxões.
O problema era que, apesar dos novos governantes vindos da Alemanha serem
pagãos, um certo Cristianismo popular ainda persistia entre os bretães celtas, o
que foi reforçado pelos missionários irlandeses que começaram a chegar na Grã-
Bretanha. Ao mesmo tempo, os dois séculos de separação entre os celtas e Roma
havia levado ao desenvolvimento de diferenças na disciplina e na prática entre
as expressões da fé cristã de ambas. Agostinho tentou em vão reconciliar as duas
partes e essa continuou sendo uma questão crítica na religião da Inglaterra
durante o século 7º. Alguns reis chegavam a ver desdenhosamente o
Cristianismo como a fé dos seus servos e inimigos, os celtas.
A missão católica a Kent estendeu sua influência para o norte em 625
quando uma filha de Etelberto casou-se com Edwin, rei da Nortúmbria, o
governante anglo-saxão de maior destaque. Paulino, um dos missionários
romanos, acompanhou a rainha até York e começou a pregar para os súditos do
rei. Então, em 627 Edwin convocou um concílio no qual foi permitido a Paulino
discutir os méritos do Cristianismo. Ele perguntou aos seus conselheiros o que
achavam da nova fé e um deles respondeu:

Ó Rei, a vida do homem é como o vôo de uma andorinha por nossa sala de banquetes,
deixando a escuridão e o frio por um momento, passando pela luz e calor e voltando
novamente para o escuro e o frio. Uma religião que possa nos dizer mais sobre o
escuro além certamente deve ser seguida1.

Baseado nesse conselho, Edwin decidiu tornar-se um cristão e foi


batizado em York no domingo de Páscoa daquele ano. Como já era bispo,
Paulino fundou uma catedral em York que logo tornou-se o outro importante
centro do Cristianismo na Inglaterra.
Edwin e Paulino fizeram muita coisa para converter as regiões vizinhas de
Linconshire e Ânglia Oriental ao catolicismo romano. Porém, depois da morte
de Edwin em 633, a liderança passou para um outro ramo da casa real da
Nortúmbria, aquele chefiado por Osvaldo. Este havia sido batizado na igreja
celta e, ao assumir o poder, voltou-se para os monges irlandeses que
substituíram Paulino e seus colegas de trabalho. Um resultado das mudanças foi
que Osvaldo deu ao monge Aidan a ilha de Lindisfarne para construir um
mosteiro que funcionou como centro do Cristianismo celta na Nortúmbria.
Foi difícil reconciliar as diferenças que haviam surgido entre os celtas e
os romanos (católicos) e isso impediu a organização de um grupo comum para
converter os pagãos na Grã-Bretanha. Por exemplo, os celtas muitas vezes
tinham apenas um bispo presente na ordenação de outro bispo, enquanto os
romanos exigiam a presença de pelo menos três bispos numa consagração
episcopal.
Outra diferença estava na “tonsura” dos sacerdotes, isto é, como seu
cabelo deveria ser cortado e a cabeça raspada. Os celtas tiravam todo o cabelo
da orelha para cima e deixavam um pequeno tufo no alto, como uma auréola
enquanto os romanos raspavam o topo e deixavam uma borda em volta das
orelhas, como uma coroa de espinhos.
Uma terceira discussão girava em torno da data da Páscoa. Os irlandeses
seguiam um calendário antigo e falho, enquanto os romanos haviam descoberto
a data mais precisa. Assim, os celtas comemoravam a Páscoa no dia 14 de abril e
os romanos no dia 21 de abril. O Sínodo de Whitby (664) resolveu a questão da
data da Páscoa e sua decisão foi aceita aos poucos pelas diversas igrejas celtas.
Isso abriu caminho para a união das duas facções e solucionou o problema mais
sério no início da história da igreja britânica.

Missões celtas
Uma característica notável do Cristianismo celta era seu fervoroso zelo
missionário que nos séculos 6º e 7º resultou na fundação de mosteiros na
Escócia, Inglaterra, Bélgica, norte da Alemanha, França e até mesmo na Itália.
Columba (521-97) estava entre as figuras mais proeminentes do
movimento. Apesar de ser um monge devoto, era um indivíduo belicoso que
parecia estar sempre envolvido em conflitos. Seus companheiros monges
acabaram exilando-o da Irlanda e ordenando que pagasse seus pecados
convertendo para Cristo um número de almas igual àquele cuja morte ele havia
causado. Aos 42 anos de idade, ele partiu com doze companheiros para a
solitária ilha de Iona, perto do litoral da Escócia onde viveu austeramente numa
pequena cabana dentro de seu mosteiro e demonstrou grande compaixão pelos
pobres e necessitados. Passou os trinta quatro anos seguintes evangelizando as
ilhas vizinhas e a Escócia. Um dos convertidos foi Brude, rei dos pictos.
Columbano (cerca de 540-615) foi um clérigo irlandês com uma grande
paixão pelo aprendizado e que em 590 partiu para a obra missionária na Europa
continental. Ele fundou mosteiros em várias partes da França, sendo Luxeil o
mais conhecido e, por um tempo, a melhor instituição naquela região. Quando
os monges começaram a ter dificuldades com o governante burgúndio em 612,
mudaram-se para o norte da Itália, onde em meio aos lombardos arianos
Columbano fundou Bobbio, seu mosteiro mais famoso. Gall (cerca de 550-645),
um de seus companheiros de trabalho, trabalhou na Suíça e abriu uma pequena
abadia. Mais tarde, ela tornou-se o mosteiro beneditino de São Gallen, que até
hoje é conhecido por sua magnífica biblioteca.
O tipo de monasticismo praticado por Columbano era extremamente
intenso, sendo que comida, vestimenta e conforto pessoal eram restringidos com
severidade. Os monges tinham oito cultos por dia e cantavam os Salmos quase
que continuamente. Um monge que não respondeu o “Amém” foi corrigido com
seis golpes e alguém que contasse histórias sem propósito podia receber até
cinqüenta golpes. O rigor da Regra de Columbano acabou dando lugar à um
padrão beneditino mais moderado.
O prestígio do asceticismo irlandês, a reputação de santidade dos monges
(dizia-se que estavam “embriagados com Deus e não com vinho”) e a ênfase nos
estudos bíblicos atraíram muitos visitantes a essas fundações. A Irlanda oferecia
lugares espirituais que antes eram encontrados nos mosteiros e mestres ascéticos
do Egito e Palestina, sendo que o acesso a estes havia sido cortado pela
conquista árabe. Sabe-se da fundação de mais de duzentos mosteiros franco-
irlandeses no século 7º e a partir deles saíram inúmeros empreendimentos
missionários.
Um deles foi o de Amando de Aquitaine (cerca de 584-675) que exerceu o
ministério primeiro entre os bascos e os eslavos do Danúbio e depois tornou-se
bispo de Maastrich. Ele é lembrado como o “Apóstolo da Bélgica” por causa de
seus quarenta anos de serviço entre os povos flamengos.

As missões continentais anglo-saxônicas


No começo do 8º século a cultura cristã havia tornado-se tão firmemente
arraigada na Grã-Bretanha que os ingleses começaram a substituir os irlandeses
como missionários na Europa. Um dos líderes dessa obra foi Willibrord (658-
739) da Nortúmbria. Em 690 ele e um grupo de companheiros viajaram para a
Frísia e começaram um trabalho nas ruínas do forte romano de Utrecht. Nesse
empreendimento, foram sustentados pelos governantes flamengos que
desejavam estender sua autoridade para além-mar.
O herdeiro de Willibrord na missão da Frísia foi um outro monge anglo-
saxão, Wynfrith (680-754), conhecido mais tarde como Bonifácio. Aquele que
se tornaria “Apóstolo da Alemanha” nasceu em Devon e foi educado num
mosteiro beneditino na Inglaterra. Depois de trabalhar durante três anos na
Frísia ao lado de Willibrord, Bonifácio dirigiu-se para o sul e organizou igrejas
em Hesse, Turíngia, Francônia e Bavária. Numa visita a Roma em 722 ele foi
consagrado bispo itinerante da Alemanha pelo papa Gregório II. Então, retornou
para o seu campo de trabalho e realizou ali o que foi um dos feitos lendários
mais comoventes do começo da Idade Média. Em Geismar (perto de Fritzlar)
havia um grande carvalho que o povo de Hesse considerava sagrado para o seu
deus, Tor. Bonifácio disse-lhes que iria cortar a árvore para provar que Tor não
era deus e demonstrar a superioridade do Deus cristão. Enquanto uma
tempestade se formava, observadores trêmulos esperavam que Bonifácio fosse
morto com um raio. Mas assim que o machado atingiu a árvore, uma súbita
rajada de vento rasgou-a em quatro partes que depois Bonifácio cortou em
tábuas e usou para construir uma capela em homenagem a São Pedro.
Nos anos seguintes, Bonifácio dividiu os territórios germânicos em
dioceses e fundou mosteiros de estilo beneditino, sendo o mais importante deles
em Fulda. Também começou escolas que treinavam tanto sacerdotes quanto
leigos e que serviam de centros missionários e lugares de aprendizado. Inspirou
muitos ingleses a juntarem-se a ele em iniciativas missionárias e monásticas,
sendo uma das inglesas uma mulher chamada Lioba. Esta tornou-se abadessa do
convento de Tauberbischofsheim e ficou conhecida por seu conhecimento não
apenas das Escrituras mas também da lei canônica e da história da Igreja.
Ao contrário dos missionários celtas, Bonifácio não era um individualista
austero e sim um líder, organizador e, acima de tudo, servo do papado. Mais do
que qualquer um, ele foi responsável pela construção da Igreja medieval alemã.
Com o auxílio de monges e freiras anglo-saxões ele destruiu os últimos pontos
de resistência do paganismo alemão e fundou abadias e dioceses em seu lugar.
Como a Alemanha a leste do Reno ainda era uma terra sem cidades, as cátedras
dos bispos tornaram-se os novos centros de vida urbana.
Além do seu trabalho entre os pagãos germânicos, Bonifácio foi o
reformador da igreja franca. A decadente dinastia merovíngea havia entregue
grande parte do seu poder aos Prefeitos Palacianos que, apesar de suas
habilidades militares, não faziam nada para trazer avanços culturais ou moralizar
a Igreja. Um deles, Carlos Martel, confiscou propriedades da Igreja e usou
abadias e dioceses como recompensa para seus amigos. Bonifácio condenou
essa corrupção numa carta ao papa:

Todos os seus crimes não os impedem de alcançar o sacerdócio; finalmente, crescendo


em pecado à medida que sobem na hierarquia, tornam-se bispos e aqueles que podem
se orgulhar de não ser adúlteros ou fornicadores, são beberrões, dados à caça e
soldados que não se abstém do derramamento de sangue cristão.

Porém, numa série de concílios nos quais ele representou o papa,


Bonifácio conseguiu reorganizar a igreja franca sob os bispos metropolitanos
que reportavam a Roma.
Cansado da política eclesiástica, Bonifácio voltou para o campo
missionário em busca do martírio. Não tardou a encontrar a morte pela qual
havia ansiado, quando ele e um grupo de seguidores foram massacrados por
frísios pagãos em Dokkum (Holanda). De acordo com seu desejo, foi sepultado
sob o altar em Fulda, onde suas relíquias estão até hoje.
Os monges irlandeses e ingleses haviam transformado a Europa numa
terra cristã ao converter o humilde povo camponês para sua fé. O trabalho de
Bonifácio em particular afetou o desenvolvimento da Igreja católica pois suas
obras missionárias trouxeram grande parte dos povos germânicos para dentro da
estrutura de uma Europa cristã, enquanto suas atividades na Galísia fortaleceram
os laços entre a igreja franca e o papado.

As invasões vikings
Os vikings (também conhecidos como nórdicos ou povos do norte) eram
um povo proveniente da Escandinávia, voltado para o mar e ligado aos
germânicos étnica e lingüisticamente. Entre o final do século 9º e o início do
século 11, fizeram comércio e atacaram europeus da Espanha até a Rússia,
sendo que suas atividades mais destrutivas ocorreram nas Ilhas Britânicas e na
França. Também criaram assentamentos pacíficos nas ilhas do Atlântico Norte,
Islândia, Groelândia e, por um curto período de tempo, na América do Norte.
Há muita discussão histórica sobre os motivos que levavam os vikings a
atacar e como países escandinavos pequenos, pobres e distantes podiam enviar
tantos guerreiros do mar. Entre as explicações podemos citar uma explosão
populacional, pressões da expansão eslávica do sudeste, mudanças climáticas e
avanços na construção de navios e tecnologia de navegação. Essa era de
migrações também coincidiu com o tempo em que governos organizados
estavam se estabelecendo na Escandinávia de modo que dali em diante muitos
grupos pequenos foram aos poucos unificando-se sob os reis da Dinamarca,
Noruega e Suécia. Talvez, à medida em que alcançou-se estabilidade interna, os
indivíduos mais agressivos e violentos foram para outros lugares. Apesar dos
três povos terem participado das jornadas, só aqueles da Noruega e Dinamarca
atuaram na Europa ocidental. Os suecos, que governavam o Mar Báltico,
penetraram nas terras eslavas da Europa oriental.
É possível que a princípios os vikings tivessem sido recebidos como
comerciantes, mas o povo das Ilhas Britânicas e da França logo descobriu que
eles preferiam a pirataria ao invés da paz. Seus ataques aterrorizavam os
moradores do litoral e comunidades ribeirinhas e, a julgar por seus nomes e
feitos, sua ferocidade não tinha limites. Homens como Erik Bloodaxe (do
Machado Ensangüentado), Harald Bluetooth (do Dente Azul) e Thorkill
Skullspliter (o Quebra-Crânios) tinham a guerra como ocupação e entravam em
estado de frenesi, uivando como lobos e segurando suas espadas de ferro com os
dentes. Muitos fizeram preces como a do povo da França: “Da fúria dos homens
do norte, Senhor, livrai-nos”.
Em 795 os vikings começaram ataques rápidos quase incessantes sobre a
Irlanda, mas na década de 830 passaram a se assentar no litoral. Seus portos
mais tarde desenvolveram-se formando cidades como Dublin, Limerick, Cork e
Waterford. Outras invasões se seguiram e as dificuldades resultantes eram tantas
que um cronista irlandês daquela época se lamentou dizendo:

Se cem cabeças de ferro endurecido pudessem crescer em um só pescoço, e se cada


cabeça tivesse uma centena de línguas afiadas e indestrutíveis feitas de metal
temperado, e se cada língua gritasse incessantemente com uma centena de vozes
impossíveis de se erradicar, elas jamais seriam capazes de enumerar as tristezas que o
povo da Irlanda — homens e mulheres — sofreram nas mãos desses guerreiros cruéis e
pagãos.2
As famosas torres redondas da Irlanda — fortificações defensivas nas
quais o povo se abrigava quando os atacantes vikings apareciam — são desse
período. Porém, no ano 1000 a ameaça havia diminuído e os vikings se
misturado através do casamento com os nativos irlandeses e aceito o
Cristianismo.
Na Inglaterra, os primeiros ataques vikings ocorreram no final do 8º
século. A “Terra Santa” de Lidisfarne foi atacada em 793 e um relato declara
que a igreja do mosteiro ficou “manchada com o sangue dos sacerdotes de Deus
e despojada de todos os seus ornamentos”. O mosteiro de Bede em Jarrow foi
incendiado e as construções na ilha de Iona foram sucessivamente saqueadas.
Do ponto de vista do vikings, saquear igrejas e mosteiros fazia perfeito sentido.
Eram lugares de fácil acesso e instituições abastadas que continham ricos
tesouros como relicários de ouro, capas de livros incrustadas de jóias e
ornamentos litúrgicos.
Em 865 uma força dinamarquesa liderada pelos filhos de Ragnor Lodbrok
conquistou a Mércia e a Nortúmbria. Porém não foram capazes de subjugar
Wessex, que era governada pelo resistente monarca Alfredo o Grande, um
distinto estudioso bem como competente guerreiro. Eles concluíram um tratado
de paz com o rei em 878 e o líder dinamarquês Guthrum aceitou ser batizado e
deixar aquela região. Com efeito, as terras foram divididas entre os saxões e os
dinamarqueses e o território viking passou a ser chamado a partir de então de
Danelaw. O que seguiu-se foi uma considerável imigração dinamarquesa para
aquela área e os recém chegados foram aos poucos tornando-se cristãos. Uma
segunda onda viking ocorreu entre 980 e 1035 e de 1016 a 1035 um rei
dinamarquês chamado Cnut (Knute) ocupou o trono inglês. Líder de um
poderoso império escandinavo, rei da Dinamarca (1019) e Noruega (1028), Cnut
também era um cristão fervoroso que chegou até a convidar missionários para
evangelizar sua terra natal.
No século 9º, tanto vikings noruegueses quanto dinamarqueses atacaram
cidades francesas ao longo dos rios Sena e Loire como Rouen, Nantes e Paris e
mais tarde Bordeaux e Toulouse também. Ao invés de voltarem para casa
durante o inverno como costumavam fazer, os vikings começaram a assentar-se
na França e intensificar suas operações. Então, em 911, Carlos o Simples, rei
dos francos do Ocidente, fez um tratado com Rollo, um líder viking. Os homens
do norte receberam uma grande extensão de terra ao longo da costa e Rollo foi
batizado e casou-se com uma princesa da França. Assim também seus
seguidores tornaram-se cristãos e fixaram residência no território prometido que
era chamado de Normandia. Conhecidos como normandos, ainda retinham suas
energias vikings e nos dois séculos seguintes invadiram a Inglaterra e depuseram
a monarquia anglo-saxônica, fundaram reinos no sul da Itália e Sicília e
desempenharam um papel importante nas Cruzadas.
Enquanto os vikings estavam aterrorizando a Europa, a primeira iniciativa
de convertê-los foi tomada pelo monge Ansgar (801-65). Ele pregou na
Dinamarca e Suécia, teve pouco sucesso, mas tornou-se então arcebispo de
Bremen onde teve um ministério eficaz e lançou os alicerces para a conversão
da Escandinávia que veio a ocorrer mais tarde. Seus sucessores no norte da
Alemanha deram continuidade ao trabalho de evangelização da área conhecida
como Saxônia contando com a ajuda de missionários da Inglaterra enquanto, ao
mesmo tempo, consideravam-se arcebispos de toda a região. Ainda assim, só no
século 12 é que finamente foram criadas dioceses escandinavas.
Na última metade do século 10º e primeira do século 11, três dos
principais reis — Harald Bluetooth da Dinamarca, Olaf Trygvesson da Noruega
e Olaf o Coletor de Impostos da Suécia — formalmente transformaram o
Cristianismo em religião oficial dos seus domínios. A razão para que
renunciassem ao paganismo foi tão política quanto religiosa, pois viram a
organização da Igreja como sendo útil para manter um Estado ordeiro.
Porém, na Suécia o Cristianismo demorou para criar raízes e as lutas entre
a antiga e a nova fé continuaram ao longo do século 11. Um cronista — Adão de
Bremen — deixou um horrível relato de sacrifícios humanos que eram uma
parte central do culto pagão no templo de Uppsala: “Podia-se ver cães e cavalos
pendurados perto de seres humanos. Um cristão disse-me que tinha visto setenta
e dois corpos pendurados juntos”. Ainda assim, o evangelho prevaleceu e em
110 o templo havia sido destruído e uma diocese ocupava seu lugar.
Enquanto isso, a população imigrante norueguesa na Islândia havia sido
ganha para Cristo depois de uma erupção vulcânica que tinha assustado seus
líderes pagãos. O primeiro bispo assentou-se lá em 1056. A conversão da
Finlândia veio algum tempo depois, quando o rei sueco dominou o território no
final do século 12. Porém, foram necessários mais cem anos para converter toda
a população à nova fé. Assim, nos estados vikings, a aceitação final do
Cristianismo foi alcançada através das dinastias governantes e dentro de um
espaço de tempo relativamente curto.
Um aspecto da expansão viking que mostrou-se bem menos violento foi o
movimento de um povo da Suécia conhecido como varangianos para a Europa
oriental. Usando o sistema hídrico eles desenvolveram relações comerciais que
iam até o Mar Negro. No século 9º assentaram-se em Novgorod e logo depois
seu líder, Oleg (879-912) colocou sua capital em Kiev, às margens do rio
Dnieper. Eles também eram conhecidos como rus e governaram os eslavos que
viviam naquela região.
O aumento dos contatos comerciais e militares com Constantinopla tornou
os rus de Kiev cada vez mais abertos para a influência cultural bizantina. Alguns
trabalhos missionários iniciaram-se na década de 860, mas uma conversão
definitiva da dinastia e o estabelecimento do Cristianismo ortodoxo ocorreram
só um século mais tarde. O primeiro membro da família regente a converter-se
foi Olga em 957. Então, em 988 o governante de Kiev, Vladmir I, depois de
considerar o Judaísmo, Islamismo e Catolicismo ocidental cristão, decidiu
adotar a fé oriental ortodoxa. Diz-se que seus mensageiros ficaram tão
admirados com a magnificência da igreja de Santa Sofia em Constantinopla que
relataram “Não sabemos se estávamos no céu o na terra. Pois na terra não há tal
esplendor ou beleza e vemo-nos incapazes de descrevê-la”.
Como parte do acordo com o imperador Basílio II, Vladmir deveria
receber em casamento a filha de Basílio, Ana, independente do fato de ele ser
conhecido como um monstro por seus vícios, perversão e crueldade e de já ter
tido várias esposas e mais de oitocentas concubinas. Apesar de sua falta de
santidade, mais tarde Vladmir foi canonizado pela Igreja e chamada de “igual
dos apóstolos” por seu trabalho de converter os domínios de Kiev. Logo já
existia uma igreja russa, organizada de acordo com o modelo bizantino, usando
construções de estilo bizantino e reconhecendo o patriarca de Constantinopla
como seu líder supremo.

O Cristianismo na Europa central e oriental


A porção a leste da Alemanha e do Mar Adriático tinha uma população
composta de uma rica variedade de povos, sendo a maioria de eslavos que
haviam migrado para o oeste e sul e vários povos nômades (avares, búlgaros e
magiares) que haviam se mudado da Ásia. Os eslavos eram divididos em três
grupos lingüísticos: ocidental (checos, morávios, eslováquios, poloneses e
vênetos); do sul (eslovenos, croatas, sérvios e macedônios) e oriental (russos,
bielorussos, ucranianos e rutenos). A difusão do Cristianismo entre esses povos
foi complicada pelo conflitos dos interesses germânicos, do papado e dos
bizantinos.
Os mais importantes dentre os primeiros missionários aos eslavos foram
dois irmãos. Cirilo (ou Constantino) e Metódio, que em 863 foi enviado pelo
imperador bizantino para a Morávia. Ao invés de usar o latim como faziam os
missionários ocidentais, eles inventaram um alfabeto eslavo e traduziram os
evangelhos para esse idioma. Foi a partir dos escritos originais, conhecidos
como glagolíticos, que evoluiu o alfabeto cirílico. Este usava caracteres gregos e
tornou-se a linguagem escrita na Sérvia, Bulgária e Rússia. Depois de ganhar
muitos convertidos, os irmãos prosseguiram criando uma liturgia eslava Em 867
viajaram para Roma e garantiram a aprovação do papa para essa inovação.
Apesar das crescentes tensões entre Roma e Constantinopla, eles conseguiram
manter-se leais a ambos os centros eclesiásticos, e o papa chegou até mesmo a
apoiar Metódio numa pequena disputa por jurisdição com o arcebispo alemão de
Salzburg que ressentiu-se com o trabalho missionário que Metódio estava
realizando na Eslovênia.
Os próprios alemães levaram o evangelho à Polônia, Boêmia e Hungria
durante o século 10º e início do século 11. Em 968, uma arquidiocese foi criada
em Magdeburg sem ter qualquer limite oriental. A intenção era que ela servisse
de centro para propagar o evangelho para os eslavos que viviam a leste do rio
Elba. A realização mais espetacular deu-se na Polônia onde o governante
Mieszko (960-92) aceitou o Cristianismo. Sem desejar permitir a jurisdição da
sé alemã de Magdeburg sobre sua igreja e nem querer a influência bizantina, ele
buscou a ajuda de Roma. Em 990 Mieszko pôs suas terras sob a proteção direta
do papa que, em troca, permitiu a criação de uma diocese polonesa separada em
Gnieszno.
Regensburg, na Bavária, foi o principal centro da obra missionária na
Boêmia. O primeiro governante da Boêmia aceitou o Cristianismo em 894 e a fé
aprofundou suas raízes sob o lendário e reto rei Venceslau (Vaclav) que reinou
na década de 920. Ele havia sido criado por sua devotada avó cristã, Ludmila,
que tinha lutado contra a influência pagã. Ela foi estrangulada por seus
inimigos, tornando-se assim a primeira mártir checa. Então, Venceslau foi
assassinado e também passou a ser visto como mártir e símbolo nacional. Uma
diocese foi criada em Praga, sendo ocupada primeiro pelos alemães, mas em 982
Adalberto tornou-se o primeiro bispo checo. Durante algum tempo, tanto a
manifestação latina quanto a eslava de Cristianismo coexistiram na Boêmia, mas
quando ocorreu o rompimento final entre as igrejas do Oriente e Ocidente, isso
deixou de ser possível. Em 1096 a liturgia eslava foi proibida naquela região.
Mais ou menos na mesma época, o Cristianismo entrou na Hungria. Os
magiares, um povo fino-úgrico da Ásia havia se mudado para a parte central do
Danúbio e durante um século eles atacaram a Europa ocidental. Quando
finalmente foram detidos pelas forças alemãs em Lechfeld no ano de 955,
assentaram-se nas planícies húngaras. Missionários alemães de Regensburg e
Salzburg passaram a trabalhar na região e seu rei, Estevão, decidiu tornar-se um
cristão. No ano 1000 ele aceitou a coroa real do papa e organizou uma estrutura
dependente de Roma para a igreja húngara.
Apesar da resistência pagã ter continuado, em 1100 quase todo o povo da
Polônia, Boêmia era cristão católico. Somente os baltos, povos não-eslavos
situados no norte entre a Polônia e a Rússia, ainda não tinham sido alcançados
pelo evangelho. A evangelização dessas áreas — Prússia, Letônia, Estônia e
Lituânia — viria a acontecer nos séculos 13 e 14.
Os eslavos do sul foram convertidos através de esforços cooperativos de
Roma e Constantinopla. Logo, porém, o território tornou-se palco de uma
amarga rivalidade entre papas e patriarcas. Os croatas que haviam se assentado
ao longo da costa da Dalmácia e os eslovenos que viviam mais ao norte
aceitaram o catolicismo romano, mas os sérvios e macedônios da região central
dos Balcãs tornaram-se gregos ortodoxos. Na Bulgária, onde um povo turco
havia migrado da Ásia durante a década de 670 e aos poucos se misturado com a
população eslava existente até a ponto de adotar sua língua, tanto a igreja do
Oriente quanto a do Ocidente competiam entre si para introduzir o Cristianismo.
Em 864 o governante búlgaro Bóris optou pela ortodoxia e ordenou que seu
povo fosse batizado. Então, temeroso do poder bizantino, voltou-se para Roma
porém logo mudou de idéia e estabeleceu a ortodoxia em seus domínios. Os
romenos que viviam a norte do Danúbio e estava sob influência búlgara também
tornaram-se ortodoxos.
As mudanças dos séculos 9º e 10º na Europa oriental tiveram resultados
duradouros. Os poloneses, boêmios, húngaros e croatas adotaram o Cristianismo
ocidental ou latino enquanto os sérvios, búlgaros e russos aceitaram a ortodoxia
oriental. A lealdade religiosa desenvolvida nesse período viria a afetar a política
e a cultura da região até o presente.

