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Anais

2018/ UFBA
Anais eletrônicos do Seminário de Estudos sobre o
Espaço Biográfico: Desafios da Bioficção –
20 a 22 de novembro de 2013

ISBN: 978-85-8292-178-4
Sistema de Bibliotecas – SIBI/UFBA

Seminário de Estudos sobre o Espaço Biográfico: Desafios da Bioficção (2013:


Salvador, BA).
Anais eletrônicos do Seminário de Estudos sobre o Espaço Biográfico [recurso
eletrônico] : Desafios da Bioficção - 20 a 22 de novembro de 2013 / comissão
organizadora Rachel Esteves Lima ... [et al]. - Salvador: EdUFBA, 2018.
513 p. : il.

Anais do Seminário de Estudos sobre o Espaço Biográfico: Desafios da Bioficção,


que ocorreu de 20 a 22 de novembro de 2013, na Universidade Federal da Bahia.
Modo de acesso: http://www.semeb2013.letras.ufba.br/

ISBN: 978-85-8292-178-4

1. Biografia – Palestras e conferências. 2. Autobiografia – Palestras e conferências.


3. Biografia como forma literária. I. Lima, Rachel Esteves. II. Universidade Federal da
Bahia. Instituto de Letras. III. Título.

CDD – 920
CDU – 82-94
Bibliotecário
Evandro Ramos dos Santos
CRB-5/1205
Comissão Organizadora

Rachel Esteves Lima


José Francisco Serafim
Ana Lígia Leite e Aguiar
Sandra Straccialano Coelho

Comissão Científica

Ana Lígia Leite e Aguiar


José Francisco Serafim
Rachel Esteves Lima
Sandra Straccialano Coelho

Revisão

Morgana Gama de Lima


Túlio D'El-Rey
Apresentação

Apresentamos os Anais do Seminário de Estudos sobre o Espaço

Biográfico: Desafios da Bioficção, que ocorreu de 20 a 22 de novembro de

2013.

Gostaríamos de agradecer, uma vez mais, a participação de todos

nesse evento, importante não somente para aqueles que se interessam pelo

tema, como para os realizadores e toda a comunidade que contribuiu para

que se conseguisse concluir esse feito em tão bons ares. Um seminário sobre

o espaço biográfico tinha, como primeiro objetivo, o desejo de ser uma grata

experiência na vida de seus participantes. Se podemos, hoje, recordar este

evento com tão boa lembrança – mesmo estando cientes da traição da

memória – é porque nosso desejo foi, de alguma forma, atendido. Essa

façanha, contudo, só se tornou possível graças às comunidades que nos

auxiliaram na produção deste Seminário.

Destacamos o apoio do CNPq, da CAPES, da FAPESB, do Programa de

Pós-Graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult/UFBA) e do Programa

de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea (Póscom/

UFBA). Aos demais parceiros e fornecedores, agradecemos igualmente: à

Reitoria da Universidade Federal da Bahia, à Editora da Ufba, à Gerência

de Eventos (Gere), aos pareceristas, bolsistas e voluntários, professores,

designers, musicistas, à Université de Rouen, à UFMG, à Babelsberg Film

University - Alemanha, à Université Paris I Panthéon Sorbonne, ao Coletivo

A-feto de teatro.

Os 40 textos aqui dispostos em 513 páginas operam dentro de

variados campos artísticos: quadrinhos, museologia, literatura, cinema,


jornalismo, performance, dança, imagens, redes sociais, arquivos.

Espantoso pensar que os desafios que derivam das categorias do biográfico

pudessem resultar em uma multiplicidade entre zonas tão específicas e, ao

mesmo tempo, tão afins.

Nosso agradecimento a todo apoio recebido!

Rachel Esteves Lima

José Francisco Serafim

Ana Lígia Leite e Aguiar

Sandra Straccialano Coelho


SUMÁRIO

VERDADE E FICÇÃO NA PRODUÇÃO JORNALÍSTICA DE PERFIS BIOGRÁFICOS

Agnes Francine de Carvalho Mariano 11

“QUE HOJE NADA E NEM NINGUÉM ESTRAGUE SEU DIA”: OTIMISMO E


MEMÓRIA DO DISCURSO RELIGIOSO NO FACEBOOK

Aline de Caldas Costa dos Santos

Edvania Gomes da Silva 28

NOS PLATÔS DO DESASSOSSEGO DE BERNARDO SOARES E DE FERNANDO


PESSOA: IDENTIDADE E ALTERIDADE

Aline Job 40

SONOROSA DONA LÚCIA: CARTAS DE CECÍLIA MEIRELES A LÚCIA MACHADO


DE ALMEIDA

Ana Amélia Neubern Batista dos Reis 54

NO PALCO DAS MEMÓRIAS: OS PROCESSOS DE AUTO/ALTER SUBJETIVAÇÃO


NA ESCRITA DE JORGE AMADO E ZÉLIA GATTAI

Ana Carolina Cruz de Souza 66

UMWELT, PROCESSOS CRIATIVOS HÍBRIDOS

André Arieta 77

NO FUNDO NEM TUDO É MEMÓRIA: MEMÓRIA, ESCRITURA E INVENÇÃO

Angelita Maria Bogado 94

O PERIGO DA AUTOFICÇÃO: VINGANÇA, LUTO E TRAUMA EM DIVÓRCIO, DE


RICARDO LÍSIAS

Anna Faedrich Martins 105

BLOGS: NOVOS MEIOS DE CIRCULAÇÃO E PUBLICAÇÃO LITERÁRIAS E DE


CONSTRUÇÃO DA PERSONA AUTORAL

Bruno Lima Oliveira 121

A PERFORMANCE (AUTO)BIOGRÁFICA NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA EM OS


DIAS COM ELE
Bruno Saphira 139

A PRIMEIRA PESSOA DENTRO E FORA DAS NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS:


O AUTOR ALÉM DA OBRA

Camila Canali Doval 149

AUTRAN DOURADO: MEMÓRIA E FICÇÃO NA TRILOGIA DO ALTER EGO

Cláudia Márcia Mafra-de-Sá 159

POÉTICAS DO COTIDIANO E WEBDOCUMENTÁRIOS: DIÁRIOS DA VIDA DO


HOMEM ORDINÁRIO

Cristina Barretto de Menezes Lopes 175

LOUIS-FERDINAND CÉLINE: ESPAÇO BIOGRÁFICO E ESPAÇO PÚBLICO NAS


ENTREVISTAS

Daniel Teixeira da Costa Araujo 185

O ESCRITOR RECLUSO E A ÂNSIA POR INFORMAÇÃO: IDENTIDADE MIDIÁTICA


EM SALINGER E PYNCHON

Davi Boaventura 199

DANÇA AUTOBIOGRÁFICA: ESBOÇANDO UMA TEORIZAÇÃO DO SELF


ENCENADO

Eduardo Augusto Rosa Santana 209

A MEMÓRIA NARRATIVA NA CONSTRUÇÃO DO EU DENTRO DAS PÁGINAS E


FORA DA HISTÓRIA

Eduardo Cabeda 221

JODHAA AKBAR, ESCOLHAS DE UMA REPRESENTAÇÃO DO PASSADO

Emília Teles da Silva 229

SILVIANO SANTIAGO E A ESCRITA FICCIONAL DE SI

Henrique Júlio Vieira Gonçalves dos Santos 247

PERSONAGENS REAIS DA FICÇÃO CINEMATOGRÁFICA

Igor Azevedo de Albuquerque 256


REVERBERAÇÕES DA CRISE DA CIÊNCIA MODERNA NO JORNALISMO E A
EMERGÊNCIA DO “REPÓRTER-PERSONAGEM”

Igor Lage Araújo Alves 267

BIOGRAFEMAS DE UM CORP’A’SCREVER

Janaina de Paula 279

AS PERSONAGENS ANÔNIMAS DE ELIANE BRUM: AS NARRATIVAS


PROTAGONIZADAS PELO HOMEM COMUM

Kassia Nobre dos Santos 287

GEORGES BATAILLE: ESCREVENDO PARA APAGAR SEU NOME?

Lívia Drummond 302

A RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA NA


ANIMAÇÃO PERSÉPOLIS

Lucas Ravazzano de Mattos Batista 313

SUJEITOS EM RETORNO EM SERGIO KOKIS E DANY LAFERRIÈRE

Luciano Passos Moraes 324

O ARQUIVO PESSOAL DE ARIOVALDO MATOS: “LUGAR DE MEMÓRIA” E


RESISTÊNCIA

Mabel Meira Mota

Rosa Borges dos Santos 336

LITERATURA E MUSEOLOGIA: UM ENFOQUE INTERDISCIPLINAR

Márcio Flávio Torres Pimenta 351

O DESVIO DO OLHAR EM DOULEUR EXQUISE, DE SOPHIE CALLE

Marcio Freitas 364

SOU UM NOME E UM SOBRENOME E QUANDO CASO ‘RECEBO’ OUTRO?!:


RELATOS SOBRE A ALTERAÇÃO DO SOBRENOME COM O CASAMENTO

Maria Angélica Vitoriano da Silva

Sinara Dantas Neves 377


ARQUIVOS LITERÁRIOS COMO SUPLEMENTO PARA A CRÍTICA BIOGRÁFICA: A
ATUAÇÃO DE MURILO RUBIÃO NO SUPLEMENTO LITERÁRIO DO MINAS
GERAIS (1966-1969)

Mariana Novaes 389

A ESCRITURA BIOFICCIONAL COMO MONTAGEM CINEMATOGRÁFICA EM O


AMANTE DA CHINA DO NORTE, DE MARGUERITTE DURAS

Mírian Sumica Carneiro Reis

RETRATOS EM CÁRCERE

Rodrigo Jorge 413

A ORIGEM DO SOBRENOME: A ÁRVORE GENEALÓGICA

Rosa Maria da Motta Azambuja

Elaine Pedreira Rabinovich 426

SOBRE A NOÇÃO DE CONJUGALIDADE NA MINHA VIDA, A PARTIR DA


INFÂNCIA: EXCERTOS POÉTICOS AUTOBIOGRÁFICOS

Sinara Dantas Neves 439

O EU E A CIDADE: AUTORRETRATO E MULTIDÃO EM DOIS ENSAIOS FÍLMICOS

Tatiana Hora Alves de Lima 450

A CONSTRUÇÃO DE UM SUJEITO DE OPOSIÇÃO NO WEBDOCUMENTÁRIO THIS


LAND

Tatiana Levin 464

IMAGENS EM AMBIENTES DIGITAIS E SUA RELAÇÃO COM O PRESENTE

Vitor Braga 475

A COLONIZAÇÃO DO COTIDIANO NA FICÇÃO DE JEAN RHYS

Viviane de Freitas 491

OS CAMPOS DE EXTERMÍNIO E A MEMÓRIA DA INFÂNCIA EM W DE GEORGES


PEREC

Zacarias Eduardo da Silva 504


VERDADE E FICÇÃO NA PRODUÇÃO JORNALÍSTICA DE
PERFIS BIOGRÁFICOS1

FACT AND FICTION IN THE JOURNALISTIC PRODUCTION OF


BIOGRAPHICAL PROFILES

Agnes Francine de Carvalho Mariano2

Resumo: O objetivo aqui será analisar a tensão entre verdade e ficção no perfil, gênero
jornalístico centrado em histórias de vida. A entrevista é o procedimento básico de coleta
de dados no jornalismo. Não há dúvida então, que as principais fontes para a elaboração
de reportagens e notícias são as declarações e relatos orais dos entrevistados. Declarações
que exercem um importante papel na sugestão de um “efeito de verdade” no texto
jornalístico. Acontece que toda entrevista lida com a rememoração oral e a memória é
sempre seletiva e imaginativa. Assim, o jornalismo, ao mesmo tempo em que promete
mostrar a “verdade”, de forma objetiva, imparcial, transparente, não pode escapar da
fecundidade das fontes que utiliza. No caso do gênero perfil, essa tensão está ainda mais
presente, pois os perfis costumam ser baseados exclusivamente na entrevista com o
perfilado e trata-se de uma entrevista, com todas as inevitáveis nuances envolvidas,
quando o assunto é uma historia de vida: esquecimentos, eliminações, recriações,
ressignificações. Pois a narrativa biográfica lida com as nossas emoções, dores, afetos,
identidades, autoestima. Talvez exatamente por essa sua abertura intrínseca, o perfil é um
gênero pouco estudado na bibliografia da área. O seu formato é caracterizado como
“flexível”. Tentaremos recuperar aqui algumas discussões sobre o papel desse gênero no
jornalismo e dialogar com reflexões de outros campos que também enfrentam a mesma
tensão entre verdade e ficção nos relatos orais sobre histórias de vida. Essas reflexões
apontam na direção de um entendimento dos textos sobre histórias de vida como
facilitadores da empatia, possibilidades de contato com “experiências” de vida com
mitobiografias o que transcenderia, portanto, o papel informativo.
Palavras-chave: perfil, entrevista, jornalismo biográfico, memória.

Abstract: The goal of this paper is to analyze the tension between fact and fiction in the
profile, journalistic genre that focuses on life histories. Interview is a basic data collection
procedure used in journalism. There is no question then that statements and oral reports
are the main sources for articles and news coverage. Statements play an important role as
they produce a “truth effect” in journalistic writing. Every interview deals with oral
recollection and memory is always selective and imaginative. Therefore, while
journalism is committed to showing the “truth” in an objective, impartial, transparent
way, it cannot escape from the fertile imagination of its sources. In the profile genre, this
tension is even more present, as profiles are often based exclusively on an interview with

1
Mesa-redonda A construção da figura do autor na contemporaneidade.
2
Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), professora, pesquisadora,
jornalista e membro do grupo de pesquisa Jornalismo e a Construção da Cidadania (ECA/USP).
11
the person to be profiled. It is worth noting that, when the subject is a life history,
interviews will also include inevitable subtleties as forgetfulness, deletion, re-creations
and redefinitions. It happens because the biographical narrative deals with our emotions,
sorrows, affection, identities, self-esteem. Perhaps because of this intrinsic amplitude,
there are not many studies on the profile genre. Its format is characterized as “flexible”.
We will gather here some discussions about the role of this genre in journalism and will
open dialogue with reflections from other fields of study that also face tension between
fact and fiction in the oral reports about life histories. These reflections point towards an
understanding of the texts about life histories as empathy facilitators and as possibilities
of being in touch with life “experiences” and myth biographies, which would go beyond
the informative role.
Keywords: profile, interview, biographical journalism, memory.

JORNALISMO E ENTREVISTA

A entrevista é uma situação de interação verbal por meio de perguntas e respostas,


com um objetivo específico. Presente em pesquisas da sociologia, antropologia,
psicologia, história, jornalismo, medicina, linguística, geografia e outras áreas, a
entrevista pode ser praticada de várias formas e atender a demandas diversas. Para Edgar
Morin (1973, p. 115), ela é “uma comunicação pessoal tendo em vista um objetivo de
informação” ou, referindo-se mais especificamente ao campo da comunicação:
“entrevista de rádio-cinema-televisão é uma comunicação pessoal com um fim de
informação pública ou (e) espetacular” (MORIN, 1973, p. 115).

O interesse aqui recai sobre a versão jornalística da entrevista que é, possivelmente,


uma das mais simples e envolve, em geral, muito improviso. Ainda que seja uma técnica
profissional, também há muito de intuitivo na entrevista, muita semelhança com uma
conversa. Por isso existe quem afirme que a entrevista nos veículos de comunicação é
uma arte sem regras (MORIN, 1973, p. 127). Como explica Leonor Fávero (2000, p. 84),
o par dialógico pergunta-resposta é “elemento crucial na interação, sendo difícil imaginar-
se uma conversação sem ele”.

Em algumas áreas profissionais a entrevista pode eventualmente ser utilizada como


forma de captação de dados. Em outros casos, no qual o jornalismo está incluído, a
presença não é eventual. Não há como exercer a profissão de repórter sem realizar
entrevistas: “A entrevista é o procedimento clássico de apuração de informações em
jornalismo” (LAGE, 2001, p. 73). Opinião similar tem Jorge Pedro Sousa (2004, p. 235),
para quem a entrevista “enquanto técnica de obtenção de informações é indissociável da
atividade jornalística”. Para Suely Maciel (2006, p. 7), as fontes humanas, somadas aos

12
dados documentais e à observação, compõem juntas um tripé que “sustenta o
levantamento de informações no Jornalismo”. Ainda que a afirmação da pesquisadora
indique o modo mais confiável de obter informações, esse tripé nem sempre será
acionado. Pois nem sempre há documentos a serem apurados, tempo disponível ou
interesse. E nem sempre a observação é praticada, inclusive porque frequentemente os
repórteres produzem matérias sem sair das redações. O que nos leva a concordar com
Lage: a apuração no jornalismo, na maioria dos casos, está centrada na entrevista, seja ao
vivo, por telefone ou e-mail.

Em jornalismo, a palavra entrevista é utilizada para designar um gênero oral e um


escrito. Também chamado de “entrevista pingue-pongue”, o gênero escrito busca
reproduzir com razoável fidelidade as perguntas e respostas do entrevistador e do
entrevistado – ainda que de forma editada. O que nos interessa aqui é o gênero oral: uma
situação de interação verbal por meio de perguntas e respostas, com o objetivo de coletar
dados para a elaboração de um texto jornalístico.

Em seus primórdios, o jornalismo era opinativo. O papel do jornalista era orientar,


interpretar, especialmente fatos políticos e comerciais, para um grupo seleto de leitores
(LAGE, 2001, p. 10). O jornalismo dessa fase é chamado de ideológico, “de opinião”,
“de partido” (SOUSA, 2001), mas mudanças econômicas e sociais ao redor do mundo
redefiniram a função dos jornais e ampliaram a quantidade de leitores. Nessa nova fase,
o jornal se constitui como empresa capitalista, passa a envolver altos custos e precisa
“vender muito para se autofinanciar” (MARCONDES FILHO, 2002, p. 13), além de abrir
mais espaço para publicidade. Essas mudanças levaram a uma reelaboração do próprio
jornalismo, pois linguagem e conteúdo deveriam atender a um novo tipo de leitor. Foi
nos Estados Unidos onde se consolidaram novos procedimentos, adotados depois no
mundo todo.

Estabeleceu-se que a informação jornalística deveria reproduzir os


dados obtidos com as fontes; que os testemunhos de um fato deveriam
ser confrontados uns com os outros para que se obtivesse a versão mais
próxima possível da realidade (LAGE, 2001, p. 18).
E com esse jornalismo centrado nos “fatos” vão se fortalecendo as ideias de
objetividade, imparcialidade. O mito da “transparência”, a busca da “verdade”, a crença
na “objetividade”, segundo Ciro Marcondes (2002, p. 111), é também herdeira do
Iluminismo: “A crise das ideologias do século 20, contudo, desmoronou as bases
filosóficas desse debate: não havendo mais projetos políticos por que se bater [...]

13
jornalistas ficaram apenas com seu esqueleto instrumental: a busca da transparência em
si, como valor único, ‘valor de verdade’”.

Assim, a existência do jornalismo e sua legitimidade parecem ser indissociáveis da


veracidade dos fatos. Fazer jornalismo é entendido como produzir um “discurso
acreditado como verídico” (BARBOSA, 2004, p. 4). O contrário da verdade é a mentira,
o erro, a fraude. Por isso seria preciso vigiar: entrevistados mentem, falseiam e omitem
dados, por desleixo, conveniência, vaidade, alertam os professores de jornalismo (LAGE,
2001). Se a inverdade tem como origem o próprio jornalista, trata-se do não-jornalismo:

[...] jamais pensamos que o fato narrado não poderia ter se dado ou que
poderia ser uma invenção do seu produtor. O relato jornalístico é
revestido da característica de crível antes de qualquer outra presunção
(BARBOSA, 2004, p. 4).
No texto jornalístico, as entrevistas exercem um importante papel na construção
desse “efeito de verdade”. Como afirma Suely Maciel (2006, p. 9), “a informação
fornecida por pessoas normalmente é apresentada para afiançar a ‘verdade’ dos dados”.
Ela cita o manual de redação do jornal O Estado de S. Paulo, que recomenda o uso de
declarações a cada um ou dois parágrafos, como forma de confirmar a história narrada
(MACIEL, 2006, p. 15). Portanto, além do ato de entrevistar, o uso da citação se tornou
indissociável da profissão: “As citações são uma das marcas mais comuns do texto
jornalístico” (SOUSA, 2004, p. 702-703). Outros procedimentos também participam da
construção do efeito de verdade, da sugestão de imparcialidade: “A fala testemunhal da
fonte, as versões de fontes conflitantes, os modos discursivos de incluí-las e provocar
efeitos de real e de impessoalidade narrativa, entre outras estratégias, sinalizaram a
emergência de um campo de tensões no interior dos enunciados” (MAROCCO, 2008, p.
1). É verdade que o mito da transparência e a busca da verdade ainda são citados como
metas do jornalismo. Mas não se pode negar que muitos autores também já apontaram as
tensões e fragilidades dessa abordagem, propondo outros caminhos3.

3
Trata-se de um modo de encarar as entrevistas e o jornalismo de uma forma menos objetiva, até porque,
como diz Cremilda Medina (1995), a categoria “objetividade” é bastante pobre. O que ela propõe em
substituição é o reconhecimento de que fazer jornalismo é lançar-se a uma decifração possível: “Surge
então a consciência de que entramos numa especulação ilimitada, um mergulho na Verdade de muitas faces,
contradições, em que a atuação do jornalismo é sempre relativa, nunca totalmente objetiva, cientificista”
(MEDINA, 1995, p. 33). Reconhecer que o conhecimento produzido pelo jornalismo é sujeito a erros não
é o mesmo que invalidá-lo. É um conhecimento que salva o presente da morte, diz Cremilda que, por isso
mesmo, define a profissão como a “arte de tecer o presente”.
14
A preocupação com a verdade, a objetividade, a imparcialidade, evidentemente,
não estão restritas ao jornalismo. Nem a problematização desses temas. Há historiadores,
por exemplo, que discutem a distinção entre imparcialidade e objetividade:

A imparcialidade é deliberada, a objetividade inconsciente. O


historiador não tem o direito de prosseguir uma demonstração, de
defender uma causa [...]. Deve estabelecer e evidenciar a verdade ou o
que 'julga' ser a verdade. Mas é-lhe impossível ser objetivo, abstrair das
suas concepções (GÉNICOT, 1980 apud LE GOFF, 1990, p. 29).
E também os que reconhecem as limitações da ideia de verdade: “História e
verdade: nobre e temerária ambição” (BÉDARIDA, 2006, p. 221). Assim como a
impossibilidade de abandonar essa ambição: “a despeito de tudo a busca da verdade deve
ser explicitamente considerada a regra de ouro de todo historiador digno desse nome [...].
Mesmo sabendo que não conseguiremos jamais dominar essa verdade, mas apenas nos
aproximar dela” (BÉDARIDA, 2006, p. 222). Acontece que jornalismo e história
frequentemente lidam com uma dimensão que parece estar situada além da verdade e da
mentira: a memória.

ENTREVISTA E MEMÓRIA

A ideia de que o jornalismo lida com o presente, o atual, a instantaneidade é


frequentemente reforçada. Do alemão Otto Groth ao pernambucano Luiz Beltrão, muitos
estudiosos citaram a “atualidade” como uma das características fundamentais do
jornalismo. Para dar ênfase ao presente, reforçando a sensação de atualidade, os títulos
jornalísticos utilizam quase sempre verbos no presente, mesmo quando descrevem fatos
que já ocorreram. Entretanto, a não ser em casos de transmissões simultâneas pontuais
(TV, rádio ou internet), o jornalismo fala quase sempre do passado, ainda que de um
passado recente: “Noticiam-se, de um modo geral, fatos de um passado recente. O
passado é o tempo da notícia, quando relato do sucedido. Quando anúncio, ela virá no
futuro simples ou no presente usado pelo futuro.” (LAGE, 1979, p. 45).

A relação entre o jornalismo, o passado, a história e a memória não passa


despercebida. Fala-se com frequência sobre o poder de fixar o presente em registros que,
no futuro, servirão de material para historiadores: “o produto do jornalismo – o jornal, a
revista – torna-se fonte de consulta para historiadores, por revelar pistas de
acontecimentos ou do cotidiano de uma determinada sociedade em um determinado
tempo histórico” (SANTOS, 2009, p. 22). E também sobre “reportagens de cunho

15
memorialístico, usualmente comemorativas de datas e eventos históricos importantes.”
(PALACIOS, 2010, p. 47). Ou até de recursos de memória que passaram cada vez mais
a integrar o texto jornalístico, em função da tecnologia digital, que facilitou a
incorporação de “(comparações, analogias, nostalgia, desconstrução etc.), mas
igualmente tornou-se praxe uma forma de edição que remete à memória. Textos
relacionados passam a ser indexados hipertextualmente (Leia mais; Veja também, etc.).”
(PALACIOS, 2010, p. 46).

O que nos interessa aqui, entretanto, é um outro aspecto da relação entre jornalismo
e passado: a sua dependência da entrevista e, portanto, da memória das fontes. E,
principalmente, quais as implicações disso para a tal “busca da verdade”. A abordagem
da questão, em geral, é pontual. Marli dos Santos (2009, p. 22) afirma que “o jornalismo,
para desvendar o presente, precisa do passado: na memória das fontes, na
contextualização dos fatos”. Marialva Barbosa (2004, p. 4) lembra que “é dado ao
produtor do discurso o direito de falar de fatos, eventos, ocorrências que não foram
registrados em sua presença”. Nilson Lage é mais explícito ao relacionar entrevista e
memória, sem deixar de sugerir caminhos para chegar ao “confiável”, que para ele estaria
no testemunho imediato:

Ele se apoia na memória de curto prazo, que é mais fidedigna, embora


eventualmente desordenada e confusa; para guardar fatos; para guardar
fatos na memória de longo prazo, a mente os reescreve como narrativa
ou exposição, ganhando em consistência o que perde em exatidão
factual. (LAGE, 2001, p. 67).
Para enfrentar as ciladas da memória e a mentira deliberada, alguns recursos
comumente sugeridos são a pesquisa em documentos, levantamento de dados e a
pluralidade de vozes. A regra das três fontes é um ingrediente fundamental. Trata-se de
uma recomendação profissional básica: sempre ouvir ao menos três entrevistados
distintos sobre o mesmo fato. A crença, um tanto pueril, é a de que histórias contadas por
três pessoas “que não se conhecem nem trocaram informações entre si” (LAGE, 2001, p.
67) são confiáveis. O que há em comum nos três relatos poderia ser tomado como fato.
O que for relatado por menos de três pessoas seria “versão” ou “interpretação”.

Muitos questionamentos podem ser feitos a partir da constatação da relação entre


jornalismo, entrevista e memória. Além de ser questionável que a coincidência de três
versões seja suficiente para garantir a “realidade do fato”, nem sempre é possível ouvir
essas três versões. Seja porque não existem essas três versões, ou porque não há tempo

16
disponível. Ou ainda porque se trata de um gênero jornalístico que lida muitas vezes com
apenas um entrevistado, como ocorre com o perfil. Frequentemente os perfis tomam como
base apenas uma entrevista: com aquele que conta a sua história de vida. Mas antes de
tratar do perfil e da entrevista sobre história de vida, é importante enfrentar uma questão
mais abrangente, pois diz respeito a qualquer entrevista: o que é a memória?

Foram principalmente historiadores e psicólogos que se debruçaram sobre o tema


da memória. Henry Rousso (2006, p. 94) diz que a memória é “a presença do passado”.
Para Jacques Le Goff a “memória, como propriedade de conservar certas informações,
remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas” (LE GOFF, 1990, p. 423). Alguns se interessam pelo modo como as memórias
individuais são construídas em diálogo com as memórias alheias e com a história erudita,
reforçando a coesão grupal. A memória como representação de “um passado que nunca é
aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social,
nacional. Portanto, toda memória é, por definição, ‘coletiva’, como sugeriu Maurice
Halbwachs” (ROUSSO, 2006, p. 94). Outros se preocupam mais com o caráter opressor
da memória coletiva.

Um aspecto que tem profunda relação com a tão discutida autenticidade da memória
é a sua relação com o presente. Como diz Marialva Barbosa (2004, p. 5), “a memória é
sempre uma ação do presente”. Ou seja, a memória é construída com as palavras e ideias
do presente:

[…] um indivíduo, quer fale espontaneamente de seu passado e de sua


experiência (publicando, por exemplo, suas memórias), quer seja
interrogado por um historiador (tornando-se assim testemunha ou ator
da história), não falará senão do presente, com as palavras de hoje, com
sua sensibilidade do momento, tendo em mente tudo quanto possa saber
sobre esse passado que ele pretende recuperar com sinceridade e
veracidade (ROUSSO, 2006, p. 98).
Portanto, quando alguém diz a sua versão dos fatos numa entrevista, estará sempre
fazendo uma reconstrução do que ocorreu. Uma reconstrução que ocorre no presente,
influenciada por crenças, interesses, percepções e conhecimentos do presente. E que
envolve imaginação.

Outra característica indissociável da memória é o fato de que essa representação do


passado é sempre seletiva. Como diz Marialva Barbosa (2004), a memória é uma ação
que envolve escolhas, que tornam a lembrança e o esquecimento partes de um mesmo

17
processo. Tanto a lembrança quanto o esquecimento podem ser conscientes ou
inconscientes e guiados por uma lista infindável de motivos, que incluem “interesse, a
afetividade, o desejo, a inibição, a censura” (LE GOFF, 1990, p. 426). Velhice, debilidade
física e circunstâncias traumáticas também afetam o que lembramos e esquecemos,
pontua Sebe Bom Meihy (2002). Lembrar de tudo é humanamente impossível e, além
disso, esquecer detalhes é necessário à vida social. O que não se confunde com
“esquecimentos forçados que podem ser considerados ‘apagamentos’, ou seja, promoção
de censuras que obstaculizam o conhecimento de alguma coisa” (MEIHY, 2002, p. 67).

Após esse breve percurso, podemos sintetizar um conceito de memória que inclua
esses diversos aspectos. Iremos recorrer aqui à definição de José Carlos Sebe Bom Meihy,
que, como pesquisador da história oral, tem na memória o centro do seu trabalho:

Memórias são lembranças organizadas segundo uma lógica subjetiva


que seleciona e articula elementos que nem sempre correspondem aos
fatos concretos, objetivos e materiais. As memórias podem ser
individuais, sociais ou coletivas (MEIHY, 2002, p. 54).
Toda entrevista lida com a memória, pois busca recuperar lembranças do que
ocorreu, seja há pouquíssimo, pouco, razoável ou até muito tempo atrás. Portanto, toda
entrevista lida com as limitações físicas e cognitivas do entrevistado, com suas crenças,
interesses, afetos. Toda entrevista lida com a imaginação dos entrevistados e com a sua
inserção social, o que envolve classe, etnia, gênero, nacionalidade e outras dimensões
identitárias que influenciam o modo como enxergamos o mundo. Daí, chega-se
facilmente a um segundo ponto: é possível confiar na memória, os entrevistados trazem
informação fidedigna? Antes de responder a essa pergunta, vamos torná-la ainda mais
complexa, observando a entrevista sobre história de vida que, no jornalismo, é a base para
a escrita de perfis, grandes reportagens biográficas e livros-reportagem biográficos.

MEMÓRIA E RELATOS DE VIDA

Existe um gênero jornalístico que se relaciona de forma muito intensa com a


memória: o perfil. Em jornalismo, perfil é o gênero que conta uma história de vida, ou
trechos de uma vida, ou até um aspecto dela, mas o central é: o texto tem como foco a
vida de uma única pessoa. Essa definição de perfil não é consensual, ainda que seja
majoritária. Há quem utilize a expressão também para se referir a textos que buscam
traçar um “perfil” ou panorama de grupos sociais, comunidades, etc.: “’Reportagem

18
perfil’, não necessariamente vinculada a acontecimentos, que explora e desvenda, com
habilidades literárias, a notoriedade de pessoas, cidades, lugares e instituições”
(CHAPARRO, 1998, p. 95). A mesma concepção aparece num livro de Ricardo Kotscho
(2002, p. 42): “Filão mais rico das matérias chamadas humanas, o perfil dá ao repórter a
chance de fazer um texto mais trabalhado – seja sobre um personagem, um prédio ou uma
cidade”4. A maior parte dos autores de comunicação, entretanto, recorre à palavra perfil
na mesma acepção que estamos utilizando aqui. Dizem Muniz Sodré e Maria Helena
Ferrari: “Em jornalismo, perfil significa enfoque na pessoa – seja uma celebridade, seja
um tipo popular, mas sempre o focalizado é protagonista de uma história: sua própria
vida” (SODRÉ, 1986, p. 126).

Retrato, personalidade, pessoa e biografia são outras palavras utilizadas para definir
o que estamos chamando de perfil. Jorge Pedro Sousa (2001, p. 261) descreve a
“reportagem de personalidade” como “Reportagem cujo tema central é uma pessoa,
relatando, por exemplo, a sua vida (reportagem biográfica), o seu dia a dia, etc.”. Na
bibliografia francesa a palavra retrato (portrait) está muito associada ao gênero. Jean-Luc
Martin-Lagardette define assim o “retrato (perfil)”, que ele situa entre os “gêneros de
comentário”: “Artigo que desenha a personalidade de alguém (conhecido ou não) através
das suas características: biografia, actividades, declarações, maneira de ser, aparência
física...” (MARTIN-LAGARDETTE, 1998, p. 67). Oswaldo Coimbra (2002, p. 117)
utiliza a palavra perfil como sinônimo de “texto jornalístico sobre uma pessoa”. Mas
também adota expressões como “reportagem descritiva de pessoa” ou “texto descritivo
de pessoa” (2002). Sergio Vilas Boas (2002, p. 93) incorpora à sua definição a ideia de
biografia: “O perfil jornalístico é um texto biográfico curto (também chamado short-term
biography) publicado em veículo impresso ou eletrônico, que narra episódios e
circunstâncias marcantes da vida de um indivíduo, famoso ou não”.

Para a maioria dos autores, o perfil seria um tipo ou “subespécie” (CHAPARRO,


1998) de reportagem. Na reportagem, o objetivo não é necessariamente relatar fatos
novos, e sim, tratar de “um assunto conforme ângulo preestabelecido” (LAGE, 1999, p.
46). Ela pode até ser produzida pela repercussão de uma informação nova, mas aborda
aspectos que vão além, busca ampliar, interpretar, trazer desdobramentos, causas,
consequências. Ainda segundo Nilson Lage (1999), a reportagem envolve nível de

4
Apesar dessa afirmação, todos os exemplos citados por Kotscho no capítulo são de perfis de indivíduos.
19
planejamento distinto da notícia, a estrutura do texto é menos rígida e a linguagem é mais
livre. É possível abandonar o lead, a pirâmide invertida e usar recursos literários. O perfil
seria, portanto, um tipo específico de reportagem: aquela com teor biográfico.

É bom que se diga, na bibliografia da área frequentemente o perfil não é citado. E


nem sempre é incluído entre os gêneros a serem praticados nos cursos superiores de
comunicação. Possivelmente porque nem todos o consideram um gênero “muito sério”.
Entre os que veem com desconfiança o espaço dado no jornalismo às histórias de vida,
há o temor da abordagem estereotipada. Esse mesmo desprestígio das histórias de vida
como tema levou a um desinteresse pela biografia. Entre historiadores, ela já foi
considerada um gênero menor5. Mesmo quem defende a importância do perfil pode
assumir uma perspectiva pessimista, enxergando uma redução no espaço e diminuição na
qualidade. “Os raros perfis que tenho visto em publicações nacionais representam uma
quase-negação dos valores humanistas que pautavam as reportagens de quarenta anos
atrás” (VILAS BOAS, 2003, p. 28).

Como lida com tema não factual que exige sensibilidade na apuração e escrita, o
perfil costuma ser associado ao New Journalism ou jornalismo literário. Isto é, uma forma
de apuração e escrita que incorpora recursos literários e que, para muitos, não tem tido
mais espaço nas redações contemporâneas. Estudioso do tema, Sergio Vilas Boas (2003)
indica as pistas para quem deseja compreender o espaço do perfil no jornalismo. Segundo
ele, perfis vêm sendo publicados na imprensa há 200 anos. Mas nos últimos 50 anos é
que apareceu o que ele chama de “perfis longos, em profundidade e escritos
literariamente”. Revistas norte-americanas aparecem em destaque com a publicação de
perfis antológicos. Ele cita Esquire, The New Yorker, Vanity Fair, Life, Harper's, People
e Biography. No Brasil, O Cruzeiro, Realidade, Senhor e Manchete. Quando afirma que
falta espaço hoje para um “jornalismo visceral”, Vilas Boas se refere a esse jornalismo
literário da The New Yorker, da Realidade, com semanas para apurar, com textos longos
e linguagem literária.

O desprestígio do perfil no jornalismo talvez seja apenas aparente. O primeiro


aspecto diz respeito ao espaço que será dado à história de vida. Como explicam Muniz
Sodré e Maria Helena Ferrari (1986), o relato biográfico pode ocupar um trecho de uma

5
Falando sobre as novas perspectivas trazidas pela Escola dos Annales, Boris Fausto (2009, p. 03) explica:
“Esses autores não tiveram por objetivo extrair leis da história, à semelhança das ciências naturais [...]. Mas
trataram de aprofundar o conhecimento histórico, criticando a chamada 'história-batalha' e o excessivo
interesse no estudo dos grandes personagens”.
20
reportagem. Pode também ser o centro do texto, que assume dimensões muito variáveis:
uma reportagem curta, uma grande reportagem ou um livro-reportagem perfil.
Independente da extensão, todas essas modalidades são formas de abordar histórias de
vida em textos jornalísticos. E nunca deixaram de ser publicadas. As reportagens são o
gênero por excelência das revistas. Muitas vezes não nos damos conta, mas o teor
biográfico aparece, sim, em muitas delas. Para citar apenas um caso: ao menos metade
das reportagens publicadas mensalmente na revista Serafina, da Folha de S. Paulo, são
claramente biográficas. No mesmo jornal, textos biográficos aparecem com frequência,
especialmente nas editorias Ilustrada e Cotidiano. Nem sempre o gênero escolhido é a
reportagem. O relato em primeira pessoa tem sido usado em vários momentos. No jornal
O Estado de S. Paulo, a seção Paulistânia frequentemente publica perfis. Fora do eixo
Rio-São Paulo, ocorrem muitas experimentações que, frequentemente, permanecem
desconhecidas. No Rio Grande do Sul, no final da década de 1990, a jornalista Eliane
Brum publicou dezenas de textos no jornal Zero Hora sobre a vida de pessoas comuns
em situações comuns, muitos deles, belíssimos perfis depois reunidos no livro A vida que
ninguém vê (2006), que recebeu um prêmio Jabuti. Na Bahia, entre 2000 e 2008, o jornal
Correio publicou o caderno semanal Correio Repórter, com perfis e grandes reportagens.
Vários deles com caráter biográfico e utilizando recursos literários6.

Os perfis são escritos a partir, principalmente, de relatos de vida obtidos por meio
de entrevistas. Portanto, aquele que relata/narra a sua vida lida necessariamente com a
memória. E não só a de curto prazo. Infância, adolescência e episódios ligados a um
passado ainda mais remoto podem aparecer nessas conversas. Se, conforme afirmamos,
toda entrevista recorre em certa medida à memoria dos entrevistados, no caso das
entrevistas sobre histórias de vida esse aspecto é mais predominante, assim como as
omissões, recriações, fabulações, tal aspecto possivelmente integra a lista de motivos da
ambiguidade (ou receio) com que ele é visto. Muitas vezes, por conta da disponibilidade
de tempo, o perfil toma como base apenas um entrevistado: o perfilado. A observação

6
Citamos anteriormente o desprestígio da biografia, mas é preciso lembrar também que, nas últimas
décadas, o gênero recuperou a sua força. Nos últimos anos, sejam elas escritas por historiadores ou por
jornalistas, “as biografias têm alcançado um grande sucesso editorial no Brasil, igualando até as vendagens
dos manuais de auto-ajuda e dos livros escritos por magos, anjos e esotéricos em geral” (SCHMIDT, 1997,
p. 01). Segundo Schmidt, o destaque maior ficou por conta das biografias escritas por jornalistas. No Brasil,
um dos mais bem sucedidos no ramo é Fernando Morais, autor de Olga (1985) e Chatô - O rei do Brasil
(1994). Mas historiadores também voltaram a se interessar pelo gênero: “Esta volta da biografia está
relacionada com a crise do paradigma estruturalista que orientou uma porção significativa da historiografia
a partir dos anos 60” (SCHMIDT, 1997, p. 02). Um interesse que se manifesta em diferentes países e
correntes teóricas.
21
como forma de coleta de dados, nesse caso, serve muito mais para acrescentar detalhes
que confirmar a veracidade de informações. O mesmo pode ser dito sobre dados
provenientes de pesquisas, documentos, estatísticas. O relato do perfilado tem a seu favor
a força do testemunho, que, como diz Le Goff (1990, p. 09), foi a base da história, que
“começou como um relato, a narração daquele que pode dizer ‘Eu vi, senti’. Este aspecto
da história-relato, da história-testemunho, jamais deixou de estar presente no
desenvolvimento da ciência histórica”.

PARA QUE SERVEM OS PERFIS?

Voltando então à questão lançada anteriormente: é possível confiar na memória, os


entrevistados trazem informação fidedigna? E mais: é possível contar uma “verdadeira”
história de vida a partir de relatos orais? Como disse Marli dos Santos aos seus alunos de
jornalismo preocupados com a “verdade dos fatos” durante a elaboração de um livro-
reportagem, a resposta pode ser bem simples: “Não importa” (SANTOS, 2009, p. 28). Se
é inegável que o perfil, como texto de cunho biográfico, lida intensamente com a
memória, por outro lado, talvez esteja justamente aí a sua força. Pois vem daí a sua
potencialidade de transcender o aspecto informativo e tocar em dimensões mais
profundas e intensamente humanas.

Se, para jornalistas que trabalham com histórias de vida, as omissões e recriações
são típicas “armadilhas da memória” (VILAS BOAS, 2002), entre os pesquisadores da
história oral, o entendimento da “verdade” dos fatos na entrevista é distinto. O que
interessa é a “subjetividade de quem narra” e até a “mentira”, quando localizada, tem suas
intenções e merece ser compreendida:

[…] em vista do conteúdo dos depoimentos, o que se diz é que


comumente são inexatos, cheios de interferências emocionais e vieses
variados. Ao contrário do que se pensa, é exatamente o conjunto dessas
alterações que interessa. Ademais, mora na emoção e mesmo na paixão
de quem narra a subjetividade que interessa à história oral.
[…] Quando acontece de um colaborador indicar datas, lugares ou
números diferentes do conhecido e provável, isso pode significar várias
coisas: que a pessoa simplesmente não se lembra com exatidão; que a
informação não tem importância para a narrativa; que há um equívoco
ou que se opera uma “mentira”. Qualquer dessas opções pode ser
importante, dependendo da abordagem analítica do caso. É
fundamental lembrar que em história oral não existe mentira no sentido
moral do termo. Toda mentira em história oral decorre de intenções, e
é isso que merece ser compreendido (MEIHY, 2002, p. 47-48).

22
Reabilitar a memória é também reconhecer que documentos e estatísticas são
socialmente construídos, a partir de determinada perspectiva e atendendo a interesses.
Até os historiadores já reconhecem que mesmo as fontes documentais não são “menos
seletivas ou menos tendenciosas” (THOMSON, FRISCH e HAMILTON, 2006, p. 67)
que a memória oral. Como afirma Paul Thompson, estatísticas não podem ser tomadas
como fatos, assim como notícias de jornais, cartas ou biografias. “Do mesmo modo que
o material de entrevistas gravadas, todos eles representam, quer a partir de posições
pessoais ou de agregados, a percepção social dos fatos” (THOMPSON, 2002, p. 145).
Chegar a essa “percepção” é o objetivo. Pois essa percepção influencia as nossas crenças,
o modo como encaramos o mundo, fazemos escolhas e lidamos com as outras pessoas.
Por isso se diz que o perfil é indissociável da empatia, mobilizando escreventes e leitores:

Os perfis cumprem um papel importante que é exatamente gerar


empatias. Empatia é a preocupação com a experiência do outro, a
tendência a tentar sentir o que sentiria se estivesse nas mesmas
situações e circunstâncias experimentadas pelo personagem. Significa
compartilhar as alegrias e tristezas de seu semelhante, imaginar
situações do ponto de vista do interlocutor. Acredito que a empatia
também facilita o autoconhecimento (de quem escreve e de quem lê)
(VILAS BOAS, 2003, p. 14).
Em seu artigo O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1985),
Walter Benjamim recupera a figura dos narradores anônimos que, com suas histórias
contadas oralmente, compartilhavam experiências e sabedoria. A fonte principal dessas
narrativas, diz ele, sempre foi a experiência vivida, “sua própria experiência ou a relatada
pelos outros” (BENJAMIN, 1985, p. 201). Mesmo sem assumir explicitamente esse
papel, o narrador é um conselheiro. A narrativa nos traz o saber de outras terras, outros
tempos, outras vidas. Para Benjamin, a “verdadeira narrativa” sempre tem certa dimensão
utilitária: um ensinamento moral, uma sugestão prática, uma norma de vida. Ele sabia que
a palavra “conselho” soa como algo antiquado e explica: “O conselho tecido na substância
viva da existência tem um nome: sabedoria” (BENJAMIN, 1985, p. 200). A palavra
“experiência” é central para entender o que está sendo dito. Benjamin fala em
“intercambiar experiências”, “experiências comunicáveis”, “pobreza de experiências”.
Portanto, o contato com relatos narrados oralmente e depois reelaborados num perfil pode
ter a ver com essas dimensões apontadas por Benjamin: nos trazer “o saber de outras
vidas”, “sabedoria”, “experiências”.

23
Explicando o seu próprio trabalho, João Moreira Salles7 afirma que o papel do
documentarista é transmitir “uma certa experiência”. Não se trata de informação, mas da
experiência do que é ser aquele indivíduo. E acrescenta que a informação expulsa a
experiência. Biografias e perfis são apenas seleções, versões, referências limitadas a
alguns aspectos de uma vida, e, ainda assim, interessam a tantas pessoas. Porque
compartilham experiências e precisamos dessas experiências para somar às nossas. Sem
essas experiências, precisaríamos sempre começar de novo, refazer os percursos, pois não
teríamos o apoio da sabedoria das experiências compartilhadas. Sabedoria que nos ajuda
a tomar decisões e a dar sentido às nossas experiências.

Da mesma forma que conhecer a vida do outro nos modifica, narrar a própria vida
pode ser um processo intenso e transformador. Falando sobre a entrevista em ambiente
clínico, Edgar Morin (1973) lembra que certas conversas podem ter efeito “purificador”
e até de “cura”. Há pesquisadores, entretanto, que identificam o potencial terapêutico em
entrevistas que sequer têm esse objetivo e mesmo não sendo conduzidas por profissionais
da saúde. É o que defende o oralista José Sebe Meihy (MARIANO, 2009, p. 29): “Alguém
que conta a própria história, ao fazer isso, se reidentifica, retraça alguma coisa que a sociedade
moderna tem tirado destes contadores. [...] A pessoa que faz esse relato se reencontra com um
processo narrativo que tem sido roubado dela”.

Numa perspectiva similar, Luisa Passerini (1993, p. 39) acredita que as “histórias
de vida podem ser vistas como construções de mitobiografias singulares, usando opções
de recursos diversos, que incluem mitos, combinando o novo e o antigo em expressões
únicas”. E nessa relação entre o novo e o antigo, a sua proposta é a de “não mais usar
mitos do passado para ler o presente, e sim usar o presente para reinterpretá-los”
(PASSERINI, 1993, p. 39).

Sim, já dizia Pierre Bourdieu (2006, p. 185), tratar as nossas vidas como uma
história, como “um relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado
e direção”, provavelmente é uma ilusão. Pois “o real é descontínuo, formado de elementos
justapostos sem razão” (BOURDIEU, 2006, p. 185). Ainda assim, insistimos em contar
histórias:

“[...] organizamos nossas experiências em histórias que têm tramas,


personagens centrais e sequências de ação que trazem lições implícitas
e explícitas. […] as pessoas buscam instintivamente uma lógica

7
Palestra proferida no Seminário Acadêmico Internacional sobre Jorge Amado, em 25.05.2010, na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP).
24
narrativa, e todos os seres humanos são em essência contadores de
histórias” (SUNWOLF, 2005, p. 305-306).
As nossas vidas não são histórias, não há uma sequência coerente de
acontecimentos, mas precisamos compreendê-las assim para dar sentido a elas. E também
porque esse é um caminho para o nosso encontro com o outro, para a prática do diálogo.
Para Martin Buber (1982), o dialógico é uma forma de comportamento dos homens uns
com outros, uma abertura. Assim, pessoas dialogicamente ligadas precisam,
necessariamente, estarem voltadas uma para a outra. Entre as maneiras de perceber o
outro, Buber distingue três: duas mais distantes – o observador e o contemplador – e uma
terceira que ele nomeia como “tomada de conhecimento íntimo”. Essa última forma de
perceber traduz um encontro mais profundo, quando o outro “diz algo a mim, transmite
algo a mim, fala algo que se introduz dentro da minha própria vida” (BUBER, 1982, p.
42).

Perfis, biografias e relatos de vida em geral podem, intencionalmente ou não, tocar


em dimensões que vão muito além da verdade, objetividade, transparência e
imparcialidade. A memória é complexa, escorregadia, indefinível, mas, ainda assim,
indispensável para a elaboração de quem somos, como vivemos, o que desejamos.
Portanto, capaz de nos orientar em nossa experiência de estar no mundo e também em
nossas tentativas de entender, aceitar, conviver com os outros homens, mulheres e demais
seres que habitam o mundo.

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27
“QUE HOJE NADA E NEM NINGUÉM ESTRAGUE SEU DIA”:
OTIMISMO E MEMÓRIA DO DISCURSO RELIGIOSO NO
FACEBOOK1

“TODAY THAT NOTHING AND ANYONE SPOIL YOUR DAY":


OPTIMISM AND RELIGIOUS DISCOURSE MEMORY ON
FACEBOOK

Aline de Caldas Costa dos Santos2

Edvania Gomes da Silva3

Resumo: Esse trabalho tem como objetivo identificar traços de uma memória coletiva
relativa ao discurso religioso, materializada em narrativas de otimismo divulgadas na rede
social Facebook pela página “Otimismo sempre”. A rede social é tomada enquanto “lugar
de memória”, ou seja, enquanto um recurso para a necessidade humana de registrar e dar
visibilidade às suas memórias vivas, um espaço em que se difunde aquilo que deve ser
lembrado pela comunidade. O estudo é exploratório, realizado por meio de revisão
bibliográfica multidisciplinar e estudo de caso. Dentre os resultados alcançados, constata-
se a proposição de um quadro de memória social delineado por um otimismo referente à
afirmação de valores morais sobre valores materiais ou de status e confiança na
intervenção de elementos metafísicos sobre o futuro, o que funciona como estratégia de
memória do discurso religioso na internet.
Palavras-chave: memória, otimismo, discurso religioso, internet.

Abstract: This paper aims to identify traces of a collective memory on the religious
discourse, embodied in narratives of optimism disclosed in the social network facebook
page "Optimism forever". Social networking is taking “sites of memory”, ie as a resource
for the human need to register and give visibility to their memories alive, in a space that
diffuses what it should be remembered by the community. The study is exploratory,
conducted by multidisciplinary literature review and case study. Among the results
obtained, it appears to propose a framework of social memory outlined by an optimism
concerning the affirmation of moral values over material values or intervention status and
confidence in the future of metaphysical elements, which acts as a memory strategy of
religious discourse on the Internet.
Keywords: memory, optimism, religious discourse, internet.

1
Mesa-redonda A exposição do sujeito nos meios de comunicação I.
2
Doutora em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
3
Professora Adjunta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).

28
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A presença das redes sociais na vida contemporânea é um fenômeno amplo e de


variadas faces. Ela certamente pode ser apontada como marco da “revolução digital” de
que trata André Lemos, caracterizada pela democratização da cadeira de emissor, ou seja,
pela ruptura de hierarquias no uso da palavra, estabelecendo a metáfora do rizoma como
melhor imagem para a atual configuração da comunicação na internet: “a circulação de
informações não obedece à hierarquia da árvore (um-todos), e sim à multiplicidade do
rizoma (todos-todos)” (LEMOS, 2004, p. 68).

Qualquer usuário pode fazer uso desses espaços virtuais para disseminar suas
opiniões, suas reflexões, seus estados emocionais ou, simplesmente, compartilhar
conteúdos produzidos por outrem. Nesse sentido, são muitos os perfis impessoais, criados
em formato de comunidade, a congregar seguidores interessados em um tema específico
e com divulgação de conteúdos que costuma ter frequência diária.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é identificar, no Facebook, conteúdos


referentes ao otimismo que representem estratégias de reforço de uma memória do
discurso religioso.

Destaca-se que esse artigo apresenta resultados parciais da pesquisa de doutorado


que se encontra em andamento no Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem
e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória
da Conquista, sob o título Memória, otimismo e discurso religioso nas redes sociais em
tempos de ética pós-moderna.

Neste trabalho, especificamente, o estudo é exploratório, realizado a partir de


revisão bibliográfica e de estudo de caso. O corpus de estudo foi selecionado com auxílio
da ferramenta de buscas da rede social Facebook. Digitando-se o termo “otimismo” surge
em destaque, como fan page mais popular, a opção “Otimismo sempre”4. Todas as
imagens que compõem o corpus foram coletadas nesse endereço virtual e estão visíveis
no alto da imagem, na caixa de endereços da web, de modo que a referência à fonte, após
a inserção dos materiais, foi, por questões de leveza e de visibilidade, suprimida.

4
https://www.facebook.com/pages/Otimismo-Sempre/231866063491708?fref=ts

29
A MEMÓRIA, O OTIMISMO E O DISCURSO RELIGIOSO

Os estudos sobre memória não são recentes, mas a produção científica referente à
memória é relativamente nova, especialmente a que se liga à Nova História, cuja
proposição é uma perspectiva crítica sobre o estudo da história e sobre o olhar teórico
referente ao passado. O sujeito histórico, largamente descrito e documentado, passa a ser
compreendido também por meio de características subjetivas, dialéticas e culturais,
recorrendo-se, inclusive, a memórias coletivas e a fontes orais, ou seja, a fontes não
convencionais ao conhecimento científico. A relação com o tempo não está subjugada à
linearidade cronológica, mas admite focos não-lineares sobre a temporalidade (LE GOFF,
1990).

A memória, por sua vez, figura junto à Nova História enquanto um campo vivo,
dinâmico, instalado no momento presente, seja para o sujeito ou para grupos sociais
(NORA, 1993). A memória se configura como o laço que une os sujeitos, carregando
consigo uma conotação afetiva, mágica. Sem perder de vista sua condição de aptidão
natural aos sujeitos, a memória tem apenas o corpo como suporte, mas pode ser
materializada no que Pierre Nora chama “lugares de memória”, aqueles espaços
simbólicos onde se “sacralizam” as memórias coletivas. Ainda segundo Nora:

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há


memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar
celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar
atas, porque estas operações não são naturais (NORA, 1993. p.13).
Pode-se, partindo desse aporte teórico, compreender o ambiente das redes sociais
virtuais enquanto lugar de memória, enquanto local onde se fixa aquilo que deve ser
lembrado, funcionando como um recurso para a necessidade humana de registrar e dar
visibilidade às suas memórias vivas. Cada membro das redes sociais pode publicar ou
compartilhar conteúdos que reforçam o que para ele ou para seus grupos deve ser
lembrado, celebrado, aumentando a coesão das comunidades, cujos membros partilham
das mesmas referências simbólicas.

Quando se amplia a abordagem para além de um indivíduo, abrangendo


comunidades, a memória é elevada à condição de fenômeno social. A esse respeito, vale
citar o sociólogo francês Maurice Halbwachs e seu constructo teórico acerca da memória
coletiva. Para Halbwachs, a recordação acerca de algo é mais forte e confiável quando
vivenciada em grupos, ou seja, quando é familiar a mais de um sujeito. Quando alocada
na mente de um indivíduo apenas, ela figura somente como uma “lembrança vaga”,

30
passível de diluição e anulação, decorrentes da perda de interesse desse sujeito por um
determinado tema ou pelo seu afastamento do grupo que o partilha. Assim, a memória
individual é marcada por sua fragilidade. Entretanto, quando compartilhadas por um
grupo, as memórias constituem um “sistema independente”, pois em perspectiva social
“elas estão ligadas uma a outra e apoiadas de certo modo uma sobre a outra”
(HALBWACHS, 2004, p. 33), compondo “quadros sociais de memória”.

Tais mecanismos estão, em alguma medida, relacionados aos “fatos sociais” de que
tratou Durkheim, referência maior de Halbwachs. Os quadros de memória exercem sobre
os grupos sociais a coerção necessária à manutenção de um “estado de coisas”,
alimentando-se, ao mesmo tempo, dele.

Halbwachs acrescenta que a memória sempre será acionada pelo outro. Ela se torna
um meio de conhecer a realidade, mesmo que de forma subjetiva.

Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas


pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós
estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em
realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens
estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos
sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se
confundem (HALBWACHS, 2004, p. 26).
Nessa relação entre o sujeito e o outro, há que se levar em conta que “a memória é
um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual e coletiva,
cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje,
na febre e na angústia” (LE GOFF, 1990, p. 476). Assim como os demais âmbitos da vida
contemporânea estão em acelerada transformação, a questão da identidade se tornou
flexível às mudanças, de modo que ter ou atualizar uma identidade tornou-se prerrogativa
para sentir-se seguro, aceito, capaz de cooperar para com a formação da identidade de um
grupo. Esse aspecto do fenômeno instiga a reflexão sobre até que ponto o sujeito está na
memória social e quanto da memória social se coloca para o sujeito na formação de uma
identidade.

É nesse âmbito que emerge o interesse pelo otimismo e pelo discurso religioso.
Embora haja, nos estudos filosóficos das décadas de 1980 e 1990, um pessimismo
decorrente do reconhecimento de que a modernidade não se desenvolveu conforme o
iluminismo propôs, existe, nas redes virtuais, a proliferação de narrativas otimistas quanto
à ética, aos valores, à melhoria da qualidade de vida de modo geral.

31
O otimismo notado nas relações virtuais pode ser compreendido a partir da
contribuição filosófica de Artur Schopenhauer. Em Aforismos para a sabedoria de vida
(2006), o chamado filósofo do pessimismo admite elaborar um trabalho em contramão à
sua filosofia, dedicando-se à eudemonologia. Em primeiro lugar, há uma apropriação da
divisão tripartite do homem, explicada por Aristóteles: o que o homem é, sua
personalidade, valores etc.; o que ele tem, seu conjunto de bens ou patrimônio; o que ele
representa face os demais, sua “honra, posição e glória” (SCHOPENHAUER, 2006, p.
5).

Investir apenas sobre o ter e o aparentar seria uma tentativa de encobrir de uma
imagem de felicidade o que em verdade “emerge da pobreza e vacuidade mentais”. Ainda
segundo o referido filósofo, priorizar o ser, ou seja, o intelecto, a educação e o modo de
se colocar para o mundo seria o caminho para superar os males que a ênfase sobre as
demais instâncias podem causar, quais sejam: “vazio de suas vidas interiores, a
obtusidade de suas consciências e a pobreza de suas mentes” (SCHOPENHAUER, 2006,
p. 5). Em seguida, o filósofo faz referência a Homero, pois sugere deixar o futuro no
“colo dos deuses”, ou seja, concentrar-se sobre o momento presente.

