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Parte

A literatura
portuguesa do
século xx
• L iteratura modernista: contexto e características 130
— Fernando Pessoa 134
— Mário de Sá-Carneiro 140
— Almada Negreiros 142
• Literatura contemporânea até 1974:
contexto e características 144
— Geração da Presença 146
— Prosa até 1974 148
— Teatro até 1974 156
• Prosa pós-1974 158

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Literatura modernista:
contexto e características
Com a afirmação da geração do Orpheu, a literatura portuguesa
entra definitivamente no século XX. em termos estéticos,
a característica predominante é a rutura com o passado
e com normas reguladoras.

As vanguardas
Uma vitalidade extraordinária e tumultuosa, que se manifesta num contínuo
experimentalismo à procura de novas linguagens expressivas, percorre a literatura
e as artes plásticas no início do século XX. Surgem, uma após outra, as vanguardas,
grupos de escritores e de artistas plásticos, que elaboram programas, lançam manifestos,
organizam conferências ou eventos com a finalidade de desestabilizar as convenções
que regem a comunicação na sociedade burguesa.
Uma delas, o Futurismo, alcança uma enorme projeção pela maneira radical e iconoclasta
com que recusa todas as formas artísticas tradicionais, julgando-as inadequadas à nova
civilização das máquinas criada pela revolução industrial. No Manifesto do Futurismo (Paris,
1909), o escritor italiano Marinetti contrapõe à literatura do passado, que «exaltou até hoje
a imobilidade pensativa, o êxtase, e o sono», uma nova literatura que exalte o «movimento
agressivo, a insónia febril, o passo da corrida, o salto mortal, a bofetada e o soco», e celebre
a beleza do moderno:
«Cantaremos as grandes multidões agitadas, pelo trabalho, pelo prazer e pela rebelião;
Filippo Marinetti.
cantaremos as marés multicolores ou polifónicas das revoluções nas capitais modernas,
cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por
violentas luas elétricas, as estações […]; as pontes semelhantes a ginastas que galgam
os rios, balouçando ao sol com um brilho de facas; os paquetes aventurosos que farejam
o horizonte, as locomotivas […] e o voo deslizante dos aeroplanos.»
a adesão entusiasta ao mundo moderno por parte dos futuristas contrasta com a atitude
dos artistas finisseculares. Como vimos, estes reagiam com desgosto e repulsa perante
as transformações causadas pela revolução industrial, refugiando-se num isolamento
aristocrático. Os futuristas, pelo contrário, querem intervir ativamente na vida social
e política das nações, para destruir tudo o que trava a expansão da energia vital do moderno.
a experiência das vanguardas teve efeitos diferentes na área da literatura e na das artes
plásticas. Neste segundo caso, as criações de artistas de extraordinário valor modificaram
definitivamente o conceito tradicional de obra de arte.

Periodização do Modernismo português


em relação à literatura portuguesa, o termo modernismo designa o período de afirmação
dum grupo de poetas e artistas, entre os quais sobressaem Fernando Pessoa, Mário
de Sá-Carneiro e almada Negreiros, conhecidos como a geração do Orpheu por terem
colaborado na revista com este nome publicada em 1915. Fundada como publicação
trimestral, a revista Orpheu não foi além do segundo número, mas o enorme escândalo que
suscitou no meio cultural e social português foi semelhante ao que costumava
acompanhar, noutros países, o aparecimento das vanguardas.
No primeiro número colaboram Mário de Sá-Carneiro («Para os Indícios de oiro», poemas),
revista Orpheu, número 1
(Casa Fernando Pessoa, Lisboa).
o escritor brasileiro ronald de Carvalho («Poemas»), Fernando Pessoa («O marinheiro»,
drama estático), alfredo Pedro Guisado («treze sonetos»), José de almada Negreiros

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(«Frizos», uma série de breves poemas em prosa), armando Cortes-rodrigues («Poemas»),
e, finalmente, um heterónimo pessoano, Álvaro de Campos («Opiário» e «Ode triunfal»).
Com a exceção das composições de Mário de Sá-Carneiro e de Álvaro de Campos,
os outros textos não apresentam grandes novidades. São de cariz simbolista ou seguem
os ditames duma sua variante, o Paulismo, lançada por Fernando Pessoa por altura da sua
estreia poética, em 1914, nas páginas da revista A Renascença, com o poema «Pauis»:

Pauis de roçarem ânsias pela minha alma em ouro…


Dobre longínquo de Outros Sinos… Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente… corre um frio carnal por minh’alma…
Tão sempre a mesma, a Hora!… Balouçar de cimos de palma…
Silêncio que as folhas fitam em nós… Outono delgado
Dum canto se vaga ave… Azul esquecido em estagnado…
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora! Fotografia de Santa-rita Pintor
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora publicada na revista Portugal
futurista.
[…]
Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns…
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro…
Fanfarras de ópio de silêncios futuros… Longes trens…
Portões vistos de longe… através de árvores… tão de ferro!

a sucessão de frases nominais, ou suspensas, as exclamações, a maiusculação que destaca


algumas palavras-chave, as construções sintáticas anómalas, são os elementos mais vistosos
do Paulismo, que se inspira nos princípios estéticos que Pessoa enunciara nos artigos escritos
para a revista A Águia, em 1912: o vago, a subtileza, que «substitui uma sensação simples por
uma expressão que a torna vívida, minuciosa, detalhada», e a complexidade, que «supõe
uma intelectualização de uma emoção, ou uma emocionalização de uma ideia».
O predomínio, no primeiro número da revista Orpheu, de composições ainda
substancialmente ligadas a uma estética simbolista, é assinalado oportunamente por
Fernando Pessoa numa carta que pensou enviar ao Diário de Notícias. Convém sublinhar,
todavia, que o que suscitou escândalo foram justamente os textos mais inovadores,
ou seja, os de Mário de Sá-Carneiro e sobretudo a «Ode triunfal» de Álvaro de Campos,
acerca da qual o redator de A Capital escreve: «canta as coisas menos delicadas e menos
poéticas dos nossos tempos em espantosas expressões verbais por vezes pornográficas».

LEITURA

Futurismo e Intersecionismo
Fernando Pessoa, em carta assinada por Álvaro de Campos, O Futurismo é dinâmico e analítico por excelência. Ora se
engenheiro e poeta sensacionista, e dirigida ao Diário há coisa que seja típica do Intersecionismo (tal é o nome do
de Notícias, que não chegou a ser enviada, assinala movimento português) é a subjetividade excessiva, a síntese
as diferenças entre o Futurismo e o Intersecionismo. levada ao máximo […]. E o tédio, o sonho, a abstração são as
«O que quero acentuar, acentuar bem, acentuar muito bem atitudes usuais dos poetas meus colegas naquela brilhante
é que é preciso que cesse a trapalhada, que a ignorância revista. […] No 2.º número do Orpheu virá a colaboração
dos nossos críticos está fazendo, com a palavra ”futurismo”. realmente futurista, é certo. Então se poderá ver a diferença,
Falar em Futurismo, quer a propósito do 1.º número do Orpheu, se bem que seja não literária mas pictural essa colaboração.
quer a propósito do livro do sr. Sá-Carneiro, é a coisa mais São quatro quadros que emanam da alta sensibilidade
disparatada que se pode imaginar. Nenhum futurista tragaria moderna do meu amigo Santa-Rita Pintor. […] A minha
o Orpheu. O Orpheu seria para um futurista uma lamentável “Ode triunfal”, no 1.º número do Orpheu é a única coisa que
demonstração do espírito obscurantista e reacionário. se aproxima do Futurismo. Mas aproxima-se pelo assunto
A atitude principal do Futurismo é a objetividade absoluta, que me inspirou, não pela realização — e em arte a forma
a eliminação da arte de tudo quanto é alma, quanto de realizar é que caracteriza e distingue as correntes
é sentimento, emoção, lirismo, subjetividade em suma. e as escolas.» (com adaptações).

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No segundo e último número editado de Orpheu colaboram Ângelo de Lima («Poemas
inéditos»), Mário de Sá-Carneiro («Poemas sem suporte»), o poeta brasileiro eduardo
Guimarães («Poemas»), raul Leal («atelier», novela vertígica), Violante de Cysneiros,
pseudónimo de armando Cortes-rodrigues («Poemas»), Álvaro de Campos («Ode
marítima»), Luís de Montalvor («Narciso», poema) e Fernando Pessoa («Chuva oblíqua»).
este último poema, dividido em seis partes, é um exemplo do Intersecionismo, outro
movimento lançado por Pessoa, que constitui um passo em frente em relação ao
Paulismo: em vez de uma simples sucessão de imagens, temos agora uma sobreposição
de imagens, umas vindas do exterior e outras do interior:

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito


E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos do sol daquelas árvores antigas…
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…

Nestes versos, que correspondem ao incipit, cruzam-se a paisagem real e o porto


sonhado. É provável que para a ideação do Intersecionismo tenha contribuído
o conhecimento do Cubismo, o movimento artístico liderado por Picasso e Braque,
que procurava representar simultaneamente numa superfície plana os vários aspetos
de um objeto. as reproduções hors-textes de quatro quadros de Santa-rita Pintor
e o poema «Manucure» de Mário de Sá-Carneiro conferem um caráter mais
vanguardista a este segundo número.
O terceiro número, que todavia não chegou a ser posto à venda por falta de
financiamento, mantém a heterogeneidade das colaborações, destacando-se, como
obras capazes de suscitar ainda mais escândalo junto do meio cultural lisboeta, o poema
«a cena do ódio», de almada Negreiros, e a colaboração do pintor amadeo de Souza-
-Cardoso.
O ano de 1917 constitui o segundo momento alto da afirmação pública do Modernismo.
a 14 de abril tem lugar uma conferência futurista no teatro república promovida por
almada Negreiros, que assim relata o evento:
«À minha entrada no palco rebentou uma espontânea
e tremenda pateada seguida de uma calorosíssima salva
de palmas que eu cortei de um gesto. reduzida a plateia
à sua inexpressão natural, tive a glória de apresentar o
futurista Santa-rita Pintor que o público recebeu com
uma ovação unânime. Comecei então o meu ultimatum à
juventude portuguesa do século XX, e a plateia, costumada a
conferências exclusivamente literárias e pedantes, chocou-se
nitidamente com a virilidade das minhas afirmações, pelo
que executava premeditas e cobardes reprovações isoladas
mas sem efeito de conjunto […]. Consegui, inspirado na
revelação de Marinetti e apoiado no genial optimismo da
minha juventude, transpor essa bitola de insipidez em que
se gasta Lisboa inteira, e atingir, ante a curiosidade da plateia,
a expressão da intensidade da vida moderna, sem dúvida
de todas as revelações a que é mais distante de Portugal.»
amadeo de Souza-Cardoso, A Cozinha da Casa No mês de novembro de 1917 é publicada a revista
de Manhufe (Centro de arte Moderna José azeredo Portugal Futurista. No número único colaboram almada
Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian).
Negreiros («Saltimbancos — contrastes simultâneos», prosa;
«Mima-fataxa sinfonia cosmopolita e apologia do triângulo

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feminino», poema), Fernando Pessoa («episódios e ficções do interlúdio», poemas)
e Álvaro de Campos («Ultimatum»). São publicados também três poemas de Mário
de Sá-Carneiro, que falecera em 1916. Da colaboração estrangeira, devem destacar-se
os textos de Blaise Cendras e Guillaume apollinaire.
a intervenção da polícia, que apreendeu a tiragem, evitando a sua distribuição,
foi provavelmente motivada pela transcrição no volume da sessão futurista do teatro
república, que, além do «Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX»,
de almada Negreiros, incluía o «Manifesto futurista da luxúria», de Mme. de Saint-Point.
Nos anos 20, a revista Contemporânea (13 números entre 1922 e 1926), dirigida por José
Pacheco, que tinha sido o autor das capas dos dois números editados da Orpheu, e a
Athena (5 números entre 1924 e 1925), sob a direção de ruy Vaz e Fernando Pessoa, dão
continuidade, embora já sem o mesmo espírito vanguardista, à experiência da geração
do Orpheu. Fernando Pessoa, ao falar da primeira, em carta dirigida a Cortes-rodrigues,
comenta: «É, de certo modo, a sucessora do Orpheu. Mas que diferença! que diferença!» almada Negreiros
na I Conferência Futurista,
em abril de 1917.

LEITURA

O Sensacionismo
Como vimos, a colaboração nos dois números da revista Há algo de americano, com a barulheira e o quotidiano
Orpheu revela-se heterogénea. Ao lado de composições omitidos, no temperamento intelectual deste povo.
de caráter vanguardista, encontram-se textos que ainda Ninguém como ele se apropria tão prontamente
permanecem substancialmente no âmbito da estética do das novidades. Nenhum povo despersonaliza tão
Simbolismo. Todavia, para Fernando Pessoa, que projetava magnificamente. Essa fraqueza é a sua grande força.
divulgar a literatura de Orpheu no mundo anglo-saxónico, Esse não regionalismo é o seu inusitado poder. É essa
esta aparente diversidade tinha a sua origem nas próprias indefinidade de alma que o define.
características do movimento literário a que pertenciam, Quanto a derivação, pois: a enumeração das nossas origens
ou seja, o Sensacionismo. Este movimento, que ultrapassa será o primeiro elemento para qualquer coisa de parecido
e engloba o Paulismo e o Intersecionismo, nas palavras de com uma explicação integral do movimento. Descendemos
Pessoa «difere de todas as atitudes literárias em ser aberto de três movimentos mais antigos — “simbolismo francês”,
e não restrito». Na passagem transcrita a seguir, retirada o Panteísmo transcendentalista português e a baralhada
do que devia ser provavelmente uma primeira versão do de coisas sem sentido e contraditórias de que o Futurismo,
prefácio de uma antologia organizada para o público inglês, o Cubismo e outros quejandos são expressões ocasionais,
Pessoa sublinha a originalidade da literatura sensacionista embora, para sermos exatos, descendamos mais do seu
em relação à de outros movimentos literários modernos. espírito do que da sua letra […]. Derivamos do Simbolismo
«O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando francês a nossa atitude fundamental de atenção excessiva
Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Provavelmente é difícil às nossas sensações, a nossa, por conseguinte, frequente
destrinçar a parte de cada um na origem do movimento, preocupação com o tédio, a apatia, a renúncia ante as coisas
e com certeza absolutamente inútil determiná-la. O facto mais simples e mais normais da vida. Isto não nos caracteriza
é que ambos lhe deram início. a todos nós, embora todo o movimento seja impregnado
Mas cada sensacionista digno de menção é uma personalidade pela análise mórbida e acerada das sensações.
à parte, e, naturalmente, todos exerceram uma atividade Vejamos agora as diferenças. Rejeitamos por completo,
recíproca. exceto ocasionalmente, com fins puramente estéticos,
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro estão mais a atitude religiosa dos simbolistas […]. Além disso, rejeitamos
próximos dos simbolistas. Álvaro de Campos e Almada e abominamos a incapacidade simbolista de esforço
Negreiros são mais afins da moderna maneira de sentir prolongado, a sua incapacidade de escrever poemas extensos
e de escrever. Os outros são intermédios. e a sua “construção” viciada […]. Quanto às influências por
Os sensacionistas portugueses são originais e interessantes nós recebidas do movimento moderno que compreende
porque, sendo estritamente portugueses, são cosmopolitas o Cubismo e o Futurismo, devem-se mais às sugestões
e universais. O temperamento português é universal; esta, que deles recebemos do que à substância das suas obras
a sua magnífica superioridade. O ato verdadeiramente propriamente ditas. Intelectualizámos os processos.
grande da História portuguesa — esse longo período dos A decomposição do modelo que realizam (fomos
Descobrimentos — é o grande ato cosmopolita da História. influenciados não pela literatura — se é que têm algo
Cauteloso, científico, nele se grava o povo inteiro. Uma que com a literatura se pareça — mas pelos seus quadros)
literatura original, tipicamente portuguesa, não o pode ser situámo-la nós na que julgamos ser a esfera própria
porque os portugueses típicos nunca são portugueses. dessa decomposição — não as coisas, mas as nossas
sensações das coisas.»

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Fernando Pessoa
O mais universal dos poetas portugueses e um dos maiores
vultos da literatura mundial. a sua obra caracteriza-se pela
fragmentação heteronímica.

BIOGRAFIA

Fernando Pessoa (1888-1935)


Nasce em Lisboa a 13 de junho de 1888. Aos 5 anos fica órfão de pai. Em consequência
do segundo casamento da mãe com o cônsul de Portugal na África do Sul, Pessoa parte
com a família para Durban, onde faz a sua formação escolar, primeiro os estudos primários
e depois a High School.
Regressado a Lisboa, em 1905, matricula-se no Curso Superior de Letras, que não termina.
Aos 20 anos começa a trabalhar como correspondente estrangeiro para várias firmas
comerciais — será esta a sua atividade profissional ao longo de toda a vida.
Em 1912, faz a sua estreia como crítico, publicando na revista A Águia, então o órgão
do movimento saudosista, uma série de artigos sobre a nova poesia portuguesa que
preanuncia o aparecimento de um «Supra-Camões». A estreia como poeta dá-se em 1914,
Fernando Pessoa. com «Impressões do crepúsculo», que sai na revista A Renascença.
Em 1915, com outros jovens escritores entre os quais Mário de Sá-Carneiro, com o qual
manteve uma densa correspondência, lança os dois números da revista Orpheu. Colabora
no número único de Portugal Futurista (1917) com o «Ultimatum» assinado por Álvaro
de Campos.
Em 1918, sai o seu primeiro livro, com poemas ingleses, 35 Sonnets e Antinous. Na década
de 20, edita English Poems I-II e English Poems III, e colabora nas revistas Contemporânea
e Athena, onde aparecem pela primeira vez poemas de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro.
A partir de 1927 publica numerosos textos na Presença.
Em 1934 termina Mensagem, obra à qual é atribuído o «prémio de segunda categoria» de um
concurso literário promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional. A 30 de novembro
de 1935 morre no Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa.