A ascensão do Islã
O fenômeno mais dramático e abrangente a afetar toda a bacia do
Mediterrâneo entre a destruição de Roma e a descoberta da América foi o
surgimento do Islã e a formação do Império Árabe. A nova fé surgiu da vida e
obra de Maomé (Mohammad). Ele nasceu em 570 na tribo Quaraysh, o principal
clã mercante em Meca, uma cidade comercial na região de Hejaz no oeste da
Arábia. Também era um centro de culto religioso que, entre outras coisas,
continha uma rocha negra que mais tarde alegou-se haver sido dada pelo anjo
Gabriel a Abraão e que foi abrigada dentro de uma estrutura em forma de cubo
chamada Kaaba. Quando jovem, Maomé cuidava de caravanas de camelos e
acabou se casando com sua empregadora, uma viúva rica. De acordo com a
crença muçulmana, aos 40 anos de idade Maomé recebeu uma visão ou
revelação na qual Gabriel falou com ele. Diz-se que apesar de a princípio ter
duvidado, ele continuou a ter revelações ao longo de toda a sua vida.
Como resultado de suas experiências, Maomé começou a pregar um rígido
monoteísmo, uma crença em um único Deus indivisível e todo-poderoso (em
árabe, a palavra Alá é usada para Deus). Essa era a religião da “submissão”
(Islã) à vontade de Deus e os indivíduos que a praticavam eram chamados de
muçulmanos, aqueles que se submetiam. O credo era simples: “Não há outro
Deus senão Alá e Maomé é seu profeta”. Essa afirmação era o primeiro e mais
importante dos “cinco pilares” ou fundamentos do Islã. Os outros diziam
respeito a observância religiosa e incluíam o requisito de se orar cinco vezes ao
dia em determinados horários, jejuar durante o dia no Ramadã (o nono mês do
calendário lunar), dar uma parte da renda aos pobres e, se possível, fazer uma
peregrinação para Meca pelo menos uma vez na vida. Outros deveres incluíam a
abstinência de carne de porco e vinho e participar do Jihad a “guerra santa” pela
fé.
As pregações de Maomé atraíram um número cada vez maior de
seguidores, o que assustou os líderes de Meca. Eles viam essa doutrina como
uma ameaça para o seu bem-estar econômico por causa da posição da cidade
como centro religioso onde as tribos vizinhas politeístas iam fazer comércio e
resolver os freqüentes problemas legais. Ao ficar sabendo de um plano para
matá-lo, Maomé e seus seguidores deixaram Meca em 622 e assentaram-se no
Mediterrâneo, um acontecimento conhecido como Hijra (fuga). É a partir daí
que se começa a contar o primeiro ano do calendário muçulmano. Em seu novo
lar, Maomé ganhou muitos convertidos. Tornou-se ainda líder civil pois
submeter-se a Alá também significava obedecer seu profeta. Um organizador
militar e tático brilhante, ele atacou as caravanas de Meca e em 630 a cidade
rendeu-se e aceitou suas reformas religiosas. Quando de sua morte em 632 as
tribos árabes adversárias haviam aceito o Islã e se unido sob seu governo.
Apesar de Maomé não ter deixado planos para uma sucessão, seus
seguidores escolheram o competente Abu Bakr (632-34) como califa
(“sucessor”), ou seja, como líder civil e religioso da comunidade muçulmana.
Sob sua direção as forças árabes varreram o Oriente Médio e tomaram de assalto
o já falido governo bizantino. Abu foi sucedido por Umar (634-44) e Uthman
(644-56), o primeiro califa da grande família de Umayyad.
Em 656 Uthman fez uma coletânea de todos os ditados do profeta num
livro chamado Qu’ran (“recitação”). Apesar de ter havido muitos outros profetas
— incluindo Abraão, Moisés e Jesus — que receberam revelações de Alá,
Maomé recebeu uma honra especial pois foi a afirmação final e mais pura da
“verdade”. (Apesar dos muçulmanos o considerarem um “mensageiro” ou
“profeta” que transmitiu a mensagem de Alá à humanidade, eles não acreditam
que ele tivesse sido um deus e nem o adoram.) O Corão (Qu’ran) é dividido em
114 capítulos e inclui preces e discursos. Como os devotos muçulmanos
acharam que ele só deveria ser estudado em árabe, isso garantiu que a cultura e a
língua árabes iriam predominar. Os registros Hadith de tradições do profeta e a
Ijma são dois conjuntos de leis que os muçulmanos devem seguir. Juntas, essas
três fontes religiosas constituem o Sunna ou “Caminho”.
Em duas décadas, as forças dos três primeiros califas devastaram a
Palestina, Síria, Mesopotâmia, Pérsia, Egito e grande parte do norte da África.
Então, em 656 Uthman foi morto e sucedido por Ali, um primo e genro de
Maomé que, por sua vez, foi assassinado em 661. Depois disso, os Umayyads
voltaram ao poder e criaram uma dinastia hereditária com sua capital em
Damasco. A maioria dos muçulmanos, os sunnis, seguiram os califas Umayyad,
mas defensores de Ali formaram grupos dissidentes que existem até hoje como
seitas xiitas.
O império Umayyad transformou-se num reino urbano governado por
árabes que se apoiavam fortemente em antigos administradores bizantinos. Eles
continuaram o processo de expansão e seu império logo alcançou a extensão da
Índia ao Marrocos. Em 711 os mouros (berberes que adotaram o Islamismo)
cruzaram o Estreito de Gibraltar e conquistaram a Espanha dos visigodos. Eles
avançaram para o norte da França, mas a onda muçulmana finalmente foi detida
por Carlos Martel na batalha de Tours em 733. As forças de Umayyad também
ameaçaram Constantinopla mas não conseguiram destruir o Império Bizantino e
as duas entidades acomodaram-se numa coexistência instável.
Na metade do 8º século, surgiram rebeliões contra os Umayyads, em parte
inspiradas pelos xiitas e em 750 uma nova dinastia, os Absides tomaram o
controle do califado. Alguns anos depois eles transferiram a capital para Bagdá.
Sob seu governo o Islã tornou-se mais cosmopolita, como pode-se ver pela
educação e o esplendor da corte de Harun al-Rashid (786-809), o mais famoso
desses califas. No século 10º a unidade política do califado entrou em declínio à
medida em que várias províncias se emanciparam, mas a civilização muçulmana
continuou a crescer. Seu mundo mantinha-se unido através de uma religião em
comum — o Islã — e da língua de governo e educação — o árabe — enquanto
uma rede de relações comerciais estendia-se da Espanha até a Índia. Assim,
Bagdá continuou como centro cultural do mundo muçulmano muito tempo
depois que sua supremacia política já havia acabado.
É impossível enfatizar suficientemente a importância do Islã para a
história do Cristianismo. Conforme observou o historiador Henri Pirenne “sem
Maomé, Carlos Magno seria inconcebível”. Os ataques muçulmanos não apenas
enfraqueceram o Império Bizantino mas também abriram caminho para a
formação do Império Carolíngeo na Europa. Com a captura muçulmana dos
antigos centros cristãos de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Cartago, só
restaram Constantinopla e Roma para contender por primazia no mundo cristão.
Foi essa situação que permitiu o desenvolvimento de uma Cristianismo
medieval separado no Ocidente sob Carlos Magno e seus sucessores.

Depois de fragmentar o Império Romano no século 5º, as diversas tribos


germânicas acabaram convertendo-se ao Cristianismo católico. Nas ilhas
britânicas as diferenças entre a fé celta, mais antiga e a romana, mais recente
foram resolvidas. Missionários dessa região desempenharam um papel
importante na evangelização da Gália e da Alemanha, colocando essas terras
sobre um controle papal mais direto. Os ferozes vikings aos poucos foram
ganhos para a fé cristã enquanto missionários católicos e bizantinos alcançaram
vários grupos eslavos na Europa central e oriental, criando assim pactos de
lealdade que têm afetado as alianças políticas até os dias de hoje. Enquanto o
Cristianismo estava se expandindo no norte, foi eclipsado em sua antiga terra de
origem no Oriente pelo surpreendente crescimento do Islã que em menos de um
século se estendeu do Oceano Atlântico até o rio Indus.

Capítulo 6 - A Igreja sob a monarquia papal


O período entre 600 e 1000 tem muitas vezes sido chamado de “Idade das
Trevas”, tempo no qual o Império Romano foi substituído pelos reinos bárbaros
e a Europa foi assolada pelos ataques dos vikings, magiares e muçulmanos.
Porém, na virada do século 9º Carlos Magno unificou temporariamente uma boa
parte da Europa e o papado recorreu à ajuda dos governantes francos contra os
lombardos na Itália. Enquanto o Império Romano do Oriente estava preocupado
em reagir aos desafios dos muçulmanos e búlgaros, um novo império formou-se
no Ocidente. Apesar de no início o império reavivado não ser muita coisa, ele e
o papado entraram numa amarga luta pelo controle da Europa.

O desenvolvimento do papado
Foi mencionado anteriormente que, com o declínio do poder político de
Roma, a posição do bispo romano cresceu em importância. Assim, Sirício (384-
99) foi o primeiro bispo a usar o título de papa e Leão I, “o Grande” (440-61)
adotou o título de pontifex maximus. Na Roma antiga ele designava o sacerdote
de Netuno que era encarregado das questões religiosas. Leão também afirmou a
primazia sobre as outras igrejas declarando que “negar o papa é negar a Pedro;
negar a Pedro é negar a Cristo”. Gelásio (492-96), que se autodenominava
“Vigário de Cristo”, apossou-se do direito de ratificar as ações dos concílios da
Igreja e de exercer autoridade política.
As campanhas de Justiniano para reconquistar terras na Itália resultaram
em terrível devastação. A própria cidade de Roma chegou a mudar de mãos três
vezes nas batalhas entre os bizantinos e ostrogodos. Então, os lombardos
invadiram a Itália e assentaram-se no vale do rio Pó, na região norte. Também
fundaram ducados em outras partes da península, isolando assim os territórios
bizantinos ao redor de Ravena daqueles que ficavam no sul e, em termos
práticos, isolando Roma da Europa ocidental.
Foi essa a situação que confrontou Gregório I “o Grande” (cerca de 540-
604), fundador do papado medieval. Educado numa família devotada e
aristocrática de Roma, Gregório estudou Direito e acabou sendo nomeado
prefeito de Roma. As atribuições desse cargo incluíam a presidência do Senado
e a administração de entidades filantrópicas bem como a defesa da cidade.
Depois da morte de seu pai, ele renunciou essas tarefas seculares, tornou-se um
monge e fundou oito mosteiros nas terras de sua família. Porém, logo teve que
abrir mão da vida contemplativa pois o papa o enviou a Constantinopla em 579
numa tentativa fútil de buscar ajuda bizantina contra os lombardos. Sete anos
mais tarde ele voltou para Roma a fim de ajudar o papa a supervisionar a Igreja
e em 590 ele próprio foi eleito pontífice.
As atividades de Gregório determinaram precedentes importantes para os
papas que vieram depois e para a Igreja medieval como um todo. Apesar de ser
um homem humilde e reto, ele envolveu-se profundamente em questões
seculares e assumiu na Itália o papel que antes era desempenhado pelo
imperador oriental e seu representante em Ravena. Isso foi necessário por causa
da inaptidão do imperador de lidar com a questão dos lombardos. Gregório usou
a renda das terras papais para tratar dos lombardos bem como oferecer serviços
de governo para a cidade de Roma e cuidar dos pobres. Por ser o papa e não as
autoridades civis a assumir esses deveres, o papado acabou governando a parte
central da Itália.
Gregório fortaleceu a posição do papado através de suas relações tanto
com as partes orientais quanto ocidentais do mundo romano. No 6º século, esses
dois segmentos do império haviam se separado. No leste ainda havia um
imperador, mas ele estava cada fez mais preocupado com problemas de sua
própria esfera enquanto no oeste o poder político era exercido por uma série de
estados hereditários. Gregório reconheceu os direitos dos patriarcas do Oriente
mas, ao mesmo tempo, afirmou a supremacia papal sobre toda a Igreja, do leste e
do oeste.

858-867 1118-1216
Papado Thomas Becket
de
Nicolau I
590-604 698 752-757 795-816 993-1003 1073-1080 1198-
Papado Conversã Papado Papado Papado de Silvestre Gregório VII 1216
de o dos de de Leão II Papado
Gregório lombardo Estevão III de
I s do II Inocêncio
Arianism III
o para o
Cristianis
mo
500 800 1000 1300
741-768 768-814 936-973 955 1002- 1056- 1087- 1154-
Pepino o Carlos Otto I Batalha 1024 1087 1100 1189
Breve Magno de Henrique Henrique Guilherm Henrique
Lechfeld II IV e II II
800 973-983 1066-1087 1152- 1215-
Coroação de Carlos Otto II Guilherme o 1190 1250
Magno como Conquistador Frederico Frederico
imperador por Leão Barbaross II
III a

No Ocidente, ele liderou a atividade missionária entre os pagãos ao enviar


Agostinho e sua companhia de monges para pregar aos anglo-saxões na
Inglaterra. Também estabeleceu relações com a igreja franca independente e
promoveu um programa de reforma que procurava modificar suas tradições de
controle leigo. Na Espanha, encorajou a conversão dos visigodos do Arianismo
para a ortodoxia católica e pode colocar seu amigo Leandro como bispo de
Sevilha.
Gregório não apenas era um administrador competente, monge devoto e
líder moral como também um escritor influente que comunicava a verdade cristã
de modo concreto para o povo pouco instruído da Idade Média. Seu
pensamento, mesmo que não fosse original, era expressado em termos
adequados tanto para sua geração como para gerações futuras. Isso fez dele um
importante elo entre a sabedoria e devoção da Igreja primitiva e o Cristianismo
medieval. Ele esclareceu a doutrina do purgatório e incentivou a adoração de
relíquias e o uso de imagens. Suas idéias foram desenvolvidas em várias obras,
incluindo suas cartas, diálogos e exposições do livro de Jó, sermões sobre
Ezequiel e os evangelhos e um guia para bispos chamado Regra Pastoral.
Os Quatro Livros de Diálogos sobre a Vida e Milagres dos Santos e
sobre a Imortalidade da Alma, escritos em 594, foram especialmente
importantes. São uma série de conversações entre o autor e um oficial da Igreja
romana. Os três primeiros descrevem os aspectos santos e milagrosos da vida de
diversos líderes religiosos do 6º século. Gregório afirma que os milagres não
limitaram-se aos tempos bíblicos, mas que ainda eram realizados em resposta às
orações e à fé do povo de Deus. O último livro apresenta sua visão da
escatologia e, para a Igreja medieval, foi a principal fonte dos ensinamentos
sobre o purgatório. Através de seus retratos vívidos do céu e do inferno,
Gregório consolou aqueles que estavam sofrendo perseguições nas mãos das
forças bárbaras. Os fiéis entram no céu imediatamente depois da morte, mas os
outros ainda despreparados para estar com Deus, vão para o purgatório. Ele
mostrou então como a participação constante da missa ajuda as pessoas a
passarem pelo purgatório mais depressa.
Em sua exposição de Jó, Gregório tratou desse livro do Antigo
Testamento considerando três aspectos: seu sentido histórico ou literal, seu
significado alegórico e as implicações morais. O tratamento histórico não seria
considerado adequado pelos padrões atuais pois Gregório não sabia grego nem
hebraico. Além disso, ele mostrou estar pouco familiarizado com a história e a
cultura do Oriente apesar de ter vivido em Constantinopla durante vários anos.
A seção alegórica é de mais valor pois contém um sistema de teologia que
Gregório encontrou nas entrelinhas do livro bíblico. Os nomes de pessoas,
lugares e coisas estavam infusos de significados cristãos. Jó, por exemplo,
representa Cristo; sua esposa, a natureza humana pecaminosa; seus sete filhos,
os apóstolos e, portanto, o clero; suas três filhas, as três classes de leigos fiéis
que adoram a Trindade; seus amigos, os hereges e os três mil camelos, os pagãos
e samaritanos. A exposição termina com um sumário de ética cristã.
Os quarenta sermões de Gregório sobre os evangelhos ilustram a
importância da pregação em sua época e fazem uso de ilustrações vívidas para
serem visualizados com mais facilidade. Muitas das exortações refletiam sua
crença de que o fim do mundo estava próximo. Para todo lugar que olhava, via
sinais do fim como doenças, invasões bárbaras e a decomposição física do
Império Romano. Sentia urgência em alertar seus ouvintes sobre a morte e
explicar para eles o perigo do inferno e o êxtase do céu, preparando-os assim
para o dia do julgamento.
Sua mais importante obra foi a Regra Pastoral, escrita para orientar os
bispos e que serviu de manual padrão para a teologia pastoral durante a Idade
Média. Ela descreve que tipo de pessoa deve ser um líder da igreja em termos de
conduta e atitudes em relação ao ensino e adverte sobre as tentações inerentes à
liderança. Gregório exige o celibato do clero e insiste que um pastor deve ser um
orador competente. Ele pede aos seus leitores que ensinem através do exemplo e
dos preceitos e insiste que um líder espiritual deve combinar compaixão com
meditação.
Gregório usou sua própria vida como exemplo para os outros. Se um
mendigo morria nas ruas de Roma, ele sentia-se pessoalmente responsável e deu
grandes somas de dinheiro para evitar que isso acontecesse. Ele cumpriu seu
dever tanto como cristão quanto como cavalheiro romano e mereceu justamente
sua reputação de ser um dos quatro grandes pais da igreja ocidental ao lado de
Ambrósio, Agostinho e Jerônimo.
Os séculos 7º e 8º foram um período de crise para o papado. Os
seguidores de Maomé tomaram do Império Bizantino as terras antigas do leste
do Mediterrâneo e África do Norte e começaram a pressionar a Espanha dos
visigodos. Na outra ponta do mundo europeu, as Ilhas Britânicas tornaram-se
um centro vital de cultura cristã enquanto novas ordens de monges espalhavam
o Cristianismo a norte dos Alpes. Os papas estavam divididos entre identificar-
se com a antiga civilização do Oriente a com os novos poderes do Norte.
Vários acontecimentos levaram à deterioração do relacionamento com os
bizantinos. Entre eles estão a discussão sobre o uso de ícones na igreja, as ações
arbitrários do imperador ao transferir o controle de certas dioceses na Ilíria e sul
da Itália do papa para o patriarca de Constantinopla e a incapacidade dos
bizantinos de oferecer qualquer ajuda eficaz no problema com os lombardos.
Esse povo germânico que em 698 havia se convertido do Arianismo para o
Catolicismo rejeitava a autoridade papal e continuava tentando estender seu
poder por toda a Itália. A reação papal à ameaça lombarda foi criar fortes laços
com os governantes francos.

Os carolíngeos e o papado
Apesar de, oficialmente, os descendentes merovíngeos de Clóvis serem os
governantes dos francos no século 7º, o poder real estava com Pepino I e seus
descendentes, os chamados “Prefeitos Palacianos” da Austrásia no nordeste da
França. Seu filho Carlos, que tornou-se prefeito em 714, conteve o avanço
muçulmano na Europa ocidental e, como resultado de seu triunfo, ganhou o
título de Martel ou “Martelo”. Seus descendentes, que assumiram o controle
direto sobre os domínios francos, eram conhecidos como carolíngeos (do latim
Carolus ou “Carlos”).
Quando Carlos Martel faleceu em 741, foi sucedido por Pepino III,
conhecido como “o Breve” (741-68) que foi confirmado como governante
franco pelo papa Zacarias. Depois da coroação de Pepino em 751, o último
merovíngeo foi mandado para um mosteiro. Contrariado pelo fato dos
lombardos terem se apoderado de terras papais, o papa Estevão II fez uma
viagem sem precedentes atravessando os Alpes para encontrar-se com Pepino
em 754. Vestido de panos de saco, ele apelou para o rei franco por ajuda para
recuperar esses territórios. Então, ungiu Pepino e concedeu-lhe o título de
patricius Romanorum (“patrício dos romanos”). Depois disso, forças francas
dirigiram-se para a Itália e compeliram os lombardos a entregar vinte e duas
cidades, incluindo o ducado de Ravena, para o papado. Esses territórios
formaram a base dos Estados Papais que viriam a ocupar a Itália central até o
século 19.
Quando o imperador bizantino objetou, o papa defendeu sua ação fazendo
referência a um documento chamado “Doação de Constantino”. Este provava
que o imperador Constantino havia entregue o controle dos territórios italianos
para o bispo de Roma e também afirmava a supremacia de Roma sobre
Antioquia, Alexandria, Constantinopla, Jerusalém, “bem como sobre todas as
igrejas de Deus em todo o mundo”. No século 15, ficou provado que o
documento havia sido forjado.