O discurso religioso é aqui compreendido como o que Eric Fromm chama de


“sistemas de orientação e devotamento”, ou seja, “todos os sistemas de ideias que
procuram dar resposta à busca de significado pelo homem e à tentativa deste para
compreender sua própria existência” (FROMM, 1972, p. 49). Esses sistemas podem
conter ou não uma proposição teísta - uma ideia de Deus. A hipótese em questão é de que
as narrativas de otimismo compartilhadas nas redes sociais se comportam como
estratégias de lembrança de um quadro de memória social referente ao discurso religioso.

OTIMISMO SEMPRE: NARRATIVAS VIRTUAIS E MEMÓRIA COLETIVA

O espaço virtual “Otimismo sempre” foi criado na rede social Facebook em 20 de


junho de 2011. As informações sobre sua autoria e alimentação não são divulgadas. A
visitação à página é livre e todos os conteúdos são disponibilizados em modo “público”,
mas a visualização dos conteúdos no feed de notícias depende de um clique sobre a opção
curtir. Até o momento da finalização desse estudo, a página registrava 6.064 curtidas e
exibia o índice de 3.654 usuários “falando sobre isso”.

32
Figura 01: imagem de capa da página “Otimismo sempre”

Para esse estudo, foram selecionadas cinco imagens postadas na página em questão.
A partir desse corpus, foram observadas pontes possíveis de sentido entre o otimismo e
discursos religiosos de diversos livros da Bíblia Sagrada, portanto, com os sistemas de
orientação e devotamento judaico e cristão.

O primeiro elemento a ser destacado nesse corpus é a imagem que foi compartilhada
pela fan page em 14 de outubro de 2013 e versa sobre a ideia de riqueza.

Figura 02: A dimensão do ter.

O discurso acerca da ideia de riqueza exposto na imagem encontra consonância


com o exposto sobre o otimismo, pois sugere que se coloque em segundo plano o aspecto

33
material – o ter de que trata Aristóteles –, em função de elementos apenas assimiláveis
na dimensão do ser, da subjetividade.

A imagem, uma outra forma de materialização de discursos, apresenta um casal que


caminha, o homem segura as rédeas de um cavalo, e a mulher está ao lado do homem,
juntos eles observam o crepúsculo. A imagem sugere, portanto, apreciação da natureza
como escolha romântica, experiência que nutre a relação afetiva e une o casal em laços
de valor simbólico, imateriais. Tal interpretação mostra que estar junto do(a) amado(a) é,
de fato, mais importante do que ter dinheiro.

Também existe um elo entre esse discurso e aquele presente no Evangelho de


Mateus (6.19-21), que diz: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a
traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros
tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem
roubam; porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração”.

Também o evangelista Lucas trata dessa questão quando afirma que: "mesmo na
abundância, a vida do homem não é assegurada por seus bens"" (Lc 12.15) e conclui
“Pelo contrário, buscai o seu Reino, e essas coisas vos serão acrescentadas” (Lc 12.31).

Ainda sobre esse tema, o apóstolo Paulo foi assertivo, em sua primeira carta a
Timóteo: "o amor ao dinheiro é raiz de todos os males” (I Tm 6.10).

O segundo material que compõe o corpus desse estudo faz uso da ideia de status e
aborda valores morais.

Figura 03: A dimensão do aparentar.

34
O texto lança mão da ideia de elegância, de adequação ao comportamento social,
para sugerir que as categorias da aparência ou da representação do sujeito devem ser
sustentadas por valores morais. Em outras palavras, sugere-se que uma pessoa só pode
ser considerada chique ou requintada quando tais características estiverem vinculadas ao
âmbito do ser, conforme referiu Schopenhauer acerca do pensamento de Aristóteles. A
imagem de fundo contribui para essa leitura no campo da ética, pois se assemelha a uma
cortina transparente à luz, como transparente seria aquele que mantém os valores morais
como algo central na sua vida.

Na carta aos Romanos, Paulo de Tarso faz ponte entre o texto apresentado na
mensagem e o discurso religioso cristão: “Igualmente o mundo fica escandalizado e o
nome de Deus é blasfemado, quando um crente deixa de honrar os seus compromissos”
(Rm 2:21-24). E ainda no livro dos Salmos, considerado o coração do Antigo Testamento,
lemos: “Como é feliz aquele que não segue o conselho dos ímpios, não imita a conduta
dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores! Ao contrário, sua satisfação está
na lei do Senhor, e nessa lei medita dia e noite” (Sl 1:1-3).

Os dois materiais a seguir ilustram o funcionamento do otimismo em relação ao


âmbito do ser, encerrando a tríade de Aristóteles citada por Schopenhauer.

A primeira postagem apresenta a proposta de que aquele que cultiva valores morais
acumula gradativamente possibilidades maiores de responder com atitudes exemplares às
condições adversas estabelecidas por outrem.

Figura 04: A dimensão do ser I.

35
A imagem das mãos unidas sugere reconciliação em lugar de rompimento. Assim,
pode-se inferir uma ligação com o discurso religioso como mostra a citação do
evangelista Mateus: “Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau; antes, àquele que
te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda” (Mt, 5: 39). Tal passagem bíblica
coaduna-se com o exposto na mensagem de otimismo selecionada, pois ambas sugerem
a possibilidade do perdão em oposição à ira e ao rancor.

Seguindo a mesma linha de valorização do ser em detrimento do ter e do aparentar,


porém enfatizando o desapego às questões materiais, tem-se a mensagem seguinte:

Figura 05: A dimensão do ser II.

O sorriso não resulta de custos materiais e embeleza o seu portador, bem como
suscita reciprocidade nos demais pelo compartilhamento de um estado de ânimo desejado
pelas pessoas, em atitude de generosidade para com os outros, de fazer o bem aos outros.
A mensagem coloca a roupa material em condição de menor importância ante a decisão
de fazer o bem por si e pelos demais.

O desenho do sol, carregando um sorriso, funciona enquanto metáfora e mostra que


a alegria ilumina a rotina, traz luz à caminhada cotidiana.

Pode-se, aqui, tecer uma relação com a passagem bíblica do livro atribuído a
Salomão, que diz: “E compreendi que não há felicidade para o homem a não ser a de
alegrar-se e fazer o bem durante sua vida” (Eclesiastes, 3: 12).

36
A postagem a seguir encerra os itens destacados na leitura de Schopenhauer acerca
do conceito de otimismo adotado nessa pesquisa. A partir do significado da palavra
“resiliência”, é apresentada a influência de elementos exteriores na conduta dos sujeitos.

Figura 06: Confiança e fé.

O texto da publicação aponta para a qualidade de superação das adversidades, a


qual possibilita extrair novos recursos de cada experiência para valorizar os momentos de
tranquilidade e fortuna.

Tomando a imagem como texto complementar, verifica-se uma clara representação


da passagem bíblica sobre a tempestade: “Aproximando-se dele, despertaram-no dizendo:
‘Mestre, mestre, estamos perecendo!’ Ele, porém, levantando-se, conjurou severamente
o vento e o tumulto das ondas; apaziguaram-se e houve bonança. Disse-lhes então: ‘Onde
está a vossa fé?’” (Lc, 8 24-25). Estão contidos, nessa ideia de fé, os demais elementos
de que o texto trata, a exemplo da flexibilidade no pensar – a bonança cede passagem à
tormenta, que, por sua vez, também cederá a outros estados –, que leva ao otimismo e à
possibilidade de estabelecer metas.

Também essa compreensão vai ao encontro do texto do Eclesiastes (3,1-22),


“observo que não há felicidade para o homem a não ser alegrar-se com suas obras: essa é
a sua porção”, marcando o olhar presente no discurso religioso judaico-cristão acerca das
conquistas e das mudanças que os sujeitos podem passar.

37
CONSIDERAÇÕES SOBRE A REVERBERAÇÃO DOS DISCURSOS

Para respaldar a hipótese de que as narrativas de otimismo em estudo materizam


quadros de memória social referentes ao discurso religioso, toma-se em conta as
considerações de Michel Foucault acerca do controle social dos discursos. Foucault
sugere que “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por
função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar
sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 8-9). Foucault afirma que os
discursos possuem em si mecanismos de controle próprio, cujo funcionamento ocorre por
meio de procedimentos externos, responsáveis pela limitação dos discursos, e de
procedimentos internos, que atuam no plano da rarefação destes.

Interessa ao propósito desse estudo o procedimento interno a que Foucault chamou


“princípio do comentário”. O princípio do comentário reza que, dada a raridade dos
discursos – discutida por Foucault em A arqueologia do saber –, muitos daqueles que
circulam, em verdade, são formas repetíveis de discursos já existentes, ou seja, são
discursos novos, porém sem novidade. Nesse sentido, para o referido autor, o “novo não
está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 1996, p. 26).
Foucault apresenta o comentário na forma de um “desnivelamento entre discursos”:

Os discursos que "se dizem" no correr dos dias e das trocas, e que passam
com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na origem
de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam
ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de
sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer
(FOUCAULT, 1996, p. 22, grifos do autor).
Trata-se de uma observação acerca da permanência de certos discursos em
perspectiva histórica, bem como da impermanência de algumas de suas referências ou
formas. Isso significa que o deslocamento que constitui o comentário não é estável,
tampouco absoluto. “Muitos textos maiores se confundem e desaparecem, e, por vezes,
comentários vêm tomar o primeiro lugar” (FOUCAULT, 1996, p. 23). Assim, o
comentário é o princípio interno que permite a classificação e a categorização dos
discursos, dada sua repetição em distintas materialidades históricas.

Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual


não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já
havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto,
não havia jamais sido dito. A repetição indefinida dos comentários
é trabalhada do interior pelo sonho de uma repetição disfarçada:

38
em seu horizonte não há talvez nada além daquilo que já havia em
seu ponto de partida, a simples recitação (FOUCAULT, 1996, p.
25).
O princípio do comentário coopera com a perspectiva desse estudo no sentido de
explicar como a memória dos discursos religiosos podem se materializar nas narrativas
de otimismo por meio de uma remodelagem da forma, mantendo, porém, o conjunto
elementar de sua existência.

REFERÊNCIAS

BIBLIA de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.

FROMM, Erich. Análise do Homem. Tradução de Octavio Alves Velho. 8ª ed. Rio de Janeiro:
Zahar editores, 1972.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Loyola, São Paulo, Brasil, 1996.

HALBWACS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994.

LEMOS, Andre. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre:
Sulina, 2004.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. 2ª ed. São Paulo: Wmf Martins
Fontes, 2006.

39
NOS PLATÔS DO DESASSOSSEGO DE BERNARDO SOARES E DE
FERNANDO PESSOA: IDENTIDADE E ALTERIDADE1

ON THE PLATEAU OF DISQUIET OF BERNARDO SOARES AND


FERNANDO PESSOA: IDENTITY AND ALTERITY

Aline Job2

Resumo: A abordagem desse artigo incide na hipótese de uma representação da


multiplicidade identitária, ou seja, o sujeito não é único e sim miriádico, o que se pode
observar materialmente pela criação dos heterônimos de Fernando Pessoa. Assim, essa
ideia de pluralidade de centros insere-se na compreensão dessas diferentes identidades
como uma implosão de uma unidade que jamais existiu. O sujeito contemporâneo insere-
se numa perspectiva epistêmica que revela a busca por um sentido de ser, de existir, que
parece perdido há muito. Nesse panorama de uma existência mediada pela velocidade e
pela fluidez, nada se apresenta fixo ou estável, mas num constante devir, sendo que esse
devir dá-se também num processo contínuo que não fecha, revelando-se inconstante,
fragmentado. Na literatura contemporânea, familiar com os elementos constitutivos de
uma narrativa pós-moderna, são vários os exemplos de textos que funcionam como uma
hipótese epistemológica para se pensar a existência, a identidade, a verdade em si. Assim,
é pela escritura que parecem surgir perspectivas de se pensar esses anseios humanos da
existência, uma forma alternativa de refletir sobre os elementos que constituem o saber
filosófico, a saber: o da identidade (existência, até certo ponto) e da alteridade. O Livro
do Desassossego parece se aproximar dessa concepção contemporânea de conhecimento
fragmentado e instável (mais comumente localizável nos textos pós-modernos) e foi por
essa razão selecionado para a discussão dos temas identidade e alteridade. Dessa forma,
o jogo que se faz na escritura com a criação desse semi-heterônimo de Fernando Pessoa
possibilita uma relação de constante alteridade que se realiza entre todas essas criações
do autor. Assim pensado, Bernardo Soares, como signo, pode ser observado nos termos
da différance (Jacques Derrida) e nos termos de platôs e rizoma (Gilles Deleuze e Félix
Guatarri). Nessa consideração, o Livro do Desassossego é tomado como o conjunto de
mil platôs que dão existência fragmentada a Bernardo Soares, dando materialidade a sua
existência ficcional, formalizada pelas memórias e reflexões filosóficas, gerando, assim,
uma identidade narrativa (Paul Ricoeur), produzida na e pela alteridade, através das
“autoficções” de Fernando Pessoa, num jogo de recriação de si na narrativa,
possibilitando a mediação necessária para reflexões do eu.
Palavras-chave: Fernando Pessoas, Bernardo Soares, Livro do Desassossego,
identidade, alteridade.

1
Mesa-Redonda Memória e ficção em narrativas literárias.
2
Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

40
Abstract: The approach of this article focuses on the hypothesis of a representation of
the many and varied dimensions of identity, ie, the subject is not unique but myriadic,
which can be seen physically by the creation of Fernando Pessoa’s heteronym. So, this
idea of plurality of centers is inserted on the understanding of these different identities as
an implosion of a unit that has ever existed. The contemporary subject is part of an
epistemic perspective that reveals the search for a sense of being, of existence, which
seems lost long ago. In this panorama of a life mediated by the speed and fluidity, nothing
has fixed or stable meaning, but a constant becoming, and this becoming also represents
a continuous process that does not have a closure, revealing inconsistent and fragmented.
In contemporary literature, familiar with the constituent elements of a postmodern
narrative, there are several examples of texts that function as an epistemological
assumption to think about the existence, identity, and truth itself. So, is through scripture
that seem to arise these perspectives of yearnings of human existence, an alternative way
to think about the elements that constitute the philosophical knowledge, namely the
identity (existence, to some extent) and otherness. The Book of Disquiet seems to
approximate this contemporary conception of fragmented and unstable knowledge (most
commonly located in postmodern texts) and was selected for this reason to discuss the
themes identity and otherness. Thus, the game that is done in the scripture with the
creation of this Fernando Pessoa’s semi-heteronym provides a constant relation of
otherness that occurs between all these creations of the author. Thought so, Bernardo
Soares, as a sign, can be observed in terms of différance (Derrida) and in terms of plateaus
and rhizome (Gilles Deleuze and Félix Guattari) . In that regard , The Book of Disquiet is
taken as a set of fragmented thousand plateaus that give existence to Bernardo Soares,
giving materiality to its fictional existence, formalized by memories and philosophical
reflections, thereby generating a narrative identity (Ricoeur), produced in and through
otherness, through the Fernando Pessoa " auto-fictions", in a game to recreate itself in the
narrative, allowing the necessary mediation for reflections of the self.
Keywords: Fernando Pessoa, Bernardo Soares, The Book of Disquiet, Identity, Alterity.

“Meu nome é Legião, porque somos muitos.” (Marcos 5, 9)

Ninguém vai negar que o sujeito contemporâneo insere-se numa perspectiva


epistêmica que revela a busca por um sentido de ser, de existir, que parece perdido há
muito. Nesse panorama de uma existência mediada pela velocidade e pela fluidez, nada
se apresenta fixo ou estável, mas num constante devir, sendo que esse devir dá-se também
num processo contínuo que não fecha (num processo fenomenológico e interpretativo em
que o centro está sempre fora do centro e em algum outro lugar), revelando-se
inconstante, fragmentado.

Na literatura contemporânea e familiar com os elementos constitutivos de uma


narrativa pós-moderna, são vários os exemplos de textos que funcionam como uma
hipótese epistemológica para se pensar a existência, a identidade, a verdade em si. Como
exemplos, pode-se pensar em o narrador de Fight Club, de Chuck Palahniuk: ele afirma
41
que “everything is so far away, a copy of a copy of a copy” (2006) e segue pela narrativa
desenvolvendo aforismos para construir essa ideia de existência no momento histórico
em que se situa.

De forma não muito dessemelhante, pode-se “capturar” alguns dos pensamentos


das personagens de Cormac McCarthy em dois de seus textos já transmidiados para o
cinema no sentido de exemplificar esse mesmo movimento de vazio espiritual: 1 – “You
think when you wake up in the mornin yesterday don't count. But yesterday is all that does
count. What else is there? Your life is made out of the days it’s made out of. Nothin else.”
(No Country For Old Men) (2005); 2 – “Nobody wants to be here and nobody wants to
leave.” (The Road) (2006); 3 – “Query: How does the never to be differ from what never
was?” (The Road) (2006); e 4 – “You need to be put out of your misery. Be the best thing
for everybody.” (No Country For Old Men) (2005).

Dos exemplos, resta a ideia de uma construção do sujeito em relação ao tempo, à


história, ao seu dia a dia como um devir sucessivo e, até certo ponto, monótono.
Entretanto, os questionamentos e pensamentos dessa ordem não são específicos da
literatura e do homem contemporâneo, são, sim, elementos que perpassaram as reflexões
filosóficas por séculos afora. Não obstante, a busca por verdades e pela certeza do
racionalismo nublou por certo tempo essas inquietações, mas a ciência parece não ter
resposta para muitos dos questionamentos do sujeito quando esses vão além daquilo que
é material.

Assim, é pela escritura que parecem surgir perspectivas de se pensar esses anseios
humanos da existência, uma forma alternativa de refletir sobre os elementos que
constituem o saber filosófico, a saber: o da identidade (existência, até certo ponto) e da
alteridade. Em The Gift of Death, Jacques Derrida afirma que “tout autre est tout autre”
e posiciona a questão da singularidade e da alteridade sobre o próprio jogo da linguagem
dessa afirmação: “the other is the other, that is always so, the alterity of the other is the
alterity of the other” (DERRIDA, 1995, p. 83). Nesse sentido, a busca pela identidade só
se dá no reconhecimento do outro, ou do “wholly other” como denomina Derrida, e é um
processo constante em que não se atinge um ponto definido, fixo, mas, sim, instável,
sempre no devir.

Fernando Pessoa, escritor português moderno e não pós-moderno, produziu em boa


parte de seus quarenta e sete anos de vida (1888-1935) textos que problematizam, muitas
vezes, questões dessa ordem, isso se evidencia não só pela produção textual, mas,
42
também, pela forja de seus heterônimos (no caso de Bernardo Soares, um semi-
heterônimo) pela construção de uma biografia singular, de uma poética e de estilos
particulares para cada uma dessas entidades ficcionais. Tendo esses elementos em
consideração, somados aos questionamentos do ser humano citados anteriormente, o
Livro do Desassossego parece se aproximar dessa concepção contemporânea de
conhecimento fragmentado e instável (mais comumente localizável nos textos pós-
modernos).

Pensando por uma perspectiva, o texto de Bernardo Soares (semi-heterônimo de


Fernando Pessoa) poderia ser abordado pela ideia de obra, então se seguiria um caminho
pela construção em termos de estruturas do campo literário, ou pela perspectiva do texto
em si, a escritura como jogo (jogo de possibilidades, de exploração, mesmo da
différance):

[...] o jogo entrega-se hoje a si mesmo, apagando o limite a partir do


qual se acreditou poder regular a circulação dos signos, arrastando
consigo todos os significados tranqüilizantes, reduzindo todas as
praças-fortes, todos os abrigos do fora-de-jogo que vigiavam o campo
da linguagem. (DERRIDA, 2011, p. 8)
Dessa forma, o jogo que se faz na escritura com a criação desse semi-heterônimo
de Fernando Pessoa possibilita uma relação de constante alteridade que se realiza entre
todas essas criações do autor. Assim pensado, Bernardo Soares, como signo, pode ser
observado nos termos da différance: ele se constrói por aquilo que ele é (lisboeta, guarda-
livros, morador da Baixa etc.) e nesse processo dá-se um retardamento (diferir), pois
aquilo que ele é só pode ser definido por outras palavras; em contrapartida, Bernardo
Soares pode ser definido por aquilo que não é (coimbrã, bibliotecário, morador de Santa
Cruz etc.). Entretanto, ele não está em oposição, ou alteridade, apenas em relação ao que
o constitui, mas, também, em alteridade com o que constrói os outros heterônimos de
Fernando Pessoa.

O Livro do Desassossego poderia, então, ser tomado como um texto feito de


platôs, pois construído de fragmentos que estão ou não conectados entre si e que podem
ser lidos como excertos a partir da parte que se desejar. Seguindo o que Deleuze e Guattari
(1995, p. 33) afirmaram: “Chamamos ‘platô’ toda multiplicidade conectável com outras
hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma.”. Nesse
sentido, os fragmentos apresentados por Bernardo Soares estariam conectados entre si,
de forma que uma rede de conexões seja possível, pois como não livro, como livro por

43
vir e a ser processado pelo leitor, o Livro do Desassossego descentra-se da instituição
“livro”.

O Livro do Desassossego é rizoma, é um conjunto de mil platôs em que os


fragmentos vão corporificando a identidade narrativa de Bernardo Soares, que, sem as
páginas de papel (a escrita), não existiria. Mesmo com o processo de criação
heteronímica, formalizada pelas memórias e pelas reflexões filosóficas, não há um centro
no texto, mas diversos centros. De certa forma, essa escritura que se realiza funciona
como um processo de inacabamento, pois o texto em si, embora chegue a um fim, não
tem um término propriamente.

A ideia de rizoma, já presente na conceituação de platô, possibilita pensar no Livro


do Desassossego por diferentes pontos de vista: o primeiro deles tem a ver com o fato de
que a construção da identidade de Bernardo Soares é uma construção rizomática,
considerando que ela se dá pela disposição em rede e fragmentada das memórias e
reflexões desse sujeito; já o segundo tem a ver com o rizoma como proposta filosófica de
se pensar o conhecimento, e nesse sentido o Livro do Desassossego se coloca como um
projeto de não livro, um livro por vir, “obra aberta”3 em que qualquer projeto de escritura
vai contra uma formalização de livro num sentido ortodoxo.

Assim, a proposta de Deleuze e Guattari desse perspectivismo em que não se tem


um centro de poder, mas uma miríade de nós como numa rede em que todos os pontos
estão conectados. Os autores definem esse conceito da seguinte forma:

diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um


ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não
remete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em jogo
regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O
rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele não é
feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças.
Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e
transborda. Ele constitui multiplicidades. (DELEUZE; GUATARRI,
1995, p. 32)

Observando a definição de rizoma, as considerações anteriores sobre esse conceito


em relação ao Livro do Desassossego sustentam, então, tanto a ideia do texto como uma
multiplicidade de centros de poder (e nesses centros, diferentes temas passeiam, a saber,
o da identidade, o da alteridade, o da consciência, o da metaficção, entre outros) que

3
ECO, Umberto. Obra Aberta. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1971.

44
transbordam dos fragmentos, como a ideia da identidade multifacetada de Bernardo
Soares como a criação ficcional de Fernando Pessoa em mais um de seus heterônimos.

Assim pensado, o Livro do Desassossego como “obra aberta”, como livro


inacabado e no devir, insere-se como uma escritura contemporânea, pois rompe com a
estrutura linear (no sentido de começo, meio e fim) e coloca o fragmento como estratégia
de construção narrativa. Outro elemento, ainda dentro do pensamento de Deleuze,
presente no texto Crítica e Clínica, é o de que a escritura, o seu ato, é um “jamais pronto”,
“sempre como um devir”, “sempre inacabada”, “em via de fazer-se” (DELEUZE, 1997,
p. 11).

Nesse sentido, a abordagem desse artigo incide na hipótese de uma representação


da multiplicidade identitária, ou seja, o sujeito não é único e sim miriádico, o que pode
ser observado materialmente pela criação dos heterônimos de Pessoa. Assim, essa ideia
de pluralidade de centros insere-se na compreensão dessas diferentes identidades como
uma implosão de uma unidade que jamais existiu, pois cada sujeito concreto engloba
todos os infinitos sujeitos que existem dentro de si mesmo. A unidade é uma contradição.
O que Pessoa faz com seus heterônimos é um certo movimento de ficcionalização, em
que as palavras, a linguagem, vêm materializar todos que o sujeito é. Em certo fragmento,
Bernardo Soares afirma: “Quem vive como eu não morre: acaba, murcha, desvegeta-se.
O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica sem ele lá ser visto,
a casa onde morava é habitada por não-ele. É tudo e chamamos-lhe o nada[...]”.

Essa afirmação sustenta a ideia de que o processo de heteronímia se dá na forma de


transformação, transmutações, de um no outro ou outros. O que Bernardo Soares faz é a
construção de uma identidade menos pelo processo de caracterização e de construção de
uma narrativa de sua vida do que pela fragmentação dos seus textos que antes instituem
esse sujeito rizomático. Além de esse trecho apontar para uma ideia de transmutação,
orienta também para uma ideia subjacente de que, como criação de papel, não morrerá
jamais, pois retornará, vivo, sempre na leitura das páginas desassossegadas.

A ideia de Bernardo Soares como ser que jamais morrerá serve de metáfora para
as criações literárias (as personagens) que da mesma forma jamais deixarão de existir (a
não ser aqueles que morrem na narrativa – e que morrerão para sempre), pois são
existências de papel, de palavras, voltando sempre à vida quando alguém ler o texto em
que ganharam forma.

45
Exemplo disso está já quase no fim de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa,
quando Diadorim é ferida mortalmente em batalha e Riobaldo assiste a tudo sem que nada
possa ser feito (ou sem querer fazer nada). Nesse trecho, Riobaldo descreve o que
significa narrar o evento da morte de Diadorim: “Eu despertei de todo – como no instante
em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio... Diadorim
tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber,
meus olhos marejavam.” (ROSA, 1994, p. 857) e “[...] Não escrevo, não falo! – para
assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...” (ROSA, 1994, p. 861).

O que o narrador de Rosa sugere nesse trecho é que o ato de narrar a morte de
Diadorim é o que vai tornar a morte de fato verdadeira: se ele não narrar, se não estiver
em palavras em um texto, Diadorim pode viver para sempre. No entanto, a morte dela
está escondida nas palavras não ditas e o ato de contar a história do livro é uma ação de
manutenção da vida ficcional, da existência narrativa, tanto de Riobaldo como Urutu
Branco, como de Diadorim ainda viva com ele.

Assim, tem-se a proposta de pensar a narrativa como escritura, como uma forma de
exercer um processo de permanência daquilo que é substancial numa tentativa de
manutenção de si no devir do tempo. Dessa forma, a narrativa serve como afirmação de
uma existência e, no caso de Bernardo Soares, a única existência possível.

Em certo fragmento, comentando sobre a vida que teria caso tivesse nascido rico
ou tivesse posses, Bernardo Soares faz referência a sua realidade como uma existência de
papel, ainda que em termos textuais possa-se afirmar que o trecho seria uma metáfora
sobre o sujeito que coloca no papel a sua autobiografia. O trecho em questão: “Sim, se eu
tivesse sido rico, resguardado, escovado, ornamental, não teria sido nem esse breve
episódio de papel bonito entre migalhas [...]” (PESSOA, 1986, p. 83).

Nesse sentido, os fragmentos escriturais parecem indicar na direção de uma


existência também textual com uma identidade que se faz na multiplicidade de
considerações e de episódios diversos, mas firmada numa constituição de papel. Escrever
é a função máxima de Bernardo Soares, seja sua autobiografia sem fatos, pois o que se
tem é uma viagem pelos pensamentos e reflexões desse sujeito, seja pela sua função de
guarda-livros, na qual usa sua habilidade de escritura para escrever uma “história inútil”
(PESSOA, 1986, p. 74), pois justamente não conta nada além de números. Fato que
aponta para um certo paradoxo, pois seus fragmentos não têm por finalidade narrar uma
história, mas, sim, uma existência.
46
Bernardo Soares quer menos ser compreendido do que lido, assim sugerem
algumas de suas reflexões. Ele se coloca em seus fragmentos como peça de uma ficção e
pensado como signo que se constrói por esse conjunto escritural. Comentando sobre a
compreensão que alguém pode ter do outro, Bernardo Soares posta a atitude de
interpretação como uma violência, afirmando que “Ser compreendido é prostituir-se”
(PESSOA, 1986, p. 76), compreender o outro é matá-lo em sua multiplicidade, pois se
realiza sobre uma redução.

Num fragmento adiante, Bernardo Soares relaciona sua existência diretamente


com sua existência de papel e afirma:

Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que
eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo
em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos
que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De
tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e
deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda
agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço
alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo. (PESSOA,
1986, p. 180)
Nessa passagem, evidencia-se essa realização de uma identidade em
relação a sua construção como papel, como escritura: Bernardo Soares é feito de palavras.
Ao mesmo tempo em que se afirma uma identidade falsa, pois sem fatos (autobiografia
sem fatos) e apenas com palavras, afirma-se uma identidade narrativa pela conjunção
desses fragmentos que sustentam quem foi Bernardo Soares.

De acordo com Paul Ricoeur (1994), a identidade narrativa encontra-se na


confluência entre história e ficção, subentende-se daí que se dá um processo em que
elementos históricos e narrativos entram em confluência para tanto. Ademais, seria
através dessa recriação de si na narrativa que se possibilita a mediação necessária para a
compreensão do eu. Bernardo Soares não tem por objetivo compreender-se ou ser
compreendido, quer ser apenas lido; entretanto, o semi-heterônimo de Fernando Pessoa e
a identidade de Bernardo Soares nascem nessa relação entre história sem fatos e ficção.
Para Ricoeur: “[...] a identidade narrativamente compreendida pode ser chamada, por
convenção da linguagem, identidade do personagem” (RICOEUR, 1994, p. 168); “[...] a
narrativa constrói a identidade do personagem que podemos chamar sua identidade
narrativa [...]. É a identidade da história que faz a identidade do personagem” (RICOEUR,
1994, p. 176).

47
Bernardo Soares faz do Livro do Desassossego sua autobiografia sem fatos, o que
torna o texto um tanto paradoxal pensando na sua organização como a construção de uma
identidade narrativa que estaria no cruzamento entre a história e a ficção. Entretanto, a
tentativa de aplicar a forma escrita e narrativa nos fragmentos representa uma forma de
materializar essa existência não factual de Bernardo Soares. Nas notas de O Si-mesmo
Como um Outro, Paul Ricoeur afirma que “a compreensão de si é uma interpretação”,
enquanto Bernardo Soares afirma que “ser compreendido é prostituir-se”. Entretanto,
Bernardo Soares não poderia ser de outra forma compreendido senão lido, o que
necessariamente se realiza construindo uma interpretação: o semi-heterônimo de
Fernando Pessoa usa a escrita para sustentar a sua existência, que sem as palavras e o
papel não seria nada.

Embora Bernardo Soares não busque compreensão através de seus fragmentos, eles
servem diretamente para a construção desse indivíduo que passa os dias inteiros a
escrever “histórias inúteis” em livros contábeis. Na terceira parte do Livro do
Desassossego, “A Ficção de Mim Mesmo”, o guarda-livros começa por afirmar que está
“evaporando”, entretanto será pela escrita, e isso é demonstrado em fragmento logo no
início dessa terceira parte, que se percebe o devir do tempo no sujeito que se modifica (ao
mesmo tempo em que isso revela o sujeito como um processo contínuo de modificação,
de alteridade, tanto consigo mesmo – o eu de antes e o eu de agora – com o Fernando
Pessoa, autor que lhe cede a pena para que seja auto-criado):

Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a


minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me
evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei
outro. Aquilo a que assisto é um espetáculo com outro cenário. E aquilo
a que assisto sou eu. (PESSOA, 1986, p. 153)
É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito
jovem — trechos dos dezessete anos, trechos dos vinte anos. E alguns
têm um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa
altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas
escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem
produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço
que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num
progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então
era o mesmo que hoje sou. (PESSOA, 1986, p. 153)
Esses dois trechos evidenciam considerações relevantes, tomando a questão da
identidade narrativa como mote, já que é na permanência do tempo que o sujeito vai de
fato se construindo; é o enfrentamento com os diferentes “eus” temporais que subjazem

48
aos elementos de identidade e alteridade: o eu de hoje e o eu de ontem ou, ainda, o eu de
papel e o eu factual.

São muitos os fragmentos que direcionam para a consideração das relações


inseridas na construção de identidade narrativa que, como sugere Ricouer (1991, p. 139),
pode ser um processo sem fim em que “é pela escala de uma vida inteira que o si procura
a sua identidade”.

Não obstante, a formação dessa identidade narrativa de Bernardo Soares, ainda que
seja um processo que se desenvolva relacionado com a ideia de intriga dentro de uma
narrativa e com o devir da personagem envolvida nessa intriga, se dá menos pela
apresentação de uma intriga que o mostra em relação consigo mesmo em distâncias
temporais, do que pelas próprias reflexões acerca do ele foi, é e, quem sabe, será.
Bernardo Soares é um “Poder saber pensar! Poder saber sentir!” (PESSOA, 1986, p. 157)
e representa “Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma”
(PESSOA, 1986, p. 157).

Nesse jogo de palavras em que os fragmentos funcionam como “retalhos de uma


grande colcha” que vai se corporificando conforme o tempo passa e novos retalhos vão
sendo acrescentados, é antes num rizoma entre os elementos dessa identidade, a
mesmidade e a ipseidade do que numa dialética que a semi-heteronímia de Bernardo
Soares ganha vida. Para Ricouer (1991), a mesmidade deveria ser entendida como a
existência do indivíduo como um ente social, humano, entrando nessa categoria as
descrições delimitadoras – “Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto
que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido
com um certo desleixo não inteiramente desleixado.” (PESSOA, 1986) –, como os nomes
próprios e os pronomes; já a ipseidade deveria ser entendida como aquilo que diferencia
o sujeito do restante da comunidade, aquilo que seria singular e único.

Bernardo Soares, então, coloca-se justamente dentro dessas relações e das relações
que a mesmidade e a ipseidade o colocam em relação com o próprio Fernando Pessoa e
com seus outros heterônimos. Mais uma vez, Ricouer oferece suporte para que se sustente
o texto, a escritura, como a base para a construção da identidade de Bernardo Soares
quando afirma que “(a) narrativa constrói a identidade do personagem, que podemos
chamar de identidade narrativa, construindo a da história relatada. É a identidade da
história que faz a identidade do personagem.” (RICOUER, 1991, p. 176).

49
Nesse sentido, é pela rede formada de fragmentos textuais que Bernardo Soares
passa a existir e ter uma identidade e ser considerado entre os outros tantos heterônimos
de Fernando Pessoa, ainda que essa construção não seja pelo relato de uma história, mas
pela construção rizomática de um indivíduo fragmentado, em que apenas pedaços de
quem ele é fazem parte de sua memória e de suas considerações diversas.

No início da quinta parte, Bernardo Soares reflete sobre a questão da identidade e


faz reflexões que se colocam em concordância com o conceito de ipseidade, ou seja,
aquilo que o difere (e retorna-se à ideia de différance) dos outros heterônimos, de
Fernando Pessoa e dele mesmo:

[...] listou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a
monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão a
monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem,
é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, nunca
houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade — a
identidade sentida, embora falsa, consigo mesma — pela qual tudo se
assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas
diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.
(PESSOA, 1986, p. 275)

Além dos elementos que demonstram a consciência dessa alteridade em relação a


sua própria identidade e em relação à identidade dos outros (até pela metáfora do dia
como indivíduo), o fragmento aponta para uma reflexão sobre a monotonia como um
rasgo na personalidade do sujeito, algo que se realiza no indivíduo e não como um
resultado exterior em uma vida em que nada está para acontecer. Bernardo Soares
questiona constantemente a realidade tediosa da vida e nesse âmbito discute o
reconhecimento da identidade como algo fluido e fragmentado, em constante
modificação. Ainda na quinta parte, sob o subtítulo de “Prosa de Férias”, ele escreve:

O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa


diferença das coisas e das idéias, a perene identidade de tudo, a
semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade
da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e
selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a
estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando. (PESSOA,
1986, p. 284)
Ao mesmo tempo em que possam ser feitas considerações acerca desse fragmento
sobre uma espécie de cansaço da sociedade e de como tudo se coloca diante dele,
Bernardo Soares faz fulcrais analogias sobre as reflexões anteriores de mesmidade e
ipseidade nos termos identitários, ou seja, pensar na igualdade enfadonha daquilo que o
cerca é pensar sobre a mesmidade do mundo diante de si, é observar o mundo como uma

50
série de reproduções do mesmo; e, ao mesmo tempo, realça o papel da ipseidade quando
relaciona elementos temporalmente distantes (como a mesquita , o templo e a igreja),
revelando sobre a mesmidade o caráter de mudança pela busca do novo e do
descobrimento, o que se dá somente no devir do tempo.

Novamente, discorrer sobre alteridade e identidade no Livro do Desassossego é


adentrar em umbrais nebulosos, em que as fronteiras não são bem definidas. Refletir sobre
alteridade coloca sempre em jogo o reconhecimento de que não somente o outro é um
outro para mim, mas também eu sou um outro para mim mesmo. E isso, pensar no outro,
é uma das grandes preocupações de Bernardo Soares, talvez porque sua própria existência
careça da confrontação com os outros heterônimos e seu ortônimo:

Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que


outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha,
consciências estranhas à minha consciência, que, por ser consciência,
me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante
de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me fez gestos que
são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu
semelhante. (PESSOA, 1986, p. 302)
É somente na oposição que se constrói a identidade e Bernardo Soares parece fugir
disso em certos momentos, como quando afirma que já tinha visto tudo que se tinha para
ver. Bernardo Soares perde sua identidade e foge dessa alteridade por ver o encontro com
o outro como opressão e nesse sentido acredita-se destruído – “A presença de outra pessoa
descaminha-me os pensamentos” (PESSOA, 1986, p. 304).

Assim, o guarda-livros joga com o ato de interpretação (diretamente ligado à


alteridade) como modo de revelação diante de outros de sua ipseidade, mas, de certa
forma, confunde nesse jogo de palavra dada e palavra retirada (a compreensão, ora ele a
quer ora não). Bernardo Soares é palavra, é literatura e vive num processo de simulação
em que, sem a necessidade de fatos que comprovem a sua autobiografia, valida-se como
simulacro de uma existência sem referente factual, mas pelo discurso apresentado.

Pouco antes do fim que não finaliza, Bernardo Soares apresenta diversos
fragmentos que realçam a possibilidade de permanência pela literatura e como a literatura
cria uma outra vida: “Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de
ignorar a vida.” (PESSOA, 1986, p. 392); “Toda a literatura consiste num esforço para
tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é
absolutamente irreal na sua realidade direta;” (PESSOA, 1986, p. 396); “Mover-se é
viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se

51
descreveu bem.” (PESSOA, 1986, p. 398); “Se me disserem que é nulo o prazer de durar
depois de não existir, responderei, primeiro, que não sei se o é ou não, pois não sei a
verdade sobre a sobrevivência humana.” (PESSOA, 1986, p. 400); e “Para os valores
maiores não há moeda: são de papel e esse valor é sempre pouco.” (PESSOA, 1986, p.
401).

A identidade de Bernardo Soares constrói-se no devir de sua autobiografia sem


fatos, no seu livro-rizoma feito de fragmentos diversos; escritor sem livro, pois o Livro
do Desassossego é como um manuscrito publicado por outro que não o autor. Na
construção dessa identidade que se dá pela permanência e manutenção de singularidades
presentes na escritura, a existência de Bernardo Soares coloca-o lado a lado com os outros
heterônimos de Fernando Pessoa, ainda que esses tenham passado por processos de
construção diversos.

Por fim, o Livro do Desassossego deixa em aberto uma gama de possibilidades


temáticas a serem trabalhadas, mas este artigo preocupou-se em problematizar as relações
entre identidade e alteridade no texto em questão. Pensa-se que nas reflexões levantadas
– como colocou ironicamente Bernardo Soares que nas suas “impressões sem nexo, nem
desejo de nexo, narro(u) indiferentemente a (sua) autobiografia sem fatos, a (sua) história
sem vida. São as (suas) Confissões, e, se nelas nada (disse), é que nada (tinha) que dizer.”
(PESSOA, 1986, p. 45) – alguns questionamentos relevantes para se pensar a alteridade
dos heterônimos de Fernando Pessoa (e talvez Bernardo Soares como o mais semelhante
a ele), bem como a construção de identidades narrativas pela construção singular da
escritura, foram elaborados com suficiente adequação teórica e epistemológica no sentido
de estabelecer as linhas sempre tênues sobre existência, identidade e alteridade.

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
p.11-16.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.11-37.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2011.

DERRIDA, Jacques. The Gift of Death. Chicago: University of Chicago, 1995.

MCCARTHY, Cormac. No Country For Old Men. UK: Vintage International, 2005.

52
MCCARTHY, Cormac. The Road. New York: Random House, 2007.

PALAHNIUK, Chuck. Fight Club. UK: Vintage Books, 2006.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1986.

RICOUER, Paul. O Si-mesmo Como um Outro. São Paulo: Papiros, 1991.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

53
SONOROSA DONA LÚCIA: CARTAS DE CECÍLIA MEIRELES A
LÚCIA MACHADO DE ALMEIDA1

DEAR LÚCIA: LETTERS FROM CECÍLIA MEIRELES TO LÚCIA


MACHADO DE ALMEIDA

Ana Amélia Neubern Batista dos Reis2

Resumo: O trabalho que ora proponho visa pesquisar o universo da correspondência


passiva de Cecília Meireles à escritora mineira Lúcia Machado de Almeida no que tange
a temáticas que constroem um espaço de diálogo que se torna profícuo, tanto para a
criação literária de Cecília Meireles, quanto para a escrita de si por meio do discurso
epistolar. As cartas enviadas por Cecília à Lúcia deixam entrever um traço importante da
escrita ceciliana: a presença do pensamento oriental (mais precisamente, o indiano) na
formação intelectual da autora e em sua criação literária. Viso refletir sobre esse espaço
de diálogo entre Cecília e Lúcia, com a tônica para a relevância do traço oriental em sua
escrita epistolar. Também se faz relevante destacar o espaço da correspondência Cecília-
Lúcia como um espaço de valorização da própria voz feminina no contexto do
modernismo brasileiro; o espaço de exercício para a criação literária de forma ampla e,
finalmente, o espaço fronteiriço em que aparecem as nuances do pensamento filosófico
indiano de forma mais diluída do que na poesia ceciliana. Para tanto, utilizo-me,
principalmente, dos conceitos sobre o autor de Michel Foucault; do pensamento sobre
correspondência de Marcos Antonio de Moraes, Silviano Santiago e Eneida Maria de
Sousa; do pensamento de Mário de Andrade sobre o modernismo e dos estudos de Dilip
Loundo sobre a presença da Índia na poética de Cecília Meireles. As cartas analisadas são
inéditas e estão alocadas no Acervo de Escritores Mineiros (AEM), do Centro de Estudos
Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Palavras-chave: Cecília Meireles, correspondência, Lúcia Machado de Almeida, Índia,
Modernismo.

Abstract: The present paper intends to research the correspondence of Cecília Meireles
to the writer Lúcia Machado de Almeida and focuses on the dialogical space in which it
is possible to observe the practice of the literary creation of Cecília Meireles as well as
the discourse about herself. The letters also enables the researcher to note a very important
trait in the literature of Cecília Meireles: the presence of the oriental philosophy (more
precisely the Indian philosophy) in the intellectual formation of the author and in her
literary production. Also, it is relevant to highlight the correspondence between Cecília
and Lúcia as empowerment of Cecília's voice in the context of the Brazilian Modernism.
For that, I use the theoretical concepts of Michel Foucalt about the author, the thought of
Marcos Antonio de Morais, Silviano Santiago and Eneida Maria de Sousa about

1
Mesa-redonda Espaços da escrita da intimidade.
2
Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
54
correspondence and the productions of Mario de Andrade about Brazilian Modernism.
The studies of Dilip Loundo are important in reference to the presence of India in the
literature of Cecília Meireles. The researched letters are unpublished and kept in the
Acervo de Escritores Mineiros (AEM), do Centro de Estudos Literários da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
Keywords: Cecília Meireles, correspondence, Lúcia Machado de Almeida, India,
Modernism.

A obra literária de Cecília Meireles é campo vasto, múltiplo, que tem grande
representatividade nas letras brasileiras. Os poemas, crônicas, escritos sobre educação, já
foram amplamente estudados por críticos de renome e acadêmicos de inúmeras
universidades do Brasil e de outras partes do mundo, especialmente, Portugal e Índia.

Dentre esta multiplicidade da obra de Cecília, há um traço que une, veicula versos
e prosa, mesmo que a temática seja da inconfidência mineira, de viagens, ou a tentativa
de entender isto e aquilo. Este traço, que Alfredo Bosi chama de “linha mestra”, e que
“percorre toda a obra de Cecília, de Viagem a Solombra, é precisamente o sentimento de
distância do eu-lírico em relação ao mundo” (BOSI, 2007, p. 13). Em consonância com
esta visão, as análises que se dedicam à obra da autora, não raro, se utilizam de adjetivos
como espiritual, profunda, metafísica, filosófica quando abordam o modo de construção
do discurso ceciliano escolhido para desenvolver múltiplas temáticas.

Como leitora de Cecília, fui inicialmente atraída para sua literatura devido aos
poemas sobre a Índia e as crônicas de viagem3. Porém, ao conhecer um pouco mais de
sua obra, percebo que esta “linha mestra” pode ser compreendida como a presença da
Índia (compreende-se a filosofia, cultura, mitologia e literatura indianas) na literatura de
Cecília Meireles como um todo e não apenas nos textos em que a temática é explicitada.
O professor Dilip Loundo corrobora e esclarece esta visão de maneira precisa:

A presença da Índia na obra de Cecília Meireles constitui, na minha


opinião, uma expressão existencial e lógica de um imperativo do
destino. Muito além das limitações reducionistas e frequentemente
enganosas de uma “influência” literária, essa presença contêm em si
mesma elementos-chave para uma avaliação mais profunda da
singularidade e da excelência de uma das maiores vozes da poesia
brasileira e da língua portuguesa. Um olhar cuidadoso sobre o
desenvolvimento de sua carreira artística – desde as origens simbolistas
à filiação ao movimento modernista – permite encontrar, ao longo de
toda sua obra, uma presença distinta e, ao mesmo tempo,

3
Ver Poemas escritos na Índia e Crônicas de viagem, vol. 1, 2 e 3.
55
multidimensional da Índia, visível e explícita, em alguns momentos,
porém, mais amiúde, invisível e simbólica (LOUNDO, 2007, p. 129).
Dilip Loundo dedicou grande parte de suas pesquisas às relações Brasil e Índia,
especialmente, enfocando a poeta. Assim, contamos com um estudo de fôlego, bem
mapeado, no que tange a produção literária de Cecília e suas possíveis leituras com base
no pensamento indiano.

Uma indagação não solucionada de Loundo, no entanto, instigou-me a investir em


uma pesquisa que tem como interface a presença da Índia na correspondência de Cecília
Meireles. Quando Dilip Loundo, em seu ensaio, Cecília Meireles e a Índia: viagem e
meditação poética, reconstrói o caminho percorrido pela poeta no país oriental e as
relações que ela mantinha com autores e pensadores indianos, ele expõe uma falta de
dados sobre os possíveis encontros e amizade entre Cecília e personalidades como
Sarojini Naidu, por exemplo. Sarojini foi uma poeta muito admirada por Cecília, porém,
não há registros de possíveis encontros entre elas. Loundo abre uma perspectiva de
pesquisa quando aponta que:

[...] um levantamento futuro mais exaustivo da correspondência de


Cecília Meireles lance novas luzes sobre esses vínculos
pessoais/profissionais que podem, eventualmente, incluir contatos
diretos com Rabindranath Tagore ou Mahatma Gandhi, ou, ainda, com
a grande poetisa Sarojini Naidu ou com o mais conhecido dos
discípulos de Gandhi, Vinobha Bhave (LOUNDO, 2007, p. 155).
Ao afirmar a possibilidade de um trabalho mais exaustivo tendo como objeto a
correspondência de Cecília, um espectro de possibilidades se desenhou dentro de um
horizonte de pesquisas. Este ensaio não visa ser uma resposta para o questionamento
acima, porém é um passo inicial na abordagem da correspondência de Cecília Meireles
com a escritora mineira Lúcia Machado de Almeida4. A correspondência entre as duas
amigas se fez em torno, principalmente, dos planos de visitas de Cecília a Minas Gerais,
das visitas que, de fato, ocorreram e da troca literária sobre livros em curso de escrita e
livros publicados das autoras.

Ao ter contato com este vasto conjunto de cartas5, para além da incursão sobre os
contatos pessoais que Cecília manteve na Índia, interessaram-me alguns traços que
aparecem em suas missivas, com especial enfoque aos rastros da formação intelectual da

4
As cartas pesquisadas se encontram no Acervo de Escritores Mineiros (AEM – CEL), da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
5
O acervo abriga a correspondência passiva de Cecília Meireles para Lúcia Machado de Almeida.
56
poeta com relação ao pensamento indiano e mesmo as vivências relacionadas à Índia ou
no próprio país.

Dos traços que considerei relevantes sobre o conjunto analisado, ressalto alguns
tópicos em subtemas para melhor abordar este universo amplo que revela, para além de
uma verdade histórica, local e particular (DIAZ, 2002, p. 51)6, uma pessoa construindo-
se a partir do discurso que oferece ao destinatário: “a carta é uma ‘abertura que alguém
oferece a outro sobre si mesmo’” (FOUCAULT apud DIAZ, 2000, p. 50)7.

CECÍLIA E O MODERNISMO

...perto dessas velhíssimas danças...o modernismo ocidental fica de um


ridículo sem nome.8

Em 02 de março de 1949, Cecília escreve uma longa carta a Lúcia, em que retoma
o diálogo após um período de intenso trabalho. Nesta carta, Cecília atualiza a amiga de
uma festa que participou na embaixada (provavelmente da Índia), em que uma artista
apresenta uma dança tradicional indiana. Após minuciosa descrição do figurino e dos
movimentos, ela comenta, quase em tom de desabafo:

[...] a dança era descritiva e mística representando a paixão espiritual


de uma princesa pelo deus Krishna. [...] E o mais engraçado é que perto
dessas velhíssimas danças... o modernismo ocidental fica de um
ridículo sem nome. Todos os modernismos em todas as artes. Aquilo é
velho e eterno como o mundo e o homem. Reduzido a esquemas, a
infantilidades, a sonho – dadaísmo, futurismo, surrealismo... Havia
muito o que dizer, entrando até pelo existencialismo e o epifanismo.
Ficará para um dia 9.
Esta passagem faz-se importante para refletir sobre a relação da poeta com o
Modernismo e as expressões artísticas da época. Neste aspecto, o professor Dilip também
foi esclarecedor ao apontar que algumas características marcantes do movimento
modernista é o compromisso com a construção de uma identidade nacional, o que
perpassa pela desconstrução da língua de expressão, em busca de uma linguagem
nacional, pela superação da emulação do passado com vistas a enfocar a circunstância do
presente, por meio de uma vertente historicista, sociopolítica ou ideológica. Dentro deste

6
Tradução nossa.
7
Tradução nossa.
8
Carta de 02 de março de 1949 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG.
9
Ibidem.
57
panorama e, levando-se em conta as pontuações feitas sobre a obra de Cecília (que traz a
marca da “distância do mundo”), poderia parecer conflituosa a filiação da autora no
Modernismo. Há estudiosos que preferem tratá-la como moderna e não modernista; o que
gera frutífera reflexão, plausível de aprofundamento futuro.

Ainda de acordo com o professor Dilip, é justamente este questionamento do


tempo presente, que Cecília faz com propriedade, porém, por meio de outras vertentes:
“ela o faz a partir de um imperativo onto-existencial que se acha comprometido com o
desvelar de suas profundezas metafísicas e de sua universalidade” (LOUNDO, 2007, p.
134).

Mesmo percebendo o caráter da modernidade na obra de Cecília, fica claro, pela


declaração feita à amiga Lúcia, que a poeta nutria uma compreensão crítica para com as
ideologias que acompanhavam as expressões artísticas, especialmente a ideia da
novidade, do novo, registrado na carta pelos diversos “ismos”. Inclusive, sua construção
literária e elaboração da linguagem dos textos não marcam, apesar de incorporar alguns
experimentalismos formais, o desejo de afirmação identitária ou mesmo um sociologismo
por meio da obra de arte. Ela deixa transparecer, possivelmente, como entende criação
artística, quando afirma que havia muito o que dizer, utilizando-se outras vertentes como
base: o existencialismo e o epifanismo. Claramente, sua obra não se pretende engajada
socialmente, pelas mesmas bases dos modernistas, mas por meio de uma metafísica que
se constitui com a presença e contato com a filosofia indiana.

Dilip Loundo nos mostra que este diálogo, da autora com a filosofia indiana, deu-
se, principalmente, por meio das leituras dos Upanishads (textos de base para a filosofia
e religião hinduístas):

As afinidades entre a proposta metafísica de Cecília Meireles e a


tradição dos Upanishads, com que ela dialogou através de leituras
sistemáticas e de contatos diretos com suas expressões vivas
contemporâneas, revelam, de forma eloquente, que a presença da Índia
em sua obra poética, longe de constituir um resíduo de suas origens
simbolistas, trata-se, antes, de um fator instigador de sua filiação (ativa)
ao Modernismo (LOUNDO, 2007, p. 135).
Esta filiação “ativa” é expressão utilizada pelo próprio Mário de Andrade, em O
empalhador de passarinho, no artigo Viagem, texto em que ele a “recebe” no
Modernismo e a enaltece como uma voz entre os grandes poetas nacionais, mesmo
tecendo-lhe críticas pela conexão com a “pouco fecunda” Academia Brasileira de Letras,
que ofereceu a Cecília o prêmio de 1938, pelo livro Viagem (ANDRADE, 1946).

58
É interessante notar que, mesmo ressoando as vozes “modernas” da época, Cecília
se coloca em posição um pouco diferenciada, na maneira que compreende o próprio
momento do qual faz parte. Este contraponto pode ser enfatizado se analisarmos um
trecho da carta enviada por Mário de Andrade a Otávio Dias Leite, em 29 de outubro de
1936: “comprei mais trabalho, luta danada e completo desassossego. Mas pra meu espírito
vale mais lançar uma biblioteca popular ou fazer uma pesquisa etnográfica do que
escrever uma obra-prima. E trabalho entusiasmadíssimo” (ANDRADE, 2005, p. 75).
Mário, pelo que podemos compreender de sua declaração, considerava o efeito social um
balizador de valor para as ações. Fundar uma biblioteca popular parece ser mais
significativo do que escrever uma obra prima. Há uma comparação entre instâncias que
podem se apresentar em campos distintos de ocorrência. Daí que a obra de arte, para
Mário de Andrade, devia engajar-se com um aspecto de transformação social. Já Cecília
não demonstrava ter esta expectativa com relação ao seu próprio fazer literário. Há uma
condição de alheamento e ausência (BOSI, 2007, p. 14) no modo de construção da autora,
que se utiliza da memória, do lembrar, como matéria literária. Entretanto, este alheamento
não é vazio, é o modo de existência de sua poética, que pode ser contundente para a
sociedade, por um viés que, por vezes, está ao revés do pensamento andradiano.

Um dado curioso é que Cecília teve uma atuação significativa no campo da


educação, sendo a organizadora da primeira biblioteca infantil do Brasil, no Rio de
Janeiro, em 1934.

CECÍLIA E LÚCIA

Então, a Sereia e eu pensamos (já que somos mulheres e temos


maneiras complicadas de interpretar...) 10.

Outro aspecto relevante encontrado nas cartas de Cecília a Lúcia é uma troca em
que o traço feminino delineia e, por vezes, molda o discurso. Na carta, anteriormente
citada, de 02 de março de 1949, Cecília, antes de revelar sua opinião sobre o Modernismo,
descreve com riqueza de detalhes a dança indiana:

10
Carta de 01 de outubro de 1945 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
59
Fiquei de contar-lhe a festa da embaixada. Foi muito interessante, mas,
talvez, por já estar familiarizada com os costumes, a mim, não me
causou grande impressão.
[...]
A roupa de dança compunha-se de umas calças compridas, mais ou
menos ajustadas ao corpo, mas sem serem colantes, e unidas as duas
pernas, na frente, por um plissado, que funciona mais ou menos como
um fole. Uma blusinha idêntica a dos sáris, isto é, justa ao corpo e aos
braços, e sem chegar até a cintura, que fica descoberta entre ela e as
calças. Tudo era de uma belíssima seda azul turquesa, entretecida de
ouro, formando aqui e ali desenhos de ouro, como nos tecidos
adamascados. A dança era descritiva e mística representando a paixão
espiritual de uma princesa pelo deus Krishna. A bailarina adornou a
cabeça e as orelhas com muitas coisas bonitas, recamadas de pérolas;
trazia um cinto de ouro com um grande pendente tecido em ouro
formando arabescos complicados e caindo na parte da frente como um
minúsculo avental. Colares, pulseiras, e, nos tornozelos, os clássicos
guisos que, neste caso, eram em torno de 200. A função dos guisos é
muito interessante: formam um acompanhamento que depende da
expressão que se queira dar, marcam o ritmo, são como os aros dos
pandeiros, ora tintinando levemente, ora acentuando com fôrça uma
pausa ou transição de movimento. Quanto a esses movimentos, cada
um quer dizer uma coisa (pelo menos nessas danças que vimos). Assim,
a posição dos dedos, das mãos, o deslocamento do pescoço (sem nada
de ridículo nem horrível), a elevação das sobrancelhas, os gestos dos
braços, e das pernas (se assim se pode dizer) tudo funciona como um
alfabeto. Há abelhas, pavões, chuva, sol, lua, rio, ondas, flores, desejo,
amor... – deve ser uma felicidade poder dançar – se desse modo 11.
Colares, pulseiras, pérolas, tecido em ouro, plissado, guisos, belíssima seda azul
turquesa, blusinha, calça. Esses termos, além de darem um caráter descritivo à escrita
deste longo parágrafo, revela-nos este traço de uma conversa “feminina”, num sentido
construído, socialmente, de que assuntos domésticos e de adornos externos, se assim
podemos chamar, o interesse por roupas, enfeites, tecidos etc., interessam às mulheres.
Até os dias atuais, com uma complexidade maior nos níveis dessas divisões, podemos
observar, em bancas de revistas e livrarias, uma divisão temática clara nos assuntos
“femininos” e “masculinos”. Nesta passagem da carta de Cecília, parece haver um acordo
implícito, sob o qual o discurso se constrói. Um acordo que norteia a escolha do assunto
e o modo como dizê-lo: “Fiquei de contar-lhe a festa da embaixada”. Esta informalidade
e a utilização de uma retomada em assunto anterior (“fiquei de contar-lhe”) é a chave para
uma troca íntima, em que o sujeito se expõe, não, necessariamente, por meio de assuntos
particulares, mas por meio de uma confiança implícita de interesse mútuo pelo assunto.
Esta troca tem um lugar específico, bem demarcado na correspondência de Cecília a

11
Carta de 02 de março de 1949 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG.
60
Lúcia. É possível, entretanto, dado o caráter do “pacto feminino”, que uma descrição
como esta termine e seja sucedida de uma crítica mordaz ao Modernismo, como referido
previamente, assunto que amplia o espectro de interesse e diversifica a temática da carta.
Podemos identificar um espaço especial da correspondência para temas mais versados ao
cotidiano das duas mulheres.