A heteronímia
através da despersonalização heteronímica, Fernando Pessoa escreve em seu nome
e no de vários poetas, alberto Caeiro, Álvaro de Campos, ricardo reis. Cada um deles
possui um estilo próprio e uma particular visão do mundo.
Numa nota publicada no número 17 da revista Presença, em 1928, Pessoa distingue
de forma clara a obra pseudónima, que «é do autor em sua pessoa, salvo no nome que
assina», da obra heterónima, que «é do autor fora da sua pessoa, de uma individualidade
completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer
drama seu». Pessoa, deste modo, assimila a heteronímia à criação dramática, definindo-a
como «um drama em gente, em vez de atos».
este fenómeno de fragmentação, ou multiplicação do eu em várias personalidades
literárias, está também relacionado com a poética do fingimento, que Pessoa define
Objetos de Fernando Pessoa
em exposição (Casa Fernando numa breve composição e que se opõe à conceção da poesia, de matriz romântica,
Pessoa, Lisboa). que correspondia à expressão imediata, emocional e sincera de um sujeito.

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em relação à sinceridade no plano da prática literária, deve ser relembrado o que Pessoa
escreve numa carta a Cortes-rodrigues, de 1915: «Chamo insinceras às coisas feitas para PARA SABER MAIS
fazer pasmar, e às coisas também — repare nisso, que é importante — que não contêm
uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento, Publicação dos inéditos
uma noção da gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob Quando morreu, Pessoa
os nomes de Caeiro, reis, Álvaro de Campos. em qualquer destes pus um profundo deixou um enorme
conceito da vida, diverso em todos os três, mas em todos gravemente atento espólio guardado numa
arca. Nos anos 40,
à importância misteriosa de existir.»
a editora Ática começou
Finalmente, é preciso sublinhar que a heteronímia em si não teria a importância a publicar a Obra Completa
e o relevo que de facto tem se não tivesse produzido textos poéticos de excelsa (Ática) sob a direção de
qualidade estética. João Gaspar Simões e Luís
de Montalvor. Em 1979,
a Biblioteca Nacional
adquiriu o espólio
LEITURA
pessoano, procedendo
à sua catalogação.
A génese dos heterónimos Uma parte relevante
Numa carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de janeiro de 1935, o poeta dos 27 000 papéis que
explica a génese dos heterónimos. Depois de relembrar que sempre teve uma «tendência o compõem tem vindo
orgânica e constante para a despersonalização», Pessoa descreve o seu dia triunfal quando, a ser editada, ao longo
após várias tentativas falhadas de criar um poeta bucólico, «de espécie complicada», este das últimas décadas, pela
finalmente lhe aparece. Imprensa Nacional
(edição crítica orientada
«Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente por Ivo de Castro) e pela
desistira — foi em março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando Assírio & Alvim, que até
um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta 2005 detinha os direitos
e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. autorais.
Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título,
O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem
dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera
em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos
que foram trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio
também, os seis poemas que constituem a “Chuva oblíqua”, de Fernando Pessoa.
Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro
a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua
inexistência como Alberto Caeiro. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe
descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso
paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque
nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me
impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção
nem emenda, surgiu a “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome
e o homem com o nome que tem.»

Alberto Caeiro
alberto Caeiro, segundo os dados fornecidos por Pessoa, nasceu em 1889, em Lisboa,
mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação, ficou
órfão muito cedo e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos.
Morreu de tuberculose em 1915.
Na sua poesia manifesta-se um objetivismo radical («o único sentido íntimo das cousas
/ é elas não terem sentido íntimo nenhum») que se contrapõe a todo o género de
misticismo ou transcendentalismo. alberto Caeiro recusa qualquer tipo de pensamento
metafísico e a sua realidade é fruto daquilo que os seus sentidos apreendem: «eu não
tenho filosofia: tenho sentidos…»; «Pensar é estar doente dos olhos.»
a sua linguagem poética é profundamente antilírica e escreve em verso livre, sem qualquer almada Negreiros, Alberto Caeiro
preocupação rítmica. O léxico é essencial, a adjetivação pouco elaborada, a sintaxe resume-se (Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa).

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a frases simples ou coordenadas. estas características estão de acordo com as suas forma
de estar, negação do pensamento e maneira de entender a criação poética:

E há poetas que são artistas


E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!…
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!…

No conjunto da obra de Caeiro destacam-se seis composições que constituem O Pastor


Amoroso. trata-se de uma espécie de diário que relata uma breve e intensa aventura
amorosa, desde a euforia e a felicidade inicial até à tristeza que segue o seu fim.
Nestes poemas, a descoberta do sentimento do amor põe em crise o objetivismo
de Caeiro e a sua relação pacífica e tranquila com a realidade: «todos os dias agora
acordo com alegria e pena. / antigamente acordava sem sensação nenhuma: acordava.»
Na ficção heteronímica, Caeiro é o mestre dos outros heterónimos e do ortónimo.
No confronto com a sua poesia e o seu pensamento surgem e definem-se ricardo reis
e Álvaro de Campos, e, como relembra Fernando Pessoa na carta sobre a génese
dos heterónimos, o aparecimento de Caeiro tem um impacto também na poesia do
ortónimo. Segundo o poeta e crítico Octavio Paz, Caeiro é o sol e em torno dele giram
reis, Campos e o próprio Pessoa. reis crê na forma; Campos, na sensação; Pessoa,
nos símbolos. Caeiro não crê em nada: existe.

Ricardo Reis
Fernando Pessoa informa-nos de que ricardo reis nasceu em 1887, no Porto,
foi «educado num colégio de jesuítas», é médico e «vive no Brasil desde 1919»,
já que «se expatriou espontaneamente por ser monárquico».
É um poeta de inspiração clássica para o qual, em oposição à simplicidade do seu mestre
Caeiro e à impetuosidade de Campos, a métrica é um elemento essencial e indispensável
da expressão poética. Como afirma, «a poesia é superior à prosa porque exprime não um
grau superior de emoção mas, por contra, um grau superior de domínio dela, a subordinação
do tumulto em que naturalmente se exprimiria […] ao ritmo, à rima, à estrofe».
Na sintaxe dos seus poemas é frequente o recurso ao hipérbato, ou seja, a inversão
da ordem normal das palavras, e à elipse, o que confere ao verso um peculiar andamento
rítmico, ao mesmo tempo que realça o valor de cada palavra. O léxico apresenta numerosos
latinismos, arcaísmos e, por vezes, termos utilizados com o seu significado etimológico.
a este estilo corresponde uma visão do mundo, que uma outra personagem criada por
Pessoa, o irmão, Frederico reis, define sinteticamente com as seguintes palavras: «resume-se
num epicurismo triste toda a filosofia da obra de ricardo reis […]. Cada qual de nós — opina
almada Negreiros, Ricardo Reis o poeta — deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros e procurando apenas,
(Faculdade de Letras dentro de uma sobriedade individualista o que lhe agrade e lhe apraz. Não deve procurar
da Universidade de Lisboa).
os prazeres violentos e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas.»
Nos versos de reis encontram-se glosados alguns dos mais conhecidos tópicos da lírica
de Horácio, a aurea mediocritas e o carpe diem, que, todavia, mais do que expressar
uma tranquila aceitação da realidade e da existência, parecem traduzir um sentimento,
moderno, de angústia e de medo perante a inevitabilidade da morte.

Não queiras, Lídia, edificar no ’spaço Não te destines, que não és futura.
Que figuras futuro, ou prometer-te Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
Amanhã. Cumpre-te hoje não ’sperando E ela de novo enchida, não te a sorte
Tu mesma és tua vida. Interpõe o abismo?

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Álvaro de Campos
Nasceu em tavira, no dia 15 de outubro de 1890. Depois de ter frequentado o liceu,
foi para a escócia, para estudar engenharia mecânica e naval.
Na obra de Álvaro de Campos destacam-se nitidamente duas fases principais. a primeira,
que coincide com o seu aparecimento, é a das grandes odes («Ode triunfal» e «Ode
marítima»), assim como, de outras composições de cariz semelhante que ficaram
inacabadas, como, por exemplo, «Passagem das horas». Nestas faz-se a expressão daquele
«sentir tudo de todas as maneiras» em que se funda o seu sensacionismo subjetivo,
por oposição ao objetivismo de Caeiro.
Na celebração eufórica do mundo moderno, em todas as suas componentes, mesmo
as mais abjetas, há claras marcas do futurismo e da poesia do escritor americano
Walt Whitman, autor da obra emblemática Leaves of grass.
a linguagem poética de Campos, porém, afasta-se quer dos processos estilísticos
enunciados por Marinetti (as palavras em liberdade) quer da prática do verso livre
do autor de Leaves of grass. Como o próprio Pessoa esclarece: «Álvaro de Campos
define-se excelentemente como sendo um Walt Whitman com um poeta grego lá
almada Negreiros, Álvaro
dentro. Há nele toda a pujança intelectual, emocional e física que caracterizava Whitman; de Campos (Faculdade de Letras
mas nele verifica-se o traço precisamente oposto — um poder de construção e de da Universidade de Lisboa).
desenvolvimento ordenado de um poema que nenhum outro poeta jamais alcançou.»
a segunda fase é a dos poemas onde predomina o tédio, o cansaço, a angústia
paralisante perante a realidade, a abulia. a evocação da infância como um momento
feliz por oposição a um presente marcado pela negatividade está também presente
em alguns textos. O triunfalismo agora é só uma lembrança, assim como a energia
criadora que alimentava:

Há tanto tempo que não sou capaz


De escrever um poema extenso! —
Há anos
Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico
Em que a ideia e a forma,
Numa unidade de corpo e alma,
Unanimemente se moviam…
[…]
Mas, ah!, minha Ode Triunfal,
O teu movimento rectilíneo!
Ah, minha Ode Marítima,
A tua estrutura geral em estrofe, antístrofe e epodo!
E os meus planos, então, os meus planos —
Esses é que eram grandes odes!
E aquela, a última, a suprema, a impossível!

Pertencem a esta segunda fase algumas das composições mais brilhantes e notáveis
de Pessoa, como «aniversário», «Poema em linha recta», «Lisbon revisited» e, ainda,
«tabacaria».
Campos escreve, na maioria dos casos, em verso livre, que se diferencia do de Caeiro,
pela preocupação em criar um ritmo através da repetição de palavras ou sintagmas,
da pausa final de cada verso, e em conferir aos poemas uma rigorosa arquitetura.
O seu léxico é aberto aos mais variados registos linguísticos e pode afirmar-se que
com a obra de Campos a oralidade entra definitivamente na linguagem da poesia
portuguesa moderna.
a estas duas fases que seguem a evolução, digamos, natural do heterónimo,
Pessoa acrescentou outra que corresponde ao período em que Campos ainda

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não tinha travado conhecimento com o mestre Caeiro. exemplo desta fase é o poema
«Opiário», publicado no primeiro número da revista Orpheu, que começa com esta quadra:

É antes do ópio que a minh’alma é doente.


Sentir a vida convalesce e estiola.
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Comenta Pessoa: este «foi dos poemas que tenho escrito o que me deu mais que fazer,
pelo duplo poder de despersonalização que tive de desenvolver».
entre os heterónimos, Álvaro de Campos tem um estatuto diferente. Há, em primeiro
lugar, como vimos, uma evolução na sua poesia que permite delinear um trajeto
biográfico, e depois Álvaro de Campos teve até uma vida pública: colaborador
do Orpheu e do Portugal Futurista, foi um dos mais destacados expoentes da vanguarda
modernista com os seus manifestos e as suas cartas que suscitaram polémicas nos
jornais lisboetas. além disso, ele intervém inclusive na vida privada de Fernando Pessoa
obstaculizando a relação amorosa que o poeta manteve com Ofélia Queiroz. esta última,
de resto, não esconde a sua antipatia por ele: «Quando me estiveres a escrever,
o teu amigo Álvaro de Campos que não esteja ao pé de ti, ouviste? Olha, manda-o
para a Índia…»

Fernando Pessoa ortónimo


O conjunto de poemas que Pessoa assina com o seu nome apresenta maior variedade
estilística e temática em relação à obra dos heterónimos. Há composições marcadas
pelo experimentalismo, como os textos escritos segundo os ditames do Paulismo e do
Intersecionismo, há sonetos ímpares, como a série «Passos da cruz», e depois os poemas
esotéricos, as quadras populares, etc.
Há ainda numerosas composições que Pessoa pensava coligir num Cancioneiro e que
define com as seguintes palavras:

Dissemos que devemos chamar canção a um poema que contém emoção para parecer que
nele se está cantando. Não se pode cantar o que é longo; não se pode cantar o que é duro;
não se pode cantar o que é rígido e formal. Por isso a canção exclui o poema longo, exclui
o poema satírico, exclui o epigrama e todo o poema que se serve de uma forma rígida como,
por exemplo, o soneto […]. Não pode chamar-se canção o que exclui o elemento musical.
Por isso não pode chamar-se canção a um poema em verso irregular ou livre, nem a um poema
onde não haja rima.

São também assinados pelo ortónimo os poemas em língua inglesa não atribuídos
a alexander Search e, finalmente, o único livro de poesia em língua portuguesa que
publicou em vida: Mensagem. trata-se de um livro complexo, uma interpretação mítica
da história e do destino de Portugal, que obedece a uma estrutura tripartida de inspiração
esotérica.
a primeira parte («Brasão»), dividida nos cinco elementos que formam o brasão
(Os Campos, Os Castelos, as Quinas, a Coroa, O timbre), repercorre, através
da evocação de uma série de figuras históricas ou lendárias (como Ulisses), a história
de Portugal até à formação do Império.
a segunda parte, que tem por título «Mar Português», reúne doze poemas dedicados
à época dos Descobrimentos, que celebram os feitos dos navegadores portugueses,
Frontispício de Mensagem relembrando o arrojo, o esforço e a dor que implicaram. a última parte («O encoberto»),
(Biblioteca Nacional). a obra
inicialmente era para ter o título dividida em Os Símbolos, Os avisos e Os tempos, trata do destino que aguarda
Portugal. a nação portuguesa.

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LEITURA

O esoterismo
Na obra de Fernando Pessoa ortónimo, o esoterismo ocupa um lugar de destaque.
São numerosas as páginas que o autor deixou sobre o assunto. Entre os vários poemas
de tema esotérico consta «O último sortilégio», publicado na revista Presença, n.º 29,
em dezembro de 1930.
Já repeti o antigo encantamento, Já as sacras potências infernais,
E a grande Deusa aos olhos se negou. Que, dormentes sem deuses nem destino,
Já repeti, nas pausas do amplo vento, A substância das coisas são iguais,
As orações cuja alma é um ser fecundo. Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou. A música partiu-se do meu hino.
Só o vento volta onde estou toda e só, Já meu furor astral não é divino
E tudo dorme no confuso mundo. Nem meu corpo pensado é já um deus.
Outrora meu condão fadava as sarças […]
E a minha evocação do solo erguia Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Presenças concentradas das que esparsas Tu, Lua, cuja prata converti,
Dormem nas formas naturais das coisas. Se já não podeis dar-me essa beleza
Outrora a minha voz acontecia. Que tantas vezes tive por querer,
Fadas e elfos, se eu chamasse, via, Ao menos meu ser findo dividi —
E as folhas da floresta eram lustrosas. Meu ser essencial se perca em si.
Minha varinha, com que da vontade Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
Falava às existências essenciais, Converta-me a minha última magia
Já não conhece a minha realidade. Numa estátua de mim em corpo vivo!
Já, se o círculo traço, não há nada. Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Murmura o vento alheio extintos ais, Anónima presença que se beija,
E ao luar que sobe além dos matagais Carne do meu abstrato amor cativo,
Não sou mais do que os bosques ou a estrada. Seja a morte de mim em que revivo;
[…] E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!

O Livro do Desassossego
a publicação, nos anos 80, do Livro do Desassossego, foi um verdadeiro acontecimento.
a revelação desta ulterior faceta do autor descobriu de improviso um dos maiores prosadores
do século XX. autor deste diário íntimo é Bernardo Soares, que Pessoa define como
um semi-heterónimo, pela razão que «não sendo a personalidade a minha, é, não diferente
da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade».
Pessoa não chegou a dar uma estrutura definitiva ao Livro do Desassossego, por este SABIA QUE…
motivo. Depois da edição organizada por Prado Coelho, saíram as de antónio Quadros,
teresa Sobral Cunha e richard Zenith, que divergem na sequência em que são
apresentados os textos, por obedecerem a critérios editorais diferentes. Contos policiais
Pessoa teve sempre, desde
os tempos da África do
Sul, um grande interesse
LEITURA
pela ficção policial. Numa
primeira fase projetou
Bernardo Soares vários contos em inglês
Neste breve trecho temos a descrição física de Bernardo Soares. atribuindo-os a Horace
James Faber. Mais tarde
«Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado
criou a personagem
exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo
do Dr. Quaresma. Planeava
não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento
publicar uma série de
não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava —
volumes, mas não chegou
parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que
a concluir nenhum dos
provém de ter sofrido muito. Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça.»
contos esboçados.

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Mário de Sá-Carneiro
Companheiro de Fernando Pessoa na aventura do Orpheu e na
divulgação do Modernismo em Portugal, Mário de Sá-Carneiro
deixou uma obra notável sobretudo a nível da poesia,
na qual se sucedem momentos de euforia na busca do ideal
e momentos de desencanto perante o falhanço da sua
ambição.

BIOGRAFIA

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)


Nasceu em Lisboa a 10 de maio de 1890 no seio de uma família abastada. Aos 2 anos ficou
órfão de mãe e foi criado em casa dos avós. Em outubro de 1912 parte para Paris, onde se
matricula na Faculdade de Direito, que todavia não chegará a cursar, preferindo dedicar-se
à literatura e à vida boémia. Nesse ano conhecera Fernando Pessoa, com o qual estabeleceu
uma profunda amizade, testemunhada pelas cartas que lhe enviou da capital francesa
(publicadas em 1958). A leitura desta correspondência permite conhecer a sua evolução literária,
no diálogo constante com Pessoa e no contacto com a agitada vida cultural parisiense.
Uma crise psíquica, agravada por dificuldades financeiras, leva-o ao suicídio a 26 de abril
de 1916 no Hotel de Nice.
Mário de Sá-Carneiro.