Carlos Magno
O maior dos governantes carolíngeos foi “Carlos o Grande” ou Carlos
Magno (768-814) a principal figura do começo da Idade Média. Quando Pepino
o Breve faleceu em 768, os domínios foram divididos entre seus dois filhos,
sendo que Carlos tornou-se governante das regiões norte e sudoeste da França e
Carloman das áreas do sudeste e nordeste. Porém, Carloman faleceu três anos
depois, permitindo que Carlos tomasse posse de todo o território de seu pai e
reunificasse a monarquia franca. Carlos Magno era alto (mais de dois metros),
um ótimo cavaleiro, caçador e nadador e, acima de tudo um guerreiro corajoso e
incansável. Seus exércitos realizaram mais de cinqüenta campanhas contra
vários inimigos nas fronteiras de seu reino.
Em resposta ao apelo do papa, em 773 Carlos Magno derrotou os
lombardos e tornou-se seu rei. Em 778 suas forças cruzaram os Pirineus e
entraram na Espanha com a intenção de conquistar o emirado muçulmano de
Saragossa mas foram chamados de volta por causa de problemas com os saxões
ao norte. Durante sua retirada, foram emboscados em Roncevaux pelos bascos
da região que mataram Roland, um dos oficiais de Carlos Magno. Logo esse
episódio tornou-se um acontecimento lendário, popularizado na grande obra
medieval Chanson de Roland (Canção de Roland) sendo os atacantes
transformados em mouros (muçulmanos) para dar ao incidente um aspecto
cristão heróico.
Apesar de ter fracassado na Espanha, Carlos Magno conquistou a Bavária
e a Áustria. Sua tarefa mais difícil, porém, foi subjugar os ferozes pagãos saxões
que viviam entre os rios Reno e Elba. Numa série de campanhas entre 722 e
804, os saxões foram convertidos à força ao Cristianismo, um processo que foi
criticado por Alcuin que perguntou: “Como pode um homem ser compelido a
crer naquilo que não crê? Pode-se forçar um homem ao batistério, mas não à
Fé”.1 Além disso, os convertidos saxões foram sujeitos a uma rígida legislação
que dava a sentença de morte até por causa de uma infração mínima da lei
canônica, como comer carne durante a Quaresma. Ao ver o ressentimento que
essas políticas estavam causando, um líder saxão, Widukind da Westphalia,
organizou uma rebelião que resultou na morte de muitos dos oficiais de Carlos
Magno. Como forma de retaliação, o rei ordenou que quatro mil e quinhentos
reféns saxões fossem decapitados.
Os vastos territórios de Carlos Magno eram divididos em cerca de
trezentos distritos administrativos, cada um sob um conde. As áreas de fronteira,
conhecidas como marches era governadas pelos margraves. Para assegurar seu
poder, ele enviava duplas de missi dominici formadas por um leigo e um clérigo
que viajavam por todos os seus domínios e exerciam controle direto sobre os
condes. Ele também governava por decretos, emitindo declarações legais
notáveis como “aquele que não alimenta o pobre é seu assassino”.
Apesar de Leão III (795-816) ter sido eleito papa, alguns aristocratas
romanos ainda opunham-se a ele e o acusavam de perjúrio e adultério. Em 799
ele foi violentamente atacado por uma multidão que tentou arrancar seus olhos e
língua. Ele conseguiu escapar para a corte de Carlos Magno, que foi para Roma
investigar as acusações. Leão defendeu-se com sucesso e seus inimigos foram
exilados. Então, no dia de Natal no ano 800, quando Carlos Magno estava
ajoelhando-se para orar durante a missa em São Pedro, o papa inesperadamente
colocou uma corou imperial em sua cabeça e prestou-lhe homenagem. O povo o
aclamou “Carlos Augusto coroado de Deus, grande e pacífico imperador dos
romanos, vida longa e vitória!” De acordo com Einhard, amigo e biógrafo de
Carlos Magno, ele “declarou que não teria colocado os pés na igreja... se
pudesse ter previsto o intento do papa”.2
Carlos Magno tornou-se imperador e de seu palácio em Aachen (em
francês, Aix-la-Chapelle) ele reinou sobre Roma e a maior parte do oeste do
antigo Império Romano. Apesar de ser um guerreiro, também era conhecido por
sua devoção. Pediu aos seus arquitetos que copiassem a igreja bizantina de São
Vitale em Ravena e criassem em Aachen uma capela octogonal que existe até
hoje. Lá, sempre que possível, ele estava presente nas missas várias vezes por
dia. O governante também orientava seus estudiosos para preparar sermões que
os sacerdotes pudessem memorizar e pregar no vernáculo popular. Junto com
isso, promoveu o desenvolvimento da liturgia, especialmente na área da música
e trouxe pessoas da famosa Escola de Cantores (fundada por Gregório o Grande
em Roma) para ajudar na realização das reformas litúrgicas. A partir disso,
seguiu-se um processo de desenvolvimento musical que com o passar do tempo
resultou no canto gregoriano, a principal forma de música na Igreja durante a
Idade Média.
Por causa de seu intenso desejo de elevar o nível espiritual de seus
súditos, Carlos Magno promoveu a reforma de igrejas e mosteiros. Uma
importante figura dessa reforma monástica foi Benedito de Aniane (750-821).
Ele havia sido servo do rei, mas depois de escapar por pouco de um afogamento,
tinha tornado-se monge. De seu mosteiro no sul da França ele apoiou a
implantação de uma regra beneditina renovada nas instituições francas. Seu
programa incluía a observância de práticas uniformes em todos os mosteiros,
visitas regulares dos inspetores reais e um aumento no número de horas de culto
litúrgico.
Outra contribuição do imperador foi o combate à idolatria que ainda
persistia entre alguns francos parcialmente cristianizados. Ele percebeu que
enquanto grande parte do clero e dos leigos não tivesse educação, seria
impossível extirpar o paganismo ou transformar em realidade sua visão de uma
sociedade cristã. Para ele as “escolas palacianas” eram a chave para o
reavivamento do ensino antigo e ele decidiu usar Alcuin de York para introduzir
o ensino de latim no reino. O resultado dos esforços do imperador em cuidar da
educação foi a “Renascença Carolíngea”.
Alcuin (cerca de 735-804) era um monge inglês com excelente reputação
de ensino bem como professor de prestígio na escola catedral de York. Carlos
Magno o comissionou para realizar uma reforma educacional entre os francos e
de 781 a 790 ele viveu na corte e dedicou suas energias à implantação da idéia
do imperador. Então, tornou-se abade do mosteiro de São Martinho de Tours,
onde continuou seus empreendimentos. Alcuin reestruturou o sistema
educacional de acordo com as setes artes do final da era clássica, conforme
apresentadas por Cassiodoro. Dividiu as matérias em dois grupos, o trivium e o
quadrivium. O primeiro grupo incluía gramática, dialética e retórica e o segundo
era composto de aritmética, geometria, astronomia e música. A gramática do
latim era a principal matéria e englobava não apenas a estrutura da língua mas
também sua literatura. A dialética envolvia o estudo da lógica sistemática
enquanto a retórica concentrava-se na expressão escrita. O quadrivium, além de
ser útil para a vida eclesiástica, oferecia as ferramentas intelectuais para
administrar as propriedades reais e outros negócios de interesse do rei.
Alcuin começou educando membros da família real, da corte e do clero.
Ele esperava um dia ter uma escola em cada paróquia, aberta tanto para o
homem livre quanto para o servo. Organizou uma biblioteca para a corte,
coletando escritos dos Patriarcas da Igreja e outros autores antigos que refletiam
o interesse de Carlos pela matemática, história e astronomia. Alcuin também
desejava determinar o texto correto dessas obras. Para isso, comparava versões,
encontrava erros e alterações feitas pelos copistas e desenvolvia uma versão
aperfeiçoada. A obra era então colocada na biblioteca real onde os textos
podiam ser usado pelos funcionários de várias escriptoria (salas de cópias)
monásticas para reproduzir as obras.
Grandes acadêmicos da época participaram desse projeto, como foi o caso
de Paulo o Diácono que é lembrado por História dos Lombardos, um trabalho
magnífico que seguia o modelo romano de escrita histórica. Os estudiosos da
corte também produziram uma edição padrão das obras de Gregório o Grande e
da Regra beneditina. Sua realização mais importante foi a revisão feita por
Jerônimo da Bíblia em latim, que num período de quatrocentos anos havia sido
corrompida pela introdução de palavras de outras versões da Bíblia e pelos erros
de copistas. A versão corrigida que eles desenvolveram tornou-se conhecida
como Vulgata (comum), sendo a versão da Bíblia mais usada na Idade Média.
Outra contribuição de Alcuin e seus colegas foi a criação de um novo
estilo de escrita. A maior parte dos manuscritos da era merovíngea era
praticamente ilegível mesmo para as pessoas da época. A escrita carolíngea
minuscula (pequena ou de caixa baixa) que eles desenvolveram eliminava a
conexão confusa entre as letras e determinava altos padrões de legibilidade. Os
mais de oito mil manuscritos que foram copiados em escrita carolíngea são a
base de muito do que se sabe hoje sobre os textos cristãos e clássicos da
antigüidade. O grande cuidado dedicado a esses manuscritos pode ser visto na
maneira como eram tão belamente ilustrados.
As controvérsias teológicas constituíam uma outra característica da época.
Alcuin atacou fortemente a igreja oriental por usar ícones (imagens de Cristo e
dos santos) como objetos de adoração, apesar de, na realidade, ele ter entendido
mal o que realmente se passava. Um outro assunto que contribuiu para piorar o
relacionamento com o Oriente foi a posição rígida tomada por Alcuin e os
teólogos carolíngeos, apoiados pelo próprio imperador, sobre a questão do
filioque, ou seja, uma inserção no Credo de Nicéia afirmando a progressão do
Espírito Santo através do Pai “e do Filho”. Na Espanha foi possível encontrar
um vestígio de Arianismo visigótico na heresia do adopcionismo (Cristo, em sua
forma humana, era apenas filho “adotivo” de Deus) que foi promovida
ativamente por dois bispos importantes.
Em 794 Carlos convocou e presidiu um concílio em Frankfurt onde
Alcuin defendeu a doutrina ortodoxa da filiação eterna de Cristo. Os dois
espanhóis foram condenados, mas quatro anos depois Alcuin persuadiu um
deles, Félix de Urgel a se retratar.
O império de Carlos Magno acabou englobando não apenas a França mas
também a Bélgica, Holanda, Suíça, o norte da Espanha, grande parte da
Alemanha e Itália. Suas realizações ficaram conhecidas até mesmo no mundo
muçulmano e o califa Harun al-Rashid de Bagdá e o emir de Córdoba na
Espanha enviaram embaixadas a ele. Mas tendo em vista que o império era uma
criação e fruto da própria personalidade carismática do rei, faltava-lhe as
estruturas militar, política e econômica para se sustentar depois da sua morte.
Apesar de seu compromisso cristão, Carlos Magno tinha cinco esposas
oficiais bem como várias amantes e concubinas. Tal situação polígama gerou
intriga; ele castigou um de seus filhos confinando-o num mosteiro por ter
tramado contra ele. Ao que parece, o estilo de vida polígamo perturbava a
consciência do rei, pois ele tinha centenas de monges que oravam por ele.
Quando faleceu em 814, deixou quase toda a sua riqueza para que fossem feitas
missas e preces em favor de sua salvação eterna.
Antes de sua morte, Carlos Magno escolheu como sucessor Luís, seu
único filho vivo, e instruiu-o para que coroasse a si mesmo imperador. Luís,
porém, foi para Roma em 816 e recebeu a coroa do papa. Esse gesto deu
fundamento à teoria de que o papa podia escolher e depor imperadores, uma
idéia que o próprio Carlos Magno jamais teria tolerado.
Luís o Pio (814-40), apesar de ser estimado por sua devoção religiosa,
alienou a nobreza. Sua religiosidade o tornou subserviente ao papado e aos
oficiais da Igreja, mas ainda assim ele apoiou a reforma dos mosteiros e
procurou impor a moralidade na sociedade. Uma de suas ordens dizia:
“Qualquer homem em cuja casas forem encontradas prostitutas deve levá-las nos
ombros até o mercado onde serão chicoteadas; se ele se recusar a fazê-lo, será
chicoteado com elas”.3
Luís tinha problemas sérios com sua família e o resultado disso foi uma
complicada sucessão. Os anos de luta levaram a uma divisão permanente do
império e depois da morte dele, seus três filhos concluíram o Tratado de Verdun
(843) que destinava a área a oeste para Carlos “o Calvo” e a parte leste para Luís
“o Alemão”. O outro filho, Lothar (Lothair) herdou o chamado Reino Médio,
um corredor de pouco mais de cento e cinqüenta quilômetros de largura e mil e
quinhentos quilômetros de comprimento que estendia-se da Holanda ao norte até
a Itália ao sul. Quando Lothar e depois seu filho faleceram, Carlos e Luís
simplesmente dividiram o Reino Médio entre si.
Seus sucessores incompetentes ficaram conhecidos por apelidos como
“Carlos o Gordo”, “Luís o Gago”, “Luís o Indolente” e “Carlos o Simples”.
Além disso, com o passar do tempo os carolíngeos perderam toda a sua
eficiência por causa da constante divisão de seus domínios e da incapacidade de
lidar com a ameaça viking. Depois de 924, o título imperial deixou de ser usado
enquanto os carolíngeos competiam com outra família pelo trono da França.
Então, em 987 o último membro da linhagem faleceu e os grandes lordes da
França colocaram em seu lugar Hugo Capeto que fundou uma nova dinastia.
Enquanto isso, Luís a Criança, o último carolíngeo do leste, faleceu e assim
abriu caminho para uma ordem política totalmente nova na Alemanha.

A Alemanha e a dinastia saxônica


O reino do leste era dividido entre cinco ducados principais: Lorraine,
Saxônia, Francônia, Bavária e Suábia. As densas florestas e pântanos impediam
qualquer unificação efetiva. Com a morte de Luís a Criança, os cinco duques
ignoraram os carolíngeos do oeste e escolheram um dentre eles — Conrado da
Francônia — para ser o rei alemão. Ele foi sucedido pelo duque da Saxônia,
Henrique I (“o Caçador de Aves”), estabelecendo uma dinastia que durou de 919
a 1024.
Henrique era um governante visivelmente mais forte que seu antecessor e
iniciou o processo de expansão da autoridade alemã para leste, nas áreas
habitadas por eslavos, no famoso Drang nach Osten “Empurrar para o Oeste”.
Porém, foi seu filho Otto I (“o Grande”) que desenvolveu uma monarquia
efetiva na região e ressuscitou o império de Carlos Magno à moda alemã. Ao
suceder seu pai em 916, ele pôs-se a buscar o controle sobre os cinco duques.
Seu método consistia em dar à Igreja grandes extensões de terra e deixar que os
bispos e abades administrassem esses territórios, cuidassem das questões
judiciais e trabalhassem como príncipes governantes. O clero também oferecia
homens e suprimentos para os exércitos do rei e suas terras eram uma importante
fonte de renda para ele. No “sistema otoniano”, como era chamado, o rei
indicava gente de sua preferência para postos eclesiásticos que estivessem vagos
e, como os prelados tinham que manter-se celibatários, não podiam tornar seus
cargos hereditários. Porém, a longo prazo o sistema não possibilitava uma
monarquia forte pois os clérigos não eram leais ao Estado em si. Seus únicos
laços eram religiosos e pessoais e não se podia confiar em nenhum dos dois por
muito tempo.
Apesar da fraqueza interna inerente ao regime, Otto surgiu como o
governante mais forte da Europa ocidental. Sua política externa foi um modelo
para seus sucessores. Primeiro, procurou manter a França fraca e dividida. Em
segundo lugar, lançou-se à expansão para o leste. Sua vitória decisiva sobre os
magiares em Lechfeld, próximo a Augsburg em 955 os desencorajou a tentar
outros ataques contra a Alemanha. Ele realizou diversas expedições contra os
eslavos que viviam entre os rios Elba e Oder e colocou novos bispados na
região. Os bispos cuidavam do serviço missionário e assentavam camponeses
alemães em suas terras. O programa de germanização foi um outro exemplo de
como Otto usou a Igreja para atingir seus objetivos.
O terceiro aspecto de sua política externa consistia em ganhar e manter o
poder sobre a Itália. Se o reino alemão só podia existir com a ajuda da Igreja,
então era preciso que ele controlasse o papado. O envolvimento de Otto na Itália
começou em 952 quando Adelaide (Adelheid), a rainha viúva da Lombárdia,
apelou para que ele a ajudasse contra seu inimigo. Sua expedição militar foi
triunfante. Ele não apenas salvou e casou-se com a rainha como também
assumiu o título de rei da Itália. Contudo, problemas na Alemanha o impediram
de consolidar sua autoridade sobre o norte da Itália. Depois de derrotar os
magiares, fato que protegeu suas fronteiras com a Itália, ele retornou em 961
para livrar-se de um desafiante que queria o seu reino. Então, prosseguiu para
Roma onde foi coroado imperador pelo papa no ano seguinte. Apesar de seu
reconhecimento da autoridade papal sobre as terras do centro da Itália, ele
insistiu que, no futuro, os papas deveriam ter a aprovação do imperador antes de
serem consagrados.
Ele agiu imediatamente para mostrar que o controle imperial sobre o
papado era mais do que uma simples formalidade. Em 963 ele convocou um
sínodo em Roma que depôs o fraco e impopular João XII e colocou em seu lugar
um indivíduo mais cooperativo. Otto acusou-o de uma lista de crimes sórdidos e
declarou que “nenhum papa poderia assumir seu cargo sem antes fazer um
juramento de lealdade ao imperador”. Isso determinou um precedente e durante
os próximos duzentos anos os papas muitas vezes foram escolhidos pelo
imperador apesar de repetidos protestos do povo de Roma.
Ao assumir a coroa imperial, Otto ameaçou deixar de fora os imperadores
do leste, mas aos poucos eles vieram a aceitar a existência de dois impérios e
Otto II (973-83) chegou a casar-se com uma princesa bizantina. Seu reino teve
menos sucesso do que o de seu pai e ele morreu em Roma depois de sofrer uma
grande derrota no sul da Itália para os muçulmanos (os chamados sarracenos)
que lá se estabeleceram na década de 830. Otto deixou como seu herdeiro um
filho de três anos de idade (Otto III) que foi educado por sua mãe, Teophano,
quase como um príncipe bizantino. Na verdade, Adelaide e Teophano
governaram o reino até que ele assumisse o poder em 994, uma situação
praticamente sem precedentes até então.
Otto III planejava fazer de Roma sua capital. Construiu um magnífico
palácio e nomeou o maior estudioso de sua época, Gerbert de Aurillac (cerca de
945-1003) para ser o papa Silvestre III. Otto tinha o sonho grandioso de formar
uma enorme comunidade cristã com a Igreja e o império unidos e governados de
Roma, mas essa política não tinha como funcionar pois ele não possuía uma
base real de poder na Itália. Seu apoio encontrava-se no exército saxão pois os
romanos nunca aceitaram voluntariamente seu governo. Quando ele faleceu aos
21 anos de idade, foi sucedido por Henrique II (1002-24) de um ramo mais
jovem da linhagem familiar. Henrique estava preocupado em manter sua posição
na Alemanha e não pôde dominar a Itália.
Mais importante, porém, foi o reavivamento cultura sob Otto III. Um
aspecto relevante foi a redescoberta das ciências naturais, principalmente devido
à influência de Gerbert que havia estudado na Espanha e era renomado por seu
conhecimento de matemática e ciências. Deve-se dar algum crédito a ele pela
introdução dos números arábicos na Europa e pela invenção do relógio de
pêndulo. Em Rheims, onde havia sido professor supervisor na escola da catedral
e, mais tarde, arcebispo, Gerbert expandiu o estudo da matemática e reintroduziu
a lógica (dialética). Esta última ajudou os alunos a integrar o conhecimento que
inundava a Europa daquela época e serviu de fundação tanto para o
reavivamento da filosofia no século 11 quanto para o sistema universitário que
não tardaria a desabrochar na Europa medieval.

A Inglaterra normanda e plantageneta


Ao contrário do estado cada vez mais confuso do império, os normandos
da Inglaterra (1066-1154) eram a monarquia mais organizada da Europa. No
século 11 as terras eram governadas pelos vikings, com exceção de Wessex.
Depois do governo de alguns reis dinamarqueses, o poder voltou por pouco
tempo para as mãos de um anglo-saxão, Eduardo O Confessor (1042-66). Como
sua mãe, Ema, era uma princesa normanda, Eduardo havia passado grande parte
de sua juventude na terra natal dela. Não tendo herdeiros, ele prometeu o trono
para seu primo Guilherme, o duque da Normandia, recebendo para isso o apoio
do papa Alexandre II. Mas depois de sua morte o conselho de nobres da
Inglaterra escolheu o cunhado de Eduardo, Harold Godwinson como seu
sucessor. Para garantir o que lhe era de direito, Guilherme invadiu a Inglaterra e
derrotou Harold na Batalha de Hastings em 14 de outubro de 1066. Guilherme,
que ficou conhecido como “o Conquistador”, foi então coroado rei da Inglaterra
na abadia de Westminster.
A conquista normanda foi um choque enorme para a Inglaterra,
especialmente para as classes mais altas. Guilherme via os simpatizantes de
Harold como rebeldes e confiscou suas terras. Praticamente toda as terras da
Inglaterra foram para as mãos do rei e ele permitiu que fossem usadas por
aqueles que o serviam. Assim, a propriedade particular de terras quase deixou de
existir e foi substituída pelo mais completo sistema de feudalismo na Europa
(ver capítulo 7). Ele também construiu castelos para controlar a população e fez
um levantamento de todas as propriedades (o Livro do Julgamento Final de
1086) para fins tributários. A população local foi ainda mais antagonizada pela
política normanda de separar grandes porções de terra com florestas para usar
com reservas particulares para caça.
Tendo em vista que Guilherme da Normandia havia recebido o apoio dos
reformadores papais de Roma antes da invasão, ele instituiu mudanças nas
igrejas que no final do período anglo-saxônico haviam tornado-se tão corruptas
quanto as da França merovíngea. Ele separou as cortes civis das eclesiásticas,
decretou que nenhum papa podia ser reconhecido sem o consentimento real e
declarou que não podia-se realizar nenhuma excomunhão sem a aprovação real.
Guilherme também trouxe clérigos da Normandia como Lanfrac que tornou-se
arcebispo de Canterbury e os normandos erigiram várias igrejas novas por todo
o reino.
O governante seguinte, Guilherme II (1087-1100), ignorou
completamente os direitos da Igreja. Para ele as propriedades clericais podiam
ser saqueadas e durante vários anos ele não reconheceu o papa. Uma doença
grave levou-o a nomear o devotado Anselmo como arcebispo de Canterbury em
1093, mas depois de se recuperar ele voltou aos seus antigos modos irreverentes
e exilou Anselmo na França. Guilherme foi seguido de seu irmão Henrique I
(1100-35) que negociou um acordo com a Igreja em 1107. O rei abriu mão de
sua prática de nomear bispos mas em troca eles teriam que jurar lealdade a ele
como seu senhor feudal pelas terras que usavam. Esse ato teria importância para
toda a Europa.
Durante o período de 1135-54 a Europa foi varrida pela guerra civil e a
Igreja recobrou consideravelmente sua independência. Com a coroação de
Henrique II (1154-89) encerrou-se o período de anarquia e o novo rei pôs-se a
restabelecer o controle sobre seu reino. Ele foi o fundador da Casa dos
Plantagenetas (Angenvin) cujos reis governaram a Inglaterra de 1154 a 1399.
Henrique mostrou-se um dos governantes mais competentes da história do país.
Através de herança e casamento ele controlou vastas regiões que iam da Irlanda
ao sul da França. Durante os próximos dois séculos monarcas ingleses
governaram metade do território da França bem como seus domínios nas Ilhas
Britânicas.
Henrique desejava estender sua autoridade sobre o sistema judiciário,
tornar a aplicação da lei inglesa mais uniforme, expandir o uso dos júris e
apresentar todos os processos importantes para os seus juízes. Isso levou a uma
amarga disputa entre o rei e a Igreja, pois na Inglaterra medieval existia um
sistema separado para as cortes eclesiásticas que tinha jurisdição completa sobre
muitos tipos de casos, inclusive de clérigos acusados de crimes. Essa isenção da
lei secular que era chamada de “benefício do clero” incluía não apenas os
sacerdotes e monges mas também os estudantes e certos profissionais. Esses
privilégios eram importantes pois as penas determinadas pelas cortes
eclesiásticas normalmente eram mais lenientes do que aquelas decretadas pelos
juizes do rei. Um exemplo famoso é o caso de um clérigo que havia assassinado
um cavaleiro e que foi absolvido do crime simplesmente por fazer um juramento
numa corte eclesiástica.
Um dos principais tenentes de Henrique era Thomas Becket (cerca de
1118-70) que trabalhava como juiz, diplomata e conselheiro financeiro. Ele não
era apenas o braço direito do rei, mas também um amigo pessoal chegado. Os
dois até bebiam, caçavam e farreavam juntos. Então, em 1162 Henrique nomeou
Becket arcebispo de Canterbury. Com isso o rei esperava evitar conflitos com as
autoridades eclesiásticas e ganhar total apoio da Igreja em seu trabalho de
reconstrução do governo.
Isso mostrou-se um erro, pois como líder da igreja inglesa, Becket deixou
de apoiar fortemente a autoridade real e passou a lutar pelos direitos da Igreja.
Para espanto do rei, ele renunciou seus cargos e sua vida secular. Ele chegou a
usar uma veste de peles, visitar os doentes e lavar os pés de mendigos. Em
outras palavras, ele experimentou uma conversão que fez do Cristianismo uma
força vital em sua vida ao invés de continuar sendo uma mera formalidade.
Em 1164 Henrique tentou obter o controle sobre as cortes da Igreja ao
emitir a Constituição de Clarendon, cujo propósito mais importante era a
eliminação do “benefício do clero”. Isso significava que um clérigo acusado de
um crime civil deveria ter seu caso julgado em uma corte secular. Henrique
desejava que todos os ingleses estivessem sujeitos às mesmas leis para que a
justiça fosse administrada mais uniformemente. Becket, porém, acreditava que o
Estado estava infringindo o poder da Igreja. Depois de meses de lutas, Becket
foi exilado na França. Esse exílio durou seis anos, enquanto ele resistia a todos
os esforços de mediar a disputa e condenar qualquer clérigo que cooperasse com
Henrique.
Por fim, Becket voltou à Inglaterra para continuar sua oposição ao rei.
Excomungou aqueles que haviam cooperado com o governo real durante as
disputas e eles foram para a Normandia onde Henrique por um acaso também
estava naquela época e reclamou com ele sobre seu tratamento. A reação do rei
foi irada: “Que bando de tolos e covardes eu abriguei em minha casa, a ponto de
nenhum deles me vingar desse sacerdote perturbador”. Quatro cavaleiros
levaram a sério o pedido de vingança feito por Henrique, cruzaram o canal e,
sem seu conhecimento ou consentimento, assassinaram o arcebispo no dia 29 de
dezembro de 1170, quando ele estava oficiando uma missa na catedral de
Canterbury.
O assassinato de Becket causou uma demonstração tão grande de raiva
que Henrique foi forçado a fazer uma penitência pública e reconhecer o controle
da Igreja sobre as atividades nas quais Becket tanto havia insistido. Assim,
Becket garantiu uma vitória maior com sua morte do teria sido capaz de alcançar
em vida. Ele foi canonizado em 1173 e tornou-se o santo mais popular da
Inglaterra. Pessoas de todas as partes do reino reuniam-se em seu local de
martírio e uma obra perene da literatura inglesa, Os Contos de Canterbury de
Chaucer, descreve um grupo de peregrinos indo adorar em seu santuário.
Em 1152 Henrique casou-se com Eleonor de Aquitaine, uma das mulheres
mais belas e ricas da Europa. Eles tiveram oito filhos, mas ela deixou Henrique
em 1173 por causa da constante infidelidade do rei e incentivou seus filhos a se
rebelarem contra ele. Sobre eles, Henrique disse: “Vieram do diabo e para o
diabo voltarão”. Ele manteve-se firme em sua posição contra eles durante algum
tempo, mas foi forçado a fazer um acordo de paz pouco favorável em 1189 e
morreu desgostoso.
Um dos filhos, Ricardo I (1189-99) passou apenas cinco meses de seu
reinado na Inglaterra e não fez nada de importante lá. Ele era conhecido como
“o Coração de Leão” por seus feitos durante a Terceira Cruzada. O outro filho,
João (1199-1216) era igualmente incompetente. Em 1207 ele opôs-se ao
candidato escolhido pelo papa Inocêncio III para arcebispo de Canterbury e
quase foi excomungado. Diante de uma possível invasão da França, humilhado,
ele rendeu-se ao papa em 1213. Então, a fim de angariar fundos para uma guerra
na França ele tentou obrigar seus barões a lhe oferecer mais dinheiro e serviço
militar. Ele já estavam pagando altos impostos e não queriam participar de uma
expedição que consideravam fútil. Conforme o esperado, o exército de João
sofreu uma derrota esmagadora e os barões feudais uniram-se contra ele. Em
1215 eles apresentaram-lhe uma declaração contendo suas ofensas (a “Carta
Magna”) e forçaram-no a respeitar seus direitos. Apesar de gerações futuras
terem tentado encontrar nela todas as liberdades que os ingleses adquiriram ao
longo dos séculos de lutas, a Magna Carta era na verdade apenas um documento
feudal elaborado por nobres que buscavam proteger seus interesses financeiros.
Durante o reinado do monarca seguinte, Henrique III (1216-72), os barões
exigiram o direito de participar do governo e Simão de Monfort convocou a
reunião de um parlamento em 1265. Dois cavaleiros de cada condado e dois
representantes de cada vila deveriam participar numa assembléia representativa,
que acabaria tornando-se o Congresso (Assembléia dos Comuns). O Grande
Concílio do rei, que incluía os principais nobres e alto clero, transformou-se na
Assembléia dos Lordes.
O filho de Henrique, Eduardo I (1272-1307), ficou conhecido como o
Justiniano inglês por causa de suas amplas reformas legais. Ele também é
lembrado por sua conquista de Fales e a construção de vários castelos como
Harlech e Caernarvon. Seu filho foi empossado como príncipe de Gales, um
costumo seguido pelos monarcas dali em diante. Tentativas parecidas de
controlar a Escócia alcançaram menos sucesso e a rivalidade entre os dois povos
ainda continuaria por vários séculos.

A França sob os Capetos


A nova dinastia estabelecida em 987 por Hugo Capeto, duque de Orleans,
governou a França até 1328. Durante grande parte desses dois séculos o centro
de seu reino foi Paris, tendo em vista que condes poderosos dominavam outras
partes da França. Um importante defensor da monarquia foi o líder eclesiástico
do século 12, abade Suger de S. Dennis em Paris. Ele foi conselheiro das
finanças de Luís VI e atuou como regente enquanto o rei participava da Segunda
Cruzada. Seu mosteiro, que tinha o mesmo nome do santo padroeiro da cidade,
Dionísio o Areopagita (citado em At 17.34) foi a primeira edificação a ser
construída inteiramente no novo estilo gótico (1136).
Felipe II Augusto (1180-1223) foi o primeiro Capeto que conseguiu
adquirir o controle das muitas terras de posse dos ingleses na França e que assim
também pôde estruturar o poder da monarquia. A convite do papa, seu filho
acabou com a heresia albigensiana no sul, permitindo uma expansão ainda maior
naquela região.
O maior rei dessa era foi Luís IX (1226-70) que era conhecido por sua
devoção e paixão pela justiça. Ele realizou várias reformas legais e
generosamente permitiu que os ingleses ficassem com seus territórios no litoral
da França. Além disso, Luís construiu a Saint Chapelle — uma das mais belas
estruturas medievais ainda de pé nos dias de hoje — para abrigar a coroa de
espinhos que ele adquiriu de Constantinopla. Também participou de duas
Cruzadas. Durante a primeira ele foi capturado no Egito e teve que pagar um
resgate e na segunda morreu de disenteria em Tunis. Seus contemporâneos
admiravam-se que “o santo rei amava tanto a verdade que cumpriu até a
promessa que fez aos sarracenos”. Duas décadas depois de sua morte, o bom rei
foi declarado um santo.