Outra passagem que se revela dentro desta característica peculiar é encontrada na


carta de 31 de julho de 1947, em que, após contar sobre o cancelamento de uma viagem
à Paris e atualizar sobre amigos escritores em comum, a saber, Alphonsus de Guimaraens
Filho e Henriqueta Lisboa, Cecília ocupa a maior parte da missiva com duas receitas de
“pão de minuto”. Transcrevo a primeira receita por trazer um dado curioso:

1ª receita
5 colheres, das de servir arroz, de farinha de trigo e 1 de maisena
peneirada com 2 colheres, das de sopa, de fermento, e 1 colher, das de
chá, de sal. Faz-se uma cova na farinha, e aí se deitam 2 ovos inteiros,
2 colheres, das de sopa, bem cheios de manteiga, e 1 colher, também de
sopa, de açúcar. (Enquanto V. arruma a mesa do chá, os pãezinhos
ficam prontos) 12.
O trecho entre parênteses é significativo da cumplicidade e de um pacto de
compreensão mútua do papel desempenhado na casa: “enquanto você arruma a mesa”,
tem implícita a voz da própria interlocutora que, possivelmente, desempenha esta função.
Os parênteses abrem um espaço de compartilhar a experiência que a própria Cecília pode
ter experimentado e, por isso, sabe que os pães ficam prontos durante aquele tempo. Neste
sentido, temos um texto íntimo.

Dentro deste âmbito, uma afirmação de Cecília, na apresentação do romance


Çaturanga, de Rabindranath Tagore, que a autora traduziu e comentou, aparece como um
fator de complexidade para pensarmos a questão do espaço feminino:

Não será novidade dizer que o público feminino sempre se mostrou


muito vibrátil à fascinação de Tagore. Basta ver-se a lista de suas
tradutoras: Madeleine Rolland [...]. Para os que ainda, por esse motivo,
fossem capazes de fazer qualquer discriminação intelectual
desfavorável, não seria ocioso recordar a admiração que manifestaram
pela sua obra escritores como William Butler Yeats [...] (TAGORE,
1962, p. 81).
O texto de um autor de renome, vencedor do prêmio Nobel de 1913, Tagore, precisa
ser justificado pelo interesse que suscita no público masculino, pois, do contrário, a obra

12 Carta de 31 de julho de 1947 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG

61
que a autora traduz pode ser considerada menor (neste caso a tradutora justifica-se a si
mesma). Ao que parece, longe de concordar com esta visão, especialmente por ser uma
mulher intelectual, Cecília tem clareza dos espaços de atuação e da condição das mulheres
em meados do século XX. Ela demonstra, por meio das cartas, transitar bem entre esses
universos (doméstico e intelectual / feminino e masculino) que, à época, traziam
separações mais estanques.

CECÍLIA E A ÍNDIA

...até parece que já fui inconfidente 13.

Como fechamento deste ensaio, retomo o eixo inicial e dinamizador da leitura da


correspondência de Cecília Meireles a Lúcia Machado de Almeida, a presença da Índia
no universo das cartas da autora. Para tanto, enfatizo novamente o pensamento de Dilip
Loundo ao afirmar que esta presença aparece, algumas vezes, de forma explícita e outras,
mais frequentes, de maneira implícita, e permeia sua construção literária (LOUNDO,
2007, p. 129). Percebo após a leitura do conjunto de cartas enviadas a Lúcia e análise
mais aprofundada de algumas delas, que esta presença também permeia o discurso
epistolar da autora e aparece, desveladamente, nas cartas de 02 de março de 1949 em que
há a descrição da dança tradicional indiana e em carta de 14 de fevereiro de 1953, única
missiva escrita a Lúcia, quando da estada de Cecília na Índia.

Na carta de 1953, Cecília expressa à amiga que não há palavras para descrever sua
vivência naquele país. A carta, que pode ser considerada um bilhete (como a própria
interlocutora diz, “um pensamento amigo”), pela sua extensão, é escrita de Bangalore e a
autora a inicia explicando a dificuldade de escrever entre tantas viagens pelo país e, então,
expõe suas impressões:

A Índia é um espetáculo fabuloso e impossível de descrever em carta.


Além da paisagem humana, há os Museus, os bazares, os
monumentos... uma sucessão de coisas. Eu não me espanto muito
porque já sabia de tudo isto por leitura. Mas, para o viajante incauto,
deve ser uma coisa alucinante.
Mas a tinta vai acabar Lúcia. Adeus! Saudade!

13
Carta de 02 de setembro de 1948 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
62
(Isto nem chega a ser carta: é só um pensamento amigo)14.
Analisando as duas cartas que Cecília fala diretamente da Índia, observo que há
uma coerência com relação ao que foi lido e experimentado. Desde a carta de 02 de março
de 1949, quando ela descreve a dançarina e a dança, com profusão de detalhes, ela se
utiliza de notório conhecimento prévio sobre o assunto. Por exemplo, quando comenta
que os movimentos são como um alfabeto, simbolizando abelhas, pavões, chuva, sol etc.,
ela mesma deixa claro este conhecimento ao comentar o espetáculo: “por já estar
familiarizada com os costumes, a mim, não me causou grande impressão” 15. Ao visitar
o país, também se utiliza das leituras como garantia de familiaridade e desenvoltura,
repetindo: “Eu não me espanto muito porque já sabia de tudo isto por leitura”; mas deixa
transparecer certa estupefação: “A Índia é um espetáculo fabuloso”.

Ao tomar conhecimento do artigo do professor Joaquim-Francisco Coelho,


curiosamente intitulado Cecília Meireles e a “Carta do Achamento da Índia” (COELHO,
2007, p. 179), observo que a impossibilidade de descrever a Índia em carta, como Cecília
diz a Lúcia, e esta aparente familiaridade com a vivência no país podem ter nuances, de
acordo com o destinatário. Na carta estudada pelo professor Coelho, Cecília escreve a
dois grandes amigos Diogo de Macedo e Eva Arruda, a quem a autora, carinhosamente,
chama de Dioguevas. Nesta carta, ela descreve com muitos detalhes o visto e o vivido,
utilizando inúmeros adjetivos, que demonstram certo deslumbramento com o “achado”.
Como foi observado quanto ao caráter do conjunto das cartas escritas à Lúcia, fica
perceptível que há a atmosfera de Minas priorizada no diálogo. Visitas às cidades
mineiras, especialmente, Ouro Preto, trocas sobre amizades em comum com escritores
mineiros e assuntos diversos que levam a outro universo de interesses, modificando,
assim, o discurso epistolar.

Neste contexto, foi-me motivador encontrar, para além dos traços explícitos, os
traços simbólicos da Índia, ou melhor, do pensamento indiano, nas cartas à amiga Lúcia.
Em carta de 02 de setembro de 1948, Cecília dedica grande parte das notícias ao
Romanceiro da Inconfidência:

O “Romanceiro” vai andando. Se eu lhe disser que comecei pelo


Silvério, V. não acredita! Mas é o mais “atual” dos tipos. É o que, de
tanto se ver diariamente, está mais ao alcance da emoção indignada. Os
outros são como impossíveis... Depois do Silvério, o Alvarenga... veja

14
Carta de 14 de fevereiro de 1953 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
15 Carta de 02 de março de 1949 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG
.
63
se não é como lhe digo. O Alvarenga. Pensando bem, é um miserável
tão miserável que não se pode deixar de ter uma pena infinita. Lúcia,
por que eu não tenho mais tempo para poder fazer essas coisas que me
apaixonam? Essa história da Inconfidência tem sobre mim um tal
poder, vejo tantas coisas nela, através dela, em redor dela, como
consequência dela, por ela, para ela, sem ela, que até parece que fui
inconfidente. É bem possível que tenha sido, pelo menos algum
moleque portador de recados, escrevo de um dos coronéis ou de um dos
padres [...] 16.
Na declaração sobre o impacto que a história da inconfidência tem sobre a autora,
podendo ter sido, ela mesma, uma inconfidente, escapa pelo discurso uma naturalidade
ao mencionar a reencarnação, tema desveladamente complexo em nossa formação
colonial católica. Leio estas linhas como uma marca no discurso de Cecília, que se deve
à bagagem de leituras de textos de filosofia e religião orientais, especialmente, de origem
indiana, em que a reencarnação é um ponto indiscutível. Com isto, não pretendo me
posicionar quanto à “verdade” da afirmativa de Cecília. Pela construção de um crescente
envolvimento com a Inconfidência: “vejo tantas coisas nela”, “através”, “em redor”,
“como consequência” que, ter nascido inconfidente é a culminância da construção desta
imagem (poética?) de completa absorção.

Em outra carta, de 1 de outubro de 45, o discurso epistolar também se constrói


criando uma imagem, desta vez, intencionalmente poética, pois Cecília traz para sua
companhia uma Sereia para ajudá-la dizer à Lúcia que, junto com a missiva, segue o livro
17
Mar Absoluto . Além de um diálogo direto com a mitologia de diversas culturas, na
figura da Sereia e menções ao mar, foi-me significativa a presença de um misticismo que
contorna o discurso e, mais uma vez, o leio como o traço da formação intelectual de
Cecília Meireles, por meio das leituras, por que não dizer, místicas, de textos orientais
como o Ramayana e Mahabharata, os Vedas e Upanishads, os Sutras e o Pancatantra;
de poetas como Omar Khayyam, Tultsidas e, mais enfaticamente, Rabindranath Tagore
(LOUNDO, 2007, p. 144) .

Para finalizar este ensaio, transcrevo as palavras da própria Cecília em carta a Lúcia
por considerar que, por meio deste trecho, Cecília sintetiza tanto a vertente de criação de

16
Carta de 02 de setembro de 1948 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
17
“[...] Ora, acontece que esses deuses pagãos, são uns grandes malandros, que troçam a valer tanto dos
católicos como dos livres pensadores: e sabe o que nos mandaram das entranhas do mar, amarrado em papel
e barbante, como se fossem anzol e isca? Pois o meu livro: o próprio “Mar absoluto”, que é tão relativo,
coitadinho, mesmo sem Einstein. Então, a Sereia e eu pensamos (já que ambas somos mulheres, e temos
maneiras complicadas de interpretar...)”. Carta de 01 de outubro de 1945 a Lúcia Machado de Almeida.
Acervo de Escritores Mineiros da UFMG.
64
sua poética (mística e lírica), apontando para o traço indiano em sua literatura, quando
para a afirmação de sua voz no árido contexto do modernismo para as mulheres, bem
como a confirmação de uma poética dissonante do seu contexto de produção, a saber, o
Modernismo: “e afinal vamos fundar a Confraria da Sereia, que não será uma Nossa
Ordem Social ou Política, mas uma Nossa Ordem Lírica e Mística”18.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Cecília e a Poesia. In: O empalhador de passarinho. 3ª ed. São Paulo:
Livraria Martins Editora, 1972 (p. 71-76).

______. Viagem. In: O empalhador de passarinho. 3ª ed. São Paulo, Livraria Martins Editora,
1972 (p. 60-64).

______. Mário, Otávio – Cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2005, Edição de Marcos Antonio de Moraes.

BOSI, Alfredo. Em torno da poesia de Cecília Meireles. In: GOUVÊA, Leila V. B. (org.).
Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007 (p. 13-32).

COELHO, Joaquim-Francisco. Cecília Meireles e a ‘Carta do Achamento da Índia’. In:


GOUVÊA, Leila V. B. (Org.). Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007
(p. 177-185).

CORRESPONDÊNCIA de Cecília Meireles a Lúcia Machado de Almeida. (1944-1962). Acervo


de Escritores Mineiros (UFMG). Consultado em 07 e 13 de jun. de 2012.

DIAZ, Brigitte. L’epistolaire ou la pensée nomade. Paris: Puf, 2002 (p. 51).

LOUNDO, Dilip. Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética. In:


GOUVÊA, Leila V. B. (org.). Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas,
2007 (p. 129-176).

MEIRELES, Cecília. Apresentação de Çaturnga. In: TAGORE, Rabindranath. Çaturanga. Rio


de Janeiro: Delta, 1962 (p. 77-83).

______. Crônicas de viagem-3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

______. Poemas escritos na Índia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962.

18
Carta de 8 de setembro de 1945 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.

65
NO PALCO DAS MEMÓRIAS: OS PROCESSOS DE AUTO/ALTER
SUBJETIVAÇÃO NA ESCRITA DE JORGE AMADO E ZÉLIA
GATTAI1

MEMORIES ON STAGE: THE PROCESSES OF SELF/ALTER


SUBJECTIVITY IN THE WRITING OF JORGE AMADO AND ZELIA
GATTAI

Ana Carolina Cruz de Souza2

Resumo: Através da arte da memória, os sujeitos de escritas bioficcionais teatralizam as


próprias existências e as existências de outrem, ou seja, trazem a vida à cena, colocando-
a em foco para o público leitor. Nesse processo, exercitam a anamnésis – palavra oriunda
do grego que, conforme acepção aristotélica, significa recordação ou rememoração como
resultado de busca ativa ou esforço de recordação. Da mnémé – termo grego que designa
a lembrança como afecção, evocação simples, aparição passiva, espontânea do conteúdo
recordado – passa-se à anamnésis, isto é, à lembrança enquanto memória refletida. As
escritas bioficcionais construídas pelo viés das memórias configuram-se, assim, como um
ato de performance que implica dramatização resultante de artifícios de linguagem para
a construção de perfis (auto)biográficos. É por essa perspectiva que se concebem as
memórias de Jorge Amado e Zélia Gattai, como atos de performance escritural que põem
em cena processos de auto/alter subjetivação. Os livros reunidos neste estudo – O menino
grapiúna e Um chapéu para viagem – cumprem a dupla função de aproximar a “memória
como ação” da “memória como representação”, denominações cunhadas por Ulpiano
Bezerra de Menezes (2007). Nesse sentido, vislumbram o ensejo de celebrar a vida,
comemorar o(s) aniversário(s) de nascimento e carreira de Jorge Amado num processo
de auto/alter contemplação, à medida que promovem interpretações sobre uma vida
mediante representação de si e/ou do outro. Objetiva-se, deste modo, refletir sobre os
rituais performáticos de construção da escrita de si e do outro presentes nas obras
mencionadas, considerando-se múltiplas miradas. Além deste aspecto, interessa analisar
de que modo os autores emprestam sentido à matéria do vivido, construindo personagens
de si mesmos e do outro representados na escrita, e em que medida o relato
(auto)biográfico transita do real para o ficcional. As questões postas serão examinadas
mediante a realização de pesquisa bibliográfica, a partir da qual serão tomadas como
ponto de partida as leituras de Leonor Arfuch (2010), Eneida Maria de Souza (2011),
Diana Klinger (2012) e Eurídice Figueiredo (2013).
Palavras-chave: bioficção, memórias (auto)biográficas, auto/alter subjetivação,
performance.

1
Mesa-redonda A representação literária e os museus da memória.
2
Doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Professora Assistente da
Universidade Estadual da Bahia (UNEB).
66
Abstract: Through the art of memory, the subjects of biofictional writings have infused
drama on the existence of others and their own, in other words, brings life to the scene,
bringing it to light to the reader. In this process, they excercise the anamnesis - word
coming from the Greek that, according to Aristotelian acceptance, means remembering
as a result of the active search or effort of recalling. From mnémé - greek term refering
to memory as affection, simple evocation, passive and espontaneous apparition of the
recalled - to the anamnésis, i.e., to the recollection as reflected memory. The biofictional
writings built through the obliquity of memories are configured as an act of performance
that implies dramatization resulting of language skills on the creation of
(self)biographical profiles. It is through that perspective that the memories of Jorge
Amado and Zélia Gattai are conceived, as acts of scriptural performances that bring to
light processes of self\alter subjectivity. The books studied in this work - O menino
grapiúna and Um chapéu para viagem - fulfill the double function of aproximating
"memory as action" to "memory as representation", definitions coined by Ulpiano
Bezerra de Menezes (2007). In this sense, perceived an opportunity to celebrate life,
celebrate the event(s) of birth and career of Jorge Amado in a self/alter contemplation
process, as they promote interpretations of one's life by representing themselves and/or
the other. Objective is thus to reflect on the performative rituals of construction of writing
for oneself and for others mentioned in the works, considering multiple glances. Besides
this aspect, it is interesting to analyze how the authors lend meaning to living matter,
building the characters themselves and the supporting characters represented in writing,
and to what extent the (self) biographical report moves from the real to the fictional. The
questions posed will be examined by conducting a literature review, from which are taken
as a starting point readings Arfuch Leonor (2010), Eneida Maria de Souza (2011), Diana
Klinger (2012) and Eurydice Figueiredo (2013).
Keywords: biofiction, (self)biographic memories, self/alter subjectivity, performance.

“Lembrar-se é ter uma lembrança ou ir em busca da


lembrança.”
(Paul Ricouer)
“[T]oda procura de lembrança é também uma caçada.”
(Paul Ricouer)
“Qualquer tipo de confidência visa à glória, ao escândalo,
à desculpa, à propaganda.”
(Paul Valéry)

Através da arte da memória, os sujeitos de escritas bioficcionais teatralizam as


próprias existências e as existências de outrem, ou seja, trazem a vida à cena, colocando-
a em foco para o público leitor. Nesse processo, exercitam a anamnésis, rememoração
como resultado de busca ativa ou esforço de recordação. Da mnémé ou afecção, evocação
simples, passam à anamnésis, lembrança enquanto memória refletida. As escritas

67
bioficcionais construídas pelo viés das memórias configuram-se, assim, como ato de
performance que implica dramatização resultante de artifícios de linguagem para a
construção de perfis (auto)biográficos3. É por essa perspectiva que se concebem as
memórias de Jorge Amado e Zélia Gattai como atos de performance escritural que põem
em cena processos de auto/alter subjetivação. Os livros reunidos neste estudo – O menino
grapiúna e Um chapéu para viagem – cumprem a dupla função de aproximar a “memória
como ação” da “memória como representação”, denominações cunhadas por Ulpiano
Bezerra de Menezes (2007). Nesse sentido, vislumbram o ensejo de celebrar a vida,
comemorar o(s) aniversário(s) de nascimento e carreira de Jorge Amado num processo
de auto/alter contemplação, à medida que promovem interpretações sobre uma vida
mediante representação de si ou do outro.

Para maiores esclarecimentos, é válido informar que Um chapéu para viagem


(1982), é fruto de homenagem prestada por Zélia Gattai a Jorge Amado por ocasião dos
cinquenta anos de carreira do escritor e da comemoração dos setenta anos de idade.
Curioso é que, no mesmo período em que Zélia escreve Um chapéu para viagem, Amado
dá início às memórias de O menino grapiúna (1982), escritas por encomenda da revista
Vogue, destinada a publicar edição especial em homenagem aos cinquenta anos de
carreira do autor. Em meio a essas contingências no processo de publicação das obras em
estudo, infere-se que os autores se valem de ensejo para construírem uma performance
escritural que põe em cena processos de auto/alter subjetivação num duplo movimento de
auto/alter representação e auto/alter celebração.

Recolhendo fatos significativos das memórias da infância e da maturidade, Amado


e Gattai constroem a imagem de si e do outro. Através da performance escritural, os
autores põem em ação a “recordação laboriosa”4 e agregam sentido à matéria do vivido,
recriando a imagem dos sujeitos representados no tecido narrativo. Isso equivale dizer,
como alerta Diana Klinger, que “o sentido de uma vida não se descobre e depois se narra,
mas se constrói na própria narração” (KLINGER, 2012, p.47, grifo do autor). Esta se
constitui mediante processo de engendramento dos sujeitos na vida e na arte. Citando as

3
Adverte-se que toda vez que for grafado o termo (auto)biográfico – em qualquer variação de gênero e
número – se está referindo à escrita de si ou do outro. Isto porque as obras de Jorge Amado e Zélia Gattai
apresentam variação de foco. O menino grapiúna constitui-se como relato de vida do próprio sujeito que
se narra, ao passo que em Um chapéu para viagem a narradora desloca o olhar de si para o outro biografado,
promovendo a imagem de Jorge Amado por meio de processos de alter-representação e altercelebração.
4
Denominação tomada de empréstimo a Henry Bergson (2001).

68
palavras de Klinger, como ocorre no palco teatral, o que se vê é a dramatização de “um
sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem” (KLINGER,
2012, p. 49, grifo nosso). Se de um lado a escrita (auto)biográfica reserva o caráter de
referencialidade e remete para um ser real que está fora do texto, por outro, o ser
biografado passa a constituir-se um ser de linguagem. Sendo assim, a escrita de si e do
outro deve ser entendida enquanto bioficção e, como o nome já indica, enquanto ficção
de uma vida. No entendimento de Antonella Rita Roscilli (2011, p.60), “a biografia
narrada através das trajetórias de vida poderia ser vista como espaço ficcional, a partir do
qual lembrar e contar são sempre (re)organizar e (re)construir uma identidade narrativa”.
A par disso, postula-se que, se tratando dos relatos (auto)biográficos de Zélia Gattai e
Jorge Amado, tem-se uma performance de escrita que está no entre-lugar, entre a ficção
e o real, e que, portanto, engendra o ser de papel e o ser de carne e osso que se quer
performar. Nesse sentido, corroborando e, ao mesmo tempo, suplementando as
considerações de Roscilli (2011), argumenta-se que o relato (auto)biográfico assume o
caráter de autoinvenção – ou de alterinvenção, conforme o olhar que se lança sobre o
sujeito biografado e biografável –, pois não (apenas) representa o autor – ou o ser a quem
o relato se destina –, mas (sobretudo) o produz. É por esse viés que será procedido o
estudo de Anarquistas, graças a Deus e O menino grapiúna.

Com relação a Um chapéu para viagem, vale destacar que, embora a narrativa
assuma o veio testemunhal e biográfico, através do qual o real se insinua, deixando à
mostra as relações familiares, de amizade e profissionais de Jorge Amado, não se pode
perder de vista o fato de que, por meio da memória refletida e do labor de reconstrução,
a narradora-escritora apreende momentos e episódios significativos da matéria do vivido
para compor a imagem que quer ver representada para o Amado Jorge.

Um chapéu para viagem pode ser considerado um monumento de memória e tributo


a Jorge Amado. Na obra em questão, a autora, narradora e personagem desvia o foco da
atenção do leitor: “o seu olhar deixa de ser um olhar para si ou sobre si [embora também
o seja], e [...] desloca-se para Jorge Amado”, conforme assinala Ramos (2002). “Assim
se entrecruzam a dimensão intelectual e a dimensão afetiva do esforço de recordação”,
para citar as palavras de Paul Ricoeur (2007, p. 48).

Percorrendo as páginas do livro, é possível observar que, reunindo a “memória


como ação” (no desejo de comemorar o aniversário de carreira e de vida do escritor) e a
“memória como representação” (no intuito de rememorar o passado mediante a

69
construção da biografia de seu Amado marido), a escritora acaba reforçando alguns mitos
que giram em torno da figura de Jorge Amado. Assim, a autora reafirma a imagem do
“herói popular”, um herói que resgata aspectos culturais da vida do povo em suas obras,
garantindo que estas sejam veiculadas em plena ditadura do Estado Novo; um “herói”,
cujo prestígio como escritor o levou a ocupar uma cadeira no Congresso Nacional na
qualidade de Deputado Federal. Fica evidente também, na construção do perfil do
biografado, a imagem do homem que dedicou a vida à família e ao trabalho, a imagem de
um marido dedicado e de um escritor incansável, o que vem a corroborar as imagens
veiculadas pela mídia acerca do escritor baiano. Nesse sentido, percebe-se que os relatos
de Zélia Gattai buscam positivar a imagem de Amado. Eis o valor predominantemente
celebrativo presente em Um Chapéu para a viagem.

Julga-se que o propósito de Zélia Gattai de celebrar a memória de Amado parece ir


de encontro às declarações do autor contrárias às manifestações em sua homenagem e ao
seu esforço de mostrar-se um homem “comum”, tal como expresso nas páginas finais do
livro Navegações de Cabotagem: “Digo não ao discurso, à medalha, à fanfarra e aos
tambores, à sessão solene, ao incenso [...] fujo aos festejos, ao fogo de artifício, ao
banquete, fujo ao necrológio [...]” (AMADO, 1992, p.636). O que se vê em Um chapéu
para viagem é que Amado foi concebido como expoente nacional, seja no cenário
literário, seja no cenário político, sendo, desta forma, elevado à figura de ícone, de “herói”
da nação. Passagens da obra confirmam tal assertiva:

Instalado em São Paulo, Jorge, ao lado de outros intelectuais, buscava


arregimentar o povo na luta pela democracia, organizando um grande
movimento de massas de apoio às forças aliadas. Com esse objetivo os
diversos grupos de esquerda realizavam passeatas e comícios a cada
derrota do nazismo, a cada vitória dos aliados. Cresceu a luta pela
anistia dos presos políticos, pela libertação de Prestes (GATTAI, 2003,
p. 31).
Os dirigentes tinham razão: Jorge foi eleito com votação excelente;
pessoas que não votariam em outro candidato comunista votaram no
escritor. Detalhe curioso: obteve a maioria dos votos da colônia judaica,
apesar de concorrer também a uma cadeira no Congresso Nacional um
judeu ilustre, Horácio Lafer (GATTAI, 2003, p. 11).
Os fragmentos acima citados reforçam a imagem pública do cidadão e escritor Jorge
Amado, pondo em relevo a intensa participação no cenário político do país à frente do
Partido Comunista. Revelam a face do homem comprometido com as causas sociais e
políticas do seu tempo, que lutou pela democracia, arregimentando o povo em passeatas

70
e comícios, e que, tamanha a sua popularidade como escritor, foi eleito, com votação
expressiva, a Deputado Federal pelo PCB.

Interessante notar é que as memórias de Zélia Gattai, em alguns momentos,


permitem desmistificar a imagem de homem simples, próximo ao povo e, portanto, um
homem “comum” – como Jorge fazia questão de se mostrar para o público –, pois os
registros de vida do escritor, ao longo da narrativa, mostram um intelectual no topo das
relações sociais, convivendo com a elite pensante e promotora de cultura do país. Para
além do universo familiar, Zélia Gattai leva o leitor a conhecer o círculo de amigos de
Jorge Amado e, assim, o campo literário e intelectual por onde o escritor e homem público
transitava. Através de sua ampla sociabilidade, Amado relacionou-se com uma infinidade
de artistas e intelectuais que compunham o cenário cultural e político tanto no âmbito
nacional quanto internacional. Dentre estes, pode-se destacar, no campo artístico, o pintor
Carlos Scliar, o cantor e compositor Dorival Caymmi, o poeta Pablo Neruda, o escritor
Graciliano Ramos e tantos outros, e, no campo político, ninguém menos que Luís Carlos
Prestes, a quem rendeu uma homenagem escrevendo o romance biografado O Cavalheiro
da Esperança, “Carlos Marighella, Maurício Grabóis, Pedro Pomar, José Maria Crispim,
Diógenes Arruda Câmara, João Amazonas – todos eles na época dirigentes do PCB”
(GATTAI, 2003, p.70). Esta lista de amigos, que não se restringe aos nomes citados,
demonstra o quanto Jorge Amado era influente e o legado intelectual do intelectual. Eis
alguns registros do círculo de amizades do escritor:

Ao terminar o ato, Jorge veio ao nosso encontro. Com ele, Graciliano


Ramos e Heloísa, que me foram apresentados. [...] No saguão, nesse
mesmo dia, fui apresentada a Astrojildo Pereira, escritor e um dos
fundadores do Partido Comunista, a quem conhecia de nome, desde a
minha infância. [...] Conheci também naquele dia Joracy Camargo,
Oscar Niemeyer, a psicanalista Rosita Pontes de Miranda, Paulo
Werneck, Quirino Campofiorito, o médico e deputado Alcedo
Coutinho, Roberto Sisson, ex-oficial da Marinha, companheiro de
exílio de Jorge no Uruguai, e vários outros (GATTAI, 2003, p. 49).
A casa de Henrique Scliar, localizada num sobrado, sobre uma fábrica
de colchões, encheu-se de gente no dia de nossa chegada e nos
seguintes. Amigos e admiradores de Jorge vieram vê-lo, abraçá-lo.
Érico Veríssimo também não faltou. (GATTAI, 2003, p. 72).
O esforço celebrativo que constitui a mola-mestra da escrita de Um chapéu para
viagem e o exercício da “memória-paixão” empreendidos por Gattai na tessitura da obra
resultam na construção de uma “biografia social cotidiana” – tal como a terminologia
cunhada por Leonor Arfuch (2010) – para designar a narrativa que “alimenta o imaginário

71
do herói ‘honrado e bom’, centrado na vida familiar ou pessoal e no desejo de felicidade”
(ARFUCH, 2010, p. 196) e justiça social.

O menino grapiúna é mais um monumento vivo à memória de Jorge Amado. Pelo


viés das memórias, o autor reforça o mito em torno do seu nome e recria a própria
imagem. Conforme assinala Maria Raquel Passos Lima, o que se vê concretizado na
referida obra não são “memórias fortuitas de uma infância, mas uma espécie de mito de
origem de Jorge Amado como escritor” (LIMA, [s.d.], p. 1). Para construir tal mito, o
narrador-autor põe em destaque o contato com escritores estrangeiros consagrados que
constituíram o lastro da educação do jovem e da formação intelectual:

O padre Cabral tomou-me sob sua proteção e colocou em minhas mãos


livros de sua estante. Primeiro As Viagens de Gulliver, depois clássicos
portugueses, traduções de ficcionistas ingleses e franceses. Data dessa
época minha paixão por Charles Dickens. Demoraria ainda a conhecer
Mark Twain, o norte-americano não figurava entre os prediletos do
padre Cabral (AMADO, 2006, p. 128).
Ao rememorar o percurso de leituras e formação intelectual, Jorge Amado salienta
o papel do padre Cabral ao despertar-lhe a sedução pela literatura e o veio artístico que o
tornara escritor:

Em lugar de nos fazer analisar Os Lusíadas, tentando descobrir o sujeito


oculto e dividir as orações, reduzindo o poema a complicado texto para
as questões gramaticais, fazendo-nos odiar Camões, o padre Cabral,
para seu deleite e nosso encantamento, declamava para os alunos
episódios da epopéia. Apesar do sotaque de além-mar, a força do verso
nos tomava e possuía. Lia-nos igualmente a prosa de Garrett, a de
Herculano, cenas de Frei Luiz de Souza, trechos de Lendas e
Narrativas. Patriota, desejava sem dúvida nos fazer conscientes da
grandeza de Portugal, o Portugal das descobertas e dos clássicos.
Obtinha bem mais que isso: despertava nossa sensibilidade, retirando-
nos do poço da gramática portuguesa para a sedução da literatura, das
palavras vivas e atuantes. (AMADO, 2006, p. 121-122).
O primeiro dever passado pelo novo professor de português foi uma
descrição tendo o mar como tema. A classe se inspirou, toda ela, nos
escapelados mares de Camões, aqueles nunca dantes navegados, o
episódio do Adamastor foi reescrito pela meninada. Prisioneiro no
internato, eu vivia na saudade das praias do Pontal onde conhecera a
liberdade e o sonho. O mar de Ilhéus foi o tema da minha descrição.
Padre Cabral levara os deveres para corrigir na cela. Na aula seguinte,
entre risonho e solene, anunciou a existência de uma vocação autêntica
de escritor naquela sala de aula. Pediu que escutassem com atenção o
dever que ia ler. Tinha certeza, afirmou, que o autor daquela página
seria no futuro escritor conhecido. Não regateou elogios. Eu acabara de
completar onze anos.

72
Passei a ser uma personalidade, segundo os cânones do colégio [...]. Fui
admitido numa espécie de Círculo literário onde brilhavam alunos mais
velhos. (AMADO, 2006, p. 127-128).
Nesse sentido, a obra se aproxima da autobiografia canônica que, segundo enfatiza
Leonor Arfuch, “supõe um propósito, um projeto de autocriação através da linguagem”
(ARFUCH, 2010, p. 193). Reside aí a estratégia e o desejo de permanência, a luta
simbólica contra o esquecimento. Como se sabe, quando a obra vem a lume, o escritor
está completando setenta anos de vida, estando, portanto, na terceira idade. Acredita-se,
deste modo, que a encenação da vida por intermédio das memórias autobiográficas é uma
maneira de superar a mortalidade, transcender o declínio dos dias. “Contar a (própria)
história se transformará também, aqui, irremediavelmente, em experiência do tempo e
pugna contra a morte, uma espécie de antecipação aos possíveis relatos dos outros, uma
disputa da voz, em resistência a toda expropriação futura” (ARFUCH, 2010, p. 193).
“Assim, faz-se provisão de lembranças para os dias vindouros, para o tempo dedicado às
lembranças...” (RICOEUR, 2007, p. 56). Nesse caso, o esforço de memória pode ser
entendido como uma forma de vencer as barreiras do tempo e lutar contra o esquecimento
social. Caminhando nessa direção, as memórias de O menino grapiúna recobram “‘o
saldo das miudezas de uma vida bem vivida’, mas que o autor deseja que não se percam,
pois insiste em contá-las, ou seja, torná-las públicas, ir ao encontro do leitor” (SILVA,
2006, p. 16). Esta é uma análise empreendida por Odalice de Castro Silva em relação aos
autorrelatos de Navegação de Cabotagem, mas que se aplicam também ao primeiro livro
de memórias. Conforme entendimento da pesquisadora:

A preocupação em perpetuar-se na história e no tempo parece ser


constante na vida do autor, porque antes da publicação de Navegação
de Cabotagem (1992) escreveu suas memórias de infância em O
Menino Grapiúna (1981). Ainda nesta mesma década, no Largo do
Pelourinho, em Salvador, Jorge Amado inaugura, em 07 de março de
1987, a Fundação Jorge Amado, que passa a desenvolver um trabalho
intenso de preservação e divulgação da obra do escritor (SILVA, 2006,
p. 24).
Ou ainda:

A Casa de Jorge Amado, juntamente com as duas obras mencionadas O


Menino Grapiúna e Navegação de Cabotagem forma uma tríade
memorialística. Por este âmbito, apesar da insistente negação, faz-se
uma espécie de pacto autobiográfico. Esse pacto é firmado segundo
Lejeune (2008, p.33), no contrato de identidade selado pelo próprio
nome, pois existe uma “espécie de paixão pelo nome próprio, que
ultrapassa a simples “vaidade de autor”, já que por meio dele, é a
própria pessoa que justifica sua existência”. O nome próprio escrito nas
capas dos livros e na fachada da Casa fixa Jorge Amado no tempo. É

73
uma ação contra a própria morte que não o deixará no esquecimento
(SILVA, 2006, p. 25).
Tal empreendimento vai de encontro à declaração do autor registrada no segundo
livro de memórias, Navegação de Cabotagem: “Não quero erguer um monumento nem
posar para a História cavalgando a glória. Que glória?” (AMADO, 1992, p. IV). As
memórias evocadas em O menino grapiúna contradizem essas palavras, pois trazem à
cena da escritura o relato do período de formação intelectual, das experiências de leitura
que contribuíram para torná-lo um escritor e os temas recorrentes em suas obras. Cita-se
aqui o seguinte fragmento:

Temas permanentes, o amor e a morte estão no centro de toda a minha


obra de romancista. A observação de Ilya Ehrenburg, no prefácio da
tradução russa de Terras do Sem Fim, retomadas por outros críticos,
encontra sua razão de ser, suas raízes, nessa primeira infância de terra
violentada, de homens em armas, num mundo primitivo de epidemias,
pestes, serpentes, sangue e cruzes nos caminhos e, ao mesmo tempo, de
mar e brisa, de praia e canções, meninas de doce enlevo (AMADO,
2006, p. 47).
As palavras de Amado, no trecho acima, sinalizam para o veio humanista que
lastreia a sua obra e estabelecem pontos de assentamento para a construção dos romances.
Além disso, deixam entrever a ampla recepção da produção literária, especialmente
Terras do Sem Fim, traduzido até para o russo.

Diante do exposto, vê-se que, nas memórias de O menino grapiúna, o motivo


emblemático é a trajetória que vai dando coerência ao autorretrato e justifica as ações do
personagem autobiografado, bem como a inserção no mundo literário. Ao refazer o
percurso que o levara a empunhar a pena de escritor, Amado não perde de vista o papel
da mãe, dona Eulália, enquanto contadora de histórias e guardiã da memória oral e
identitária da região grapiúna, memória esta que ilumina a obra amadiana. Pelo
testemunho de dona Eulália, o leitor pode acompanhar os diversos acontecimentos que
dão sustentação às automemoriografias de Jorge Amado, como, por exemplo, os reveses
no processo de conquista de territórios e construção da sociedade cacaueira:

A enchente do rio Cachoeira, nos começos de 1914, levou plantações,


casa, chiqueiro, a vaca, os burros e as cabras. Fugitivos, meus pais
chegaram ao povoado com a roupa do corpo, carregando o menino. Em
Ferradas, já não havia onde recolher tantos foragidos, fomos enviados
para o lazaretto, habitualmente reservado aos leprosos e bexigosos,
transformado em abrigo para a vítimas da cheia. Lavaram o chão de
cimento com umas poucas latas de água, recordava minha mãe. Outros
recursos não existiam, nem remédios, nem enfermeiras ou médicos –
eram as terras do sem fim (AMADO, 2006, p. 14, grifo nosso).

74
Tanto em Anarquistas, graças a Deus quanto em O menino grapiúna pode-se
acompanhar o registro de “fenômenos mnemônicos ligados à comemoração” (RICOEUR,
2007, p. 60). Seguindo nessa direção, Gattai e Amado põem no palco das memórias a
“recordação-ação”, e, assim, perfis identitários são recriados por meio de processos de
auto/alter subjetivação. Em meio ao exercício de escrita dos referidos autores, pode-se
apreender o papel idealizado da (auto)biografia como espaço de memória e como forma
de consagração do escritor – neste caso, Jorge Amado, o qual ocupa o centro da cena em
ambas as escrituras. Confirma-se, desse modo, o caráter performático da construção
narrativa nas obras aqui apresentadas.

REFERÊNCIAS

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escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1992.

______. O menino grapiúna. 24ª ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2006.

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Janeiro: Ed. UERJ, 2010.

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de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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culturais. 2011. 170 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Departamento de História,
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<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1515.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2018.

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Janeiro: EdUERJ, 2013.

GATTAI, Zélia. Um chapéu para viagem. 16ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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Sergio Alcides. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. 2ª
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LEJEUNE. Philippe. O Pacto autobiográfico. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e


Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

LIMA, Maria Raquel Passos. Tradução de menino ou Jorge Amado grapiúna: uma análise
antropológica sobre memória e subjetividade. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE
ANTROPOLOGIA, 26., Porto Seguro. Anais... . Porto Seguro: Associação Brasileira de
Antropologia, 2008. Disponível em: <
http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/
GT%2033/maria%20raquel%20passos%20lima.pdf >. Acesso em: 25 out. 2013
75
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RAMOS, Ana Rosa. Zélia Gattai: a transformação da intimidade. In: Seminário Zélia Gatai:
Gênero e Memória. Apresentação Myriam Fraga. Salvador: FCJA; Museu Carlos Costa Pinto,
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Gattai. Salvador: EDUFBA, 2011.

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Jorge Amado. 2012. 96 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Estudos de Linguagem,
Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá/mt, 2012. Disponível em:
<http://www1.ufmt.br/ufmt/unidade/userfiles/publicacoes/eed950fc22909925b86d17e0ad57b87
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SOUZA, Eneida Maria. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.

76
UMWELT, PROCESSOS CRIATIVOS HÍBRIDOS1

UMWELT, CREATIVE PROCESSES HYBRID

André Arieta2

Resumo: Estudo da relação criativa entre o diretor e os atores do grupo de teatro


experimental da cidade de Porto Alegre, Falos & Stercus, na construção do espetáculo
Hybris (do começo dos ensaios ao último espetáculo da primeira temporada em novembro
de 2010), acompanhando a transição entre as práticas teatrais, de uma sala de 40 metros
quadrados no Hospital Psiquiátrico São Pedro (hospital público para doentes mentais
onde existe um espaço ocupado por grupos de teatro) até as apresentações da peça em um
prédio abandonado de quatro andares, a partir de um processo de criação cinematográfica,
na medida em que a ideia é fazer um filme que relacione as influências recíprocas entre
elenco e direção na trupe, como manifestações artísticas autônomas e relacionais, e que
acabam interferindo na criação cinematográfica. Para tanto, foram filmados e estudados:
o treinamento dos atores nos ensaios, as entrevistas com o diretor, a preparadora vocal, o
cenógrafo e o elenco, abordando seu trabalho artístico e as questões pessoais de cada um
envolvidas nestes processos criativos de teatro e de cinema. Ainda foram registrados mais
outros dois eixos narrativos presentes no cotidiano do pesquisador/realizador: um que
tratou do contexto acadêmico que influencia a pesquisa e seu resultado prático (aulas,
reuniões com a orientadora, seminários, conversas com os colegas na universidade, em
bares, etc.) e outro que abordou a sua vida pessoal, através de gravações de momentos
íntimos, na medida em que seu processo criativo é resultado de suas vivências, não apenas
da pesquisa acadêmica e do filme ensaio que está realizando. Reflexão imagética sobre a
gravação de imagens destes três eixos narrativos, cada um deles com uma abordagem
estética específica, e sobre as possibilidades de montagem e finalização deste filme
ensaio, a partir de suas características estruturais, e na relação entre as referências e
vivências biográficas (diretor e elenco da peça) e autobiográficas
(pesquisador/realizador). Como construir uma relação entre estes processos criativos,
cinematográfico e teatral, com as 80 horas de material bruto.
Palavras-chave: ator; autoria; direção; processos criativos; Falos & Stercus; cinema;
documentário.

Abstract: Study of the creative relationship between the director and the actors of
experimental theater group in Porto Alegre, Falos & Stercus, the construction of spectacle
Hybris (to the start of the rehearsals at the last show of the season in November 2010),
accompanying the transition between theatrical practices, since a room of 40 square
meters in the Psychiatric Hospital St. Peter (public mental hospital where there is a space
for theater groups) at the performances of the play in an abandoned four-floors building,
from a process of cinematographic creation, in that the idea is to make a film that relates

1
Mesa-redonda Subjetividades e experiências interartes.
2
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vinculado à
Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó).
77
the reciprocal influences between casting and direction on how troupe autonomous
relational and artistic events, and end up interfering in filmmaking. For both were filmed
and studied: the training of actors in rehearsals, interviews with the director, a vocal
coach, the designer and the cast, addressing his artwork and personal issues of each
involved in these creative processes of theater and cinema. Yet been registered and two
other narrative axes present in the daily researcher/ filmmaker, who dealt with the
academic context that influences the research and its practical outcomes (classes,
meetings with the guidance counselor, seminars, conversations with colleagues at the
university, in bars, etc.) and another that addressed their personal lives, through
recordings of intimate moments, in that his creative process is a result of their
experiences, not only of academic research and essay film that is performing. Imagery
reflection on recording images of these three narrative axes, each with a specific aesthetic
approach, and the possibilities for edition and finalization of picture and sound of this
film essay, from their structural characteristics, and the relationship between references
and biographical experiences (director and cast of the play) and autobiographical
(investigator/ director). How to build a relationship between these creative processes, film
and theater, with the 80 hours of rough cut.
Keywords: actor; author; direction; creative processes; Falos & Stercus; film;
documentary.

O presente artigo trata da relação entre dois processos criativos, um teatral, outro
cinematográfico, através de um documentário que estou realizando e que se encontra na
etapa de montagem. Este tema começou como objeto de estudo de meu mestrado em
Artes Cênicas, realizado entre 2009 e 2011, no Departamento de Arte Dramática (DAD)
da UFRGS. Foram acompanhados todos os ensaios, de março a novembro de 2010, e a
primeira temporada do espetáculo Hybris3, do grupo gaúcho de teatro Falos & Stercus,
em dezembro de 2010.

O nome desse texto surge do conceito de Umwelt4, do biólogo Jacob Von Uexkull,
que fala da reciprocidade na construção da identidade individual, o DNA animal forjado
no meio e vice-versa. A criação artística é uma impressão digital que nasceu na influência
de seu ambiente, assim, cada ser humano tem um processo criativo intrínseco e único
construído ao seu redor. Esta identidade pessoal, esta noção de si no outro e no espaço

3
Definição apresentada por Christine Greiner no seu livro O corpo (2006).
4
Teoria criada por Jacob Von Uexkull com colaboração de Thomas A. Sebeok, a partir do significado da
palavra em alemão: meio ambiente, mas que amplia bastante seu sentido, pois parte de um processo
comunicativo entre os seres vivos que compartilham o mesmo ambiente. Cada componente funcional de
um Umwelt tem um significado e por isso representa o organismo modelo do mundo, incluindo todos os
seus aspectos simbólicos para qualquer organismo em particular, isto é, pode ser fogo, comida, alimento,
abrigo, as ameaças potenciais, os pontos de referência, etc. Um organismo cria e reformula seu próprio
Umwelt quando ele interage com o mundo. Isto é chamado de círculo funcional. O biólogo belga e seu
colaborador afirmam que a mente e o mundo são inseparáveis, porque é ela que interpreta o mundo para o
organismo, logo o Umwelt dos diferentes organismos decorre da individualidade e da singularidade da
história de cada ser vivo.
78
vivo, pode ou não se transformar em arte através do corpo do artista. Todo ser vivo
carrega consigo uma autoria ancestral e apreendida: única. O indivíduo não se diferencia
do seu ambiente, forma e é formado por ele dentro do universo de cada espécie, através
de uma análise do mundo sensorial. Entre as diferentes espécies existe uma progressão
de complexidade. Ocorre subjetivismo na adaptação na medida em que cada uma delas
constrói seu mundo e é construída por ele. Existe uma criação artística neste processo,
ainda que não intencional.

Propus-me a escrever sobre esses encontros de criações e criadores, relatando o


processo de captação de imagens do documentário em seu encontro com a montagem
teatral, a partir de questões estéticas, artísticas, mas também das relações afetivas e
momentos pessoais que, durante o ano de 2010, se relacionaram com a construção do
filme e do espetáculo. Estão presentes o contexto acadêmico, que envolveu a tese, e a
gravação de imagens, ou seja: foram filmadas aulas de mestrado, conversas com os
colegas, reuniões com a orientadora, etc., e, em muitas delas, o assunto era o próprio
projeto de pesquisa/documentário, estabelecendo uma relação circular incluindo
discussões sobre o filme dentro do filme, pois estas conversas ajudaram a definir o
formato do documentário; assim como a gravação de momentos pessoais da minha vida
que aconteceram durante aquele ano e que também influenciaram a realização do filme.
Trata-se então de um trabalho etnográfico e auto-etnográfico. Analiso os meus
procedimentos e circunstâncias, como o contexto acadêmico citado acima, e ainda meu
bairro, meu cachorro, viagens de férias e muitas caminhadas, especialmente pelo centro
de Porto Alegre, ao estudar as relações criativas internas, teatrais, do grupo, e externas,
com o meu processo criativo cinematográfico. Como diz Sylvie Fortin em sua pesquisa
Contribuições possíveis da etnografia e da auto-etnografia na pesquisa artística:

Os estudos etnográficos e auto-etnográficos podem muito bem ser os


objetos de uma bricolagem metodológica, para servir ao artista
desejoso, por sua vez, de uma teorização de sua própria prática e a de
outros artistas. É, por exemplo, o caso de Julie Forgues, que deseja
compreender a fotografia de grande formato, examinando sua própria
prática, assim como aquela de alguns fotógrafos de renome no mercado.
(FORTIN, 2009, p.85)
Mesmo nos registros de imagens do grupo, questões pessoais estão envolvidas, pois
depois de acompanhar três ensaios semanais por nove meses, acabei adquirindo certa
intimidade com a trupe, e assim pude acompanhar tudo o que envolveu o processo
criativo, inclusive algumas questões pessoais dos atores e do diretor (dois dos membros
fundadores deixaram o grupo após este espetáculo), percebi então que estava trabalhando
79
em uma autoficção dentro de uma ficção (na medida em que o documentário é sempre
totalmente ficcional, apesar de se utilizar de imagens do mundo real, elas estão servindo
aos propósitos narrativos do realizador).

Desta maneira tenho a intenção de aproximar as duas linguagens, não apenas


através de uma análise teórica, mas de uma pesquisa a respeito dos processos criativos
em interação: na medida em que o filme não está terminado (o processo de montagem já
começou, será explicado mais tarde), me concentro na construção da sua trajetória, ainda
sem a materialidade de um resultado final. O processo de criação do diretor de cinema
aborda os outros dois, o do ator e o do diretor de teatro em relação. É uma concepção
cinematográfica cujo tema é a criação teatral. O que faz toda a diferença na medida em
que o foco não está apenas na relação autoral entre atores e diretor, mas na maneira como
eu registro e interpreto este encontro de criadores. Assim, é mais importante a relação
entre os processos criativos já citados, e as questões pessoais envolvidas, do que o a
natureza específica desses processos, teatral e cinematográfica. No entanto, partiremos
dessas duas formas de manifestação artística, pois elas contêm o diálogo estético de onde
parti: as relações entre teatro, vídeo, cinema e documentário.

É importante salientar que o grupo Falos & Stercus foi escolhido porque tem um
trabalho bastante experimental e provocador, com uma trajetória polêmica de 20 anos,
mas de grande sucesso na cidade de Porto Alegre, em outros estados e também fora do
Brasil.

Estabeleço uma relação entre meus métodos de filmagem com as teorias do


documentário que os balizaram, especificamente os textos de Philipe Dubois (2004) a
respeito do vídeo (e de sua relação com o cinema); e de Bill Nichols (2005) sobre os
modos (performático, poético, observativo, participativo, expositivo e reflexivo) e a voz
neste tipo de filme.

1. O DOCUMENTÁRIO

Trata-se de um tipo de narrativa audiovisual que trabalha com o registro do mundo


histórico e seus atores sociais, fato que dá mais credibilidade a esta forma de construção
ficcional, ainda que esta seja uma falsa impressão, por esse motivo é muitas vezes
confundido, apressadamente, como uma cópia fiel da realidade. Bill Nicholls corrobora
esta afirmação: “Experimentamos uma forma distinta de fascínio pela oportunidade de

80
testemunhar a vida dos outros quando eles parecem pertencer ao mesmo mundo histórico
a que pertencemos.” (NICHOLS, 2005, p.18).

Porém é importante esclarecer que se trata sempre de uma ficção5 uma interpretação
do real que expressa o que o documentarista tem a dizer, como escreve o autor a respeito
do documentário: “Ele não é uma reprodução da realidade, é uma representação do mundo
em que vivemos. Representa uma determinada visão de mundo.” (NICHOLS, 2005, p.
47).

E entre os diversos modos de realização documental, elaborados e descritos pelo


autor no mesmo livro, serão utilizados nesse audiovisual: o observativo, o participativo,
o performático e o poético, que serão explicados mais adiante. E, finalmente, unindo-se
os dois conceitos, documentário em vídeo, chegamos a um tipo de filme que segue a
tradição cinematográfica documental, mas com muito mais agilidade e discrição. As
câmeras são muito menores, não são necessárias interrupções para troca de negativo
(neste caso específico não existe nem troca de fita, é tudo gravado no cartão de memória
da câmera), e o espaço ocupado pelo documentarista e seu equipamento é muito menor.

Uma vez postas as diretrizes tecnológicas, ou seja, um filme documentário que será
feito em vídeo, preciso dizer que a questão não é aprofundar este assunto, mas apenas
deixar mais clara a opção pelo cinema (apesar do suporte, pois se trata de um filme) no
presente trabalho, pois como diz Philipe Dubois:

Poderíamos considerar igualmente o que o cinema e o vídeo têm que


ver um no outro, quando o corpo fílmico nasce de uma fusão dos
suportes que pode levar a desaparição completa de todo traço distintivo,
isto é, a uma verdadeira transubstanciação dos suportes em uma nova
imagem. (DUBOIS, 2004, p. 214)
Abaixo será explicado o uso de dois aspectos que dizem respeito à natureza do
documentário neste processo criativo cinematográfico. O primeiro trata das diferentes
abordagens possíveis na relação entre o documentarista e o seu objeto de estudo, e o
segundo de suas intenções, enquanto portador de um discurso.

1.1 USO DOS MODOS

5
Tanto o filme de ficção quanto o documentário, por serem ficcionais, utilizam as ferramentas do outro.
Assim, existem documentários com cenários e atores, como as dramatizações presentes em várias
produções do gênero, e filmes de ficção sem cenários ou atores profissionais, como o neorrealismo italiano,
mas estas são exceções, e como tal não serão levadas em conta no presente trabalho.
81
Quais são as diretrizes estéticas e narrativas, quanto ao registro das imagens e à
interação entre o diretor e as pessoas registradas durante as filmagens? Bill Nichols
(2005) divide o documentário em diferentes modos (poético, expositivo, observativo,
participativo, reflexivo e performático), a partir das diferentes expressões de uma tradição
documental que remonta há um século. No presente caso, trata-se de um filme realizado
através de combinações dos modos observativo, participativo e performático, que vão dar
origem a um documentário poético.

O modo observativo busca uma neutralidade, ou seja, o documentarista procura


interferir o mínimo possível no processo do registro das imagens, não faz perguntas, não
conversa com os atores sociais, busca uma invisibilidade, como se olhasse pelo buraco
da fechadura de uma porta transparente, ou seja, ele pretende ser invisível e neutro. Mas
isto é impossível, pois as pessoas retratadas no documentário sabem que estão fazendo
parte de um filme, e este dado é fundamental, ainda mais quando se trata de atores de
verdade, como nesse trabalho. Este modo é mais presente durante a gravação dos ensaios
do grupo, onde procuro ser o mais discreto e silencioso possível.

O modo participativo, que é quase um oposto, se caracteriza por um encontro entre


o documentarista e as pessoas retratadas, onde, na medida do possível, as decisões do
diretor e a postura dos atores sociais são compartilhadas (a intensidade da participação
das pessoas retratadas varia muito neste tipo de documentário, que vai desde simples
opiniões emitidas, que podem ou não ser acatadas pelo diretor, até a interferência direta
em decisões estéticas importantes, como na decupagem6 por exemplo). O realizador não
procura a neutralidade, muito menos a invisibilidade, ele age indo em direção ao encontro
com o objeto de estudo, sem subterfúgios, surge então uma interação.

De um lado as intenções do cineasta expostas e executadas com clareza, e de outro


o grupo retratado reagindo a estas intenções, mas tendo conhecimento delas,
principalmente da abordagem que será dada à sua imagem. Assim, pode colaborar com
os objetivos do cineasta sem deixar de se expressar livremente. Não existe manipulação,
cada um dá o que tem. Um encontro de iguais, honesto, onde diretor e atores sociais põem
as cartas na mesa. Este modo foi utilizado, predominantemente, na gravação das cenas
referentes ao registro da linha narrativa do contexto acadêmico: gravação das aulas de

6
Planejamento técnico da forma de filmar: o tipo de plano a ser utilizado, o ângulo e o movimento da
câmera, a definição da lente, os atores e o cenário que estarão sendo filmados, etc.

82
mestrado, das reuniões com a orientadora, de seminários e até conversas no bar próximo
ao Departamento de Arte Dramática.

Conforme será explicado na próxima seção, comecei a gravar esse ambiente para
me familiarizar com a linguagem da câmera que utilizei, mas as imagens ficaram
interessantes e ele foi incorporado ao filme. Neste caso, a relação documentarista/atores
sociais foi extremamente participativa por dois motivos: o primeiro foi um misto de
curiosidade e cuidado com a própria imagem por parte dos colegas e professores. Quando
disse que iria gravar o cotidiano do curso de mestrado, fui questionado a respeito dos
meus motivos, de como suas imagens seriam registradas e com que intenções. Conversei
muito com todos a este respeito, procurei ouvir bastante para não retratar ninguém de uma
maneira diferente daquela que eu havia anunciado. E o segundo porque, como o filme
fazia parte do meu trabalho de mestrado, estava constantemente falando sobre ele com
todos os colegas e professores, em conversas informais, mas principalmente, em sala de
aula, em apresentações do projeto em diversas cadeiras. Além de exibir trechos do filme,
ouvia muitas opiniões, especialmente da minha orientadora.

O último modo que vai ser utilizado nas gravações é o performático, onde o diretor
e as suas circunstâncias e angústias aparecem diretamente no documentário, na medida
em que o realizador se coloca em ambientes íntimos, revelando elementos de sua
personalidade e exercita experiências subjetivas com a própria identidade. Será utilizado
na gravação das cenas da vida pessoal do diretor.

E por fim, o uso destes modos diferentes e até opostos, em um mesmo filme, desloca
intenções mais práticas, caracterizando, assim, o modo poético. Não existe um ponto de
chegada definido, apenas um desejo criativo indefinido, no sentido de ser construído mais
por afeto do que por objetivos, apresentando certa descontinuidade espaço/temporal, com
muita subjetividade e até incoerência, onde as dúvidas dão uma moldura poética a estas
diferentes combinações de modos narrativos.

1.2 VOZ

Todo documentário tem uma voz, muitas vezes subjetiva e multifacetada, mas, na
maioria das vezes, objetiva e explicativa. Ela não é exatamente, ou somente, uma narração
em off, ou a voz dos depoimentos ou do diretor. É a costura retórica que se expressa
através dos desejos da direção em todos os elementos presentes no filme: som, montagem,

83
fotografia. Não deixa de ser a mise en scène, mas é algo a mais também, neste caso, é um
discurso artístico sem objetivos definidos. Ela congrega o documentário em si, as pessoas
retratadas, o diretor e o público. Fala de dois elementos: a direção e os atores sociais,
normalmente para um terceiro (muitas vezes o espectador faz parte da comunidade que
está sendo retratada, não constituindo assim um terceiro elemento), o espectador. O
realizador, representando a si mesmo ou a um grupo, causa ou comunidade, fala para um
tipo de espectador, de origem semelhante ou diversa da comunidade representada (no
sentido de re-apresentação, pessoas que aparecem e se expressam como são, mas de
acordo com o que pensa e sente o documentarista).

Bill Nichols então formulou diversas frases que enquadram a voz: “Eu falo deles
para vocês”, “Eu falo de nós para eles”, “Eu falo de nós para nós mesmos”, etc. As
sentenças são múltiplas, mas aquela que escolhi para definir os caminhos no presente
documentário é a seguinte: “Eu falo de nós para vocês”, pois meu registro do grupo é o
processo criativo de um artista que observa o processo de outros7, ou seja, existe uma
inclusão, um pertencimento a algo maior, a arte. Mais do que um distanciamento do tipo
eu, cineasta e pesquisador falo de um grupo de atores, o que seria “Eu falo deles para
vocês”, mais fria e distanciada, esta possibilidade foi descartada. “Vocês”, como último
vocábulo representando o público (em vez de “nós”), porque a intenção não é fazer um
filme de nicho, para iniciados, mas uma obra mais abrangente, que possa interessar
pessoas que não tenham nenhuma relação com a arte.

2. EQUIPAMENTO, PRECARIEDADE, AUTONOMIA E SOLIDÃO

O equipamento de captação de imagens e som é uma câmera Sony de 14.1 pixels.