Poesia
a poesia foi a primeira forma de expressão literária cultivada por Mário de Sá-Carneiro,
como documenta a obra Poemas Juvenis, editada em 1986 e composta por um grupo
de poemas que o jovem autor anotara num caderno. todavia, a partir de certa altura,
abandonou a lírica para se dedicar ao teatro e, sobretudo, à ficção. a sua estreia literária
dá-se com a peça Amizade (1912), escrita em colaboração com tomás Cabreira Junior.
O regresso à escrita poética acontece em Paris, no dia 1 de maio de 1913 e de forma
inesperada, como o próprio autor narra numa carta dirigida a Fernando Pessoa. estava ele
sentado na esplanada de um café, «quase a dormir, num aborrecimento atroz, com a cabeça
esvaída», quando de repente começou «a escrever versos, mas como que automaticamente».
ao reler as quadras que compusera achou-lhes «um sabor especial, monótono […] boa
tradução do estado sonolento, maquinal, em que escrevera esses versos». No dia seguinte
completou o poema, desta vez «num estado normal e refletidamente». No fim, envia-os ao
amigo, a quem pedia um juízo franco, acrescentando que aqueles versos marcavam «bem
o ritmo amarfanhado» da sua alma, «o sono (não o sonho — o sono) em que muitos dias» vivia.
O poema que acabava de escrever era um dos doze textos que integraria o volume
Dispersão, editado em 1914. O livro descreve uma viagem interior que vai da «Partida»
(«saltar na bruma», «correr no azul à busca da beleza») à «Queda» («eu morro de desdém
em frente dum tesoiro»), passando por momentos de exaltação nessa busca do ideal
(a consciência de ser diferente e de ter um destino «alto e raro») e momentos de desencanto
quando o eu lírico se apercebe de que lhe faltou sempre algo para atingir o que almejava:

Um pouco mais de sol — e fora brasa


Um pouco mais de azul — e fora além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

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Neste livro, a versificação é ainda convencional, tratando-se geralmente de quadras
de decassílabos ou hexassílabos. também o léxico e a sintaxe não apresentam
particularidades notáveis, excetuando alguns versos como «Serei, mas já não me sou».
através desta construção anómala, Mário de Sá-Carneiro visa expressar de forma incisiva
a contraposição entre o viver, «ser-se», e o simples existir. O ser é uma das temáticas
constantes de toda a sua obra.
No volume seguinte, Indícios de Oiro, editado, postumamente, em 1937, com base
num caderno manuscrito que o autor enviara, antes do suicídio, a Fernando Pessoa, a
linguagem poética torna-se mais complexa e inovadora. a uma maior variedade métrica
alia-se uma exuberante imaginação metafórica, a criação de sinestesias («esquivo
sortilégio o dessa voz, opiada / em sons cor de amaranto, às noites de incerteza»)
e o recurso a um vocabulário rebuscado, onde coexistem os neologismos e o léxico
simbolista finissecular («Heráldicas-luar sobre ímpetos de rubro, / Humilhações a lis,
desforços de brocado / Basílicas de tédio, arneses de crispado»).

Prosa
ainda estudante de Liceu, colabora na revista Azulejos com oito breves narrativas e,
em 1912, publica o volume de contos Princípio, onde se encontram em esboço alguns
temas desenvolvidos nas obras da maturidade: a novela A Confissão de Lúcio, editada
em 1914, e os contos reunidos em Céu em Fogo (1915).
Há uma estreita relação entre a poesia e a prosa de Mário de Sá-Carneiro, quer no plano da
linguagem quer no plano temático. este último aspeto explica a sua predileção pelo género
fantástico, praticado segundo módulos decadentistas, que se lhe devia afigurar como
a forma mais adequada e eficaz para ficcionar motivos como o desdobramento do eu.
Com efeito, o tema do duplo, que em geral representa o que foi recalcado, tem uma longa
tradição no fantástico oitocentista e deu origem a brilhantes e famosos textos narrativos como
o conto de edgar allan Poe, «William Wilson», e os romances The strange case of Dr. Jekill and
mister Hyde, de robert Louis Stevenson, e O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.
Na ficção de Mário de Sá-Carneiro, na qual são frequentes os motivos autobiográficos,
o duplo está associado a algumas fantasias e desejos paradoxais que desafiam as leis Frontispício de Dispersão
que regem a natureza humana e física, e por vezes configura-se como a projeção de um (Biblioteca Nacional).
pensamento, quase uma obsessão do próprio autor, que encontramos descrito nestes
termos numa carta a Fernando Pessoa: «O que eu desejo, nunca posso obter nem possuir,
porque só o possuiria sendo-o.»

LEITURA

«O homem dos sonhos»


Nas novelas de Mário de Sá-Carneiro há sempre personagens estranhas, exóticas,
rodeadas de mistérios, e situações singulares, insólitas, por vezes paradoxais, que surgem
inesperadamente no meio da realidade quotidiana. Transcrevemos como exemplo o incipit
de «O homem dos sonhos», conto recolhido no volume Céu em Fogo.
«Nunca soube o seu nome. Julgo que era russo, mas não tenho a certeza. Conheci-o em Paris,
num Chartier gorduroso de Boul’Mich, nos meus tempos de estudante falido de Medicina.
Todas as tardes jantávamos à mesma mesa, de forma que um dia entabulámos conversa.
Era um espírito original e interessantíssimo; tinha opiniões bizarras, ideias estranhas — como
estranhas eram as suas palavras, extravagantes os seus gestos. Aquele homem parecia-me
um mistério. Não me enganava, soube-o mais tarde: era um homem feliz. Não estou
divagando: era um homem inteiramente feliz — tão feliz que nada lhe poderia aniquilar
a sua felicidade. Eu costumo dizer, até, aos meus amigos que o facto mais singular da minha
vida é ter conhecido um homem feliz.
O mistério, penetrei-o uma noite de chuva — uma noite muito densa, frigidíssima. […]»

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Almada Negreiros
Personalidade ímpar da cultura portuguesa do século XX, 
foi poeta, romancista, dramaturgo, desenhador e pintor. 

BIOGRAFIA

Almada Negreiros (1893-1970)


Nasceu em São Tomé a 7 de abril de 1893. Ficou órfão de mãe aos 3 anos, quando já vivia
em Lisboa. Entre 1900 e 1910, frequentou o Colégio dos Jesuítas em regime de internato.
Começou a sua atividade artística como desenhador e caricaturista em 1911. Por ocasião
de uma exposição realizada em 1913, conheceu Fernando Pessoa, de quem se tornou grande
amigo. Integrou o grupo de escritores e artistas que aderiram ao Modernismo, sendo o mais
ativo na difusão dos ideais e das práticas do movimento futurista. Viveu em Paris, de 1917
a 1919, e em Madrid, entre 1927 e 1932. A partir dos anos 30, dedica-se sobretudo à pintura e,
como artista já consagrado, realiza uma série de obras notáveis para edifícios públicos. Morreu
em Lisboa, a 15 de junho de 1970.
Almada Negreiros,  
Museu Nacional do Teatro 
(fotografia de Luísa Oliveira).

Obra
A primeira fase da obra literária de Almada Negreiros, que vai de 1915 a 1917, coincide 
com a afirmação do Modernismo. Colabora no primeiro número da revista Orpheu 
com um conjunto de breves poemas em prosa, «Frizos», ainda marcados pela estética 
simbolista. «A cena do ódio» que escreveu para o terceiro número da revista é uma longa 
composição em verso livre que o autor assina como «poeta sensacionista e Narciso do 
Egito». Nela, a sátira une-se à provocação e a um egocentrismo exacerbado. Na parte final 
acumulam-se, torrencialmente, as invetivas contra o burguês, encarnação de tudo aquilo 
que a vanguarda rejeita:

E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo,


Meu desacreditado burguês apinocado
Da rua dos bacalhoeiros do meu ódio
Co’a Felicidade em casa a servir aos dias!

Há vários pontos de contacto entre este poema e os textos de intervenção pública que  
o autor escreve na mesma altura. Com efeito, Almada Negreiros, com uma coerência  
que o demarca dos outros modernistas, identifica-se plenamente com a vanguarda 
futurista. Por um lado, no plano especificamente criativo, procura novas linguagens 
expressivas através de uma experimentação ousada quer na poesia, como nos poemas 
«Litoral» e «Mima-fataxa» em verso livre e com peculiares soluções gráficas, quer na prosa, 
com os textos K4 o Quadrado Azul e Os saltimbancos (contrastes simultâneos). Por outro, 
desenvolve uma atividade de intervenção pública, que agita e escandaliza o meio social  
e político.

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O Manifesto Anti-Dantas e por extenso por José de Almada Negreiros Poeta d’Orpheu
Futurista e Tudo (1915), ao fustigar impiedosamente o escritor Júlio Dantas, que apelidara
de «poetas paranóicos» os colaboradores da revista Orpheu, critica o academismo
e o modo como a civilização burguesa encara a literatura e a arte.
O Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século xx, lido no teatro república
a 14 de abril de 1917 e publicado poucos meses depois no número único de Portugal
Futurista, retoma as ideias de Marinetti, inclusive a apologia da guerra, e proclama
a necessidade de um corte radical e definitivo com o passado: «Hoje é a geração
portuguesa do século XX quem dispõe de toda a força criadora e construtiva para
o nascimento de uma nova pátria inteiramente portuguesa e inteiramente atual
prescindindo em absoluto de todas as épocas precedentes.»
É curioso notar que, por razões alheias à vontade do autor, todos estes textos,
escritos com a finalidade declarada de suscitar escândalo, e que, por isso, estão
estritamente vinculados ao tempo da sua redação, acabaram por não ter qualquer
impacto no meio cultural e social de Lisboa. Como sabemos, o terceiro número
da revista Orpheu não chegou a ser editado e, por isso, «a cena do ódio» só foi
conhecida muitos anos mais tarde. O Manifesto Anti-Dantas chegou a ser impresso,
mas Júlio Dantas foi avisado pela tipografia e comprou a tiragem. a revista Portugal
Futurista foi apreendida pela polícia.
Na segunda fase da sua obra literária, que começa a partir de 1919, o autor privilegia
sobretudo formas breves, quer na prosa quer na poesia, e serve-se de uma linguagem
simples e linear para transmitir uma visão do mundo ingénua e primitiva, semelhante
à da infância. A Invenção do Dia Claro (1921), apresentada como «iniciação dos
portugueses na revolução da pintura», é a obra mais significativa deste período.
Notáveis são igualmente as incursões no teatro com obras como Antes de Começar
(1919), Pierrot e Arlequim (1924), Deseja-se Mulher (1928). estas constituem umas das raras
tentativas de criar um teatro de vanguarda em Portugal.
Nome de Guerra, publicado em 1938, embora tenha sido escrito em 1925, é a única
narrativa longa de almada Negreiros e, ao mesmo tempo, o único romance escrito
por um dos protagonistas do Modernismo. É a história de como antunes, um jovem
vindo da província, se torna adulto no meio da vida noturna de Lisboa. a subtil
caracterização das personagens, a naturalidade dos diálogos e a linguagem simples
tornam-no um dos textos narrativos mais interessantes da primeira metade do século xx.

LEITURA

A Invenção do Dia Claro


Este breve texto de A Invenção do Dia Claro, «A flor», é um exemplo da simplicidade
expressiva que caracteriza a segunda fase da obra literária de Almada Negreiros.

A flor
Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se
no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direção, outras noutras;
umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança
quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração
para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas
dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas
as linhas com que Deus faz uma flor!

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Literatura contemporânea
até 1974: contexto
e características
Um dos acontecimentos que marcaram decisivamente
a vivência em Portugal no século XX foi o golpe de estado
de 28 de maio de 1926, que deu origem a uma ditadura
militar e, consequentemente, ao estado Novo.

Contexto político
a 28 de maio de 1926, um golpe militar liderado pelo general Gomes da Costa, antigo
combatente da Primeira Guerra Mundial, substituiu a Primeira república por uma ditadura
militar, que culminou no estabelecimento do estado Novo, regime autoritário que se
manteria até à revolução do 25 de abril de 1974.
a 27 de abril de 1928, antónio de Oliveira Salazar torna-se ministro das Finanças.
em 1932, e após ganhar progressivamente um prestígio crescente a nível político, este antigo
professor da Faculdade de Direito de Coimbra torna-se Presidente do Conselho de Ministros.
a aprovação, em 1933, da Constituição Política da república Portuguesa marca o início do
regime do estado Novo.
À semelhança do que sucedeu noutros regimes autoritários da europa, como o de Benito
Mussolini, em Itália, o de Francisco Franco, em espanha, ou o de adolf Hitler, na alemanha,
este sistema político de moldes fascistas centrava-se na figura do líder, razão pela qual Salazar
antónio de Oliveira Salazar. era encarado como «salvador da pátria». além disso, apoiava-se num modelo de partido
único: a União Nacional, que passou a designar-se, em 1970, e já sob o comando de Marcelo
Caetano, acção Nacional Popular.
Muito embora se realizassem eleições, estas eram, à partida, comprometidas pela perseguição
movida aos partidos da oposição. O Partido Comunista Português, por exemplo, foi obrigado
a sobreviver na clandestinidade. além disso, os resultados eleitorais eram sempre
manipulados, de modo a dar a vitória ao candidato ou à lista apoiados pela União Nacional.
O caso mais flagrante sucedeu nas eleições presidenciais de 1958, em que Humberto
Delgado, que ficou conhecido como «o general sem medo», se candidatou à Presidência da
república como opositor a américo tomás, que era apoiado pela União Nacional. Quando
interrogado sobre que medidas tomaria em relação a Salazar caso fosse eleito, Humberto
Delgado não hesitou em proferir uma frase que se tornou histórica: «Obviamente, demito-o.»
apesar da enorme adesão popular que a sua candidatura gerou, visível nas manifestações
públicas de apoio de que foi alvo, Humberto Delgado acabou, como seria de esperar,
por ser derrotado num processo eleitoral fraudulento.
O general exilou-se, primeiro no Brasil e depois na argélia, nunca desistindo, no entanto,
de lutar contra a ditadura. em 1965, foi atraído pela PIDe a uma emboscada em espanha,
onde foi assassinado, juntamente com a sua secretária. O Governo português negou,
na época, qualquer envolvimento na sua morte.
a PIDe (Polícia Internacional de Defesa do estado) foi um dos pilares fundamentais nos
quais se apoiou o regime do estado Novo. Foi criada em 1945, sucedendo à PVDe
(Polícia de Vigilância e de Defesa do estado), mas mantendo, no geral, os seus objetivos
e métodos violentos de atuação. a função desta polícia política era reprimir qualquer
oposição ao regime do estado Novo. Para tal, recorria à tortura e à prisão, tendo ficado
célebres as prisões de Caxias e de Peniche. alguns presos políticos foram enviados para
o Campo do tarrafal, em Cabo Verde, onde muitos acabavam por morrer em virtude
Sede da PIDe em Lisboa. das terríveis condições de detenção ou das pesadas punições a que eram submetidos.

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a repressão do estado Novo era igualmente exercida através da Censura. Os programas
de rádio, de televisão e as publicações periódicas eram sujeitos a censura prévia.
Das últimas eram eliminados, com o famoso «lápis azul», todos os elementos que se
considerava porem em causa o regime. Quanto aos livros, eram, por vezes, apreendidos
depois de publicados. Com o mesmo intuito, muitas peças de teatro foram impedidas
de serem levadas à cena.
Como é evidente, a produção escrita de muitos autores era limitada pela consciência
de que as suas obras poderiam ser posteriormente apreendidas. Foi isto o que sucedeu,
por exemplo, com o romance Quando os Lobos Uivam (1958), de aquilino ribeiro,
em virtude do qual o escritor foi acusado de pôr em causa as instituições de poder
do regime.
O ideais colonialistas proclamados pelo estado Novo levaram Salazar a recusar-se
terminantemente a colocar a hipótese de conceder a independência às colónias. texto cortado pela Censura.
Por este motivo, começou, em 1961, a guerra colonial, confronto que se desenrolou
em angola, na Guiné e em Moçambique, prolongando-se até à revolução do 25 de abril
de 1974.
a guerra colonial teve uma importância crucial no percurso histórico do nosso país, na
medida em que era um dos principais motivos de descontentamento dos militares, tendo
sido uma das razões que os incentivou a fazerem uma revolução. além disso, deixou
marcas profundas na nossa literatura, em muitos casos, apenas materializadas depois
do 25 de abril, por causa da ação repressiva da Censura. É o caso, por exemplo,
dos romances Os Cus de Judas, de antónio Lobo antunes, e de Autópsia de Um Mar
de Ruínas, de João de Melo.

Tendências gerais da literatura


apesar da repressão exercida pelo estado Novo, o período anterior a 1974 foi muito
profícuo para a literatura portuguesa, tendo sido marcado pelo aparecimento de muitos
autores que se vieram a consagrar.
Como sucede, em geral, na literatura contemporânea, neste período, a maioria dos
autores seguiu um percurso individualizado, não se submetendo a princípios ditados
por um grupo ou corrente.
apesar disto, há que realçar a importância de um movimento surgido nos anos 30
em Portugal: o Neorrealismo. Os seus ideais de defesa dos oprimidos e de denúncia
de problemas da sociedade viriam a influenciar um grande número de escritores,
mesmo que não diretamente associados a este movimento, como é o caso de José
rodrigues Miguéis.
No entanto, o compromisso social da literatura neorrealista gerou polémica por parte
de autores que defendiam a autonomia total da arte. Foi o caso, por exemplo, dos
escritores ligados à Presença (1927-1940).
Na sequência dos princípios promulgados por esta revista, surgirão publicações como
a Távola Redonda (1950-1954) e a Árvore (1951-1953), que defendem, precisamente,
a independência da literatura em relação a qualquer tipo de compromissos ideológicos Soldado português
ou sociais. esta defesa da autonomia da literatura é levada ao extremo por grupos como na guerra colonial.
Poesia 61 ou Poesia Experimental, que se propunham trabalhar a linguagem como objeto
artístico com valor próprio.
É importante destacar ainda o Surrealismo, movimento que se afirma definitivamente
no nosso país nos anos 40 e que se caracterizou pela tentativa de criação de uma nova
realidade, através da valorização dos processos de livre associação, do sonho
e do inconsciente.
apesar da diversidade de caminhos seguidos pelos vários autores e das suas diferentes
opções estéticas, muitos textos literários revelam uma consciência aguda dos problemas
com que o nosso país se debateu durante a ditadura, tendo contribuído, de forma
decisiva, para incentivar a reflexão crítica sobre o regime.

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Geração da Presença
a geração da Presença ficou também conhecida como
«Segundo Modernismo», na medida em que contribuiu
decisivamente para a difusão da obra dos autores
da revista Orpheu.