O papado e o império
Durante o período de desintegração imperial, um líder notável, Nicolau I
(858-67), tornou-se papa. Enquanto Gregório I conseguiu a supremacia do
papado na Itália, Nicolau o transformou numa das principais forças da Europa
ocidental. Ele envolveu-se em questões políticas tanto no império carolíngeo
como no bizantino e para justificar essa intervenção citou os “Falsos Decretos”,
um conjunto de documentos falsificados por volta de 850 e que aumentavam
grandemente o poder papal. Foram supostamente compilados por Isidoro de
Sevilha duzentos anos antes e incluíam a Doação de Constantino e muitas outras
cartas oficiais dos primeiros papas.
A maior parte dos outros pontífices dos séculos 9º e 10º foram figuras
mundanas. Vários foram assassinados e abusos como simonia (compra e venda
de cargos da Igreja) e casamento clerical eram comuns. Durante esse período de
corrupção e degradação, por algum tempo, o poder sobre o papado foi exercido
por Teodora e sua filha Marósia. Cada uma delas estava relacionada a meia
dúzia de papas como amante, mãe ou assassina. Chamada por alguns de
“pornocracia”, foi o fundo do poço na história do papado.
Em 1024, uma nova dinastia — a saliana ou franconiana — assumiu o
poder do império e reafirmou a autoridade real. Henrique III, como governante
da Itália, convocou um concílio da Igreja em 1046 que depôs um papa imoral e
elegeu o primeiro de uma série de indivíduos competentes. De forma não
intencional, a ação imperial foi útil para o papado, pois tomou o controle da
instituição das mãos de facções rivais decadentes e colocou pessoas de caráter
elevado na liderança da Igreja. Mas a essa altura os papas já haviam perdido o
controle até mesmo dos assuntos espirituais à medida em que o poder real
estendeu-se para a escolha de bispos, que já serviam a coroa e levavam seus
deveres seculares mais a sério que os sagrados.
Quando Henrique IV tornou-se imperador em 1056, viu-se diante de um
movimento pela reforma papal. Este foi liderado por figuras competentes como
Pedro Damião, Humberto da Silva Cândida e Hildebrando, sendo que todos
haviam servido na corte de Leão IX (1049-54). Eles incentivaram o papa
Nicolau II a emitir um decreto em 1059 afirmando que os papas deveriam ser
escolhidos por um colégio de cardeais e não pelo imperador. Seu líder,
Hildebrando, foi eleito papa Gregório VII em 1073 e durante seu papado o
conflito Igreja-Estado viveu seu momento mais intenso. Depois de passar vinte
anos na cúria ele havia desenvolvido uma visão extremamente elevada do
papado. Em 1075 ele elaborou uma série de propostas chamadas Dictatus Papae
dentre as quais estão:
Que somente o pontífice romano é corretamente chamado de universal.
Que somente ele tem o poder de depor ou restaurar ao cargo os bispos.
Que todos os príncipes só devem beijar o pé do papa.
Que ele tem o poder de depor imperadores.
Que seu decreto não pode ser anulado por ninguém, que ele pode anular o decreto de qualquer
um.
Que não pode ser julgado por ninguém.
Que a Igreja romana nunca errou e jamais irá errar até a eternidade, de acordo com o
testemunho das Sagradas Escrituras.
Que ele tem o poder de absolver súditos de seus juramentos de fidelidade a governantes
perversos.

O papa Gregório deu ordens a todos os bispos e governantes por toda a


Europa ocidental para que depusessem clérigos culpados de simonia e
proibissem sacerdotes casados de celebrar a missa. Para livrar a Igreja da
interferência leiga na indicação de bispos, ele tomou atitudes que levaram à
controvérsia das “investiduras”. O termo refere-se à cerimônia na qual um
vassalo jurava lealdade a seu senhor e recebia dele a insígnia de ofício. A
proibição de Gregório sobre príncipes leigos que investiam bispos desafiou a
prática na Alemanha, onde o imperador escolhia a dedo os prelados e contava
com seu apoio. O que se seguiu foi uma luta amarga e complexa entre os dois,
na qual o imperador tentou depor o papa e Gregório excomungou Henrique, um
ato que desobrigou os vassalos de seus votos de lealdade, deixando-os livres
para depô-lo. O incidente mais dramático aconteceu quando Henrique cruzou os
Alpes em janeiro de 1077 e ficou na neve em Canossa durante três dias
implorando pelo perdão do papa. A vitória foi mais simbólica do que real, tendo
em vista que não tardou para que Henrique o desafiasse novamente. Ele invadiu
a Itália em 1080 e forçou Gregório a buscar refúgio entre os normandos do sul
(que haviam acabado de expulsar os sarracenos e tinham formado seu próprio
Estado na Itália), onde faleceu em 1080.
A controvérsia das investiduras acabou sendo resolvida por um acordo
entre Henrique V e o papado na Pacto de Worms (1122). O imperador
concordou que os bispos deveriam ser eleitos pela igreja e receber sua
investidura espiritual do arcebispo. Porém, o rei deveria estar presente na
eleição e poderia investir o bispo como os símbolos do poder secular do ofício.

A Dinastia Hohenstaufen
Frederico I Agnes, filha
Duque da Suábia do
1079-1105 Imperador
Henrique IV
Frederico II Rei Conrad III da
Duque da Suábia Alemanha 1138-52
1105-47
Imperador Frederico I
Barbarossa 1152-90
Imperador Constance Rei Filipe da
Henrique VI Herdeira da Suábia
1190-97 Sicília 1198-1208
Frederico II
Rei da Alemanha
Imperador 1215-50
Rei Conrad da
Alemanha 1250-54
Conradin
M. 1268

Depois disso, surgiu uma nova dinastia alemã, os Hohenstaufens da


Suábia. O primeiro membro tomou o trono em 1138, mas o mais importante foi
Frederico I, Barbarossa ou “Barba Ruiva” (1152-90). Ele renovou o poder e a
unidade do império na Alemanha mas teve menos sucesso em dominar a Itália.
Seu plano era restaurar a influência sobe o papado que tinha sido perdida
durante a controvérsia das investiduras. Pela primeira vez o termo “Sacro
Império Romano” apareceu em documentos públicos, deixando implícito
intencionalmente que a autoridade do imperador vinha somente de Deus.
Barbarossa desejava ter sobre o papa o mesmo tipo de poder que tinha sobre os
bispos-príncipes na Alemanha. Além disso, esperava tornar-se um líder do
Cristianismo e talvez até recriar o Império Romano de Constantino. Com esse
objetivo em mente, ele lançou-se à Terceira Cruzada, mas em 1190 afogou-se
num rio na Ásia Menor a caminho da Terra Santa.

Inocêncio III e os Hohenstaufens


O poder papal atingiu seu ápice sob Inocêncio III (1198-1216). Assim
como Gregório VII, ele possuía uma visão elevada do papado, como indicou sua
declaração: “O papa tem uma posição entre Deus e os homens. Apesar de ser
menor do que Deus, é maior que os homens. Ele julga a todos mas não é julgado
por ninguém”. Ele também afirmava ter poder político: “Nenhum rei pode reinar
corretamente a menos que sirva com devoção ao vigário de Cristo”.
Comparando os dois com o sol e a lua, disse: “Assim também o poder deriva sua
dignidade da autoridade pontifícia”.
De família nobre de Roma, Inocêncio foi educado em Direito e Teologia.
Ao tornar-se papa pôs-se a oferecer autoridade moral e liderança tanto em
assuntos seculares quanto eclesiásticos. Trabalhava com dedicação, dava
atenção a detalhes, tinha objetivos claros e estava determinado a ser o cabeça do
Cristianismo. Possuía muitos empreendimentos. Patrocinou a Quarta Cruzada,
que para sua humilhação, atacou Constantinopla ao invés da Palestina. Também
apoiou cruzadas contra os bogomils nos Balcãs e contra os albigensianos na
França e aprovou as novas ordens de frades mendicantes — os franciscanos e
dominicanos — que foram usadas para combater essas heresias (ver capítulo 7).
Quando, em 1027, o rei João recusou-se a aceitar a nomeação papal de
Stephen Langdon para arcebispo de Canterbury, Inocêncio colocou a Inglaterra
sob interdição. Isso significava a suspensão de quase todos os serviços públicos
da Igreja. Em 1029, depois que João confiscou todas as terras da Igreja na
Inglaterra, Inocêncio o excomungou. Quando ele continuou a resistir, o papa
declarou que o trono estava vazio e convidou o rei francês a invadir o país. Em
1213 João fez as pazes com o papa, entregou a Inglaterra a ele como feudo,
recebendo-a de volta como vassalo.
Inocêncio também forçou o rei da França a submeter-se à sua vontade.
Felipe II havia se casado com Ingerborg da Dinamarca sem ao menos tê-la visto.
Então, quando olhou pela primeira vez para sua nova rainha, disse que um
calafrio percorreu sua espinha. Diante de seu tamanho desgosto pessoal por ela,
ele pediu aos bispos franceses que anulassem o casamento, mas Inocêncio impôs
uma interdição sobre a França até que Felipe a colocasse de volta como rainha.
Quando o imperador Otto IV invadiu a Sicília, ameaçando assim a segurança
dos Estados Papais, Inocêncio o excomungou e em 1212 garantiu a eleição de
Frederico II de Hohenstaufen, seu protegido.
O auge da carreira de Inocêncio foi o 4º Conselho de Latrão, convocado
por ele em 1215. Dentre os setenta decretos emitidos pela ilustre assembléia de
prelados estavam: o requisito de que cristãos deveriam confessar seus pecados e
tomar a ceia pelo menos uma vez por ano na Páscoa, a aceitação da
transubstanciação como dogma, judeus não deveriam aparecer em público na
Semana Santa, judeus e muçulmanos deveriam usar roupas distintivas para que
fossem publicamente identificados. O concílio refletiu a unidade e
universalidade do Cristianismo em seu ápice durante a Idade Média.
Frederico II, porém, acabou sendo uma grande decepção para o papado.
Ele praticamente deu a independência para os príncipes alemães a fim de que
pudesse concentrar-se em controlar a Itália, resultando numa luta por
sobrevivência com o papa que tentou aniquilar o seu poder. O próprio caráter de
Frederico complicava o problema, pois ele combinava uma visão ocidental com
o estilo de um sultão oriental. Ele organizou o sul da Itália em um reino que
mais tarde serviu de exemplo para os estados da Renascença. Ele era um
lingüista, físico, poeta e patrono do ensino. Interessava-se pela cultura árabe,
tinha um harém de mulheres muçulmanas, fez um tratado com governantes
muçulmanos enquanto estava numa cruzada e acreditava em astrologia. Por
causa de sua tolerância e falta de fé o papado o denunciou como sendo “esse
escorpião lançando veneno de seu rabo”.
Um papa, Gregório XI, excomungou Frederico e em 1241 convocou um
sínodo para depô-lo, mas o rei interceptou o navio que estava levando os
prelados para Roma e os prendeu. O papa seguinte, Inocêncio IV, recusou-se a
suspender a excomunhão e acusou-o de sacrilégio e heresia. Depois da morte de
Frederico em 1250, o papado pôs-se a exterminar a casa dos Hohenstaufen e
garantiu o auxílio do conde francês, Charles de Anjou. Em 1269 ele derrotou e
executou Conradin, o último da linhagem.
O triunfo papal gerou instabilidade tanto na Itália quanto na Alemanha. A
remoção da interferência imperial no norte da Itália permitiu que cidades-
estados como Milão, Gênova, Veneza e Florença desabrochassem durante os
dois séculos seguintes. A situação instável na Alemanha deu oportunidade a um
nobre insignificante da Suábia — Rodolfo de Habsburgo — fosse eleito
imperador em 1273. Sua família acabou dominando grande parte da Europa.

A reconquista na Espanha
Depois de alguns anos de invasão os muçulmanos haviam conquistado
toda a Espanha, exceto pela região norte. Em 756 o único membro sobrevivente
da dinastia Umayyad fugiu de lá para Damasco e formou um emirado que logo
controlou grande parte da península. No século 11 Córdoba — a capital — com
suas muitas bibliotecas e escolas, tornou-se o centro cultural da Europa. A
grande mesquita com capacidade para cinco mil e quinhentas pessoas ainda
pode ser vista nos dias de hoje. Os cristãos (mozárabes) e judeus gozavam de
considerável liberdade na Espanha muçulmana. Muitos cristãos acabaram
convertendo-se ao Islã, mas outros resistiram à nova ordem. Um centro de
inspiração para esses últimos era o santuário de São Tiago (Santiago de
Compostela) no noroeste da Espanha. Dizia-se que tinha as relíquias do apóstolo
e atraiu inúmeros peregrinos durante a era medieval.
O grande líder muçulmano Al Mansur (981-1002) realizou ataques
periódicos contra o norte cristão e seu exército de mouros chegou a saquear
Compostela. Mas depois desse sucesso, o emirado de Córdoba entrou
rapidamente em declínio e caiu em 1031. A Espanha muçulmana fragmentou-se
então em vários pequenos estados, enquanto ressurgiam os reinos cristãos —
Castela, Navarro, Leão e Aragão — que começaram um contra-ataque aos
mouros conhecido como a Reconquista.
A luta entre os vários poderes cristãos e mouros continuou ao longo dos
séculos 11 e 12. A vitória decisiva de Castela em Las Navas de Tolosa, em
1212, garantiu que o sucesso final da Reconquista seria só uma questão de
tempo. Apenas a fortificação de Granada, no extremo sul, continuava nas mãos
dos muçulmanos. Nas terras reconquistadas, a princípio os muçulmanos eram
tratados do mesmo modo que os cristãos tinham sido sob o governo islâmico.
Tinham liberdade de praticar sua religião e cultura mas sofriam discriminação
civil, inclusive o pagamento de impostos especiais. Muitos mouros emigraram
então para o norte da África enquanto outros tornaram-se cristãos, especialmente
como resultado da obra missionária de franciscanos e dominicanos. No final da
Idade Média, as pressões sobre os mouros tornaram-se cada vez mais sérias.
Durante a alta Idade Média (1000-1300), estados dinásticos haviam se
desenvolvido na Inglaterra, França e Alemanha. Geralmente os monarcas
ingleses e franceses colaboravam com os papas. Como as reformas gregorianas
revitalizaram o papado, este tornou-se uma força territorial na parte central da
Itália. Isso levou a um conflito severo com os governantes do império que
desejavam controlar a Itália bem como a Alemanha. Por fim, o sucesso da
Espanha na Reconquista inspirou a idéia dos cruzados de libertar a Terra Santa
do domínio muçulmano.

Capítulo 7 - A Igreja medieval no Ocidente


No ano 1000 um reavivamento da civilização estava em progresso na
Europa. A estabilidade voltou com o fim das invasões bárbaras que haviam
assolado o Ocidente desde o 4º século. O crescimento das cidades e do comércio
levou ao desenvolvimento na educação, organização da Igreja, artes e
arquitetura que resultou no desabrochar da vida cultural medieval. Seguiu-se um
período de expansão muitas vezes chamado de “fronteira medieval” que levou
às Cruzadas, ao assentamentos nas terras desocupadas de florestas e pântanos e
à conversão dos povos do norte e leste da Europa.

Feudalismo
Através de sua conversão ao Cristianismo, a segunda onda de invasores
— os magiares e os vikings — foi incorporada à sociedade ocidental da mesma
forma como ocorreu com os migrantes anteriores. Antes que isso acontecesse,
porém, havia se desenvolvido um sistema complexo e diverso conhecido como
feudalismo. As instituições do feudalismo permitiram que os governos locais
funcionassem quando não havia um Estado. O feudalismo originou-se em reação
às invasões vikings, contra as quais o governo não podia oferecer proteção.
Sabe-se que uma forma anterior desse sistema existia no final dos tempos
romanos, quando os homens tinham que seguir o ofício de seu pai, as classes
rurais eram dependentes dos latifundiários que tomavam sobre si a autoridade e
a própria Igreja tinha suas terras. Na metade do século 9º os carolíngeos
decretaram que todo homem e todo pedaço de terra deveriam ter um senhor. Os
guerreiros ou “vassalos” reconheciam sua dependência através de um
relacionamento pessoal e voluntário no qual o senhor lhes dava terras e em troca
os vassalos concordavam em lutar por ele. Assim, a liderança política foi
transmitida para a área controlada por um castelo com poderes públicos
(inclusive de julgar questões legais, policiar, defender e cobrar impostos)
exercidos por indivíduos particulares. Os cavaleiros, homens da cavalaria
protegidos por armaduras, normalmente dominavam aqueles que não tinham os
meios ou a capacidade de tornar-se como eles.
Apesar de existir muitas exceções, havia alguns elementos comuns na
relação entre senhores e vassalos. Através das cerimônias de deferência e
vassalagem, um cavaleiro prometia seus serviços militares por um determinado
número de dias durante o ano. Ele também oferecia ao seu senhor hospitalidade
e conselhos em questões senhoriais e, por vezes, dinheiro. Em troca, o senhor
assumia uma obrigação de proteger seu vassalo.
Esses vassalos serviam na corte do senhor e este lhes oferecia justiça
baseada no julgamento por seus iguais. O vassalo tratava o senhor com honra,
respeito e cortesia e o senhor retribuía com a mesma deferência. Como em
qualquer acordo, as obrigações mútuas do senhor e do vassalo dependiam da
boa fé e, se essa falhasse, da força. Se o senhor não cumpria a sua parte do
acordo, o vassalo podia renunciar seu juramento de lealdade. Se o vassalo não
cumpria seus deveres, o senhor podia pedir de volta as terras que havia lhe
concedido como “feudo”.
Como bispos e outros oficiais da Igreja controlavam grandes extensões de
terra, foram atraídos para dentro do sistema feudal e com freqüência surgiam
conflitos entre seu papel de clérigo e servo de Deus e sua posição de senhor
secular. Assim como os nobres leigos, a aristocracia clerical tinha as
responsabilidades de senhorio. Eles deviam fidelidade e lealdade aos seus
senhores, participavam do governo, administravam vastas propriedades com
servos dependentes, exerciam autoridade sobre seus cavaleiros e acumulavam
riquezas. Naqueles tempos os bispos precisavam servir como governadores e
também pastores e era difícil harmonizar esse papel duplo.
1198-1211
Papado de
Inocêncio III
910 1075 1079-1142 1146 1208 1215 1267-1273
Fundação Inicia a Pedro Bernardo Fundada a 4º Concílio Tomás de
da Abadia controvérsia das Abelardo de Ordem de Lateranens Aquino
de Cluny Investiduras Clairvaux S. e escreve a
Francisco sua Suma
Teológica
900 1100 1300
1095 1146 1204
Pregada em Segunda Cruzada 4ª Cruzada e saque
Clemont a 1ª de Constantinopla
Cruzada

Em detrimento dos valores espirituais, as funções públicas requeridas dos


bispos feudais significavam que eles precisavam ser leais aos senhores seculares
acima deles. Conseqüentemente, essas leigos exigiam influência na eleição dos
bispos e, em muitas partes da Europa conseguiram o direito de escolher os
servos de Deus bem como os de César. Não é de se admirar que os líderes
religiosos tinham dificuldade em separar suas lealdades ou de que os
reformadores do clero pedissem uma reorganização de prioridades. A
feudalização da Igreja foi o pano de fundo para a Reforma Gregoriana
mencionada anteriormente, tendo em vista que a essa altura não havia distinção
entre Igreja e Estado e nem concordância sobre os poderes dos leigos.

O sistema senhorial
Os historiadores com freqüência dividem a estrutura social medieval entre
aqueles que lutavam, aqueles que trabalhavam e aqueles que rezavam. Apesar de
ser uma simplificação excessiva, é verdade que alguns estavam envolvidos no
sistema feudal como cavaleiros, outros trabalhavam nos campos como servos e
muitos serviam a Igreja em diversas funções. Tendo em vista que os cavaleiros
precisavam de tempo livre para refinar suas técnicas, eles viviam em
propriedades arrendadas e recebiam sustento enquanto treinavam. É certo que
não havia um arrendamento típico e dentro dessas terras existiam combinações
variadas de relações políticas e sociais. De um modo geral, uma vila era formada
de diversas propriedades como essas e assim, estava sujeita a vários senhores.
Os direitos do senhor sobre os camponeses (que costumavam ser
chamados de servos) incluíam aquilo que era necessário para seu sustento de
modo que ele pudesse gastar o seu tempo com guerras, governo e lazer. Várias
obrigações e serviços faziam as vezes dos impostos, governanças, pagamentos
de seguro, serviço militar e outras obrigações das pessoas de nosso tempo. Os
servos na propriedade arrendada plantavam, cultivavam e colhiam as terras do
senhor. Além disso, ele recebia uma parcela da colheita das terras comunitárias,
como feno dos campos. Ele também tinha o direito a um número específico de
dias de trabalho dos servos, de sua mão de obra para fazer a manutenção das
estradas e pontes e de cobrar impostos no caso de haver uma economia baseada
em dinheiro. Ele também podia cobrar taxas em gênero para funções
econômicas que estavam sob o seu monopólio como o uso da cervejaria, prensa
de vinho, moinho de trigo e fornos.
Nesse mundo hierarquicamente ordenado, o servo tinha direitos. Como
todas as obrigações senhoriais, estes variavam muito, mas de um modo geral o
servo era subserviente apenas dentro do relacionamento com o seu mestre. Fora
do castelo senhorial, ele era igual a outros, tinha o direito de processar e ser
processado na justiça e não estava sujeito a nenhum outro senhor além do seu
próprio. Ao contrário de um escravo, o servo estava ligado à terra, isto é, a
propriedade em que trabalhava não podia ser tomada dele. Isso garantia-lhe
trabalho e renda contínuos. Além das obrigações pagas em gênero, ele devia o
dízimo para a paróquia de sua igreja e alguns outros pagamentos em dinheiro.
Mesmo nessa sociedade tosca, os costumes e tradições davam ao
camponês algum alívio da sua lida enfadonha. Havia muitos feriados religiosos
nos quais ele não trabalhava e podia aproveitar as festividades e pompa dos
torneios, feiras e execuções. Tinha seu próprio jardim, não era obrigado a prestar
serviço militar a menos que sua vila fosse atacada e era alimentado pelo senhor
nos dias em que trabalhava nas terras dele. O superior também tinha obrigações,
pois o senhor devia aos seus servos proteção e terras, as duas coisas que um
camponês mais precisava. Além disso, ele oferecia uma igreja, um padre,
sementes na época de plantio e benefícios comunitários como fornos e moinhos.
No século 11, as condições dos camponeses melhoraram graças ao
restabelecimento da ordem pública e segurança e da introdução de novas
ferramentas e tecnologia. Um novo tipo de machado permitiu que os fazendeiros
derrubassem florestas e moinhos de vento foram inventados para drenar
pântanos, criando assim novas terras para o cultivo. Os arreios de cavalo e
arados de aiveca quebravam o solo duro do norte enquanto o desenvolvimento
de moinhos de água e vento e o sistema de rotação de terras aumentava a
produção das lavouras. Assim, um aumento na oferta de alimentos permitiu uma
pequena melhora nos padrões de vida dos camponeses.

O crescimento das cidades


A classe média ou a “burguesia” que se dedicava ao comércio e
manufatura e vivia nas cidades originou-se da classe camponesa. O crescimento
dessas comunidades e das atividades econômicas que lá se realizavam foi
incentivado pela revitalização do comércio de longa distância. Isso deveu-se às
conexões marítimas das cidades-estados italianas com o Oriente, resultando na
disponibilidade de produtos de luxo, na produção de lã crua na Inglaterra e
emergência das cidades flamengas como centros de manufatura de lãs finas e
também na crescente demanda pelos produtos da região do Báltico.
As indústrias locais também contribuíram para a expansão do comércio.
Bens produzidos em pequenas oficinas de artesãos nas cidades eram destinados
à exportação ao invés de serem feitos simplesmente para o consumo doméstico.
Além disso, os artesãos organizaram guildas que eram uma mistura de
associação trabalhista, centro cívico ou serviço público e confraria. As guildas
regulamentavam as condições de manufatura, os preços, critérios de qualidade e
padrões para aceitação do produto. Em troca, os comerciantes formaram
associações para facilitar o comércio, especialmente em mercados estrangeiros e
para ajudar a vencer a competição. Assim como as relações feudais continham
elementos de segurança social, o mesmo acontecia com as guildas. Elas
ofereciam um tipo de seguro de vida através do sistema de aprendizes ao
garantir que os filhos de um homem que falecesse iriam aprender seu ofício e
dedicava-se a vários tipos de atividades corporativas para o benefício de todos.
As cidades recebiam sua liberdade do senhor feudal através de uma
escritura e o método habitual de se conseguir esse documento era pela
negociação, compra ou como uma doação. O excedente de comida resultante da
revolução agrícola tornou possível a existência desses centros populacionais. Os
comerciantes e artesão que viviam nesses lugares sustentavam-se através de suas
ocupações e compravam comida dos agricultores. O homem da cidade era
diferente de seu vizinho camponês pois era livre para ir e vir e, através de sua
guilda gozava de uma certa autonomia de governo. Os habitantes da cidade
também tinham impostos e ajudavam na defesa militar de sua comunidade.
Apesar do ambiente medieval ser principalmente rural, as vilas e cidades
eram os centros da inovação cultural. Dentre os desenvolvimentos culturais a
elas associados havia a universidade, a literatura oral, o teatro e a catedral
gótica, o aspecto artístico mais distintivo da Idade Média. O patrocínio dos
cidadãos abastados permitiu uma verdadeira renascença cultura no período entre
a metade do século 11 e final do século 12.