Nenhum outro acessório auxiliar foi utilizado, como luz, tripé, microfone Boom8.
Também não houve participação de nenhuma outra pessoa na equipe de filmagem, que
na verdade não é uma equipe9. Na medida em que não existiram equipamentos para serem
utilizados por outras pessoas, elas também não foram necessárias. Duas coisas
importantes e definidoras estão postas: a precariedade (ou simplicidade, , em seguida me

7
Entre o pesquisador e o cineasta, prevalece o segundo, e acredito que o cinema seja, acima de tudo, um
trabalho artístico.
8
O microfone Boom é cilíndrico e comprido, de grande sensibilidade. Tem como suporte uma haste que o
leva até a cena que está sendo gravada.
9
Para a etapa de pós-produção do documentário uma equipe passou a participar do projeto, nas áreas de
produção montagem e finalização de imagem e som.
84
deterei nesta questão) do equipamento; e a autonomia e solidão do realizador. Estas
decisões foram tomadas não apenas para facilitar a realização do filme (na medida em
que não existe verba para contratar outros profissionais), mas com o intuito de se
conseguir um resultado mais expressivo e sincero nas gravações, especialmente do eixo
narrativo que trata dos ensaios do grupo para o espetáculo Hybris10. Explico: o ambiente
de preparação dos atores é sempre muito reservado, porque muita coisa é experimentada,
eles expõem suas fragilidades, inseguranças, e dificuldades a todo momento. Uma equipe
técnica, mais tripé para a câmera, microfone com suporte, spot de iluminação, etc., é
quase um circo eletrônico num quarto de casal, o espaço íntimo do elenco seria invadido.
Existem diretores, como Robert Drew, que acreditam na invisibilidade da equipe, ou seja,
que com o tempo, na medida em que a presença do equipamento se torne uma rotina, a
tendência é que ele perca importância, no sentido de atrair a atenção ou inibir os atores.
Penso que este conceito é ingênuo, apesar de grandes filmes terem sido produzidos com
esta premissa11. Talvez esta argumentação sirva para a documentação audiovisual de
outras atividades, mas em se tratando de um ensaio de teatro, a câmera e os outros
equipamentos nunca deixam de ser corpos estranhos, pois a entrega dos atores é muito
grande, e muitas vezes agem de forma impulsiva e inconsciente, e o fato de saberem que
podem ter sua imagem capturada num destes momentos cria uma certa inibição12. Mesmo
trabalhando com uma câmera muito pequena e sem equipe ou outros acessórios, percebi
diversas vezes olhares furtivos para a lente. Existe ainda a possibilidade de que aqueles
que estão sendo retratados atuem para a câmera, tentando fazer uma interpretação de si
mesmos, ainda que seja um processo inconsciente, e em se tratando de atores, como é o
caso, esta possibilidade se multiplica em realimentação, pois como escreveu Bill
Nicholls: “O grau de mudança de comportamento e personalidade nas pessoas, durante a

10
Na busca de trabalhos similares ao meu, ou seja, filmes sobre processos criativos de grupos teatrais, me
deparei com muitas obras calcadas em imagens de espetáculos e depoimentos, como o filme sobre o teatro
Oficina, por exemplo. São raros os exemplos quando se trata do trabalho do ator, desde a sua chegada no
teatro até a volta para casa.
11
Como Primárias (1960), deste mesmo diretor. Ninguém age naturalmente se esta sendo filmado, ainda
que de forma inconsciente, os comportamentos são afetados, as pessoas procuram se preservar, ou o efeito
contrário, se tornam exibicionistas, de qualquer forma é um tipo de atuação. O cinema verdade, escola
documental que prega a neutralidade do realizador (durante as filmagens), é tão ficcional quanto um
Blockbuster.
12
No caso de Moscou, de Eduardo Coutinho, que poderia ser um trabalho similar ao documentário que
pretendo realizar, pois também acompanha o processo criativo de um grupo de teatro, existe uma diferença
fundamental, os atores estão com figurino, maquiados, a luz é preparada para a cena, etc., o filme parte de
uma estrutura ficcional (logo a inibição é menor), enquanto eu parto de uma observação mais realista, sem
adornos.
85
filmagem, pode introduzir um elemento de ficção no processo do documentário.” (2005,
p. 31).

Então, houve uma opção por diminuir a qualidade da captação de imagem e som
para que fosse obtida uma real intimidade com os atores. Assim, ambos foram captados
pela câmera Sony, que tem o formato, o tamanho e as lentes de uma câmera comum de
foto digital, uma imagem de menor definição se projetada em uma tela grande e um
microfone embutido de pouco alcance. Assumo estes “defeitos” de imagem e som como
elementos formadores da construção estética do filme.

O uso constante das palavras cinema e vídeo, muitas vezes na mesma frase, quando
me refiro a este trabalho, não é coincidência. É cada vez mais infrutífera, além de inócua,
esta tentativa de encontrar uma fronteira exata entre os dois suportes de imagem, pois
como diz Philipe Dubois: “A integração do vídeo no filme transforma radicalmente os
dados da linguagem cinematográfica, mas paradoxalmente, a perpetua.” (2004, p. 225).

Em documentários, muitas vezes, o mais interessante é a precariedade das imagens,


que dá um tom de realidade ao que está sendo visto, especialmente, nesta era de celulares
com câmera espalhados pelo mundo. Tudo está sendo gravado em todos os lugares, a toda
hora. E não é apenas como registro jornalístico ou como autobiografia em tempo real que
esta imagem granulada, enrugada, indefinida se mostra expressiva, ela tem um sentido
oculto de intimidade e revelação, é uma conotação que já faz parte do imaginário do
século XXI. Ainda não existam muitos textos sobre o assunto, em função de ser um
fenômeno muito recente, mas a imagem capturada em celular transforma (em tese)
qualquer um em documentarista13, criou-se um hábito massificado de produzir imagens
no momento em que as coisas acontecem, pois sempre vai haver alguém por perto em
qualquer acontecimento cotidiano ou importante. A principal função do jornalista já não
é tanto a busca pela instantaneidade do registro dos acontecimentos, uma vez que sempre
haverá alguém com um celular que vai estar na hora e no local antes da imprensa, mas
sim a análise e reflexão sobre a imensa quantidade de imagens e sons que são produzidos
e exibidos diariamente.

13
Copolla e Godard falaram a respeito deste assunto, o primeiro sugeriu que o futuro do cinema vai
acontecer através de uma menina gordinha do meio oeste americano com sua câmera digital, já o mestre
francês disse que o cinema acabou, e que sua renovação só é possível através do amadorismo. São frases
retóricas, mas ao mesmo tempo significativas, em relação ao atual momento do audiovisual.
86
As imagens amadoras levam grande vantagem porque é justamente a sua natureza
tremida e borrada que dá credibilidade ao que está sendo visto. O fato de se perceber que
quem está usando a câmera não sabe operá-la muito bem é um atestado de verdade que é
dado ao público. O que ficou perceptível nas imagens realizadas durante as rebeliões dos
povos árabes. A câmera com alta definição, e utilizada com destreza pelo operador, não
tem a mesma contundência. É exatamente este o objetivo do presente documentário,
revelar a intimidade do processo criativo do grupo Falos & Stercus, do ambiente
acadêmico do PPGAC (Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas) e de alguns
momentos de minha vida pessoal. Hoje, a imagem precária é a essência do realismo
cinematográfico, e a questão do som é resolvida com legendas. O filme não perde nada
assumindo estas limitações técnicas, bem utilizadas e justificadas elas se constituem num
trunfo, na medida em que possibilitam uma aproximação e intimidade muito grande com
os atores.

O meu corpo como elemento estranho persiste, mas isto foi se resolvendo com o
tempo, apesar de não conhecer ninguém do grupo quando comecei a filmar, a não ser
Alexandre Vargas e Luciana Paz (os dois membros fundadores que deixaram o grupo
após o espetáculo), nunca me senti um invasor, pois ao mesmo tempo em que a trupe me
recebeu muito bem e me deu total liberdade, eu “pisei naquele chão devagarinho”, como
diria João Nogueira.

O avanço tecnológico tornou possível que o cinema possa acontecer como


processo criativo autônomo, por um custo muito baixo é possível fazer um documentário.
Numa radicalidade que supera a equipe mínima cinematográfica utilizada no
neorrealismo italiano, e mais tarde adotada pela Nouvelle Vague. Estes movimentos
cinematográficos anteciparam uma estética de vídeo, no sentido de mobilidade, estrutura
pequena e ambiente íntimo, pois como diz Philipe Dubois: “O vídeo parece ser o lugar e
o meio de uma reflexão do cinema, nos dois sentidos que esta fórmula admite; o vídeo
aparece de certa forma como metacinema.” (2004, p. 164).

O cinema então se transforma em um exercício subjetivo pessoal, como escrever,


ou pintar um quadro. Jean-Luc Godard chegou a fazer roteiros em vídeo de filmes que
mais tarde seriam realizados, somente para os atores e a equipe, como Sauve qui peut (La
vie), Passion e Je vous salue Marie. Acontece uma solidão criativa, sem relação interna
de troca de idéias, uma vez que não há equipe, mas que mantém uma interação com o
ambiente externo, de forma autônoma sem deixar de ser relacional.

87
3. PROCESSO DE GRAVAÇÃO DAS IMAGENS

3.1 NOS ENSAIOS DO ESPETÁCULO HYBRIS

Esta linha narrativa se expressa de duas maneiras distintas que eventualmente, se


inter-relacionam: num primeiro momento vamos tratar dos instantes anteriores e
posteriores à entrada do elenco na sala de trabalho. Quando os atores se vestem para a
prática, conversam sobre coisas triviais e lentamente começam a libertar o corpo do dia
que passou (quase todos os ensaios eram à tarde). E na realização do procedimento
inverso: ao tirarem a roupa de trabalho junto com os últimos vestígios de ficção, vestem-
se de civis novamente e voltam à vida cotidiana. Nestas ocasiões o enquadramento da
câmera é algo distante: ela não está sendo controlada por mim, não está na mão e nem na
minha frente, não estou atento a ela, ajo como se não existisse, aciono a gravação e a
coloco em um ponto qualquer da sala, a uma certa distância, normalmente sobre uma
superfície plana, o chão, ou alguma mesa ou cadeira. Deste modo, é quase como se eu
não estivesse gravando, pois não a estou segurando e nem olhando para o visor. Ela é
pequena e discreta, e não estando perto de mim, é quase como se não houvesse uma
captura de imagens. Ela mostra algo de natureza diversa do que está acontecendo no
ambiente, não se volta para a ação: alguém que conta alguma coisa, ou outra pessoa se
vestindo e aquecendo a voz por exemplo. Narra outra história, quase sempre abstrata, uma
parede, o pedaço de um sofá, o teto da sala,etc. No sentido de que a imagem não está
vinculada ao som. Trata-se de duas narrativas paralelas, ou seja, se o microfone da câmera
estivesse captando, alguma fala ou som interessante, a imagem que estava sendo gravada
mostrava outra coisa, não precisaria sublinhar o áudio, repetir o que ele já estava dizendo.

O segundo momento, ou seja, a outra maneira pela qual esta linha narrativa se
expressa, era utilizada durante os ensaios propriamente ditos. Como a minha abordagem
era mais realista, em função do objetivo de entender melhor o processo criativo do grupo
em todos os seus detalhes, nestas ocasiões som e imagem compunham a mesma narrativa.
Utilizava muito planos abertos para mostrar a energia criada no espaço entre os atores, e
a abrangência de seus movimentos. Quase sempre me colocava no mesmo lugar, num
canto perto de uma janela, para conseguir mais profundidade de campo através do ângulo
diagonal da câmera em relação à sala. Aos poucos fui sendo contaminado pelo espírito
da trupe, inserido no seu belo caos polifônico, e comecei a experimentar novos espaços,

88
ângulos e movimentos de câmera, mas sempre com a imagem e o som compondo o
mesmo discurso.

Então, pode-se dizer que apesar da predominância do modo observativo no registro


dos ensaios do Falos, como já foi explicado no capítulo anterior, nos momentos anteriores
e posteriores ao trabalho na sala, pode-se dizer que o modo participativo também esteve
presente nestas ocasiões. É importante esclarecer que, ao contrário, do uso deste modo
que ocorre no registro do ambiente acadêmico14, onde cada ação do diretor foi explicada
e discutida com os atores sociais, este diálogo participativo acontece de forma diferente
com o grupo teatral. As questões da direção, minhas decisões e objetivos foram
aparecendo gradativamente. As conversas com os atores sobre este assunto não tinham
qualquer formalidade, ou um momento específico para acontecer. A troca de ideias sobre
a minha relação com o elenco e o diretor da trupe, e sobre o registro que estava fazendo
das relações criativas entre eles foi surgindo de forma natural, paulatina. Havia um
ambiente de muita confiança em relação ao meu trabalho, e nunca foi uma questão
relevante para os atores sociais, a minha postura ética/estética ao registrar o trabalho
criativo do grupo e o seu entorno (as questões cotidianas já citadas, conversas, trocas de
roupa, etc.). Dúvidas a este respeito surgiram pontualmente, e tudo foi equacionado de
uma maneira muito simples, a interação entre mim e eles aconteceu sem que fosse
necessária qualquer explicação.

3.2 NO CONTEXTO ACADÊMICO

O grupo ganhou o Edital Miriam Muniz no fim de 2009, entrei no mestrado no


início deste mesmo ano, e defini que iria estudar e gravar o processo criativo dos atores a
partir da direção e vice-versa. Nesta época os ensaios ainda não haviam começado e eu
não tinha o que gravar, mas queria testar o armazenamento das gravações, a imagem da
câmera, a captação de som do microfone embutido e o programa de edição. Comecei a
filmar as aulas de mestrado, os intervalos no Caras e bocas (boteco em frente ao DAD),
conversas com os colegas, os encontros de orientação com Inês Marocco (orientadora) e
Priscila Genara (colega de orientação), um seminário de teatro em Montevideo, etc., para
testar o equipamento e os programas. Nunca tinha feito montagem em computador e não
conhecia a câmera que ia utilizar. Nestes testes do equipamento é que surgiu a ideia de

14
Ver a seção 1.1 Uso dos modos.
89
utilizar ângulos inusitados, sem mostrar exatamente o que estava acontecendo15, e
comecei a experimentá-los na gravação deste contexto acadêmico. Depois de assistir às
imagens percebi que desta maneira o registro imagético parecia um pouco descolado do
som, construindo um discurso duplo. Resolvi então continuar gravando este ambiente,
porque afinal de contas era ali que eu ia formulando, junto com a minha orientadora, os
caminhos da dissertação. Para tal decidi utilizar esta linha narrativa que acabei de
descrever, a fim de dar uma unidade às imagens. Comecei a ter um pouco mais de método,
nas gravações, no sentido de incorporar o enquadramento estranho e eventualmente
experimentar movimentos de câmera inusitados. Assim, a abordagem das imagens do
contexto acadêmico é parecida com a que mais tarde será empregada nos momentos
iniciais e finais dos ensaios do grupo16.

3.3 NA VIDA PESSOAL DO DIRETOR

Este eixo narrativo, assim como o do contexto acadêmico, não estava previsto
quando surgiu a ideia de incorporar o documentário ao projeto de pesquisa. Comecei a
gravar coisas pessoais, porque estava continuamente com a câmera, e sempre tive este
costume, de capturar imagens de algumas coisas ao meu redor. São momentos íntimos,
mas não chegam a ser confessionais. Eventos e circunstâncias que tenham algum
significado ou apenas imagens interessantes que cruzam o meu caminho. Não é um
material exatamente cotidiano, ou ilustrativo, não mostro minha rotina, ou as pessoas que
convivem comigo. Sempre estou sozinho, no máximo com o meu cachorro. Existe um
ambiente de silêncio e repetição de lugares e imagens. Gravo, por exemplo, a vista da
janela do meu quarto ou uma rua próxima da minha, em vários dias e horários diferentes,
assim como o meu cão dormindo em sua cama, ou passeando nestes mesmos lugares.
Coisas banais e insignificantes, que vão adquirir (ou não) certa relevância estética na
montagem, junto aos outros dois eixos narrativos. Os planos, de um modo geral, assim
como os dos ensaios do Falos, são realistas no sentido de imagem e som contarem a
mesma história. A diferença maior talvez seja a movimentação. Para gravar os ensaios, a
não ser em ocasiões específicas, eu me movia pouco, até porque a circulação dos atores

15
Ver a seção 1.2. Voz.
16
Juntando, desta maneira, os modos observativo e participativo na mesma gravação. O primeiro era
exercido através da quase independência de uma câmera camuflada (no chão, nos cantos), discreta. O
segundo porque, nestes momentos, eu não me mantinha distante, silencioso, mas participava das conversas.
90
era intensa, mas nas imagens da vida pessoal não havia tanto movimento para ser gravado,
então eu me deslocava mais, quase sempre com a câmera na mão.

Outra questão importante desta seção são as caminhadas. Gravo meus passos com
a lente voltada para a direita ou à esquerda sempre num ângulo perpendicular à minha
marcha. Ou então eu coloco a câmera junto ao meu peito com a lente voltada para cima
e filmo meu rosto de baixo e o céu passando em segundo plano. Filmo muitas vezes
quando estou chegando em algum lugar, qualquer local serve. Depois percebi que estes
passeios gravados formam quase um quarto eixo narrativo independente, e talvez o
principal deles. Entre uma cena e outra, o elemento de ligação é a minha caminhada,
mesmo que seja uma metáfora meio rasteira: a minha jornada até a defesa da dissertação,
blá, blá, blá. Mas o fato é que nas primeiras experiências de montagem meus passos como
ligação entre as cenas funcionaram como narrativa e ritmo.

4. AGORA

Estou em meio ao processo de montagem do documentário17, e nesta etapa foi


incorporada uma equipe de finalização, mas a grande diferença é a presença de um
montador (os outros membros da equipe de finalização cuidam de questões que não
envolvem diretamente aspectos estéticos ou narrativos), que não teve nenhum contato
anterior com as imagens e nem com a minha dissertação de mestrado. Esta nova presença
de uma equipe, especialmente do editor do filme, trouxe um vento novo ao documentário,
comecei a compartilhar minhas ideias de narrativa e também a ouvir as impressões da
equipe sobre os rumos da obra.

Começou a haver um olhar crítico acerca das premissas estéticas citadas acima, não
no sentido de modificá-las, mas de torná-las eficazes, no sentido de servirem ao propósito
de construir um filme que dialogue com o público sem perder seu caráter experimental.
E este diálogo é muito rico, pois não existe um roteiro, apenas a progressão narrativa dos
ensaios (e tudo o que os envolveu, incluindo questões pessoais do elenco e da direção),
costurada com a minha vida pessoal e o contexto acadêmico que realimentou a minha
tese de mestrado e, consequentemente, o documentário que está sendo realizado. Está

17
Processo que já não faz parte do mestrado. Vou terminar o filme como cineasta, não mais como
pesquisador.
91
pronta uma primeira versão de 70 minutos, esboço que tenho assistido indefinidamente,
a fim de encontrar as imagens que faltam para completar esta trajetória errante.

Saravá!

REFERÊNCIAS

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93
NO FUNDO NEM TUDO É MEMÓRIA: MEMÓRIA, ESCRITURA E
INVENÇÃO1

DEEP INSIDE IS NOT ALL MEMORY: MEMORY, WRITING AND


INVENTION

Angelita Maria Bogado2

Resumo: O Eu contemporâneo tem encontrado diversas formas de habitar a escrita


cinematográfica com a intenção de redesenhar o passado. Como o jogo de narrar –
memória, escritura e invenção – indica a presença da estética benjaminiana da Erfahrung?
No longa No fundo nem tudo é memória (Carlos Segundo, 2012) conhecemos a história
de Nova Ponte, uma cidade que foi submersa com a construção de uma barragem. Antigos
moradores tentam reconstruir a cidade memória. A vida de um passado submerso aos
poucos vai sendo refeita na linguagem. Para a análise fílmica desta obra, empregaremos
os estudos de David Bordwell sobre a mise en scène.
Palavras-chave: documentario, memória, mise en scène, narrativas de si.

Abstract: The contemporary Self has found various manners of inhabiting the
cinematographic writing in order to re-encounter and re-design the past. As the game
narrate – memory, writing and invention – indicates the presence of Benjamin's aesthetics
of Erfahrung? In film No fundo nem tudo é memória (Carlos Segundo, 2012) is know the
story of New Bridge, a town that was submerged with the construction of a dam. Former
residents try to rebuild the city's memory. The life of a submerged past is being remade
bit by bit in the language. For film analysis of this work, we will use the studies of David
Bordwell on the mise en scène.
Keywords: documentary, memory, mise en scène, narratives of the self.

INTRODUÇÃO

Tião Fagundes. Seu último peixe antes da inundação pesou 72Kg.


Verdade ou mentira pouco importava, aqui nesta história ele
continuaria a ser o maior pescador da cidade velha.
(Carlos Segundo em No fundo nem tudo é memória)

1
Mesa-redonda No compasso do homem comum.
2
Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
professora assistente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB).
94
Para o estudo das narrativas de si no documentário contemporâneo selecionamos
para este artigo o filme No fundo nem tudo é memória (Uberlândia, 2012), primeiro longa
metragem do diretor mineiro Carlos Segundo. O documentário conta a história de Nova
Ponte, uma cidade de Minas Gerais que foi submersa em 1993 com a construção de uma
barragem. Antigos moradores, através de suas recordações, tentam reconstruir a cidade
memória. Ruas, casas, amizades e costumes de um passado submerso aos poucos vão
sendo refeitos na linguagem. Um morador nos diz “o tempo tem pacto com a água”, e
assim, a cada depoimento vamos mergulhando na história de Nova Ponte através das
memórias, das invenções e da poesia dos diversos personagens de No fundo nem tudo é
memória.

A memória enquanto matéria de poesia, nesta obra, se revela no movimento de tecer


e desmanchar o texto da lembrança, uma história acende a outra, e mais outra, até a cidade
deixar de existir apenas como um lugar de memória e retornar enquanto memória
construída na experiência fílmica. É precisamente, por intermédio das coisas ditas na
ausência que a narrativa de si se inscreve na obra documental. O retorno ao passado é
sempre um momento inexato e precário. O obstáculo, imposto pelos desvios do tempo e
da memória, não se apresenta como um mero adorno, mas sim como um momento
extremamente produtivo para a linguagem artística. É nesse movimento de construção e
destruição, rememoração e esquecimento que a narrativa de si ergue suas ruínas.

A ESTRUTURA NARRATIVA: MEMÓRIA, DISCURSO E INVENÇÃO

Muito mais do que construir a cidade velha havia uma necessidade de


reinventá-la era isso que me aproximava cada vez mais de lá.
(Carlos Segundo em No fundo nem tudo é memória)

No fundo nem tudo é memória é um documentário baseado no depoimento de


diversos personagens, são quinze pessoas, que a princípio nos são apresentadas como
moradores remanescentes da cidade submersa. O filme se estrutura em blocos temáticos3,
as sequências de depoimentos são alinhavadas pela voz over do diretor. Uma voz que
opina e reflete o tempo inteiro sobre a forma narrativa da memória.

3
Adotamos o termo bloco temático para demonstrarmos que a narrativa vai se metamorfoseando, no entanto
não há nenhuma marca expressiva adotada pelo diretor como um título para marcar as passagens entre
os temas.
95
Nas primeiras sequências, os depoimentos apresentam algumas descrições de Nova
Ponte: dimensão, localização, geografia, a igreja, a praça, o mapa da cidade. A partir do
terceiro bloco narrativo é iniciado um movimento de internalização das histórias.
Entramos nas casas de seus moradores, nas memórias sobre os seus animais domésticos,
os móveis, o padre da paróquia, os estudos na escola sob a luz de velas. Imagens de
palavras. Não há uma fotografia4, recortes de jornais, nem um filme caseiro para nos
apresentar Nova Ponte. Apenas narrativas orais são responsáveis pela reconstrução da
cidade.

A estrutura da narrativa nos insere em um movimento de fora para dentro. Somos


conduzidos dos espaços externos para os espaços internos das personagens. Da sua
arquitetura – da velha Nova Ponte naufragada em nome do progresso –, submergimos
para as histórias pessoais.

O título sugere um significado de “memória”, distinto do que adotaremos nesta


análise, no entanto, precisamos primeiro compreender o emprego deste termo pelo
diretor. Ao afirmar que no fundo nem tudo é memória, o termo assume um sentido de
verdade. Esta interpretação historiográfica do conceito de memória aponta para a
existência de uma Nova Ponte eterna, mas que no fundo não é, e não pode ser, por se
tratar de uma totalidade reducionista. Nova Ponte é muito mais do que a memória de
construções submersas. Entendemos a memória como um jogo de possibilidades
narrativas que amplificam e libertam as histórias que foram engolidas pela água.
Percebendo a insuficiência do verbo pretérito (a cidade foi...; a cidade era...) o diretor
incorpora ao texto da “memória fixa” outras possibilidades narrativas. O filme apresenta
Nova Ponte sendo reconstruída de três formas: pela história-memória – uma imagem
fixa submersa no passado; por um discurso-memória – a memória da cidade que emerge
das histórias subjetivas; e pela invenção-memória – a cidade criada através de
personagens ficcionais. O diretor emprega essas três possibilidades narrativas da memória
para estruturar o documentário sobre Nova Ponte.

ANÁLISE DA MISE EN SCÈNE: DELICADEZAS QUE NOS ESCAPAM

Quando eu era criança, eu tinha um sonho, eu queria uma cidade só


para mim, eu queria poder escolher o melhor lugar para colocar o

4
Carlos Segundo mostra uma foto que diz ser da sua bisavó, no entanto não há registros, nem documentos
sobre a cidade de Nova Ponte.
96
campinho de terra, a sorveteria, a escola [...] mas a vida me mostrou
que a realidade é muito menos ficcional do que a gente imagina e por
um tempo eu me vi obrigado a abandonar meu sonho.
(Carlos Segundo em No fundo nem tudo é memória)

A proposta desta análise tem como principal objetivo compreender como esse relato
memorialístico se inscreve na linguagem fílmica, ou seja, como esta experiência estética,
entre os diversos narradores e o registro fílmico, realiza as ações ao invés de
simplesmente relatá-las.

Tristeza, melancolia, nostalgia pela cidade perdida não emergem unicamente da


palavra. O lamento acende principalmente por meio da mise en scène5 construída no
interior dos planos. A composição do cenário, a paleta cromática, como os personagens
interpretam suas histórias, a banda sonora são procedimentos semânticos que precisam
ser observados como formas de expressão e reconstrução da memória. Apostamos que
para o estudo da escrita cinematográfica sobre a memória precisamos nos deter nas
delicadezas da cena, como bem assinala Bordwell a encenação compreende as sutilezas
que escapam à nossa observação (2008, p. 30). Para esta análise vamos nos centrar na
sequência de abertura, na composição das cenas dos depoimentos e na sequência em que
o diretor revela a ficcionalidade de alguns personagens.

Os personagens, enquanto narram suas histórias, são filmados, na sua grande


maioria, sob um regime de enquadramento derivado da regra clássica dos três terços6. Ao
mesmo tempo em que há esta opção por um enquadramento austero, os personagens
aparecem, por vezes, centralizados e, em outras, descentralizados, seja mais à esquerda
ou mais à direita do plano. Essa mobilidade da presença do corpo na cena, somada à
fixidez do plano, se apresentam como aspectos formalizantes de expressão da memória.
A história fixa de Nova Ponte é atravessada pela fluidez das experiências subjetivas das
personagens.

A encenação da memória está fortemente presente na escolha da profundidade de


campo de No fundo nem tudo é memória. A profundidade de campo determina a
quantidade de objetos que estão em foco na cena, trata-se da zona de nitidez da imagem.

5
David Bordwell (2008) define os elementos técnicos que compõem a mise en scène: cenário, iluminação,
figurino, maquiagem e atuação dos atores dentro do quadro. Para esta análise vamos nos centrar em
alguns destes elementos – os que forem mais significativos do nosso ponto de vista para a encenação
cinematográfica.
6
Sobre análise no nível do Plano, cf. JULLIER; MARIE, 2009.
97
Carlos Segundo, apropriadamente, opta por uma profundidade de campo pequena, apenas
as pessoas em cena estão em foco, e mesmo assim, o bruxulear da chama borra, por vezes,
o quadro todo. No entanto, mesmo a visão periférica estando desfocada, podemos
distinguir muitos objetos presentes no quadro: panelas, livros, imagens de santo, o
suficiente para nos situar no espaço doméstico de cada personagem. Embora Bordwell
considere que “a imagem da mise en scène por excelência é um plano-sequência com
grande profundidade de campo” (2008, p.36), defendemos a pertinência de uma pequena
zona de nitidez para o registro de narrativas memorialísticas. O efeito cênico das imagens
borradas representam o fenômeno da memória e sua forma inexata de experenciar o
tempo e a história. Bordwell, ele mesmo chega a reconhecer que em alguns casos existe
um “potencial estético” na profundidade mínima7.

A pouca incidência de luz, além de ser responsável pela diminuição do campo


visual, revela metáforas discursivas da narrativa sobre Nova Ponte. Na primeira cena do
filme estamos diante da escuridão. A cena do breu total é embalada pela banda sonora,
uma capela e ruídos de insetos noturnos compõe o espaço. A melodia de um baixo
acústico extradiegética, que atravessa toda a narrativa, está voltada para despertar uma
nostalgia e uma melancolia no espectador. Em seguida, uma lâmpada elétrica com uma
pequena variação de intensidade de luz permanece em um plano estendido, um inseto se
exibe em torno do foco de luz. Quando a voz over relata ter abandonado o seu sonho de
construir uma cidade ideal, a luz se apaga e o título do filme aparece. Um fósforo é riscado
para acender o candeeiro, o primeiro personagem entra em cena. O gesto do fósforo sendo
aceso pelos diversos personagens se repete por toda a narrativa. Uma estória acende
outra, e mais outra, e mais outra, até estarmos totalmente libertos da memória enrijecida
do passado.

A cidade velha foi vítima do progresso. As cenas bucólicas do passado, iluminadas


pelos candeeiros e velas, deram lugar aos primeiros lampejos da eletricidade que
iluminaria a nova cidade. Para que o olhar do homem moderno fosse iluminado, a
barragem teve que silenciar o olhar de muitas histórias.

São essas histórias narradas em meio às sombras, tingidas por uma paleta de cores
quentes, entre alaranjados e rubros, que o diretor busca reacender a imagem da cidade
submersa. Lâmpadas, candeeiros e fósforos são recursos cênicos, adotados por Segundo,

7
Cf. BORDWELL, 2008, p. 39.
98
para negociar com as formas narrativas da “história”, do “discurso” e da “invenção”,
respectivamente.

Além do candeeiro, o personagem Lobo Guimarães tem como objeto cênico um


copo de cachaça, que parece figurar na cena não apenas como um objeto indiciário de
Minas Gerais, mas enquanto um dispositivo eficiente para acessar imagens esquecidas.
Outros personagens figuram ao lado de taças de licor e outras bebidas, no entanto, apenas
Lobo Guimarães encena sua fala bebendo, além de ter seu copo de aguardente servido
pelo diretor. Ao final da narrativa, descobrimos que se trata de um personagem ficcional,
e que, portanto, o álcool faz parte da mise en scène da inventividade. Em seguida,
falaremos mais sobre a memória ficcionalizada.

A sequência final do documentário, além de revelar a ficcionalidade de alguns


personagens, confirma nossa hipótese do jogo narrativo entre as formas memorialísticas:
história, subjetivação e invenção. Na tela vemos apenas o candeeiro, no seu entorno o
plano está em um breu total. O objeto, que ilumina apenas a si mesmo, parece flutuar no
quadro reafirmando a apresentação de histórias difusas e instáveis guardadas na memória.
Nosso olhar vagueia pela tela seguindo a luz emitida pelo objeto. Signo a ser decifrado.
Um personagem diz que se houver pessoas para rememorar os fatos ocorridos na cidade
da infância, “juntos eles vão dar uma localização que o Google não acha”, em seguida
declara “a cidade onde eu nasci cabe a mim contar”. Este personagem é representante do
discurso-memória, em que imagens da cidade-infância são criadas a partir da
subjetivação das experiências. Em seguida, Guimarães Lobo – o personagem, que
anteriormente nos foi apresentado como antigo matador da cidade velha e atualmente
funcionário público – interpreta um poema, aparentemente de sua autoria. O poema fala
sobre uma cidade interiorana que tem suas árvores cortadas, impedindo o pouso de
andorinhas vindas do Canadá, uma critica clara sobre o progresso que desloca vidas e
soterra histórias. A cidade dos poetas tem o poder de devolver algo que o tempo, a água
e o progresso apagaram.

Um personagem pergunta ao diretor “a inundação foi proposital, não foi?” A


invenção-memória nos é revelada. Na sequência o diretor pergunta ao Guimarães Lobo
“você sabe o que está fazendo aqui?”, e ele responde, “você me chamou para inventar
uma cidade, e eu aceitei para jogar fora o resto da outra que tá aqui dentro” – a invenção
não aparece dissociada da cidade-originária, mesmo esta não sendo Nova Ponte. O fio

99
que tece a encenação parte de uma cidade existente e experenciada, por isso podemos
chamá-la de invenção-memória.

A quebra da ilusão vem seguida da cena de uma senhora benzedeira. Diante do seu
altar, a rezadeira faz uma oração para os membros da equipe de filmagem. Aqui, temos
a inscrição de uma história-memória, a reza enquanto forma fixa traz a marca do passado
imutável.

Toda a mise en scène desta sequência final aponta para as diferentes formas
narrativas da memória – da dança do candeeiro aos depoimentos, avistamos uma Nova
Ponte “vivida”, “experenciada” e “encenada” na linguagem fílmica.

O JOGO DE NARRAR BENJAMINIANO: ERFAHRUNG, ERLEBNIS

O destino de toda a cidade é ser inundada quando não pela água, pelo
esquecimento essa capacidade que o tempo tem.
Acho que o tempo tem pacto com água.
(Personagem em No fundo nem tudo é memória)

O documentário mais recente tem privilegiado as histórias de si. O Eu


contemporâneo tem encontrado diversas formas de habitar a escrita cinematográfica com
a intenção de reencontrar e redesenhar o passado. Para compreender esta relação entre
passado e presente, ausência e permanência a partir das memórias de si na obra
documental contemporânea, trouxemos as teorias de Walter Benjamin sobre narração
para a cena. O jogo de narrar – memória, escritura e invenção – indica a presença da
estética benjaminiana da Erfahrung (uma experiência em fluxo com o passado) em
oposição a Erlebnis (uma experiência vivida).

No documentário de Carlos Segundo observamos esses dois modos de narrar. No


item sobre as estruturas narrativas8 demonstramos, primeiramente, como os narradores
partem das memórias fixas, de suas experiências vividas e imutáveis no passado
(Erlebnis), para em seguida mergulharem nas histórias particulares de forma subjetiva
com o passado (Erfahrung).

A Erfahrung ao ser entendida por Benjamin como uma experiência em fluxo com
o passado, amplia a dimensão espaço-temporal da narrativa, libertando a memória
historiográfica de sua rigidez cronológica e pretérita. No documentário, No fundo nem

8
Cf. nesse artigo a seção A estrutura narrativa: memória, discurso e invenção.
100
tudo é memória, a memória solicita a invenção, e assim, seus narradores se relacionam
com as fraturas promovidas pelo passado esquecido ou perdido possibilitando o
surgimento de novas imagens da cidade-infância.

Os personagens do documentário sobre Nova Ponte religam passado e presente,


transformando os dois. A narrativa de si, quando acessa as lacunas da memória, libera a
forma enrijecida do passado e liberta a cena presente de sua monotonia. Esse movimento
de rememoração que encontramos nas narrativas em si desta história, encontra
ressonância no conceito de Ursprung (Origem), de Benjamin, em que lembrar não é um
simples movimento de retorno ao passado, mas antes, uma novidade que nasce de uma
imagem no presente sobre o passado. O tempo não é mais datado, nem aprisionado. Uma
personagem diz “deixar de existir não é fácil”. A cidade submersa quando existia talvez
não tivesse tanta importância, mas agora, nessa relação com o presente é que ela se tornou
a cidade-originária. Um tempo está contido no outro, o processo de construção da
narrativa presente está contida no passado e vice-versa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBRE O PAPEL DA ARTE NOS ESPAÇOS DA


MEMÓRIA

A cidade velha se perdia no tempo pela força da água e do fogo. Meu


bisavô só através do cinema veio fazer parte da minha vida.
(Carlos Segundo em No fundo nem tudo é memória)

Nas sequências finais do documentário a maioria dos personagens, para refletir


sobre suas experiências de cidade-infância, faz menção a diferentes obras de artistas e
poetas. Arnaldo Antunes, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Moraes
Moreira e Chico Buarque têm fragmentos de seus poemas e canções citados. As cidades
dos poetas, como a Itabira de Drummond de Andrade, tem o poder de nos retirar desta
organização social urbana e frear a velocidade das grandes cidades. A cidade originária
de si sempre retorna: a antiga, a lembrada, a inventada, a dos poetas.

O professor Luis Krausz declara que Walter Benjamin em seu texto Infância
berlinense: 1900 perambula por este território lúdico da cidade originária,

[...] para o Benjamin desta Infância berlinense: 1900, o passado adquire


feições de um território mítico, de uma realidade governada por forças

101
primordiais que ainda não se busca compreender, nem desvendar,
apenas vivenciar e relembrar. (KRAUSZ, 2013, p. 54)
Carlos Segundo mergulha neste jogo memorialístico dando vazão à sua própria
história. Partindo de fragmentos concretos de relatos de uma cidade submersa, o narrador-
diretor navega por lugares e pessoas apoderando-se de suas imagens. O “pacto do tempo”
com a água e o fogo, do qual se recente o narrador-diretor quando diz, “A cidade velha
se perdia no tempo pela força da água e do fogo”, trata-se do pacto da irreversibilidade.
Diante da impossibilidade de retorno ao passado tal qual ele foi, a linguagem da cidade
dos poetas oferece um modo de irromper estes recantos de um tempo perdido. Carlos
Segundo relata que seu bisavô Oliveira José dos Santos viveu em Nova Ponte, mas não
há nenhum rastro da passagem dele pela velha cidade. Em uma conversa do diretor com
Dona Nenê, proprietária mais antiga do cartório da cidade, ele declara que um incêndio
em 1918 teria destruído o cartório da cidade, e com isso, a memória do seu bisavô teria
se perdido pela força do fogo e da água. No entanto, o diretor percebe que a memória do
seu Oliveira, mesmo sem uma lápide e nem um registro civil, poderia ressurgir: “Meu
bisavô (declara o narrador-diretor), só através do cinema, veio fazer parte da minha vida”,
Carlos Segundo rompe com a irreversibilidade da não existência de seu bisavô e na
linguagem cria um rastro dele.

No filme documental há uma tensão entre a memória e a sua escritura (movimento


duplo de instabilidade e permanência). Ao registrar uma história, evoca-se um movimento
de permanência. O dado armazenado é o rastro da existência de algo ou alguém. Nesse
sentido estamos diante do movimento da Erlebnis. No entanto, as lacunas da memória, o
apagamento dos rastros, o fluxo do tempo nos impede de representar esta memória na sua
plenitude e totalidade. A linguagem artística se mostra como uma possibilidade de
apresentar essas histórias fraturadas pelo tempo e pela memória. O jogo memorialístico,
os duelos entre presença/ausência, lembrar/esquecer assume a forma da linguagem. A
forma artística se instaura neste entrelugar devolvendo o movimento de instabilidade da
memória.

No ensaio de Benjamin On Language as Such and the Language of Man9, o autor


trabalha com a hipótese de que “todas as linguagens se comunicam a si mesmas”
(tradução nossa)10. Para nossa sorte o texto de Benjamin dá como exemplo o candeeiro

9
BENJAMIN, 1989.
10
All language communicates itself.
102
(The lamp), um objeto muito caro à narrativa que estamos analisando. O candeeiro ganha
uma singularidade e uma essência comunicável apenas na própria linguagem. O
candeeiro que analisamos11 não expressa o candeeiro-objeto, mas apresenta o candeeiro-
linguagem, ele (o candeeiro) não pode ser apreciado de fora da linguagem. O autor alemão
formula o pensamento da seguinte forma:

What does language communicate? It communicates the mental being


corresponding to it. It is fundamental that this mental being
communicates itself in language and not through language.
(BENJAMIN, 1989, p. 315, grifos nossos)12
Seguindo essas ideias, uma essência só pode ser comunicada “na linguagem” e “não
através da linguagem”. Portanto, não devemos, a partir desta perspectiva, observar os
elementos, a priori, anteriormente à linguagem que os comunicam. O candeeiro, Nova
Ponte e o seu Oliveira são construções de uma memória na linguagem cinematográfica
de No fundo nem tudo é memória.

Carlos Segundo, consciente do poder da linguagem, cria a cidade dos seus sonhos
conectando-a aos rastros do seu bisavô, uma cidade que o Google realmente não vai
localizar.

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11
Cf. o exemplo citado na seção Análise da mise en scène: delicadezas que nos escapam.
12
O que a linguagem comunica? A linguagem comunica a essência que lhe corresponde. É fundamental
que esta essência se comunique na linguagem e não através da linguagem. (tradução nossa)

103
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104
O PERIGO DA AUTOFICÇÃO: VINGANÇA, LUTO E TRAUMA EM
DIVÓRCIO, DE RICARDO LÍSIAS1

THE DANGER OF AUTOFICTION: REVENGE, GRIEF AND TRAUMA


IN DIVORCE, BY RICARDO LÍSIAS

Anna Faedrich Martins2

Resumo: Este trabalho pretende analisar o perigo do exercício autoficcional como


exposição de si e do outro na literatura brasileira. Através da leitura do romance Divórcio,
de Ricardo Lísias, pretendemos discutir sobre os limites dessa superexposição na
autoficção, os prejuízos éticos, morais e jurídicos, assim como a escrita de si como uma
prática da cura.
Palavras-chave: autoficção, vingança, luto, trauma, Divórcio, literatura brasileira.

Abstract: This study intends to analyse the danger of autofiction exercise as self exposure
and also the other exposure in the Brazilian literature. By reading the novel Divorce, by
Ricardo Lísias, we intend to discuss the limits of overexposure in autofiction, ethical,
moral and legal losses, as well as self-writing as a practice of cure.
Keywords: autofiction, revenge, grief, trauma, Divorce, Brazilian literature.

Depois do diário, ela me enviou um documento


registrado em cartório com, no final das contas, uma
ameaça: se você continuar escrevendo sobre o nosso
divórcio, vou te processar. Tenho provas cabais de que
você está violando a lei brasileira. (Ricardo Lísias)

Divórcio apresenta identidade onomástica perfeita entre autor, narrador e


personagem principal: Ricardo Lísias3. Nome e sobrenome idênticos, na vida e no papel.

1
Mesa-redonda Potências da autoficção.
2
Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
3
A mesma identidade onomástica já aparecia em O céu dos suicidas, romance de Ricardo Lísias anterior a
Divórcio, publicado em 2012, também pela editora Alfaguara. O estilo de escrita fluido, dividido em
pequenas partes, a identidade onomástica, o trabalho de um trauma, o tom pesado, a partilha da dor, da
culpa, da raiva, aproximam os dois romances autoficcionais de Lísias. No primeiro, O céu dos suicidas, a
experiência pessoal da perda do amigo André, que se enforcou, leva o escritor à trajetória agônica de luto
e desabafo. Ricardo Lísias não se conforma com o suicídio do amigo e compartilha, através da escrita, o
seu sofrimento, o seu sentimento de culpa e a sua resistência às verdades estabelecidas (religiões e
psiquiatria, principalmente), realizando, assim, uma espécie de luto da morte do amigo.
105
O romance trata de um trauma recente na vida do autor: a descoberta inesperada do diário
da sua mulher.

Lembrei-me de uma conta que precisava pagar naquele dia. Abri a


gaveta da minha ex-mulher e vi o boleto no meio de um caderno. Li
uma frase e minhas pernas perderam a força. Sentei no lado dela da
cama e por um instante lutei contra mim mesmo para tomar a decisão
mais difícil da minha vida. Resolvi por fim ler o diário da primeira à
última linha de uma só vez. (LÍSIAS, 2013, p. 25).
Romance recentemente publicado no Brasil (Alfaguara, 2013), o Divórcio vem
chamando a atenção. Nele, o narrador Ricardo Lísias fala sobre o fim traumático de seu
casamento de quatro meses com uma jornalista de cultura, famosa em São Paulo. O
divórcio deu-se pelo encontro acidental do diário que a ex-mulher escrevia enquanto o
marido dormia. Nesse diário, a [X] – maneira como o narrador se refere à ex-mulher,
preservando a identidade dela na narrativa4 – escreve sobre suas aventuras sexuais fora
do casamento:

A mulher que eu sou só poderia desabrochar em um lugar como o


Festival de Cannes. A noite que passei com o [X] no Festival de Cannes
me mostrou quem eu sou de verdade. Ser casada com um escritor é
bom, ter conhecido homens mais velhos me fez crescer e ser madura,
mas eu precisava de um lugar como Cannes para desabrochar. Só que
um cara fechado como o Ricardo nunca vai entender isso (LÍSIAS,
2013, p. 101-102).5
O conteúdo encontrado no diário é decepcionante para Lísias-narrador. A escrita
diarística nos permite o acesso à vida íntima, à escrita cotidiana que não é feita para ser
lida pelos outros. No diário, a ex-mulher confessa não só as traições e o fato de não estar
apaixonada em plena lua-de-mel, mas também as impressões negativas a respeito do
próprio marido (um menino bobo, um homem que não viveu, um cara fechado, um
retardado, muito esquisito). Todas essas revelações levam Lísias à “perda da pele”,
metáfora da dor, do sofrimento, da decepção e da agressão moral sofrida pelo teor do
conteúdo encontrado no diário:

Sem saber, fui apresentado ainda para quatro ex-amantes dela e


descobri há um mês que vivi a constrangedora situação de ter tomado
café em Paris com um fotógrafo francês com quem ela tinha transado
anos antes. [...] Não sei se algum dia vou entender o que faz uma mulher
de trinta e sete anos escrever um diário como esse e, ainda mais, deixá-
lo para o marido com quem acabara de se casar. Divórcio é um romance
sobre o trauma (LÍSIAS, 2013, p.130, grifo nosso).

4
A intenção é mostrar que a identidade não é preservada fora da narrativa e que isso traz prejuízos de
diversas ordens.
5
Mantivemos o texto em itálico porque assim aparece no romance para diferenciar o diário da ex-mulher.

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Lísias recorre à literatura (“Recorri à literatura porque não tenho mais nada”6, “Só
vou recobrar minha pele e me sentir de novo emocionalmente estável se escrever sobre o
que aconteceu”7) e à corrida exaustiva (“Depois, comecei a correr”8) para “recuperar a
pele”, ou seja, realizar o luto da morte da relação matrimonial, aliviando e reinventado a
sua raiva e decepção, elaborando uma espécie de romance-vingança (“Divórcio pode ser
visto como uma manifestação de ressentimento”9).

Mandei uma mensagem pelo celular quando ela estava saindo para o
almoço de despedida com os colegas do jornal. Fiz uma cópia do seu
diário e não quero mais te ver. Aceito o divórcio amigável, mas exijo
que você devolva o dinheiro que gastei no casamento. Ela respondeu na
hora: Ricardo, você descobriu minha sombra (LÍSIAS, 2013, p. 88).
O conteúdo do romance é impactante. É forte e cruel. O narrador não nos poupa
dos detalhes sórdidos nem do seu ressentimento. O ritmo das situações reveladas é
acelerado; o narrador é nervoso e agressivo; a crítica aos jornalistas é ácida; a estrutura
desordenada e não-linear da narrativa é reflexo do caos interno do protagonista agoniado.

Dizem que, depois de serem traídas, muitas pessoas ficam obcecadas


por cada um dos detalhes do que teria acontecido. Como tudo começou?
Você chupou? Fez alguma coisa que não faz comigo? Além do
preservativo, e de uma leve curiosidade por saber se a janela do hotel
estava aberta, não tive o menor interesse em saber se minha ex-mulher
foi por cima ou ficou de quatro em Cannes (LÍSIAS, 2013a, p. 116).
Em Divórcio, Ricardo Lísias afirma que não há uma palavra de ficção: “[...] o diário
que reproduzo aqui é sem nenhuma diferença o mesmo que xeroquei antes de sair de casa.
Aliás, não há uma palavra de ficção nesse romance” (LÍSIAS, 2013a, p. 172). E, talvez,
por não se tratar de uma ficção propriamente dita, o autor não revele o nome da ex-mulher
nem dos outros envolvidos na história para não comprometê-los. Será mesmo?

A estrutura do romance é híbrida, o autor intercala partes do diário íntimo da ex-


mulher, que são datadas e recebem distinção em itálico; capítulos cujos títulos seguem
uma incrível progressão quilométrica – Quilômetro um, dois, três, etc. –, sempre
acompanhados de um subtítulo que antecipa o teor do que está por vir – “Quilômetro três,
uma lista das qualidades e dos defeitos do meu marido” –; a reflexão autoanalítica e
metaliterária da construção do Divórcio; a irônica troca de e-mails com o advogado da
ex-mulher; uma autodefesa do próprio romance, de suas generalizações e injustiças; e,

6
LÍSIAS, 2013, p. 226
7
LÍSIAS, 2013a, p. 189.
8
Idem, Ibidem.
9
LÍSIAS, 2013a, p.214.

107
curiosamente, fotos antigas dele mesmo quando criança e da família: “Minha pele nasceu
de novo. Divórcio não é um livro de jornalismo, não tem fontes, não usa off, as fotos são
de arquivos familiares e o autor do livro, responsável por todas as linhas, é Ricardo
Lísias” (LÍSIAS, 2013a, p. 196).

Lísias conta deliberadamente a experiência traumática do divórcio, uma experiência


de dor latente, inscrita no corpo esfolado, cuja metáfora da perda da pele não poderia ser
mais propícia para expressar a fragilidade desse narrador esfacelado, que se coloca como
vítima de uma violência abrupta:

[...] Ardeu porque meu corpo estava sem pele. O caixão continuava ali.
De alguma forma, meu queixo acertou o joelho esquerdo. A carne viva
latejou e ardeu. Como o choque foi leve, não durou muito. A sensação
de queimadura também passou logo. Mesmo assim, meus olhos
reviraram. Alguns desses movimentos são claros para mim. Estão em
câmera lenta na minha cabeça.
Outra vez estendi o braço direito e ele tocou o caixão. O cadáver sem
pele ainda me obedecia. Tentei abrir os olhos para confirmar se
continuava morto na cama nova. Não consegui. Meu estômago
encolheu. Senti falta de ar. É difícil respirar com tanta escuridão. O
coração dispara. Veio-me à cabeça o dia em que minha ex-mulher
demorou para fazer alguma coisa enquanto eu me afogava. Tive
dificuldade para abrir os olhos. Minhas mãos latejavam. Um clarão
distante me deixou com tontura. Um corpo em carne viva é quente
(LÍSIAS, 2013a, p. 7-8, grifo nosso).
O romance apresenta identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista;
Ricardo Lísias assina corajosamente embaixo de tudo o que escreve, mostrando seu
desprezo em relação ao modo como o jornalismo trabalha, com fontes ocultas e, por isso,
covardes (para usar o termo do próprio autor); apresenta fotos de seu arquivo pessoal –
ele quando bebê e fotos da família –, o que reforça a veracidade dos fatos; também há
referências explícitas à sua profissão, à cidade onde mora e aos romances anteriormente
publicados. Entretanto, há uma série de elementos que confundem o leitor, como a
contradição nos argumentos do narrador, que uma hora afirma escrever “sem uma palavra
de ficção” e outra hora afirma o extremo oposto, “Divórcio é um livro de ficção em todos
os seus trechos” e fala em “personagens”, deixando o leitor numa zona de incertezas, sem
possibilidade de definir com segurança o que é, afinal, o Divórcio:

Só vou recobrar minha pele e me sentir de novo emocionalmente


estável se escrever sobre o que aconteceu. Se minha ex-mulher não
queria inspirar uma personagem, não deveria ter brincado com a minha
vida. No estágio atual da ficção, é preciso que o esqueleto de um
romance esteja inteiramente à vista. No meu caso, fizeram o favor de
registrar parte do que aconteceu em um cartório.

108
Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos. Agradeço às
três pessoas que foram fundamentais no processo de recuperação que
ele recria, mas que não aparecem na trama (LÍSIAS, 2013a, p. 189-190,
grifo nosso).
Tal jogo de contradições, que leva o leitor à dupla recepção – autobiográfica e
ficcional – da obra, é próprio da autoficção. Na fronteira entre o pacto autobiográfico e
os princípios de veracidade e identidade e o pacto romanesco e os princípios de invenção
e de não identidade, a autoficção firma o pacto ambíguo, através do qual torna possível a
produção da equivalência A = N = P (Autor = Narrador = Personagem) no espaço
romanesco. Sendo assim, a autoficção é uma terceira via ficcional, já que ela circula entre
dois gêneros – autobiografia e romance. Podemos dizer que a autoficção é um novo
gênero literário.

Percebemos, hoje, na literatura contemporânea brasileira, a emergência da


autoficção. Há inúmeros exemplos de autores contemporâneos que transformam o eu em
personagem num contexto romanesco e que jogam com as noções de falso e verdadeiro,
realidade e invenção. Nesse exemplo que tomamos, Divórcio, temos um caso extremo
dos efeitos práticos e reais desse jogo com a realidade. A ousadia (ou insanidade?) do
autor em escrever o que pode ser considerado um romance-vingança, sabendo dos riscos
e prejuízos (morais e jurídicos) que a superexposição da ex-mulher poderia causar, ainda
é um caso à parte na literatura brasileira contemporânea. Entretanto, Lísias parece não
estar preocupado com essa recepção da obra e a questão ética. Na opinião dele, o leitor é
livre para fazer a própria leitura:

[...] cada leitor é livre para fazer a própria leitura. A literatura – e de novo
a arte de maneira mais ampla – não é capaz de reproduzir a “realidade”.
Assim, nenhum romance “expõe” a vida de seu autor ou de qualquer
outra pessoa, mas sim cria personagens e situações ficcionais. (LÍSIAS,
2013b) 10
Na autoficção, o narrador conta que foi ameaçado de processo judicial pela ex-
mulher e por isso teve de se justificar: “Não estou tratando de uma pessoa em particular.
Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance” (LÍSIAS, 2013a, p.128). Ou
seja, teve que argumentar que o livro é para ser lido como romance, como ficção, as
personagens e o narrador foram criados, tornando assim ridículo o fato de ser levado a
julgamento:

10
Ricardo Lísias em resposta a Luciano Trigo. Trigo perguntou: “A exposição de episódios da vida
pessoal que envolve também outras pessoas não cria uma questão ética? Como você lida com ela?”.
109
O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro
lugar, Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à
trama ficcional elementos da realidade. Depois há um narrador
visivelmente criado e diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência,
para justamente causar uma separação. Eu queria me ver livre de muita
coisa. Sim, Excelência, a palavra adequada é “separar-me”. [...] Enfim,
Excelência, o senhor sabe que a literatura recria outra realidade para
que a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era justamente reparar
um trauma: como achei que estava dentro de um romance ou de um
conto que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter certeza de que
estou aqui do lado de fora, Excelência (LÍSIAS, 2013a, p. 217-218).
E assim têm sido as respostas do autor nas entrevistas sobre o romance polêmico.
Talvez, sem compreender bem a proposta da autoficção, já que ela se apresenta tão
complexa e controvertida, Lísias nos respondeu o seguinte:

Não acho possível que a ficção traga “experiências pessoais do autor”.


Creio que a discussão que o termo “autoficção” traz no mais das vezes
parece equivocada. A “experiência pessoal” está perdida assim que ela
acontece. A literatura não reproduz a realidade, mas cria outra
realidade a partir da utilização da linguagem. Sabemos todos que a
linguagem é limitada e muito diferente da realidade, as palavras não são
as coisas. Portanto não pode haver realidade de nenhuma ordem na
ficção.
O que parece ocorrer é que com as novas mídias a figura do autor
passou a aparecer mais e então a leitura dos textos dos autores começa
a ser calcada nessa representação de sua vida pelas diferentes mídias.
Ainda que o resultado sociológico possa ser interessante, uma leitura
do tipo “há experiência pessoal aqui” é redutora do ponto de vista
artístico. Estou tentando escrever, na minha ficção, textos que induzam
as pessoas a verem como elas podem se enganar quando vão atrás da
“realidade”. (MARTINS, 2014, p. 239)
Será mesmo que se o leitor de Divórcio for atrás da realidade, vai se enganar? Antes
mesmo do romance, Lísias já tinha publicado três contos sobre separação: “Meus três
Marcelos”, “Divórcio” e “Sobre a arte e o amor”, espécie de gérmens do romance
Divórcio. De acordo com as informações trazidas por Luciene Azevedo (2013), o conto
“Meus três Marcelos” passa a circular depois do “anúncio do divórcio, feito pelo próprio
Lísias nas redes sociais de que ele participa na internet”, e os três Marcelos identificados
são os amigos de Lísias – Moreschi, Ferroni e Mirisola (AZEVEDO, 2013, p. 103). Já
“Divórcio” é um texto publicado na revista piauí, em novembro de 2011, em que “sem
homonímia ou a menção a qualquer diário [...] é muito mais sutil em relação à dicção
escancaradamente autobiográfica” (AZEVEDO, 2013, p. 104). E, por fim, “Sobre a arte
e o amor”, uma espécie de carta assinada por Lísias, “como resposta à notificação
extrajudicial enviada pelo advogado de Ana Paula Souza, ex-mulher do autor”, cuja
circulação é considerada “a grande volta do parafuso” por Azevedo (2013, p. 104).

110
É sabido também que o ponto de partida dele é pessoal e traumático. Seria
suficiente, agora, dizer que a literatura não reproduz a realidade e que ele criou situações
ficcionais? Ao responder à notificação extrajudicial, Lísias discorda da ex-mulher sobre
a invasão de privacidade dela pela divulgação parcial de seu diário íntimo (como vemos
as justificativas no próprio romance). Afirmar que o livro é ficção seria, então, uma forma
de se absolver da censura e da cobrança de outrem pela superexposição? Falar em criação
de personagens não seria uma maneira de se aliviar da questão ética e jurídica que
envolveria a escrita escandalosa desse trauma irrecuperável?

Luciana Hidalgo (2013) ajuda-nos nessa questão lançando mão de um caso muito
semelhante ao de Lísias. Camille Laurens também escreve em L’amour (2003) sobre seu
divórcio. Porém, com uma diferença: Laurens mantém o nome verdadeiro do ex-marido
– Yves Mézières. Em consequência disso, ela foi processada, sendo esse mais um caso
de “autoficção no tribunal”, e foi justamente a palavra “ficção” que a livrou da pena.

Até que ponto a autoficção, em contraposição à autobiografia, dá liberdade plena


ao seu autor, livrando-o do compromisso com a verdade e a vida narrada dos outros?
Sébastien Hubier (2003) considera que um dos privilégios da autoficção “seria então a
possibilidade de falar, por ela, de si mesmo e dos outros sem nenhuma forma de censura”
(HUBIER, 2003, p.125, tradução nossa)11. Se o pacto oximórico permite que o autor fale
dele mesmo e dos outros sem censura nem autocensura, como explicar os processos
jurídicos que os autores enfrentam por escreverem e reinventarem a vida e, por
consequência, a vida dos outros? Quando Lísias afirma que tudo o que escreveu é ficção,
não seria uma forma de se livrar do impasse da autobiografia e do “pacto autobiográfico”?
Não seria, então, uma forma de dizer: “vocês não podem me processar, não podem me
julgar, tudo o que eu fiz foi criar, é tudo invenção”? Não seria Ricardo Lísias um falso
mentiroso12?