A revista Presença
O primeiro volume da revista Presença foi publicado em março de 1927, em Coimbra.
Da sua direção faziam parte Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e José régio,
tendo sido este último o único a desempenhar esta função até ao fim. Foram publicados
cinquenta e seis números da revista até à sua extinção, em 1940.
De entre os seus colaboradores, destacam-se adolfo Correia da rocha, mais conhecido
pelo pseudónimo de Miguel torga, edmundo de Bettencourt, Vitorino Nemésio, João
Gaspar Simões, antónio Botto, Irene Lisboa, adolfo Casais Monteiro, Mário Dionísio
e os brasileiros Cecília Meireles e Manuel Bandeira.
Como é anunciado no seu subtítulo (Folha de Arte e Crítica), a par da publicação de
textos literários, esta revista privilegiava a crítica textual. Foi neste âmbito que teve
um contributo fundamental na divulgação da obra dos principais autores do Primeiro
Capa da revista Presença. Modernismo: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e almada Negreiros.
O seu programa estético-literário é apresentado por José régio no
primeiro número, num artigo intitulado «Literatura viva». De acordo
com este autor, a literatura deveria libertar-se do academismo e do
exagerado gosto pela retórica em que se encontrava mergulhada,
através da valorização da originalidade e da sinceridade. O grupo
da Presença valorizava assim o movimento introspetivo no processo
de criação literária, na medida em que, através dele, seria possível
ao escritor desvendar aquilo que estava oculto no seu inconsciente
e, desta forma, expressar-se com o máximo de autenticidade.
em 1930, três colaboradores da Presença afastar-se-ão do grupo:
adolfo rocha, edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca,
substituído na direção por adolfo Casais Monteiro. estes afirmam,
Casa-Museu José régio, em carta aberta publicada nesse ano, que, apesar de a Presença
em Vila do Conde. fazer a apologia de liberdade, havia, na revista, uma certa limitação ao exercício
da autonomia. Na verdade, é possível que este afastamento se tenha ficado a dever
a incompatibilidades pessoais.
apesar das polémicas em que esteve envolvida, a Presença teve um papel fundamental
na divulgação da literatura e da arte em Portugal. Com efeito, além de ter contribuído
decisivamente para a consagração dos elementos do Orpheu, deu a conhecer,
em Portugal, a obra de autores estrangeiros, como andré Gide, Paul Valéry e Marcel
Proust. teve ainda relevo na valorização da pintura, da música e do cinema da época.

José Régio
(1901-1969)
Um dos autores que mais se destacaram no grupo da Presença foi José régio.
De seu verdadeiro nome José Maria dos reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, mas
José régio. viveu grande parte da sua vida em Portalegre. Cursou Filologia românica em Coimbra,

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licenciando-se, em 1925, com uma tese intitulada As Correntes e as Individualidades
na Moderna Poesia Portuguesa, que foi publicada em edição de autor. esta obra foi LITERATURA E ARTE

reeditada em 1941, com o título de Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa,


e teve, na época, grande importância no estudo da literatura. em 1928, o autor inicia
José Régio e a música
a sua carreira de docente, começando por lecionar no Porto. No ano seguinte,
Vários poemas de José
é colocado no Liceu Mouzinho da Silveira, em Portalegre, onde dará aulas até
Régio foram musicados,
à sua reforma, em 1962.
como é o caso de «Fado
em 1926, José régio publica a sua primeira obra poética, Poemas de Deus e do Diabo, Português», interpretado
na qual são já visíveis as linhas temáticas que hão-de marcar toda a sua produção não por Amália Rodrigues
só a nível da poesia, mas também da ficção, do teatro e até do ensaio: a dificuldade e, posteriormente,
em concretizar a sinceridade que promulgava na Presença, associada a uma tentação por Dulce Pontes.
contínua de se ocultar; o dilaceramento associado ao conflito interior; a apologia da
liberdade e da rebelião, que se manifestam muitas vezes através da revolta contra Deus;
a impossibilidade de realização plena das aspirações do Homem; a fragilidade do amor
e da amizade; a incomunicabilidade e a solidão.
Biografia, o seu segundo livro de poemas, é editado em 1929. Cinco anos depois,
em 1934, sai o seu primeiro romance, intitulado Jogo da Cabra-Cega, proibido pela
Censura até 1963. em 1936, publica o seu terceiro livro de poemas: As Encruzilhadas
de Deus.
a par de uma vasta obra a nível da poesia e da ficção, José régio escreveu ainda textos
dramáticos, como Jacob e o Anjo (1937) e Três Peças em Um Acto (1957). De destacar, ainda,
a sua importante produção no âmbito da crítica textual, que se iniciou, após
a publicação da tese de licenciatura, com o ensaio António Botto e o Amor (1937-38).
Postumamente, foram editados textos de caráter autobiográfico e diarístico: Confissões
Dum Homem Religioso (1971) e Páginas do Diário Íntimo (1984).

Miguel Torga
(1907-1995)
Muito embora Miguel torga se tivesse afastado do grupo da Presença em 1930, este inicia
estátua de Miguel torga
a sua produção poética no seio do grupo, ainda com o seu verdadeiro nome, adolfo (Parque dos Poetas, Oeiras).
rocha.
De origens transmontanas humildes, começa por trabalhar como serviçal numa casa.
Passa depois um curto período no seminário, em Lamego, partindo, em seguida, SABIA QUE…
para o Brasil, onde vive durante cinco anos na companhia de um tio, em Minas Gerais.
regressa a Portugal e matricula-se na Universidade de Coimbra, onde se forma
Os nomes de Torga
em Medicina.
Com o seu pseudónimo,
a sua vasta obra reparte-se pela poesia, pela prosa ficcional e autobiográfica, pelo Miguel Torga homenageia
texto dramático e pelo ensaio. entre a sua produção poética, contam-se títulos como Miguel de Cervantes
O Outro Livro de Job (1936), Libertação (1944), Odes (1946), Nihil Sibi (1948), Cântico e Miguel de Unamuno,
do Homem (1950), Orfeu Rebelde (1958) e Poemas Ibéricos (1965). também no escritores ilustres da
Diário (1941-93) é possível encontrar alguns dos seus poemas mais importantes. literatura espanhola, assim
Miguel torga publicou, em vida, uma antologia de poesia, intitulada Antologia poética, como a torga, arbusto
em 1981. Mais recentemente, foi editado um volume no qual se encontra reunida toda da montanha, que tem
a sua poesia: Poesia Completa (2000). a nível da prosa, salientam-se as coletâneas a capacidade de
de contos Bichos (1940), Contos da Montanha (1941) e Novos Contos da Montanha (1944). sobreviver e florir em
condições adversas.
Miguel torga é autor de uma obra de caráter autobiográfico, intitulada A Criação
Como médico
do Mundo (1937-81). a nível dramático, destacam-se as peças Terra Firme e Mar
otorrinolaringologista,
(ambas de 1941). o escritor manteve
É possível apontar como principais linhas temáticas da sua poesia: a exaltação o nome Adolfo Rocha,
da liberdade absoluta do Homem, que deve levá-lo a erguer-se contra tudo aquilo tendo-se tornado conhecido
que lhe é imposto, ainda que isto implique revoltar-se contra Deus; a valorização o seu consultório, onde
do sonho e da luta para o alcançar, um meio de dignificação do Homem; a revolta contra trabalhava, na cidade
as injustiças; a reflexão sobre o poeta e a poesia; a introspeção e a comunhão com de Coimbra.
a Natureza.

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Prosa até 1974
No período que antecede a revolução do 25 de abril,
destaca-se, a nível da prosa, a importância do Neorrealismo.
Contudo, tal como sucede com a poesia, a tendência dominante
é para que cada escritor siga um percurso individual e original
de criação.

Seara Nova
a revista Seara Nova foi publicada pela primeira vez em Lisboa, em outubro de 1921.
Faziam parte da sua direção aquilino ribeiro, augusto Casimiro, Faria de Vasconcelos,
Ferreira de Macedo, Francisco antónio Correia, Jaime Cortesão, José de azeredo Perdigão,
Câmara reys, raul Brandão e raul Proença. Mais tarde, desempenharam também estas
funções antónio Sérgio, augusto abelaira, rodrigues Lapa, entre outros.
Os objetivos desta publicação são apresentados no editorial do primeiro volume:
o grupo de intelectuais que participava na Seara Nova assumia-se como independente
de partidos políticos, mas não alheado da política, pretendendo refletir criticamente
sobre o nosso país e assumir-se como uma voz interventiva, com o objetivo de renovar
a sociedade.
a par de artigos sobre temáticas diversas, a Seara Nova teve um papel fundamental
Capa da revista Seara Nova. no campo da literatura não apenas através da publicação de textos e de ensaios sobre
autores portugueses e estrangeiros na revista, mas também de uma importante
atividade editorial.

Aquilino Ribeiro
(1885-1963)
apesar de ter estudado em colégios religiosos e de ter ingressado no seminário
de Beja, aquilino ribeiro, oriundo do distrito de Viseu, não envereda pela vida eclesiástica.
em 1906, abandona o seminário, indo para Lisboa, onde adere aos ideais republicanos.
É nesse contexto que se dá o rebentamento de explosivos no seu quarto, quando
dois dos seus companheiros os manipulavam. ambos morrem e aquilino ribeiro
é preso na esquadra do Caminho Novo, de onde se evade. Decide então partir
para o exílio, fixando-se em Paris. Começa a estudar na Sorbonne e publica o seu
primeiro livro de contos: O Jardim das Tormentas (1913).
regressa definitivamente a Portugal, após o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914.
apesar de não ter concluído a licenciatura, leciona no Liceu Camões. em 1919, passa
a desempenhar as funções de segundo-bibliotecário na Biblioteca Nacional. em 1927,
é acusado de participar na revolução de Fevereiro, fugindo para Paris. No entanto,
regressa clandestinamente. Participa na conspiração militar de Pinhel contra a ditadura
e é novamente preso, conseguindo evadir-se de forma verdadeiramente extraordinária:
aquilino ribeiro.
serra as grades do cárcere, enquanto uma grafonola toca, para abafar o som. Volta
para Paris, mudando-se, em 1931, para a Galiza. regressa, novamente, a Portugal, onde
vive ilegalmente até ser amnistiado. em 1956, torna-se o primeiro presidente
da associação Portuguesa de escritores.
esta vida rica e aventurosa deixou marcas na sua vastíssima obra, composta por mais
de sessenta volumes, dos quais se destacam: Terras do Demo (1919), Andam Faunos
pelos Bosques (1926), O Malhadinhas (inserto pela primeira vez em Estrada de Santiago,
de 1922, e depois ampliado), S. Banaboião Anacoreta e Mártir (1937), A Casa Grande

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de Romarigães (1957) e Quando os Lobos Uivam (1958). além de romances, este autor
escreveu também contos (como os que constam na coletânea O Servo de Deus,
de 1940), estudos históricos e geográficos (como Geografia Sentimental, de 1951),
obras de literatura infantil (das quais se destaca O Romance da Raposa, de 1959), teatro
e um volume incompleto de memórias publicado postumamente (Um Escritor
Confessa-se, de 1974).
Pode considerar-se que na ficção de aquilino ribeiro se entrecruzam duas vertentes:
uma de contornos mais positivos, associada a um tom picaresco, à exaltação da vida,
dos sentidos, do amor e da Natureza; e a outra de contornos mais decetivos, ligada
à consciência da opressão exercida pelos mais fortes em relação aos mais fracos.
Com o regime do estado Novo, este lado pessimista do autor vai-se agravando. Com efeito,
o seu romance Quando os Lobos Uivam valer-lhe-á um processo em tribunal, por defender
o direito dos aldeãos usufruírem dos terrenos baldios, quando o estado tinha intenção
de os reflorestar. este autor realizou um trabalho notável no que respeita à inovação
da linguagem: a par de uma grande criatividade a nível lexical e sintático, a sua obra
distingue-se também pela inclusão de regionalismos, do calão urbano e de estrangeirismos.

LITERATURA E ARTE

Adaptações para televisão da obra de Aquilino Ribeiro


Em 1988, O Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro, deu origem a uma série de desenhos
animados, realizada por Artur Correia e Ricardo Neto.
Em 2006, a RTP exibiu a série Quando os Lobos Uivam, adaptação feita por Francisco Moita
Flores do romance homónimo.

O Neorrealismo na prosa
apesar de as principais características do Neorrealismo terem sido já apontadas
a propósito da poesia, os objetivos deste movimento coadunavam-se sobretudo com
a ficção. assim, esta nova referência tem como fim delinear as relações do Neorrealismo
com a prosa.
Como foi referido, o Neorrealismo foi um movimento, impulsionado por ideais marxistas,
que se desenvolveu entre os anos 30 e 50 em Portugal. a publicação de Gaibéus, de alves
redol, em 1939, é considerada um marco decisivo na introdução do Neorrealismo
no nosso país. a epígrafe inicial deste romance ilustra claramente os objetivos deste
movimento: «este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte.
Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no ribatejo. Depois disso,
será o que os outros entenderem.»
Capa de Gaibéus, de alves redol.
através destas palavras, é possível verificar que o Neorrealismo dava primazia, acima
de tudo, ao conteúdo da obra literária, na medida em que este permitiria divulgar os
seus pressupostos ideológicos, com recurso ao retrato da realidade. Para atingir os
seus objetivos, a ação da maioria das obras neorrealistas ocorre em ambiente rural,
principalmente no latifúndio, de modo a realçar a exploração dos trabalhadores.
a nível da ficção, destacaram-se, além de alves redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel
da Fonseca, Carlos de Oliveira e Vergílio Ferreira. este último autor, depois de publicar
obras de cariz neorrealista, os romances Onde Tudo Foi Morrendo (1944) e Vagão «J» (1946),
afasta-se do movimento. Quanto a Carlos de Oliveira, apesar de aderir aos pressupostos
ideológicos do Neorrealismo, nunca abdica da individualidade da sua obra, que
é claramente marcada, entre outros aspetos, por um exigentíssimo trabalho a nível
formal. até o próprio alves redol, nas suas últimas publicações, nomeadamente em
Barranco dos Cegos (1962), considerada a sua obra-prima, evidencia claramente uma
preocupação com a dimensão estética e técnica da narrativa.

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Alves Redol
(1911-1969)
alves redol realizou o curso comercial. Com apenas 16 anos, com a finalidade de ajudar
a família, parte para angola, de onde regressa em 1931. tendo iniciado a sua colaboração
na imprensa de Vila Franca de Xira, na sua terra natal, começa, em 1932, a participar
na imprensa lisboeta. algum tempo depois, filia-se no Partido Comunista.
a primeira obra que publica é um estudo etnográfico com o título Glória. Uma Aldeia
do Ribatejo (1938). em 1939, sai Gaibéus, ao qual se seguem Marés (1941), Avieiros (1942)
e Fanga (1943). as preocupações sociais reveladas ao longo de toda a sua obra têm
como pano de fundo principal a realidade ribatejana. No entanto, o escritor focaliza-se
também no região do Douro, como é possível verificar através do romance Porto
Manso (1946) e do Ciclo Port-Wine, em três volumes (1949-53).
a obra de alves redol centra-se na denúncia da exploração dos trabalhadores e das
injustiças sociais. Nas suas últimas obras, nomeadamente em Barranco de Cegos (1962),
considerado o seu melhor livro, é visível uma crescente preocupação com a dimensão
estética do texto e um aprofundamento da dimensão psicológica das personagens.
além de romances e de estudos de caráter social e etnográfico, alves redol publicou
também contos, de entre os quais se destaca Constantino, Guardador de Vacas e de
Sonhos, de 1962, teatro e obras de literatura infantil.

Carlos de Oliveira
(1921-1981)
Carlos de Oliveira foi um dos autores mais importantes do Neorrealismo. a sua relevância
a nível da poesia é igualada pelo seu trabalho na prosa. Na verdade, os seus romances são
considerados emblemáticos quando se fala de Neorrealismo, como um exemplo
de destaque na expressão deste movimento em Portugal.
as suas duas primeiras obras enquadram-se já no contexto do Neorrealismo: Casa na
Duna (1943) e Alcateia (1944). Segue-se-lhes o romance Pequenos Burgueses, publicado
em 1948. em Uma Abelha na Chuva (1953), apesar de assistirmos à degradação do mundo
burguês da Gândara, é, no entanto, visível um afastamento deste movimento, entre
outros aspetos, pelo aprofundamento da dimensão psicológica das personagens.
a este nível, destaca-se a figura de D. Maria dos Prazeres, na qual se conjugam a solidão
e a revolta reprimida inerentes a uma vida profundamente infeliz.
À exceção de Alcateia, que será renegado por Carlos de Oliveira, muito embora
tenha sido também reeditado com alterações em 1945, quase todos os outros
romances voltarão a ser publicados com alterações. este processo de aperfeiçoamento
contínuo, no qual o autor envolve também a sua obra poética, é revelador de uma
exigência estética que o afasta do Neorrealismo. em 1978, é publicado o seu último
romance, com o título Finisterra. Paisagem e Povoamento, no qual a paisagem da Gândara,
omnipresente tanto na sua obra ficcional como poética, perde substância e se torna um
meio de refletir sobre os problemas da representação da realidade.
De referir ainda a obra O Aprendiz de Feiticeiro (1971, com edição corrigida em 1979),
na qual se reúnem textos de diferentes géneros, como, por exemplo, de reflexão sobre
a escrita ou de caráter autobiográfico.

LITERATURA E ARTE

Uma Abelha na Chuva


Cena do filme Uma Abelha
na Chuva, de Fernando Lopes Em 1972, Fernando Lopes apresentou uma leitura do romance Uma Abelha na Chuva,
(Cinemateca Portuguesa). de Carlos de Oliveira, num filme com o mesmo nome.

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Manuel da Fonseca
(1911-1993)
apesar de ter nascido no alentejo, Manuel da Fonseca fixou-se em Lisboa, na sua
juventude. Depois da conclusão do ensino secundário, inscreve-se na escola de
Belas-artes, que frequentou durante alguns anos. exerceu profissões diversificadas,
na área do comércio e da indústria, entre outras, e foi desenvolvendo, ao longo dos anos,
a sua atividade literária. Membro do Partido Comunista Português, a sua obra foi marcada
pelos ideais do Neorrealismo, centrando-se, em grande parte, no espaço alentejano e na
exploração que os mais humildes sofriam nesta região.
Manuel da Fonseca dedica-se à escrita de poesia de cariz neorrealista (Rosa dos Ventos,
de 1940, e Planície, de 1941), mas é na prosa, como romancista e, sobretudo, como
contista que se distingue, através de obras como Aldeia Nova, de 1942, O Fogo e as Cinzas,
de 1951, Um Anjo no Trapézio, de 1968, e Tempo de Solidão, de 1973. Manuel da Fonseca
também publicou crónicas.
Manuel da Fonseca.