Monasticismo medieval
Junto com o ressurgimento econômico da Europa medieval ocorreu
também uma renovação espiritual. Suas origens encontram-se no movimento de
reforma que começou em 910 com a fundação do mosteiro de Cluny na
Borgonha. A reforma cluniacense compôs-se de uma volta à rígida Regra
beneditina, do cultivo da vida espiritual e de uma ênfase na adoração. Também
deu-se atenção a uma sólida organização econômica e independência do
controle financeiro de leigos. À medida em que a ordem cluniacense fundava
novos mosteiros, cada era ligado à “casa matriz” (a sede da ordem). Assim, eles
evitavam o controle local e prestavam contas somente ao papa. Na metade do
século 12, quando sua influência atingiu um ponto alto, dentro da esfera de
Cluny havia mais de trezentas casas e muitas figuras proeminentes da Igreja. Os
cluniacenses serviram de inspiração para outras instituições e indivíduos que
não estavam formalmente ligados à ordem. Um deles foi o monge alemão
Hildebrando que, como papa Gregório VII, deu seu nome à reforma papal do
século 11.
O espírito de renovação também evidenciou-se na formação de novas
ordens monásticas. O sucesso da reforma do papado juntamente com a expansão
cultural tinham levado a uma crise do monasticismo beneditino. A ascensão ao
poder de papas, bispos e reis enfraqueceu o papel monástico na cultura. A
educação tinha passado a centralizar-se nas escolas dos bispos aos invés dos
mosteiros. O crescimento do clero não-monástico e um governo civil estável
tornaram os mosteiros obsoletos como oásis de cultura. Em reação à nova
situação, surgiram várias novas ordens.
A mais influente foi a dos cistercianos, fundada em 1098 em Citeaux, na
França e originada de uma outra casa beneditina. Um de seus líderes, Stephen
Harding, elaborou uma regra que enfatizava o trabalho braçal ao invés dos
estudos e a oração particular ao invés da comunal. Os cistercianos colocavam
suas casas comunitárias nos lugares mais isolados e não aceitavam dízimos,
ofertas ou patrocínio de leigos. Crentes de que “trabalhar é orar”, eles tomaram
sobre si as tarefas de cultivar, cozinhar, tecer, carpintaria e outras obrigações
diárias. Suas igrejas eram simples, sem ornamentos ou tesouros e eles eram
donos de seus bens pessoais. Era-lhes permitido ter sete horas de sono no
inverno e seis no verão. Depois de reunirem-se para a oração comunal, os
irmãos passavam o resto do dia fazendo trabalho braçal, meditando, lendo e nos
cultos. Sua dieta era restrita — legumes, peixe e queijo — uma vez por dia no
verão e duas vezes no inverno. Até mesmo nas regiões mais frias só era
permitido acender um fogo no dia de Natal.
Apesar de sua rigidez, os cistercianos foram um sucesso fenomenal e no
final do século 12 havia centenas de mosteiros. Seu líder mais notável foi
Bernard de Clairvaux (1090-1153). Ele chegou em Citeaux em 1112 e então foi
para Clairvaux onde fundou o primeiro de mais de sessenta e cinco novos
mosteiros e adquiriu influência por todo o continente. Ele era tão persuasivo em
convencer os homens a entrarem para o mosteiro que as mães escondiam seus
filhos e as esposas seus maridos quando ele saía para pescar almas. Em seus
sermões extremamente populares e encantadores sobre o Cântico dos Cânticos e
em sua obra Por que e como Deus Deve Ser Amado, Bernard descreveu a vida
cristã como uma experiência de progresso em amor. Sob sua orientação, os
interesses dos monges ampliaram-se para além da contemplação e passaram a
incluir o trabalho missionário e o cuidado pastoral para com o próximo. Apesar
de seu impacto, no final do século 12 os cistercianos havia tornado-se ricos,
relaxados e ineficientes.
O declínio dos cistercianos coincidiu com o fim da importância dos
mosteiros de clausura. O crescimento das vilas e cidades tornou a segurança do
mosteiro menos necessária e, na verdade, colocou um novo desafio para a Igreja.
Pelo fato das expressões tradicionais de fé não estarem conseguindo lidar com o
caráter mundano das sociedades urbanas emergentes, muitos líderes
eclesiásticos perceberam a necessidade de uma nova forma de espiritualidade
que lhes permitisse trabalhar no mundo e ao mesmo tempo manter um estilo de
vida monástico. Eles decidiram que a resposta estava num grupo que fizesse
votos de viver em comunidade sob uma regra rígida mas que também fosse
pregar e ensinar no meio do povo. Duas ordens que funcionavam dessa maneira
eram a dos premonstratensianos (fundada em 1120) que tinha uma regra
semelhante à cisterciana e dos agostinianos (fundada em 1256) que usava a
regra de Agostinho.
No começo do século 13 surgiram os monges pregadores ou frades
(“irmãos”). Eram ordens “mendicantes”, ou seja, tinha um estilo de vida
extremamente ascético e dependiam de caridade (mendicância). Os frades
pregavam nas paróquias e praças das cidades, ensinavam nas escolas e acabaram
dominando muitas das universidades. As duas ordens mais importantes foram as
dos franciscanos e dos dominicanos.
A ordem franciscana foi fundada por Francisco de Assis (1182-1226),
filho de um comerciante de tecidos, que abriu mão de sua riqueza para viver
uma vida de oração e simplicidade. Juntando um grupo de seguidores ele vagou
pelas montanhas da Toscania trabalhando de vez em quando, pregando e
cuidando dos enfermos. Ele ensinava que a pobreza completa libertava os
irmãos das preocupações e os tornava alegres diante de Deus. Aprovados pelo
papa em 1209, os irmãos eram conhecidos como Frades Menores, vestiam-se de
cinza escuro e andavam descalços. Com o crescimento da sociedade, tornou-se
cada vez mais difícil viver da mendicância e do trabalho de suas próprias mãos.
Aqueles que decidiram continuar seguindo os ensinamentos originais de
Francisco e mantiveram um regime de pobreza eram conhecidos como
franciscanos espirituais (ou fraticelli). Eles foram perseguidos por se recusarem
a obedecer um decreto papal que autorizava a ordem a ter propriedades.
O fundador dos dominicanos foi Dominique de Gusmão (1170-1221), um
espanhol que foi mandado para o sul da França para pregar contra os
albigencianos. Lá ele percebeu a necessidade de um clero estudado que pudesse
comunicar-se com o povo e ganhar os hereges de volta para a Igreja. Sua ordem,
reconhecida em 1216, concentrava-se no ensino e na pregação. Daí o título
oficial dos dominicanos de Ordem dos Pregadores. Vestindo um hábito branco e
capa preta, eles espalharam-se pela Europa como “cães de guarda do Senhor”
(um trocadilho com o nome latino Dominicanus — domini canis) para acabar
com a heresia e combater a ignorância.
Os dominicanos foram a primeira ordem a abandonar o trabalho braçal e
colocar como prioridade o esforço intelectual e sua ênfase acadêmica
contrastava com o anti-intelectualismo franciscano. Eles fundaram escolas e
produziram importantes teólogos como Alberto o Grande e Tomás de Aquino.
Porém, logo as duas ordens tornaram-se mais parecidas, tenso em vista que os
franciscanos fundaram instituições educacionais para treinar seus jovens frades.
Ambos os grupos realizavam trabalhos social, pastorais, educacionais e
missionários. Eles serviam os leprosos e enfermos, uma prática que incentivou o
estudo de Medicina. Também eram pregadores competentes, apesar de
freqüentemente surgirem dificuldades com o clero local, tendo em vista que os
padres das paróquias normalmente não eram bem treinados. Cheios de zelo, eles
deixavam uma impressão profunda em seus ouvintes. Seus sermões eram
marcados por humor e por histórias adequadas da vida cotidiana. Até hoje seus
livros devocionais e poesias religiosas ainda transmitem a mensagem de Cristo.
Assim como os dominicanos, os franciscanos abriram escolas nos centros
universitários e produziram estudiosos distintos como Bonaventure (1221-74),
Guilherme de Okham (1280-1349) e Roger Bacon (cerca de 1214-92). Sua
atividade missionária também é digna de menção. Entre 1214 e 1215 Francisco
foi à Espanha na esperança de converter os mouros, mas uma enfermidade o
impediu de seguir até a África. Em 1219 ele fez uma viagem para pregar,
levando consigo onze companheiros à Europa oriental e Egito. Ambas as ordens
incentivavam o estudo das línguas orientais para que os missionários pudessem
comunicar-se com os muçulmanos. Durante o século 13 eles pregaram e
fundaram casas no leste e norte da África.
A obra do franciscano Raymond Mull (cerca de 1232-1316) foi
especialmente memorável. Nativo da ilha de Maiorca, ele dedicou sua vida a
ganhar os muçulmanos para Cristo. Ele não apenas aprendeu o árabe mas
também convenceu o governante de sua terra natal a fundar um mosteiro onde
os franciscanos pudessem aprender a língua e seus métodos de abordagem dos
muçulmanos com a mensagem cristã. Fez viagens missionárias para a Tunis e
Algiers mas não conseguiu obter apoio dos reis da Europa para esse projeto. Um
teólogo distinto por si só, ele criou um sistema de unificação de toda a verdade,
o qual ele acreditava que poderia levar a uma reunião das igrejas latina e grega
e, algum dia, à conversão de toda a humanidade ao Cristianismo.

As Cruzadas
A pregação dos frades no Oriente poderia ter resultado em uma infiltração
pacífica do Cristianismo latino naquela região não fosse pelas crescentes tensões
entre Bizâncio e o Ocidente. No começo do século 11, a igreja grega ainda
possuía um bom relacionamento com Roma, mas então, as Cruzadas causaram
um rompimento total das relações. Superficialmente, as Cruzadas eram guerras
com o objetivo de recuperar a Terra Santa do controle muçulmano, mas na
realidade os fatores que levaram a elas eram muito mais complicados. A
conquista islâmica do Oriente Médio tinha alcançado o sucesso antes de mais
nada porque as populações cristãs haviam oferecido pouco ou nenhuma
resistência e as igrejas monofisitas chegavam a considerar o governo árabe-
muçulmano preferível àquele do Bizâncio. Assim, não havia nenhuma exigência
popular para que esses cristãos fosse “libertados”.
Além disso, os carolíngeos haviam reivindicado o direito de proteger os
“Lugares Santos” na Palestina e os peregrinos ocidentais que viajavam para lá.
Os califas muçulmanos preferiam a interferência dos distantes francos do que a
presença muito mais ameaçadora dos bizantinos. O aumento na freqüência e
tamanho das peregrinações nos séculos 10º e 11 fez a atenção da Europa voltar-
se mais para o Oriente. Muitas cruzadas foram organizadas por monges
cluniacences que construíram abadias e hospedarias ao longo do caminho. Era
comum guardas armados acompanharem os peregrinos que viajavam em grupos
grandes como em 1064-66 quando sete mil alemães foram para Jerusalém.
Havia também uma consciência cada vez maior de Cristianismo como
sinônimo de Europa e o direito de defender a fé contra os “sarracenos”. Essa
guerra foi estimulada pelo início de um esforço no século 11 de “reconquistar” a
Espanha do domínio muçulmano, servindo de protótipo para as Cruzadas que
vieram mais tarde e pela campanha vitoriosa dos normandos que expulsaram os
sarracenos da Sicília (1072-91). Além disso, a captura de Jerusalém pelos turcos
seldjúcidas — um grupo muçulmano mais feroz do que os árabes — e sua
vitória arrasadora sobre as forças bizantinas naquele mesmo ano tiveram
ressonância para toda a cristandade.
Os bizantinos fizeram vários apelos ao Ocidente por ajuda para livrar-se
dos turcos, mas foi em vão até que em 1095 o papa Urbano II fizesse seu famoso
discurso em Clermont, na França e lançasse a Primeira Cruzada. No concílio o
pontífice declarou: “Dos confins de Jerusalém e da cidade de Constantinopla
nos chega um terrível relato... Uma raça amaldiçoada, uma raça completamente
alienada de Deus... invadiu as terras daqueles cristãos e despovoou-as pela
espada, saques e fogo”. Os turcos eram supostamente culpados de atrocidades
como profanar igrejas, torturar e matar e estuprar mulheres cristãs. Ele também
apelou para a honra francesa: “Lembrai-vos da grandeza de Carlos Magno.
Ponde-vos à caminho do Santo Sepulcro para arrancar a terra dessa raça
perversa e sujeitá-la a vós mesmos”. Na conclusão de seu discurso um grito
ergue-se da multidão: “Deus Vult!” (É a vontade de Deus). Satisfeito com essa
reação, Urbano fez de “Deus Vult” o grito de guerra das Cruzadas e sugeriu que
cada guerreiro usasse o sinal da cruz em suas vestimentas.
Nos meses que se seguiram, representantes do papa viajaram por toda a
Europa alistando recrutas para ir até a Terra Santa lutar contra os turcos, sendo o
mais notável dentro esses recrutas Pedro, o Eremita. A Primeira Cruzada (1096-
99) foi de caráter predominantemente francês e seus líderes eram nobres
proeminentes como Raymond de Toulouse, Godfrey de Bouillon (duque de
Lorraine), Roberto da Normandia e Stephen de Blois.
À medida em que o bando de cavaleiros e simpatizantes movia-se com
dificuldade pela Europa central a caminho da Terra Santa, parava para
aterrorizar comunidades judias que eram acusadas de perseguir os cristãos
primitivos e de ajudar na conquista islâmica e extorquiam dinheiro dos judeus
para financiar a viagem. Esse fato marcou a primeira manifestação em grande
escala de violência anti-semítica na Europa medieval. As forças dos cruzados
acabaram chegando no Oriente, tomaram Jerusalém em 1099 e massacraram a
população muçulmana num dos acontecimentos mais vergonhosos da história do
Cristianismo. Eles criaram o Reino Latino em Jerusalém e vários outros estados
ao longa da costa do Mediterrâneo, mantendo assim um equilíbrio de poder
entre bizantinos e muçulmanos. Durante o processo, eles repetiram várias vezes
esse padrão de violência inconseqüente contra populações locais.
Na verdade, o controle dos europeus era frágil e outras Cruzadas logo se
seguiram. Cidades marítimas italianas como Veneza, Gênova e Pisa eram
cruciais pois serviam de passagem dos peregrinos para o Oriente e enviavam
suprimentos e soldados para lutar contra os muçulmanos, mas seu compromisso
com um empreendimento espiritual na Palestina era, na melhor das hipóteses,
mínimo. Duas novas ordens religiosas formaram-se nessa época, os Cavaleiros
Templários e os Cavaleiros Hospitaleiros (Cavaleiros de São João), combinando
o monasticismo e o militarismo. Seus membros eram monges-soldados que a
princípio deveriam proteger peregrinos, mas logo seus deveres se expandiram
para incluir também a defesa dos estados cruzados. Em 1189, soldados alemães
e comerciantes na Terra Santa formaram uma terceira ordem, os Cavaleiros
Teutônicos.
Pelo fato do Reino Latino de Jerusalém estar perdendo terreno para um
avanço muçulmano, o papa orientou Bernard de Clairvaux a convocar os
cristãos para uma Segunda Cruzada. Em 1147 o rei Luís VII da França e
Conrado III, Santo Imperador Romano, lideraram uma expedição que foi
marcada por uma série de desastres, sendo o mais extraordinário uma
emboscada próxima a Damasco e depois de dois anos as forças se
desintegraram. Uma Cruzada pregada pelo homem com a maior reputação de
santidade na Europa e liderada pela realeza havia fracassado. O fiasco
enraiveceu os cristãos e muitos passaram a acreditar que a “traição” dos gregos
era o principal motivo desse fracasso. Conseqüentemente, Bernard sugeriu que
fosse organizada uma campanha contra Constantinopla, um desejo que seria
atendido em 1204.
Dentro de poucos anos os muçulmanos consolidaram seu poder sob
Saladin (1138-93), seu mais distinto sultão. Primeiro, ele adquiriu o controle do
Egito em 1174 e então conquistou grande parte da Síria. Em 1187 capturou
Jerusalém, mas não massacrou a população cristã e reduziu o poder dos estados
cruzados na região costeira. Quando notícias desses acontecimentos chegaram
ao Ocidente, os três principais monarcas da época — o imperador Frederico
Barbarossa, Ricardo I da Inglaterra e Filipe II da França — encarregaram-se de
uma iniciativa completamente leiga de livrar a Terra Santa (3ª Cruzada, 1182-
92), porém sem grandes resultados. Barbarossa morreu no caminho e Filipe
voltou para casa depois de brigar com Ricardo, que negociou um tratado com
Saladin dando aos peregrinos cristãos acesso a Jerusalém.
Depois disso, os europeus foram perdendo o interesse pelo ideal cruzado e
o poder muçulmano no Oriente restabeleceu-se por completo. Quando os poucos
cavaleiros que responderam ao chamado do papa Inocêncio III à Quarta Cruzada
(1202-4) não tiveram condições de pagar a taxa de travessia cobrada pelos
venezianos, os dois grupos fizeram uma barganha e acabaram atacando
Constantinopla. Seguiram-se outras iniciativas que foram patéticas, como a
Cruzada das Crianças (1212) e a Quinta Cruzada (1219) contra o Egito. Outras
ainda foram militarmente eficazes, como a Sexta Cruzada liderada por Frederico
II em 1228-29 que recobrou por pouco tempo o controle de Jerusalém. Luís IX
da França não conseguiu nada com suas expedições cruzadas de 1248-50 e
1270. Em 1291 essa era chegou ao fim com a queda de Acre, o último Estado
cruzado. Porém, apesar das cruzadas terem isolado os cristãos bizantinos, o
intercâmbio cultural resultante de dois séculos de contato com Oriente teve um
efeito duradouro na vida ocidental.

Expansão missionária latina


As cruzadas foram apenas uma das formas de reação dos europeus
ocidentais à presença de seus vizinhos não-cristãos. Outra foi o movimento
contínuo dos alemães para o leste. Nos séculos 12 e 13 isso resultou na
conversão forçosa dos uendes eslavos que viviam entre os rios Elba e Oder e um
fluxo de fazendeiros alemães para essa região. O Bispo Otto de Bamberg levou a
cabo com sucesso uma iniciativa missionária na Pomerânia na década de 1120 e
com a chegada de imigrantes alemães completou-se a assimilação dos
pomerânios eslavos. No século 13 o rei polonês convidou colonizadores alemães
a ocupar áreas na Silésia e em Poznan (Posen) que havia sido devastadas pelas
invasões mongóis.
Ao longo da costa do Báltico, os empreendimentos com estilo de cruzadas
eram a última moda. Os Cavaleiros da Espada, organizados em 1202, eram uma
ordem militar alemã que conquistou grande parte da Estônia e Lituânia num
espaço de duas décadas, apesar de terem que competir com os escandinavos pelo
domínio da região. Em 1226 o rei polonês convidou os Cavaleiros Teutônicos,
que haviam se mudado para a Europa e estavam ajudando o rei húngaro a
converter os cumanos turcos da Transilvânia, para encarregarem-se de uma
tarefa semelhante entre os hereges da Prússia. Os Cavaleiros lançaram-se ao
trabalho com vigor e sua cruzada como representantes do Cristianismo e do
germanismo foi comparável à da Espanha. Depois de terem assimilado as
propriedades dos Cavaleiros da Espada em 1237 e terminado de conquistar a
Prússia em 1285, toda a costa sul do Báltico foi aberta para missões cristãs e
comércio e colonização alemães.
Os Cavaleiros tinham a intenção de prosseguir até a Rússia, mas a
expansão católica foi detida por Alexander Nevsky, príncipe de Novgorod
(1219-63). Ele derrotou os alemães na famosa “Batalha sobre o Gelo” na
superfície congelada do lago Peipus na Estônia em 1242 e então submeteu-se ao
governo do khan mongol. Isso garantiu a sobrevivência da ortodoxia oriental na
Rússia (ver capítulo 8), um ato pelo qual ele foi transformado em santo.
Um século depois, os Cavaleiros Teutônicos finalmente esgotaram a
resistência dos lituanos e em 1385 seu rei Jagiello foi batizado. Porém, mais que
depressa ele aliou-se ao rei polonês para evitar outros avanços alemães e no
século seguinte suas forças conjuntas derrotaram a ordem teutônica e limitaram
seu poder na Prússia.
Ainda assim, os católicos latinos viam o vasto império mongol como uma
oportunidade missionária. Dois frades franciscanos, João de Planocarpini em
1245-47 e Guilherme de Rubruquis (ou Rubruck) em 1253-55, viajaram para a
corte do khan e voltaram com maravilhosos relatos. Os nestorianos (ver capítulo
8) já haviam obtido enorme sucesso nessa região e os católicos esperavam fazer
o mesmo. No final do século 13 e começo do século 14, franciscanos e
dominicanos fundaram uma cadeia de missões atravessando a Ásia, indo da
região do Mar Negro e Cáucaso até a Pérsia, Índia e até mesmo China. Um frade
mais conhecido foi João de Monte Corvino, um franciscano que assumiu a obra
em Pequim em 1294 e foi nomeado arcebispo pelo papa em 1307.
Parecia a princípio que os governantes mongóis poderia aceitar o
Cristianismo, mas então, a região leste adotou o Islã, cortando assim a
comunicação com as missões e a vitória da dinastia Ming na China em 1368
resultou na expulsão de todos os estrangeiros de lá. A essa altura, a Europa
estava preocupada com guerras, pestes e controvérsias político-religiosas e o
entusiasmo missionário tinha se dissipado.

Escolas catedrais e universidades


A estabilidade e otimismo da alta Idade Média (1100-1300) resultaram no
crescimento do ensino e das universidades. Durante o período anterior os
mosteiros eram em grande parte os responsáveis pela educação. Um monge
instruído recebia a incumbência de ensinar os noviços (novos monges) e à
medida que sua fama crescia, adultos de outros mosteiros iam estudar com ele.
Era comum que jovens de famílias abastadas estudassem com um tutor
monástico e depois se juntassem ao clero ou escolhessem um trabalho secular.
No século 12 as escolas catedrais haviam ganho destaque. O chanceler,
principal dignitário da catedral depois do bispo e do reitor, lecionava ciências
humanas e Teologia para os alunos avançados enquanto outros professores
instruíam os jovens em gramática latina. Os estudiosos normalmente estavam
destinados a servir à Igreja. Uma licença para lecionar, concedida pelo
chanceler, foi a predecessora do diploma universitário.
Os debates teológicos que aconteciam nas escolas contribuíram para um
novo despertar da vida intelectual na Europa. Uma importante controvérsia
envolveu Berengar (cerca de 1000-88), que estudava na escola catedral de
Tours. A questão era o significado das palavras de consagração da missa: “Este
é o meu corpo, este é o meu sangue”. Berengar concordava que uma
transformação real e verdadeira acontece nesses elementos, mas dizia que essa
transformação é espiritual e o pão e o vinho continuam sendo as mesmas
substâncias. Lanfranc e outros insistiam que a substância básica do pão e do
vinho eram transformadas no corpo, sangue, alma e divindade de Cristo,
enquanto as características (textura, sabor, aparência e odor) do pão e do vinho
continuavam as mesmas. Depois de uma longa e amarga controvérsia, a
definição de Lanfranc de “transubstanciação” tornou-se a idéia aceita.
Um outro debate foi sobre a obra de Cristo na cruz e de como sua morte
poderia trazer a reconciliação entre Deus e o homem. Predominantemente,
usava-se os ensinamentos de Orígenes (ver capítulo) que acreditava que através
do pecado a humanidade havia se sujeitado ao diabo e que a marca disso era a
morte. Deus desejava libertar os homens mas não podia fazê-lo pois o direito do
diabo era justo. Consequentemente, para neutralizar esse direito, foi pago um
resgate na forma de alguém sobre o qual o diabo não tinha direitos, isto é, um
homem sem pecado. Assim, o diabo foi enganado quando Cristo foi crucificado
e agora Deus pode, com justiça, salvar quem ele desejar.
Anselmo de Canterbury questionou essa idéia em Por que Deus Tornou-
se Homem. Ele argumentava que quando uma pessoa peca ela perturba a ordem
correta do universo e fica alienada de Deus. Por ser justo, Deus deve receber
uma compensação pelo pecado antes que possa perdoar o pecador. Cristo, o
homem sem pecado, foi enviado pela misericórdia de Deus para oferecer a
compensação devida pela raça humana. Essa idéia ofereceu uma visão
completamente nova da encarnação e expiação.
Talvez o mais importante mestre desse período tenha sido Pedro Abelardo
(1079-1142) em Paris. Foram seus métodos mais do que suas conclusões que
perturbaram vários líderes da Igreja. Conforme ele dizia: “A primeira chave para
a sabedoria é o questionamento constante e freqüente... Pois, ao duvidarmos
somos levados a questionar e ao questionar chegamos à verdade!” Abelardo
usou essa abordagem em seu livro Sim e Não, no qual demonstrou que só a
tradição e autoridade não eram suficientes para responder perguntas como:
“Deus é onipotente?” “Pecamos contra nossa vontade?” e “A fé baseia-se na
razão?” Ele citou sumidades de ambas as partes e deixou em aberto as
contradições. Porém, seu pupilo Pedro Lombardo (cerca de 1100-69) usou a
razão para responder muitas das mesmas questões em sua obra As Sentenças, um
livro-texto teológico bastante popular. A técnica de apresentar afirmações
contraditórias sobre um problema e então resolvê-lo pela razão mostrar-se-ia
uma característica chave do escolasticismo.
As escolas catedrais foram catalisadoras da fundação das universidades.
Uma cidade com uma catedral conhecida muitas vezes tornava-se o centro de
muitas escolas e os estudiosos alugavam salas e estudantes pagavam para ouvir
suas palestras. Dessa situação surgiu a universidade. Na realidade, o termo
universitas a princípio descrevia uma guilda de professores ou estudiosos
reunidos em defesa própria contra a cidade onde se encontravam ou com o
propósito de disciplinar alunos ou professores indolentes. Foram os professores
que organizaram as universidades no norte da Europa, enquanto na Itália os
alunos é que formaram as guildas. As primeiras universidades receberam sua
permissão do papa e as que vieram mais tarde pediram o reconhecimento de
governantes seculares.
Entre as primeiras universidades podemos citar Bolonha, Paris, Salermo,
Cambridge, Pádua, Salamanca e Toulouse. Elas eram relativamente pequenas de
acordo com os padrões modernos, sendo que a maior tinha entre três e quatro
mil alunos. Apesar de ensinarem as sete ciências humanas (ver capítulo 6), a
tendência era que a lógica ou filosofia fosse predominante no currículo
universitário. As faculdades de graduação ensinavam Medicina, Direito e
Teologia.
Em Paris, um jovem podia começar seus estudos aos 12 anos de idade,
mas o privilégio de lecionar Teologia não era concedido até que se completasse
35 anos. O único requisito de admissão era o conhecimento do latim. Os
primeiros quatro anos culminavam no grau de Mestre em Ciências Humanas que
era composto de estudos, um estágio para lecionar e a defesa de uma tese. Ele
podia, então, continuar com os estudos de Direito, Medicina ou Teologia. Se
desejasse um Doutorado em Teologia, teria que passar seis anos concentrando-
se na Bíblia e na Teologia sistemática de Pedro Lombardo. Mais três anos de
estudo das obras dos Patriarcas da Igreja e da Bíblia davam direito a um
Doutorado de Teologia Sagrada, que qualificava o estudioso a lecionar Teologia
da mesma forma que o Mestre em Ciências humanas podia lecionar essas
matérias.
A universidade mais famosa de Paris era Sorbone. As universidades
inglesas de Oxford e Cambridge usaram o modelo de Paris. Elas assemelhavam-
se aos grupos de cânones de uma catedral, onde os clérigos viviam juntos sob
uma regra. Apesar dos professores e alunos supostamente serem religiosos, sua
conduta mostrava que muitas vezes tinham outros assuntos em mente.