O artigo de Hidalgo intitulado “A autoficção nos tribunais” (2013) aborda um tema


muito instigante, que tem relação direta com as autoficções do escritor brasileiro. A
especialista em autoficção discorre sobre vários casos polêmicos em que “o ajuste de
problemas familiares e conjugais na literatura” rende processos. Na França, a autoficção

11
No original : «serait donc qu’il est possible de parler, par elle, de soi-même et des autres sans
aucun souci de censure»..
12
Título do romance de Silviano Santiago, no qual o autor joga com as noções de ficção/realidade;
verdade/mentira; real/imaginário etc.
111
é um fenômeno que “vem se transformando em pendenga judicial”. O melhor exemplo
disso é o caso do próprio Serge Doubrovsky, o “pai da autoficção”, que, no romance Livre
brisé, “contou tantos detalhes do alcoolismo de sua outra mulher, que ela, ao ouvir trechos
lidos pelo próprio marido ao telefone (ele estava em Nova York, ela em Paris), bebeu
vodca até a morte” (cf. HILDALGO, 2013).

Todos esses exemplos nos levam a pensar: qual o perigo da autoficção? O perigo
é para quem escreve, adentrando em questões éticas e morais, e também jurídicas, pois
há o risco de o autor ser processado e de pagar um preço alto por isso? O perigo para
quem escreve também entraria no terreno da culpa? Como no exemplo drástico de
Doubrovsky, seria possível não se sentir culpado pela morte da mulher? O perigo é
também para quem está envolvido na história, tendo sua intimidade e seus segredos
expostos de maneira invasiva, sem autorização prévia? Reinventar a si mesmo e aos
outros, misturar realidade e ficção, através do exercício autoficcional, seria uma prática
indiscreta? Uma escrita do constrangimento? Até aonde vai o nosso direito de expor o
outro? Apenas ocultar o nome de alguém na narrativa é preservar esse alguém? Se
Ricardo Lísias fala da ex-mulher, nós, leitores anônimos e desavisados, podemos não
saber de quem se trata, mas a família, os amigos próximos, os vizinhos e os conhecidos
certamente o saberão. Como é que fica a dita “preservação”? Que prejuízos não teve essa
mulher por ter a sua intimidade exposta na ficção?

Luciana Hidalgo observa que a deselegância da superexposição alheia na autoficção


pode ajudar na venda, afinal, todo caso polêmico desperta a curiosidade dos leitores, mas
também corre o risco de acabar nos tribunais:

Quando expõem questões íntimas, escritores franceses também violam


a privacidade de seus maridos, mulheres, amantes e filhos. Alguns
convertem conflitos típicos de telenovelas em romances esteticamente
elegantes. No entanto, a deselegância dessa superexposição alheia vem
gerando crescente número de reclamações de parentes nos tribunais,
levando a questão da ética na autoficção e injetando um viés de
escândalo na literatura – o que até ajuda a vender livros, mas afeta a
reputação do autor e influencia a leitura do texto em si. (HIDALGO,
2013)
Entretanto, em meio à deselegância e ao processo jurídico, o acerto de contas na
literatura, na opinião de Hidalgo, pode render livros de qualidade estética e literária:

A autoficção francesa é frequentemente rotulada de narcisista, devido


aos excessos de um eu que transborda e muitas vezes fere o outro.
Vários romances trazem esse tom de acerto de contas, revanche ou
vingança. [...] Enfim, o ajuste de problemas domésticos na literatura

112
pode render ótimos livros, desde que apresentem qualidade literária
suficiente para diluir o tom lavagem-de-roupa-suja. (HIDALGO, 2013)
E quando a autoficção trata de alguém que já morreu, como no caso d’O céu dos
suicidas ou mesmo de Ribamar, de José Castelo? Se fosse o caso, onde ficaria o direito
de essa pessoa se defender (via processo ou, como tem sido comum na França, via a
escrita de um romance-resposta)? Qual seria, então, a diferença entre a recepção de uma
autoficção e de uma autobiografia? Se os biografemas dos quais o autor parte para a
escritura da própria vida são fontes de ferimento ao outro, de vergonha e de intimidação,
se acarretam em processos jurídicos, humilhação e ofensa, qual a real distinção entre uma
autobiografia e seu pacto autobiográfico e uma autoficção e seu pacto ambíguo? Que
ambiguidade é essa que acaba por não livrar o seu escritor da pendenga judicial? Ou
melhor, que até pode livrar do conflito judicial, mas não livra da pendenga ética-moral?

A questão da superexposição e do direito à privacidade está em seu auge nos dias


de hoje. Talvez, daqui a alguns anos, essa questão seja menos expressiva. Também as
autoficções brasileiras, em sua maioria, trilham caminho diferente do de Lísias. Porém,
achamos pertinente levantar os efeitos desse jogo com a realidade aqui, já pensando nesse
caso extremo do Divórcio como uma possível via, midiática, do exercício autoficcional.

Quando falamos nessa superexposição como o perigo da autoficção, quase sempre


amenizada por seu caráter fictício, podemos relacionar de imediato com a polêmica atual
das biografias não autorizadas. Artistas integrantes do grupo Procure Saber13, tais como
Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan, defendem o
direito à privacidade através da autorização prévia a biografias. Segundo os artigos 20 e
21 do Código Civil, é proibida a publicação de informações pessoais de qualquer cidadão
em casos que “atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a
fins comerciais”. Há dois casos famosos de censura de biografias não autorizadas no
Brasil, o da biografia Roberto Carlos em detalhes, de Paulo Cesar de Araújo; e o da
biografia de Daniella Perez escrita por Guilherme de Pádua, seu assassino (que já cumpriu
a pena e está livre). A questão é considerada polêmica porque, de um lado, temos os
artistas querendo o direito de preservar a vida pessoal (“Pensei que o Roberto Carlos

13
“Associação composta por autores, intérpretes e herdeiros de direitos autorais sobre obras musicais e
líteromusicais, dedicada a estudar e informar aos interessados, e à população em geral, as regras, leis e o
funcionamento de associações de direito autoral, entidades e instituições relacionadas à administração e ao
licenciamento de direitos autorais e conexos e da indústria da música, bem como atuar como uma
plataforma profissional de atuação política e representativa na defesa e implementação dos interesses da
classe” (PROCURE SABER, 2013)
113
tivesse o direito de preservar sua vida pessoal. Parece que não”14) e, de outro, temos uma
série de jornalistas e biógrafos, principalmente, alegando a liberdade de expressão
conquistada a duras penas (inclusive pelos próprios Chico Buarque e Caetano Veloso na
época da Ditadura Militar) e o retrocesso que é censurar as biografias.

Recentemente, os acadêmicos divulgaram carta intitulada “Liberdade para as


biografias” a favor das biografias não autorizadas. Um grupo de duzentos acadêmicos
(historiadores, escritores, intelectuais e pesquisadores) apoiaram a causa, alegando que

As vidas dos indivíduos são parte da história. As biografias são,


portanto, formas de entender a realidade e não podem ser objeto de
nenhum limite ou interdição. Castrar a biografia significa ferir
mortalmente a compreensão das sociedades. O biógrafo deve poder
interpretar seus personagens livremente, assim como o historiador
escolhe e analisa os seus temas sem entraves ou imposições. [...] A
biografia não busca elogiar nem insultar, mas entender. O biógrafo deve
ser livre para reconhecer e expor as virtudes e os defeitos dos atores da
história, acima das sensibilidades pessoais ou dos interesses de
qualquer natureza. A biografia pode ser inconveniente, mas jamais
desonesta com os fatos. (ACADÊMICOS, 2013)
A questão fica mais complexa ainda se levarmos em consideração o interesse
mercadológico e financeiro, como os biografados querendo receber a sua parte por terem
suas vidas como matéria-prima do livro.

Ruy Castro, biógrafo reconhecido no Brasil, principalmente pelas biografias de


Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmem Miranda, observa uma contradição no
comportamento dos artistas que alegam a invasão de privacidade no exercício biográfico:

Estão nos confundindo com revistas de fofocas, revistas essas para as


quais eles já abriram inúmeras vezes as portas das suas casas para serem
fotografadas, deixaram à mostra sua intimidade, descreveram os
tratamentos físicos de suas mulheres para se tornarem as sereias que
elas são. Durante várias ocasiões, não tiveram nada contra essas
revistas, talvez não tenham, porque essas revistas lhes ajudam a vender
discos, fazerem shows etc. Agora, uma biografia que leva três, cinco
anos para ser feita, não pode. (VICTOR, 2013)
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, também se
pronunciou. Para Britto (2013), biografia “É relato de vida já acontecida ou de desfrute
já exaurido do direito à intimidade, vida privada e vida social genérica. É apenas um
retrato falado do modo pelo qual o direito ao desfrute já se consumou. Modo a que o
biógrafo teve acesso”.

14
BUARQUE, 2013.

114
A seriedade do trabalho de pesquisa do biógrafo não pode ser comparada com o
sensacionalismo das revistas de fofocas e da invasão dos paparazzi. Sendo assim, Britto
observa que a lei protege o biografado daquele biógrafo que inventar, distorcer fatos ou
ofender a sua honra:

Nada tem a ver com interceptação de escuta telefônica, uso de


teleobjetiva em recintos privados, enfiar-se por debaixo de camas
alheias, esconder-se em armários de terceiros ou qualquer outra forma
de interrupção, perturbação ou obstrução do desfrute em causa.
Contudo, se o biógrafo descamba para o campo da invencionice, ou
então da coleta de dados tão maliciosamente distorcidos a ponto de
ofender a honra do biografado, além de causar a este prejuízos de ordem
“material, moral ou à imagem”, o que pode ocorrer em termos
jurídicos? Bem, o que pode ocorrer não é senão a aplicabilidade das
normas constitucionais que falam do direito de resposta e de
indenização. De parelha com aquelas que legitimam o Código Penal a
criminalizar condutas caluniosas, difamatórias ou injuriosas (BRITTO,
2013).
Se a justiça resolve o caso das biografias, cujos dados são verificáveis e frutos de
longa pesquisa, quem resolveria o caso das autoficções? Ricardo Lísias não estaria
apelando para o sensacionalismo, por usar seu divórcio como forma de chocar e despertar
a curiosidade dos leitores e sua vingança como forma de acertar as contas com a sua ex-
mulher, tal como fazem as revistinhas de fofocas e os paparazzi?

O narrador fala do desejo de vingar-se da mulher a partir da escrita e publicação do


que ela fez, a fim de desmascará-la e de revelar para todo mundo quem realmente ela é e
do que ela é capaz:

Confesso que, logo que li o diário, tive o enorme impulso de mostrar


para todo mundo quem de fato é minha ex-mulher. Vejam que moça
mais legal. No entanto, logo depois eu me vi morto. Toda a minha
energia então ficou voltada para me resgatar do que parecia ser a
antessala de um necrotério. A conclusão é obrigatória: a literatura é
agora parte vital não apenas da minha vida simbólica, mas até do meu
corpo (LÍSIAS, 2013a, p. 166).
Seria, então, o Divórcio uma história muito midiática e pouco literária?
Sensacionalista ou não, o fato é que Divórcio chama a atenção e provoca o leitor. Onde
quer que falemos sobre o enredo do romance, é impressionante como ele desperta o
interesse e a curiosidade dos leitores. E a primeira pergunta quase sempre é a mesma:
quem é a jornalista? Por que ela não se pronuncia na mídia, não responde ao Divórcio?
Por outro lado, o autor ainda corre o risco de cair no desgosto do público-leitor, talvez
quando o sabor da novidade impactante passar. Indício disso pode ser outra reação que
presenciamos, a de um grupo de pessoas que disse: “Que absurdo o que ele fez! Temos

115
que nos unir para ninguém comprar esse livro, não dar ibope para esse maluco!”.
Ademais, o autor pode ter grande sucesso com a autoficção, ainda mais se pensarmos na
trajetória de Lísias, principalmente depois de publicar O livro dos mandarins (2009), que,
de acordo com Luciene Azevedo (2013, p. 88), “claramente delineia a assinatura de Lísias
no contexto da literatura contemporânea” e é considerado o “romance de maturidade” do
autor.

Azevedo ainda aposta que uma grande marca distintiva de Lísias como autor possa
estar “na ‘guinada subjetiva’ como gesto performático de inscrição de um nome de autor,
de inscrição de uma assinatura literária”. A estudiosa observa os mesmos motes temáticos
na obra de Lísias, que parecem reescrever, reelaborar o mesmo texto: “o apelo a uma
intimidade mezzo fake, o retorno do narrador solitário e dolorido com a morte de seu
melhor amigo, com a separação conjugal –, recuperados em publicações distintas”
(AZEVEDO, 2013, p. 104).

Sendo assim, não há como negar que o exercício autoficcional coloca à mostra a
vida de quem escreve (autoexposição) e de quem participa da vida do autor (exposição
do outro). As histórias partem da experiência pessoal e traumática, mesmo que a partir
disso criem situações ficcionais. Trata-se de uma exposição espetacularizada, em que não
é possível escrever sobre si sem expor o outro. Como o caráter ficcional livra o autor da
pendenga judicial, caberia então ao escritor, assim como na biografia, o bom senso na
escolha da forma como vai utilizar a experiência de si e do outro na literatura: “[...]
perguntou se eu não estava me expondo muito. Essa é uma afirmação que ouço até hoje.
Faz um ano que saí de casa” (LÍSIAS, 2013a, p. 165).

Do ponto de vista teórico, o escritor e professor francês Serge Doubrovsky, criador


do neologismo “autofiction” no final dos anos 1970, relaciona-o com a psicanálise,
afirmando que a autoficção é uma “prática da cura”. Sendo assim, analisaremos a
autoficção enquanto partilha do luto, da dor e do trauma na obra de Lísias. O narrador de
Divórcio mostra a consciência de que o romance lida com um trauma, um corpo ferido;
a escritura do romance é a refeitura da pele perdida:

Ao resolver publicar alguns textos, ordenando a minha dor, procurando


dar forma literária ao caos que não me deixava dormir e apostando que
a literatura, com o auxílio da corrida, iria refazer a pele que o diário da
minha ex-mulher levou, a situação mudou e os fofoqueiros passaram a
achar um absurdo que tudo que me contaram fosse registrado (LÍSIAS,
2013a, p. 182).

116
Lísias fala da necessidade em escrever sobre o trauma e fazer um romance sobre
ele, ordenando a dor e dando ordem ao caos

Meu corpo ferido, por mais que ainda perca energia, precisa portanto
virar literatura. De um jeito ou de outro, a assombração inicial era
verdadeira. Dois contos não são suficientes para o tamanho do meu
trauma (ou da pele do meu corpo). Preciso fazer um romance. (LÍSIAS,
2013a, p. 172).
Pensar a autoficção como “prática da cura” não é consenso entre os estudiosos de
literatura. Para Luciene Azevedo, a ideia da terapia pela escrita não lhe agrada, entretanto,
reconhece que há um desnudamento do sujeito na autoficção que desperta o interesse do
leitor:

ainda que eu tenda a rejeitar a autoficção como “terapia”, porque me


parece que isso implicaria em um utilitarismo rasteiro, acho que a ideia
pode ter relação com algo que aventei em outra resposta: uma certa
demanda (do público) por ver, reconhecer um sujeito desnudando-se,
(de)compondo-se por escrito, na frente do leitor, construindo um sujeito
na realidade das palavras. (MARTINS, 2014, p. 236)
Desnudar-se para se enxergar e se entender melhor. Escrever para aliviar. Fabular
um sofrimento para elaborá-lo. Colocar na realidade das palavras uma experiência
traumática para compartilhar o sofrimento e reestruturar o caos interno. Recorrer à
literatura para recuperar a pele, brutalmente arrancada pela decepção com as pessoas, com
a vida, com o mundo. Assim como a corrida intensa não cura a dor nem apaga o seu
motivo desencadeador, mas alivia o corpo (“A corrida nos deixa empolgados. Venci o
marco de dez quilômetros. Agora só faltam cinco. Estou muito bem.” 15), a autoficção
enquanto “prática da cura” não cura o trauma, mas alivia a alma (“Tenho sim, o direito
de elaborar ficcionalmente a violência a que fui submetido”16; “Divórcio me ajudou
muito, mas não me trouxe todas as respostas”17).

Pensar a questão do trauma na autoficção nos levou à pergunta: “O que leva um


escritor a escrever sobre si mesmo através da ficção, dos diários, cartas, etc.”?

Em Divórcio, Lísias afirma:

A literatura serve-me em grande parte para isso: adoro ficar remexendo


a linguagem, medindo todas as possibilidades e tentando entender até
onde posso ir, para no final pesar o resultado e refletir para saber se o
texto realmente me expressa. É a maneira que tenho, silenciosa e

15
LÍSIAS, 2013, p. 226.
16
LÍSIAS, 2013, p. 234
17
LÍSIAS, 2013, p. 203.

117
discreta, de sair organizadamente da confusão que tantas vezes me
assalta por dentro (LÍSIAS, 2013a, p. 36-37)
Para Altair Martins, o que leva um escritor a escrever sobre si mesmo é o “impulso
vivido” e “escrever sobre isso, constitui, de certo modo, um conjunto de atividades que
nos revisam”. Adriana Lisboa afirma que a própria vida do escritor “é apenas mais um
entre os virtualmente infinitos temas à sua disposição”. Para Lisboa, o que leva um
escritor a escrever sobre si mesmo vai desde a “elaboração quase que psicanalítica das
próprias experiências até o exibicionismo passando pela ‘normalidade’ de considerar sua
própria vida apenas um tema entre tantos outros, e tão válido quanto”. Já Cristovão Tezza
diz que não sabe, e escreveu sobre a sua experiência porque ela não era mais “traumática”,
“era apenas uma memória a ser trabalhada literariamente” (MARTINS, 2014, p. 214).
Tezza acredita que foi um desafio mais literário do que existencial. Para Michel Laub,
todo escritor escreve sobre si mesmo, a matéria da escrita é a memória: “O texto é uma
tentativa de expressar o que pensamos, ou um pensamento que estamos imitando ou a que
estamos nos opondo (no caso de um narrador diverso de nós). Ou seja, a matriz somos
nós, o que pensamos, que é o que somos” (MARTINS, 2014, p. 237).

Evando Nascimento responde que o fato de usarmos a vida como matéria-prima


sempre ocorreu na história da literatura e que a diferença nos casos das autobiografias e
“dispositivos autoficcionais” é a atitude expressa consciente, “embora com propósitos e
resultados distintos”. Nascimento também chama a atenção para a “necessidade humana
de entender minimamente o que se vivencia”. No caso da autoficção, pela palavra
inventiva. Entretanto, a noção de cura psicanalítica não agrada Nascimento:

Diria que na autoficção ocorre um tratamento sem fim das experiências


traumáticas e não traumáticas. Mas um tratamento no sentido literário
e não no sentido clínico, ou seja, uma abordagem formal de
determinados conteúdos experienciais. E quando o tratamento é bem
realizado tema e forma não podem mais ser separados, consistindo num
processo sem fim. É o que se chama hoje de ‘obra em processo’, cujo
processo de significação jamais se conclui (MARTINS, 2014, p. 218).
Curiosamente, na entrevista, Ricardo Lísias responde que não acha possível
relacionar a escrita autoficcional com a psicanálise, “a prática da cura”. Destoando dos
demais escritores, Lísias afirma: “não posso responder pois não acho possível que um
texto de ficção contenha o autor em si” (MARTINS, 2014, p. 240). Mesmo assim,
podemos perceber nitidamente que o romance partiu de uma necessidade. A literatura
como parte vital. Num determinado momento, o escritor não poderia fazer outra coisa a
não ser escrever sobre essa experiência traumática e sufocante. Entre excessos e rancores,

118
temos aí uma grande obra: “O texto, porém, ensinou-me muito sobre mim” (LÍSIAS,
2013a, p. 214).

REFERÊNCIAS

ACADÊMICOS divulgam carta a favor das biografias não autorizadas; leia íntegra. Folha de
São Paulo. Ilustrada. 12 nov. 2013. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1370016-academicos-divulgam-carta-a-favor-
das-biografias-nao-autorizadas-leia-integra.shtml>. Acesso em 12 nov. 2013.

AZEVEDO, Luciene. Ricardo Lísias: versões de autor. In: CHIARELLI, Stefania; DEALTRY,
Giovanna; VIDAL, Paloma (Orgs.). O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira
contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

BRITTO, Carlos Ayres. “Biografia não é invasão de privacidade”. O Globo. Opinião. 13 nov.
2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/biografia-nao-invasao-de-privacidade-
10762406>. Acesso em 13 nov. 2013.

BUARQUE, Chico. Penso eu. O Globo. Cultura. 16 out. 2013. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/cultura/penso-eu-10376274#ixzz2ipnYZe00>. Acesso em: 26 out.
2013.

HIDALGO, Luciana. A autoficção nos tribunais. Época. [18 ago. 2013]. [S.l.], Ruth de Aquino.
Disponível em: <http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ruth-de-
aquino/noticia/2013/08/autoficcao-nos-tribunais.html>. Acesso em: 26 ago. 2013.

HUBIER, Sébastien. Littératures intimes: Les expressions du moi, de l´autobiographie à


l´autofiction. Paris: Armand Colin, 2003.

LÍSIAS, Ricardo. Divórcio. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013a.

______. Em ‘Divórcio’, o drama pessoal é ponto de partida para a ficção. [8 de setembro,


2013b]. [S.l.], G1 – Máquina de Escrever. Entrevista concedida a Luciano Trigo. Disponível
em: <http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/tag/divorcio/>. Acesso em: 10 out. 2013.

______. O céu dos suicidas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2012.

MARTINS, Anna Faedrich. Autoficções: do conceito teórico à prática na literatura brasileira


contemporânea. 2014. 251 f. Tese (Doutorado) – Curso de Teoria da Literatura, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em:
<http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5746/1/000456796-Texto+Completo-
0.pdf>. Acesso em: 29 maio 2018.

PIBAROT, Annie. Table ronde. Annie Pibarot s’entretient avec Philippe Lejeune et Philippe
Vilain. Cahier de l’APA, Écrire le moi aujourd’hui, nº 38 – novembre 2007. p.7-14.

PROCURE SABER. “Glossário - Discussões PLS 129”. 27 jun. 2013. Post do Facebook.
Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/procure-saber/gloss%C3%A1rio-
discuss%C3%B5es-pls-129/434470673318219>. Acesso em: 26 out 2013.

VICTOR, Fábio. ‘Roberto Carlos é censor nato e hereditário’, diz Ruy Castro em festival de
biografias. Folha de São Paulo. Ilustrada. 15 nov. 2013. Disponível em:

119
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1372166-tese-da-biografia-independente-ja-
esta-ganha-diz-ruy-castro-em-fortaleza.shtml>. Acesso em 15/11/2013.

120
BLOGS: NOVOS MEIOS DE CIRCULAÇÃO E PUBLICAÇÃO
LITERÁRIAS E DE CONSTRUÇÃO DA PERSONA AUTORAL1

BLOGS: NEW MEANS OF CIRCULATION AND PUBLISHING


LITERARY AND CONSTRUCTION OF THE AUTHORIAL PERSONA

Bruno Lima Oliveira2

Resumo: A literatura brasileira deste início de século não é mais orientada por uma leitura
formalista e estruturalista, haja vista a figura autoral estar presente em feiras literárias,
lançamentos de livros, programas de televisão, congressos e palestras, redes sociais, blogs
e, também e principalmente, textualmente, nas autoficções. O autor retorna, portanto,
extra e literariamente. As várias aparições do escritor contemporâneo, em veículos
midiáticos diversos, performam uma identidade não necessariamente biográfica, mas
capaz de tornar indecidíveis as fronteiras entre realidade e ficção. É possível afirmarmos
que os diversificados discursos e aparições autorais, em mais de um canal midiático,
indiciam subjetividades múltiplas, de modo a torná-lo fragmentário, híbrido,
autoficcional – problematizando, assim, não apenas os conceitos de ficção e realidade,
mas a noção de sujeito. Muitos dos escritores ativos no cenário literário hoje iniciaram
suas carreiras em blogs, espaço virtual propício para a divulgação de sua literatura e,
principalmente, para a invenção de si, para a construção de subjetividades. Mesmo após
o sucesso editorial, é comum a prática blogueira persistir em vários desses autores,
aproximando-os do público e, cada vez mais, confundindo autobiografia e ficção. Por já
serem hoje, mediante a aparição midiática em nossa sociedade do espetáculo,
“celebridades”, com uma persona já constituída publicamente, descarto a averiguação dos
modos de construção identitária de “escritores profissionais”, preferindo analisar de que
modo diletantes amadores perfazem o mesmo percurso nos blogs, problematizando a
noção de cânone. As autoficções, a meu ver, não são comuns hoje nos blogs porque são
um nicho editorial importante e lucrativo, mas justo o inverso: só chegaram às livrarias
porque sua gênese esteve e ainda está na internet. Minha pesquisa incidirá, pois, em blogs
de “pessoas comuns”, aspirantes a adentrar no circuito literário e a atingir a publicação
impressa, e quais são as estratégias de subjetivação empregadas para conquistar seu
público e as editoras. Cada vez mais a estética do comum vem sendo estudada e essa
discussão é, sob minha ótica, bastante salutar. Benjamin já alertara que, ao escreverem na
seção “Cartas de leitores”, estes também passavam a ser igualmente autores. Hoje, nomes
como os de Denilson Lopes e Silviano Santiago também vêm trabalhando com a estética
do comum. Escolhi, aqui, analisar o blog Resultado Desastroso, da blogueira Mariana
Bernardes, que explicita, em vários posts, o desejo de se tornar escritora e viver de
literatura. Comparativamente a nomes já consagrados, pretendo analisar quais as
estratégias de ficcionalização de si empregadas por esta blogueira para atingir seu
objetivo.

1
Mesa-redonda A exposição do sujeito nos meios de comunicação I.
2
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
121
Palavras-chaves: blog; subjetividade; circuito literário; autoficção.
Abstract: The brazilian literature beginning of this century is no longer guided by a
formalist and structuralist reading, given that the authorial figure is present in literary
exhibitions, autograph's night, programs of television, conferences and lectures, social
networks, blogs, and also and mainly in autofiction. The author returns, so extra and
literarily. The various appearances of the contemporary writer in various media vehicles,
performam an identity not necessarily biographical, but undecidable able to make the
boundaries between reality and fiction. It is possible to assert that the varied speeches and
appearances copyright, in more than one media channel, indicate multiple subjectivities
in order to make them fragmented, hybrid, autofictional - questioning not only the
concepts of fiction and reality, but the notion of subject. Many writers active in the literary
scene today began their careers on blogs, virtual space conducive to the dissemination of
their literature, and especially for the invention of the self, for the construction of
subjectivities. Even after publishing success, they practices in the blog, approaching the
public and confusing autobiography and fiction. By the appearance in our media society
of the spectacle, they are “celebrities”, with a persona already made publicly dismiss the
investigation of the modes of identity construction of “professional writers”, preferring
to examine how dilettantes amateurs make up the same route blogs, questioning the notion
of canon. The autofiction, in my view, is not common today in the blogs because it is a
niche publishing important and lucrative, but just the opposite: just reached the bookshops
because its genesis was and still is on the internet. My research will focus therefore on
blogs of the “ordinary people”, aspiring to enter the literary circuit and reach the print
publication, and what are the strategies employed subjectivity to win your audience and
publishers. Increasingly the aesthetics of the ordinary has been studied and this discussion
is very beneficial. Benjamin has warned that, who writer in the “Letters from readers” too
to be writer. Today, names such as Denilson Lopes and Silviano Santiago also been
working with the aesthetics of the ordinary. I chosen, here, to analyze the blog Resultado
Desastroso (Disastrous results), of the Mariana Bernardes, which explains, in several
posts, the desire to become a writer and live literature. Compared to already established
names, I analyze the strategies of fictionalization employed by this blog to achieve your
goal.
Keywords: blog, subjectivity, literary circuit, autofiction.

No dia 30 de julho de 2013, o escritor Santiago Nazarian, em seu perfil no


Facebook, publicou o seguinte comentário:

Ei, por que Mastigando Humanos é leitura obrigatória no vestibular da


Paraíba e eu nunca fui pra Paraíba? Tem gente mosqueando que poderia
organizar um bate-papo meu com os alunos por lá. Aliás, tem gente
mosqueando que poderia me convidar para bate-papo em tantos lugares
do Brasil... Ainda sou autor vivo e ativo, altivo atuante e operante, tá?
Só pra avisar...3
Cinco horas após esta publicação, 112 pessoas a haviam “curtido”, houve 35
comentários e outros três compartilhamentos, aumentando o alcance das palavras do

3
As citações serão transcritas ipsis litteris. Disponível em
<https://www.facebook.com/santiagonazarian?fref=ts>. Acesso em 30 jul. de 2013.
122
escritor “vivo e ativo”. Ainda no Facebook, descobrimos que Nazarian possui, em sua
rede de relacionamentos, 3.239 amigos, entre amizades virtuais e presenciais, mas o que
importa, sobretudo, é que as palavras do escritor atingem um público para além dos
leitores de seus livros, isto é, sua persona é formada com o auxílio de discursos alheios
ao literário. Não é possível fazer um levantamento do número exato de seu público leitor,
salvo uma aproximação estimada baseada na quantidade de exemplares vendidos pela
editora etc. No entanto, o que chama a atenção nesse comentário queixoso do autor é a
lembrança de que ele está disponível, e é o próprio Nazarian quem faz questão de dar o
recado, pois avisa que é “atuante e operante”.

Santiago Nazarian, além de seus amigos no Facebook, possui também um blog,


intitulado Jardim Bizarro, cujo endereço é:
http://www.santiagonazarian.blogspot.com.br/. Seu blog mistura impressões e
experiências empíricas de sua vida, como viagens realizadas e as respectivas fotografias,
e trechos de livros, como o de seu próximo romance, por exemplo. Percebe-se,
rapidamente, que o autor se vale de mais de um veículo midiático para uma performance,
nos quais pode, também, divulgar sua produção literária. A recepção da persona autoral,
por parte do público, acontece em mais de um canal, e todos eles se retroalimentam,
compondo um sujeito híbrido e (extra)literário. Mas por que se preocuparia com essa
autopromoção o autor se ele é publicado por uma grande editora e já é, inclusive, um
escritor premiado?

A resposta foi dada por outro escritor com seu lugar ao sol já devidamente
alcançado – João Paulo Cuenca. Em 2010, no evento Café Literário: Literatura na web,
com Juliana Krapp, Manoela Sawit e o próprio Cuenca, realizado na Biblioteca Popular
de Botafogo, o autor de Corpo presente, ao dizer que desde criança nutria o desejo de ser
escritor, afirmava que, para tanto, era necessário participar de eventos, ir a universidades,
dar entrevistas (sic). Dizia ele que ser escritor não se limitava a escrever e que, para poder
realizar seu ofício, essas demais atividades se faziam importantes. O que ele pretendia
dizer, a meu ver, equivale a afirmar que o escritor contemporâneo precisa criar uma
imagem de si próprio para se tornar conhecido; necessita, principalmente, se
autopromover, de maneira a performar uma identidade pública – não necessariamente
autobiográfica – para, então, ingressar no circuito literário e conquistar o “espaço
biográfico”, termo cunhado por Leonor Arfuch (2010), sem o qual, dificilmente,
despertaria o interesse de uma editora e consequentes leitores. Em uma palavra, o escritor

123
contemporâneo é performático e se constitui como personagem de si mesmo. Bem como
Nazarian, Cuenca também possui uma página no Facebook, com 1.929 seguidores, e é
blogueiro, embora seus vários blogs estejam todos desatualizados.

Percebe-se, nesse rápido introito, uma das razões para a crítica literária abandonar
a morte do autor postulada pelos formalistas e estruturalistas e olhar com mais atenção
para a figura do escritor, não de forma a buscar um biografismo que explicaria a obra,
mas porque é cada vez mais comum uma performance autoral que se mistura à ficção,
mesclando relatos autobiográficos e empíricos à fabulação – a autoficção. Atualmente,
em um mundo cada vez mais midiático e imagético, o escritor excede o ato de escrever
como seu ofício, como bem apontou João Paulo Cuenca. Ao participar de feiras literárias,
programas de televisão, lançamentos de livros, congressos, palestras etc., o escritor dá-se
a conhecer, assume uma voz e um corpo, torna-se uma pessoa pública – não está mais
morto, em síntese. É comum, inclusive, como já indicou Philippe Lejeune (2008), que o
leitor conheça o autor sem nada dele ter lido, isto é, sua literatura tem se mostrado menos
importante, em certo sentido, do que sua própria persona.

Também foi Lejeune (2008) quem disse que, antigamente, a leitura da obra
suscitava o desejo do leitor de conhecer o autor, ao passo que, agora, devido ao grande
número de entrevistas e à exposição midiática, isso se inverte, é a figura pública do autor
que desperta o interesse em sua literatura. Portanto, hoje, o autor assume a função
primordial de se valorizar, de ser seu próprio promoter, por assim dizer. Nada mais
natural, nesse sentido, que Nazarian, ao saber da leitura de seu romance para o vestibular
da Paraíba, faça questão de lembrar que está disponível para um bate-papo com alunos-
leitores. É claro que este interesse não diz respeito apenas ao aspecto mercadológico,
como pode parecer indicar, mas é comum autores variados afirmarem que é importante e
prazeroso o diálogo com jovens leitores, pois estes não teriam o cacoete do público mais
experiente, nem tampouco se censurariam em perguntar questões jamais levantadas em
eventos do porte da Flip4, como mencionou Daniel Galera recentemente no evento
“Encontros Literários”, mediado por Guilherme Freitas, também na Biblioteca Popular
de Botafogo, no dia 31 de julho deste ano. A participação dos escritores contemporâneos
em eventos de e sobre literatura é tão intensa, atualmente, que dois exemplos, até aqui, já
foram utilizados e mais ainda podem surgir ao longo do ensaio. Destarte, o fetiche em

4
Festa Literária Internacional de Paraty (Paraty/ RJ).
124
torno do autor – sempre presente, mesmo quando da leitura imanente da obra literária –
ganha força, como já bem apontou Ana Cláudia Viegas (2007).

Neste contexto, o autor Santiago Nazarian sobreviveria ao esquecimento público?


Sua literatura continuaria a ser lida com seu repentino "desaparecimento"? Se é o autor o
responsável, hoje, por fomentar o desejo dos leitores pelo texto, mesmo uma carreira
relativamente bem-sucedida correria o risco de caminhar para o ostracismo. Sérgio de Sá
(2010, p. 151), nessa direção, afirma que “esse é o perigo quando ser escritor torna-se
mais importante do que escrever”. Não esqueçamos que a literatura é arte e, como tal,
reivindica mais tempo, dedicação e disciplina do que os gastos com entrevistas e
autopromoção. Sérgio de Sá (2010, p.155) prossegue sua crítica ao dizer que, “na
sociedade pós-industrial, o escritor é cada vez mais uma imagem. A obra fica em segundo
plano”.

Esta imagem construída de um escritor-personagem ou personagem-escritor se dá


em várias frentes, como já assinalado. Leonor Arfuch (2010) e Sérgio de Sá (2010)
privilegiam a relação presente na construção identitária do autor nas entrevistas, mas estas
não são as únicas tampouco a de nosso maior interesse aqui. Santiago Nazarian e João
Paulo Cuenca são dois autores que têm uma relação estreita com blogs – prática cada vez
mais comum entre escritores – e com a utilização da internet como forma da criação de
uma persona. Muitos outros exemplos há e poderia ficar cansativo elencar todos os
escritores brasileiros que, concomitantemente ao lançamento de livros publicados por
grandes editoras, com reconhecimento de público, sucesso editorial e pesquisados pela
Academia, iniciaram suas carreiras em blogs e/ou ainda mantêm a prática blogueira
mesmo após seu sucesso constituído. A fim de evitar uma enumeração extenuante,
restringirei o número a apenas duas autoras: Ivana Arruda Leite e Clarah Averbuk,
também adeptas do Facebook.

As duas servem-me como corpus de trabalho por razões que, dialeticamente, se


aproximam e se distanciam. A primeira começou a publicar tarde, depois de incansáveis
tentativas frustradas de envio de originais para editoras, até que Marcelino Freire
intercedeu em seu favor e ela finalmente conseguiu sua primeira edição, conforme
anunciou no encontro realizado em maio deste ano em São Paulo, com Luiz Bras e Mona
Dorf, referente ao programa “Encontros com autores e ideias”. Segundo Ivana, foi bom
ter recebido tantas recusas, pois isso fez com que ela continuasse a escrever e
aperfeiçoasse sua literatura (sic). Quanto aos blogs – tema do encontro –, a autora de Eu

125
te darei o céu e outras promessas dos anos 60 diz que só não abandona completamente
os diários virtuais porque lá estão contidos todos os seus contos, inclusive os de livros já
esgotados. Complementa seu desânimo ao afirmar que os blogs já estão ultrapassados,
que o Facebook é muito mais dinâmico e, portanto, cativa mais os leitores; apesar disso,
no entanto, não abandona o seu Doidivanas, cujo endereço é
http://doidivana.wordpress.com/, embora ele não seja um blog estritamente literário, o
que, em certo sentido, ajuda na construção da identidade autoral, uma vez que os leitores
mais e mais fetichizam sua figura. Questionada se ela é também leitora de blogs,
respondeu que lê apenas os blogs de amigos (sic), o que denota uma espécie de maior
dificuldade de acesso ao circuito literário àqueles blogueiros diletantes, ainda alheios ao
universo mercantil da literatura e à legitimação editorial. Como um blogueiro poderia
obter a intervenção de um autor já conhecido, como foi o caso da própria Ivana, se a
atenção reside apenas ao já formado e seleto grupo de amigos?

Clarah Averbuck talvez seja o nome mais emblemático e contundente no que se


refere à prática blogueira. Diferentemente de Ivana, começou sua carreira literária cedo e
chegou ao livro impresso após desenvolver sua escrita nos blogs. A nomenclatura
“literatura de blog”, no entanto, sempre incomodou a autora de Máquina de pinball, que
insistia serem os diários virtuais apenas um meio para a publicação, dispensando editores
e aproximando autor e leitores. A dificuldade enfrentada por Ivana Arruda Leite de
conseguir ser publicada foi facilmente contornada por Clarah Averbuck ao escrever o que
bem entendesse em seus blogs. Dona do blog, era ela senhora inconteste de “seu” meio
de publicação, libertando-se da necessidade de satisfazer o mercado editorial. Contudo,
ocorre um caso interessante e paradoxal no salto do blog para o livro impresso, no caso
de Averbuck. Se aquele não passava de um meio de publicação, como ela insistia em
dizer, muitas vezes irritada com a persistência nesse assunto, por que razão publicar
também em livro? O que o texto apresentaria de diferente se o que estava em questão era
apenas o meio em que ele fora escrito? Seria a edição impressa um legitimador tanto do
texto quanto do autor, no sentido de que qualquer um pode criar um blog e escrever o que
bem entender, ao passo que, para se ter a publicação impressa por uma grande editora,
haveria a necessária submissão a um corpo editorial e à chancela de literatura? A autora
blogueira defendia-se argumentando que não via nada de inusitado em lançar um livro
como uma coletânea dos melhores posts de seu blog, pois havia coletâneas de poemas,
contos, crônicas, cartas e até diários póstumos eram publicados também. Por que com o

126
blog haveria de ser diferente? E não foi. Seus dois primeiros livros foram resultado de
uma bricolagem de textos escritos originalmente na internet e textos produzidos com a
finalidade da edição impressa. A meu ver, o que boa parte dos blogueiros almeja, como
parece ter sido o caso de Averbuck, é o reconhecimento editorial, o lançamento de seus
textos em livro, como se essa fosse a única forma de alcançar o status de literatura. Cada
vez mais os blogs são corpus de pesquisas acadêmicas e alvo de “caçadores de talentos”,
mas ainda são, de certa forma, estigmatizados como escrita descartável e pouco ou nada
estetizada.

Etimologicamente, blog é a junção dos termos web (página na internet) e log


(diário de bordo), que em sua composição já aponta para uma explícita contradição. Os
diários escritos em cadernos e/ou agendas, via de regra, encerravam em si segredos
inconfessáveis a possíveis leitores, ao passo que os blogs são escritos na internet de modo
a expor, para qualquer pessoa, suas idiossincrasias. Esta é, porém, uma incoerência
apenas aparente, pois os textos em primeira pessoa não são mais reveladores de uma
“verdade” biográfica capaz de expor alguma intimidade assaz comprometedora; as
escritas de si da atualidade, em especial a autoficção, seja em blogs ou em livros, indiciam
uma verdade outra, nem mais estritamente empírica, muito menos apenas ficcional. Os
textos que circulam na internet, normalmente, são escritos em uma primeira pessoa
performática, que se constrói de modo a suscitar no leitor aquele desejo de conhecer a
obra a partir do “eu” que se cria. Desse modo, o pacto autobiográfico de Lejeune (2008),
tornou-se obsoleto se pensarmos o indivíduo contemporâneo à luz do conceito de
autoficção proposto por Diana Klinger (2007, p. 49), que o desenvolve “a partir da crítica
à noção de representação (Derrida) e de sujeito (Nietzsche)”, e Luciene Azevedo (2007,
p. 48), que, como alternativa ao pacto autobiográfico, sugere o pacto autoficcional, que
“pressupõe sempre a ambiguidade da referência, a sutileza da imbricação entre vida e
obra, um leitor sempre em falso, driblado pela desestabilização de uma escrita de si em
outros”.

Santiago Nazarian, João Paulo Cuenca, Ivana Arruda Leite e Clarah Averbuck são
escritores devidamente editados e adicionados ao cânone em formação da literatura
brasileira contemporânea. Aqui, não está em questão se os quatro são adeptos da
autoficção, se praticam uma prosa híbrida composta por realidade e ficção de modo a
tornar indecidíveis seus limites. O propósito deste ensaio é aproximá-los por outro viés –
o de personalidades públicas. Como tais, são reconhecidos no meio literário, nas

127
faculdades de Letras, em programas de televisão, em feiras literárias e em redes sociais,
mesmo que aqueles que os reconheçam não sejam seus leitores – e jamais venham a ser.
Os quatro, enfim, assumem para si a condição pública de escritores, formada em cada
uma das suas aparições, presenciais ou virtuais. Consciente ou inconscientemente, estes
autores criam uma identidade que, de alguma maneira, os identifica a um público, leitor
ou não – não nos esqueçamos de que Roland Barthes (1988, p. 66), apesar de defender a
morte do autor, admitia-o “nos manuais de história literária, nas biografias de escritores,
nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar,
graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra”. Atualmente, o diário íntimo ao qual se
referia Barthes é substituído pelos blogs e pelas redes sociais, capazes de “devassar” a
“intimidade” dos autores e suscitar o desejo do leitor voyeurista pela vida empírica da
“personalidade” literária. Quando a primeira pessoa assume relevância em sua prosa de
ficção, seja nos blogs, seja na literatura impressa, o cotejo entre vida e obra torna-se mais
interessante para o leitor, iludido por um narrador performático, autoficcional.

Ana Cláudia Viegas (2007, p.18, grifo do original) é muito precisa ao situar o
autor em nosso cenário midiático e rediscutir o estruturalismo. Para a pesquisadora, “ao
lermos um texto, não temos apenas o nome do autor como referência, mas sua voz, seu
corpo, sua imagem veiculada nos jornais, na televisão, na internet. A obsessão
contemporânea pela presença nos afasta da concepção barthesiana desse autor como ‘um
ser de papel’”. Eu acrescentaria que essa “presença” restrita à internet nos aproxima do
autor sem necessariamente nos colocar em contato com sua literatura, como ocorre nas
redes sociais. Nestas, lemos fragmentos de discursos e curiosidades da “vida privada” do
autor; “vemos” seleção de fotografias e demais particularidades “íntimas” e ainda temos
a possibilidade de interação dialógica. Por outro lado, porém, os blogs nos aproximam de
maneira mais estreita, posto que a familiaridade se dá textual e (auto)ficcionalmente, ou
seja, é possível esmiuçar o texto de maneira a encontrar ali semelhanças com a persona
fragmentada que se constrói em momentos estanques e isolados: entrevistas, redes
sociais, aparições públicas, conferindo ao fato episódico o status de narrativa acabada,
sem falar que a ficção, como reza o senso comum, revela mais sobre a vida do escritor do
que uma autobiografia, por exemplo. É nesse sentido que os blogs nos vinculariam mais
à persona construída discursivamente pelo escritor – persona esta deveras fomentada nas
redes sociais, numa espécie de construção identitária ininterrupta e en âbime.

128
É possível que a individuação autoral seja, além de uma maneira inicial de se
tornar conhecido e angariar leitores, uma forma de crítica justamente à necessidade
narcísica e voyeurística da nossa sociedade, uma vez que não é mais possível pensarmos
o sujeito de forma una, inteira, coesa, como o “eu” das Confissões de Rousseau, mas sim
de maneira fragmentária, híbrida, indefinível, autoficcional. Há outras hipóteses que
buscam embasar teoricamente a presença de narradores em primeira pessoa
autoficcionalmente, mas não me ocuparei delas aqui.

No momento, interessa pensar como os blogs impulsionam escritores ainda


desconhecidos para o ambiente literário e suas estratégias de inserção no circuito. Os
autores supramencionados são todos já devidamente conhecidos, portanto, para uma
verificação do processo de reconhecimento ao qual almeja um blogueiro, é pertinente
recorrer a um “anônimo”. A estética do comum vem sendo estudada por ensaístas do
gabarito de Denilson Lopes (2012) e Silviano Santiago (2011). Este último, a respeito da
obra de Lygia Clark, afirma que,

[...] agora, o homem comum começa a chegar à posição de artista.


Nunca o homem esteve tão perto de sua plenitude: ele não tem mais
desculpas metafísicas. Não tem mais nada sobre o que possa projetar-
se. Está livre da irresponsabilidade. Não pode mais nem mesmo negar-
se como ser total. Já que nenhuma transferência é mais possível, resta-
lhe viver o presente, a arte sem arte, como uma nova realidade.
(SANTIAGO, 2011, p. 27-8)
E, inversa e paradoxalmente, Silviano também afirma que o artista encaminha-se
para o status de homem comum. Essa dialética já foi apontada por Walter Benjamin
(1994) no momento em que o pensador refletia que os leitores, ao escreverem para os
jornais, assumiam a posição também autoral. No que diz respeito ao blogs, cada vez mais
é usual que diletantes amadores se valham desse meio de publicação para se
autodenominarem autores igualmente, ao mesmo tempo em que os escritores
reconhecidos como tais, democraticamente, utilizam o espaço virtual para escreverem.

Dentro do universo infinito de blogs literários na internet, pincei o Resultado


Desastroso (http://resultadodesastroso.blogspot.com.br/), escrito pela ainda aspirante a
escritora profissional Mariana Bernardes, e que servirá para analisarmos as estratégias
empregadas pela autora com o intuito de se afirmar uma escritora e se tornar conhecida,
aumentando seu número de leitores e ambicionando a publicação impressa.

Inicialmente, quando o li pela primeira vez, duas coisas me chamaram a atenção: i)


ser um blog apenas de poemas – e alguns bons poemas, diga-se de passagem – e ii) escrito

129
por uma poeta muito jovem, com aproximadamente 17 anos. Passei a acompanhar com
bastante regularidade seus poemas e resolvi lhe perguntar como surgiu o interesse pela
poesia. A resposta que obtive foi a de que seu pai sempre foi um amante dos versos e a
incentivava a escrever desde pequena.

No blog, os poemas, com o tempo, cederam espaço para a prosa e, posteriormente,


também foram publicados em livro, em maio deste ano, por uma editora que trabalha com
tiragem por demanda, intitulado Demasias. Abaixo, o poema que dá título ao livro, em
um post do dia 2 de abril de 2013:

Demasias

Cresci assim:
Exagerada.
Por vezes me sentia demais
Até quando queria sentir nada.
Vivi mais do que deveria
Em um tempo desarranjado.
Me criei desarranjada.
Tentei me encontrar fazendo de tudo
Fui o mais fundo que poderia chegar,
Ceguei.
Em um repentino despertar,
vi-me desesperada.
Mudei, mudei e continuarei mudando
Mas no meio disso encontrei um lar:
As palavras, a poesia.
Desde então vivo
E dou vida à tudo em
Demasia.
O poema desnuda um sujeito perdido, angustiado, cego, desesperado até o encontro
com as palavras, com a poesia. E esta encontra abrigo, num primeiro momento, no blog,
ou melhor, ela nasce na internet, tem sua primeira publicação no diário virtual, que não
vem a ser um resultado desastroso por dois motivos iniciais: o primeiro porque foi lida,
ou seja, o blog cumpriu seu papel de espaço para publicação, como diria Averbuck; o
segundo porque redundou em livro, recebendo, ainda que de forma insatisfatória, haja
vista a nenhuma publicidade e a tiragem diminuta da primeira edição, a legitimação da

130
impressão. Do mesmo modo que a poesia nasce na internet, é no espaço virtual que a
persona da blogueira encontra fertilidade para surgir e se autoficcionalizar, performando
uma identidade autoral e plural.

Apesar de ser um livro de poesia o primeiro fruto material do ambiente virtual de


Mariana Bernardes, é com a prosa que ela melhor exemplifica a necessidade de se
reconhecer como escritora e a angústia de perceber a ausência de “portas abertas” para
um empreendimento que, à primeira vista, teria sido bem-sucedido. Se por um lado a
edição impressa legitima o mesmo texto publicado anteriormente no blog, por outro ainda
não é suficiente. É muito fácil qualquer autor lançar um livro hoje porque são muitas as
editoras por demanda e as condições de pagamento são razoáveis, isto é, para um texto
ser publicado, ele não precisa mais, dependendo da editora, naturalmente, ser aprovado
por um conselho editorial; sua “qualidade literária” está em segundo plano e o mais
importante é que a mercadoria “livro” dê o retorno financeiro esperado. Penso que o
sucesso da jovem blogueira teria sido completo – isso ainda pode se dar – caso ela
conseguisse ingressar no circuito literário e alcançasse o “espaço biográfico”, concedendo
entrevistas e atingindo a grande mídia. Quais foram suas estratégias para atingir esse
objetivo?

Houve grandes mudanças iniciais no Resultado Desastroso. O primeiro diz respeito


ao layout do blog, originalmente ilustrado com várias caveiras, talvez em diálogo com o
próprio título. Estas cederam espaço para um fundo menos mórbido e mais lúdico,
suscitando no leitor outra imagem da escritora. A poesia foi substituída pela prosa –
pequenas crônicas de sua vida corriqueira, como se ela buscasse, através de uma nova
performance, angariar mais e variados leitores. Os posts em prosa narram o dia a dia de
Mariana, evidenciando o voyeurismo e, sobretudo, o exibicionismo de nosso tempo.
Evidentemente, o leitor não tem como saber se os episódios narrados ocorreram de fato,
mas, autoficcional ou autobiograficamente, a persona autoral é mais explicitamente
construída. Em diálogo com a blogueira, fui informado de que ela pretendia escrever
sobre as coisas que acontecem a uma adolescente para que os demais jovens de sua idade
se identificassem com ela e assumissem as histórias como suas também. Nada ingênua
essa artimanha para alguém de sua idade.

Estas, porém, não foram as únicas modificações com o intuito de ampliar seu
público leitor. Ela passou a, eventualmente, publicar entrevistas feitas com algumas
pessoas ligadas à literatura e às artes em geral, como o poeta e também blogueiro Flávio

131
Corrêa de Mello, o artista plástico Solano Guedes e a escritora e blogueira Thereza
Christina Rocque da Motta. Mariana Bernardes, em texto intitulado Escritores sem
vergonha, postado no dia 3 de abril, reflete sobre o que necessita um escritor:

Nas últimas semanas, em uma tentativa de dar um up no meu


querido blog, comecei a fazer entrevistas, comecei a me
comunicar com editoras, outros blogs, sugerir parcerias e coisas
desse tipo. Nas entrevistas, em particular, sempre faço uma
pergunta: O que um escritor precisa ter? E pensando aqui, na
minha varanda, dia após dia, cheguei à uma conclusão.
Quando comecei a escrever o blog, há uns cinco anos, achava
que escritores precisavam ser pessoas muito cultas e
intelectuais. Depois de uns dois anos comecei a achar que
escritores, poetas principalmente, precisavam ser muito
tristes e infelizes, pois era o que funcionava para mim. [...]
Comecei as crônicas, já em uma fase ranzinza, crítica e sarcástica.
Eis que me veio uma realização: é isso que quero ser quando
crescer! Não quero ser médica, atriz e nem mesmo jornalista.
Quero ser escritora. Com isso em mente, dúvidas e mais dúvidas.
A maior delas sempre foi: o que um escritor realmente precisa ter
para dar certo? Minha resposta é muita falta de vergonha na cara.
[...] É preciso meter a cara, enviar manuscritos, crônicas e poesias
sem medo de receber não’s, pois eles vêm. É necessária certa
exposição, pois escrever, pelo menos para mim, sempre foi me
mostrar sem medo, me colocar inteira em poucas ou muitas
palavras sem ter vergonha das partes mais obscuras de mim.
Talvez seja isso que os novos escritores precisem: falta de
vergonha na cara e um blog para postarem seus devaneios. Então,
queridos amigos, falo aqui para toda a internet e que fique
registrado por toda a eternidade: Sou uma escritora sem
vergonha! (grifo meu)
O texto acima é bastante pertinente e exemplar para o propósito deste ensaio.
Inicialmente, a blogueira parte de uma imagem de escritor construída por si própria
enquanto leitora, ou seja, sua escrita, a priori, já nasce com a preocupação extratextual,
com um olhar atento para o que deve ser um escritor ou poeta, independentemente do
conteúdo literário. De acordo com Mariana, generalizando seu conceito, há uma visão
estereotípica do mundo das letras e, pensando nela, buscava uma performance que a
distinguisse dos demais, ou, ao menos, os equiparasse. Ao dizer que “escritores
precisavam ser pessoas muito cultas e intelectuais” e idealizar entrevistas com seus pares,
ela imiscuía-se no universo do qual quer fazer parte. Consciente de que ainda precisa
galgar um percurso arenoso, porém, declara que são necessários “falta de vergonha na
cara e um blog para postarem seus devaneios”. E finaliza reconhecendo-se “uma escritora

132
sem vergonha”. Mas se ela já é uma escritora, o livro serviria apenas como um
legitimador? Por que o blog não se basta? Haveria algum prejuízo canônico para a
admissão dos textos publicados em blogs serem considerados literatura? Lembremo-nos
de que os modernistas, que questionaram o cânone vigente à época, dele fazem parte hoje.

As entrevistas publicadas no Resultado Desastroso, penso eu, além de tornar, a seu


ver, o blog mais interessante, ajudavam a construir para si a performance de uma pessoa
mais concatenada e mais enturmada com nomes do meio ao qual ela pretendia ter acesso.
Até o momento, porém, foram as únicas três entrevistas. Na minha opinião, este é um
excelente exemplo da preocupação de Sérgio de Sá (2010), pois o blog que continha boas
poesias, que renderam inclusive uma publicação impressa, abdicou de textos autorais para
dar voz a terceiros. É claro que, na condição de entrevistadora, Mariana Bernardes
também estava textual e ficcionalmente presente, todavia não mais como protagonista.
Ademais, qualitativamente, sua prosa está aquém da sua poesia.

Finalmente, como último recurso em busca de autopromoção, como vários


escritores já fizeram, a jovem e ambiciosa blogueira criou uma página no Facebook para
o seu blog e atingiu o número de 2.540 pessoas “curtindo” seu diário virtual. Esse número
ainda não lhe rendeu, ao que parece, o resultado esperado, mas não é nada de desastroso,
principalmente se pensarmos, como Averbuck, que ela está sendo lida, apesar de num
meio de publicação virtual, ou seja, sem a legitimidade esperada.

Textualmente, ela fornece bons exemplos de sua inquietação em se tornar uma


escritora, evidenciando que o ato de escrever em blogs não lhe confere tal posição. No
dia 20 de maio de 2013, ela escreve “Diário de notas sem texto”, no qual diz:

A rede social consiste em escrever para si mesmo esperando que


alguém vá responder ou replicar seus devaneios particulares. [...]
Seguindo a linha da honestidade que prometi há duas notas atrás,
irei confessar uma coisa: escrevo para ser lida. Não irei perpetuar
a mentira de que escrevo para mim, pois desde que comecei a
escrever mantenho um blog que faço bastante questão de
divulgar.
É explícita a diferença entre os diários íntimos mencionados por Barthes e os diários
virtuais deste século, quando se escreve em busca de leitores e esforça-se para alcançá-
los. Para isso, uma estratégia comumente empregada pelos blogueiros que ainda não
possuem leitores fiéis é avisar, via redes sociais, que há um novo texto disponível à espera
de leitura. Como visto no caso de Nazarian, um simples comentário em seu perfil do
Facebook pode se multiplicar através das redes de amizades que se intercomunicam.
133
Três dias antes do post acima, Mariana escreveu um outro, homônimo:

Toda a minha personalidade consiste em ser mais uma pobre


jovem rica, perdida em suas pretensões e com a insistente mania
de ser pouco realista, apesar de extremamente crítica. Começo a
escrever essas notas despida de personagens. Aqui represento
a mim mesma, perdida nos meus quase vinte anos e no, ouso
dizer, inferno de ser jovem nessa geração. Não pretendo
mentir nas notas que se seguem, o que eventualmente pode
acontecer, então começo contando uma verdade vergonhosa:
tenho o sonho secreto de ser uma voz da geração que tanto
afirmo detestar. Como já disse, aqui não sou nenhum
personagem e me atrevo a escrever à mão em uma folha sem
linhas.
Como a maioria da minha idade sonho com uma carreira
financeiramente inviável, o que desagrada secretamente meus
pais. Quero escrever livros, eles querem que eu seja jornalista.
[...]
Aprendi quando pequena que não é de bom tom falar muito sobre
si, então apesar de escrever notas completamente biográficas e
um blog, vou fingir ser um exemplo de etiqueta e parar antes de
me tornar rude. (grifo meu)
Apesar de “pouco realista”, a autora se despe de personagens, embora mantenha a
caracterização de uma personagem-escritora ou escritora-personagem, porta-voz de sua
geração. Sua ambição é a de “escrever livros”, ou seja, a escrita em blogs ou “à mão em
uma folha sem linhas”, ou ainda a jornalística, mesmo com enorme circulação, como é o
caso de vários periódicos, não lhe agrada. O desejo está nos livros. São eles, mesmo para
alguém que publica regularmente na internet, que conformam um escritor.

Para ela, a realidade é complicada, motivo suficiente para seguir a lição aprendida
quando criança e, paradoxalmente, falar de si, já que se autoficcionaliza. As “notas
completamente biográficas” compõem uma personagem de si própria, reconfigurando e
reambientando sua vida empírica no universo ficcional, afinal, de acordo com Diana
Klinger (2007, p.50), “o que interessa na autoficção não é a relação do texto com a vida
do autor, e sim a do texto como forma de criação de um mito, o mito de escritor”.
Reinventando-se, Mariana Bernardes oferece a seus leitores uma imagem construída
discursivamente, suficiente para desvinculá-la de sua vida empírica, mas, apesar de
possuir Facebook, como Nazarian, Cuenca, Ivana e Averbuck, ainda está longe do
reconhecimento público de ser uma escritora, pois falta-lhe a circulação na grande mídia,
uma das grandes fontes de legitimação autoral. Isso não a impede, porém, de prosseguir

134
investindo em sua performance: inicia explicando-se melhor e finaliza fingindo ser o que
não é.