Vergílio Ferreira
(1916-1996)
Vergílio Ferreira nasceu em Melo, uma aldeia do concelho de Gouveia, próxima
da serra da estrela, espaço que deixará marcas importantes na sua obra. Dos 10 aos 16 anos,
frequentou o Seminário do Fundão, experiência negativa mais tarde ficcionada no
romance Manhã Submersa (1954). Depois de abandonar o seminário, ingressa no Liceu da
Guarda, inscrevendo-se, em seguida, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
onde termina a licenciatura em Filologia Clássica.
torna-se professor e, depois de alguns anos a lecionar em Faro e em Bragança,
é colocado em Évora, onde permanece durante catorze anos. esta época no alentejo
vai ser importante na sua obra. Será Évora o cenário de um dos seus romances mais
emblemáticos: Aparição, de 1959. a paisagem do campo alentejano e a sua ligação com
as personagens estará presente na narrativa. Vergílio Ferreira fixou-se posteriormente
em Lisboa, onde lecionou no Liceu Camões.
Vergílio Ferreira.
Numa fase inicial, as obras deste autor enquadram-se na estética do Neorrealismo,
sobretudo as que se seguiram ao seu volume de estreia: Onde Tudo Foi Morrendo (1944)
e Vagão «J» (1946).
Mais tarde, no entanto, Vergílio Ferreira distancia-se deste movimento, demonstrando
um interesse crescente pela filosofia existencialista e pelo «nouveau roman». esta nova
modalidade de romance pretendia refletir, através da sua própria estrutura, o caos
do mundo contemporâneo, pondo em causa a possibilidade de representação do real.
Quanto ao existencialismo, manifesta-se, sobretudo, a partir de Aparição.
Nesta obra, o protagonista, no sentido do que é teorizado por esta corrente filosófica,
é confrontado com a «morte de Deus», proclamada por Nieztsche, assumindo-se como
indivíduo totalmente livre e, consequentemente, como ser inteiramente responsável
pelos seus atos. a necessidade de exercer adequadamente este poder leva-o a tentar
descobrir quem é, processo de autognose que lhe é proporcionado através de uma série de
aparições; daí o título da obra. O confronto com o mistério maravilhoso que habita dentro
de si leva-o a aperceber-se do valor intrínseco de cada ser, do caráter supremo da vida e, por
conseguinte, do absurdo da morte, que é representado pela personagem de Cristina.
a arte, materializada na música, assume neste romance um papel fundamental,
na medida em que, na ausência de Deus, é ela que permite ao Homem reencontrar,
de alguma forma, uma ligação ao transcendente e à eternidade.
a problematização da condição humana, da vida, da morte e da arte prolongar-e-á nos
romances que se seguem, na medida em que a obra deste autor é feita de uma interrogação
constante centrada nestes temas. esta necessidade de questionar permanentemente
a realidade levou o próprio Vergílio Ferreira a utilizar a designação «romance-ensaio».

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De entre a vasta produção romanesca deste autor é possível destacar, além dos títulos já
referidos: Cântico Final (1960), Nítido Nulo (1971), Signo Sinal (1979), Para sempre (1983),
Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na Tua Face (1993). além de romancista,
Vergílio Ferreira distinguiu-se como contista (Face Sangrenta, de 1953, Contos, de 1976,
e Uma Esplanada sobre o Mar, de 1986), diarista (Conta-Corrente, obra de nove volumes,
publicada entre 1980 e 1994), e ensaísta (entre outras, Espaço Invisível, obra de cinco
volumes, quatro dos quais publicados entre 1965 e 1987 e o último em 1998).

LITERATURA E ARTE

Manhã Submersa
O romance Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira, foi adaptado ao cinema por Lauro António,
tendo o filme estreado em 1980.
O próprio Vergílio Ferreira participou no filme como ator, desempenhando o papel
de reitor do seminário.

José Rodrigues Miguéis


(1901-1980)
tendo-se licenciado em Direito em Lisboa e, posteriormente, em Ciências Pedagógicas
em Bruxelas, José rodrigues Miguéis exerceu as funções de advogado, delegado
do Ministério Público e professor do ensino Secundário. em 1935, em virtude da sua
oposição ao regime do estado Novo, foi viver para os estados Unidos da américa,
LITERATURA E ARTE onde viria a desempenhar as funções de editor nas Selecções do Reader’s Digest.
apesar de ter sido contemporâneo dos movimentos da Presença e do Neorrealismo,
O Milagre segundo este autor mantém-se independente destes grupos. apesar disto, são, no entanto,
Salomé visíveis na sua obra algumas influências dos pressupostos ideológicos do Neorrealismo,
Em 2004, Mário Barroso nomeadamente no romance O Pão não Cai do Céu (1981), editado postumamente,
realizou o filme O Milagre mas escrito no exílio entre 1943 e 1975.
segundo Salomé, baseado De entre a sua produção romanesca, destacam-se: A Escola do Paraíso (1960),
no romance homónimo
obra de contornos semelhantes aos do romance de formação, em que é evocada
de José Rodrigues Miguéis.
a infância do protagonista em Lisboa, no período desde o fim da Monarquia
até à implantação da república; e O Milagre segundo Salomé (1975), no qual
reencontramos Gabriel, o protagonista do romance anterior, e onde é feito um
retrato de Lisboa no período de colapso dos ideais republicados. a nível da novela
e do conto, contam-se, entre outras, as obras Páscoa Feliz (1932) e Léah e Outras
Histórias (1958).

José Cardoso Pires


(1925-1998)
apesar de ter nascido em São João do Peso, no distrito de Castelo Branco,
José Cardoso Pires mudou-se com os pais, ainda muito jovem, para Lisboa. Na capital,
frequentou o Liceu Camões, tendo mais tarde ingressado no curso de Matemáticas
Superiores na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que não concluiu.
a par de uma série de trabalhos esporádicos, trabalhou como jornalista, tendo sido
diretor da revista Almanaque.
a primeira obra que publica é uma coletânea de contos, intitulada Os Caminheiros
e Outros Contos (1949). Segue-se-lhe, em 1952, outra compilação de contos: Histórias
de Amor. No entanto, apesar de ter iniciado a sua atividade literária como contista, é com
além da prosa, José rodrigues
Miguéis escreveu a peça de os romances que se virá a afirmar no panorama da literatura portuguesa. O primeiro a ser
teatro O Passageiro do Expresso. publicado é O Anjo Ancorado (1958), sendo seguido de O Hóspede de Job (1963).

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O Delfim, considerado a sua obra-prima, foi publicado em 1968. Neste romance,
o narrador procura investigar o mistério da morte de Maria das Mercês, esposa do
engenheiro tomás Manuel, o «delfim» a que se refere o título, homem poderoso,
que não passa de um boémio, marcado por frustrações profundas, e do seu criado,
Domingos. ao longo da narrativa, a investigação é feita através do cruzamento
de diferentes vozes, tessitura em que os diferentes pontos de vista se entrelaçam, sem
que seja dado mais relevo a qualquer um. Durante este processo de indagação, mostra-se
uma hierarquia social aparentemente sólida, que, na realidade, está minada, e prestes
a sofrer alterações irreversíveis. Percebe-se, assim, que o romance não se esgota
no mistério e na investigação policial.
a este título, segue-se, em 1982, Balada da Praia dos Cães. a obra baseia-se em factos
verídicos: o assassínio, na praia do Guincho, de um capitão do exército português
que se opunha ao regime do estado Novo. assistimos novamente a uma investigação,
desta feita conduzida pelo inspetor da polícia elias Santana. Mais uma vez, num discurso José Cardoso Pires.
rico que cruza diferentes domínios do pensamento, a obra não se esgota no inquérito
policial ou nos problemas políticos da época. em 1987, é publicado Alexandra Alpha,
obra marcada pela intertextualidade, em que, a par de uma reflexão sobre a literatura,
o cinema e a música na sociedade contemporânea, é apresentado um retrato, muitas
vezes investido de ironia, da sociedade portuguesa do pós-25 de abril.
além dos volumes de contos já citados, este autor publica ainda O Burro em Pé (1979)
e A República dos Corvos (1988). José Cardoso Pires dedicou-se também à escrita
cronística (A Cavalo no Diabo, 1994) e ao teatro (O Render dos Heróis, de 1960,
e Corpo-Delito na Sala de Espelhos, de 1980). editou ainda, em 1960, um ensaio intitulado
Cartilha do Marialva, obra caricatural sobre a sociedade portuguesa da época do estado
Novo, e, em 1972, Dinossauro Excelentíssimo, obra que qualificou como «fábula», na qual
é feita uma violenta sátira à figura de Salazar.
De entre as suas últimas obras, destaca-se De Profundis, Valsa Lenta (1997), um relato
da sua experiência aquando de um acidente vascular cerebral.
Como característica mais importante da sua obra, salienta-se a reflexão sobre Portugal
e a sua história, centrada na denúncia de situações de injustiça e de opressão. embora
esta preocupação ética o aproxime do Neorrealismo, José Cardoso Pires ultrapassou
largamente este movimento: pelas inovações a nível da escrita que a sua obra evidencia,
como a influência de linguagens oriundas de outras formas de arte; pelo estilo
profundamente sóbrio, devedor de influências anglo-saxónicas, como Hemingway,
e, em certa medida, da escrita jornalística; por uma enorme capacidade de análise
psicológica das personagens; e por um grande sentido de humor, visível através de um
discurso muitas vezes irónico ou mesmo profundamente satírico.

LITERATURA E ARTE

A obra de José Cardoso Pires e o cinema


Em 1987, José Fonseca e Costa realizou o filme Balada da Praia dos Cães, baseado no
romance homónimo de José Cardoso Pires.
Em 2002, foi a vez de O Delfim passar ao cinema, num filme realizado por Fernando Lopes,
com argumento de Vasco Pulido Valente.

Agustina Bessa-Luís
(1922)
agustina Bessa-Luís nasceu no seio de uma família de proprietários rurais oriundos
da zona de entre Douro e Minho, espaço e realidade que deixariam marcas importantes
nos seus textos.

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autora de uma vasta obra de ficção, na qual se incluem cerca de cinquenta títulos,
esta autora destaca-se pela originalidade de um percurso independente de escolas
ou movimentos da época, embora não alheio à tradição literária, nomeadamente
às influências de Camilo Castelo Branco e de raul Brandão.
agustina estreia-se com a publicação, em 1948, de Mundo Fechado, romance ao qual
se segue Os Super-Homens (1950). Publica, posteriormente, uma coletânea de contos
intitulada Contos Impopulares (cinco volumes, 1951-1953). em 1954, consagra-se
definitivamente como escritora com A Sibila. Neste, através de Quina, personagem
evocada por Germa, sua sobrinha, é apresentado um retrato do universo rural da região
de entre Douro e Minho. este romance destaca-se pela profunda análise psicológica
que é feita da protagonista, pela carga simbólica e pela expressão de uma linguagem
narrativa que distingue a escrita de agustina.
em obras posteriores, é visível uma vertente ligada à reflexão sobre a revolução
agustina Bessa-Luís. do 25 de abril e as suas consequências na sociedade portuguesa: Crónica do Cruzado Osb,
de 1976, e As Fúrias, de 1977. Paralelamente, há o interesse pelo romance histórico
e biográfico: por exemplo, em Santo António, de 1973, Fanny Owen, de 1979, Sebastião
José, de 1981, Os Meninos de Ouro e Adivinhas de Pedro e Inês, ambos de 1983.
Centrando-se, sobretudo, na realidade do Norte do País, a escritora tem publicado
com regularidade, datando a sua última obra de 2006: A Ronda da Noite. este título
é inspirado no nome de um quadro de rembrandt com o mesmo nome. a obra de arte
vai ser uma presença constante ao longo de todo o texto, incidindo-se paralelamente
na história de uma família.
a par de romances e de contos, agustina Bessa-Luís publicou também peças de teatro,
crónicas e memórias.
Muitos dos seus textos centram-se nos ambientes rurais minhotos, nos quais se
evidenciam as personagens femininas. Os ambientes, apesar de rurais, funcionam como
espaços de reflexão sobre as relações humanas em geral e sobre os sentimentos intensos
com que homens e mulheres se debatem interiormente, o que eleva as suas obras da
condição de regionalistas à de obras universais. a par da caracterização social e humana
deste espaço, é também notório, como foi referido, um interesse pela história e pela
cultura portuguesas, traduzido em reflexões sobre acontecimentos históricos ou sobre
figuras de destaque do nosso país.
a nível da estruturação da narrativa, salienta-se a multiplicidade de fios narrativos,
que cria um discurso aparentemente caótico, mas, na realidade, globalmente coerente
e harmonioso.

LITERATURA E ARTE

O cinema de Manoel de Oliveira e as obras


de Agustina Bessa-Luís
O realizador Manoel de Oliveira tem sido responsável
pela adaptação de obras de Agustina Bessa-Luís
ao cinema. Em 1981, Fanny Owen deu origem ao
filme Francisca. Em 1993, realiza Vale Abraão, a partir
do romance homónimo. O romance As Terras do Risco
inspirou o filme O Convento (1995). Em 1998, o conto
«A mãe de um rio» deu origem ao filme Inquietude.
O romance Jóia de Família esteve na base do filme
O Princípio da Incerteza (2002). Em 2005, estreou
Espelho Mágico, a partir do romance A Alma
dos Ricos.
Agustina Bessa-Luís escreveu também os diálogos
dos filmes Visita ou Memória e Confissões (1982) Cartaz do filme Vale Abraão, de Manoel
e Party (1996). de Oliveira (Madragoa Filmes).

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Maria Velho da Costa
(1938)
Licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
Maria Velho da Costa iniciou-se na escrita com a publicação, em 1966, de uma coletânea
de contos intitulada Lugar Comum, na qual é visível uma certa influência de agustina
Bessa-Luís. Nesta, está já patente um apurado trabalho da linguagem, marcado pelo
experimentalismo, que se prolongará ao longo da sua obra.
em 1969, sai o seu primeiro romance, com o título Maina Mendes, ao qual ficou a dever
a sua consagração no panorama da literatura portuguesa. Nesta obra, acompanhamos
três gerações de uma família, caracterizada pela visível fragilidade das figuras masculinas,
em contraponto com a força, mais ou menos oculta, das figuras femininas. Como pano
de fundo desta história familiar, temos as mudanças que se verificam na sociedade
portuguesa, em particular a decadência de uma determinada burguesia. Maria Velho da Costa.
em 1971, Maria Velho da Costa publica Novas Cartas Portuguesas, obra conjunta com
Maria teresa Horta e Maria Isabel Barreno, que gerou muita polémica pela forma
revolucionária como abordava questões relacionadas com a condição feminina.
esta obra é seguida de dois livros de crónicas: Desescrita, de 1973, obra em que muitos
dos textos podem ser, na realidade, classificados como poemas, e Cravo, de 1976, texto
que reflete sobre a revolução do 25 de abril e sobre o papel do escritor na sociedade.
No ano seguinte, é publicado Casas Pardas, romance a que se segue, em 1983, Lucialima.
De 1988, Missa in Albis centra-se numa relação amorosa entre adolescentes. Nesta obra
são levadas ao extremo as inovações a nível do discurso e da técnica narrativa,
já presentes nos textos anteriores.
a par de romances e de contos, Maria Velho da Costa publicou também ensaios
(como Revolução e Mulheres, de 1976) e poesia (O Mapa Cor-de-Rosa, de 1984).
além das características já apontadas, a obra da escritora destaca-se por uma forte
intertextualidade, visível através do diálogo com textos bíblicos ou com textos de outros
escritores, convertendo-se num aliciante desafio à cultura do leitor.

Nuno Bragança
(1929-1985)
Nuno Bragança deixou uma obra que se destacou no panorama da literatura portuguesa
do século XX, sobretudo pelo romance com que se estreou, em 1969: A Noite e o Riso.
esta obra assemelha-se a um tríptico, na medida em que se estrutura em três partes,
denominadas painéis.
No primeiro painel, é apresentada a evocação de uma infância marcada por ambiente
familiar e escolar opressores, num discurso marcado por uma profunda ironia.
No segundo painel, é traçado o retrato da noite lisboeta, na qual o protagonista
se movimenta. É também narrada a história da sua relação amorosa com Zana bem como
o seu percurso de aprendizagem da escrita. No terceiro painel, acentua-se o caráter
fragmentário da narrativa, já presente, ainda que com menos intensidade, nos painéis
anteriores, instituindo-se estes textos como um enorme desafio ao leitor.
em 1977, é publicado outro romance deste autor: Directa. Neste, como é anunciado Nuno Bragança.
pelo título, o protagonista faz uma direta, tentando conciliar as diversas vertentes
de uma vida demasiadamente preenchida: a necessidade de internar uma esposa
marcada pela alienação, de deixar os filhos em casa dos avós e de levar até à fronteira
um homem em perigo, em virtude da sua oposição ao regime do estado Novo.
apesar de não ser tão inovador como A Noite e o Riso, trata-se, ainda assim, de um
romance muito interessante.
Nuno Bragança publicou ainda Square Tolstoi (1981) e uma coletânea de contos,
intitulada Estação (1984). após a sua morte, foi editada a novela O Fim do Mundo (1990),
obra inacabada.

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Teatro até 1974
Durante o estado Novo, a Censura proibiu a encenação
de muitas peças. apesar disto, muitos dramaturgos
afirmaram-se como vozes de denúncia da opressão do regime.