Escolasticismo
O método distinto de reflexão teológica e filosófica das escolas medievais
era o escolasticismo. Ele procurava reconciliar a revelação cristã com a filosofia
de Aristóteles, que havia sido transmitida para a Europa ocidental através dos
muçulmanos e judeus da Espanha e do sul da Itália. Esse método lançava mão de
várias fontes. Uma delas era o “realismo” platônico que afirmava que havia
idéias (universais) na mente de Deus — formas ou essências perfeitas como
cadeira, homem, honra e árvore — e coisas (específicas) que as pessoas
percebiam na realidade. Outra fonte era a ênfase de Abelardo no direito do
filósofo de usar sua própria razão. O sistema de Aristóteles também foi
importante e tornou-se conhecido aos estudiosos medievais por volta de 1200.
Ele baseava-se completamente na razão e operava sem referência ao Deus
cristão. Conceitos como o transformador primário, movimento eterno, a negação
da criação e da providência, incerteza sobre a imortalidade e a alma e uma
moralidade baseada apenas na razão eram extremamente perturbadores para as
pessoas naquele tempo.
A genialidade de dois teólogos dominicanos, Alberto Magno (Alberto o
Grande, 1193-1280) e seu pupilo Tomás de Aquino (1224-1274) consistiu em
juntar essas idéias num sistema lógico que mantinha a distinção entre a esfera da
revelação divina e a da razão humana e usava todo o conhecimento humano na
investigação dos mistérios divinos. A Summa Theologiae de Tomás foi a maior
obra da teologia medieval e sua influência ainda pode ser vista nos dias de hoje.
Nela, ele afirma que a existência de Deus pode ser conhecida através de seus
efeitos no mundo, coisas que todos podem ver. Mas Deus não é conhecido
apenas através da “natureza” mas também através da “graça”, por sua revelação
nas Escrituras.
O objetivo de Tomás era harmonizar a fé e a razão. Ao aceitar Aristóteles
como um guia da razão e a Bíblia como a regra de fé, ele demonstrou que existe
uma relação significativa entre as duas. Apesar de algumas doutrinas só
poderem ser conhecidas através da revelação, como a Trindade, o pecado
original, a encarnação e a ressurreição, elas não são necessariamente
contraditórias à razão. Pelo contrário, a revelação complementa e aperfeiçoa mas
nunca contradiz as conclusões da razão.
Uma ilustração desse método é uma discussão sobre a providência de
Deus. Aristóteles afirmava que Deus (ou o “transformador imutável”) não
conhece o mundo e nem se preocupa com ele; porém, a Bíblia afirma que
freqüentemente Deus está intimamente preocupado com sua criação. Todavia,
essa não era uma contradição real pois Deus, como criador do mundo é sua
razão de ser e abrange os efeitos da criação. Tendo em vista que ele conhece
tudo o que há dentro dele, ele sabe da criação como um todo. Além disso, por
ele ter criado o tempo, o conhecimento que tem de sua obra é eterno.
Através da lógica Tomás explicou então as doutrinas da imoralidade,
criação e julgamento. Fez uma distinção clara entre a forma como o
conhecimento é adquirido nesse mundo e aquilo que os indivíduos aprendem
depois da morte. Nesse mundo, adquire-se compreensão através da experiência,
seja ela direta o indireta, mas no céu um indivíduo irá aprender através do
“conhecimento místico”. Os apóstolos e profetas eram indivíduos privilegiados
que puderam experimentar Deus de forma mística antes de morrerem, mas esse
conhecimento limitou-se a eles. Ao distinguir desse modo a experiência
sensorial e o conhecimento celeste, Tomás pôde traçar uma diferença clara entre
a ciência e a fé cristã.

Fé e adoração
A Igreja dominou a vida intelectual e artística dessa época porque
satisfazia as necessidades religiosas dos europeus. Uma das fontes de sua força
era sua flexibilidade, isto é, sua capacidade de englobar várias crenças e práticas
teológicas desde que fossem mantidos os elementos essenciais da fé. Além
disso, a realização regular de cultos, a provisão de orientação espiritual e a
presença dos ministros da Igreja nos tempos de maior crise e alegria da vida
ofereciam ao povo o consolo resultante da rotina.
Os sacramentos também eram importantes, pois acreditava-se que
conferiam graça àqueles que os recebiam. Pedro Lombardo determinou como
sendo sete os sacramentos em suas obra Sentenças, afirmação que foi ratificada
mais tarde em concílios da Igreja. Tanto a igreja oriental como a ocidental
aceitavam a enumeração de sete itens: batismo, confirmação, ceia ou eucaristia
(“ação de graças”), penitência, extrema unção, matrimônio sagrado e ordens
sagradas.
O batismo removia a mácula do pecado original, significava adoção como
filho de Deus e tornava o recipiente um membro da igreja, o Corpo místico de
Cristo. A confirmação concedida através da imposição de mãos por um bispo
qualificava a pessoa a ser um participante pleno da vida sacramental e
institucional da Igreja. A eucaristia, razão de ser da missa na qual, através da
oração de consagração do sacerdote, o pão e o vinho eram transformados em
corpo e sangue de Cristo, oferecia de modo metafísico ao que comungava os
benefícios do sacrifício no Calvário. A penitência incluía a confissão a um
sacerdote, aceitação da penalidade, absolvição de pecados dos quais havia
arrependimento sincero. A extrema unção era o ato sacerdotal de ungir o
enfermo com óleo santo. Auxiliava na cura ou, se alguém estava à beira da
morte, fortalecia sua alma. No sagrado matrimônio, o casamento de duas
pessoas batizadas, ambas as partes eram os ministros e o sacerdote servia de
testemunha escolhida. As ordens sagradas, concedidas por bispos através da
imposição de mãos, tornavam um homem um bispo, sacerdote ou diácono,
dependendo da situação. Neste caso, está envolvido o conceito de sucessão, a
idéia de que o ministério havia se originado dos apóstolos através de uma cadeia
contínua da ordenações de bispos.
Pode-se argumentar que esse sistema sacramental era uma abordagem
psicologicamente correta da vida cristã pois cada um dos sacramentos acontecia
em determinadas épocas de passagem ou crise — nascimento, puberdade,
casamento, doença e morte. Eles serviam de apoio para a pessoa ao combinar
um ato tangível com um significado teológico mais abstrato.
A Igreja usava muitos métodos diferentes para levar a mensagem ao
público. O principal era a implantação de uma casa de Deus onde já havia
crentes ou potencial para conversões. Havia igrejas, catedrais, oratórios e
santuários por toda a parte e suas portas estavam abertas para qualquer um que
desejasse entrar. O trabalho religioso da Igreja, a “cura das almas” como era
chamado, era realizado pelos sacerdotes e por alguns membros das ordens
monásticas. Missionários e frades que pregavam ao ar livre levavam a palavra
àqueles que não freqüentavam os cultos. Rituais públicos e procissões também
chamavam a atenção dos não-convertidos.
Para reforçar a palavra falada, a Igreja usava música, esculturas, pinturas e
vitrais. Também havia um apelo ao sobrenatural através de relíquias e milagres.
Toda paróquia principal tinha sua coleção de relíquias e um santo padroeiro,
sendo que acreditava-se que ambos possuíam o poder de curar e abençoar os
adoradores. Em resumo, a Igreja tentou tudo o que era humanamente possível
para atrair e cativar o povo.

A Virgem Maria
A mais conhecida santa medieval era a Virgem Maria. Apesar da adoração
a ela ter-se originado na Igreja primitiva, foi incentivado pelo termo theotokos
(“Mãe de Deus”) nos concílios ecumênicos da Igreja (ver capítulo 3). A
preocupação nesse caso era reforçar a crença na divindade de Cristo e na
realidade da encarnação, opondo-se aos dissidentes arianos e monofisitas. A
princípio, a adoração da virgem era mais forte no Oriente, mas no século 9º já
havia lançado raízes profundas também no Ocidente.
Acreditava-se que ela era a mediadora entre Deus e os seres humanos pois
ela orava pedindo ao seu Filho que tivesse misericórdia dos pecadores. Nascida
sem pecado (a “Imaculada Concepção”), eternamente virgem, sem pecado em
vida e assunta aos céus em sua morte (a “Assunção”), ela era a combinação ideal
de pureza e afeição materna. No século 13 ela já era conhecida como “Rainha do
Céu” e o respeito dedicado a ela superava todos os limites anteriores. Apesar de
ser venerada com mais adoração do que aquela oferecida a outros santos, ficava
oficialmente entendido que ela não receberia a adoração reservada ao Filho, que
era Deus. Seus milagres incluíam ajudar os pobres, curar os enfermos e consolar
os solitários.
A maior parte das doutrinas da Igreja desenvolveu-se à partir do trabalho
de teólogos e de decisões dos concílios, mas a veneração de Maria entrou para a
Igreja através da religião popular. Para o povo ela era “Nossa Senhora” ou, em
Francês “Notre Dame”. Havia uma tendência de se ver Cristo como um juiz
severo e distante e a atenção cada vez maior dedicada a Maria era exemplo dos
esforços de se adotar uma visão mais bondosa e graciosa de Deus. Maria era a
mãe carinhosa que, por causa de sua própria experiência trágica, podia
compreender o povo. Isso aparece expressado muito bem no famoso hino a
Maria, “Stabat Mater” do século 13 e cuja primeira estrofe diz:

Aos pés da cruz em sua vigília


Está a Rainha das dores em pranto
Enquanto seu Filho sofre ali pendurado
Ela agora sente — ó coração aflito pela espada
O que há tanto tempo foi profetizado! —
Mais dores do que qualquer mãe em sofrimento.

A extensão da popularidade da virgem nos séculos 13 e 14 podia ser vista


em muitas catedrais e igrejas dedicadas a ela, como a Notre Dame de Paris e a
Notre Dame de Chartres.

Grupos heréticos
Depois de 1200 passou a haver uma rigidez crescente de fé e ordem, uma
erosão da flexibilidade que tinha sido uma fonte de forças da Igreja. À medida
em que suas doutrinas passaram a ser articuladas de modo mais preciso, o desvio
das normas oficiais era mais comum e a chamada “heresia” tornou-se um
problema sério. Porém, há várias formas de se lidar com diferenças religiosas.
Os frades, com suas pregações e vidas exemplares, foram uma reação. Outra foi
a conversão, o uso do ensino para restaurar o que estava em erro. Extremamente
ameaçadora, porém, foi a forma seguida por Inocêncio III, que condenou as
idéias de hereges franceses no 4º Concílio de Latrão (1215) e proclamou uma
cruzada contra eles. Assim, uma técnica cada vez mais comum consistia em
torturar e executar aqueles que persistissem obstinadamente em suas heresias.
Havia motivos para essa forte reação. Membros de grupos hereges muitas vezes
faziam uso de violência contra os fiéis, especialmente quando se tornaram parte
de movimentos de protesto social, como os intolerantes albigencianos. Além
disso, para o povo do mundo medieval, nada era mais importante do que a
salvação de sua alma eterna. Aqueles que colocavam em perigo a alma deveriam
ser tratados como se faz com um apêndice inflamado: extirpar antes que possa
causar mais problemas.
No começo da Idade Média, os ensinamentos da maior parte das heresias
eram tão intelectuais e abstratos que deixavam o povo indiferente ou confuso.
Mas no final do século 12, a Reforma Gregoriana encorajou a perigosa idéia de
“pobreza apostólica” (o clero não deveria possuir muita riqueza), resultando
assim numa tendência a críticas contra os abusos da Igreja. Além disso, por
serem práticos e não intelectuais, esse movimentos dissidentes tinham apelo
popular.
Um deles foi o dos valdenses, cujo fundador, Pedro Valdo, um
comerciante de Lião, sentiu-se chamado para uma vida apostólica de pobreza em
1173. As crenças de seus seguidores incluíam o não-reconhecimento da
autoridade eclesiástica, cultos falados, uma interpretação simbólica da
eucaristia, negação da validade do batismo de crianças, rejeição do purgatório,
um estilo de vida austero e pacifismo. Apesar do papado considerar suas idéias
como sendo heréticas, na verdade eles eram cristãos autênticos no sentido
ecumênico. Os valdenses franceses encontraram refúgio nos Alpes de Savóia e
Piemonte, onde continuam a existir, enquanto outros foram para a Europa
central onde podem ter influenciado tanto John Hus quanto a Reforma.
Por outro lado, o albigencianismo que surgiu no final do século 12, era de
fato uma outra religião. Seu centro era no sul da França, na cidade de Albi em
Languedoc. Também conhecidos como cataris (os “puros”), suas crenças eram
tiradas de religiões de mistério do Oriente, do maniqueísmo e de seitas heréticas
da igreja oriental, principalmente os paulicianos e bogomils. Os albigencianos
criam num dualismo radical, isto é, havia um deus perverso e um deus bom que
lutavam pela vitória dentro da História e dos indivíduos. A vida era uma briga
entre esses deuses e suas principais forças eram o espírito e a matéria. Como
pregavam a purificação gradual de toda a matéria, incluindo nosso corpo, a vida
dos albigencianos era extremamente ascética. Também rejeitavam os
sacramentos, o inferno e a ressurreição e consideravam pervertidos o clero e as
doutrinas da Igreja católica. Apesar de, teoricamente, serem pacifistas, na prática
eram bastante violentos. Depois de tentar em vão convertê-los enviando várias
missões, Inocêncio III declarou a Cruzada Albigenciana de 1209. Levada à cabo
com brutalidade contra uma resistência violenta, essa campanha eliminou os
albigencianos.
Outro instrumento de combate à heresia era a Inquisição Romana.
Fundada em 1233 pelo papa Gregório IX, era uma corte eclesiástica que
funcionava sob princípios de investigação e interrogação da lei romana. O papa
enviava inquisidores, em sua maioria frades dominicanos e franciscanos, que
criavam tribunais para caçar os hereges. Quando os inquisidores chegavam
numa cidade, os dissidentes tinham um certo tempo para apresentar-se
voluntariamente e renunciar seus erros. Aqueles que assim o faziam eram
dispensados com uma pena leve. Então, o povo era convocado a contar para os
inquisidores quem eram os hereges que eles conheciam. Apesar de haver uma
certa proteção para os acusados, as vantagens desse tipo de julgamento estavam
na instauração do processo, especialmente depois da introdução da tortura em
1252. Nesse estágio uma confissão livrava o herege de uma pesada penitência e
castigo. Se o acusado continuassem insistindo ser inocente e não renunciasse à
heresia, era entregue às autoridades seculares para ser condenado e executado.
A mesma dureza de atitude foi demonstrada para com os judeus, os
eternos estrangeiros na sociedade cristã. Isso ia totalmente contra o tratamento
que haviam recebido no começo da Idade Média, sob o governo dos reis
germânicos, que valorizavam seu papel no empréstimo de dinheiro e no
comércio. Durante a era carolíngea suas atividades econômicas eram
grandemente apreciadas, pois tais serviços eram escassos numa sociedade
subdesenvolvida. Aliás, alguns judeus possuíam grandes propriedades na região
produtora de vinho na França.
Em 1050 a nova condição militante do Cristianismo latino e o crescimento
da devoção popular levaram a um aumento pronunciado da animosidade para
com os judeus. Mudanças econômicas e políticas prepararam o caminho para
essa triste situação. Tendo em vista que o relacionamento feudal que proliferou
durante esse período exigia um juramento cristão, os proprietários de terras
judeus foram forçados a ir para as cidades onde dedicaram-se ao artesanato e
comércio. Então o crescimento das guilda, cada qual organizada em torno da
adoração de um determinado santo, levou à exclusão dos judeus desse meio.
Não tardou para que a única profissão restante fosse a de trocar e emprestar
dinheiro, acrescentando um fator econômico ao antagonismo religioso já
existente. Passaram a ser odiados por causa da usura (emprestar dinheiro com
juros), mas numa época em que as atividades comerciais eram, no mínimo
arriscadas e quando era difícil serem pagos pelos gentios, os judeus achavam
necessário cobrar até cinqüenta por cento de juros sobre os empréstimos.
Os cristãos acreditavam em todo e qualquer rumor maldoso sobre os
judeus. Dizia-se que envenenavam poços, praticavam o canibalismo,
sacrificavam crianças cristãs (o infame “libelo de sangue”) e, mais absurdo de
tudo, roubavam o pão sacramental do altar e o esfaqueavam a fim de fazer Jesus
sofrer novamente.
Finalmente o 4º Concílio de Latrão decretou que os judeus deveriam usar
uma roupa distintiva e ser confinados a guetos. Mais tarde, os reis da Inglaterra,
França e Espanha usaram esse argumento religioso para expulsá-los e confiscar
sua propriedade. Alguns judeus se converteram mas outros foram para o Leste e
assentaram-se na Alemanha e na Polônia. Atos desse período serviram de base
para expressões subseqüentes de anti-semitismo e deixaram a sociedade
medieval desprovida daquele que era talvez seu grupo étnico mais estudado e
valioso.

A Igreja e a arte
A área mais importante de realização artística foram as edificações das
igrejas e as esculturas e pinturas associadas a elas. Dois estilos arquitetônicos
predominaram durante esse período — o romanesco e o gótico. O romanesco
refletiu-se numa onda de construção de igrejas durante o século 11 que resultou
em aproximadamente 1.587 novas edificações só na França. O teto era um
espesso meio cilindro de pedra chamado de abóbada semicilíndrica cujo peso
forçava os construtores a fazer paredes uniformes e pesadas. A ênfase era nas
linhas horizontais, que davam ao crente uma sensação de repouso e solidez.
Como as janelas eram poucas e pequenas, para iluminar o interior as igrejas
eram revestidas de tapeçarias ou pintadas com cores vivas e estátuas, cálices e
relicários eram adornados e incrustados de jóias. Esculturas verticais isoladas
eram usadas para amenizar o efeito pesado da construção romanesca.
No final do século 12 ocorreu uma mudança gradual do estilo romanesco
para o gótico. Caracterizado pela delicadeza e os detalhes, o apoio necessário
para uma estrutura gótica era colocado do lado de fora da parede em
arcobotantes. O uso de arco pontiagudos permitia a construção de estruturas
altas que enfatizavam as linhas verticais e dirigiam os crentes aos céus. As
igrejas góticas eram leves em dois sentidos: o desenho fazia as pedras parecerem
menos pesadas enquanto os vitrais constituíam verdadeiras obras de arte. Não só
as janelas eram obras de arte como também os pilares, portas e quase todas as
outras partes da catedral eram esculpidos. As igrejas góticas tinham um detalhe
estrutural que era comparável ao trabalho dos teólogos medievais.
No século 13 surgiu a rivalidade entre cidades para ver qual podia erguer
a catedral mais alta. Como resultado, cada uma era construída de acordo com um
projeto específico, apesar de que — pelo fato de uma igreja levar gerações para
ser construída — os planos eram muitas vezes alterados. A construção da igreja
era um projeto comunitário que envolvia arquitetos, artesãos e trabalhadores
braçais.
A arte medieval expressava um sistema de valores coerente e uma visão
do universo baseada numa visão do Cristianismo. Seu propósito era apontar para
uma realidade espiritual que estava por trás do mundo material. Os artistas
usavam um sistema de simbolismo e alegoria extremamente desenvolvido para
apresentar suas idéias, um sistema no qual a maior parte das coisas tinha um
significado espiritual além do literal. O fogo, por exemplo, representava o
martírio ou o fervor religioso; um lírio simbolizava castidade; uma coruja (o
pássaro da escuridão) muitas vezes podia representar Satanás e um cordeiro era
usado para Cristo como o sacrifício pelo pecado.
As realizações artísticas atingiram seu ápice na catedral gótica. Ela
combinava a versão medieval de um lugar de adoração com teatro, galeria de
arte, escola e biblioteca. O mercado ficava nos arredores da catedral, peças eram
encenadas em seus degraus, estranhos dormiam dentro dela e a população ia se
encontrar nos corredores laterais.
Por ser a casa do povo assim como a casa de Deus, a catedral era um
espelho do mundo. Todos os trabalhos artísticos eram naturalistas,
representações detalhadas de animais, histórias da Bíblia e alegorias sobre vícios
e virtudes. A estrutura da sociedade podia ser vista em entalhes que retratavam
ministros, cavaleiros, artesãos, camponeses e comerciantes em suas diversas
atividades. A Teologia refletia-se na estrutura da construção — a busca para
cima, em direção a Deus, a planta baixa em forma de cruz e o altar situado a
Leste, voltado para Jerusalém. Cada detalhe da crença, do Deus Triuno à
criação, da morte de Cristo ao julgamento final, aparecia em esculturas, pinturas,
mosaicos e vitrais. A harmonia encontrada em tal estrutura representava os
ideais da arte e do pensamento medieval.

Em nenhuma época da História o Cristianismo foi uma influência social


tão difundida quanto na Europa medieval. Apesar das duas metades do
Cristianismo estarem se distanciando, suas respectivas igrejas dominaram a vida
política, cultural e intelectual. Houve novos esforços no sentido de expandir as
fronteiras do Cristianismo ocidental, mas no século 14 teve início uma
depressão econômica que afetou a Europa. Isso levou a vários problemas
marcados por violência, doenças, instabilidade política e pessimismo e o século
seguinte foi de insatisfação e amargura que destruíram a síntese medieval de
Igreja e sociedade.

Capítulo 8 - A Igreja medieval no Oriente


A distância entre o Cristianismo ortodoxo no Oriente e a igreja latina no
Ocidente ficou cada vez maior. Não apenas seus patriarcas exerciam o ofício sob
a sombra do império bizantino como também havia diferenças de língua,
liturgia, doutrina e política eclesiástica. Então as Cruzadas deferiram o golpe
mortal sobre as relações entre o Oriente e Ocidente, enquanto as crescentes
pressões muçulmanas sobre o império levaram à sua destruição em 1453. Ao
mesmo tempo, desacordos sobre a definição calcedônia de Cristo levaram outros
grupos cristãos a se separar da ortodoxia principal. Dentre eles estavam os
monofisitas na Armênia, Egito, Etiópia e Síria e os nestorianos na Mesopotâmia,
Ásia central, China e Índia.

Imperadores e patriarcas bizantinos


A transferência de capital de Roma para o Bizâncio realizada por
Constantino em 330 teve conseqüências duradouras. Não apenas o Império
Bizantino durou mais de mil anos, mas fazer de Constantinopla o centro do
Império também significou a ascensão do bispo principal da cidade. Na época
do Concílio de Nicéia (325), a cidade possuía uma pequena sé local, mas esta
cresceu tão rapidamente em importância ao longo do século seguinte que em
451 o Concílio da Calcedônia declarou que “A igreja santíssima de
Constantinopla, a Nova Roma, terá primazia logo depois da antiga Roma”. No
ano 600 seu bispo foi chamado de “Arcebispo da Cidade de Constantino, Nova
Roma, e Patriarca Ecumênico”.
A história do Império Bizantino é repleta de intrigas palacianas e
revoluções militares. Mais de sessenta imperadores foram assassinados ou
forçados a abdicar. Ao contrário do papa em Roma, que servia como líder
espiritual e autoridade política bastante independe dos governantes seculares no
Ocidente, a figura poderosa do imperador sempre colocava em segundo plano o
patriarca ortodoxo. Apesar do imperador, em seu papel de co-regente de Cristo,
ser um leigo elevado a uma posição na qual podia pregar, ele não podia
introduzir mudanças doutrinárias sem o apoio do patriarca e um concílio de
bispos. Na verdade, os imperadores bizantinos estavam mais interessados em
preservar a unidade de seu império num processo de fragmentação do que na
pureza doutrinária. Mas seus esforços para manter as ligações com o Ocidente
foram cada vez mais dificultados pela invasão dos lombardos na Itália, a
migração eslava para os Balcãs e o ataque incessante dos búlgaros ao Norte e
dos muçulmanos no Leste.
Os imperadores procuraram resolver a complexa questão monofisita
através de uma série de acordos. O mais importante foi o Henoticon, ou “Édito
da União”, proclamado pelo imperador Zeno com o incentivo do patriarca
Acácio em 482. O Henoticon assumiu uma posição popular entre os seguidores
de Cirilo de Alexandria de que a definição de Cristo declarada nos concílios de
Nicéia (325), Constantinopla (381) e Éfeso (431) era suficiente. Apesar de
condenar o líder monofisita Eutiques, o documento deixou em aberto uma
diferença de opinião honesta sobre o assunto ao não afirmar a posição rígida
adotada no Concílio da Calcedônia. Zeno esperava com isso possibilitar a
reconciliação entre os adeptos dos diversos pontos de vista sobre as duas
naturezas de Cristo. Enquanto muitos monofisitas “moderados” aceitaram o
decreto, os mais extremos não cederam. Ao mesmo tempo, o papa objetou que o
Henoticon ignorava o Tomo de Leão e excomungou tanto Acácio quanto Zeno,
resultando no Cisma Acaciano entre o Ocidente e o Oriente (484-519).