Para quem acredita que o escritor deve ser sem-vergonha, ou seja, não deve recear
a exposição textual, a autora, em post intitulado Débil catarse, publicado no dia 2 de
maio, revela seu desconforto mediante uma crítica sofrida. O texto, todos sabemos, uma
vez publicado, ganha autonomia e foge do controle de seu autor; cada leitor terá uma
interpretação e o recepcionará de formas diversas; críticas positivas e negativas fazem
parte do universo do escritor e, para dele fazer parte, é mister saber recebê-las. Neste post,
Mariana comenta como se frustrou com um comentário pejorativo de um leitor. Da
euforia advinda com a notícia da publicação, rapidamente passou à decepção das duas
únicas palavras que seu crítico escreveu – e que intitularam o post: “débil catarse”. Se por
um lado a blogueira, inicialmente, reagiu mal à crítica, por outro, na segunda parte do
post, demonstrou amadurecimento:

Se eu tivesse um espelho naquele momento aposto que meu rosto


pareceria estar derretendo de desgosto. Quer dizer então que
escrevi um texto débil? De acordo com o leitor, sim.
Primeiro o xinguei mentalmente apenas para perceber que cada
um tem direito à sua opinião, que talvez o texto não passasse
mesmo de um desabafo desorganizado e que essa crítica poderia
vir a me ajudar. Normalmente o que me causa desconforto é o que
mais me ajuda, e eu sei como esse comentário me causou
desconforto.
O que percebo é que escrevo para pessoas. Deixei de escrever só
para mim quando fiz um blog e comecei a mandar meus textos
para revistas, jornais e editoras. Opiniões chegarão e isso é bom,
quer dizer que pelo menos alguém lê minhas débeis catarses.
Ainda tenho muito que aprender e sei bem que o caminho para
onde quero chegar como escritora é longo, talvez mais do que
imagino, porém uma crítica que não me agrada e não me faz virar
o Pavão que sou me ajuda muito mais que elogios.
A partir de agora fico mais atenta às debiloidices que decido
escrever e principalmente publicar. Com exceção desta que aqui
posto, é claro.
A consciência de que escreve para pessoas e que as críticas podem lhe ajudar veio
em um bom momento, exatamente a 26 dias do lançamento de seu primeiro livro,
Demasias. Uma semana antes, porém, ela escreve sobre suas expectativas para a estreia.
A inquietação da autora debutante remete ao terreno do desconhecido, haja vista que a
publicação e a recepção textuais na internet são já conhecidas, mas as mesmas em edição

135
impressa, para um autor inédito, são incertas. Além disso, considerando a legitimidade
conferida ao livro, seu insucesso seria muito mais severo, implacável.

Curiosamente, após o lançamento de Demasias, Mariana Bernardes publicou


apenas um post em seu blog, no dia 14 de junho – trata-se de outra poesia, Remédio, título
bastante sugestivo. Em contato com a autora, fui informado de que ela está dando um
tempo para que as ideias se arrumem novamente (sic).

Seja qual for o motivo da pausa momentânea na atualização do Resultado


Desastroso, vale a reflexão de que a literatura continua a ser escrita de forma cada vez
mais frequente e democrática. A respeito da crítica conservadora de que blogs não devem
ser considerados literatura, penso que esse estigma, senão imediatamente, em breve será
superado. As crônicas também já foram estigmatizadas como escrita descartável e
meramente referencial. O desassossego de Clarah Averbuck em defender uma coletânea
de posts pode ser justificado com as inúmeras antologias de crônicas publicadas e
referendadas como de clara qualidade literária – e boa parte delas, senão todas, escritas,
originalmente, em jornais, um veículo menos nobre, literariamente, do que o livro, como
hoje ocorre com os blogs. Podemos estender o estranhamento, desconforto e resistência
a novas formas textuais para além das crônicas. Em busca do tempo perdido, de Proust,
e Memorial de Aires, de Machado, são dois exemplos de obras-primas que tiveram um
recepção controversa em função da inadequação à produção canônica de então, para
citarmos apenas dois casos. Já deve ser hora de analisarmos a recorrente escrita blogueira
com outros olhos, mais interessados em discutir a literatura deste século levando-se em
conta seu contexto sociocultural. Mais que desqualificar os blogs, faz-se necessário
compreender quais as alterações literárias decorrentes desse novo meio de publicação e
como este dialoga com a publicação impressa, pois há muitos pontos em comum.

REFERÊNCIAS

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Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

137
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reinvenção do escritor: literatura e mass media. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010 (p. 145-169).

SANTIAGO, Silviano. Sentimento da vida, sentimento do mundo. Princeton, 2011 (Mimeo).

VIEGAS, Ana Cláudia. O “retorno do autor”: relatos de e sobre escritores contemporâneos. In:
VALLADARES, Henriqueta do Coutto Prado (Org.). Paisagens ficcionais: perspectivas entre o
eu e o outro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

138
A PERFORMANCE (AUTO)BIOGRÁFICA NA CONSTRUÇÃO
DA MEMÓRIA EM OS DIAS COM ELE1

THE PERFORMANCE (AUTO)BIOGRAPHICAL IN THE


CONSTRUCTION OF MEMORY IN THE FILM OS DIAS COM ELE

Bruno Saphira2

Resumo: O presente artigo é composto por uma analise do filme Os dias com ele com
foco na construção da memória íntima e coletiva que, na obra em questão, é feita através
dos elos entre biografia e autobiografia. Uma espécie de autobiografia criada a partir da
personagem biografada. A diretora, Maria Clara Escobar, traça uma imbricada relação
entre esquecimento e memória, afetiva e histórica, ao filmar o encontro com o pai, com
quem não conviveu, Carlos Henrique Escobar, um dramaturgo e intelectual que foi preso
e torturado pela ditadura militar. As relações se complexificam pela consciência
performativa do pai que tensiona a condução do filme e questiona sua validade quando
avalia o que pode e deve ser dito e mostrado. Esse artigo parte das discussões sobre as
indistinções entre a obra biográfica e autobiográfica e traz como elemento complicador
dessa relação, pensadas no campo do cinema, as noções de performance e mise en scène
na obra documental, que acentuam o debate sobre a materialidade expressiva do filme e
seus elos de representação da realidade que compõe e ultrapassa o filme.
Palavras-chave: performance; autobiografia; documentário.

Abstract: The present article consists of an analysis of the film The days with him,
focusing on building the intimate and collective memory that in this film is made through
the links between biography and autobiography. A kind of autobiography created from
biography character. The director, Maria Clara Escobar , provides an intertwined
relationship between forgetfulness and memory, affective and historical , to film the
meeting with her father , with whom they do not lived , Carlos Henrique Escobar ,
playwright and intellectual who was imprisoned and tortured by the military dictatorship
. The relationships become complex by performative awareness that strains father driving
the film and questions its validity when assessing what can and should be said and shown.
This article begins by discussions about the lack of distinction between the biographical
and autobiographical work and brings a complicating this relationship, thought in the field
of cinema element, the notions of performance and mise en scène in documentary work,
which accentuate the debate on the expressive materiality the film and its links
representation of reality that makes up the movie and beyond.
Keywords: performance; autobiography; documentary.

1
Mesa-redonda Memória e Resistência II.
2
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Vinculado ao Laboratório de Análise Fílmica (LAF).
139
INTRODUÇÃO

Maria Clara Escobar, diretora e personagem do filme Os dias com ele (2013), nos
diz ao tentar dizer a seu pai, Carlos Henrique Escobar, personagem principal, as
motivações que a fizeram propor o encontro entre eles para a feitura da obra: é sobre dois
silêncios que me compõem. Um enquanto filha, que não teve a presença e não conhece a
história do pai, e o outro enquanto cidadã, que busca se engajar na reescrita de um fato
histórico caro ao país que teve seu pai como atuante e sobre quem recaiu as mais duras
penas. Ele foi preso político nos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil e torturado
pelas forças repressoras do regime.

Esse duplo movimento da memória, estimulado por silêncios históricos e pessoais,


aponta para um ato autobiográfico que nesse caso só pode se constituir pela fala do outro.
Através de uma construção biográfica. Tal arranjo, já com certa complexidade, se
complexificará ainda mais pelas imbricações que as características da personagem
principal, o pai Carlos Henrique Escobar, e do fato histórico revivido pelo relato,
principalmente a tortura, trarão para o filme.

Em relação à personagem principal, sua atuação como dramaturgo, filósofo,


conferencista traz para sua expressão o que caracterizo como uma consciência
performativa, que, no encontro com sua filha, representará um embate em torno de como
deve ser conduzido o filme, como as cenas devem ser desenhadas, o que e como deve ser
falado. No caso da tortura e suas decorrências, abre-se outro campo de tensão que aponta
principalmente para o embate na construção das memórias coletivas e aos silêncios
históricos que os conflitos e atrocidades impõem.

Tal entrelaçamento de relações só é possível no filme pela postura da cineasta ao


não apenas se colocar enquanto personagem, mas nos expor todo o processo conflituoso
de embates, negociações, reflexões em torno do que pode ser a obra, e se ela pode mesmo
dar conta de fazer falar esses silêncios dolorosos que compõem os dois.

UMA AUTOBIOGRAFIA ATRAVÉS DO OUTRO

A postura de Maria Clara Escobar é precisa em seu desafio autobiográfico, apesar


de haver hesitação ao se expressar diante de um pai questionador. Sua possibilidade de
apresentação e autoconstrução no filme se dá pela memória de seu pai, em confronto ou
acordo à sua memória vivida ou imaginada. Ela enquanto cidadã, cineasta, precisa se
140
engajar no momento político do país, reescrever momentos ainda obscuros, pouco ou não
expostos. E o faz através do relato de vida de seu pai, que pouco conhece, com quem não
conviveu. Nos termos de Bakhtin (2003) esse é o seu recorte de auto-objetivação para tal
obra artística. E esse trânsito entre um eu-para-mim e o outro é próprio, ainda segundo o
autor, da constituição do valor (auto)biográfico.

É interessante notar a proximidade da experiência de construção (auto)biográfica


em Os dias com ele com a formulação de Bakhtin sobre a presença desse outro na
construção de nosso eu, ou na inserção do eu-para-mim num plano narrativo em que
compartilhamos ou compomos nossas experiências, justamente por estarem sempre
atreladas à outros. À narrativa de outros. Num dado momento do capítulo “A
autobiografia e a biografia”, da obra A estética da criação verbal, ele nos diz:

Uma parte considerável da minha biografia só me é conhecida através


do que os outros - meus próximos - me contaram, com sua própria
tonalidade emocional: meu nascimento, minhas origens, os eventos
ocorridos em minha família, em meu país quando eu era pequeno (tudo
o que não podia ser compreendido, ou mesmo simplesmente percebido,
pela criança). Esses elementos são necessários à reconstituição um tanto
quanto inteligível e coerente de uma imagem global da minha vida e do
mundo que a rodeia ora, todos esses elementos só me são conhecidos -
a mim, o narrador da minha vida - pela boca dos outros heróis dessa
vida. (BAKHTIN, 2003, p. 168)
Acentuo tal presença e constituição através do outro familiar pelo que o filme nos
traz. A autora fala em construir uma memória do que ela não viveu junto ao pai e
demonstra essa falta ora oscilando, por vacilação, sua performance entre filha e cineasta
ora por compor sequências com imagens de arquivo que remetem à sua infância, mesmo
que não sejam registro familiares seus. Em uma das sequencias, a diretora exibe uma serie
de pequenos filmes de família, claramente de arquivos variados, de diferentes famílias,
acompanhados de sua voz repetidamente dizendo: “este não é o meu pai”.

Quanto ao lado mais claramente biográfico, o biografado Carlos Henrique Escobar,


expressa uma forte resistência a essa construção conjunta de uma memória familiar e
resiste também à forma de trazer à tona uma memória política coletiva por discordar da
abordagem proposta pela cineasta. Essa resistência, porém é feita com proposições do
quê e como deveriam ser abordados os temas que lhe parecem importantes expor num
filme. Essas proposições são acolhidas em parte pela cineasta, o que torna esse percurso,
de embates e acordos, um tipo de construção compartilhada da biografia de ambos. Um
tipo possível de “escrita em colaboração”, como identifica Phillipe Lejeune (2014), parte

141
das obras que não se enquadrariam em sua definição stricto sensu de autobiografia. Obras
em que “o esforço da memória e o esforço da escrita seriam asseguradas por pessoas
diferentes” (FREIRE, 2003, p. 21). No caso de Os dias com eles, guardados os lugares de
autor e personagens, pode-se atribuir parte dessa escrita também à personagem principal
justamente por ter cenas sugeridas incorporadas ao filme e que significativamente
compõem a memória que ela quer transmitir da forma como acha adequado.

MEMÓRIAS NÃO VIVIDAS PARA UM FILME DE FAMÍLIA

É interessante notar em Os dias com ele esse duplo convite à sua fruição a partir
das formulações do teórico Roger Odin (2005) em torno de seu método semiopragmático
de compreensão de como os textos são construídos e os efeitos dessa construção que
seriam uma (auto)biografia documental e um filme de família.

Quanto à construção (auto)biográfica documental Odin levanta duas principais


questões de identificação – trazidas das ideias de Lejeune através do pacto autobiográfico
– que operam em nossa recepção dos filmes. A primeira gira em torno da possibilidade
de aferirmos se a obra é uma autêntica autobiografia ou uma narrativa autobiográfica
inventada; e a segunda, de que forma a obra se constrói enquanto uma autobiografia.

À primeira questão, Lejeune conclui que unicamente com elementos exteriores à


obra podemos aferir a autenticidade de uma autobiografia. Quanto à segunda, trata-se de
se voltar para os elementos da própria obra para analisar como esse Eu construído
narrativamente se faz autobiográfico. No caso específico de Os dias com ele, a partir do
duplo jogo entre biografia e autobiografia através do qual se estabelece sua narrativa,
possivelmente se dê um embaralhamento dessas categorias, principalmente no que se
refere à presença da autora em sua proposição inicial.

No plano da memória íntima, Maria Clara não nos relata acontecimentos de sua
vida que remetam a fatos externos – o que possibilitaria uma aferição de sua veracidade.
Ela nos fala em construir uma memória a partir da falta de vivência junto a seu pai,
metaforizada como um silêncio pessoal. Há algo que falta para ela, algo que ela busca
para a elaboração de si. E tal propósito não pode ser pautado por uma busca de verdade,
já que se trata de uma não vivencia. Aliado a isso temos a construção no filme desse
propósito, e do fazer o encontro entre pai e filha falar, suprindo os silêncios da diretora,

142
absolutamente exposta através de sobras de plano onde vemos e ouvimos o que seriam a
preparação e a avaliação posterior da cena pró-fílmica, digamos.

Esse aspecto é marcante no filme, e faz com que seu aspecto documentarizante, no
dizer de Odin (2005), seja inequívoco. Não há uma sequencia sequer, dos diálogos entre
diretora e protagonista, em que não acompanhemos a preparação e o desfecho da cena.
Porem essas cenas que nos remetem aos bastidores da produção do filme o constituem de
forma central. Essa cumplicidade é reveladora dos embates na construção das memórias
e na exposição de nosso teor performático, principalmente quando nos tornamos
duplamente personagens. Performatividade que se volta para a possibilidade do filme
enquanto realidade em si, para além ou aquém do aspecto de representação que também
o atravessa.

Quanto ao segundo convite apontado acima, Os dias com ele curiosamente nos traz,
em meio a tantas questões, embates e imbricações, um aspecto formal muito fortemente
de filme de família, e principalmente por dois aspectos. O primeiro está relacionado a
duas características da exposição do filme. Do quê e de como são compostos seus planos.
Inicialmente, a de extrema abertura de exposição do processo de produção do filme, mas
não apenas isso. Essa mostração traz características de quase amadorismo técnico. Em
muitos momentos vemos que a cineasta, que segundo os créditos do filme conduziu
sozinha as filmagens, abdica de tentar estabelecer um enquadramento, ou ajustes da
exposição fotográfica, para não perder o que o instante da circunstância
vivenciada/registrada poderia trazer para o filme. E, em segundo lugar, as muitas
sequências que dialogam com esses momentos de entrevistas e que nos mostram o dia a
dia do que fora esse encontro entre pai e filha, seriam momentos de respiro entre as
tensões geradas pelos embates, mas que ganham maior relevância por nos ambientar uma
vivência que parece ser o propósito maior da cineasta. Ao menos do que lhe é
afetivamente caro, a ausência de seu pai.

A essas sequências, onde vemos em muitos momentos o pai lendo jornais,


cochilando na sala de casa, dialogando com sua atual mulher e seu filho mais novo, o dia
de seu aniversário, seus gatos estimados, se somam a utilização de imagens de arquivo.
Arquivos que não são pessoais, mas que compõem uma dimensão afetiva que alimenta e
dá corpo fílmico ao silencio da cineasta. Um duplo movimento por também acentuar o
desejo de convivência que fica latente na exposição desses momentos do cotidiano da
cineasta na casa de seu pai.

143
ENTRE PERFORMANCES

Proponho trazer para essa abordagem uma outra noção que tem sido trabalhada no
cinema documentário e que pode enriquecer o olhar analítico sobre os filmes
autobiográficos. Trata-se, pois, da noção de performance na composição da cena
documental. O termo, assim como conceituado pelo sociólogo Erving Goffman (2009)
diz respeito a um dado constitutivo das relações intersubjetivas e que não se vinculam às
noções de verdade e mentira. Seria a expressão das estratégias de projeção de uma
imagem de si em nosso meio social, forjada pela trama entre a maneira como nos
concebemos e como gostaríamos que nos concebessem.

A pesquisadora Mariana Baltar (2010), que trouxe e problematizou tais noções de


Goffman para o campo do cinema documentário, considera central a performance na
presença em cena da personagem documental. Segundo nos diz:

[...] o estatuto e o dilema do personagem do documentário – sujeito


socialmente localizado em interação com outro sujeito socialmente
localizado [...] – está no constitutivo processo de formulação e
negociação de uma narrativa de si que fica expressa por intermédio de
uma performance que lhe é solicitada pela experiência do encontro
proporcionado pelo documentário; esteja tal encontro explícito ou não
no filme. (BALTAR, 2010, p. 224)
Em Os dias com ele esse encontro é explicitado pelo filme, e essa exposição é
responsável pela evidência do caráter perfomativo, principalmente do dramaturgo na
negociação da cena que se constrói. Baltar ressalta que há na experiência fílmica uma
especificidade na relação intersubjetiva criada entre personagem e diretor/equipe: o fruto
dessa vivência estimulada se tornará público. Há então um duplo encontro da personagem
– um imediato, com o diretor, e o outro mediatizado, com um público previsto – e tal
arranjo é determinante para sua performance.

Jean Louis-Comolli (2008) também identifica na auto-mise-en-scène da


personagem documental uma consciência da imagem que pode ser construída através do
meio fílmico. E tal saber a faz partilhar da experiência necessariamente de outro modo,
afinal, como ele nos diz: “Como não observar que em nossos dias qualquer um de nós
tem um estoque de imagens para administrar?” (COMOLLI, 2008, p. 53).

A consciência performativa de Carlos Henrique Escobar em Os dias com ele traz


um aspecto diferente. Ele não apenas age como gostaria de ser mostrado, ele intervém e

144
propõe como a cena onde atuará deve transcorrer. A personagem tensiona e desestabiliza,
ao menos no momento da filmagem, o lugar da direção. Que por fim, assumindo
novamente o desenho do filme na montagem, expõe as proposições e atuações da
personagem – às vezes dentro de um mesmo plano sequência – e evidencia o caráter
constitutivo da performance na cena.

As escolhas da personagem não apontam para o que ela não viveu, elas revelam
suas escolhas de como gostaria de ser lembrada, do que lhe parece importante registrar e
sobre tudo da forma de compor esse registro. Não há e nem poderia haver inverdades em
suas investidas, em suas performances. Há busca de memória, imaginação, fábula,
provenientes do que para ele é expressão de uma autenticidade. Pode-se pensar os
embates do filme a partir do prisma da performance, de uma disputa que se estabelece
por conta do caráter propositivo da personagem em querer dirigir sua biografia. De saber
exatamente qual dentre as suas possíveis performances gostaria de mostrar.

Há convivência do que seriam regimes de performance diferentes durante todo


filme e, como dito anteriormente, muitas vezes dentro da continuidade de um mesmo
plano não nos remete necessariamente a uma diferenciação de autenticidades entre elas.
Tais performances, a partir da compreensão de Goffman, e mais especificamente em
nosso caso, da aplicação dessa compreensão ao campo do documentário, seriam as
possibilidades de materializar enquanto expressão externa as personagens possíveis que
compomos e nos compõem. Seria, então, mais pertinente avaliar as diferenças e efeitos
na composição do filme, de suas cenas, entre a simulação que Carlos Escobar faz de uma
de suas intervenções numa plenária partidária durante a ditadura de um relato que se
reporta ao mesmo episódio como um fato analisado. Seria correto afirmar que a simulação
nos faz desconfiar de sua veracidade e não o relato?

Através de análise de Os dias com ele, ao menos, pode-se dizer que não. Os regimes
de performance parecem evidenciar as diversas possibilidades de expressão de uma
pessoa/personagem no encontro proporcionado pelo filme, ao passo que estimula um
olhar sobre o filme documentário, qualquer um deles, enquanto superfície de expressão
própria, que não traz necessariamente enquanto efeito ou questão o que estaria para além
da própria experiência de fruição.

145
EMBATES DE MEMÓRIA

Os dias com ele se compõe também em torno de trazer à tona memórias


subterrâneas de um passado recente e caro à história do país. Estabelecendo um campo
de disputa de memórias na construção da memória coletiva, como identifica e analisa o
sociólogo Michael Pollak (1989). E esse esforço não diz respeito apenas às
impossibilidades de expor novas versões sobre fatos numa esfera pública de
compartilhamento de relatos e análises sobre os acontecimentos, mas dos silêncios que
se impõem aos sujeitos que viveram direta e indiretamente momentos traumatizantes para
os indivíduos e para as coletividades.

Guardadas as dimensões e especificidades, cito um trecho da análise de Michael


Pollak sobre eventos decorridos durante a segunda guerra, mais especificamente
provenientes da experiência de sobreviventes judeus aos campos de concentração,
abordados no texto de título “Memória, Esquecimento, Silêncio”, ele nos diz:

Em face dessa lembrança traumatizante, o silêncio parece se impor a


todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas. E algumas vítimas,
que compartilham essa mesma lembrança "comprometedora",
preferem, elas também, guardar silêncio. Em lugar de se arriscar a um
mal-entendido sobre uma questão tão grave, ou até mesmo de reforçar
a consciência tranquila e a propensão ao esquecimento dos antigos
carrascos, não seria melhor se abster de falar? [...] A essas razões
políticas do silêncio acrescentam-se aquelas, pessoais, que consistem
em querer poupar os filhos de crescer na lembrança das feridas dos pais.
(POLLAK, 1989, p. 06)
Carlos Escobar ao ser questionado pela primeira vez por sua filha para que relate
sua experiência de tortura nos diz, em meio a um longo preâmbulo: “estamos falando de
uma coisa em que as imagens não tem muito poder. Estamos falando de uma coisa em
que as palavras se perdem, através das metáforas e singularidades...” e conclui essa fala
dizendo “e se você for torturada, você não vai saber me falar direito”. Tal silêncio é
quebrado num segundo momento quando a cineasta insiste pelo relato afirmando a
importância dele para a história do país. Uma história que deve ser revista, reescrita.

Os dias com ele é especialmente estimulante para o debate por trazer um contexto
em que as categorias trazidas para a análise são fortemente interligadas. São expressas
através dos embates entre pai e filha na construção do filme que tem como finalidade
inicial, anunciada pela diretora, suprir dois silêncios que a compõem enquanto filha e
cidadã. Os elos entre uma memória particular e uma memória pública atravessam a obra,
que traz na performance do pai e na mise en scène possível aspectos emblemáticos das

146
possibilidades e formas de construção dessas memórias. Forma essa que se torna
emblemática nas recusas e proposições de Carlos Escobar no encontro conflituoso com
sua filha para a realização do filme. Como criar um discurso, como criar uma imagem a
partir de silêncios tão caros?

Em uma das sequências mais fortes ouvimos a recusa do dramaturgo em ler a ordem
de sua prisão emitida pelos militares. A discussão entre pai e filha se dá de forma
contundente e atrás das câmeras. Na imagem apenas uma cadeira vazia à espera da
personagem. Ele se nega a participar da cena imaginada por ela que, depois de sua saída,
ocupa o lugar previsto para ele e, bastante constrangida, lê o documento. E é assim que
em Os dias com ele se dá corpo a uma memória.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A autobiografia e a biografia. In: Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

BALTAR, Mariana. Cotidianos em performance: Estamira encontra as mulheres de Jogo de


Cena. In: MIGLIORIN, Cezar. (Org.). Ensaios no real. Rio de Janeiro: Azougue, 2010 (p. 217-
234).

COELHO, Sandra Straccialano; ESTEVES, Ana Camila. A narrativa autobiográfica no filme


documentário: uma análise de Tarnation (2003), de Jonathan Caouette. In: Doc Online: Revista
Digital de Cinema Documentário. Disponível em: <http://www.doc.ubi.pt/09/doc09.pdf >.
Acesso em: 04 de nov. de 2016.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder - A inocência perdida: cinema, televisão, ficção,


documentário. Belo Horizonte MG: Editora UFMG, 2008.

FREIRE. Marcius. Jean Rouch ou o filme documentário como autobiografia. Uma introdução.
In: CATANI, Afrânio Mendes (et al.).(Orgs.). SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de
Cinema, ano V, São Paulo: Panorama Ed., 2003. Disponível em:
<http://www.socine.org.br/livro/V_Estudos_Socine.pdf>. Acesso em: 04 de nov. de 2016.

GAUTHIER, Guy. O documentário, um outro cinema. Campinas, SP: Papirus, 2012.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis RJ: Editora Vozes,


2009.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte MG:


Editora UFMG, 2014.

ODIN, Roger. De la fictíon. Bruxelles: De Boek Université, 2000.

ODIN, Roger. A questão do público: uma abordagem semiopragmática. In: RAMOS, Fernão
(Org.). Teoria Contemporânea do Cinema (vol. II). São Paulo: Senac, 2005 (p. 27-45)

147
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15 Disponível em:
<http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acesso em: 04 de
nov. de 2016.

148
A PRIMEIRA PESSOA DENTRO E FORA DAS NARRATIVAS
CONTEMPORÂNEAS: O AUTOR ALÉM DA OBRA1

THE FIRST PERSON IN AND OUT OF THE CONTEMPORARY


NARRATIVES: THE AUTHOR BEYOND THE WORK

Camila Canali Doval2

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar as interações entre autor-leitor-obra
como uma ação integrante do espaço biográfico do autor, hoje ampliado pelo advento das
novidades tecnológicas e do massivo uso do meio virtual. Trata do apagamento dos
limites entre realidade e ficção que permeiam a obra literária em função da constante
presença do autor no dia a dia do leitor, através das redes sociais e outros elementos
também relacionados ao mercado literário. Usa como exemplo dessas novas formas de
interação e desmitificação da entidade “escritor” um episódio envolvendo a escritora
Elvira Vigna e o seu romance Nada a dizer.

Em tempos de holofotes voltados para as escritas de si, focando discussões sobre o


teor da carga ficcional presente nas autobiografias, assim como o seu correlativo, a carga
autobiográfica presente nas produções ficcionais, e com a proclamada inserção, no que
Philippe Lejeune (2008) denominou de “espaço autobiográfico”, de novos gêneros – ou
fenômenos – como a autoficção, a primeira pessoa se destaca em qualquer polêmica
literária. Muito se tem discutido sobre o autor, em especial a relação entre autor, leitor e
texto, desde os anos 1960, principalmente a partir de Roland Barthes e Michel Foucault;
hoje, enfim, o autor é muitas vezes explicitamente o plano central de sua obra e nós,
leitores, sabemos dele muito mais do que a princípio deveríamos ter acesso.

As circunstâncias de produção de um livro estão ao alcance do público, são


divulgadas pelo próprio escritor para fins promocionais, e acabam se configurando, elas
mesmas, numa narrativa. Temos cada vez mais acesso a quem escreve e isso nos dá cada
vez maior intimidade com os escritores e seus processos de criação. Ambos frequentam
programas de televisão, revistas, entrevistas, vídeos, feiras literárias, encontros
promovidos pelas editoras, polêmicas, salas de aula (pessoalmente, tanto nos ensinando
quanto dividindo o espaço conosco) e outros ambientes nada fictícios. A crítica genética

1
Mesa-redonda Desafios da (auto)ficção.
2
Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

149
e as teorias de criação literária estão nos currículos das graduações de Letras. Ainda, a
profusão de novas tecnologias e mídias proporciona novas áreas de contato – muito além
da obra – entre o leitor e o escritor, tornando cada vez mais complexa a tarefa do primeiro
de consumir/absorver a arte por ela mesma, independentemente da vida privada do artista;
e a do segundo de vender/transmitir a arte por ela mesma, sem precisar se agarrar ao
desenvolvimento de uma verdadeira marca pessoal.

O ser de carne e osso que escreve e o ser de carne e osso que lê se configuram em
autor e leitor, tradicionalmente, através da obra; e quase somente através dela é que o
leitor, até pouco tempo, tinha acesso ao autor. Para Phillipe Lejeune (2008, p.23),

Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica.


Inscrito, a um só tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato
entre eles. O autor se define como sendo simultaneamente uma pessoa
real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor,
que não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência, o autor
se define como a pessoa capaz de produzir aquele discurso e vai
imaginá-lo, então, a partir do que ele produz.
No entanto, também tradicionalmente, o leitor se interessa pelo autor a partir do que
a obra suscita durante a leitura. Não raro e não de hoje, o leitor mais interessado – ou
empolgado – busca biografias, autobiografias, entrevistas, correspondências, relatos de
conhecidos, quaisquer pistas além da obra que o permitam ingressar no universo do autor
e entender um pouco das motivações, intenções e angústias que subjazem a escrita.
Lejeune (2008, p. 192) comenta esse momento da relação:

O autor é, por definição, alguém que está ausente. Assinou o texto que
estou lendo – não está presente. Mas se o texto me lança perguntas,
sinto-me tentado a transformar em curiosidade por ele e desejo de
conhecê-lo a inquietação, a incerteza ou o interesse engendrados pela
leitura. É o que denominarei ilusão biográfica: o autor surge como
“resposta” à pergunta feita por seu texto.
Se o leitor há muito conta com alguns dos instrumentos citados acima para
interpelar o autor a respeito de sua criação e, mais especificamente, a respeito da
intertextualidade entre sua vida e obra, contemporaneamente o espaço autobiográfico que
circunda a existência do ser que escreve é amplo, transbordante, surpreendente, e em
grande parte alimentado pelo próprio autor. É cada vez menos comum a imagem do
escritor recluso e/ou excêntrico; assistimos nossos ficcionistas preferidos participarem da
vida política e social do país através dos jornais e programas televisivos; eles fazem
questão de estar em todos os lugares, dispondo do arcabouço descrito por Leonor Arfuch
(2009, p. 114):

150
Neste espaço, densamente povoado, desdobram-se
contemporaneamente tanto os gêneros tradicionais, sempre na lista dos
best-sellers – biografias, autobiografias, memórias, diários íntimos,
correspondências, testemunhos, histórias de vida – quanto as escritas
das margens, que vivem uma espécie de primavera editorial –
rascunhos, cadernos de anotações, de viagens, anotações de cursos,
lembranças de infância –, junto com uma multidão de registros
midiáticos; a entrevista, em primeiro lugar, mas também conversações,
retratos, perfis, anedotários, indiscrições, confissões próprias e alheias,
narrativas de auto-ajuda, velhas e novas variantes do show – talk show,
reality show – sem deixar de fora por certo o da política.
Tal pretensa intimidade poderia desmistificar uma profissão que se firmou
culturalmente sobre uma aura de mistério e elitismo? Para Lejeune, a exposição da
imagem do autor alimenta o seu caráter de “resposta” a questões irrespondíveis pelo seu
texto e se torna plausível e aceitável a sua aproximação:

Será que, ao tornarem o autor contemporâneo acessível a todos, o rádio


e a televisão exercem uma função salutar, dissipando o efeito de
mistério engendrado pela escrita? Só na aparência. Pois, na realidade, a
mídia incentiva fatalmente a ilusão biográfica que leva a buscar a
solução do mistério no próprio autor. (LEJEUNE, 2008, p. 195)
De outro lado, mas também imbricada à questão das novas zonas de contato
possíveis entre autor e leitor, está a aproximação do público com o contexto de escrita do
escritor. As condições de produção de um livro estão ao nosso alcance, até mesmo
divulgadas pelo próprio escritor em tempo real – através de seus blogs e perfis de redes
sociais, e acabam se configurando – elas mesmas, numa narrativa. Conforme Lejeune
(2008, p. 196): “Confrontamos o que vimos com o que lemos, tentamos imaginar o que
teremos para ler segundo o que vimos. O autor nos leva ao livro e o livro ao autor”. Sobre
essa proximidade um tanto vertiginosa entre autor e leitor, Arfuch (2009, p. 116) pontua:

Porém, essa tendência à exteriorização, muitas vezes compulsiva,


que povoa os diversos registros da comunicação contemporânea,
do escritor best-seller à estrela da vez, tem sua contrapartida
obrigatória no quase-vício dos públicos: como resistir à palavra
ao vivo – visual, auditiva, gráfica –, de quem (se) diz eu, ou ainda,
à revelação de um outro, um outro eu?
Os nossos tempos são os tempos do “eu”. Por fragmentado e difuso, líquido e
virtual, pela capacidade de estar em todos os lugares em todos os planos, o “eu” é a
onipresença absoluta e não tangível, quem sabe o retrato de uma contemporaneidade
paradoxalmente em vias de extinguir a individualidade. Há personagens que nascem nas
narrativas dos escritores e escritores que se tornam personagens metanarrativos na medida
em que escrevem.

151
A relação entre seres humanos e personagens não é privilégio da atualidade; sobre
esse par se construiu a literatura. Os personagens, para Antonio Candido (1995, p. 45),
“como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem
cognoscitiva, religiosa, moral político-social e tomam determinadas atitudes em face
desses valores”. A tendência é que o escritor, dessa forma, crie personagens que se
identifiquem com a época à qual ele é contemporâneo; personagens que reflitam a
condição da subjetividade do próprio escritor no tempo e no espaço em que ele se insere.

É possível perscrutar na ficção a nossa história, direcionando a personagens do


passado questões do tipo: o que desejavam? O que as instigava? O que as movia? O que
temiam? O que as afligiam? O que as confortava? Como se relacionavam com o outro?
De que formas expressavam sua subjetividade? Conforme Candido (1995, p. 54), “enredo
e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre
dele, os significados e valores que o animam” e, embora essa visão que emana da obra
seja oriunda de seu autor, é capaz de dizer muito – inclusive no que silencia – sobre o
momento em que foi criada.

Além disso, o personagem assume imensa importância como registro de um período


porque “representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor” (CANDIDO,
1995, p. 54), e a partir do sucesso de uma obra pode-se inferir que nível de empatia – ou
não – ela suscitou em seu leitor contemporâneo. Essa relação de espelho é um princípio
aristotélico de legitimação da literatura, a verossimilhança, obtido através dos recursos
de caracterização dos quais o escritor lança mão na hora de construir seus personagens.
Posso me perguntar, aqui, a mesma questão que Candido (1995, p. 66) se impôs nos seus
estudos sobre o tema: “No processo de inventar a personagem, de que maneira o autor
manipula a realidade para construir a ficção?”.

Uma das maneiras é a escolha pelo foco narrativo em primeira pessoa. Normam
Friedman (2002, p. 180) afirma que “a escolha de um ponto de vista ao se escrever ficção
é, no mínimo, tão crucial quanto a escolha da forma do verso ao se compor um poema”.
David Lodge (2009, p. 36) também confere suma importância à escolha do ponto de vista
sob o qual uma história é contada, “pois tem um impacto profundo no modo como os
leitores vão reagir, na esfera emotiva e moral, aos personagens e às suas ações”. No
entanto, num momento em que a tendência é desconstruir as estruturas pré-concebidas do
narrar, talvez seja mais válido o conselho de John Gardner (1997, p. 208), “na literatura
contemporânea, o escritor pode fazer o que quiser com o ponto de vista, desde que o que

152
fizer funcione”. Em concordância com Gardner, Stephen Koch (2008, p. 113) não hesita:
“a história é a personagem. A personagem é a história. Você vai ouvir muitas vozes
tentando persuadi-lo de que essa antiga verdade não é mais válida. Recomendo com
veemência que as ignore”.

No protagonista, portanto, de diferentes formas, vive também o sujeito. Para


enxergar o sujeito contemporâneo e identificá-lo ao protagonista contemporâneo, é
preciso questioná-lo a respeito de suas aflições, impulsos, desejos, temores e
relacionamentos, é preciso ao menos percebê-lo em seu processo de fragmentação e
descentramento, conforme apontado por Stuart Hall (2011, p. 7): “as velhas identidades,
que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir
novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito
unificado”.

Para Hall, o final do século XX trouxe transformações às paisagens culturais de


classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que até então nos pautavam como
indivíduos sociais, e essas transformações vêm abalando as estruturas de nossas
identidades pessoais. Já não somos o indivíduo – uno – que fomos ou nos imaginamos
ser até aqui, e isso abala a nossa existência em diversos planos, principalmente naqueles
que nos é dado representarmo-nos. “Esta perda de um ‘sentido de si’ estável é chamada,
algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito” e, para Hall (2011, p. 9),
“constitui uma ‘crise de identidade’ para o indivíduo”.

O sujeito do Iluminismo desenvolveu-se baseado numa concepção de centro, de


núcleo interior que o unificava e o permitia manter-se idêntico a si mesmo ao longo de
sua existência – um núcleo reconhecido como a sua identidade. Perceber essa ilusão de
unicidade se desfazer é entrar em crise.

A ideia de um ser humano suficiente em sua própria essência foi sendo substituída
por uma nova ideologia sociológica, em acordo com “a crescente complexidade do
mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo
e autossuficiente, mas era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele’”
(HALL, 2011, p. 11). De acordo com Hall (2011, p. 11), essa visão mantinha a ideia de
núcleo interior do sujeito, mas se tratava de uma essência que se ia construindo na
interação com o outro: “O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu
real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”.
153
Hoje, a estrutura que sempre amparou o sujeito, seja em relação a si mesma ou em
relação ao outro, está desfeita: “[...] à medida que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos
nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2011, p. 13).

Dessa forma, o apego à construção de personagens em primeira pessoa é


compreendido aqui como uma tentativa de organizar o caos e seguir dando vazão à
necessidade humana de narrar(-se). Quando não se é mais possível representar, ainda é
possível sentir, e o foco narrativo que prioriza principalmente o protagonismo pode
configurar-se como um espaço um pouco mais “confortável” para os escritores que
pretendem “compartilhar” com os leitores o fato de que igualmente se encontram
desnorteados pela súbita chegada da chamada pós-modernidade – ou do hoje.

A personagem em primeira pessoa se configura, assim, numa escolha especial, por


encontrar-se atualmente em uma nova relação de interdependência com o seu exterior.
Trata-se de uma maneira corajosa de o autor significar o mundo, significar o sujeito e
também significar-se como sujeito – não porque o sujeito em primeira pessoa da narrativa
efetivamente se equivalha ao autor, mas porque a virtualidade vem apagando as distâncias
até o autor e assim transformando a imagem tradicional que tínhamos dele; há uma nova
geração de escritores trocando o silêncio e a reclusão por curtidas no Facebook e
seguidores no Twitter e arriscando-se – conscientemente – a confundir os leitores.

Elvira Vigna é uma escritora emblemática da nova geração a que me refiro aqui,
uma nova geração não formada exclusivamente por jovens, mas por aqueles que aderem
e adaptam-se ao movimento tecnológico. Vigna mantém muito ativos seus perfis em redes
sociais, falando sobre seus trabalhos atuais e antigos, suas perdas e conquistas no meio
editorial, a situação da literatura no país e no mundo, tecendo críticas ao mercado e a
outros escritores, compartilhando textos, matérias, artigos, dialogando, comentando a
vida em geral.

Nada a dizer (ND), de Elvira Vigna, trata-se de uma narrativa em primeira pessoa,
em que a personagem protagonista é uma mulher de mais ou menos sessenta anos que
rememora (enquanto reelabora) o episódio em que seu marido, também sexagenário,
relacionou-se com uma mulher vinte anos mais jovem, o que a obriga a encontrar novos
significados para a relação e para si mesma. Embora a protagonista de ND tenha a mesma
faixa etária da autora Elvira Vigna, as duas compartilhem meio social e cultural próximos
154
e a linguagem do livro seja construída num tom confessional, o romance serve a este
estudo como ilustração de uma forma específica da relação entre autor-obra-leitor,
mediada pela tecnologia promovida pela contemporaneidade.

“Aline” é uma blogueira que mantém a página Godot não virá como um espaço
destinado a, entre outras coisas referentes à área da literatura, resenhas de livros de ficção
produzidas por ela mesma. Em setembro de 2011, a autora da página publicou uma
resenha3 sobre ND. “Aline” identifica-se apenas por este nome, não revela ao público
qual sua formação ou nível de contato com a Teoria e a Crítica Literária; ao que indica, é
uma leitora que escreve resenhas por prazer. Até este ponto, tudo normal para o ano de
2011 e sua intensa produção autoral através da internet. Obras são lançadas o tempo todo
no mercado e cria-se em torno delas uma metaprodução que escapa ao controle do autor
e aos limites da autoria. A curiosidade, neste caso, é a interferência da própria Elvira
Vigna no que seria uma metanarrativa de sua obra.

Elvira Vigna apropria-se do texto de “Aline” e rebate, no espaço destinado aos


comentários sobre a resenha, as críticas da blogueira ponto a ponto, utilizando uma
estrutura de “diz você/digo eu” e criando uma discussão argumentativa que culmina em:

diz você: Eu disse “pretensamente amoral” porque não acredito que um


registro literário, porque psicologizado, consiga ser neutro quanto a
questões morais. Como todo discurso, aqui estão implicadas escolhas
estéticas que, mais ou menos explicitamente, configuram uma visão de
mundo. Minha leitura, como eu disse desde o começo, é que essa visão
de mundo está pautada – e também engendra, convicta – num tipo
psicológico já estabelecido no acervo destes nossos dias: a mulher de
meia idade, intelectual, traída, afetivamente frustrada, cujo consolo é
afirmar, direta ou indiretamente, sua superioridade moral em relação ao
marido canalha e à amante hedonista. À amante, principalmente.
digo eu: aline, aqui eu fico achando que você está tão empenhada em
manter uma posição prévia, que sequer conseguiu ler o livro direito. a
narradora não é frustrada nem afetiva nem sexualmente. pelo contrário.
e seu consolo é trepar mais e mais com o homem de quem ela gosta, e
afirma aliás, textualmente, que gosta. assim como ele a ela.
Ao que “Aline” responde, após outras explicações, com uma ponta de ironia capaz
de descrever o seu sentimento de frustração ao ver negado pela própria autora da obra o
seu direito a produzir sentidos através da sua leitura:

Talvez eu tenha comprado um exemplar defeituoso de Nada a dizer,


pois faltou nele o anexo com a explicação da autora para que os leitores
“consigam ler direito” o romance, sem contaminação de nenhuma

3
Resenha e comentários citados a seguir estão disponíveis em:
http://godotnaovira.wordpress.com/2011/09/07/nada-a-dizer/
155
“posição prévia”. Mas em faltando o anexo explicativo, é de muita
eficiência esse serviço de Interpretare Letteratura Personalité que vc
oferece àqueles que se propõem a escrever “errado” sobre seu livro.
Elvira Vigna contra-argumenta: “bem, aline, aqui me despeço. sua agressividade
me confirma um medo, a de que você estivesse desde o começo defendendo uma posição
pessoal em vez de ler um texto – o que supõe uma abertura. ciau.”

São muitas as inferências que podem ser realizadas a partir deste evento. Algumas
podem advir da discussão que se seguiu nesse mesmo espaço do blog destinado aos
comentários, após a interferência de Vigna. Entre outras, o não menos significativo, para
o contexto, comentário de “Antonio”: “será q é um romance autobiográfico?” Ou, ainda,
de “Manoel Galdino”, que exemplificou: “Já pensou o Machado falando, ó, a Capitu não
traiu não, isso é leitura machista. Quem lê assim tá errado. Ou então, é claro que traiu, os
sinais tão todos lá, lê direito…” E, por fim, o comentário de “lu”, que aborda o ponto que
pretendemos demonstrar com esse exemplo:

Curiosa a postura da autora, que defende a narradora como defende a si


mesma; no discurso dela, ambas se confundem, e sua posição é
defendida como se fosse a da verdade. Narrador em primeira pessoa
não conta com onisciência… Desse jeito, invés de “Nada a dizer”, um
título mais apropriado pro livro seria “Desabafo” ;)
Tal evento não pode afirmar algum teor autobiográfico em ND, e de qualquer forma
isso não importaria aqui. A questão é observar como mais uma vez, de diferente forma, a
zona de contato entre o real e a ficção se amplia: os “eus” afloram para um plano extra-
livro em que a escritora, a “dona” da obra, explicitamente tenta dominar o que em essência
deveria escapar-lhe: a recepção. Ainda, para finalizar a discussão sobre o episódio, ao
menos neste texto, não podemos deixar de lembrar que, em tempos de autoficções, a
Elvira Vigna que se manifestou nos comentários do blog Godot nunca virá pode ela
mesma ser uma invenção, e assim nada disso tem validade – a própria imagem de Vigna
em seus perfis nas redes sociais não é uma foto, é um autorretrato.

Os dias atuais são dias de superexposição, da qual não escapam nem mesmo os
tradicionalmente reclusos intelectuais. Dificilmente uma obra publicada por uma grande
editora atinge larga abrangência e determinado sucesso sem que seu autor tenha sua
imagem estampada na orelha da publicação ou gravada em vídeos de divulgação, suas
opiniões registradas em entrevistas de suplementos culturais de jornais, suas
idiossincrasias transformadas em propaganda. A literatura contemporânea se estabelece
num mercado, que, como não poderia deixar de ser, possui regras para gerar o retorno

156
almejado, e a presença do escritor – um ser humano com rosto, voz e opinião – como o
responsável por sua criação é uma delas. Lejeune (2008, p. 202-3), a respeito da
intervenção do mercado, afirma:

Historicamente, em primeiro lugar, constato que, a cada vez que uma


inovação veio intervir nas modalidades da inovação literária,
apareceram cassandras e puristas para condená-la. [...] Depois, a nova
técnica é absorvida, com suas vantagens e inconvenientes. Acostuma-
se com ela, educa-se, mitridatiza-se e nem por isso a literatura morre.
Sem dúvida alguma, o campo cultural é transformado, menos, aliás, por
causa do “modo de vulgarização” do que pelo fato de o livro fazer parte
de um conjunto de consumos culturais mais amplos.
Certamente as exigências do mercado, as condições de produção envolvidas na
criação da obra, a vida pessoal do autor, sua formação, viagens e o tipo de relacionamento
que mantém com os leitores não estarão nunca acima da importância dessa obra, nem
definirão o seu valor. No entanto, um autor é mais do que um nome impresso em capas
de livros, nome que muitas vezes se sobrepõe ao próprio título da obra. Um autor é um
nome que se refere a uma pessoa cada vez mais visada pela mídia e pelo público, a uma
personalidade que pode vir, sim, a influenciar a experiência do leitor. No exemplo dado
aqui, essa influência se dá de uma forma ainda mais objetiva, ainda que no meio virtual.

Ao mesmo tempo, a contemporaneidade disponibiliza instrumentos suficientes para


que escritores como Elvira Vigna sigam ficcionalizando a vida mesmo fora dos limites
do papel, e é possível a eles forjarem-se personagens também quando se apresentam no
cenário social. Todos esses novos elementos vão se apresentando e se incorporando ao
espaço biográfico conforme previsto por Arfuch (2009, p. 114), baseado nas inter-
relações, uma das características do campo virtual:

Um espaço biográfico – espaço/temporalidade – mais dilatado que o


gênero, pensado não a partir da pureza étnica, mas sim das interações,
das inter-relações, do hibridismo das formas, de seus deslizamentos
metonímicos, de sua intertextualidade, em resumo, das diferentes
maneiras em que as vidas “reais” – experiências, momentos,
iluminações, lembranças – narram-se, circulam e são apropriadas nas
incontáveis esferas da comunicação midiatizada.
Afinal, a literatura é, hoje, um campo de fronteiras indeterminadas, até movediças,
entre as quais o autor, como alertou Foucault, está sempre, de um jeito ou de outro, em
vias de desaparecer.

157
REFERÊNCIAS

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico na (re)configuração da subjetividade contemporânea.


Tradução de Paulo César Thomaz. In: GALLE, Helmut; OLMOS, Ana Cecilia;
KANZEPOLSKY, Adriana; IZARRA, Laura Zuntini (Org.). Em primeira pessoa: abordagens de
uma teoria da autobiografia. São Paulo: Annablume, 2009.

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD,


Anatol; ALMEIDA PRADO, Decio; GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem de ficção. 9ª
ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Ditos e escritos III - Estética: Literatura e Pintura,
Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 264-298.

FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico.


Revista USP, São Paulo, n. 53, p.166-182, mar./maio 2002.

GARDNER, John. A arte da ficção: orientação para futuros escritores. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

KOCH, Stephen. Oficina de escritores: um manual para a arte da ficção. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2008.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização de Jovita


Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra
Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

LODGE, David. A arte da ficção. Porto Alegre: L&PM, 2009.

VIGNA, Elvira. Nada a dizer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

158
AUTRAN DOURADO: MEMÓRIA E FICÇÃO NA TRILOGIA DO
ALTER EGO1

AUTRAN DOURADO: MEMORY AND FICTION IN THE


ALTER EGO’S TRILOGY

Cláudia Márcia Mafra-de-Sá2

Resumo: Este texto apresenta uma reflexão acerca das relações entre espaço e memória
afetarem as diferentes modulações escolhidas na escritura das seguintes obras
autoficcionais de Autran Dourado: O risco do bordado, Um artista aprendiz e A serviço
del-Rei. A proposta é fazer um estudo tendo em mente a possibilidade da autoficção
protagonizada por João da Fonseca Nogueira – um dos alter egos do escritor mineiro –
ser uma maneira encontrada por Dourado de deixar seu rastro na literatura brasileira.
Palavras-chave: Autran Dourado, autoficção, memória, espaço, narrativa.

Abstract: This text presents a reflection on the connections between space and memory
affecting the different writing styles of these following Autran Dourado’s novels: O risco
do bordado, Um artista aprendiz and A serviço del-Rei. The intention is to do this study
keeping in mind the possibility of this self-fictional role played by João da Fonseca
Nogueira – one of the writer’s alter egos – is a way found by Dourado of leaving his
tracks in the Brazilian Literature.
Key-words: Autran Dourado, self-fiction, memory, space, narrative.

Mesclar memória e ficção é uma forma artística capaz de subjetivar a realidade


através do processo de criação. A construção de uma identidade representativa de si, por
meio da escritura, constitui um processo de afastamento emocional com vistas ao
arquivamento da própria vida e à perpetuação do eu além da própria morte. Essa
perspectiva de Philippe Artières (1998), desenvolvida em Arquivar a própria vida,
apresenta-se como principal reflexão a ser feita acerca de como os diferentes aspectos
espaciais – físicos e subjetivos – reconstruídos pela memória influenciaram na forma
composicional das obras autoficcionais de Autran Dourado: O risco do bordado (1970),
Um artista aprendiz (1989) e A Servido del-Rei (1984). A escolha desse corpus se deve

1
Mesa-redonda Memória e ficção em narrativas literárias.
2
Mestre em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG).
159
ao fato de o protagonista, nas três obras, ser o alter ego do escritor mineiro mostrado em
composições literárias intrinsecamente distintas, assim como são distintas as fases da vida
do alter ego, do autor e dos tipos de espaços por eles transitados nesses diferentes
períodos.

Embora a escrita de si possa parecer um assunto já bastante estudado, não se pode


julgá-lo esgotado. Tanto as obras biográficas, como as autobiográficas e as autoficcionais
continuam a exercer forte fascínio sobre o público. Autores contemporâneos, famosos ou
não, passam a apresentar suas obras sob perspectivas condizentes com sua temporalidade.
Como consequência, a busca pela compreensão dessas novas formas da escritura de si
motiva novas pesquisas e novos pesquisadores, novas teorias e novos teóricos.

Os estudos sobre a escrita de si, relativamente recentes, tiveram como pioneiro


Philippe Lejeune que publicou, em 1971, seu primeiro livro L’Autobiographie en France,
resultado de uma tentativa de inventariar textos autobiográficos com a finalidade de
compreender o funcionamento desse tipo de escrita e, também, de legitimá-lo como
gênero. Após as polêmicas obras de Lejeune, seja para contradizê-lo, seja para
complementar lacunas deixadas por suas definições e normalizações, outros pensadores
do gênero autobiográfico começam a surgir. Entre eles, o pesquisador e escritor francês
Serge Doubrovsky que, diferentemente de Lejeune, não privilegia a autobiografia como
um fenômeno linear, de caráter social. Além de criar o neologismo autoficção3, suprindo
conceitos não considerados por Lejeune, Doubrovsky escreve o romance Fils,
exemplificando com base na escritura de sua vida, como é sutil a fronteira entre o factual
e o ficcional. Todavia, conforme Gasparine, em Autofiction: une aventure du language
(2008), a visão de Doubrovsky, em seu pacto autoficcional, ainda que aceite uma
reconstrução do autor como narrador ou personagem, não distancia da visão de Lejeune,
por requerer relatos baseados estritamente em eventos factuais, ou ainda, na identificação
homonímia entre autor, narrador e personagem. Logo após Doubrovsky, surge Vincent
Colonna, em 1989, como pioneiro a defender uma tese sobre a autoficção no romance
ocidental, entitulada L’autofiction (essai sur la fictionalisation de soi em Littérature) e,
em 2004, publicada com o título Autofiction et autre mitomanies litteráires. Colonna
(2004, p.11) defende a ideia de que o termo autoficção deveria se restringir às obras cujos

3
Na trama da escrita autoficcional há a afirmação de haver polêmicas quanto à criação do neologismo,
também, atribuído ao escritor, nascido na Polônia e naturalizado americano, Jerzi Kosinnski em sua obra
L’Oiseau Bariolé. (Cf. OLIVEIRA, 2013, p. 35)
160
personagens fossem um desdobramento ficcional do autor em narrativas imaginárias.
Enquanto que para Philippe Vilain (2005, p.119) a autoficcionalização é a “capacidade
de desdobramento narcísico” presente na imaginação autobiográfica que possibilita ao
autor criar um duplo para si mesmo.

Entretanto, o entendimento da caracterização da escrita biográfica, anterior a esses


estudos sobre a escrita de si, já teria assumido particularidades inéditas com o conceito
de biografema criado por Roland Barthes em suas obras4 Sade, Fourier e Loyola (1971)
e retomada empiricamente em Roland Barthes por Roland Barthes (1975) e A câmara
clara (1980). Para esse teórico (2005, p. 17), a biografia ideal seria aquela mostrando
“uma vida esburacada”, ou seja, privilegiando detalhes que remetessem a uma existência
sem a intenção de abranger sua completude. Segundo Souza (2007, p.106), a partir daí,
não há mais a pretensão de retratar alguém em sua totalidade ou relatar uma existência de
forma fiel e controlada. A construção do sujeito segue a fragmentação com a qual ele se
mostra e é percebido na contemporaneidade.

É possível encontrar pensamentos de Dourado muito semelhantes aos de Barthes


em relação à escrita de si. Em depoimentos à Souza (1996, p.33), o autor mineiro
confirma sua tendência à fragmentação ao afirmar o emprego da desconstrução-
reconstrução do indivíduo por meio da escrita. Ao classificar suas obras em duas
“vertentes” distintas, o autor confessa utilizar-se do real em uma dessas “vertentes” –
compostas pelos romances escolhidos como corpus deste trabalho – a fim de criar o
literário, proporcionando uma conceituação bem autraniana para aquilo conceituado por
Colonna como autoficção: “A segunda vertente é uma história inventada, uma espécie de
autobiografia imaginária, dos mitos que povoaram a minha infância e adolescência
mineiras”.

Então, aquilo que Dourado classifica como “autobiografia imaginária” parece ir


mais ao encontro do conceito de “autoficção” proposto por Colonna e Vilain do que do
conceito proposto por Doubrovsky. Isso pode ser evidenciado, principalmente, pelo fato
de o autor do corpus desta pesquisa ser identificado como Autran Dourado, enquanto o
narrador, com características autodiegéticas, é João da Fonseca Nogueira – um dos alter
egos de Dourado, abertamente assumido em seus ensaios, depoimentos e entrevistas.

4
As datas em parênteses referem-se às primeiras publicações em língua francesa.
161
Vale lembrar que a expressão alter ego5 tem origem no latim: alter, que significa
“outro” e, ego cujo significado é “eu”, isto é, o outro eu – a outra personalidade de uma
mesma pessoa. A expressão é usada na literatura para designar a identidade oculta de uma
personagem ou uma estratégia de um autor para se revelar indiretamente aos seus leitores.

O trabalho de Autran Dourado como carapina de histórias começou cedo. Seu ideal,
desde criança, era se tornar um grande escritor. O autor relata que mesmo antes de
concluir o curso primário, já inventava histórias para Antônia, uma empregada analfabeta
“muito interessada nos misteriosos livros da biblioteca de seu pai”. Como sua capacidade
de leitura fosse ainda incompatível com o acervo disponível, não se intimidava diante dos
pedidos de leitura feitos por Antônia: “criava mil e uma peripécias” fingindo ler (SOUZA,
1996, p.27). Dourado conta, também, em “O primeiro livro” – um dos capítulos de Breve
manual de estilo e romance (2003) – que aos dez anos comprou um caderno grosso, de
capa dura, com a finalidade de escrever um livro. Entretanto, rapidamente, aprendeu não
ser a escrita o produto de uma inspiração ou de um simples impulso. Cometeu diversos
erros, mas não fez quaisquer modificações no que havia escrito para não rabiscar o
caderno-livro, mas após essa experiência, adquiriu outros dois cadernos mais simples para
fazer os rascunhos das futuras histórias. Havia aprendido sua primeira lição: “as histórias
têm que ser escritas e reescritas” (DOURADO, 2003, p. 40).

Aos dezesseis anos, Autran Dourado recebeu seu primeiro prêmio literário em um
concurso de contos promovido pela revista Alterosa, com “O canivete de cabo de
madrepérola”. Aos dezessete, já havia escrito um livro de contos que levou para o escritor
e tradutor mineiro Godofredo Rangel dar seu parecer. Rangel, após ler o original e
felicitar o jovem candidato a escritor por não ser precoce, incentivou-o a fazer um
aperfeiçoamento através da leitura de grandes escritores, para que tivesse uma boa
formação literária antes de se enveredar pelos caminhos da escrita. Assim iniciou-se uma
amizade entre os dois baseada em um relacionamento mestre e aprendiz, vindo a gerar
muitos bons frutos à literatura brasileira. Em 1947, quatro anos após o encontro com
Godofredo Rangel, Autran Dourado estrearia na literatura com o livro Teia – escrito aos
19 anos e editado aos 21.