A evolução do teatro
desde a Presença até 1974
De entre o grupo da Presença, a figura que mais se destacou no teatro e o seu único
teorizador foi José régio. este autor estreou-se como dramaturgo em 1934, com Três
Máscaras. Segue-se-lhe Jacob e o Anjo (1937), Benilde ou a Virgem-Mãe (1947),
El-Rei Sebastião (1951) e A Salvação do Mundo (1954).
No âmbito do Neorrealismo, é de salientar a produção de alves redol, composta pelas
peças: Maria Emília (1946), Forja (de 1948, proibida pela Censura e apenas representada
em 1969, pois nela era simbolicamente apresentada uma reflexão crítica sobre o mundo
da época), O Destino Morreu de repente (1967) e Fronteira Fechada (obra publicada
postumamente, em 1972). Outro nome que se destacou nesta época foi romeu Correia.
Muito embora este autor nunca se tivesse submetido aos princípios do Neorrealismo,
a sua obra revela afinidades com este movimento, pela incidência na temática social
e pelo facto de se centrar em cenários de recorte neorrealista. entre as suas peças
de teatro, contam-se Casaco de Fogo (1956), O Vagabundo das Mãos de Ouro (1960)
e Jangada (1963), entre outras.
a nível do Surrealismo, a obra dramática de maior relevo é assinada por Natália Correia.
Depois de se estrear, em 1957, com o poema dramático O Progresso de Édipo, publica,
em 1964, O Homúnculo, sátira feroz a Salazar. Segue-se-lhe Pécora, em que é feita
uma violenta crítica à Igreja. apesar de escrita em 1966, foi apenas publicada em 1983.
em O Encoberto (1969), é abordado o mito de D. Sebastião e Erros Meus, Má Fortuna,
Amor Ardente (1982) centra-se na figura de Camões.
a partir dos anos 50, e graças à influência de Samuel Beckett, eugène Ionesco, Harold
Pinter e Jean Genet, é divulgado no nosso país o teatro do absurdo, no qual se reflete
sobre o sem-sentido da condição humana. Neste âmbito, destacaram-se os nomes de:
Jaime Salazar Sampaio, com títulos como O Pescador à Linha (1961), Nos Jardins do Alto
Maior (1962), entre outros; Norberto Ávila, cuja obra se encontra reunida com o título
de Teatro Completo (1997-2005); e Helder Prista Monteiro, autor, por exemplo
de A Bengala (1972) e A Caixa (1980). Nesta época, é de salientar também a produção
de Jorge de Sena, cujas peças estão ligadas ao teatro do absurdo, apresentando também
traços de Surrealismo. De entre a sua obra dramática, destaca-se a sua peça de estreia:
Indesejado, António, Rei (1951).
O teatro épico de Brecht terá fortes implicações a nível da produção dramática em
Portugal nos anos 60. este autor considerava que o teatro tinha uma função didática,
devendo levar o público a refletir sobre uma dada situação histórica, que, ao ser colocada
em paralelo com o presente, lhe permitiria posicionar-se criticamente face à sociedade
do seu tempo. Para que o espectador mantivesse esta atitude crítica, era necessário
impedir que ele criasse qualquer tipo de empatia com as personagens, o que passava
pelo recurso a mecanismos que provocassem o seu distanciamento da ação.
estátua de Natália Correia O Render dos Heróis (1960), de José Cardoso Pires, foi uma obra decisiva na introdução
(Parque dos Poetas, Oeiras). do teatro épico em Portugal. a ação, centrada na revolta da Maria da Fonte, ocorrida

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em 1846 contra a repressão exercida por Costa Cabral, encontra um paralelo fácil com
a opressão em que o país vivia sob o regime do estado Novo. PARA SABER MAIS

Brecht terá também grande influência na obra dos dois autores que mais se destacaram
na produção teatral anterior a 1974: Bernardo Santareno e Luís de Sttau Monteiro. Teatro aristotélico
vs teatro épico

Bernardo Santareno O teatro aristotélico, e de


acordo com o que estava
(1920-1980) consignado para a tragédia,
Bernardo Santareno é o pseudónimo de antónio Martinho do rosário. Formado em tem como objetivo
Medicina pela Universidade de Coimbra, iniciou o seu percurso de escritor com uma obra despertar o terror e a
de poesia, intitulada A Morte na Raiz (1954), à qual se seguiram Romances do Mar (1955) piedade nos espectadores.
e Os Olhos da Víbora (1957). No entanto, foi graças à produção dramática que se afirmou Este só é possível pela
criação da expectativa,
na literatura portuguesa contemporânea.
ou seja, ao identificarem-se
as peças de teatro de Bernardo Santareno são, em geral, divididas pela crítica em duas com as personagens
fases: uma primeira, desde a sua estreia, em 1957, até 1962; e uma segunda, a partir da e com as situações em que
publicação de O Judeu, em 1966. estas se debatem,
os espectadores ligam-se
Na primeira fase, incluem-se A Promessa, O Bailarino e A excomungada (textos publicados
à ação e sentem com mais
em 1957 num volume intitulado Teatro), O Lugre e O Crime de Aldeia Velha (ambos de
impacto o desfecho brutal.
1959), O Duelo, O Pecado de João Agonia, Os Anjos e o Sangue, António Marinheiro, O Édipo A finalidade deste tipo de
de Alfama (publicados em 1961) e Anunciação (1962). Nesta fase, a sua obra caracteriza-se teatro é didática
pela influência aristotélica, visível na presença de elementos característicos da tragédia e moralizadora, tendo sido
clássica, que se entrecruzam com o tratamento da problemática sagrado/profano, particularmente cultivado
dos interditos associados à sexualidade, dos conflitos do indíviduo com a sociedade com esta função na Grécia
e da marginalidade. Antiga. O teatro épico
é um teatro intelectual.
a partir de 1966, com a publicação de O Judeu, peça considerada a sua obra-prima,
Ao criar um distanciamento
inicia-se a segunda fase da obra de Bernardo Santareno, na qual é clara a influência do com os dramas das
teatro épico de Brecht. O teatro passa assim a ser visto como um espaço de reflexão personagens, o seu
sobre a sociedade. a intriga de O Judeu, a perseguição feroz movida pela Inquisição ao objetivo é levar
dramaturgo antónio José da Silva, pela sua condição de judeu, que culmina na sua morte, o espectador a uma
tem uma intenção: levar o público a refletir sobre a violenta repressão exercida pelo reflexão e, posteriormente,
regime do estado Novo na época. Nesta fase, além de O Judeu, são publicadas as peças à ação.
O Inferno, A Traição do Padre Martinho (ambos de 1967), Português, Escritor, 45 Anos de Idade
(1974) e a tetralogia Os Marginais e a Revolução (1979).

Luís de Sttau Monteiro


(1926-1993)
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Luís de Sttau
Monteiro distinguir-se-á como dramaturgo principalmente pela sua peça de estreia:
Felizmente Há Luar! (1961). Nesta obra, está patente a influência brechtiana, na medida
em que é selecionado um acontecimento histórico que permitiria ao público refletir
sobre o regime ditatorial em que se vivia: a execução de Gomes Freire de andrade,
em 1817. Na peça, o general Gomes Freire de andrade simboliza os Portugueses que se
revoltam contra a presença inglesa, consequência das invasões francesas, e que desejava
o regresso do rei do Brasil. a figura do general, preso e executado, num clima em que
transparece injustiça, pretende ser um paralelo da sociedade no século XX e do regime
do estado Novo na década de 60. tal como era preconizado pelo teatro épico de Brecht,
o autor recorre, nesta peça, a mecanismos para provocar o distanciamento dos
espectadores, designadamente ao papel da iluminação.
entre as peças que se seguiram a esta, contam-se Todos os Anos pela Primavera (1963),
A Estátua e A Guerra Santa (publicadas em volume único em 1968), As Mãos de Abraão Luís de Sttau Monteiro.
Zacut (1968), Sua Excelência (1971) e Crónica Atribulada do Esperançoso Fagundes (1981).
Luís de Sttau Monteiro escreveu também dois romances: Um Homem não Chora (1960)
e Angústia para o Jantar (1961).

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Prosa pós-1974
após a revolução do 25 de abril, tal como sucedeu na poesia,
a liberdade de expressão conquistada permitiu aos ficcionistas
portugueses seguirem a tendência, marcadamente pós-modernista,
para repensarem, muitas vezes criticamente, a história do nosso
país e a sua identidade. a esta temática associa-se a reflexão
sobre o lugar do indivíduo na sociedade contemporânea.

José Saramago
(1922-2010)
apesar de se ter iniciado na escrita como poeta (Os Poemas Possíveis, 1966),
José Saramago virá a consagrar-se pelas suas obras de ficção. após mais dois
volumes de poesia, Provavelmente Alegria (1970) e O Ano de 1993 (1975), é editada
uma coletânea de contos do autor, intitulada Objecto Quase (1977).
apesar de ter publicado um primeiro romance em 1947 (Terra do Pecado), o autor
renegou esta obra durante muito tempo. Só trinta anos mais tarde sai um novo romance,
Manual de Pintura e Caligrafia (1977). Neste, através da narração do percurso de um pintor
que se começa a dedicar à escrita, é apresentada uma interessante reflexão sobre a arte
e a responsabilidade do artista na sociedade.
José Saramago. Na década de 1980, Saramago começa a ganhar um lugar de destaque na literatura
portuguesa, graças à publicação de Levantado do Chão (1980). Neste romance é-nos
narrada a história de uma família alentejana e relata-se a exploração a que o povo estava
sujeito nesta zona de latifúndios antes da revolução do 25 de abril.
em 1982, sai Memorial do Convento, romance que leva José Saramago a afirmar-se
definitivamente como um dos mais importantes escritores nacionais. Na obra, é traçado
o retrato da sociedade portuguesa na segunda metade do século XVIII, à época
da construção do Convento de Mafra. No entanto, como é característico
do Pós-Modernismo, assistimos a uma reescrita da história, que não se centra
nas figuras consagradas pelo discurso historiográfico oficial, mas sim na massa anónima
que participou na construção do monumento.
Os protagonistas são: Baltasar, um soldado maneta; Blimunda, uma rapariga que, sendo
filha de uma feiticeira, tem o dom de ver o interior das pessoas, e o padre Bartolomeu
Lourenço de Gusmão, que tem o sonho de construir uma passarola voadora e de se
elevar nos ares. a pedido do sacerdote, Blimunda usará o seu poder para recolher
o elemento que permitirá ao seu invento voar: a vontade dos homens.
a par desta alegoria, reveladora do poder da Humanidade, destaca-se a belíssima
história de amor vivida por Baltasar e Blimunda, apelidados, respetivamente, de Sete-Sóis
e Sete-Luas, e o retrato dos profundos contrastes que marcavam a sociedade da época.
em relação a este aspeto é denunciada a exploração a que estavam sujeitas as classes
mais baixas.

LITERATURA E ARTE

A obra de José Saramago e a ópera


Em 1990, estreou-se no Teatro Scala, em Milão, a ópera Blimunda, composta por Azio Corghi,
e que é uma adaptação de Memorial do Convento, de José Saramago.

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No romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, a ação centra-se neste
heterónimo de Fernando Pessoa, que regressa do Brasil em 1936, após a morte do poeta. PARA SABER MAIS
ricardo reis confronta-se com uma pátria mergulhada em pleno regime do estado Novo e
progressivamente apercebe-se do obscurantismo, da hipocrisia e da repressão envolventes.
O Evangelho segundo
Ironicamente, Lídia, que nos poemas de ricardo reis surge como uma figura feminina Jesus Cristo
etérea, é agora uma comum criada de hotel, com quem o protagonista se envolverá, Diversos setores da
numa relação amorosa de contornos pouco diáfanos. De destacar o tom humorístico dos comunidade católica
diálogos de ricardo reis com o fantasma de Fernando Pessoa, a quem a morte dotou consideraram este
de uma distância irónica em relação à realidade. romance de Saramago
em 1986, é publicado A Jangada de Pedra, narrativa em que se imagina o destino ofensivo, e o escritor
foi alvo de perseguição
da Península Ibérica. este território, depois de se ter desprendido da europa, começa
religiosa. Pressionado
a deslocar-se pelo oceano atlântico, numa alegoria que pode ser entendida como a pela Igreja Católica,
apresentação de uma alternativa à integração de Portugal e de espanha na União europeia. o governo português
O romance seguinte, História do Cerco de Lisboa, de 1989, centra-se novamente na da altura liderado por
problemática de repensar a história. O protagonista é um revisor de provas tipográficas Cavaco Silva, e na pessoa
que se atreve a negar um acontecimento fundamental no percurso histórico do País: do subsecretário de
a conquista de Lisboa por D. afonso Henriques, em 1147. estado da cultura Sousa
Lara, vetou este livro de
em 1991, é publicado O Evangelho segundo Jesus Cristo. este romance, na época, gerou uma lista de romances
muita polémica, na medida em que nele é realçada a dimensão humana de Jesus, figura portugueses candidatos
que chega inclusivamente a questionar os desígnios de Deus. a um prémio literário
O título Ensaio sobre a Cegueira (1995) vem confirmar a crescente dimensão universal da europeu. Como resposta
obra de José Saramago. a sua ficção afasta-se progressivamente das figuras do panorama a este ato censório do
governo português,
histórico e cultural português para se centrar numa reflexão sobre a vida do Homem na
Saramago abandonou
sociedade contemporânea.
Portugal e instalou-se
Neste romance, a ação localiza-se numa cidade sobre a qual se abate uma epidemia que na ilha espanhola de
torna as pessoas cegas. Os indivíduos infetados são encerrados num antigo manicómio. Lanzarote (canárias),
O convívio entre as personagens neste espaço vem revelar toda a violência e egoísmo com a mulher, Pilar del
de que o Homem é capaz e, por contraponto, a sua dignidade, coragem e abnegação. Rio, onde permaneceu
Neste universo de contornos apocalíticos, marcado por uma profunda abjeção, até à sua morte.
destaca-se o papel das personagens femininas, que, como sucede na globalidade
da obra de Saramago, se afirmam como figuras fortes e sensatas, permitindo aos homens
descobrirem o amor.
Ensaio sobre a Cegueira marca o início de uma trilogia que se completa com Todos
os Nomes (1997) e A Caverna (2000). em Todos os Nomes, o protagonista, funcionário
anódino de uma conservatória lisboeta, decide procurar uma mulher, cujo registo
encontra casualmente no decurso do seu trabalho. esta busca liberta-o, assim,
de uma existência marcada, havia anos, por uma absoluta monotonia e estreiteza de
horizontes. em A Caverna, o texto da alegoria da caverna, de Platão, serve de inspiração
para uma crítica ao consumismo da sociedade contemporânea e aos excessos
do desenvolvimento tecnológico.
No período que medeia a publicação destas duas obras, dá-se um acontecimento fulcral
LITERATURA E ARTE
no percurso de José Saramago como escritor: em 1998, é-lhe atribuído o Prémio Nobel
da Literatura, o que o torna o primeiro e, até ao momento, único escritor português
a receber esta distinção. Ensaio sobre a Cegueira
em 2002, é publicado O Homem Duplicado, romance a que se seguem, em 2004, Ensaio O realizador Fernando
sobre a Lucidez e, em 2005, As Intermitências da Morte. este último destaca-se pela Meirelles realizou o filme
dimensão inusitada do evento que dá origem à narrativa: a morte surge personificada Ensaio sobre a Cegueira
como uma figura de contornos femininos, que decide suspender a sua atividade. (2008), adaptação
tal decisão terá consequências desastrosas. Nestas obras, prolonga-se a reflexão sobre cinematográfica do
a condição humana, numa perspetiva da preocupação ética. esta surge associada a uma romance homónimo
visão extremamente cética da sociedade contemporânea e da sua perda de valores. de José Saramago.
a linguagem de José Saramago, de conhecido caráter inovador, evoluiu de um período
inicial marcado por uma prolixidade de traços quase barrocos para um estilo mais sóbrio
e depurado.

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além de romances e de poesia, Saramago publicou também crónicas, resultantes
da sua experiência como jornalista, e que foram reunidas nos volumes Deste Mundo
e do Outro (1971) e A Bagagem do Viajante (1973). É ainda autor de um relato de viagem
(Viagem a Portugal, 1981), de um diário (Cadernos de Lanzarote, 5 volumes, 1994-1998),
de peças de teatro e de um livro de memórias (As Pequenas Memórias, 2006).

LEITURA

No romance Ensaio sobre a Cegueira (1995), destaca-se, de entre os protagonistas, a mulher


do médico, que, muito embora não tenha ficado cega, decide acompanhar o marido quando
este é internado. Transcrevemos esse momento.
«Ouviu-a mover-se de um lado para o outro, abrir e fechar gavetas
e armários, tirar roupas e logo arrumá-las na mala colocada no chão,
mas o que ele não podia ver foi que, além da sua própria roupa,
haviam sido postas na mala umas quantas saias e blusas, um par de
calças, um vestido, uns sapatos que só podiam ser de mulher. Pensou
vagamente que não iria precisar de tanta coisa, mas calou-se porque
não era o momento de falar de insignificâncias. Ouviu-se o estalido
dos fechos, depois a mulher disse, Pronto, a ambulância já pode vir.
Levou a mala para junto da porta da escada, recusando o auxílio
do marido, que dizia, Deixa-me ajudar-te, isso eu posso fazer, não
estou tão inválido assim. Depois foram sentar-se num sofá da sala,
a esperar. Tinham as mãos dadas, e ele disse, Não sei quanto tempo
iremos estar separados, e ela respondeu, Não te preocupes.
Esperaram quase uma hora. Quando a campainha da porta soou, ela
levantou-se e foi abrir, mas no patamar não havia ninguém. Atendeu
ao telefone interno, Muito bem, ele desce já, respondeu. Voltou para
o marido e disse-lhe, Que esperam em baixo, têm ordem expressa
de não subir, Pelos vistos o ministério está mesmo assustado, Vamos.
Desceram no elevador, ela ajudou o marido a transpor os últimos
degraus, depois a entrar na ambulância, voltou à escada para buscar
a mala, içou-a sozinha e empurrou-a para dentro. Finalmente subiu
e sentou-se ao lado do marido. O condutor da ambulância protestou
do banco da frente, Só posso levá-lo a ele, são as ordens que tenho,
a senhora saia. A mulher, calmamente, respondeu, Tem de me levar
também a mim, ceguei agora mesmo.»
Cena do filme Ensaio sobre
a Cegueira, de Fernando Meirelles
(02 Filmes/rhombus Media/
Bee Vine Pictures, fotografia
de alexandre ermel). Maria Gabriela Llansol
(1931-2008)
Maria Gabriela Llansol é considerada uma das mais originais escritoras no panorama
da literatura portuguesa. estreou-se em 1962, com a coletânea de contos Os Pregos
na Erva. Volta a publicar em 1973, ano em que sai Depois de Os pregos na Erva. em 1977,
inicia a publicação da trilogia Geografia de Rebeldes com O Livro das Comunidades.
a trilogia completa-se com A Restante Vida (1982) e Na Casa de Julho e Agosto (1984).
além destas obras, destacam-se ainda Causa Amante (1984), Um Falcão no Punho
(Diário I) (1985), Contos do Mal Errante (1986), Finita (Diário II) (1987), Da Sebe
ao Ser (1988), Amar Um Cão, O Raio sobre o Lápis, Um Beijo dado mais tarde (todas
de 1990), Hölder, de Hölderlin (1993), Lisboaleipzig 1: O encontro Inesperado do Diverso
(1994), Lisboaleipzig 2: O Ensaio de Música (1994), Inquérito às Quatro Confidências (1996),
Cantileno (2000) e Parascreve (2001).
O caráter inovador da sua escrita fica a dever-se à influência que recebe da poesia,
ao fragmentarismo do texto e a uma linguagem profundamente original. Destes
elementos resulta uma obra que se furta constantemente a todas as conclusões
interpretativas em que se pretenda encerrá-la.