675-802 787 858-886


João de 2º Concílio Cisma De
Damasco de Nicéia Photius
715-731 1049-1054 1181 1274 1325 1438-1439
Papado de Papado de Os Concílio Sé da Concílio
Gregório II Leão IX Maronitas em Lião Igreja Unido em
tornam-se Ortodoxa Ferrara -
uma igreja levada para Florença
Uniatas Moscou
700 1000 1200 1500
717-741 741-775 886- 945-963 1137- 1202-1204 1328-1340 1453
Leão III Constantino 912 Constanti 1270 4ª Cruzada Ivan I Queda de
V Leão no VII Dinastia Constantin
VI abissínia opla diante
Zagwe dos turcos
800-814 867-886 975-1025 1250-1517
Carlos Magno Basílio I Basílio II Império
Otomano

Teodora, a esposa do grande imperador Justiniano, simpatizava com os


monofisitas e até refugiou em seus aposentos um dos bispos que ele havia
deposto. O próprio Justiniano pôs-se a unir a Igreja em função da visão
“ortodoxa” das naturezas de Cristo e assim promover uma base espiritual para
seu esforço político no sentido de reunir o Oriente e o Ocidente. Mas então,
numa iniciativa para ganhar o apoio dos monofisitas, o imperador lançou um
édito em 544 condenando os chamados “Três Capítulos”, os escritos de três
bispos proeminentes acusados de tendências nestorianas que haviam sido
absolvidos na Calcedônia um século antes. Ele garantiu o acordo dos quatro
patriarcas orientais e levou para a capital o papa Vigílio a fim de pressioná-lo a
também dar seu consentimento.
Para ratificar a condenação dos Três Capítulos, Justiniano convocou o 5º
Concílio Ecumênico de Constantinopla em 553. Vigílio protestou pois apenas
uma dúzia dos 165 bispos na reunião representava as igrejas do Ocidente e o
esforço do imperador pela conciliação não deu em nada. Ele havia deixado de
fora o Ocidente e enfurecido os nestorianos e até mesmo fracassado em ganhar
os monofisitas. Como resultado, sua esperança de estabelecer a unidade
religiosa e cultural foi frustrada.
Um acontecimento importante ocorreu durante o reinado de Heráclito
(610-41). Os sassanianos persas invadiram a Síria e avançaram para dentro da
Palestina e Egito em 619, ameaçando assim o suprimento de grãos do império. O
rei persa chegou a remover a lendária “Cruz Verdadeira” da Igreja do Santo
Sepulcro. Quando Heráclito aproximou-se dele para propor a paz, o rei
respondeu: “Não irei poupar-vos até que tenhais renunciado o Crucificado,
aquele que vós chamais de Deus e vos prostrado perante o Sol [aqui,
Ahuramazda]”. Enquanto isso, os avares ameaçavam o norte, os inimigos
eslavos estavam quase chegando nas muralhas de Constantinopla e as últimas
forças romanos haviam sido expulsas da Espanha pelos visigodos.
Parecia que Heráclito teria que mudar a capital para Cartago, quando o
patriarca Sérgio foi resgatá-lo. Ele ofereceu os tesouros da Igreja ao imperador,
permitindo assim que ele juntasse um exército que defendeu Constantinopla dos
ataques bárbaros em 625-26. Então, Heráclito derrotou os persas e recuperou a
Verdadeira Cruz. Em 630 ele havia reconquistado a Síria, Palestina e Egito para
o império. Isso foi apenas alguns anos antes que o ataque muçulmano varresse a
maior parte desses territórios.
Assim, tornou-se imperativo sarar as divisões religiosas com os
monofisitas no Leste. Em 633, sob a orientação de Sérgio, Heráclito propôs a
aceitação do ponto de vista monofisita que afirmava que Cristo possuía uma
energeia (“operação” ou “atividade”) para corresponder à sua natureza única.
Ainda assim, os monges fortemente calcedônios na Palestina liderados por
Sofrônio, patriarca de Jerusalém, opuseram-se ao uso desse termo e Sérgio
voltou-se para Roma em busca de apoio. O papa Honório, porém, afirmou que a
proclamação de novas doutrinas era responsabilidade exclusiva dos concílios da
Igreja e Sérgio desistiu da idéia.
Porém, em sua ânsia de ganhar o forte partido monofisita do Egito sem
perder o apoio da igreja ocidental, Heráclito (com a aprovação de Sérgio) propôs
uma outra idéia que o papa Honório já havia sugerido anteriormente. Para
substituir o fracassado Henoticon, ele levou mais além o conceito de
monoteletismo o qual ele esperava que pudesse substituir o monofisismo
desmedido das províncias orientais. Esquivando-se da disputa sobre o fato de
Cristo ter uma ou duas naturezas, essa doutrina afirmava a unidade de vontades
humanas e divinas e assim, deveria ser aceitável tanto para as facções
calcedônias quanto para as monofisitas. A princípio, essa declaração engenhosa
agradou os líderes eclesiásticos de ambos os lados da divisão, mas em 638
quando Heráclito publicou um édito contendo o dogma de uma vontade, os
monofisitas egípcios o rejeitaram. Seguiu-se uma luta violenta que separou tão
completamente os coptas dos bizantinos a ponto de ajudar a preparar o cenário
para a conquista árabe do Egito em 641. Eles não ofereceram resistência alguma
aos invasores muçulmanos.
O monoteletismo também foi condenado pelo papa em 647, que nessa
ocasião excomungou o patriarca de Constantinopla por aceitar a doutrina, e as
tensões entre Oriente e Ocidente intensificaram-se durante os anos seguintes.
Quando o imperador Constantino IV (668-85) percebeu que o monoteletismo
não só havia fracassado na reconciliação com os monofisitas mas também havia
alienado o Ocidente, ele convidou o papa a mandar representantes a
Constantinopla para o 6º Concílio Ecumênico em 681. A assembléia decretou
que Cristo possuía “duas vontades naturais e duas atividades naturais, sem
separação, sem mudança, sem divisão e sem confusão”. Através desse ato,
acabaram-se as grandes controvérsias cristológicas que haviam dividido a Igreja
durante mais de três séculos.
Além de condenar alguns tipos de entretenimento público, o concílio
também baniu certas práticas ocidentais como o jejum aos sábados e o celibato
clerical, causando assim um outro rompimento com Roma que durou até 710.
Também determinou que Cristo não deveria mais ser retratado simbolicamente,
(como um cordeiro, por exemplo) mas somente como ser humano vivente. Isso
refletiu o aumento da distância entre as igrejas ocidentais e orientais e preparou
o cenário para ainda outro conflito entre elas.

A controvérsia iconoclasta
No 6º século, tanto o governo imperial quanto a igreja ortodoxa estavam
incentivando a produção de ícones (do grego eikon) — pinturas bidimensionais
de Cristo, da Virgem, de santos e anjos. Acreditava-se que estes possuíam
poderes de cura a proteção. Chegou a se atribuir ao ícone da virgem a salvação
de Constantinopla da conquista estrangeira, apesar de árabes muçulmanos terem,
mais tarde, conquistado as províncias do leste com relativa facilidade. Mas Leão
III, que fundou a Dinastia Isáurea (717-802) conseguiu repelir o ataque árabe
sobre a capital em 718.
Leão lançou a controvérsia iconoclasta, a oposição ao uso de ícones, que
arrastou-se por mais de um século. Pelo fato de ele vir da Síria, alguns acham
que pode ter sido influenciado pela acusação muçulmana de que os cristãos
eram idólatras, enquanto outros atribuem sua hostilidade aos ícones a fontes
judaicas. Seja como for, Leão chegou à conclusão de que a adoração de ícones
violava o segundo mandamento e era o motivo que havia provocado as derrotas
bizantinas. Então, interpretou uma erupção vulcânica na ilha de Tera em 726
como prova da ira de Deus e proibiu que qualquer um se ajoelhasse diante de
imagens. Quatro anos depois, ordenou a remoção de todos os ícones das igrejas
e lugares públicos, despertando assim a ira dos monges e do patriarca, o qual ele
substituiu por outro. O papa Gregório II, que era a favor dos ícones como
símbolos da realidade divina, protestou contra os atos do imperador, mas Leão
retaliou retendo os lucros das terras bizantinas na Itália e transferindo o Ilírico
para a jurisdição do patriarca. Isso refletiu mais um vez o aprofundamento do
abismo entre as duas igrejas. Leão não podia depor o papa como fez com o
patriarca e nos anos seguintes o papado achegou-se mais aos descendentes
franceses de Carlos Martel e distanciou-se da dependência do império.
O filho de Leão, Constantino V (741-75) impôs com brutalidade os
decretos iconoclastas. Excomungou e torturou os simpatizantes dos ícones e
demoliu seus mosteiros e conventos, ordenando que os residentes se casassem
ou fossem exilados. O imperador humilhou ainda mais os iconófilos obrigando-
os a desfilar no Hipódromo com prostitutas famosas. Ele substituiu os ícones
pela cruz, a Bíblia e os elementos da eucaristia.
Por outro lado, o mais articulado defensor dos ícones foi João de
Damasco (cerca de 675-749). Monge em São Sabas, próximo a Jerusalém, ele
foi um teólogo tão distinto que a posteridade o considera o último dos patriarcas
da igreja do Ocidente. Na obra Três Discursos Apologéticos, João argumentava
que enquanto a “adoração” deveria ser reservada somente para Deus, os ícones
eram dignos de “veneração”. Conforme ele colocou enfaticamente, “Quando
veneramos ícones, não oferecemos veneração à matéria, mas através do ícone
veneramos a pessoa representada”. Negar a validade dos ícones era negar a
realidade da Encarnação.
A imperatriz Irene (780-802), de personalidade ambiciosa e dinâmica e
que serviu como regente de seu jovem filho e depois o depôs, não apenas foi a
primeira mulher a exercer o poder imperial que lhe era de direito como também
mostrou-se favorável aos ícones. Irene e o patriarca Tarásio, por ela nomeado,
convocaram o 2º Concílio de Nicéia em 787 para restituir a veneração de ícones.
Representantes de Roma estavam presentes neste que ficou conhecido como o 7º
(e último) Concílio Ecumênico. Seus decretos usavam os argumentos de João de
Damasco para defender os ícones, mas a tradução incorreta que chegou ao
Ocidente levou as pessoas a crerem que os ícones haviam recebido a mesma
reverência que a Santa Trindade. Por causa desse mal entendido, o Concílio de
Frankfurt — que havia sido convocado por Carlos Magno por outros motivos
(ver capítulo 6) — rejeitou os decretos, agravando ainda mais as relações entre o
Oriente e o Ocidente.
Uma nova onda de iconoclasmo foi iniciada pelo imperador Leão V (813-
20) que acreditava que os bizantinos haviam perdido duas batalhas para os
hereges búlgaros porque os cristãos adoravam ícones. Ele reagiu promovendo
uma campanha para destruir todos os ícones. Substitui o patriarca da época por
um iconoclasta e mandou prender aqueles que veneravam ícones. O imperador
seguinte, Teófilo, exilou e até executou aqueles que usavam ícones.
Os iconófilos buscaram apoio voltando-se para um monge de
Constantinopla chamado Teodoro dos Estúdios (759-826) e encontraram nele
um eloqüente porta-voz. Ele afirmava que “Por esse motivo Cristo é retratado
em imagens e o invisível tornar-se visto. Aquele que em sua própria divindade é
incircunscritível aceita a circunscrição natural de seu corpo”.
Então Teodora, a viúva do imperador que governou como regente de seu
jovem filho Miguel III, decidiu reinstituir a veneração de ícones. Em 843 ela
convenceu um sínodo a condenar os iconoclastas, confirmou o decreto do 7º
Concílio Ecumênico de 787 e encerrou a atroz disputa.

O cisma de Photius
Outra controvérsia que assolou a igreja oriental teve início em 858 quando
Miguel III nomeou Photius, um leigo, para o ofício patriarcal. Ele havia sido
professor de filosofia na Academia Imperial em Constantinopla e era autor da
importante obra Myriobiblion (A Biblioteca) um estudo comentado de 279
autores pagãos e cristãos. Photius muitas vezes é chamado de Pai do
Humanismo Bizantino. Porém, o papa Nicolau I recusou-se a reconhecê-lo e o
excomungou.
A oposição de Nicolau a Photius deu-se não apenas por causa de sua alta
consideração pelo poder papal, mas também devido à contínua rivalidade com o
Oriente pelo controle das igrejas nos Balcãs. Como forma de retaliação, quatro
anos depois o patriarca reuniu um concílio em Constantinopla no qual
denunciou a igreja ocidental, por causa de certos costumes de ritual e jejum e
pela inclusão da cláusula filioque no Credo de Nicéia (ver capítulo 6). Nessa
mesma ocasião, Photius excomungou o papa.
Deve-se observar que o cisma de Photius ocorreu na mesma época em que
as igrejas do Ocidente e Oriente estavam competindo pela lealdade do recém-
convertido rei Bóris, da Bulgária e que missionários de ambas as partes estavam
evangelizando os eslavos do sul. Apesar do cisma ter sido remediado logo
depois da morte de Nicolau (867) e da dispensa de Photius (886), ele não foi a
causa, mas sim um sintoma da divisão entre as duas igrejas. A verdadeira
questão era a supremacia papal e foi só ao colocar esse assunto em primeiro
plano que as diferenças doutrinárias puderam ser ventiladas e debatidas.

A era dourada do Bizâncio


Com a ascensão da Dinastia Macedônia ao trono em 867, o império
oriental entrou em sua “era dourada” e expandiu-se para a Síria e Armênia.
Fundada por Basílio I, a dinastia manteve o poder durante quase duzentos anos.
A família macedônia certamente deu origem a uma curiosa variedade de
governantes. O filho de Basílio I, Leão VI (886-912) era um estudioso e escritor
que especializou-se no estudo de Direito. Quando o patriarca recusou-se a
sancionar seu casamento com uma quarta esposa, ele buscou e recebeu a bênção
do papa. Seu filho, Constantino VII (945-63), era um célebre patrono das artes e
do ensino que escreveu manuais sobre a arte de governar nos quais explicava as
táticas da diplomacia bizantina e as cerimônias da corte apropriadas para
diversas épocas do ano cristão.
Basílio II (976-1025) era conhecido pels conquista da Bulgária que lhe
deu o epitáfio “Matador de Búlgaros”. Seu conflito com os vizinhos dos Balcãs
foi semelhante às guerras saxônicas de Carlos Magno em duração e brutalidade.
Ele cegou quatorze mil prisioneiros, deixando apenas um a cada cem com um
único olho para guiar o resto para casa. Diz-se que o rei búlgaro morreu de
choque ao ver seus súditos mutilados. Porém, foi só em 1037 que os bizantinos
finalmente estabeleceram um controle firme da região. Por fim, depois de uma
série de governantes fracos, em 1056 a linhagem macedônia morreu e seguiu-se
um quarto de século de anarquia.

O cisma de 1054
O famoso cisma de 1054 ocorreu próximo ao final desse ápice da História
bizantina. Havia razões definidas para que a crescente separação das igrejas do
Ocidente e Oriente se transformasse em conflito aberto. Os reformadores papais
(ver capítulo 6) criticavam os costumes gregos e a disciplina da Igreja que, para
eles era imoral tendo em vista que os sacerdotes orientais podiam se casar.
Consequentemente, os normandos, que naquele momento estavam apoderando-
se dos últimos territórios bizantinos na Itália, forçaram as igrejas ortodoxas a
adotar os ritos e o estilo de vida clerical latinos. Além disso, o problema possuía
uma dimensão política, pois o imperador Constantino IX havia formado uma
aliança com o imperador alemão e o papa a fim de conter a conquista normanda.
A campanha contra as igrejas bizantinas na Itália levou o patriarca Miguel
Cerulário (1043-59) — um homem ambicioso e arrogante — a ordenar que
todas as igrejas latinas em Constantinopla adotassem o rito grego. Ele também
condenou os ocidentais pelo uso de pão ázimo na ceia, chamando isso de prática
judia. O imperador, que era a favor da reconciliação, convidou o papa Leão IX a
enviar uma delegação a Constantinopla para negociar as diferenças e os
representantes liderados pelo cardeal Humberto da Silva Cândida chegaram à
capital em 1054. Muitos desses mal-entendidos haviam surgido porque depois
do 6º século poucos gregos sabiam latim e poucos latinos sabiam grego.
A embaixada papal foi recebida com cortesia pelo imperador que desejava
sinceramente manter as boas relações com o Ocidente, mas os representantes
eclesiásticos de ambas as partes mostraram-se intransigentes. Humberto, um
homem arrogante, acusou os orientais de suprimirem a cláusula filioque. Eles
responderam que a adição desse tópico ao credo jamais havia sido autorizada
por um concílio geral da Igreja. Ao mesmo tempo, Cerulário questionou suas
credenciais pois havia recebido a notícia de que o papa Leão tinha acabado de
falecer.
No dia 16 de julho de 1054, um irado cardeal Humberto e seus colegas
deixaram a cidade, mas não sem antes colocar um decreto de excomunhão
contra o patriarca no altar superior da igreja de Santa Sofia. Cerulário reagiu
convocando um sínodo que excomungou os representantes do papa. Conforme a
avaliação que o historiador John J. Norwich faz desses acontecimento: “Mais
força de vontade da parte do papa que estava à morte ou do imperador
hedonista, menos preconceito da parte do patriarca de visão limitada ou do
cardeal obstinado e essa situação poderia ter tido salvação”.2 (As excomunhões
mútuas só foram canceladas em 1965, depois de uma reunião de reconciliação
entre o papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras.)
Ainda assim, as relações entre Oriente e Ocidente continuaram. As duas
partes do Cristianismo não estavam conscientes de um abismo intransponível
entre elas e pessoas dos dois lados esperavam que os mal-entendidos pudessem
ser resolvidos. As Cruzadas, porém, introduziram um novo espírito de ódio e
amargura que tornaram o cisma definitivo.

As Cruzadas
Os muçulmanos no Oriente eram uma constante ameaça ao Império
Bizantino, mas os imperadores do século 10º que viram-se cercados de inimigos
por todos os lados tiveram sucesso em derrotar, em diferentes ocasiões, os
muçulmanos, búlgaros e armênios. Então, surgiu um novo inimigo, os turcos
seldjúcidas, um povo que havia saído da Ásia central em direção ao Oriente
Médio, aceito o Islã e avançado sobre o império. Em 1071 eles derrotaram as
forças bizantinas na batalha de Manzikert e invadiram a Ásia Menor, deixando o
Bizâncio desprovido de mais da metade do seu reino.
Com a ascensão de Aléxio Comeno (1081-1118) ao trono, a sorte
bizantina mudou. Soldado, político e diplomata competente, Aléxio estabilizou a
posição do império e evitou sua desintegração. (Sua filha Anna escreveu uma
história reveladora dessa época em Alexiad, obra que os críticos elegeram como
a melhor biografia medieval.) Aléxio não só encontrou um orçamento
dilapidado e um governo cuja autoridade estava seriamente comprometida,
como também encarou um círculo de inimigos na Itália, Balcãs e Ásia Menor. A
ocupação turca desta última não apenas quebrou o fronte oriental mas,
principalmente, cortou a principal fonte de força militar, tendo em vista que a
maioria dos soldados bizantinos vinha dessa região.
Quando Aléxio ficou sabendo que havia divisões no exército seldjúcida,
ele decidiu aproveitar a oportunidade e recuperar seus domínios perdidos. Mas
por não ter soldados em número suficiente para um contra-ataque, ele apelou
para o papa Urbano II, pedindo mercenários (cavaleiros) ocidentais para ajudá-
lo. Porém, o imperador não havia previsto que a ajuda seria enviada para libertar
Jerusalém do controle muçulmano. Para ele, as necessidades em seu próprio
território eram mais prementes. Em outras palavras, um governador bizantino
como Aléxio não podia conceber uma cruzada no sentido ocidental. Depois de
quatrocentos anos lutando contra os muçulmanos, ele não via motivo para ir a
Jerusalém se a retaguarda na Ásia Menor estava desprotegida. O fato é que ele
estava preparado para negociar com eles se o império fosse ameaçado nos
Balcãs ou em outra parte. A geografia e tradições posteriores indicam que
aquela guerra com os islâmicos foi responsabilidade específica do Império
Romano Ocidental e não do Cristianismo em geral.
Quando os cruzados chegaram em Constantinopla no inverno de 1096-97,
Aléxio ficou alarmado. Ele esperava que Urbano fosse ajudá-lo a recrutar
mercenários para seus próprios exércitos; não uma horda de cinqüenta mil
cavaleiros cheios de entusiasmo religioso instalando-se em sua capital. Ele
decidiu dar-lhes provisões, cercá-los de guardas para que não saqueassem a
cidade, obter um juramento de lealdade de seus comandantes e fazê-los
atravessar o Bósforo para a Ásia Menor o mais rápido possível. Porém, ele
desagradou seus novos aliados quando fez um tratado de paz com os turcos
depois que as lutas haviam terminado.
A aparente traição levou os cruzados a criar seus próprios estados no
Oriente Médio, liberando-os da dependência da ajuda imperial. Sua invasão
ocorreu num momento oportuno, tendo em vista que o reino político do Islã
estava dividido e havia então importantes estados rivais (califados) em Bagdá,
Cairo e Córdoba. Os cruzados foram para o sul passando pela Síria e Palestina e
tomaram Jerusalém em 1099.
Suas conquistas estenderam-se ao longo da costa do Mediterrâneo e foram
divididas em vários reinos e condados. Durante quase duzentos anos elas
constituíram a base de operações do Cristianismo ocidental no Oriente, mas,
nesses territórios, o conflito entre os ortodoxos gregos e os católicos romanos
resultou em total alienação. Foi o caso de Antioquia na Síria, capturada pelos
cruzados em 1100 e que tinha um bispo grego que estava ligado ao patriarca de
Constantinopla. Quando Aléxio exigiu que a cidade fosse devolvida ao império
oriental, os cruzados se recusaram. Assim, a posição do bispo ortodoxo tornou-
se insustentável. Ele deixou a cidade e mudou-se para Constantinopla. Os
ocidentais escolheram um outro bispo que era latino, mas o ortodoxo recusou-se
a renunciar, deixando dois candidatos para o antigo patriarcado de Antioquia.
Uma situação semelhante surgiu quando os cruzados tomaram Jerusalém e
Constantinopla.
O relacionamento entre os bizantinos e os cruzados francos era tão ruim
que o patriarca Miguel III (1169-77) declarou: “Que os muçulmanos sejam meus
mestres nas coisas externas ao invés dos latinos dominarem-me nas coisas do
espírito”. Em 1182 bizantinos irados massacraram todos os latinos que
conseguiram encontrar em Constantinopla. As relações entre o Oriente e o
Ocidente chegaram ao seu ponto extremo na Quarta Cruzada (1202-4).
Os cavaleiros da Europa ocidental que partiram para o Oriente na 4ª
Cruzada fizeram um acordo com os venezianos para transportá-los até lá. Em
troca desse serviço, os cruzados concordaram em saquear a cidade de Zara na
costa do Adriático e rival de Veneza. Então, um jovem príncipe bizantino —
Aléxio Ângelo — pediu aos cruzados que o colocassem no trono de
Constantinopla e, em troca, ele prometeu oferecer a eles o apoio financeiro e
militar necessário para conduzir a Cruzada. Os ocidentais acreditaram
ingenuamente que ao entronizar o príncipe que tinha esse direito, eles estariam
realizando um feito de justiça e caridade.
Levados por navios venezianos, eles prosseguiram ate o Oriente. Mas
quando os cruzados descobriram que Aléxio era inaceitável para o povo de
Constantinopla, estavam numa situação difícil, sem saber o que fazer em
seguida. Na Sexta-Feira Santa de 1204 os cruzados enfurecidos invadiram
Constantinopla e a pilhagem que se seguiu durou três dias. De acordo com
relatos bizantinos, eles torturaram monges, estupraram senhoras de idade,
mataram crianças e invadiram e saquearam igrejas e bibliotecas. Então,
nomearam um veneziano — Tomé Morosini — o novo patriarca de
Constantinopla e impuseram a igreja latina no Trace e em grande parte da
Grécia.
Durante o período de patriarcado latino (1204-61), apenas três pequenos
estados bizantinos sobreviveram — Épiro, na Albânia, Trebizond, na costa norte
da Anatólia e Nicéia. Foi deste último que veio Miguel Paleólogo, que expulsou
os ocidentais de Constantinopla em 1261, restaurou a igreja ortodoxa e fundou
uma dinastia que duraria até a queda de Constantinopla em 1453.

Monasticismo e misticismo
Enquanto isso, o Oriente e o Ocidente distanciavam-se cada vez mais em
sua teologia e visão da vida cristã. O Oriente enfatizava o misticismo enquanto
no Ocidente a tradição dos patriarcas da Igreja foi substituída pela abordagem
mais intelectual do escolasticismo (ver capítulo 7). Isso refletiu-se claramente
no Hesicasmo (da palavra grega para “quietude”), um acontecimento no qual o
Ocidente não teve absolutamente nenhuma participação. Para entender essa
controvérsia, deve-se ter em mente que o monasticismo oriental enfatizava um
desapego completo da tentação mundana, oração incessante e uma experiência
cristã profunda que levasse à “deificação” (2Pe 1.4), ou seja, o crente
compartilharia da iluminação divina e tornar-se-ia misticamente unido com
Deus.
O distante mosteiro no monte Atos na região nordeste da Grécia tornou-se
o centro do movimento. Seus seguidores davam ênfase especial à repetição da
“Oração de Jesus”: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim,
um pecador”. Ela deveria ser feita numa certa postura, com a cabeça abaixada, o
queixo encostado ao peito, olhos fixos no centro do corpo e respiração
cuidadosamente controlada. Eles acreditavam que através dessa “oração do
coração” podia-se ver a “luz divina” de Deus num sentido espiritual, uma luz
idêntica àquela que envolveu Jesus na Transfiguração.
Críticos dos hesicastas, como Barlaam o Calábrio (cerca de 1290-1348),
diziam que os ensinamentos eram pura superstição, pois era impossível conhecer
a Deus diretamente. Porém, seus defensores, especialmente Gregório Palamas
(cerca de 1296-1359), um monge do monte Atos, afirmava que era a “energia
das coisas não-criadas do Divino que eles experimentavam, mas não a essência
do próprio Deus”. Através das energias Deus torna-se visível, acessível e
comunicável. Depois de muitas discussões, o hesicasmo, conforme expresso na
teologia de Gregório, foi endossado por três concílios em Constantinopla entre
1341 e 1351 e daí em diante tornou-se parte aceita da tradição ortodoxa oriental.

Tentativas de união da Igreja


Foram feitos dois importantes esforços no sentido de promover a reunião
das igrejas oriental e ocidental, o primeiro no século 13 e o segundo no século
15. O espírito motivador por trás da primeira tentativa foi Miguel VIII
Paleólogo, que expulsou os cruzados de Constantinopla. Para guardar seu
império de futuros ataques pelos ocidentais, ele precisava do apoio e proteção
do papado, o que podia ser garantido através de uma união das igrejas. Assim, o
imperador decidiu comparecer ao concílio de Lião em 1274, acompanhado dos
bispos gregos que estavam dispostos a discutir um acordo. Os membros da
delegação ortodoxa concordaram em reconhecer as afirmações papais de
supremacia e aceitar o Credo de Nicéia com a inclusão da cláusula filioque. Mas
quando Miguel voltou para Constantinopla, a grande maioria do seu povo e do
clero rejeitou a união como sendo puramente um acordo pessoal entre ele e o
papa. Apesar de seus esforços, o papa excomungou Miguel em 1282 por seu
fracasso em colocar em prática os termos do acordo. A união de Lião foi
formalmente repudiada pelo sucessor de Miguel que chegou a negar a ele um
enterro cristão adequado por causa de sua suposta “apostasia”.
Um segundo concílio com a intenção de solucionar o dilema entre o
Oriente e o Ocidente foi convocado pelo papa em resposta a uma oferta dos
bizantinos de união com a Igreja em troca de ajuda em sua luta para expulsar os
turcos. O concílio aconteceu em Ferrara e Florença em 1438-39 e terminou
finalmente em Roma em 1445. Compareceram o imperador João VIII, o
patriarca de Constantinopla e uma grande delegação da igreja bizantina e de
outras igrejas ortodoxas sendo que até mesmo as igrejas da Rússia e Abissínia
estavam representadas. Ambos os lados fizeram uma tentativa sincera de
resolver as questões que os dividiam e acabaram concordando numa fórmula de
união. Mas ao ser publicamente proclamada em Constantinopla, foi
completamente rejeitada. Conforme exclamou um nobre bizantino: “Eu preferia
vir um turbante islâmico no meio da cidade do que a mitra latina”.
O Concílio de Florença, como é normalmente chamado, procurou acordos
com algumas igrejas monofisitas e nestorianas, mas estes não levaram a lugar
algum. Muito mais importantes, porém, foi que seus decretos formaram a base
para as várias igrejas católicas de Rito Oriental (“Uniatas”) que continuaram a
utilizar os rituais ortodoxos mas declararam sua lealdade a Roma.
Enquanto isso, no final do século 13 surgiu na Ásia Menor um novo
grupo de turcos que havia sido deslocado durante a expansão mongol. A
princípio serviram os seldjúcidas como mercenários, mas sob seu líder Osman
(daí o nome “turcos otomanos”) eles declaram sua independência e em 1340
controlaram o norte da Ásia Menor. Conhecidos por sua competência militar,
foram auxiliados pela fraqueza do próprio Império Bizantino, que jamais havia
se recuperado dos efeitos da 4ª Cruzada. As constantes brigas internas entre os
vários segmentos da população apenas aumentaram as dificuldades do império,
enquanto os reinos da Sérvia e Bulgária assimilaram grande parte de suas terras
nos Balcãs.
Os turcos avançaram em seguida para os Balcãs e varreram os estados
cristãos. Estavam preparados para capturar Constantinopla, mas então o famoso
conquistador túrquico Tamerlão (Timur) invadiu a Ásia Menor e em 1402
dirigiu o exército otomano para Angora (Ancara), capturou o sultão e
temporariamente eliminou seu poder. Porém logo a sorte dos turcos mudou para
melhor e em 1453 eles realizaram seu último ataque à desafortunada capital
bizantina.
A queda de Constantinopla forçou muitos estudiosos orientais a partir
com seus manuscritos para o Ocidente, ajudando a estimular a Renascença. Ao
mesmo tempo, alguns orientais interpretaram o acontecimento como o castigo de
Deus pelas concessões feitos pelo imperador e o patriarca em Florença. Ela
também encorajou Moscou a declarar-se a “Terceira Roma”, afirmando assim
sua posição legítima de herdeira do império romano e defensora da fé ortodoxa.
Os turcos otomanos, que permitiam que os vários grupos religiosos
chamados millets (“nações” autônomas) governassem a si mesmos, por ironia
deram ao patriarca ortodoxo mais poder do que ele possuía sob os imperadores,
tendo em vista que ele passou a ser considerado o líder religioso e político de
todos os grupos cristãos do império turco. Ele também pôde centralizar o poder
de seu patriarcado sobre áreas que anteriormente eram “autocéfalas” e substituir
os bispos eslavos com candidatos gregos. Seria só na queda do governo turco no
século 19 que as igrejas independentes voltariam a existir na Grécia, Bulgária e
Sérvia.