Apesar de vários romances, novelas, contos e ensaios publicados no Brasil e


traduzidos para diversas línguas, prêmios literários recebidos no país e no exterior e,

5
Informação obtida em: http://www.significados.com.br/alter-ego/. Acesso em 02/01/2014.
162
mesmo, percebendo a escrita como “uma aventura” e “o sustentáculo de sua solidão”,
Dourado em entrevista à Ângela Senra (1983, p. 7) confessa: “[...] não tenho o menor
prazer em escrever. Escrevo porque me sinto frustrado quando não escrevo”. Deleuze,
em seu texto O ato de criação (1999) explica esse tipo de sentimento sofrido por artistas
ao afirmar: “Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo
de que tem absoluta necessidade” (DELEUZE, 1999). Da mesma forma, em O prazer do
texto (1973), Barthes ao explanar a diferença entre o prazer e a fruição da leitura, associa
essa diferença à escritura, além de asseverar – como Deleuze – a existência de uma
necessidade da escrita: “A tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se
forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura” (BARTHES, 1993, p. 9).
Mesmo já tendo escrito dezoito dos trinta e um livros que compõem a sua obra,
Dourado declarou à Ângela Senra (1993, p. 8) não ser um escritor profissional, pois seu
sustento provinha do trabalho público, que lhe permitia algum tempo para se dedicar ao
trabalho literário. Esse arranjo foi uma forma de lhe garantir o sustento e de lhe propiciar
o “ócio necessário para a realização nas letras”. Conforme atesta Dourado (2003, p. 53),
apesar de seu pai fazer muito gosto a sua tendência literária, deu-lhe um “conselho-
ultimatum” de se formar bacharel em Direito, mas aconselhou-o, também, a “não ser um
grande advogado”, para assim ter como se dedicar às letras. Dourado seguiu os conselhos
dados, contudo associou-os a uma tendência de sua época para atingir seus objetivos
literários: antes de concluir o Bacharelado em Direito, ingressou-se no funcionalismo
público. Essa solução é comum no Brasil. Vários escritores e poetas brasileiros usaram
desse artifício para escrever e sobreviver materialmente.

De fato, essa foi uma tendência no Brasil, como observado por Sérgio Micelli
(1979) em Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945): “[...] quase toda a
literatura, no passado como no presente, é uma literatura de funcionários públicos”. O
serviço no funcionalismo público foi iniciado por Dourado na função de taquígrafo na
Câmara Municipal de Belo Horizonte e, depois, teve continuidade na Assembleia
Legislativa do Estado de Minas Gerais. Entretanto, quando Juscelino Kubitschek foi
eleito governador de Minas Gerais, Dourado foi convidado a trabalhar em seu gabinete,
pois preenchia um difícil requisito solicitado para o cargo: um taquígrafo que fosse
também escritor. Autran Dourado trabalhou no governo de JK durante nove anos,
distribuídos nas funções de Oficial de Gabinete, no Governo mineiro e de Secretário de
Imprensa, na Presidência da República. Nesse período, o trabalho de carapina de histórias

163
ficou comprometido devido ao tumultuado exercício de funções que se via compelido a
executar, mesmo não sendo sua atribuição segundo Dourado (SENRA, 1983, p. 6).

A experiência de Dourado no poder contribuiu para dois romances: A serviço del-


Rei, um romance de cunho autoficcional e Gaiola aberta – tempos de JK e Schmidt, um
livro de memórias sem a preocupação da cronologia ou da excessiva fidelidade.
Orientação dada por Godofredo Rangel ao seu aprendiz de escritor – e sabiamente seguida
por ele – foi se enturmar com escritores de sua época, para adquirir um aprendizado
proporcionado pela troca coletiva. Assim, ainda na Faculdade de Direito, Dourado travou
conhecimento com Sábato Magaldi, que lhe apresentou a outros jovens escritores a quem
desejava conhecer. Com alguns desses escritores, Dourado viria a trabalhar no Palácio da
Liberdade e do Catete durante o Governo JK. Porém antes dessa fase burocrática,
Dourado já fazia parte de um novo grupo de intelectuais mineiros que costumava se reunir
para discutir suas ideias na Leiteria Nova Celeste (SOUZA, 1996, p. 31). Lugar, segundo
Werneck (2012, p. 135), onde os jovens intelectuais praticavam “uma bizarra boemia, à
base de café com leite, broa de fubá, biscoito de polvilho e pão de queijo”.

A participação de Dourado no grupo – dividido entre católicos e esquerdistas


radicais - propiciou seu ingresso no Partido Comunista, devido ao fato de ser um
agnóstico convicto (SOUZA, 1996, p. 31). Entretanto, sua ligação com o partido não
durou muito tempo. Quando confrontado com a decisão de permanecer no Partido
Comunista ou abandonar sua liberdade de pensamento – intrinsecamente ligada ao seu
destino de escritor – viu-se forçado a pedir seu desligamento. Dourado explica em seu
depoimento à Souza (1996, p. 31), haver sido questionado por estar fazendo “uma
literatura existencialista”, não condizente com a “linha marxista do partido”, cuja
orientação artística era “o realismo socialista”. O autor então desabafa: “Como não era
marxista mesmo e achasse a posição artística do partido uma besteira muito grande, decidi
largar tudo” (SOUZA, 1996, p.32). A sua vida e a das pessoas com quem conviveu
nessa época foram de certa maneira retratadas no romance Um artista aprendiz (1989),
apesar de ser esse “mais um romance de formação literária, filosófica e sentimental do
que um romance à clef6”, segundo Dourado (SOUZA, 1996, P. 31). Entretanto, é possível

6
Toda vez que um romancista decide destilar inconfidências em surdina, ele recorre a uma forma literária
chamada roman à clef (romance com chave, em francês). No fundo, trata-se apenas de ocultar sob
pseudônimo pessoas de carne e osso e modificar alguns detalhes ou cenários reais, para despistar. Quem
tem a "chave" decifra a charada com facilidade. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/270803/p_130.html>. Acesso em 07 set. de 2013.
164
identificar praticamente todos os intelectuais presentes em Um artista aprendiz por meio
da leitura de O desatino da rapaziada (2012), em que Humberto Werneck faz um
apanhado do jornalismo e da literatura em Minas, no período de 1920 a 1970, por meio
do envolvente relato da história de seus protagonistas.

A exemplo de Um artista aprendiz, que se passa em Belo Horizonte, quase toda a


obra de Dourado se passa em Minas Gerais. A barca dos homens – romance desenvolvido
em uma ilha imaginária, além de A serviço del-Rei e Gaiola aberta – tempos de JK e
Schmidt – transcorridos em palácios governamentais são exceções. Entretanto, Dourado
admite para Souza (1996, p.32): “o que estou tentando fazer [...] é me servir do real
mineiro para compor um outro real. Um real que muda, de tal maneira que eu não sei
mais se ele existe, se ele existiu alguma vez”.

Ao admitir o seu meticuloso trabalho de carapina literário em O risco do bordado,


Dourado desmitifica a aura de autor e ratifica sua opinião acerca da arte implicar mais
um trabalho empreendido pela habilidade construtiva e menos uma questão da
genialidade nata de escritor. Tão conhecedor da literatura quanto da teoria literária,
Dourado talvez explique de forma mais simples o papel do autor como sujeito criador, no
seguinte comentário: “A única coisa que um autor tem de verdadeiramente próprio é o
corpo; o seu texto talvez não passe de paródias entrelaçadas, acumuladas, expandidas ou
superpostas, pando” (DOURADO, 2005, p. 23). A consciência conceitual da literatura
moderna permite a Dourado uma posição capaz de se distanciar como autor das vozes de
seus personagens. Entretanto, essa mesma posição lhe permite admitir a natureza
compósita do ficcional com o factual na criação desses mesmos personagens. Sobre o
primeiro conto escrito na infância, por exemplo, Autran Dourado (2003, p. 40) pondera
que em O cavalinho Piquira, ser e, igualmente, não ser o garoto da história: “O meu
personagem, um menino da roça (era ao mesmo tempo eu e não era eu)”. Da mesma
forma, em entrevista concedida à Ângela Senra (1983, p. 4), Dourado além de afirmar
ter-se aproveitado de “detalhes pitorescos” do avô materno para criar o avô do conto A
glória do ofício, de Solidão Solitude, admite recriar quem realmente existiu dizendo:
“Não é ele propriamente, você sabe que a gente transmuta, transfunde, recria, mas, de
certa maneira, ele serviu de ponto de partida para a criação do avô Euclides”. Assim,
Dourado (2000, p. 95) reitera a ideia de recriação do factual ao afirmar como os
romancistas e novelistas utilizam a realidade como matéria-prima trabalhando-a e a
transformando em ficção, da mesma forma que o oleiro trabalha o barro.

165
Dessa forma compósita, também, são trabalhados os personagens que compõem os
romances da trilogia do alter ego. João da Fonseca Nogueira, como narrador protagonista,
corporifica a alma de um escritor, mostrando três fases distintas de sua vida: a infância e
a adolescência, a juventude e a vida adulta. A infância e a adolescência são narradas em
O risco do bordado; a juventude em Um artista aprendiz; e a vida adulta, em A serviço
del-Rei. Apesar de não constar nos romances qualquer data e de seus personagens serem
ficcionais, é impossível não identificar três fases distintas da história nacional
transcorrendo em paralelo à vida do autor, na pele do alter ego.

Em seu ensaio Personagem como metáfora, Dourado assevera que “personagem é


símbolo, imagem em movimento, enfim, metáfora em ação”. Logo, para João da Fonseca
Nogueira corporificar as peculiaridades necessárias e inerentes ao desempenho da função
de escritor como protagonista dos três romances em questão – além de ser o alter ego de
Dourado – fica a pressuposição de ser essa a grande metáfora: a vida de João escritor.
Essa conclusão pode parece muito óbvia. No entanto, a obviedade evanesce na leitura de
“Um depoimento pessoal”, capítulo de Uma poética de romance – matéria de carpintaria,
no qual Dourado mostra o lado um tanto árduo e nem sempre glamoroso da vida de
escritor e, até mesmo, a carência do gozo da vida em função da escrita: “o que se ganha
em arte perde-se em vida, o que se escreve, deixa de viver”.

Por isso, Dourado (2003, p. 8) afirma categoricamente: “Você precisa viver muito,
cheirar muito, ouvir muito, ver e apalpar muito, ouvir o batimento de seu coração, para
fazer uma bela e contundente metáfora; já o símile é mais fácil”. Portanto, a comparação
dos termos João e escritor não constituiria um simples símile: a vida de João como
escritor, mas uma “contundente metáfora”: a vida de João escritor, já que João não tem
outra vida a não ser a vida de escritor. Primeiramente em O risco do bordado, livro que
mostra a idealização, o planejamento, os primeiros passos para a conquista do sonho
insinuado já na metáfora do título. Ou seja, o caminho traçado para ser seguido por João
para se tornar um futuro escritor. Outra metáfora ligada ao termo risco, explicada por
Dourado (SANTOS, 2008, p. 199), estaria ligada também à estrutura da narrativa: “o
risco serve para a gente não se perder. [...] A gente tem que ir deixando rastro, senão não
se acha mais o fio da meada”. Portanto, em O risco do bordado, as metáforas construídas
caprichosamente por Dourado desdobram-se para preparação da metáfora maior: a vida
de João escritor.

166
Embora a leitura de O risco do bordado evoque no leitor a imagem do autor Autran
Dourado – seja em função da tentativa de prover corpo ao personagem, ou ainda, por
saber se tratar de uma autoficção – há que se enfatizar que João nada mais é do que uma
transposição de figuras e não o agente de uma autobiografia. Quanto a essa questão, vale
lembrar a análise feita por Jeanne Marie Gagnebin (2011, p. 89), em História e narração
em Walter Benjamin, sobre a perspectiva política de Benjamin relacionada ao passado em
“Infância berlinense”. A autora afirma que apesar do caráter autobiográfico assumido por
Benjamin, “qualquer narração de si também [é] uma ficção de si mesmo”. Essa dedução
da autora advém da premissa que a voz da criança resgatada pela lembrança do adulto,
em qualquer narração, traz à tona “dimensões mais amplas do inconsciente e do político”.
Dessa forma, as peculiaridades dessas dimensões não poderiam ser atribuídas a uma
criança. Assim, Gagnebin conclui seu pensamento:

A identidade-mesmidade7 que a autobiografia clássica havia tantas


vezes conjurado dá lugar à ipseidade8 de um sujeito que confia
suficientemente na sua palavra para prescindir das definições sempre
ilusórias de si mesmo. (GAGNEBIN, 2011, p. 90)
A metaforização do real é conseguida por meio do relato ficcional tanto em Um
artista aprendiz quanto em A serviço del-Rei, ambos os romances protagonizados pelo
escritor-personagem João da Fonseca Nogueira. Publicado em 1989, Um artista aprendiz
mostra o aprendizado literário e filosófico empreendido por João para se tornar um
escritor. Perdendo aos poucos a inocência interiorana e adquirindo posturas mais
condizentes com a modernização por que passava o país, o personagem se adapta
facilmente à capital de Minas para onde se muda. Sua vida vai sendo moldada por
professores e novos amigos – como um conhecido escritor que orienta João em novas
leituras e preparações para futuras escritas – além do aprendizado proporcionado pela
convivência com outros escritores e intelectuais mineiros.

Apesar de publicado em 1984, portanto em uma época anterior ao romance Um


artista aprendiz (1989), A serviço del-Rey retrata a vida adulta do personagem João da
Fonseca Nogueira, já escritor com livro publicado. João trabalha para um jornal mineiro,
quando é convidado a trabalhar no Governo de Minas. Logo a seguir, o Governador é
eleito Presidente da República e convida João para Secretário de Imprensa. A partir de

7
Gagnebin (2011, p. 84) explica que os conceitos de mesmidade e de ipseidade são conceitos analíticos de
Ricoeur e referem-se à identidade. Assim, a identidade correspondente à questão que seria a “identidade-
mesmidade (idem), que afirma a permanência e a continuidade dos objetos”.
8
A identidade-ipseidade (ipse) “corresponde à questão quem [...] e caracteriza o sujeito da linguagem e da
ação” e possibilita refletir acerca do “tempo da enunciação” e do “tempo da ação ética e política”.
167
suas funções na cúpula do governo, é possível apreciar a rápida mudança por que passa o
escritor-personagem que “protagoniza o conflito entre vocação literária e o concubinato
do poder”, em uma construção autoficcional criada por Dourado a partir do
entrelaçamento de história e ficção, romance e tragédias clássicas tecidas em uma trama
que potencializa a universalização do escritor na reconstrução de si mesmo (SOUZA,
1996, p.18).

Partindo do pressuposto de que, na escrita de si, um autor pretende abordar uma


“vida esburacada”, a própria memória se encarrega de auxiliá-lo nessa abordagem
trazendo-lhe do passado a lembrança em representações sensoriais fragmentadas para
serem reconstruídas no presente. Ricoeur (2010, p. 26) busca explicar como ocorre a
fenomenologia da memória objetivando o estudo da história. É nítida a sua preocupação
em diferenciar e especificar as intencionalidades que permeiam esse estudo. Segundo ele,
“a memória reduzida à rememoração opera na esteira da imaginação”, estando
direcionada para “o fantástico, a ficção, o irreal, o possível, o utópico”. Já a memória
constituída por “uma marca temporal” estaria relacionada à “realidade anterior”, ou seja,
“a coisa lembrada como tal”. A perspectiva de Ricoeur em atribuir às artes e a outras
formas de representação uma potência de memória e de reconstituição da história, vai
tanto ao encontro da ideia de Barthes em relação ao biografema quanto de Colonna em
relação à autoficção. Assim, haveria a possibilidade de fazer uma conexão entre história
e imaginação, sem o risco de provocar um “curto-circuito” como temido por Ricoeur
(2007, p. 25). Dessa forma, o passado poderia ser reconstituído por meio de uma ficção
que, por sua vez, seria constituída das memórias de alguém real ou mesmo imaginário,
como o personagem da trilogia autraniana.

Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar escrever e esquecer (2009) propõe diversas


reflexões acerca da relevância da memória para o presente e algumas remetem a
conceituações, cujo entendimento faz-se necessário para a concatenação entre ficção e
memória. O rastro, por exemplo, uma concepção de Ricoeur desenvolvida por Derrida, é
uma metáfora capaz de ilustrar o tenso liame entre presença e ausência. Segundo
Gagnebin (2009, p. 44), o rastro é “a presença e a ausência, presença do presente que se
lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz
sua irrupção em um presente evanescente”. Ou seja, “a lembrança de uma presença que
não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente” (GAGNEBIN,
2009, p. 44).

168
A potência implícita na imagem do rastro pode tanto levar ao entendimento de
perpetuação quanto de efemeridade, qualidade que, por sua vez, pode ser atribuída tanto
à memória quanto à escrita. Gagnebin (2009, p. 44) explica que essa mesma qualidade da
memória e da escrita pode ser observada no campo metafórico e semântico. Isso porque
“as ‘palavras’ só remetem às ‘coisas’ na medida em que assinalam igualmente sua
ausência, tanto mais os signos escritos, essas cópias de cópias [...] da palavra pronunciada
(fonema) e da presença do ‘objeto real’ que ele significa”.

A tarefa de manter os registros vivos na lembrança conduz a outra ligação entre


memória e escrita que remete, também, à morte trazendo à tona os significados “túmulo
e signo” da palavra grega séma, raiz do vocábulo semantiké, significação. Para a autora
“esse é um indício evidente de que todo trabalho de pesquisa simbólica e de criação de
significação é também um trabalho de luto”. Essa afirmação corrobora a ideia de
inextricabilidade de memória, escrita e morte.

O amálgama composto por memória, escrita e morte evoca não somente o


pensamento de Philippe Artières (1998) em relação à perpetuação do eu pela escritura
como, também, uma possível explicação para a necessidade de escrever assumida por
Autran Dourado. Além do esforço intelectual e do baixo retorno financeiro, Dourado
(2003, p.13) afirma não ser a escrita uma arte reconhecida no período de vida de um autor:
“Sei que a glória é póstuma” O autor reforça essa ideia com as frases: “Com esses livros
eu creio que tenha dado o meu recado, posso até morrer [...] Se eu acreditasse na
Eternidade, nada disso teria a menor importância” (SOUZA, 1996, p. 43).

Em O que é ficção, Ivete Walty (1985, p. 18), com a finalidade de demonstrar o


quão intrincadas são as noções de realidade e ficção, relembra o conto “Ideia de canário”,
de Machado de Assis. Tal conto narra a história de um canário cuja perspectiva de mundo,
sempre que perguntado o que seria o mundo, limitava-se a uma descrição dos lugares em
que vivia: ao ser questionado sobre os locais diferentes daqueles em que vivia, dizia que
era tudo ilusão e mentira, aqueles lugares não existiam. Nesse conto, Machado de Assis
não questiona somente o ficcional e o factual. Sua perspicácia leva o leitor à conclusão
de que a visão de mundo das pessoas está diretamente relacionada ao espaço o qual
ocupam, seja ele geográfico, social, político, econômico ou outro qualquer, segundo
Walty (1985, p. 19). Além disso, a realidade está associada às relações sociais e aos
valores estipulados pelos membros que compõe essa sociedade, podendo ser uma
realidade diferente se comparada com outra sociedade de valores diversos. Se a visão de

169
mundo está relacionada ao espaço, então poder-se-ia afirmar que o espaço é uma espécie
de definidor de relações?

Para o geógrafo Milton Santos (2005, p. 22), o conceito de espaço abrange muito
mais do que uma definição de relações: “a história não se escreve fora do espaço e não
há sociedade a-espacial”, sendo “o espaço, ele mesmo social”. Santos questiona “se é
possível falar de Formação Econômica e Social sem incluir a categoria espaço” e se não
seria mais apropriado referir-se a essa categoria como uma “Formação Econômica, Social
e Espacial”. Além disso, Santos distingue o espaço como o local da vida em comum, mas
onde a vida social se individualiza em função das ações individuais:

O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo [...], mas é


também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis,
através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da
espontaneidade e da criatividade. (SANTOS, 2004, p. 322)
Em Escavar e recordar, Walter Benjamin (2012, p.246) também destaca a
importância do espaço ao comparar a memória a um sítio arqueológico, pois segundo ele,
o solo – uma metáfora para a memória – seria o meio a ser cuidadosamente revolvido
para a prospecção do passado. Para Benjamin, as “verdadeiras recordações devem muito
menos proceder informativamente do que indicar o lugar exato onde delas se apoderou o
investigador”.

Literariamente, a questão relacionada ao espaço foi, também, enunciada por


Brandão e Oliveira (2001, p 67) em uma definição, segundo esses autores, “bastante
genérica, que o espaço é esse conjunto de indicações – concretas ou abstratas – que
constitui um sistema variável de relações”. Desta forma, ao criar a identidade de um
personagem ficcional, o autor está simplesmente situando-o de acordo com as relações
espaciais delimitativas em que transitará. Os autores, então, exemplificam: o espaço
geográfico seria constituído pela delimitação física; o espaço social pelas relações com
outros personagens; o espaço psicológico com suas relações existenciais; o espaço da
linguagem com relação à forma de se expressar dos personagens; e assim por diante.
(SANTOS E OLIVEIRA, 2001, p. 68).

Em A poética do espaço, Gaston Bachelard (2003) ao investigar as imagens do


espaço, relaciona as imagens espaciais felizes à ideia de proteção, intrínseca aos valores
humanos. Para Bachelard (2003, p. 25), “[...] todo espaço realmente habitado traz a
essência da noção de casa”, que segundo ele “[...] é o nosso canto do mundo”. Entretanto,
o autor alerta para a necessidade de uma verificação mais atenta de como esse “espaço

170
vital” é habitado. Pois segundo ele, esse espaço contém “todas as dialéticas da vida”.
Bachelard explica que a imaginação, ao encontrar “o menor abrigo”, tende a “reconfortar-
se com ilusões de proteção – ou inversamente, [...] duvidar das mais sólidas muralhas.”
Seguindo esse raciocínio, o autor parte de uma imagem lírica dos espaços de proteção,
para desenvolver concatenações com outras imagens espaciais experienciadas pelo ser
humano, nos diferentes percursos de sua vida. Com base nessa ideia associada ao conceito
de Bachelard, a mobilidade geográfica do protagonista João da Fonseca Nogueira parece
influenciar a percepção dos aspectos físicos e subjetivos relacionados ao espaço por ele
vivenciado, refletindo na escritura de Dourado.

As narrativas da trilogia do alter ego mostram tipos de linguagem bem diversos.


Apesar da recorrência de seus personagens, Dourado confessa buscar conscientemente
não repetir as formas de seus romances ou de seus estilos e já ter se questionado, devido
às diferenças entre eles, se foi realmente ele, Dourado, a ter escrito tais livros (SOUZA,
1996, p. 34 e 43).

A história narrada em O risco do bordado (1983), cuja linguagem margeia o


lirismo, passa-se em Duas Pontes, pequena cidade ficcional, que traz em seu nome “o
signo da dualidade”, como observado por Souza (1996, p. 15). O personagem João, garoto
do interior de Minas, sonha ser no futuro um grande escritor. Suas experiências,
esperanças e recordações compõem uma viagem ao passado realizada por meio da prosa
poética de Autran Dourado.

Em Um artista aprendiz, Dourado contrapõe as espacialidades: à medida que o


espaço físico transitado pelo então jovem adulto se dilata, seu espaço psicológico parece
encolher. As sensações e recordações dessa fase da vida adulta do alter ego parecem
influenciar a escritura de Autran Dourado. Abandonando o lirismo utilizado em O risco
do bordado, o autor opta por transportar em trechos repletos de stream-of-consciousness
os pensamentos quase caóticos despertados pelas angústias, dúvidas e sentimentos
ambíguos.

Essa mudança na escritura de Dourado, proposital ou inconsciente, talvez possa ser


justificada pelo geógrafo Milton Santos (2004, p.328) ao explicar o processo que ocorre
com um imigrante ao abandonar seu espaço de origem e se inserir em outro. Segundo
Santos, as memórias e experiências adquiridas em outro meio e não apropriadas ao novo
lugar são esquecidas a fim da obtenção de novas experiências concernentes à adaptação
ao espaço presente e a sua vivência. Durante o processo de reterritorialização, o que era
171
a princípio perplexidade, torna-se necessidade de orientação para, a seguir, devir ação.
As lembranças dessa época, possivelmente foram assim espelhadas nos romances em
questão.

Em A serviço del-Rei, mais uma vez, a escritura de Autran Dourado se torna outra.
Talvez reflita as influências do serviço público, quer seja consciente ou
inconscientemente, na escrita burocratizada escolhida pelo autor. Essa escrita tão diversa
da prosa lírica de O risco do bordado e das estratégias psicológicas utilizadas em Um
artista aprendiz é um indício da memória dos diferentes aspectos espaciais influenciando
os aspectos subjetivos do personagem e, consequentemente, afetando a composição
ficcional adotada pelo autor. Entretanto, essa afirmativa é apenas um vislumbre e requerer
mais pesquisas para sua confirmação.

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Gerais (1920-1970). São Paulo: Companhia das Letras. 2012. 223 p.

174
POÉTICAS DO COTIDIANO E WEBDOCUMENTÁRIOS: DIÁRIOS
DA VIDA DO HOMEM ORDINÁRIO1

POETICS OF DAYLIFE AND WEBDOCUMENTARYS: NOTES OF


LIFE FROM ORDINARY PEOPLE

Cristina Barretto de Menezes Lopes2

Resumo: Gaza-Sderot é um webdocumentário que aborda o conflito na região de Gaza,


entre Israel e Palestina, através de moradores de duas cidades de fronteira: Gaza, na
Palestina e Sderot, em Israel. A distância entre Gaza e Sderot é de 3 quilômetros. Durante
40 dias foram postados vídeos gravados nessas duas cidades. Os vídeos consistem em
fragmentos de entrevistas, situações cotidianas e relações familiares registrados através
do ponto de vista de catorze participantes – pessoas comuns ou “ordinárias” – que
permitiram que as equipes de filmagem acompanhassem suas vidas durante dois meses.
Palavras-chave: webdocumentários, cotidiano, homem ordinário.

Abstract: Gaza-Sderot is a webdocumentary that addresses the conflict in Gaza between


Israel and Palestine, through living in two border cities: Gaza, in Palestine and Sderot, in
Israel. The distance between Gaza and Sderot is 3 kilometers. For 40 days, were posted
videos recorded in these two cities. The videos consist in fragments of interviews,
everyday situations and family relationships seen through the point of view of 14
participants - ordinary people - which allowed crews accompany their lives for two
months.
Keywords: webdocumentaries, everyday, ordinary man.

INTRODUÇÃO

Gaza-Sderot – Life in Spite of everything é um projeto interativo, disponível online,


que acompanha a experiência de homens, mulheres e crianças vivendo em uma região de
conflito sob ameaças constantes de ataques aéreos e bombardeios, através de vídeos com
registros de situações cotidianas de moradores das duas cidades. O projeto original foi
coproduzido por uma equipe em Israel e outra em Sderot e recebeu o “Prix Europa”, no
ano de 2009.

1
Mesa-redonda No compasso do homem comum.
2
Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e professora das
Faculdades Metrocamp, Campinas (SP).
175
Trata-se de uma série de filmes curtos, de dois minutos cada, produzidos em 20083,
com a proposta de documentar a vida de pessoas comuns em Gaza (território palestino) e
Sderot (território israelense). Durante 10 semanas, equipes israelenses e palestinas
filmaram moradores de cada região, cinco dias por semana.

Os participantes – sete em Sderot e sete em Gaza – permitiram que suas atividades


rotineiras fossem documentadas: trabalho, lazer e reuniões familiares; e disponibilizadas
diariamente na web. A proposta do projeto era mostrar que mesmo em meio a conflitos,
apesar de tudo, a vida continua.

Os filmes que compõem o projeto Gaza-Sderot trazem algumas particularidades:


além do fato de serem apresentados em um formato específico (2 minutos de duração),
foram organizados dentro de uma proposta maior – o webdocumentário – que reúne, além
dos registros audiovisuais, outras informações sobre o tema. Eles também podem ser
acessados aleatoriamente, além da disposição cronológica em que foram organizados. O
projeto completo pode ser visto em http://gaza-sderot.arte.tv.

WEBDOCUMENTÁRIOS

Não há uma única definição para webdocumentários. Esse formato audiovisual faz
parte de um conceito relativamente novo, que se desenvolve a partir de um contexto
específico de comunicação interativa, de acesso livre, possível somente através da
navegação pela web.

Segundo Tatiana Levin (2013), o termo foi utilizado pela primeira vez no ano de
2002, no festival de documentários Cinema du Réel, para identificar uma nova forma de
organização narrativa audiovisual. Em busca de uma definição adequada ao termo, Levin
organiza algumas definições propostas por diferentes pesquisadores da área, desde um
documentário feito para web (definição literal do termo), até pensamentos mais
elaborados, como o da pesquisadora Sandra Gaudenzi, que estabelece parâmetros
específicos relacionados à interatividade.

O fato é que ainda não há um consenso quando se trata de analisar esse novo
formato. Os próprios autores de propostas audiovisuais interativas divergem sobre incluir

3
O ano de 2008 é significativo: marcou o aniversário de 60 anos da criação do Estado de Israel, data
conhecida pelos palestinos como "Nakba", a catástrofe.
176
seus trabalhos como uma extensão do gênero documentário. Gaudenzi também discorda
da leitura de que documentários interativos são uma continuação dos documentários
lineares. Para a pesquisadora, apesar de ambas categorias terem como proposta a
documentação da realidade, são utilizadas lógicas diferentes para isso. Dentro desse
contexto, a pesquisadora propõe uma análise a partir de diferentes “modos de interação”
para tipos de interatividade distintos. A autora chama a atenção para a complexidade –
em lugar da especificidade do gênero – e sugere usar outros atributos para analisar
documentários interativos: como um sistema em relação constante com o seu ambiente,
um sistema que tem as características de um sistema autopoiético.

Partindo dessa lógica, Gaudenzi cria quatro categorias para classificar obras
documentais interativas, de acordo com as possibilidades de participação do usuário.
Essas obras documentais são denominadas pela autora como I-Docs:

1) Modo conversacional – se estabelece a partir da relação do usuário com a


máquina, onde será realizada a navegação. O conceito é oriundo de experiências
realizadas no final dos anos 1970, com a invenção do “videodisco”, que permitia
armazenar e acessar por um tempo limitado imagens de vídeo através do computador.
Com essa tecnologia, Andy Lippmann, então pesquisador do MIT, desenvolveu um
projeto para ambientes em 3 dimensões – o media room – um espaço físico criado
especialmente para que o usuário pudesse controlar a velocidade e a direção de um
passeio pela cidade de Aspen, Colorado, nos Estados Unidos. Para o sucesso dessa
experiência, a “conversa” estabelecida deveria ultrapassar a recepção passiva – da escuta.
O usuário deveria sentir-se livre para improvisar movimentos e o software responderia às
suas decisões. Nesse ambiente, ninguém – nem o usuário nem o autor – poderia controlar
o que iria acontecer em seguida. A documentação, nesse tipo de relação, é simulada e a
realidade não é previsível, mas experimentada.

2) Modo hipertextual – é um desdobramento do modo conversacional, possível


através do desenvolvimento e acesso aos computadores pessoais. Em 1989, a Apple
Multimedia Lab organizou um dia de filmagem na pequena cidade americana de Moss
Landing. Várias câmeras filmaram simultaneamente a vida dos habitantes da cidade e o
usuário que estivesse acompanhando o projeto poderia interagir através de imagens de
objetos ou de pessoas, disponíveis em um grande painel. A tela escolhida seria expandida
mostrando o ponto de vista da pessoa ou da posição do objeto. A narrativa não permitia
inserção de conteúdos, mas possibilitava acessos não lineares, ou seja, o usuário poderia

177
“criar” narrativas próprias a partir de escolhas possíveis do painel. A realidade, nesse
projeto, deveria ser entendida como um conjunto de possibilidades.

3) Modo participativo – Em 1995, o grupo de cinema interativo do MIT criou um


projeto que permitia trabalhar com um banco de dados aberto a mudanças. O grupo
desenhou um navegador – ConText – quer permitia novas entradas no banco de dados.
Os autores anotavam palavras-chave nos primeiros trinta segundos dos vídeos e um
sistema de Storytelling autômato produzia apresentações dinâmicas a partir da extensa
coleção de vídeos anotadas com palavras-chave. A partir do interesse do usuário, o
programa deixava os vídeos tocando continuamente. Só parava quando o usuário
intervinha.

Diferente do modo hipertextual, que é criado exclusivamente por um “autor” e o


usuário apenas manipula as opções disponíveis através de um banco de dados; no modo
participativo o usuário também pode acrescentar dados: ele se transforma numa espécie
de coautor. No início dos anos 2000 e nos anos subsequentes muitas experiências foram
realizadas a partir do modo participativo: plataformas de publicação de vídeos on-line,
documentários filmados em coautoria com pessoas de diversas partes do mundo e outros
projetos produzidos a partir de contatos com outros usuários – desconhecidos ou não – na
web.

4) Modo experimental – Os projetos envolvendo o modo interativo experimental


são mais recentes, datam do início dos anos 2000, e foram realizados através de
experiências com mídias locativas GPS (Global Positioning System) e móveis (celulares).
O que conta, nesse tipo de abordagem, é a experiência física (não há uma representação
da realidade, mas a descoberta da própria realidade) em um ambiente preparado para
estimular a percepção. Essa experiência é registrada e pode ser compartilhada por outros
indivíduos. A sensação não é somente de imersão. Além de passar pelo projeto, o
indivíduo é estimulado a registrar (através de áudio, texto, imagens) e compartilhar suas
próprias impressões.

GAZA-SDEROT

Considerando as quatro categorias descritas acima, o modo de interação do


webdocumentário analisado – Gaza-Sderot – encaixa-se no hipertextual: há uma
limitação quanto à participação do usuário. O projeto apresenta quatro possibilidades de

178
acesso aos vídeos através de links: timeline, que organiza os episódios em pontos
marcados por data de produção na cor laranja; faces, que apresenta uma brevíssima
biografia de cada participante ao clicar em cima de cada retrato; maps, que permite
acessar os vídeos pelo espaço geográfico e, por último, o acesso através dos topics (amor,
dinheiro, esporte, trabalho etc.). Ou seja, em qualquer uma das opções descritas acima, a
ordem de exibição dos vídeos, bem como tempo de duração de cada um deles na tela do
computador, é definida pelo usuário. Há ainda, na parte inferior da tela, uma barra com 5
links: quick tour, que explica em oito passos como funciona a navegação para o usuário;
about this program, que oferece informações sobre o projeto e equipe técnica; The blog;
New videos, que leva o usuário a novos vídeos publicados depois de finalizado o projeto;
Partner, com informações sobre os parceiros que possibilitaram o desenvolvimento do
trabalho e as opções para as legendas, em alemão, inglês, francês, árabe e hebreu. O
trabalho não permite que o usuário envie material expandindo o projeto (participativo) ou
mesmo experimentando fisicamente a realidade daquela zona de conflito (experiencial).
É um hipertexto com possibilidades de organização do material, mas ainda assim limitado
e fechado.

A importância maior do trabalho não está, portanto, relacionada à tecnologia. Foi


com a possibilidade de estabelecer um canal direto de comunicação – burlando as grandes
redes de televisão e outros veículos de massa – que Gaza-Sderot, com uma proposta
estética que integra várias áreas (arquitetura de informação, design gráfico, jornalismo e
comunicação audiovisual), disponibilizada em uma plataforma de distribuição livre e
direta, ganhou grande visibilidade no final de 2008, quando os conflitos na região se
agravaram. Ali, não havia grandes empresas “intermediando” as informações. Os vídeos
eram postados quase em tempo real e acessados por milhões de pessoas ao redor do
mundo de uma forma diferente4.

Em Gaza-Sderot, a página de acesso aos filmes se abre com as imagens dos dois
territórios dividindo a tela e um texto explicativo entre elas. Essa tela dividida já posiciona

4
É importante lembrar que a navegação em um webdocumentário permite que o usuário explore um
ambiente completo: já não se trata de acessar vídeos através de sites de compartilhamento de vídeos como
o Youtube ou Vimeo, por exemplo. A proposta é integrar todos os elementos adequando da melhor maneira
possível o design gráfico ao conteúdo.
179
o usuário no contexto do trabalho: remete aos conflitos na fronteira5 entre as duas cidades,
que não é – a princípio – definida por limites físicos.

Separado por uma linha, também representada no projeto na tela seguinte, o layout
assumido na navegação de Gaza-Sderot permite que o usuário, ao clicar em Watch the
Program, acesse os filmes organizados por datas, através de uma “linha do tempo”
vertical. De cada lado da linha aparecem imagens de dois participantes do projeto: Abu
Khalil, em Gaza, na Palestina, e Yafa Malka, em Sderot, Israel.

O acesso aos vídeos é livre, ou seja, tanto se pode optar por assistir o primeiro
trabalho postado, em 26/10/2008, quanto ao último, em 23/12/2008, em ordem de
postagem ou aleatoriamente.

Ao assistir aos filmes, o usuário acompanha a experiência única de cada indivíduo


que se coloca diante da câmera e generosamente compartilha alguns momentos do seu
dia. É essa singularidade e a possibilidade de acesso a essas vidas que fazem desse novo
campo de criação – os webdocumentários – um enorme território para experimentações
estéticas no registro da história através do cotidiano.

Michel de Certeau, historiador, em A invenção do cotidiano – artes do fazer,


entende que é nas formas como o homem comum se organiza a partir das referências que
recebe – simbólicas ou não – e que fundamentam as regras da vida em sociedade, que
ocorre seu movimento de resistência. Resistência da fragilidade humana em relação aos
mecanismos de poder que orientam e controlam a vida de cada indivíduo.

Em O único e o singular, Paul Ricoueur (1999, p. 45) diz ao entrevistador Edmond


Blattchen, em resposta a uma pergunta sobre o sentido da responsabilidade, que: “[...]
onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. [...] o objeto de
responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita. Porque o frágil está, de algum
modo, confiado à nossa guarda. Entregue ao nosso cuidado”. É essa fragilidade da
existência do homem ordinário, suas memórias perecíveis, o foco deste trabalho.

5
A palavra fronteira, etimologicamente, deriva do francês frontière – que é a vanguarda das tropas
militares. São as fronteiras que estabelecem as bases sobre os quais as culturas vão se desenvolver.
180
O CONCEITO DO HOMEM ORDINÁRIO EM MICHEL DE CERTEAU

Michel de Certeau propõe em suas reflexões que o homem, ao inventar novos usos
para os espaços organizados pelas técnicas de produção sociocultural, age através de um
comportamento de resistência, que se atualiza na sua produção – uma poética (do grego
poiein: “criar, inventar, gerar”), que se insinua silenciosa e quase invisível na fala que se
forma oralmente a partir dos códigos linguísticos impostos; nas maneiras de usar produtos
disponibilizados por uma ordem econômica dominante e ao ocupar espaços públicos de
forma diversa da que se estabeleceu quando foram projetados.

Nas novas maneiras de usar coisas é que se estabelecem outras relações. “[...] que
procedimentos populares (também minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos
da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que maneiras
de fazer formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou 'dominados'?), dos
processos mudos que organizam a ordenação sociopolítica.” (CERTEAU, 1990, p. 30).

Em Gaza-Sderot é através do homem ordinário, herói comum (CERTEAU, 1994,


p. 57), que entramos em contato com os conflitos na região. Para entender melhor a
proposta, é importante ressaltar que o espaço onde se localizam as duas cidades está em
crise desde que Gaza – que era parte da Palestina quando o território estava sob
administração britânica – foi ocupada por Israel após a Primeira Guerra Mundial. Desde
então, a região já pertenceu ao Egito, voltou para Israel e atualmente ocupa uma faixa de
365 quilômetros quadrados (42 km de comprimento e 6 a 12 km de largura), que pertence
à Palestina. O restante do território continua dominado por Israel.

É nesse contexto que os vídeos que compõem o webdocumentário Gaza-Sderot


foram produzidos. O cotidiano do homem comum é apresentado como práticas –
estratégicas ou táticas – de sobrevivência e subverte os parâmetros conceituais que o
entendem como rotinas ou regularidades. O que Certeau expõe em seu pensamento em
relação ao cotidiano – como uma espécie de campo de batalha, cujas táticas precisam
encontrar modos inventivos de escape e confrontação em cada situação – está presente
nos filmes de 2 minutos realizados na região de conflito: rompe não apenas com o caráter
normativo da ação social cotidiana, como também realça um aspecto pouco contemplado
em outras abordagens, ou seja, nas relações de poder que incidem de modo substancial
na construção social da vida pública cotidiana. A noção de cotidiano como práticas, em
Certeau, permite que se analise formas distintas de apropriação do espaço, de formação

181
de lugares e do rompimento de fronteiras que demarcam socioespacialmente a vida
urbana.

A preocupação de Certeau não é estabelecer condicionantes das práticas sociais


como sujeitos, nem afirmar a preponderância dos contextos e das estruturas; menos ainda,
de estabelecer qualquer terceira via. A preocupação de Certeau é, ao contrário,
compreender como as práticas cotidianas, cujo ser só se forma na própria prática, escapam
dos condicionantes sociais nas quais estão sujeitas, ainda sem que fujam totalmente deles.
"Eu gostaria de acompanhar alguns dos procedimentos – multiformes, resistentes,
astuciosos e teimosos – que escapam da disciplina sem ficarem mesmo assim fora do
campo que exerce, e que deveriam levar a uma teoria das práticas cotidianas, do espaço
vivido e da inquietante familiaridade da cidade" (CERTEAU, 1994, p. 175).

O webdocumentário analisado contempla o ponto de vista de 14 indivíduos. Do


lado de Gaza, na Palestina, participaram:

➢ Khalaf Qassim, músico. Criou um grupo de música folclórica com seus


filhos para atuar em celebrações e casamentos. 8 vídeos;

➢ Sefian Baker, 45 anos, pescador. 7 vídeos;

➢ Abu Khalil, 43 anos, motorista de ambulância. 9 vídeos;

➢ Madeha Abu Nada, 47 anos, fazendeira, trabalha com agricultura perto da


fronteira em Bet Lahya. 7 vídeos;

➢ Ahmed Quffah, 20 anos, professor de kung fu. Está no Guinness Book por
fazer flexões com dois dedos. 3 vídeos;

➢ Heba Safi, estudante, trabalha com o Clube de Jornalistas Jovens e sonha


fazer um documentário. 6 vídeos.

➢ Amjad Dawahidy, farmacêutico. Enfrenta muita dificuldade para


providenciar medicamentos, particularmente quando a fronteira está
fechada. 7 vídeos.

Do lado de Sderot, em Israel, participaram:

➢ Sason Sara, 57 anos, proprietário de uma mercearia e candidato na eleição


local. 7 vídeos.

➢ Avi Vaknin, 31 anos, músico. Na época do projeto tinha publicado sua

182
primeira música. 7 vídeos;

➢ Yafa Malka, 45 anos, cabeleireira. Ela lembra os velhos tempos, quando


costumava encontrar palestinos em Gaza. 8 vídeos;

➢ Daniele Mordechai, 16 anos, estudante e atriz. Ela também atua em um


programa de rádio para sua aula de comunicação. 6 videos;

➢ Simi Zubib, 65 anos, imigrou de Marrocos aos 10 anos e vive em Sderot


até hoje. 7 vídeos;

➢ Andre Avhalikov, 18 anos, estudante e lutador profissional de boxer.


Imigrou para Israel das Montanhas Causasus e sonha em ganhar o
campeonato sênior. 7 vídeos;

➢ Haviv Ben Abu, 43 anos, artista. Nasceu em Sderot e trabalha como


escultor, pintor e professor de arte. 5 vídeos.

CONCLUSÃO

Considerando algumas características específicas do webdocumentário


(distribuição através de dados, navegação interativa e não linear, acesso gratuito e não
necessariamente vinculado ao espaço geográfico), é possível afirmar que esse formato
mostra-se extremamente adequado como forma de resistência contra a mídia hegemônica,
como sugere Certeau em A invenção do cotidiano – artes de fazer. Ao se apropriar da
web para (re)apresentar uma imagem – através de autobiografias ou biografias – o
indivíduo encontra um território livre, ainda não totalmente dominado pelas mídias
corporativas, onde ele também pode se ver enquanto agente ativo. Já não se trata de
receber passivamente informações audiovisuais sem poder de diálogo. Aqui, o indivíduo
é estimulado a expor o seu ponto de vista, sem intermediação.

Na sua introdução à segunda edição do livro A Obra Aberta, Umberto Eco defende
que toda obra de arte é aberta: além de possibilitar várias interpretações, a obra aberta
apresenta-se de várias formas e cada uma delas é submetida ao julgamento do público.
No webdocumentário, essa característica é potencializada: ao permitir que o acesso à obra
se dê a partir de diferentes possibilidades (a escolha de uma sequência possível de
capítulos, imagens ou sons, por exemplo), a fruição se transforma também em um ato de
criação.

183
Enquanto espaço de resistência frente à fragilidade da existência humana – breve,
imprevisível, perigosa – a web se mostra um território possível para desvios, rupturas e
novas elaborações para que a história da vida ordinária seja escrita, registrada e
compartilhada.

REFERÊNCIAS

CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano – artes do fazer. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
1990.

GAUDENZI, Sandra. Interactive documentary: towards an esthetic of the multiple. Londres:


University of London, Centre for Cultural Studies (CCS) of Goldsmiths, 2009. Disponível em:
<http://www.interactivedocumentary.net/about/me/>. Acesso em: out. 2013.

ECO, Umberto. A Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 2003.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Ática, 1991.

LEÃO, Lucia. O Labirinto da Hipermídia. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999.

LEVIN, Tatiana. Do documentário ao Webdoc: questões em jogo num cenário interativo. Doc
On-line, Covilhã, n. 14, p. 71-92, ago. 2013. Disponível em:
<http://www.doc.ubi.pt/14/dossier_tatiana_levin.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2018.

LEVY, Pierre. A ideografia dinâmica. São Paulo: Loyola, 2004.

LIETAERT, Matthieu (ed.). Webdocs: A survival guide for on-line filmmakers. Bruxelas: Not
So Crazy! Productions, 2011.

MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo:
Edusp, 1996.

MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas.


São Paulo: Zouk, 2003.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.

RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac,
2008.

RICOEUR, Paul. O único e o singular. São Paulo: Unesp, 1999.

184
LOUIS-FERDINAND CÉLINE: ESPAÇO BIOGRÁFICO E
ESPAÇO PÚBLICO NAS ENTREVISTAS1

LOUIS-FERDINAND CÉLINE: BIOGRAPHICAL SPACE AND


PUBLIC SPACE IN THE INTERVIEWS

Daniel Teixeira da Costa Araujo2

Resumo: Tendo como pano de fundo um estudo mais amplo sobre a Trilogia Alemã, de
Louis-Ferdinand Céline, composta pelos romances D’un château l’autre (1957), Nord
(1960) e Rigodon (1969 - póstumo), com relação aos grandes eixos temáticos da viagem,
da memória, do niilismo e da invectiva e seus possíveis desdobramentos, o presente
trabalho tem por objetivo discutir os momentos biográficos e a construção de um espaço
autobiográfico através de entrevistas concedidas por Céline. A partir dessa reflexão, será
proposta uma discussão sobre o uso que o autor faz do espaço público das entrevistas e
da entrevista ficcional Entretiens avec le professeur Y, indo desde a construção de um
mito pessoal e de um personagem público até a promoção publicitária de seus romances.
Para tanto, seguiremos as considerações de Eleonor Arfuch para quem as entrevistas
representam um gênero no limiar entre o público e o privado e contribui para a
constituição de uma subjetividade, com a particularidade de se dar no espaço público.
Serão aproveitadas também as considerações de Henri Gordard e Jean Dauphin sobre a
comparação entre a função do prefácio e das entrevistas. Segundo eles, as entrevistas
substituem, a partir do século XIX, as funções do prefácio, por exemplo, de explicação
das condições de escrita da obra, indicação de chaves de leitura ou a preocupação em
dirimir equívocos de leitura, com a vantagem de atingir um público maior do que aquele
que já possui o livro em mãos. Além disso, procurar-se-á, através das entrevistas, dar
destaque também à questão do estilo céliniano com foco na discussão sobre a invectiva e
sua relação tanto com o antissemitismo quanto com o riso. Por fim, destacar-se-á que, em
Céline, tem-se na guerra o elemento de sutura entre memória, viagem e escrita, de modo
a se apresentar como o motor que desencadeia uma relação de conflito para com
instituições literárias e políticas. A obra de Céline, pela intrincada relação entre política
e literatura, exige, assim, uma abordagem que não dissocie esses campos.

Palavras-chave: Louis-Ferdinand Céline; espaço biográfico; espaço público; entrevistas.

Abstract: Against the backdrop of a broader study on the Louis-Ferdinand Céline's


German Trilogy, comprising the novels D'un château l'autre (1957), Nord (1960) and
Rigodon (1969 - posthumous), with respect to the large themes of travel, memory,
nihilism and invective and its possible outcomes, the present study aims to discuss the
biographical moments and the construction of an autobiographical space through some
interviews granted by Céline. Based on this reflection, a discussion is going to be

1
Mesa-redonda A exposição do sujeito nos meios de comunicação II.
2
Doutor em Letras Neolatinas – Literaturas em Língua Francesa pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
185
proposed about the use the author makes of the public space of the interviews and of the
fictional interview Entretiens avec le professeur Y, ranging from the construction of a
personal myth and of a public character to advertising promotion of his novels. To do so,
Eleanor Arfuch’s considerations will be followed, for whom interviews represent a genre
on the threshold between public and private and contributes to the constitution of
subjectivity, with the particularity of taking place in the public space. It will also be taken
advantage of the Gordard Henri and Jean Dauphin's considerations on the comparison
between the function of the preface and the interviews. According to them, the interviews
replace, from the nineteenth century on, the functions of the preface, for example, the
explanation of the conditions of writing a work, the indication of key readings and the
preoccupation with solving misconceptions of reading, with the advantage of achieving
a wider audience than that one that already has the book in their hands. In addition, efforts
will be made, through the interviews, to highlight célinian style with focus on discussion
of invective and its relationship with both anti-Semitism and laughter. Eventually, the
war as the element of suture between memory, travel and writing is going to be also
emphasized, so it will stand out from the present as the engine that triggers a conflict
relationship towards literary and political institutions. In this sense, the study of Céline’s
work requires an approach that does not dissociate these fields, due to the intricate
relationship between politics and literature.

Keywords: Louis-Ferdinand Céline; biographical espace; public espaces; interviews.

A produção escrita de Céline passou por domínios diversos e diferenciados, como


romances, panfletos, textos políticos, sobre medicina e higiene, peças teatrais e balés. O
presente trabalho tem por objetivo discutir o uso que Céline faz do espaço público das
entrevistas, visando discutir a construção de um mito pessoal através dos retratos e
autorretratos apresentados nas entrevistas, a relação entre trabalho e vocação concernente
à literatura e à medicina e as afirmações de Céline quanto à elaboração de seu estilo. Ana
Maria Alves destaca a vontade de Céline, a partir do início dos anos 1950, logo após o
exílio na Dinamarca, de retomar o escândalo de natureza literária, ou seja, à questão de
seu estilo, fazendo a clara oposição entre o homem de estilo e o homem de ideias,
procurando situar-se, evidentemente, ao lado do primeiro, ainda que, em matéria de
escândalo, Céline seja ao mesmo tempo sujeito e objeto. Em 1958, no registro radiofônico
L.-F. Céline vous parle, Céline dá exemplo claro disso: “Ce n’est pas mon domaine, les
idées, les messages. Je ne suis pas un homme à message. Je ne suis pas un homme à idées.
Je suis un homme à style”3 (CÉLINE, 2008, p. 87).

3
“Não é minha área, as ideias, as mensagens. Eu não sou um homem de mensagem. Eu não sou um
homem de ideias. Eu sou um homem de estilo” (tradução nossa).
186
CÉLINE E O USO DO ESPAÇO PÚBLICO

Segundo Henri Godard e Jean-Pierre Dauphin (DAUPHIN; GODARD apud


CÉLINE, 2006, p. 9), a partir do final do século XIX e, particularmente, entre as duas
Guerras Mundiais, o desenvolvimento do jornalismo literário forneceu aos escritores um
novo meio de comunicação com o público, garantindo-lhes, através de artigos escritos
para jornais ou entrevistas concedidas aos meios de comunicação, o alcance de um
público mais vasto que aquele conseguido unicamente com seus leitores.
Apesar da efemeridade própria desses meios de comunicação, as entrevistas, artigos
de imprensa assinados pelos próprios escritores e comentários produzidos por jornalistas
são dotados de um valor marginal se comparados à obra em si, no entanto são capazes de
interferir na formação da imagem pública dos escritores e, assumidos como um discurso
paralelo porém legítimo, podem trazer importantes esclarecimentos à obra. Dauphin e
Godard lembram que esses textos intervêm na formação da imagem que o público faz do
escritor e modificam a relação estabelecida entre o público e a obra publicada, deslocando
seu centro de gravidade, daí o interesse em se propor essa abordagem no presente estudo.
Um ponto a se destacar em favor do estudo das entrevistas levantado por Dauphin
e Godard, quando as diferenciam da função anteriormente exercida pelos prefácios, é que
os prefácios serviam antes como um meio para o escritor apresentar o que pretendia com
a publicação de uma obra, as condições em que foi escrita, antecipar ou dissolver mal-
entendidos, afirmar seus princípios e objetivos, e até mesmo delinear uma poética.
Contudo, segundo eles, as entrevistas tenderiam a cumprir essas funções de orientação da
leitura, o que se soma ainda à vantagem de atingirem um público mais vasto do que aquele
do prefácio, restrito a quem já tivesse o livro em mãos. Com isso, as entrevistas
possibilitariam atrair um público ao mesmo tempo novo e vasto para a obra.
É importante, no entanto, chamar a atenção para o fato de que, quando se manipula
esse tipo de texto, tem-se acesso a diversos aspectos da reflexão do autor sobre sua obra
e seu trabalho, porém de maneira descontínua, ainda que coerente, o que requer um
esforço de reconstrução dos passos dessas reflexões, seja em uma mesma entrevista seja
em um conjunto de entrevistas concedidas ao longo da vida do escritor, procurando
dirimir repetições, digressões, interrupções e outras falhas próprias da comunicação oral
(DAUPHIN; GODARD apud CÉLINE, 2006).

187
Desse modo, segundo Dauphin e Godard, a particularidade das entrevistas estaria
em acompanhar a obra publicada, seja em tomadas de posição ou, por exemplo, em
filosofias da vida, do homem ou da história, ecoando a obra, entretanto sem o trabalho
próprio da escrita, fornecendo a esta, contudo, um termo de comparação. Além disso,
quanto à personalidade pública, ou mais propriamente quanto à imagem do escritor, o que
as entrevistas em rádio fazem em parte e, aquelas em televisão o fazem explicitamente,
as entrevistas escritas, na forma do retrato (portrait), dão ao escritor uma presença física,
emprestando a ele um corpo, uma voz, um olhar, numa espécie de evocação de sua figura
(DAUPHIN; GODARD apud CÉLINE, 2006). Por ora, a título de exemplo e curiosidade,
destaca-se a atenção dada aos olhos de Céline em algumas de suas primeiras entrevistas,
cuja descrição ultrapassa a mera aparência e parece buscar alguma proximidade com a
literatura do autor:
Et je ne vois plus maintenant que les yeux de M. Céline, qui parle
très vite, d’un ton saccadé. Des yeux dont le regard est comme
crispé, des yeux douloureux intensément, des yeux à faire pleurer4
(BROMBERGER apud CÉLINE, 2006, p. 30);

[...] j’ai vu un homme, un gaillard, grand, sans rien de très


remarquable, sinon, seule lumière de ce visage, deux yeux
admirables, tantôt cruels et tantôt tendres5 (VIALAR apud
CÉLINE, 2006, p.32-33);

Alors je vois deux yeux gris sous des sourcils blonds et jolis.
Tantôt ces yeux sont lents et comme épuisés d’éclats, tantôt ils
sont follement vifs6 (MOLITOR apud CÉLINE, 2006,p. 40);

[...] des yeux clairs, très bleus, petits et pleins de méditation, des
yeux ‘sérieux’ d’hommes qui a couru beaucoup de dangers, pris
des responsabilités, etc., des yeux de marin (il est breton) ou de
psychiatre (il est docteur)7 (SAINT-JEAN apud CÉLINE, 2006,
p.49).

Para Eleonor Arfuch (2010), o surgimento da figura da celebridade tornou


manifesta a relação implicada entre lei de mercado e modelização como desejo

4
“E agora eu vejo apenas os olhos do Sr. Céline, que fala muito rápido, com um tom irregular. Olhos cujo
olhar é tão tenso, olhos intensamente dolorosos, olhos de fazer chorar” (tradução nossa).
5
“[...] eu vi um homem, um sujeito, grande, sem nada de muito notável, a não ser, única luz desse rosto,
dois olhos admiráveis, às vezes crueis, às vezes ternos” (tradução nossa).
6
Então vejo dois olhos cinzas sob sobrancelhas loiras e belas. Às vezes esses olhos são lentos e parecem
exaustos de brilhar, às vezes eles são loucamente vivos” (tradução nossa).
7
“Olhos claros, muito azuis, pequenos e cheios de meditação, olhos ‘sérios’ de homem que correu muitos
perigos, que assumiu responsabilidades, etc., olhos de marinheiro (ele é bretão) ou de psiquiatra (ele é
médico)” (tradução nossa).
188
identificatório, o que faria com que pessoas investidas desse valor passassem a adquirir
categoria de símbolo (ARFUCH, 2010). E Céline, para bem ou para mal, se via como
símbolo, atravessado, porém, pelo seu pendor à vitimização: “Eux aussi d’ailleurs
rêvaient d’avoir ma peau. Je suis un symbole, je vous dis. Ils m’auraient livré avec plaisir
si ça avait pu les sauver”8 (CÉLINE, 2008, p. 39). Contudo, a transformação do escritor
em personalidade engendrada pela imprensa o força a expressar sua opinião sobre os mais
diversos assuntos da atualidade. Esses movimentos acontecem muitas vezes naturalmente
pela dominação da palavra que Céline costuma exercer nas entrevistas, tendendo
comumente ao monólogo e, muitas vezes, ao seu fluxo discursivo, não abordando
diretamente a pergunta feita.
Victor Molitor, sobre a entrevista que fez com Céline para os Cahiers
luxembourgeois, em 1933, comentaria:
Notre conversation est une espèce de sauterie verbale. Autant
Céline est prolixe en écrivant, autant il est laconique en parlant.
De même, il ne veut pas préciser, et je dois faire quelques efforts
pour avoir des réponses assez conformes à certaines de mes
questions9 (CÉLINE, 2006, p. 41).