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Baptista-Bastos
(1934)
além de escritor, armando Baptista-Bastos desenvolveu uma intensa atividade como
jornalista. Iniciou a sua carreira no jornal O Século, tendo trabalhado posteriormente em
várias publicações, das quais se destaca o Diário Popular, onde desempenhou funções
durante vinte e três anos (1965-1988).
a par de textos ensaísticos e jornalísticos, contam-se, na sua obra, os seguintes romances:
O Secreto Adeus (1963), O Passo da Serpente (1965), Cão Velho entre Flores (1974), Viagem de
Um Pai e de Um Filho pelas Ruas da Amargura (1981), Elegia para Um Caixão Vazio (1984),
A Colina de Cristal (1987), Um Homem Parado no Inverno (1991), O Cavalo a Tinta-da-China
(1995), No Interior da Tua Ausência (2002) e As Bicicletas em Setembro (2007).
De entre os seus romances, salientam-se Cão Velho entre Flores, obra em que o narrador Baptista-Bastos.
evoca a sua infância e adolescência, decorridas no período da ditadura salazarista,
e O Cavalo a Tinta-da-China, texto sobre duas personagens, um pai e um filho, e em que
Salazar surge também como uma figura central.
Na obra de Baptista-Bastos, é visível a importância da cidade de Lisboa, sendo dado
particular relevo à colina da ajuda, que dá título ao romance A Colina de Cristal, e a zona
portuária junto ao tejo. Nos seus textos, são igualmente relevantes a reflexão sobre
a história, o entrecruzar do sonho com a realidade, a oposição revolta/conformismo
e a problematização dos valores da sociedade contemporânea.

LEITURA

No excerto que se segue de Cão Velho entre Flores, o protagonista evoca o seu avô, uma
das figuras que marcaram a sua infância e uma personagem muito tocante pela sua
singularidade.
«Perguntei ao meu avô:
— Avô, que é um artista?
— Ora aí está uma pergunta a que não sei responder.
O meu avô estava sentado sobre as raízes expostas do velho carvalho da calçada e havia sol,
breve.
— O meu pai é um artista.
— O teu pai é um bom homem: é o chefe nominal de uma família empobrecida e gosta
de sonhar.
— Sonhar é ser artista?
— Chamam-me sonhador — disse o avô.
— Então o avô também é um artista?
— Lá me vou defendendo.
Coçou as partes, repousadas sobre as raízes expostas, e reparei que nesse sítio das calças
havia uma grande mancha amarela.
— Que mancha é essa?
— É a mancha de um sol velho — disse o meu avô.»

Teolinda Gersão
(1940)
teolinda Gersão licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra em 1963. Foi leitora de Português na Universidade técnica
de Berlim, tendo posteriormente desempenhado funções de docente na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa. Mais tarde, passou a lecionar na Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se tornou professora
catedrática. ensinou Literatura alemã e Literatura Comparada até 1995, ano em que se
aposentou, passando a dedicar-se exclusivamente à escrita. teolinda Gersão.

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a sua obra é composta pelos seguintes títulos: os romances O Silêncio (1981), Paisagem
LITERATURA E ARTE com Mulher e Mar ao fundo (1982), O Cavalo de Sol (1989), A Casa da Cabeça de Cavalo
(1995) e A Árvore das Palavras (1997); uma obra classificada como «diário ficcional» —
Os Guarda-Chuvas Cintilantes (1984); dois textos designados como «narrativas» —
A obra de Teolinda
Gersão e o teatro Os Teclados (1999) e Os Anjos (2000); duas coletânea de contos — Histórias de Ver
e Andar (2002) e O Mensageiro e Outras Histórias com Anjos (2003); e uma obra de literatura
Em 2001, foi apresentada
infantil — História do Homem na Gaiola e do Pássaro Encarnado (1982).
no Centro Cultural
de Belém uma versão Como característica essencial da sua obra, destaca-se a importância da temática
teatral de Os Teclados, da repressão exercida sobre o indivíduo, na sua dimensão política e em virtude
de Teolinda Gersão, da mentalidade social. Na sua produção, é muitas vezes dada voz às mulheres, com
com encenação de Jorge o objetivo de contrariar o silêncio imposto por uma sociedade marcadamente patriarcal.
Listopad. a palavra surge, então, como uma forma de reversão da submissão.
Dois anos depois, o grupo
de teatro O Bando levou O tratamento do tempo adquire uma particular importância quer a nível da reconstituição
à cena uma adaptação histórica (por exemplo, da ditadura do estado Novo, em Paisagem com Mulher e Mar ao
de Os Anjos, da autoria fundo e da vivência em Lourenço Marques nos anos 50, em A Árvore das Palavras), quer
de João Brites. a nível da própria estruturação do discurso.
as coletâneas de contos publicadas recentemente vêm demonstrar que, além
de romancista de talento, teolinda Gersão é uma excelente contista. Prova disso
é o volume Histórias de Ver e Andar, título que recupera o nome atribuído pelos árabes
às narrativas de viagem. Nestes contos, são abordados temas fundamentais para
a sociedade contemporânea, como a solidão, a incompreensão, o sofrimento, a mentira,
a incomunicabilidade, o amor e a felicidade.

LEITURA

Um dos contos mais belos de Histórias de Ver e Andar é «A velha», narrativa de que se
transcreve o início.
«A velha era felicíssima. Pois não é verdade que tinha uma boa vida e nada lhe faltava?
Só nessa manhã tinha encontrado um lugar vago num banco de jardim, nem demasiado
à sombra nem demasiado ao sol, o elétrico não vinha excessivamente cheio e também
conseguiu lugar, o padeiro disse-lhe bom dia com um ar tão simpático, quando ela deixou
em cima do balcão o dinheiro de três carcaças, e o empregado da mercearia ficou a
conversar depois de lhe dar o troco e perguntou-lhe se gostava daquela nova marca de café.
O mal de muita gente era não saber dar o devido valor às coisas. A maioria esbanjava tempo
e felicidade, da mesma forma que esbanjava dinheiro. Se se fosse a ver, poucos sabiam
aproveitar o que tinham.»

Mário Cláudio
(1941)
Mário Cláudio é o pseudónimo de rui Manuel Pinto Barbot Costa. Licenciado em Direito
pela Universidade de Coimbra, concluiu posteriormente o curso de bibliotecário-
-arquivista. realizou uma pós-graduação na Universidade de Londres, tendo obtido
o grau de Masters of Arts in Library and Information Studies.
a sua vasta obra reparte-se pela ficção, pela poesia, pelo teatro e pelo ensaio. É também
autor de traduções. a nível da poesia, editou Ciclo de Cypris (1969), Sete Solstícios (1972)
e Dois Equinócios (1996), entre outras. entre os seus textos dramáticos, contam-se Noites
de Anto (1988), sendo que a figura de antónio Nobre foi alvo de interesse da sua parte
nos textos ensaísticos, e O Estranho Caso do Trapezista Azul (1998).
No que respeita ao romance e à novela, publicou Um Verão assim (1974), As Máscaras
de Sábado (1976), Damascena (1983), Amadeo (1984), Guilhermina (1986), A Fuga para
Mário Cláudio. o Egipto (1987), Rosa (1988), A Quinta das Virtudes (1990), Tocata para Dois Clarins (1992),
As Batalhas do Caia (1995), O Pórtico da Glória (1997), O Último Faroleiro de Muckle Flugga,

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Peregrinação de Barnabé das Índias (ambos de 1998), Ursamaior (2000), O Anel de Basalto
e Outras Narrativas (2002), Oríon (2003), Gémeos (2004) e Camilo Broca (2006).
Incluem-se também na sua obra as coletâneas de contos Das Torres ao Mar (1983),
Improviso para Duas Estrelas de Papel, Olga e Cláudio (ambas de 1984), Duas Histórias
do Porto (1986), Itinerários (1993) e Dois Equinócios (1996).
De entre as suas obras de ficção, destacam-se as biografias romanceadas Damascena,
Amadeo e Guilhermina, que publica conjuntamente em 1993 sob o título de Trilogia
da Mão. estes textos centram-se no percurso de amadeo de Souza-Cardoso, pintor
modernista, de Guilhermina Suggia, violoncelista portuense nascida no fim do século XIX,
e de rosa ramalho, ceramista de Barcelos. em todos estas narrativas é evidente o interesse
pela problematização do processo de criação artística, juntamente com a reconstituição
histórica e cultural de diferentes épocas, algo que se mantém ao longo da sua obra.
No romance A Quinta das Virtudes, é-nos narrada a história de três gerações de uma
família portuense, entre os séculos XVIII e XIX, do que resulta um retrato da vivência
quotidiana e da mentalidade da época. em Tocata para Dois Clarins, é feita uma
reconstituição da vida no período de consolidação da ditadura do estado Novo, para
a qual foi fundamental a exposição do Mundo Português. De salientar ainda o romance
As Batalhas do Caia, cuja temática se centra no processo de escrita, na medida em que
o protagonista é eça de Queirós. este autor é imaginado a elaborar um romance
projetado, mas que nunca chegou a concretizar: A Batalha do Caia.

António Lobo Antunes


(1942)
antónio Lobo antunes licenciou-se em Medicina, tendo-se especializado em Psiquiatria
e trabalhado no Hospital Miguel Bombarda, experiência que deixará marcas em alguns
dos seus romances, nomeadamente em Conhecimento do Inferno (1980).
entre 1971 e 1973, combateu em angola, no âmbito da guerra colonial, vivência que também
se encontra presente sobretudo em algumas das suas primeiras obras: Memória de Elefante,
Os Cus de Judas (ambos de 1979), Conhecimento do Inferno e Fado Alexandrino (1983).
antónio Lobo antunes é autor de uma vasta produção, na qual se incluem, além dos
títulos já citados, os romances Explicação dos Pássaros (1981), Auto dos Danados (1985),
As Naus (1988), Tratado das Paixões da Alma (1990), A Ordem Natural das Coisas (1992),
A Morte de Carlos Gardel (1994), O Manual dos Inquisidores (1996), O Esplendor
de Portugal (1997), Exortação aos Crocodilos (1999), Não Entres tão depressa Nessa Noite
Escura (poema 2000), Que Farei quando Tudo Arde? (2001), Boa Tarde às Coisas aqui
em baixo (2003), Eu Hei-de Amar Uma Pedra (2004), Ontem não Te Vi em Babilónia (2006), antónio Lobo antunes.
O Meu Nome é Legião (2007) e O Arquipélago da Insónia (2008).
O autor escreve também crónicas, inicialmente, para o jornal Público, e agora para
a revista Visão. estes textos foram reunidos no Primeiro Livro de Crónicas (1998),
no Segundo Livro de Crónicas (2002) e no Terceiro Livro de Crónicas (2006).
De destacar ainda, no âmbito autobiográfico, a publicação das cartas que escreveu
à sua mulher durante a sua comissão em angola. O volume, intitulado D’Este Viver aqui
Neste Papel Descripto — Cartas da Guerra, foi organizado pelas suas filhas — Maria José
Lobo antunes e Joana Lobo antunes — e publicado em 2005, tratando-se não só de
um importante retrato da vivência do exército em angola durante a guerra colonial,
mas também, e sobretudo, de um belíssimo testemunho de uma história de amor.
É interessante acrescentar que o título da obra recupera um verso de Ângelo de Lima
que o escritor selecionara para título do seu primeiro romance, mas que foi rejeitado,
por ser muito longo.
em 2003, uma equipa coordenada por Maria alzira Seixo iniciou a publicação das edições
ne varietur das obras de antónio Lobo antunes, trabalho que continua a ser desenvolvido.
Os romances de antónio Lobo antunes, numa primeira fase, caracterizam-se pela
presença de marcas autobiográficas, como a experiência do divórcio, a relação com
as filhas, a guerra colonial e a sua vida profissional no domínio da psiquiatria.

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a estes temas associa-se progressivamente uma reflexão sobre a sociedade
LITERATURA E ARTE portuguesa antes e depois da revolução do 25 de abril, problematização da história
característica do pós-modernismo. É o que sucede em Fado Alexandrino, obra em
Letrinhas de Cantigas que nos é narrado o reencontro, em Lisboa, de um grupo de ex-combatentes
Em 2002, António Lobo da guerra colonial. ao longo da ação são evocadas a guerra em África e a revolução
Antunes publicou e os acontecimentos que se lhe sucederam, sempre num tom marcado por uma
Letrinhas de Cantigas, profunda negatividade.
volume no qual estão em Auto dos Danados traça-se o desmembrar de uma poderosa família
reunidas letras que
de latifundiários alentejanos em 1975, o que revela o ambiente de incesto, adultério,
foram elaboradas pelo
hipocrisia e abjeção em que esta estava imersa. em As Naus, verifica-se uma
escritor para um álbum
de Vitorino, intitulado sobreposição da época dos Descobrimentos com o regresso dos retornados
Eu Que Me Comovo por das antigas colónias. assim, os protagonistas são figuras figuras fundamentais
Tudo e por nada (1992). do nosso património histórico e cultural, como Pedro Álvares Cabral, Vasco
da Gama, Diogo Cão, Luís de Camões, o rei D. Manuel, entre outros. estas importantes
personagens históricas são desconstruídas através do tom parodístico da narrativa,
processo de desmistificação que constitui mais uma das marcas de pós-modernismo
na obra de antónio Lobo antunes.
Com Tratado das Paixões da Alma inicia-se uma trilogia completa com A Ordem Natural
das coisas e A Morte de Carlos Gardel, conjunto que o próprio autor designou como
o «ciclo de Benfica», já que nas três obras se destaca este espaço, que marcou a infância
e a adolescência do escritor.
Na primeira, assistimos ao reencontro de dois amigos de infância na idade adulta,
tendo-se invertido a hierarquia: aquele que pertencia a uma família poderosa é agora
acusado de pertencer a um grupo terrorista, enquanto o outro, de origem humilde,
é agora juiz de instrução. a prepotência do primeiro em relação ao segundo durante
a infância, decorrente do facto de os seus pais serem patrões da família do amigo,
cria uma relação ambígua, marcada por ressentimentos, que vêm ao de cima mal
ambos se voltam a ver. em alguns momentos, no entanto, ambos se libertam
momentaneamente das memórias dolorosas e limitam-se a reviver a plenitude
sentida que lhes proporcionava na infância a contemplação das cegonhas.
A Ordem Natural das coisas é um belíssimo romance, com momentos de uma
grande intensidade lírica. em A Morte de Carlos Gardel, evidencia-se a solidão de
uma série de personagens marcadas por relações infelizes, feitas de desencontros
ditados pela incomunicabilidade. a narrativa resolve-se num saldo de morte ou de
desaparecimento dos protagonistas.
O Manual dos Inquisidores marca o início de uma nova fase. em primeiro lugar, porque
é a partir da publicação desta obra que o autor se afirma como um escritor fundamental
na literatura portuguesa contemporânea. em segundo lugar, porque neste romance
é visível uma depuração na linguagem que surge como resultado de um processo
de despojamento que se tinha vindo a verificar progressivamente. Inicialmente a sua
obra era marcada por um estilo muito denso e carregado de referências intertextuais
e de outras formas de arte.
em O Manual dos Inquisidores, a intriga aproxima-se, de certa forma, da ação de Auto
dos Danados: a decadência de uma família de Palmela, cujo pai fora ministro de Salazar,
que se acentua após a revolução do 25 de abril. No entanto, esta decadência vem
na sequência de acontecimentos anteriores, nomeadamente do facto de a mãe ter
abandonado o marido e o filho.
No romance, prolonga-se o recurso à polifonia, ou seja, ao cruzamento de vozes
de várias personagens, já presente em obras anteriores. este processo surge como
uma forma de quebrar o silêncio opressivo instalado entre as personagens, que vivem
encerradas na sua própria solidão, oscilando entre o desejo de manifestar o seu afeto
e o receio de que, fazendo-o, sejam rejeitadas.
De notar, contudo, que as personagens raramente comunicam entre si, dirigindo o seu
Capa de O Manual discurso a uma figura, identificada como um escritor, que recolhe os seus depoimentos.
dos Inquisidores. a enorme crueldade e violência que marca esta narração (nomeadamente nos episódios

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de abuso do ministro em relação às suas subordinadas e da tortura perpetrada pela
PIDe) é, de certa forma, compensada por momentos de intensidade lírica, reveladores de
que todas as personagens, por mais monstruosas que sejam, são capazes de manifestar
sentimentos de ternura.
O Esplendor de Portugal, romance que se segue a O Manual dos Inquisidores, narra a história
de uma família portuguesa que viveu em angola, na época em que este país era uma
colónia portuguesa. encontramos, novamente, a problemática da guerra colonial,
já abordada em obras anteriores, agora conjugada com um aprofundamento do retrato
da vivência nas colónias no tempo do domínio português. Neste retrato ressaltam
a hipocrisia e a crueldade das classes dominantes na época, bem como os seus excessos
em relação à população de origem africana.
em Exortação aos Crocodilos, quatro figuras femininas ligadas a um grupo de bombistas
que, no pós-25 de abril, se dedicam a eliminar militantes de esquerda e participam
no atentado de Camarate, narram a sua vivência num universo marcado pela violência
e pelo absurdo. É visível, no texto, um aprofundamento da dimensão lírica que se
prolongará nas obras que se lhe seguem.
No romance Não Entres tão depressa Nessa Noite Escura, a narração é também conduzida
por uma personagem feminina — Maria Clara. esta personagem não se limita a narrar os
factos relacionados com o internamento e a doença do pai, mas inventa acontecimentos,
sendo, por vezes, impossível distinguir a realidade das suas fantasias e sonhos.
este processo pode ser entendido como um prenúncio daquilo que já era percetível em
Exortação aos Crocodilos, mas que se verifica, sobretudo, a partir de Não Entres tão depressa
Nessa Noite Escura: uma crescente diluição da trama narrativa. Com efeito, nas obras mais
recentes do autor, embora haja sempre uma intriga, é dada uma importância crescente a
elementos que surgem de forma obsessiva nos discursos das personagens: a rememoração
do passado, muitas vezes idealizado, os seus medos, angústias e frustrações, e o absurdo,
solidão e desencanto que, muitas vezes, marcam a sua existência. a escrita de antónio Lobo
antunes eleva-se, desta forma, a uma dimensão cada vez mais universal, na medida em que
estas personagens nos revelam aquilo que na realidade somos.
Muito embora o autor, numa primeira fase, desvalorizasse as suas crónicas, a verdade
é que estas se instituiram não apenas como um importante espaço de reflexão sobre
a escrita, mas também como um lugar de tratamento de temas que são igualmente
abordados nos romances.
Capa de Terceiro Livro de Crónicas.