Ortodoxia russa
Conforme mencionamos anteriormente (capítulo 5), a fé ortodoxa havia se
espalhado para a Rússia kieviana no século 10º. Na época de Yaroslav o Sábio
(1019-54), ao invés de um bispo grego, um russo chamado Ilário foi nomeado
prelado de Kiev. De 1250 em diante, o cargo alternou-se entre um prelado grego
e um russo. Em 1299, a cátedra da igreja ortodoxa da Rússia foi transferida de
Kiev para Vladimir e novamente em 1325 para Moscou. O fato dos cristãos
ortodoxos — seguindo o precedente aberto por Cirilo e Metódio — fazerem uso
do eslavo ao invés do grego, ajudou a separá-los da igreja bizantina bem como
da Igreja católica romana do Ocidente. Na realidade, ao contrário do Ocidente
que insistia numa liturgia latina uniforme (até 1963), a prática ortodoxa de
permitir seus vários ramos de usar sua própria língua (eslavo, copta, ge‟ez,
siríaco) teve o efeito não-intencional de separá-los das origens greco-romanas e
uns dos outros. A ocupação mongol (tártara) durante os anos de 1237 e 1480
contribuiu para o isolamento dos russos.
Os russos aprenderam dos bizantinos a desprezar os católicos latinos
como se fossem hereges, um ódio que foi reforçado pelos ataques dos suecos em
1240 e dos Cavaleiros Teutônicos em 1242. Os Cavaleiros haviam se
aproveitado da invasão mongol para realizar a Cruzada católica, mas Alexandre
Nevsky de Novgorod repeliu os alemães e também se submeteu ao khan. Seus
esforços garantiram a preservação da fé ortodoxa diante da ameaça de
latinização.
Durante a era mongol a Rússia foi dividida em vários pequenos estados
cujos príncipes eram súditos do khan tártaro e pagavam um tributo anual. O
Grão-Ducado de Moscou surgiu como um principado importante no século 14 e
seu governante Ivan I (1328-40) persuadiu o khan a nomeá-lo como o coletor de
tributos de todos os estados vassalos da Rússia. Ele usou esse cargo para exercer
sua autoridade sobre os outros. O Grão Duque Dmitri, apoiado pelo monge
Sérgio de Radonezh (1314-92) — que fundou o famoso mosteiro da Santa
Trindade perto de Moscou e é considerado o principal santo russo — rebelou-se
contra os mongóis. Apesar de não ter sucesso, Dmitri mostrou que eles não eram
invencíveis e aumentou o prestígio de Moscou. Em 1480 Ivan III finalmente
livrou-se do jugo dos tártaros e sujeitou os outros príncipes russos ao seu
governo.
Isidoro, o último prelado russo de origem grega, aceitou a união com a
Igreja romana no Concílio de Florença. Mas com a volta de Isidoro a Moscou
em 1441 o grão duque condenou o acordo e o levou preso como apóstata. Em
1448 os bispos russos elegeram seu sucessor sem a aprovação de
Constantinopla. Daí em diante, a igreja russa passou a ser autônoma e em 1589,
o prelado de Moscou assumiu formalmente o título de patriarca.
Isso foi possível pois os governantes moscovitas haviam se estabelecido
como sucessores dos bizantinos. Em 1472 Ivan III casou-se com a sobrinha do
último imperador, assumindo os títulos bizantinos de “autocrata” e “czar”
(César) e começou a usar a águia de cabeça dupla do Bizâncio como seu
emblema de Estado. Moscou havia se tornado a “Terceira Roma” e declarado ser
a protetora da ortodoxia oriental.

Outras igrejas orientais


Além das igrejas ortodoxas gregas e russas, havia uma rica variedade de
igrejas orientais, algumas das quais relacionadas com Roma e outras com seus
próprios patriarcados independentes. A mais importante das igrejas de “rito
grego” que tornou-se parte do Cristianismo católico romano foi a dos maronitas.
O nome da igreja originou-se de São Maron (falecido em 410), um sacerdote
sírio com uma grande reputação de santidade e sabedoria e que atraiu muitos
discípulos. Seus membros eram missionários ativos e fundaram outros mosteiros
cujos líderes faziam as vezes de bispos de suas regiões. A dominação
muçulmana da Síria criou novos problemas para os maronitas e depois da
destruição de seu principal mosteiro eles refugiaram-se nas montanhas do
Líbano, para onde transferiram o patriarcado de Antioquia em 939. Esse
patriarca era o líder civil e religioso da comunidade, com senhores locais que
controlavam os vilarejos espalhados pela região.
Durante algum tempo eles tiveram pouco contato com o mundo exterior,
mas as Cruzadas reabriram as relações com o Ocidente. Foram aceitos como
companheiros cristãos pela maior parte dos cruzados aos quais deram
informações valiosas sobre o terreno. Em 1181 colocaram-se sob a autoridade
papal. Em 1215 o patriarca compareceu ao 4º Concílio de Latrão e o papa
concedeu-lhe reconhecimento oficial como bispo.
Assim, os maronitas tornaram-se uma das igrejas “uniatas”, ou seja, uma
igreja do Oriente que reconhecia a autoridade papal mas mantinha sua própria
liturgia, tradições e disciplinas. Apesar de falarem árabe, eles usavam a liturgia
siríaca. Nos dias de hoje, o “Patriarca de Antioquia e do Oriente” maronita
lidera aquele que é o maior grupo de cristãos no Líbano. Os maronitas são um
baluarte do catolicismo no Mediterrâneo oriental.
Há alguns outros pequenos grupos uniatas que mantém seus laços com
Roma. O mais importante é o dos melquitas de fala árabe no Egito, Palestina e
Síria. Depois da queda de Constantinopla eles primeiro voltaram-se para
Moscou e então, no século 17 submeteram-se a Roma a fim de garantir auxílio
do Ocidente. Em 1724 o papa reconheceu um patriarca da igreja melquita em
Damasco, que hoje é conhecida como Igreja Ortodoxa da Antioquia. Pode-se
encontrar algumas uniatas coptas no Egito, havendo ainda uma pequena igreja
uniata “caldéia” de origem nestoriana no norte da Mesopotâmia. Um ramo
armênio na Cilícia (leste da Turquia) voltou-se para Roma de 1294 a 1441 e um
grupo de cristãos malabares no sul da Índia está ligado a Roma nos dias de hoje.

Os monofisitas
Muitos dos grupos orientais separaram-se da ortodoxia principal por causa
de sua aceitação do monofisismo. Um deles é a igreja armênia. Representantes
desse grupo, um dos mais antigos do Oriente, não participaram dos concílios de
Éfeso e da Calcedônia pois sua região estava sob o governo persa naquela época
e assim, a cristologia monofisita continuou a prevalecer naquele local.
Apesar de ser originalmente uma fé um tanto aristocrática, a ortodoxia
armênia tornou-se verdadeiramente uma religião do povo depois da conquista
árabe. Nessa ocasião a Igreja repudiou todas as ligações com o Cristianismo
bizantino e desenvolveu seus próprios e singulares costumes. Com a chegada
dos turcos, os armênios começaram a ser perseguidos. Durante as Cruzadas eles
se aproximaram de Roma por motivos políticos mas rejeitaram a tentativa de
reunião promovida pelo papa em Florença. Depois da queda de Constantinopla,
o sultão permitiu que o bispo armênio fundasse um patriarcado e administrasse
um millet que teria jurisdição sobre as comunidades monofisitas no leste da
Turquia e Oriente Médio.
Por causa da dispersão do povo armênio e dos freqüentes períodos de
perseguição, a Igreja identificou-se intimamente com a nação. Assim, os líderes
e teólogos da Igreja tornaram-se conhecidos por seu conservadorismo de
doutrina, tradição e ritual. Qualquer tentativa de introduzir mudanças era
considerada um ato de traição contra a própria nação. Seu líder espiritual era o
catholicos, semelhante ao patriarca e que hoje recebe esse título. Sua cátedra
fica no mosteiro de Etchmiadzin, próximo a Everan na República da Armênia.
A igreja copta (egípcia) tem suas origens em São Marcos, o Evangelista e
distingue-se por sua ênfase no monasticismo e pelo uso do copta antigo como
linguagem litúrgica. Foi uma forte defensora do monofisismo, tendo em vista
que uma vitória da Calcedônia parecia significar uma vitória grega sobre a
cultura nativa do Egito. Ortodoxos e monifisitas travaram uma longa e severa
luta pela cátedra de patriarca, mas estes últimos venceram pois isso permitia aos
coptas declarar sua independência do Bizâncio. O governo árabe finalmente deu
fim à perseguição bizantina e trouxe algum alívio das pressões, mas os pesados
impostos levaram muitos a converter-se ao Islamismo. Além disso, ainda havia
perseguições como a ocasião em que o califa al-Hakim (996-1021) destruiu três
mil igrejas e massacrou milhares de pessoas.
As Cruzadas foram um desastre completo para os coptas. Por serem
“Guerras Santas da Cruz”, os egípcios demonstraram sua ira contra todos os
cristãos, fossem eles latinos, gregos ou coptas. Os cruzados latinos também
perseguiram os coptas como cismáticos, piores que hereges e chegaram até a
negar-lhes acesso aos lugares sagrados de Jerusalém. A repressão teve seu ápice
no período Mamluk (1250-1517) por causa de multidões violentas que se
manifestavam de tempos em tempos. Durante o governo turco (1517-1789) suas
condições melhoraram e os coptas trabalharam como oficiais financeiros e
coletores de impostos para os otomanos. Então, no século 19 a igreja copta
finalmente conseguiu a liberdade de culto e pode afirmar sua identidade, mesmo
que estivesse tornando-se um grupo minoritário ainda mais reduzido numa
sociedade islâmica. Hoje em dia, os patriarcas usam o título de “papa”.
O Cristianismo teve grande influência na Núbia, a área do alto Nilo que
estende-se de Assuã a Cartum. A luta entre monofisitas e ortodoxos atingiu o
sul, sendo que no final os monofisitas saíram vitoriosos. Com isso, garantiu-se
que a igreja daquela região seria uma extensão da linha egípcia. Os esforços dos
árabes para conquistar o território fracassaram e durante os quinhentos anos que
se seguiram os reinos núbios foram independentes. Os laços com a igreja copta
foram mantidos e em um único reino havia quatrocentas igrejas. Apesar de
existirem alguns mosteiros, eles não tiveram um papel tão importante quanto no
Egito. A língua usada na liturgia continuou a ser o grego, mas no final da Idade
Média a língua nativa núbia escrita em caracteres gregos era usada para os
textos religiosos. Em seu ataque em 1172-73, Saladin destruiu igrejas e
mosteiros, capturando e tomando como escravo o bispo e muitos outros clérigos.
Os mamluks no Egito lançaram novos ataques contra os reinos cristãos e, no
final do século 16, todos os traços da fé copta na Núbia haviam sido eliminados.
O primeiro governante do reino etíope de Axum a aceitar o Cristianismo
foi Ezana (4º século) conforme indicam escritos em ge‟ez e grego. Frumêncio,
um cristão do Líbano que tornou-se tesoureiro real, teve um papel importante
em sua conversão. Atanásio consagrou Frumêncio como abuna (patriarca) da
igreja axumita ou abissínia por volta de 340. O próximo acontecimentos de
conseqüências relevantes foi a introdução do monasticismo em 480 pelos Nove
Santos, monofisitas sírios que traduziram as Escrituras gregas para a língua
nativa, ge‟ez. Esta continua sendo a língua usada na liturgia da igreja etíope até
os dias de hoje, apesar do aramaico a outras línguas a terem substituído como
idioma falado.
Colonos do sudoeste da Arábia cultivaram uma forte influência árabe na
Etiópia. Os cristãos de lá viam-se como sucessores legítimos dos judeus e o
imperador tomou para si o título de “Leão Conquistador da Tribo de Judá” (Ap
5.5). Muito costumes etíopes tem ligação com o Judaísmo, como o uso de um
objeto representando a Arca da Aliança, a circuncisão, rituais de purificação, a
observação de dois dias de descanso (sábado e domingo), a proibição da carne
de porco e danças litúrgicas.
Com a expansão do Islã, os muçulmanos adquiriram o controle das terras
baixas e os cristãos amáricos retiraram-se para os altos platôs do interior onde
eram inacessíveis e invencíveis. Praticamente todos os laços com a igreja copta
deixaram de existir, exceto pela consagração do abuna. No governo da dinastia
Zagwe (1137-1270) houve um reavivamento eclesiástico. As onze
extraordinárias igrejas esculpidas em pedras do templo de Lalibela (1150-1270)
são monumentos à devoção etíope durante esse período.
Uma outra dinastia, a “Salomônica”, teve início em 1270 com o apoio do
influente monge Tekla Haimanot e a sorte do Cristianismo mudou para melhor.
O rei Yekuno-Amlak (falecido em 1285) deu à Igreja um terço das terras de seu
reino em caráter perpétuo, fato que explica a grande riqueza da Igreja. O épico
nacional, Kebra Nagast (Glória dos Reis) foi escrito durante esse período. Diz-
se que a rainha de Sabá, que visitou o rei Salomão, era da Etiópia e que ela foi
seduzida pelo rei. O filho resultante dessa união, Menelik I, mais tarde foi a
Jerusalém e roubou a Arca da Aliança.
No reinado de Za‟ar Yakob (1434-68), representantes etíopes participaram
do Concílio de Ferrara-Florença a fim de buscar a unidade das igrejas diante da
expansão islâmica. Mais tarde, outros peregrinos da Etiópia foram a Roma e os
ocidentais passaram a conhecer mais sobre essa terra distante. Enquanto isso, os
escritos apocalípticos de bizantinos e coptas deram origem à esperança de que o
imperador da Etiópia iria unir-se com o Ocidente para derrotar os muçulmanos.
Isso ajudou a alimentar a lenda do reino cristão do Presbítero João (ver capítulo
12). Os portugueses que viajaram para lá em 1490 encontraram o Presbítero
João e houve outros contatos ao longo do século seguinte. Durante um curto
período no começo do século 17, missionários jesuítas chegaram a persuadir o
imperador, ameaçado pela expansão turca, a submeter sua Igreja a Roma.
Uma situação anômala resultou do fato dos etíopes dependerem da igreja
copta do Egito para ter seu patriarca. Como o líder de sua igreja não sabia ge‟ez,
ela precisava ser administrada por um monge. Esse costume continuou a vigorar
durante séculos e foi só quando a igreja copta concordou em permitir um
“patriarca-catholicos” que um nativo etíope pode finalmente, em 1959, assumir
o cargo.
Outro centro de monofisismo foi a Síria, onde o brilhante e vigoroso Jacó
Bardeus, bispo de Edessa (cerca de 500-78) consagrou secretamente uma
hierarquia rival de bispos durante as perseguições de Justiniano.
Conseqüentemente, a igreja fundada por ele ficou conhecida como jacobita. Em
seu trabalho, ele foi encorajado pela imperatriz Teodora, que era da Síria e tinha
uma forte simpatia pelos monofisitas. Jacó — que era fluente em grego, siríaco e
árabe — não tinha residência fixa e viajava muito pela Armênia, Síria, Anatólia,
Mesopotâmia, Pérsia, Arábia e Egito. Para onde quer que fosse, ele defendia a
doutrina monofisita ordenava novos clérigos para tomar o lugar daqueles que
haviam morrido na prisão. Era constantemente perseguido por agentes imperais
e recebeu o apelido de Bardeus (“O Esfarrapado”) por causa das roupas
esfarrapadas que usava como disfarce. É provável que nenhuma personalidade
da Igreja tenha ordenado tantos clérigos quanto Jacó — de acordo com relatos,
por volta de cem mil sacerdotes e vinte e sete bispos.
Quando os árabes conquistaram a Síria, não fizeram distinção entre os
vários tipos de cristãos, tratando-os todos como um único millet. Assim, os
jacobitas gozaram uma liberdade que não tinham sob o governo do imperador.
Apesar de pequenos em número, eles realizaram trabalho missionário na
Mesopotâmia, Pérsia e mais para o Leste. Isso exigiu que o patriarca tivesse
alguém que exercesse jurisdição sobre tais regiões. A primeira e mais importante
pessoa a receber o novo título de “Mafriano (cabeça) do Oriente” foi Maruta,
bispo de Tekrit (629-49).
Os jacobitas deixaram uma rica tradição literária. Uma figura notável foi
Jacó de Edessa (633-708), um bispo, teólogo, filósofo e historiador que
supervisionou a revisão do Antigo Testamento siríaco e foi autor de comentários
bíblicos e de uma obra histórica chamada Hexameron (depois dos seis dias da
criação). Destaque ainda maior teve Gregório Bar Hebreus (1226-86), médico de
descendência judia que escreveu importantes obras históricas e gramaticais em
siríaco e árabe.
No século 13 os jacobitas foram devastados pelas invasões mongóis e
sofreram ainda mais quando Tamerlão varreu sua região. Apesar de serem
pequenos em número, remanescentes jacobitas ainda sobrevivem até os dias de
hoje, principalmente no Curdistão e na Síria, onde são conhecidos como Igreja
Ortodoxa Síria. Apesar de serem de fala árabe, sua liturgia ainda é em siríaco. É
importante mencionar que membros de igrejas normalmente chamadas de
monofisitas costumam rejeitar esse título como sendo pejorativo e preferem, ao
invés disso, o nome Ortodoxo Oriental.
A igreja nestoriana
A igreja nestoriana foi uma das maiores igrejas missionárias da história do
Cristianismo, sendo que seu nome vem do patriarca de Constantinopla do século
5º que supostamente afirmou que Cristo existia em duas naturezas distintas, uma
divina e outra humana, mas não em uma “entidade”. Deus e o homem não
podiam juntar-se; era impossível haver uma troca de atributos humanos e
divinos na pessoa de Jesus. A posição de Nestório desviava-se sutilmente da
visão ortodoxa de Cristo, mas ainda assim ele sofreu oposição. Depois de sua
condenação em Éfeso em 431, aqueles bispos que não aceitavam o ponto de
vista da maioria formaram uma igreja independente. Esta criou raízes na Síria e
Pérsia e ficou conhecido como a “Igreja do Oriente”.
Para entender a aceitação do nestorianismo na Pérsia é preciso saber que a
dinastia de Sassanid, fundada em 227 havia estabelecido o zoroastrismo como
religião oficial. Por causa de seus contínuos conflitos com o Império Romano,
os persas eram hostis em relação ao Cristianismo, que supunham ser a fé do
inimigo. Porém, à medida em que a atitude do governo amenizou-se em relação
aos cristãos, eles puderam exercitar a fé mais abertamente e seus bispos até
realizavam sínodos. Num desses encontros, em 424, o catholicos da
Selêucia/Ctésifon (na região central do rio Tigre) foi elevado ao cargo de
“Patriarca do Oriente”, libertando desse modo a igreja persa da dependência
tanto de Constantinopla como de Roma.
Os nestorianos fundaram um centro de treinamento teológico em Edessa,
na Síria, que foi fechado pelo imperador Zeno em 489. Professores e alunos
mudaram-se então para a escola em Nisibis, na Pérsia que havia sido fundada
por um proeminente professor e organizador chamado Bar Sauma (falecido em
493). Isso significava que o movimento não podia mais funcionar dentro do
império e os persas receberam bem os nestorianos, tendo em vista que os
bizantinos os encavaram com animosidade.
Então, num processo longo e complexo, os nestorianos passaram a definir
o caráter distinto de sua fé. Os escritos de Teodoro de Mopsuéstia (cerca de 350-
428) — um bispo da Ásia Menor cujas obras haviam sido completamente
condenadas pelos ortodoxos — tornaram-se o critério para a doutrina correta.
Porém, o monge Babai o Grande (cerca de 550-630) desenvolveu a síntese
definitiva sobre a relação entre a divindade e humanidade em Cristo. Seu
monasticismo também era característico, pois além de ser conhecido pela
austeridade, exigia que cada abade se submetesse ao bispo local que
administrava todas as propriedades monásticas. A obediência rígida dos monges
à autoridade eclesiástica significava que a hierarquia nestoriana tinha um
exército poderoso de obreiros locais que viriam a fortalecer a igreja e
destemidamente ir aos lugares distantes da Ásia e do leste do Oceano Índico em
suas iniciativas missionárias.
Os muçulmanos que varreram a Pérsia em 637-42, toleravam os cristãos
mas exigiam que estes usassem roupas distintivas e se mantivessem longe do
proselitismo e do vinho. Eles também eram proibidos de usar sinos nas igrejas e
de construir edificações mais altas que as mesquitas. Quando o califado da
Abassídia mudou sua capital para a nova cidade de Bagdá em 762, o patriarca
nestoriano também foi para lá e tornou-se um respeitado membro da corte como
líder do millet cristão. Um desses patriarcas, Timóteo I (779-823) considerava os
muçulmanos enviados de Deus para castigar os adoradores do sol persas e os
hereges bizantinos. Baseando suas afirmações na tradição de que os Magos era
do Oriente, ele declarou “Trinta anos antes de todos, nós orientais confessamos
o reinado de Cristo e adoramos suas divindade!” A igreja cresceu rapidamente e
no século 13 o patriarca lideravam 250 bispos.
Quando os mongóis conquistaram Bagdá em 1258, massacraram
oitocentos mil muçulmanos mas pouparam os cristãos pois a esposa predileta de
seu líder era cristã. Os governantes mongóis deram liberdade aos nestorianos
mas logo cansaram-se das rusgas entre bispos e acabaram adotando o Islamismo.
Então, em 1393, Tamerlão — o terror da Ásia e muçulmano rígido — destruiu o
governo dos mongóis. Para os nestorianos, esse foi um terrível desastre e
aqueles que não foram mortos ou abandonaram a fé, fugiram para as montanhas
do Curdistão. Um pequeno grupo remanescente, chamado de cristãos assírios,
existe até os dias de hoje.

Missões na Ásia
Só agora os estudiosos estão começando a entender quão extenso foi o
trabalho missionário realizado por toda a Ásia durante os primórdios do
Cristianismo. A razão para essa ignorância foi o fato do Ocidente partir do
pressuposto que a igreja oriental era herege e portanto seus empreendimentos
não eram dignos de ser estudados. Além disso, as atitudes da era do
imperialismo sobre o caráter “ocidental” do Cristianismo, as “igrejas mais
jovens” e sobre “subdesenvolvimento”, obscureceram o reconhecimento de que
essa parte do Cristianismo havia ocorrido na Ásia muito antes dos Europeus
pisarem lá. O fato é que estudos de materiais literários, inscrições em pedras e
materiais arqueológicos da Síria, Arábia, China, Coréia, Japão, Indonésia, Índia
e Pérsia mostram uma história incrível da expansão cristã na Ásia.
Os nestorianos tinham trabalhos bem-sucedidos entre os povos
migratórios da Ásia central, incluindo o Turquistão e a Mongólia. Um relatório
para um patriarca nestoriano do século 11 relatava que um movimento em massa
entre turcos e mongóis havia acrescentado duzentas mil almas à igreja. O
evangelho foi levado para a China em 653 através da famosa “Rota da Seda” e
lá o imperador T‟ang chamado T‟ai Tsung concedeu tolerância e em 670 já
havia um bispo na região. No século 13 um chinês tornou-se patriarca
nestoriano (Yahballaha III) e um outro (Rabban Sauma) viajou para a Europa,
visitou diversos governantes e celebrou o rito eucarístico siríaco diante do papa.
Fontes documentárias e arqueológicas mostram que os cristãos estavam
trabalhando no Sri Lanka (Ceilão) no século 5º, na Indonésia no século 7º e na
Coréia e Japão durante os séculos 7º ao 9º. Na época da Alta Idade Média no
Ocidente, existiam igrejas em comunidades mercantis ao longo de toda a Ásia.
As várias obras na Índia são de especial importância. Cristãos de rito
siríaco, que estavam bem estabelecidos no sudoeste da Índia e ilhas Maldivas no
4º século, desenvolveram laços estreitos com os nestorianos. Os “cristãos
malabares” controlavam grande parte do comércio de pimenta e sua “Igreja de
São Tomé” tinha aproximadamente duzentos mil membros em 1400. A vinda
dos portugueses trouxe tempos difíceis para os cristãos nativos, pois os
estrangeiros tentaram impor sobre eles o catolicismo romano. Nos conflitos e
divisões resultantes, alguns cristãos tornaram-se jacobitas, outros nestorianos e a
maioria afiliou-se a Roma, criando assim um complicado quadro de
denominacionalismo na Índia.

Durante a Idade Média os cristãos do Oriente tornaram-se isolados,


fragmentados e marginalizados. A ortodoxia oriental separou-se do catolicismo
latino mas criou raízes entre os búlgaros e eslavos, especialmente na Rússia. Os
cristãos bizantinos também se separaram de seus primos próximos, os
monofisitas e nestorianos. Porém, num encontro em 1990, representantes da
Igreja Oriental Ortodoxa (monofisita) e da Igreja Ortodoxa Grega concluíram
que sua diferenças eram baseadas em mal-entendidos. Representantes de ambas
as partes aceitaram os três primeiros concílios ecumênicos, condenaram o
eutiquianismo e nestorianismo e concordaram em suspender suas condenações
mútuas.3 Saindo de mil e quinhentos anos de polêmicas, eles juntaram-se em
torno da declaração de Cirilo de Alexandria “a natureza única (physis) da
Palavra de Deus Incarnada”, contornando discretamente a observação
calcedônia.

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