LEITURA

No excerto desta crónica, incluída em Primeiro Livro de Crónicas (1998), é bem visível o tom
satírico que António Lobo Antunes muitas vezes adota na sua narrativa, ao qual se alia
frequentemente uma crítica feroz.
Os pobrezinhos
«Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros. Na minha
família os animais domésticos eram os pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre
pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana, buscar com
um sorriso agradecido a ração de roupa e de comida.
Os pobres, além de serem obviamente pobres (de preferência descalços para poderem
ser calçados pelos donos, de preferência rotos para poderem vestir camisas velhas que
se salvavam desse modo de um destino natural de esfregões, de preferência doentes
a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características
imprescindíveis: irem à missa, batizarem os filhos, não andarem bêbados e sobretudo
manterem-se orgulhosamente fiéis à tia a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver
um homem de sumtuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder ofendido
e soberbo a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum
de nós queria:
— Eu não sou o seu pobre, eu sou o pobre da menina Teresinha.»

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Mário de Carvalho
(1944)
Mário de Carvalho licenciou-se em Direito na Universidade de Lisboa em 1969. Desde
cedo, esteve envolvido na luta contra a ditadura do estado Novo, tendo sido preso
em Caxias e, posteriormente, em Peniche. esteve exilado em França e na Suécia, tendo
regressado a Portugal após a revolução do 25 de abril de 1974.
a sua obra reparte-se pelo conto, pelo romance e pelo teatro. No que respeita ao conto,
publicou os seguintes volumes: Contos da Sétima Esfera (1981), Casos do Beco
das Sardinheiras (1982), A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho (1983), Fabulário (& etc),
Era Uma Vez Um Alferes (ambos de 1984), Contos Soltos (1986), Os Alferes (1989),
Quatrocentos Mil Sestércios seguido de O Conde Jano (1991), Apuros de Um Pessimista
em Fuga (1999) e Contos Vagabundos (2000).
Mário de Cavalho.
a sua produção como romancista também é vasta: O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana
(1982), A Paixão do Conde de Fróis (1986), Um Deus passeando pela Brisa da Tarde (1994),
Era Bom que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto (1995), Fantasia para Dois Coronéis
e Uma Piscina (2003) e A Sala Magenta (2008). De salientar ainda uma obra escrita em
conjunto com Clara Pinto Correia, intitulada E se Tivesse a Bondade de Me Dizer porquê (1986).
Os seus contos distinguem-se pelo cruzamento do fantástico com a dimensão mais
prosaica do quotidiano, processo de que resulta uma narrativa que provoca estranheza,
mas que se revela, simultaneamente, muito divertida, pela fina ironia ou pelo tom
abertamente satírico que a caracteriza. É o que sucede, por exemplo, no texto A Inaudita
Guerra da Avenida Gago Coutinho, em que, por erro de Clio, musa da História, que
inadvertidamente adormece, soldados árabes da Idade Média se vêem, inesperadamente,
em plena avenida Gago Coutinho do século XX, na hora de ponta.
De entre a sua produção como romancista, destaca-se Um Deus Passeando pela Brisa
da Tarde, obra que lhe permitiu afirmar-se definitivamente no panorama da literatura
portuguesa. Nesta narrativa, assistimos ao percurso de Lúcio Valério, magistrado romano
em tarcisis, província imaginária na Península Ibérica. O protagonista foi obrigado a
abdicar do cargo de duúnviro que ocupava, por ter tomado a opção de ser fiel a si próprio,
encontrando-se num lento processo de decadência, envolvido por uma vida ociosa.
De entre os acontecimentos narrados, salienta-se a paixão de Lúcio Valério por Iunia
Cantaber, patrícia romana que ingressa numa estranha e nova seita.
No romance seguinte, Era Bom que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto, Mário
de Carvalho retoma o tom satírico e mordaz que o caracteriza, na narrativa do percurso
de uma personagem que tenta ingressar no Partido Comunista Português e se vê
enredada nos meandros de um processo burocrático interminável. a obra de Mário de
Carvalho demarca-se pela sua dimensão inovadora, visível num apurado trabalho da
linguagem, nomeadamente a nível do vocabulário, e por um olhar contundente sobre
a realidade, que, num tom muitas vezes jocoso, convida o leitor a repensar a sociedade
em que vive.

LEITURA

Um dos romances mais emblemáticos de Mário de Carvalho é Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. O excerto que se segue
corresponde ao início da obra.
«Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, passei o que passei, peno longe, como ser feliz?
o gesto flácido. Debaixo das sombras irisadas, leio e releio Mara, mais além, borda, sentada numa cadeira alta de
os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, vime, junto aos degraus da porta. Há pouco, ralhava com as
bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo escravas. Agora ri-se com as escravas. Em breve ralhará com
comprazer-me desta mediocridade dourada, pese o convite as escravas. Do local em que me encontro não consigo
e o consolo do poeta que a acolheu. Também a mim, como ouvi-la, mas quase adivinho as razões dos risos e dos ralhos.
ao Orador, amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. É-me agradável saber que Mara está perto, e reconhecer-lhe
Os dias arrastam-se, Marco Aurélio viveu, Cómodo impera, tão bem, desde há tantos anos, os trejeitos e os modos.»

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Lídia Jorge
(1946)
Lídia Jorge licenciou-se em Filologia românica na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, tendo sido professora do ensino Secundário. em 1970, partiu para África, tendo
lecionado em angola e Moçambique, experiência que deixará marcas no romance
A Costa dos Murmúrios (1988). Depois de regressar a Portugal, continuou a dar aulas,
tendo desempenhado estas funções na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Posteriormente, abandonou a atividade docente para se dedicar exclusivamente à escrita.
a publicação do seu primeiro romance em 1980, O Dia dos Prodígios, foi marcante
no panorama da literatura portuguesa. Nesta obra, é-nos narrada a vida estagnada em
Vilamaninhos, uma mítica aldeia do interior algarvio, à qual os acontecimentos exteriores
chegam apenas como ecos longínquos. Um dia, no entanto, os seus habitantes avistam no
céu uma cobra a voar, prodígio a que se segue a chegada de soldados ligados à revolução
Lídia Jorge.
do 25 de abril. este romance destaca-se pela problematização da história e pelo entrecruzar
entre o real e o fantástico, processos que se virão a prolongar na produção da autora.
a este título segue-se O Cais das Merendas (1982), romance sobre um grupo de algarvios
que, trabalhando num hotel ocupado por turistas durante o Verão, acaba por ser vítima
de um processo artificial de aculturação, afastando-se das tradições e da cultura do seu
país. esta intriga pode ser interpretada como uma alegoria do próprio povo português
e da sua hesitação entre abrir-se à modernidade representada pelo mundo e manter-se
fiel à sua identidade.
em 1984, a autora publica Notícia da Cidade Silvestre, romance cuja ação é deslocada
para o cenário urbano de Lisboa, sendo protagonizada por duas figuras femininas
(Júlia Grei e anabela Cravo) e centrando-se nos temas da condição feminina, do poder,
da submissão e do amor.
Foi apenas com o romance seguinte — A Costa dos Murmúrios (1988) — que Lídia Jorge
se consagrou definitivamente enquanto escritora. a ação desenrola-se em Moçambique,
entre os anos 60 e 70, sendo um testemunho dos últimos estertores do Império Português,
consubstanciados na guerra colonial. a narrativa é feita do ponto de vista das personagens
femininas, mulheres dos oficiais combatentes, nomeadamente de eva Lopo. através
do seu relato, é visível não apenas a violência da guerra colonial, mas também o absurdo
e a prepotência que marcaram o período do colonialismo em África, bem como
a decadência do ideal do Império.
Depois de A Última Dona (1992) e de O Jardim sem Limites (1995), Lídia Jorge publica
O Vale da Paixão (1998), romance em que a protagonista reconstitui, através do discurso,
a figura do seu pai, Walter Dias, traçando simultaneamente o retrato da sua família.
a este segue-se O Vento Assobiando nas Gruas (2002), no qual uma figura feminina com
características muito particulares, Milene, se apaixona por antonino Mata, personagem
de origem africana, que pertence a um meio social totalmente diferente do da jovem.
O último romance de Lídia Jorge intitula-se Combateremos a Sombra e foi publicado em 2007.
além de romances, a autora publicou ainda os contos A Instrumentalina e O Conto do Nadador
(ambos de 1992) e duas coletâneas de contos: Marido e Outros Contos (1997) e O Belo
Adormecido (2003). escreveu também a peça de teatro A Maçon (1997), na qual é feita
uma homenagem a adelaide Cabete (1867-1935), defensora dos direitos das mulheres.
No ano em que foi publicada, esta peça foi levada à cena no teatro Nacional D. Maria II.

LITERATURA E ARTE

A obra de Lídia Jorge e o cinema


Em 2004, estreou-se o filme A Costa dos Murmúrios, realizado por Margarida Cardoso
e uma adaptação do romance homónimo de Lídia Jorge.

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João de Melo
(1949)
João de Melo nasceu na ilha de São Miguel, nos açores, tendo aí passado a sua infância
e adolescência, experiência que deixará marcas importantes na sua obra, nomeadamente
no romance Gente Feliz com Lágrimas (1988). em 1960, partiu para o continente, tendo
sido, em 1971, mobilizado para angola, no contexto da guerra colonial. a violenta
experiência da guerra será também outro tema central da sua obra, sendo ficcionada
de forma particularmente pungente no romance Autópsia de Um Mar de Ruínas (1984),
obra que corresponde a uma refundição de um título publicado em 1977, A Memória
de Ver Matar e Morrer.
João de Melo publicou obras nas áreas da poesia, da crónica e do ensaio. No entanto,
tem-se afirmado sobretudo como contista e romancista. entre as suas obras, contam-se,
João de Melo.
entre outros títulos, as coletâneas de contos Histórias da Resistência (1975), Entre Pássaro
e Anjo (1987), As Manhãs Rosadas, Crónica do Princípio e da Água (ambas de 1991)
e Bem-Aventuranças (1992) e o romance O Homem Suspenso (1996).
No âmbito do romance, ganham suma importância Autópsia de Um Mar de Ruínas
e Gente Feliz com Lágrimas. Como foi referido, o primeiro narra a experiência da guerra
colonial, do ponto de vista de um furriel enfermeiro, num relato de fundo autobiográfico.
Com a segunda obra, João de Melo afirmou-se definitivamente no panorama
da literatura portuguesa contemporânea.
em Gente Feliz com Lágrimas, é-nos narrado o percurso de um de entre nove
irmãos, oriundo de uma família miserável de uma freguesia rural de São Miguel.
O enclausuramento ditado pela insularidade leva os nove irmãos a desejarem partir
quer para a américa do Norte, vista como o espaço de possibilidade de concretização
de todos os sonhos, quer para o continente europeu. O protagonista acabará por migrar
para Lisboa, onde acabará por viver os acontecimentos históricos que antecederam
e se sucederam à revolução do 25 de abril, bem como as mutações sociais, culturais
e de mentalidade que daí advieram.
Como linhas temáticas fundamentais na obra de João de Melo, temos, assim, além da
guerra colonial e da experiência da insularidade dos açores, a problematização da história
de Portugal mais recente e do rumo da sociedade contemporânea.

LEITURA

Neste excerto do início do romance Gente Feliz com Lágrimas, é visível a oscilação partir/ficar,
que marca a problemática da insularidade.
«Com exceção dos nomes e das cores, que se haviam delido no tempo, seriam apenas
os barcos — os mesmos nesse dia feliz em que papá decidira levá-la a vê-los de perto
pela primeira vez. Porque lá estavam ainda, emborcados por cima do convés, os mesmos
escaleres cobertos pelas lonas. Estavam as torres, as vigias redondas como olhos de peixe e
as mesmas bóias ressequidas, presas dos ganchos. Quando largaram da doca — e o focinho
cortante das proas rasgou o pano azul das águas atlânticas, rumo a Lisboa — havia também
a mesma chuva ácida do princípio da noite. Além disso, dera-se a chegada das mesmíssimas
vacas ao cais de embarque, sendo elas destinadas aos matadouros continentais. E o pranto
da muita gente que ali ficou a agitar lencinhos de adeus fora-se logo convertendo num uivo,
o qual acabou por confundir-se com o rumor do vento a alto mar.
Depois um e outro viram a Ilha ir fenecendo na distância das luzes enevoadas e extinguir-se
aos poucos, submersa pelos véus de cinza que se desprendiam das nuvens.
À medida que os rolos de espuma se distendiam à ré, num risco que espalmava e tornava
liso aquele globo saltitante, a cordilheira vulcânica ia-se lentamente afundando ao longe.
Do lado de cá do vento, e da eletricidade que metaliza e faz correr a noite marítima,
a última visão da Ilha é mesmo essa cabeça de égua aflita, agitando-se na crista da serra
a que chamam Pico da Vara.»

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Luísa Costa Gomes
(1954)
Luísa Costa Gomes licenciou-se em Filosofia, curso que concluiu em 1976. Durante alguns
anos, lecionou no ensino secundário. atualmente, além de se dedicar à escrita, realiza LITERATURA E ARTE

traduções de filmes, de teatro e de ficção. É também diretora da revista Ficções, na qual


são publicados contos de autores nacionais e estrangeiros, com o objetivo de divulgar A obra de Luísa Costa
este género literário e incentivar a sua produção. Gomes e a ópera
No plano da produção literária, tem vindo a afirmar-se não apenas na área do conto Luísa Costa Gomes
mas também no romance, no teatro e na crónica. escreveu os libretos para
a ópera Corvo Branco,
Luísa Costa Gomes estreou-se em 1981, com a publicação de um volume de contos, de Philip Glass e de
intitulado Treze Contos de Sobressalto, obra que se distingue, desde logo, pela sua Robert Wilson, que foi
originalidade. Seguem-se-lhe, no campo da ficção, a narrativa Arnheim & desirée (1983), apresentada na Expo’ 98,
a coletânea de contos O Gémeo Diferente (1984), o romance O Pequeno Mundo (1988), e para a cantata Sobre
o romance biográfico A Vida de Ramon (1991), o romance Olhos Verdes (1994), o romance o Vulcão. Este segundo
O Defunto Elegante (1996) — escrito em conjunto com abel Barros Baptista —, o volume espetáculo, cuja
Contos outra vez (1997), o romance Educação para a Tristeza (1998), a coletânea encenação foi realizada
de contos Império do Amor (2001), o romance A Pirata (2006) e a compilação pela própria autora, com
de contos Setembro (2007). música de Luís Bragança
Gil, foi apresentado
De entre a produção dramatúrgica de Luísa Costa Gomes, é possível salientar Nunca, em 1996 no Festival
nada de Ninguém (1991) e Clamor (1994). Na crónica, publicou Isto e mais Isto de Teatro do ACARTE.
e mais Isto (2000).
a escrita desta autora caracteriza-se pela inovação da
linguagem, pela reflexão sobre o próprio processo de
escrita e pelo hibridismo dos géneros literários (patente,
por exemplo, em Educação para a Tristeza).
a nível temático, a sua obra oscila entre o interesse
pela Idade Média (visível, por exemplo, em A Vida
de Ramon — romance biográfico inspirado na vida
de ramon Llull, um filósofo medieval) e a reflexão
sobre a sociedade atual. este último tema surge, por
exemplo, em Olhos Verdes, romance em que é feita uma
crítica à importância excessiva atribuída aos media na
época contemporânea.
Conferência de imprensa
de apresentação da ópera
Corvo Branco. Da esquerda
LEITURA para a direita: o diretor
e encenador robert Wilson,
a diretora do teatro Camões,
O excerto que se segue corresponde ao início do conto «Hades», que se inclui no volume o compositor Philip Glass
Contos outra vez. É uma divertida sátira ao modo como a língua portuguesa é adulterada nos e Luísa Costa Gomes.
dias de hoje.
«— São os anos do Rodrigo e a gente faz o que ele quiser. Foi o que eu disse e é o que se faz.
Agora calas-te e andas para a frente. E cara alegre e não arrastas os pés.
— Por que é que hadem estar sempre a discutir, mesmo no meu dia de anos?
— Olha-me aquele — disse o pai —, parece o Guilherme nosso vizinho. Só lhe falta o boné.
Todos se riram a olhar para o peixe vermelho, até o Rolando, embora contrariado.
— Fechastes o carro? — perguntou a mãe.
— Tudo sobre controle, — disse o pai.
— Não te debruces, Rodrigo Tiago, parece que fazes de prepósito!
Os peixes rebolavam pela água esverdeada. Estavam muito feitos a serem visitados.
O Rodrigo queria perguntar ao pai como é que eles conseguiam ver, só com um olho
de cada lado da cabeça. Mas teve medo que ele empreendesse uma explicação demorada
e agora queria mais que tudo despachar-se. E teve sorte, porque não havia muita gente
a querer entrar no Aquário Vasco da Gama.»

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NOtaS DO PrOFeSSOr

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