A impressão de Élisabeth Porquerol vai na mesma direção: “[...] l’important pour


lui est de se griser, l’interlocuteur, c’est un spectateur, et encore, à peine – il ne cherche
pas à me convaincre, il fait son numéro, tout simplement, il se soûle”10 (CÉLINE, 2006,
p. 47-48).
O caso de Céline é paradigmático no que tange à relação com o espaço público
através dos meios de comunicação, pois esse formato transborda para dentro de seus
romances, mostrando a relação que o autor mantém com jornalistas, como é o caso das
Entretiens avec le professeur Y (1955), entrevista ficcional na qual Céline expõe
sobretudo considerações a respeito de seu estilo e de sua relação com seu editor, Gaston
Gallimard. Nesse sentido, para Dauphin e Godard, as entrevistas de Céline evidenciam a
transposição que guia a passagem da biografia à obra romanesca. Cabe observar, ainda
de acordo com Dauphin e Godard, que Céline não faz amplo uso de sua notoriedade para

8
“Além disso, eles também sonhavam arrancar a minha pele. Eu sou um símbolo, estou te dizendo. Eles
teriam me entregado com prazer, se isso os pudesse ter salvo” (tradução nossa).
9
“Nossa conversa é uma espécie de dança verbal. Céline é tão prolixo ao escrever quanto lacônico ao falar.
Do mesmo modo, ele não quer ser preciso e eu tenho que fazer esforços para ter respostas mais
conformes a certas perguntas minhas” (tradução nossa).
10
“[...] o importante para ele é se embriagar, o interlocutor é um espectador e ainda assim com dificuldade
– ele não procura me convencer, ele faz seu número, simplesmente, ele se embriaga” (tradução nossa).
189
se servir da imprensa, recorrendo a ela poucas vezes através de cartas ou respondendo a
enquetes, praticamente desconhecendo o formato do artigo de imprensa, ainda que às
vezes tome a iniciativa de escrever a alguns jornalistas.
Essa relação segue normal desde a publicação de Voyage au bout de la nuit, vindo
a se modificar apenas com a publicação dos panfletos a partir de 1936 e com as posições
políticas tomadas durante a Segunda Guerra. Dauphin e Godard destacam o
distanciamento da imprensa surgida da Liberação face à Céline após seu retorno do exílio,
momento marcado por um tom de hostilidade – também da parte de Céline – que se altera
pouco a pouco com o reconhecimento de qualidades do escritor e com a admiração
pessoal por parte certos jornalistas. Sobre essas demonstrações de hostilidade, talvez seja
interessante lembrar que é justamente um pequeno ato de hostilidade que desencadeia o
início da entrevista das Entretiens, neste caso em um claro gesto de que é Céline quem
deseja que a entrevista aconteça:
Je lui [au Professeur Y] dis tout ce que je trouve de méchant!...
qu’il ressaute!... hostile pour hostile, qu’il se foutre en boule!...
que je le claque!... qu’on se boxe si on s’interviouwe pas!... je
raconterai le tout à Gaston! il se marrera!... il m’avancera une
brique de mieux!... dettes pour dettes!...11 (CÉLINE, 2010, p.
497).

Godard e Dauphin assinalam um certo rito ou mise en scène presente nas entrevistas
do período pós 1957 quanto à atenção dada pelos jornalistas à decoração da casa de Céline
e às suas roupas, assim como com relação à preocupação do próprio Céline em compor
um personagem, podendo variar a depender de quem for o entrevistador. Dauphin e
Godard indicam, no entanto, o mês de junho de 1957 como marco de uma mudança
radical da relação de Céline com a imprensa. A razão disso é a publicação de D’un
château l’autre, responsável por retirar Céline de uma espécie de interdito que vigorou
mais fortemente a partir 1944.
Céline teria aproveitado desse bom momento para provar àqueles que o davam por
um escritor em fim de carreira que estava em pleno domínio de sua arte literária. Além
disso, Céline usa de D’un château l’autre para mostrar o nascimento de um Céline
cronista, que havia sido anteriormente romancista e panfletário. Como observam Dauphin

11
“Eu lhe disse [ao Professor Y] tudo o que eu considero desagradável!... que ele proteste!... hostil por
hostil, ele que se foda!... que eu o esbofeteie!... que a gente saia no boxe se a gente não se entrevistar!...
eu contarei tudo a Gaston! ele vai rir muito!... ele me fará um adiantamento melhor!... dívida por
dívida!... (tradução nossa).
190
e Godard, o conjunto de entrevistas e textos de Céline na imprensa entre 1957 e 1961
ultrapassa aquele de 1932 a 1957, o que demonstra que Céline aproveitou desse momento
de celebridade da atualidade literária para recolocar à sua disposição esse meio que lhe
conferiria a possibilidade de expor explicações e comentários impossíveis em amplitude
no período precedente, valendo lembrar que, nesse período, tanto a obra romanesca
quanto as entrevistas são marcadas por um forte balanço da vida do autor. Ainda segundo
Dauphin e Godard, Céline imprimirá nesses últimos anos uma marca ao mesmo tempo de
acusador e vítima, pontuada pelo pitoresco de seu tom e vocabulário (DAUPHIN;
GODARD. Apud CÉLINE, 2008).
O MITO PESSOAL

Em diversas ocasiões, Céline afirma que se lançou na literatura unicamente para


comprar um apartamento, daí o lançamento de Voyage sob pseudônimo, precaução
tomada para resguardar o exercício da medicina – tantas vezes anunciada como a sua
verdadeira vocação – das polêmicas que poderiam advir da publicação do livro, como se
o autor já previsse o impacto do livro e as reações desencadeadas por ele. Céline dirá, por
exemplo, a Pierre Dumayet, em 17 de julho de 1957:
C’est-à-dire que je suis parti dans l’écriture du livre sans vouloir
obtenir une notoriété quelconque. Je pensais simplement en tirer
un honnête bénéfice pour me payer un petit appartement dont
j’avais bien besoin à l’époque. Et puis les choses se sont
développées de telle façon que la vie du médecin, d’humble
médecin que... est devenue impossible et m’a compliqué de plus
en plus la vie12 (CÉLINE, 2008, p, 59).

Pode-se notar aí um jogo que Céline estabelece entre, de um lado, um discurso de


que teria se envolvido com a literatura visando unicamente a um benefício financeiro e,
de outro, um comprometimento maior com a tarefa literária que se pode inferir, haja vista
sua dedicação em criar um estilo e a ênfase dada ao desgaste físico para a escrita de
romances tão longos e densos. Assim, por exemplo, quando solicitado por Max Descaves,
em 7 de dezembro de 1932, a falar do Voyage, Céline fala do quão árdua foi a empreitada
da escrita do romance e de seu custo material inicial: “[...] Ça répresente six années de
boulot, à raison de quatre heures par jour. Cinquante mille pages manuscrites, dix milles

12
“Quer dizer que eu comecei a escrita do livro sem querer obter qualquer notoriedade. Eu pensava
simplesmente tirar disso um benefício honesto para comprar um pequeno apartamento do qual eu
realmente precisava na época. Em seguida, as coisas caminharam de tal modo que a vida do médico,
de médico humilde... se tornou impossível e complicou minha vida cada vez mais” (tradução nossa).
191
francs de dactylographie... Le reste, mon brave monsieur, boniment!”13 (CÉLINE, 2006,
p. 22). Não deixa de ser curioso que, além de sua força de trabalho e do custo material
empregados na escrita do romance, Céline acrescente o boniment, palavra proveniente do
mundo dos espetáculos, carregando sentidos que vão desde o anúncio feito à entrada de
espetáculos para atrair o público até a propaganda feita por vendedores de rua para vender
suas mercadorias, podendo significar ainda um propósito insignificante. Isso deixa inferir,
de um lado, ironicamente a inutilidade e a inocuidade da literatura, e de outro, a
necessidade de publicidade, o que coloca a literatura, para Céline, claramente em posição
de produto, visto seu desejo de tirar dela algum proveito financeiro, e ao mesmo tempo
parte de um mercado sujeito à exploração capitalista.
Vale lembrar os embates de Céline com seus editores, acusados por ele, no caso de
Robert Denoël, de tê-lo obrigado a cortar boa parte do Voyage, e, no de Gallimard, de
esconder cópias de seus livros esperando uma valorização do preço com a morte do autor
e de não pagar corretamente o que, de acordo com Céline, lhe seria de direito. Cabe notar
que, a despeito do que Céline tentar às vezes fazer transparecer, a literatura para ele não
tem nada de inócua, principalmente quando se tem em mente sua declaração a Madeleine
Chapsal, em 1957, de que havia escrito Bagatelles para evitar a Segunda Guerra Mundial,
ou o efeito reverso que os panfletos tiveram sobre sua vida.
C’est peut-être le seul livre que j’aie écrit pour les Français, où
je suis sorti de ma réserve personelle. [...] L’Europe, c’était déjà
mon calcul à moi, et je me disais: “Je vais le dire, et ça va faire
une grosse impression”. Qu’est-ce que j’ai déclenché!... Je me
suis foutu dans une histoire effroyable! que je regrette, ô
combien! Si j’avais su...14 (CÉLINE, 2008, p. 26-27).

A literatura estará, assim, para Céline sempre do lado do trabalho, e não da vocação,
o que, a Merry Bromberger, Céline creditará a seu temperamento operário (tempérament
ouvrier) (CÉLINE, 2006, p.30), e esse dispêndio de energia e esforço será comum ao
falar dos outros romances e da construção de seu estilo, o que permite afirmar que Céline
não tinha na literatura, não obstante seu discurso, uma tarefa circunstancial, mas sim uma

13
“Isso me representa seis anos de trabalho, na razão de quatro horas por dia. Cinquenta mil páginas
manuscritas, dez mil francos de datilografia... O resto, meu bom senhor, lábia!” (tradução nossa).
14
“É talvez o único livro que eu tenha escrito para os franceses, em que eu saí da minha reserva pessoal.
[...] A Europa já era meu cálculo e eu me dizia: ‘Eu vou dizer e isso vai causar uma grande impressão’.
O que eu desencadeei!... Eu me meti numa história assustadora! eu lamento, ó o quanto! Se eu
soubesse...” (tradução nossa).
192
dedicação laboral, lembrando que a questão da inspiração não está presente no discurso
céliniano.
Ainda sobre esse esforço de escrita dos romances, Godard e Dauphin lembram que
Céline teria anunciado, segundo artigo de Robert Dieudonné, de 8 de dezembro de 1932
para o Le Petit Journal, que já havia começado a escrever um segundo romance e que
este não estaria terminado antes de cinco ou seis anos, o que se confirmaria com a
publicação de Mort, em 1936. Nesse sentido, Élisabeth Porquerol dirá que Céline não
seria, por recusa própria, o homem que escreve, mas pretensamente o médico, pois essa
seria a única maneira de preservar sua independência de pensamento (indépendence
d’esprit), e que Céline não teria ambições literárias, mas sim ambições tout court, o que
seria para ela a razão da força de seus escritos (CÉLINE, 2006, p. 47).
Apenas a título de exemplo, convém lembrar a espirituosa declaração de Céline
sobre produzir literatura, trazida por Porquerol, no mesmo comentário, para dar uma
amostra do desdém e do bom humor com que Céline procura tratar a literatura, o que para
Porquerol estaria mais para o receio de Céline em parecer pedante como tantos outros
homens de letras: “De la littérature, j’en ai mâché... Et moi aussi j’en fais, je rédige des
prospectus pour des produits pharmaceutiques dans un laboratoire”15 (CÉLINE, 2006,
p. 47).
Não foi necessário muito tempo entre a publicação de Voyage, em 5 de outubro de
1932, e o primeiro comentário público de Céline sobre sua obra, em entrevista concedida
a Pierre-Jean Launay e publicada em 10 de novembro de 1932, no Paris-soir, sob o título
de L-F. Céline le révolté. Embora tenha pedido para ser deixado à sombra, afirmando
divertidamente “Ma mère même ne sait pas que j’ai écrit ce livre, ça ne se fait pas dans
la famille”16 (CÉLINE, 2006, p. 22), já antecipando o estigma que a literatura teria em
sua vida, a literatura será colocada reiteradas vezes por Céline, desde então, como algo
que só lhe trouxe problemas e que lhe impediu o exercício da medicina. Entretanto, nesse
primeiro comentário, Céline lança três pontos que comporão sua imagem pública, os
quais se aprofundarão ao longo do tempo, sem, contudo, deixarem de ser fundamentos
sintomáticos do uso que o autor fará do espaço público: sua aversão ao contato público;
sua obra não se tratar de literatura, mas sim da vida; e a linguagem falada transposta para
a escrita. Launay diz que, nessa ocasião, Céline teria aceitado a conversa com a condição

15
“Literatura, eu mastiguei... E eu também faço, eu redijo folhetos de produtos farmacêuticos num
laboratório” (tradução nossa).
16
“Minha mãe nem sabe que eu escrevi esse livro, isso não se faz na família” (tradução nossa).
193
de que não seria revelado nada sobre sua personalidade, embora Launay tenha deixado
escapar que o contato com Céline mostrou que este seria sim o homem de seu livro, aquele
que mostra as piores misérias da sociedade.
Vale ressaltar desde já que, assim como sua explicação sobre porque começou a
escrever, essa aversão ao contato público é bastante irônica e participa da construção de
um mito pessoal, pois, por exemplo, Céline teria dito a Launay: “Puisque vous m’avez
déniché, je n’ai pas la cruauté de vous renvoyer, tant pis. Mais vous êtes le premier
journaliste qui me surprenne et vous serez le dernier, demain je pars”17 (CÉLINE, 2006,
p. 21). Contudo, o que se verá, desde então, será um Céline cuidando de compor um
personagem público que faz sua autopromoção e se preocupa em aumentar as vendas de
seus livros.
Com relação ao, digamos, estatuto ficcional de Voyage, Céline diz a Launay: “Ce
n’est pas de la littérature. Alors? C’est de la vie, la vie telle qu’elle se présente. La misère
humaine me bouleverse, qu’elle soit physique ou morale”18 (CÉLINE, 2006, p. 21),
afirmação que fará eco – a bem dizer a contrapelo – com a declaração dada a Georges
Altman, em entrevista do 10 de dezembro de 1932, em que Céline dirá “C’est un roman,
mais ce n’est pas une histoire, de vrais ‘personnages’. C’est plutôt des fantômes”19
(CÉLINE, 2006, p. 38). Tem-se, nesse deslocamento, lançado o problema do limite entre
o ficcional e o autobiográfico em Céline, ainda que o autor tenha problematizado isso na
entrevista a Merry Blomberger, de 8 de dezembro de 1932, trazendo a questão do delírio,
ao afirmar que Voyage não se tratava de autobiografia por ter sido escrito em terceira
pessoa, como se esse fosse o único requisito a definir o gênero:
Une autobiographie mon livre? C’est un récit à la troisième
puissance. Qu’on y voie pas des tranches de vie, mais un délire.
Et surtout pas de logique. Bardamu n’est pas plus vrai que
Pantagruel et Robinson que Picrochole. Ils ne sont pas à la
mesure de la réalité. Un délire!20 (CÉLINE, 2006, p. 30-31).

É interessante notar que, se a mudança posterior de romancista para cronista virá


tornar essa relação entre literatura, vida, história e política mais estreita e problemática

17
“Já que você me encontrou, eu não tenho a crueldade de te mandar embora, paciência. Mas você é o
primeiro jornalista que me surpreende e você será o último, amanhã eu me mando” (tradução nossa).
18
“Não é literatura. Então? É a vida, a vida tal como ela se apresenta. A miséria humana me perturba, seja
ela física ou moral” (tradução nossa).
19
“É um romance, mas não é uma história, personagens reais. São antes fantasmas” (tradução nossa).
20
“Uma autobiografia meu livro? É uma narrativa em terceira pessoa. Que não se veja nela porções de vida,
mas um delírio. E sobretudo sem lógica. Bardamu não é mais verdadeiro que Pantagruel e Robinson
que Picrochole. Eles não estão na medida da realidade. Um delírio!” (tradução nossa).
194
na Trilogia Alemã, é com relação ao Voyage, em 1933, em entrevista a Victor Molitor,
que Céline delimita, pelo menos no que concerne à crítica, a separação entre vida e obra,
respondendo assim ao pedido de indicação de traços notáveis de sua vida: “Monsieur, ce
n’est pas nécessaire. Je ne crois pas qu’on puisse expliquer une oeuvre par la
connaissance de son auteur”21 (CÉLINE, 2006, p. 41). Entretanto, essa postura de 1933
é perfeitamente condizente com o romance e com o cuidado de Céline em tentar
resguardar sua vida privada, ainda que haja espelhamentos entre sua vida e o romance,
como reconhece o próprio Molitor – para quem Céline era um jongleur de paradoxes –
ao afirmar que nada é mais característico do Voyage que a biografia lapidar que o precede.
No que tange à colocação de Céline quanto à linguagem utilizada em Voyage, da
qual se pode tirar mais um espelhamento entre vida e obra, ao ser questionado por Launay
sobre porque havia escrito o romance em uma língua voluntariamente faubourienne,
Céline responde que não há voluntarismo em seu trabalho,
[...] j’ai écrit comme je parle. Cette langue est mon instrument.
[...] Et puis je suis du peuple, du vrai... J’ai fait toutes mes études
secondaires, et les deux premières années de mes études
supérieures en étant livreur chez un épicier22 (CÉLINE, 2006, p.
22).

Tem-se, nessa afirmação sobre a linguagem, o germe do que Céline desenvolverá


ora como petit musique, ora como l’émotion, ou ainda como style émotif, e pode-se
apontar nesse pertencimento ao povo o embate com intelectuais como Jean-Paul Sartre.
Porquerol, no comentário23 em que fala de suas impressões sobre a visita que
recebeu de Céline em razão do artigo que escreveu sobre Voyage para o Crapouillot em
fevereiro de 1933, diz que a conversa versou sobre a publicidade, os modos vulgares dos
literatos e seu exibicionismo comercial, o que teria levado Céline a se queixar do barulho
à sua volta: “Céline... Céline, quand je vois ce nom écrit dans les journaux, ce nom qui
me désigne, ça me gêne, je me sens pris d’une espèce de pudeur...”24 (CÉLINE, 2006,
p.44-45). Não deixa de ser interessante notar nessa passagem a questão da designação do

21
“Senhor, não é necessário. Não acho que se possa explicar uma obra através do conhecimento de seu
autor” (tradução nossa).
22
“[...] eu escrevi como eu falo. Essa linguagem é meu instrumento. [...] Além disso, eu sou do povo, do
verdadeiro... Fiz todos os meus estudos secundários e os dois primeiros anos de meus estudos
superiores trabalhando como entregador em uma mercearia” (tradução nossa).
23
Esse comentário foi publicado primeiramente em janeiro de 1934, em Allô-Paris, e, em formato
expandido, em 1961, na Nouvelle Revue Française, quando da morte do autor. Foi a essa segunda
versão que se teve acesso para este trabalho.
24
“Céline... Céline, quando vejo esse nome escrito nos jornais, esse nome que me designa, isso me
incomoda, eu me sinto tomado por uma espécie de pudor...” (tradução nossa).
195
nome tão cara aos estudos da autobiografia, trazendo à tona um importante momento
autobiográfico revelado pela entrevista. Porquerol ensaia uma instigante explicação do
porquê dessa recusa feroz do contato público da parte de Céline, dizendo que ele não
confiaria em si mesmo, pois se saberia incapaz de se dominar a ponto de, com uma
fraqueza extrema, vider son sac na frente de qualquer um, daí Porquerol designá-lo como
um sale parleur.
Porquerol acrescenta que os excessos de Céline estariam antes no plano da
encenação, de modo que o mal-estar que ele espalha viria de um jogo contínuo, de um
artifício mesmo, que transformaria tudo em bouffonnerie. Longe de parecer ingênua, essa
visão de Porquerol poderia indicar uma estimulante chave de leitura para a agressividade
de Céline, segundo a qual o efeito dessa linguagem vulgar e insolente tenderia ao riso.
Robert de Saint-Jean, em seu comentário, também levanta a questão do humor em
Céline após reproduzir falas de Céline dizendo que seria necessário esperar alguns anos
para saber se seu estilo sairia de moda e que era provável que no futuro haveria escritores
reproduzindo seu estilo melhor do que ele mesmo: “Il a dit cela sans broncher mais ses
yeux rient. Il y a en lui beaucoup d’humour”25 (SAINT-JEAN apud CÉLINE, 2006, p.
51). Não deixa de ser interessante notar que esse desprendimento ao falar da apropriação
de seu estilo por outros escritores não será o mesmo ao acusar, por exemplo, Sartre de tê-
lo roubado.

SOBRE O STYLE

De acordo com o conjunto de entrevistas e comentários sobre Céline reunidos por


Dauphin e Godard, a primeira vez que Céline fala sobre seu estilo é na entrevista
concedida a Paul Vialar, em 09 de dezembro de 1932. Em meio a um comentário sobre o
longo tempo necessário para conceber um livro e escrevê-lo, o autor menciona o fato de
Voyage ter sido escrito primeiramente em forma de peça teatral – a qual veio a ser
publicada posteriormente sob o título de L’Église – e enfatiza o grande volume de páginas
escritas, retrabalhadas e datilografadas. Céline apresenta, então, os princípios do seu
estilo, deixando evidente seu caráter intencional e incontingente: “Mon style? Lorsque je
l’abaisse à la familiarité et à la grossièreté, c’est parce que je le veux ainsi”26 (CÉLINE,

25
“Ele disse isso sem pestanejar, mas seus olhos riem. Há nele humor” (tradução nossa).
26
“Meu estilo, quando eu o abaixo à familiaridade e à grosseiria é porque eu o quero assim” (tradução
nossa).
196
2006, p. 33). O interessante dessa passagem é trazer, quando da publicação do primeiro
romance, elementos fundamentais da elaboração do autor sobre seu estilo, o qual será
lapidado, sem perder, porém, a coerência com esses princípios apresentados
precocemente.
Pouco mais de dois meses após essa primeira menção, Céline, em entrevista a
Robert de Saint-Jean, acrescenta uma outra camada de sentido ao incorporar a ideia de
uma língua antiburguesa e a necessidade de recorrer a ela para conseguir provocar
sentimentos os quais seria impossível alcançar de outro modo:
- J’ai inventé une langue antibourgeoise qui rentrait ainsi dans
mon dessein. Et aussi parce qu’il y a des sentiments que je
n’aurais pas trouvés sans elle.
Il reconnaît que cela se démodera peut-être très vite...
- On verra dans dix ans27 (CÉLINE, 2006, p. 51)

Embora já admita nesse momento – e sem pesares – que seu estilo, talvez pelo
caráter inovador e inusual ou pela proximidade com a língua falada e sua constante
transformação, poderia sair rapidamente de moda, Céline o faz não sem lançar o desafio
de esperar dez anos para saber o que acontecerá e ironiza dizendo que outros escritores
poderiam vir a fazer du Céline melhor que ele mesmo: “Quand la frénésie du public se
sera calmée, il y aura des types très bien qui feront peut-être du Céline en beaucoup
mieux”28 (CÉLINE, 2006, p. 51). Posteriormente, Céline desenvolverá essa efemeridade
de sua língua como algo natural e desejável à linguagem literária, afirmando que se a
língua morre é porque viveu, do contrário ela recairia nos modismos e maneirismos que
o autor tanto atacará, como por exemplo ao criar o verbo proustiser para se referir ao
estilo de Proust e como ele foi reproduzido por outros escritores, ou ainda com o
neologismo lamanièredeux, referindo-se ao estilo de Sartre no texto Portrait d’un
Antisémite.
Como destacam Dauphin e Godard, Céline, a depender do jornalista, apresenta
variações habituais tanto com relação ao interesse das respostas dadas quanto à atitude e
vocabulário utilizados. Isso se mostra interessante na entrevista a Louis Gerin, em 14 de
agosto de 1937, cujo tema era onde o escritor escreve. Em tom de enfado, Céline começa
respondendo que não vê nada de extraordinário a ser assinalado quanto à sua maneira de

27
“- Eu inventei uma linguagem antiburguesa que entrava assim no meu intuito. E também porque há
sentimentos que eu não teria encontrado sem ela./ Ele reconhece que isso sairá de moda muito
rápido.../- Vamos ver daqui a dez anos” (tradução nossa).
28
“Quando o frenesie do público tiver acalmado, haverá tipos muito bons que talvez farão Céline bem
melhor” (tradução nossa).
197
escrever e desmistifica o ato de escrita. Céline diz escrever como, quando e onde pode e
acrescenta que trabalha desde seus 12 anos para ganhar a vida e, desse modo, sempre
roubou horas de seus empregadores para realizar seus projetos pessoais. Entretanto,
Céline compara seu modo de escrita a seu modo de vida, ambos feitos às escondidas, na
surdina, e credita a isso seu tom apressado e ofegante:
J’écris à la sauvette, comme j’ai toujours vécu: à la sauvette. Ainsi j’ai fait mes
études, toujours en arranchant des heures au trimard quotidien; ainsi j’ai rédigé
mes gros livres, d’où sans doute leur ton hâtif, haletant, qu’on me reproche,
qu’on estime fabriqué. C’est pourtant ainsi que je parle, tout simplement. Je ne
fais pas de “style”29 (CÉLINE, 2006, p.119-120)

O curioso, e daí a necessidade da observação sobre as variações habituais das


respostas de Céline nas entrevistas, é a afirmação de que não faz estilo. Entretanto, a
escrita de Céline é incessantemente trabalhada e retrabalhada para se chegar a esse
resultado de aparente transposição direta da fala à escrita, o que permitiria dizer que,
contrariamente ao que diz o autor, seu tom é sim fabricado.

REFERÊNCIAS

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad.:


Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

CÉLINE, Louis-Ferdinand. Entretiens avec le professeur Y. Paris: Gallimard, 1981.

DAUPHIN, Jean-Pierre; GODARD, Henri. Céline et l’actualité littéraire 1932 – 1957. Paris:
Gallimard, 2006.

DAUPHIN, Jean-Pierre; GODARD, Henri. Céline et l’actualité littéraire 1957 – 1961. Paris:
Gallimard, 2008.

GODARD, Henri. Céline. Paris: Gallimard, 2011.

29
“Eu escrevo às escondidas, como eu sempre vivi, às escondidas. Assim eu fiz meus estudos, sempre
arrancando horas do cotidiano; assim eu escrevi meus grossos livros, daí sem dúvida seu tom apressado,
ofegante, que me reprovam, que supõem fabricado. Entretanto, é assim que eu falo, simplesmente, eu
não faço ‘estilo’” (tradução nossa).
198
O ESCRITOR RECLUSO E A ÂNSIA POR INFORMAÇÃO:
IDENTIDADE MIDIÁTICA EM SALINGER E PYNCHON1

THE RECLUSIVE AUTHOR AND THE THIRST FOR INFORMATION:


MEDIA IDENTITY OF SALINGER AND PYNCHON

Davi Boaventura2

Resumo: Sob o aparente espaço infinito da internet, encontramo-nos em uma


embaralhada criação da imagem do Eu perante o Outro, ora incorrendo em ruídos e zonas
cinzentas, ora em uma aura de mistério. Esta indefinição identitária é particularmente
notória em situações nas quais o Eu restringe ou se recusa a se expor, permitindo que sua
imagem seja criada, alimentada e expandida por especulações, como é o caso em J.D.
Salinger e Thomas Pynchon, escritores ditos reclusos, alvos da análise. Assim, refletindo
sobre as discussões da vida e da obra dos dois autores norte-americanos citados, esta
comunicação pretende examinar o jogo de relações e interesses, os interstícios
informativos envolvidos na consolidação da figura Autor, tentando compreender em que
medida essa fabulação em torno do artista influencia o acesso, o apreço e a disseminação
da obra literária.
Palavras-chave: mercado literário, identidade midiática, autores reclusos.

Abstract: Under the apparently infinite space of internet, we find ourselves into a
shuffled image creation of the I, opposing the Other, sometimes resulting into noises and
grey zones, sometimes into a mystery aura. This identity uncertainty is particularly
notorious on situations when the I restrains or refuses to expose, allowing its image to be
created, nourished and expanded through speculations, as it happens for J.D. Salinger and
Thomas Pynchon, so called reclusive authors, subjects of this analysis. Therefore,
considering life and work discussions about these authors, this communication intend to
examine the relationship game and concerns, the informative interstices implicated on the
Author’s image setting, trying to comprehend in what level this confabulation around the
artist influences access, esteem and propagation of the literary work.
Keywords: literary business, media identity, reclusive authors.

1.

Claro, embora seja válido para a discussão, não é preciso aqui repetir os
mecanismos pelos quais se dá a criação da identidade, seja ela pessoal ou midiática, a

1
Mesa-redonda A Exposição do Sujeito nos Meios de Comunicação II.
2
Mestre em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

199
construção de um Eu a partir da relação com o Outro, tendo um Nós enquanto horizonte
e a Sociedade enquanto substrato – ou, antes, não é preciso reincidir no debate sobre o
que pode ser chamado, em tom pueril, de indecisão pronominal do sujeito –, assim como
tampouco é necessário destrinchar os agentes e forças concorrentes dentro do campo da
Comunicação, conflitantes ou associados, amalgamados, espalhados desigualmente, nos
termos de Bourdieu (2006), entre os diversos suportes existentes hoje, com suas
ressonâncias, hibridizações e limites flexíveis a ponto de liquidificação de fronteiras, que
assistem e atuam de tal modo que o informacional, o entretenimento e o artístico chegam
a se imbricar em uma unidade por vezes disforme, por vezes incongruente, sempre em
movimentação constante e dinâmica. Como lastro inicial deste diálogo, no entanto,
embora, diante de novas experiências narrativas, estejamos mesmo nos perguntando a
validade deste conceito, talvez seja interessante retomar o pensamento de Foucault (2001,
p. 18) sobre a autoria, tendo em mente como, para o intelectual francês, o autor é essa
instância unitária abstrata, “certo foco de expressão que, sob formas mais ou menos
acabadas, manifesta-se da mesma maneira, e com o mesmo valor, em obras, rascunhos,
cartas, fragmentos, etc.”, e que permite ainda “superar as contradições que podem se
desencadear em uma série de textos: ali deve haver [...] um ponto a partir do qual as
contradições se resolvem, os elementos incompatíveis se encadeando finalmente uns nos
outros ou se organizando em torno de uma contradição fundamental ou originária”. Não
obstante, o autor, continua Foucault (2001, p. 17), não se daria por mera operação
semiótica, nem tampouco seria função natural, ele “é o resultado de uma operação
complexa que constrói certo ser de razão”, configurando-se, no limite, como a “projeção,
em termos sempre mais ou menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos,
das aproximações que se operam, dos traços que se estabelecem como pertinentes, das
continuidades que se admitem ou das exclusões que se praticam”. Ademais, o autor seria
um constructo histórico, cuja origem, como se sabe, adveio da necessidade tanto da
punição dos transgressores quanto da lógica monetária e de propriedade, e que, por força
de sua constante atualização pela individuação, se tornou um referencial crucial no acesso
a obra de arte. “A qualquer texto de poesia ou de ficção se perguntará de onde ele vem,
quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido
que lhe é dado, o status ou o valor que nele se reconhece dependem da maneira com que
se responde a essas questões”, falará Foucault (2001, p. 16), para quem, “o anonimato
literário não é suportável”, só o aceitaríamos “na qualidade de enigma”.

200
Sabemos, em termos de autoria, quem são Salinger e Pynchon. Sabemos que, de
Salinger, a partir de seus contos sobre os infortúnios da família Glass e do seu único
romance, O Apanhador no Campo de Centeio (1951), vamos esperar uma linguagem
absolutamente trabalhada para soar simples, próxima do cotidiano, conflitos entre o Eu e
a Sociedade, resistências entre o mundo adulto e o mundo infantil, conteúdo em certa
medida filosófico, ritmo narrativo modulado através de uma elaboração dinâmica,
diálogos perspicazes. Sabemos que, de Pynchon, a partir de seus oito romances e seu
único livro de contos, vamos esperar um universo verdadeiramente enciclopédico,
citações obscuras, paranoia, maquinações fabuladas no interior de sociedade secretas,
humor absolutamente fino, em uma tênue relação entre a galhofa e a sátira, centenas de
personagens, alguns até históricos, no que poderíamos chamar de participações especiais.
Mas nada sabemos, ou sabemos pouquíssimo, sobre Jerome David Salinger (1919 – 2010)
e sobre Thomas Ruggles Pynchon (1937 –), pois os dois autores não só se transmudaram
na qualidade de enigma máximo do sistema literário no século XX, impregnando a
própria obra sob esta aura de mistério, cuja incorporação se dá enquanto chave de leitura
– às vezes reducionista, às vezes atordoante –, como, em última instância, ao
deliberadamente se esconderem do convívio midiático no auge da carreira, ao negarem
acesso ao ente real por trás de textos materiais largamente difundidos, e por esta negação
aceitarem ser objeto passivo de especulações intermináveis, alcançaram um enorme
estatuto extraliterário, tornaram-se elementos fulgurantes clichês de uma cultura pop
capitalista ávida por novidades e escândalos, ícones inflados por um polinômio composto
por vendas altíssimas, revistas sensacionalistas, vinganças pessoais e crescimento
desordenado de boatos em uma espécie de brincadeira infinita de telefone sem fio ao
longo dos anos, uma idolatria onde o altar está vazio porque as estátuas foram roubadas
pelos próprios ídolos.

Três momentos para ilustrar o assunto, antes de tentar aprofundar o olhar sobre.
O primeiro, uma nota trágica: quando, em 1980, Mark David Chapman alegou ter se
inspirado em Holden Caulfield para assassinar John Lennon, transformando o romance
de Salinger em item de discussão obrigatório na agenda pública dos mais diferentes
estratos sociais, ainda mais por se tratar da morte de uma figura quase tão famosa quanto
Jesus Cristo. O segundo, uma curiosidade: em 1976, quando o jornal Soho Weekly News
publicou um artigo de John Calvin Batchelor, tão ruim quanto um esquete do Zorra Total,
fantasioso ao ponto de afirmar que Pynchon não existia e era, na verdade, o pseudônimo

201
sob o qual Salinger vinha secretamente publicando suas histórias, ao que Pynchon
respondeu, através de cartas, algo como um irônico “nada mal, continuem tentando”. E o
terceiro momento, já no século XXI, e portanto já com o mistério ao redor dos dois autores
absolutamente estabelecido, um ótimo exemplo de retroalimentação midiática, quando
Pynchon foi retratado em um episódio dos Simpsons chamado “Diatribe de uma Louca
Dona de Casa” (tradução nossa), em que sua contraparte amarelada aparece com um saco
de papel a lhe esconder a cabeça, em frente a um letreiro luminoso onde se lê: “casa de
Thomas Pynchon, entre”, respondendo, aos berros, ao pedido de Marge Simpson, a
matriarca da família, por uma recomendação na capa do livro dela. “Aqui está sua
citação”, ele diz, “Thomas Pynchon amou este livro, quase tanto quanto ele ama câmeras”
(tradução nossa)3. E então, vestido com uma placa com seu nome e uma seta enorme
apontando para si, ele grita para os carros da rua: “Ei, aqui, tirem uma foto com um autor
recluso! Apenas hoje, nós vamos distribuir autógrafos gratuitos! Mas espere! Tem mais!”,
sendo que este mais nunca é mostrado e a piada é justamente essa: dublado pelo próprio
autor para atender a um pedido de seu filho, fã do programa, em um forte sotaque de Long
Island, região onde Pynchon nasceu, esta é uma situação evidente em que o interesse por
sua reclusão gera ele mesmo mais interesse sobre si, quase como uma espiral do silêncio
às avessas, quanto mais se fala sobre, mais se quer se falar sobre, que é o justamente o
mecanismo mais interessante a ser observado aqui.

2.

Uma estratégia retórica recorrente nos ensaios e textos jornalísticos sobre os dois
autores é se apegar ao que se sabe, aos fatos biográficos mais ou menos estáveis,
comprovados em certo sentido, ainda que as informações sejam elas também alvo de
suspeitas, como se a vida inteira do autor se supusesse uma enorme ficção contada por
um narrador não-confiável. O biógrafo, neste contexto, para além do trabalho de se coletar
fatos, entrevistas e documentos, que já trazem por si a exigência de serem comprovados
para publicação, torna-se também uma espécie de advogado do diabo incontornável da
sua própria investigação, uma interrogação incessante. French (1963, p. 21), por exemplo,
em um dos primeiros trabalhos sobre Salinger, questiona até mesmo a data de nascimento

3
O trecho do episódio onde Pynchon aparece, exibido originalmente na 15ª temporada dos Simpsons, no
dia 25 de janeiro de 2004, pode ser visto em: http://www.youtube.com/watch?v=jR0588DtHJA.
202
do autor ao dizer que: “Salinger’s birth is always given as January 1, 1919 – although it
seems curious that a man reluctant to divulge information about himself was born on
such a seemingly arbitrary day as New Year’s”4. Para os interessados, esses dados podem
ser obtidos, com relativa segurança, em uma fonte simples como a Wikipédia. Daí temos
que Salinger nasceu na segunda década do século XX em Manhattan, estudou em colégios
públicos, na escola McBurney, na Academia Militar de Valey Forge, serviu na Segunda
Guerra Mundial chegando à Europa logo após o desembarque das forças aliadas na
Normandia, supostamente se casou e se divorciou neste período em terras estrangeiras,
começou a publicar contos em 1940, alcançou fama mundial na década de 1950 com a
publicação de The catcher in the rye, mudou-se em 1955 para Cornish, no estado norte-
americano de New Hampshire, casou-se duas vezes, seu último conto publicado foi
“Hapworth 16, 1924”, na revista New Yorker em 1965, e sua última entrevista data de
1980, abruptamente encerrada quando um desconhecido tentou apertar a mão de Salinger
– a própria entrevista já foi uma tentativa de manipulação de uma jornalista para
ultrapassar o bloqueio da reclusão. E que Pynchon nasceu em 1937 em Long Island, filho
de uma família de longa linhagem, cujas origens se estabelecem séculos antes, estudou
Engenharia Física por pouco mais de um ano na universidade de Cornell, serviu a
Marinha, trabalhou na Boeing, onde escreveu para o jornal técnico interno, morou em
Seattle, na Califórnia, no México e em Nova Iorque, supostamente teve aulas de literatura
com Vladimir Nabokov, ganhou o National Book Award em 1974 por O arco-íris da
gravidade, também escolhido para o Pulitzer de ficção, mas rejeitado pela comissão geral
do prêmio, casou-se com Melanie Jackson, sua agente literária, é pai de um filho e
publicou oito romances, incluindo Bleeding edge, lançado em 2013.

Nenhum absurdo nestas descrições, coincide, ou se assemelha, com o resumo


biográfico de inúmeros autores. O universo fantasioso, talvez até mitológico, construído
ao redor delas, no entanto, é que impressiona pela sua dimensão, pois, não existindo uma
contraprova para verificação dos fatos, entrou-se em um terreno de fabulação excessiva,
histórias até à beira da fantasia. Relegando a obra dos autores a poucos parágrafos ao fim
de textos ou segundos em vídeos-documentários – com títulos quase sempre evocando
“buscas”, “procuras”, “quem é fulano?” ou, no caso de Pynchon, até um agressivo “Quem

4
“O nascimento de Salinger é sempre dado como 1º de janeiro de 1919 – embora pareça curioso que um
homem relutante em divulgar informações sobre si tenha nascido em um dia aparentemente arbitrário como
o Ano Novo” (tradução nossa).

203
diabos é ele?” –, o mundo ao redor dos dois autores se agigantou em diversas direções,
ou através de especulações, invencionices, ou de biografias não autorizadas ou de relatos
altamente questionáveis contados por terceiros, em geral pessoas que sofreram algum tipo
de desilusão com os autores – ex-mulheres, amigos traídos, filhos – ou de fofocas
irrelevantes, como a de que Salinger teria somente um testículo e beberia a própria urina,
ou de catálogos on-line enciclopédicos, como o que enumera página por página todas as
supostas citações e relações inter ou intratextuais existentes na obra de Pynchon5, ou
mesmo, em uma exercício de metalinguagem, na busca pelos dois em si.

Em resumo, trazendo agora a discussão para o campo do signo, ao tentarem se


esconder, Salinger e Pynchon criaram, vamos supor que inocentemente, um jogo de
tensão onde o prêmio principal é conseguir achá-los – “Salinger se esconde, Pynchon
corre”, brinca um crítico em um artigo online recente (KACHKA, 2013, tradução nossa)
–, mas esse passatempo é desde já inócuo, pois a disparidade de forças é absurda e o que
se criou ao redor dos dois foi, e este é um ponto essencial para o tópico, um sistema de
signos massivo autônomo onde a representação não só é tão ou mais verdadeira que o seu
objeto (real) de origem, como, por ser muito mais atraente do ponto de vista narratológico,
e por se replicar com muito maior frequência, é capaz de ecoar com maior consistência e
duração pelos interstícios do campo comunicativo, crescendo quase que ad infinitum, de
um modo que a representação se vê capaz de se emular ela mesma enquanto elemento
pleno de existência, autonímica, roubando em simulacro o espaço antes privilegiado da
realidade. Isto é, se estamos em uma “sociedade na qual a produção e a gestão da imagem
de si próprio é tão importante quanto ir além das aparências para achar o ser autêntico”,
conforme diz Andacht (2005, p. 98), o Pynchon e o Salinger reais aceitaram ser
esmagados por uma construção imagética absolutamente à revelia, um julgamento de réus
foragidos sem chance de defesa, exceto em circunstâncias esporádicas (tal é o episódio
dos Simpsons), e, esta imagem, este signo, em análise extrema, tende a reordenar o seu
modelo tripartite, configurando-se quase que em um Outro inteiramente novo – há de se
notar: se essa situação é recorrente em todo sistema massivo de representação, é aqui que
ela alcança o limite porque é livre de controle, exceto o judicial, e o judicial, como se
sabe, só é atuante se interpelado pelas partes que se consideram lesadas.

5
www.pynchonwiki.com

204
3.

A pergunta óbvia é: por que deveríamos nos interessar em conhecer ou ouvir o que
Salinger e Pynchon têm a dizer, se já não temos o que eles nos dizem através de seus
livros? Ou por que deveríamos nos interessar em saber o que eles falariam, por exemplo,
sobre a própria obra? Ou por que deveríamos nos interessar em destrinchar o processo de
trabalho dos dois? A resposta, claro, envolve uma discussão epistemológica ampla,
elementos cujas bases, dentro do campo da literatura e da autoria, podem ser consideradas
até como bases calcadas na fé, e, portanto, esses elementos devem ser debatidos com
parcimônia, sem a necessidade de ataques. No entanto, se o argumento para obliterar o
autor é consistente, o argumento contrário também, é até uma argumentação simples, e a
simplicidade atua em seu favor na contenda: porque eles – e no “eles” está incluso, em
especial, todos os rastros materiais, documentais, que os dois podem ter deixado pelo
caminho – podem nos dar grandes respostas, elucidando pontos obscuros de seus textos,
ampliando o entendimento, contribuindo tanto para a pesquisa acadêmica, a crítica em
geral, quanto para o desenvolvimento do processo criativo de outros escritores, obliterar
o autor é simplesmente um desperdício.

Em outras palavras, mais elaboradas que as anteriores, menos panfletárias, o


transitório em literatura é justamente o ato da escrita, a formação da imagem mental no
pensamento do escritor e a sua inscrição no curso da narrativa, o desenrolar da criação
em seu estágio mais primordial, e ignorar este movimento a favor de um cientificismo
maneta indesejável, impondo-lhe uma pecha de insondável, é ignorar a existência de um
processo complexo – desde as suas necessidades psicológicas, a autocensura, os
impulsos, o embate entre a moral e a construção estética, os jogos contidos nos desvãos
da linguagem, as necessidades da narrativa e mercadológicas, o contexto criador –, no
qual o escritor se insere se afirmando e se negando uma infinidade de vezes até ser capaz
de estabelecer, de um lado, a sua projeção enquanto autor, e do outro, uma obra que
responderá por si, de modo que desde já se percebe como o ato de escrever é muito mais
que o ato de ter escrito. Como se fosse uma boneca russa, esse ato de escrever retroage
em toda sua extensão para, com seu término, ressignificar o início, em um processo que
pode e deve ser analisado com rigor.

De Salinger, hoje falecido, infelizmente ainda nada se sabe, exceto que o acesso
aos seus manuscritos já revelou a existência de três novos contos, vazados na internet
contra a vontade do espólio do autor. Pynchon, por outro lado, no que é talvez o seu único

205
esforço em refletir de alguma forma sobre a sua própria obra, no prefácio para o seu livro
de contos Slow Learner (1984), mostra em pouco mais de 35 mil caracteres como é
proveitosa essa abertura – ainda que motivada por questões comerciais, como pode ter
sido o caso aqui, se, tal se especula, a publicação do livro de contos se decidiu apenas por
uma necessidade de consolidação de espaço profissional para sua nova agente à época,
hoje sua esposa –, em um constructo não só espantoso pela personalidade de sua voz,
distante da voz narrativa implícita nos romances – reflexiva em sua encarnação real,
profundamente narrativa na encarnação ficcional –, como também espantoso pela
sinceridade revelada, com Pynchon ao ponto de se desculpar por impingir a determinado
personagem um cacoete racista, machista e proto-facista que ele, admite, em um momento
quiçá expiatório, era também muito do seu pensamento da época. Nunca publicado no
Brasil, o documento é realmente vasto. Para o propósito deste artigo, no entanto, ao invés
de citá-lo nominalmente, é suficiente mencionar como o texto envolve reflexões,
comentários e explicações tanto sobre os meandros da própria obra, com foco maior no
que o Pynchon mais velho considera erros de sua contraparte mais jovem, em especial
sobre como é ingênuo e infrutífero se concentrar de início em questões conceituais, e não
na construção firme da personagem, quanto sobre contexto literário de momento, cenário
político ou até mesmo sobre possíveis respostas para entender o processo de identificação
entre leitor e obra em gêneros díspares como a ficção científica e a fantasia, que
supostamente tratariam da morte, tema literário sério por excelência, como ameaça
inconsequente. Para o pesquisador em Pynchon, um verdadeiro tesouro.

4.

Não é preciso se estender. O espaço é exíguo e esta comunicação é menos uma


afirmação, menos um vislumbre do horizonte teórico, mais uma consideração inicial,
mais uma divagação, que nem mesmo se propõe conclusiva, e sim se formula enquanto
perspectiva para se incitar debate a posteriori, à esperança de que esse debate, sim, elucide
os desafios impostos. Antes de encerrar, no entanto, é talvez interessante posicionar essa
questão da reclusão do autor dentro do que poderíamos chamar de mercado literário, sob
um pressuposto bastante básico, a partir mesmo de Bourdieu (2006), e perguntar: não
fossem Salinger e Pynchon escritores de grande monta, e neste capital simbólico se
incluem não somente volume de vendas, mas também fortuna crítica, premiações e
escopo da obra, qual seria o efeito da reclusão dos dois? Provavelmente nenhuma, a

206
negação midiática dos dois seria absolutamente irrelevante para o contexto geral, pois há
uma tênue distinção a ser feita aí entre a reclusão e o anonimato, o primeiro é privilégio
de poucos, o segundo é condição de início para quase todos que se arriscam no campo
literário, se já não possuem capital simbólico prévio ou não são oriundos de outras áreas.
Em uma rara intervenção na imprensa, uma mensagem lida pela CNN norte-americana,
Pynchon ironizou ao afirmar que “‘recluso’ é um código usado por jornalistas que
significa: ‘não gosta de falar com repórteres’”. Ele não está errado, mas subverte o
discurso em seu proveito, pois seu conforto sob a égide de recluso só é possível em função
de um sistema literário, no qual, se por um lado, o interesse da publicidade e do jornalismo
são agentes catalisadores, por outro ele possui poder de barganha suficiente para se
desvencilhar desse interesse, como aconteceu, por exemplo, em 1998, quando Pynchon
conseguiu proibir a exibição de cartas trocadas com sua antiga agente ou quando Salinger
conseguiu proibir a publicação nos Estados Unidos de uma suposta continuação do seu
livro mais famoso, escrita por um desconhecido autor sueco6.

É de se notar, sob este viés, que “o recluso tende a ser cada vez mais uma figura de
exceção com a incorporação da literatura no circuito das celebridades, com os festivais
literários e demais nexos com o mundo do entretenimento massivo”, segundo diz Luís
Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
em matéria publicada pela Folha de São Paulo no dia 03 de novembro de 2013, abordando
justamente a reclusão de Pynchon e Salinger. Vivemos, de fato, como se sabe, em uma
sociedade espetacularizada, em constante atualização sob as luzes de holofotes e flashes,
cujo escrutínio da vida alheia é prerrogativa central, seja via Facebook, seja via revistas
de fofoca, seja através de canais televisivos exclusivos para as ditas celebridades, como
o E! Entertainement Television, seja através dos reality shows, símbolo máximo de uma
cultura vetorizada para a superexposição de um Eu aparente. Isso, pode-se também dizer,
apesar de desvirtuar o contexto original de fala, é o desfecho limítrofe de um processo
secular classificado por Eagleton, citado por Andacht (2005) como “uma das grandes
concepções revolucionárias da história moderna”, que é “a ideia de que a vida cotidiana
é dramaticamente cativante, que ela é fascinante simplesmente nos seus ilimitados
detalhes rotineiros”, em um amálgama capaz de misturar no mesmo balaio James Joyce,

6
COLTING, Frederik. 60 anos depois – do outro lado do campo de centeio. Campinas: Verus, 2010.
Proibido nos Estados Unidos, o livro é comercializado em outros países.

207
cujas cartas eróticas a esposa foram recentemente publicadas com estardalhaço, e os
desvarios do Big Brother, já com mais de uma dúzia de edições no Brasil e contando.

Aguardemos, portanto, as cenas do próximo capítulo.

REFERÊNCIAS

ANDACHT, Fernando. Duas variantes da representação do real na cultura midiática: o


exorbitante Big Brother Brasil e o circunspeto Edifício Master. Contemporânea: Revista de
Comunicação e Cultura, Salvador, v. 03, n. 01, p.95-122, jan./jun. 2005. Disponível em:
<http://bit.ly/1aL1pDf>. Acesso em: 30 jan. 2014.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

DOYLE, Aidan. When Books Kill. Disponível em: <http://bit.ly/L8HLEN>. Acesso em: 29 jan.
2014.

J.D. SALINGER. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível: <http://bit.ly/1baQJeW>.


Acesso em: 30 jan. 2014;

KACHKA, Boris. On the Thomas Pynchon trail: from the Long Island of his boyhood to the
‘Yupper West Side’ of his new novel. Disponível em: <http://vult.re/1fwqpMa>. Acesso em 29
jan. 2014.

FRENCH, Warren. J.D. Salinger. New Haven: College and University Press, 1963.

FOUCAULT, Michel. O que é um Autor? In: Ditos e Escritos: Estética - literatura e pintura,
música e cinema (vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. Disponível em:
<http://bit.ly/9RwPZr>. Acesso em 25 de junho de 2013.

RODRIGUES, Alexandre. Salinger, Pynchon e outros eremitas literários. Folha de São Paulo.
São Paulo, nov. 2013. Ilustríssima. Disponível em: <http://bit.ly/1loCie4>. Acesso em: 03 nov.
2013.

ROLLS, Albert. Thomas Pynchon and the Vacuum Salesman in Guadalajara. Orbit: Writing
Around Pynchon, v. 01, n. 02, 2013. Disponível em: <http://bit.ly/1dbExr1>. Acesso em: 30 jan.
2014.

THOMAS PYNCHON. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em:


<http://bit.ly/Lu6GDx>. Acesso em 30. Jan 2014.

208
DANÇA AUTOBIOGRÁFICA: ESBOÇANDO UMA TEORIZAÇÃO
DO SELF ENCENADO1

AUTOBIGRAPHICAL DANCE: OUTLINING A THEORIZING ON


STAGED SELF

Eduardo Augusto Rosa Santana2

Resumo: Danças autobiográficas parecem ter desenvolvimento, pelo menos desde a


primeira fase do movimento modernista da dança, no início do século XX, com uma
produção que se demarca a partir dos anos 1960 e 1970, ampliando-se virulentamente a
partir dos anos 1990, ainda que academicamente as pesquisas na área sejam bastante
recentes e escassas. Nesse estudo, a dança autobiográfica é concebida enquanto a dança
que encena o self lidando com a noção de self e de encenação em dança. Para a primeira,
tratei enquanto um self dialógico, multivocal e corporificado, a partir da teoria do self
dialógico de Hubert Hermans e colaboradores. Além disso, a teoria do Corpomídia, de
Helena Katz e Christine Greiner, foi importante para o reconhecimento dos processos de
negociação e interação contínua entre corpo e cultura. E por fim, a noção de unidade
múltipla da identidade humana, proposta por Edgard Morin, mobilizando uma
continuidade ontologicamente recursiva de diferenciação e de integração da dinâmica
subjetiva. Já a segunda questão foi tratada diretamente na própria metodologia do estudo
de caso coreográfico, considerando sua análise dramatúrgica. Dramaturgia em dança foi
entendida como um aspecto de qualificação do movimento, bem como das relações
interconectadas entre este e os demais elementos constituintes de uma coreografia
(figurino, iluminação, trilha sonora, etc.), enquanto um todo carregado de sentidos. O
caso selecionado foi a obra coreográfica O samba do crioulo doido (2004), de Luiz de
Abreu. A coleta e análise dos dados foi composta preponderantemente, por observação
de vídeo-registro da obra, entrecruzada com entrevista não-estruturada com o criador e
análise de documentos da obra e do criador. Os resultados esboçam uma teorização sobre
self encenado em que: a) estrutura-se com múltiplas vozes, operando num potencial
diálogo contínuo entre o criador, a encenação dançada e o contexto cultural amplo no
qual seu criador coreografa; b) tal dialogia, confirma uma perspectiva de self enquanto
compartilhável, em detrimento de um subjetivismo radical; de maneira que c) a dança
autobiográfica performa a identidade humana, lançando mão de recursos constituintes da
encenação a partir da proposição investida do criador em relação a marcas de sua
experiência pessoal corporificada, retornadas à própria cultura pela via da simbolização
artística dançada.
Palavras-chave: dança contemporânea; dança autobiográfica; self; self dialógico.

1
Mesa-Redonda Autoficção/Autobiografia em cena.
2
Mestre em Dança pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
209
Abstract: Autobiographical dances seem to be developing at least since the first phase
of the modernist movement on dance, the beginning of the XXth century, with a relevant
production from the years 1960 and 1970, widening virulently from 1990s, nevertheless
academic research in the area are fairly recent and scarce. In this study, autobiographical
dance is conceived as the dance staging self, dealing with the notion of Self and Staging
on Dance. Self was treated as a dialogical, multivocal and embodied self, from the theory
of the Dialogical Self, by Hubert Hermans et al. Moreover, the theory of Corpomídia,
Helena Katz and Christine Greiner, were important for the recognition of negotiation and
ongoing interaction between body and culture. Finally, the notion of multiple unit of
human identity, proposed by Edgar Morin, mobilizing an ontologically recursive
continuity of differentiation and integration of subjective dynamics. Staging on Dance
was addressed on a dramaturgical analyses directly on a study methodology case.
Dramaturgy in dance was understood as an aspect of qualifying the movement as well as
the interconnected relationships between this and the other components of a choreography
(costumes, lighting, soundtrack, etc.), considering a whole load of sense. The selected
case was the choreographic work Samba do Crioulo Doido (Samba of the mad black man,
2004), by Luiz de Abreu. The collection and analysis of data was composed mainly by
watching video-record of the work, crisscrossed with non-structured interview with the
creator and documental analysis about the work. The results outline a theorizing on self
staged in which: a) is structured with multiple voices, operating in a potentially ongoing
dialogue between the creator, the danced staging and broad cultural context in which its
creator choreographs , b) such dialogy confirms perspective self as shareable, rather than
a radical subjectivism, so that c) the autobiographical dance performs human identity,
making use of constituent features of the staging from the onslaught of the creator
proposition to trademarks of their personal embodied experience, returned the own
culture by way of artistic symbolization danced .
Keywords: contemporary dance; autobiographical dance; self; dialogical self.

Danças autobiográficas parecem ter desenvolvimento pelo menos desde a primeira


fase do movimento modernista da dança, no início do século XX, todavia há uma
produção artística significativa que aparece a partir dos anos 1960, mas sobretudo na
década de 1970, com a perspectiva feminista de que “o pessoal é politico”, bem como das
contaminações entre dança e performance na dimensão da autorreferencialidade
(BANES, 1987; GOLDBERG, 2006). Questões diversas multiplicam as ações artísticas
em dança autobiográfica a partir da década de 1990: subjetividade e crise da
representação, hibridismo cultural, regionalismos, meta-discursos da dança, dentre outras
(GREINER, 2006; SANTANA, 2010a, 2010b). Todavia, no campo da teorização, além
de bastante recente, são escassos trabalhos que proponham perspectivas teóricas de
leitura, análise e problematização, tanto do campo de proposição dessas danças em
relação a sua especificidade dramatúrgica, quanto de suas conexões com os contextos
histórico-culturais nos quais elas vêm agindo.

210
Nesse estudo, abordei essa temática considerando que dança autobiográfica é a
dança que encena o self, numa réplica da pesquisa de Albright (1997). Para tal, mantive
a hipótese da autora, que foi confirmada: as estratégias dramatúrgicas na condição de
autorreferencialidade evidenciam uma dança do si mesmo inteiramente inter-relacionada
em extensão a experiências culturais que o extrapola e envolve outros. Confirmação essa
guiada pela seguinte pergunta-problema de pesquisa: De que maneira uma dança
autobiográfica extrapola as particularidades estritamente pessoais do seu criador? No
percurso de desenvolvimento teórico, dois aspectos tornaram-se delineadores: a noção de
self e a de encenação em dança.

No que se refere à noção de self, respondendo às evidências contemporâneas sobre


a subjetividade, considerei a teoria do self dialógico de Hubert Hermans e colaboradores
(1992; 1996; 2001; 2003; 2007). Nessa perspectiva, o self é compreendido enquanto
multivocal, dialógico e corporificado. Essa abordagem teórica de self implica em dizer
que existe um espaço imaginário subjetivo, ocupado por diversas posições de
identificações, as quais foram sendo criadas ao longo do desenvolvimento da pessoa, nas
interações com seu meio, sobretudo social e cultural. A existência e a ocupação dessas
posições passam por mudanças, a depender de variações pessoais e/ou ambientais. Cada
posição, ao ser ocupada, implica em uma ou mais vozes subjetivas que dialogam entre si,
no próprio imaginário pessoal, ou com um interlocutor atual, imediato, caracterizando o
self enquanto dialógico e multivocal. Ainda, é fundamental a concepção do self enquanto
corporificado, a) uma vez que auto-representações estruturam-se a partir de metáforas
deslocadas do domínio sensório-motor, para o domínio mental; b) pelo fato de haver
práticas dialógicas no nível pré-verbal e c) por existir, ainda que com variabilidade uma
permanência evolutiva do self, ligada a níveis de estabildiade e segurança (HERMANS,
1992; HERMANS e HERMANS- JANSEN, 2001; HERMANS e DIMAGGIO, 2007).

Em aliança à teoria do corpomídia (KATZ e GREINER, 2005), considerei que


corpo e ambiente co-evoluem em constantes trocas de informações de modo que toda
informação capturada pelo processo perceptivo, com perdas habituais da transmissão,
passa a fazer parte do corpo, modificando-o e se transformando em corpo. O corpo vive
num estado sempre presente, uma vez que o fluxo não para; todavia produz resíduos,
capazes de configuração e diferenciação, como é o caso do que tradicionalmente chama-
se cultura: crenças, artefatos, hábitos, entre outros, nos quais incluo tanto nossas auto-
representações, quanto uma dança autobiográfica, enquanto artefato cultural. A cultura,

211
revisada sobre esta perspectiva, engloba esses resíduos, mas os ultrapassa, sendo uma
possibilidade de passagem de um âmbito – o fluxo – a outro – o resíduo configurado – da
relação corpo-ambiente.

Nesse fluxo inestancável, a permanência é possível porque existe uma taxa de


preservação que garante unidade e sobrevivência de cada ser vivo, embora corpo e
ambiente estejam envolvidos nesse fluxo contínuo de constantes transformações (KATZ
e GREINER, 2005). Essa unidade parece estar ligada a uma substancialidade do self que
é confirmada, uma vez que, apesar da variabilidade, esse funcionamento estável de
produzir sentidos sobre si mesmo mantém-se enquanto uma característica
filogeneticamente selecionada (HERMANS e DIMAGGIO, 2007). Diante disso,
qualquer sentido de singularidade conecta-se e se desdobra num sentido de universalidade
e vice-versa, continuamente, enquanto uma totalidade multidimensional ou ainda uma
unidade múltipla (MORIN, 2005). Dessa maneira, as contribuições de Edgard Morin
(2005) sobre a identidade humana, numa perspectiva da complexidade, fecham o quadro
teórico. Segundo esse autor, a identidade humana é composta por aspectos universais,
como a linguagem ou a vivência da morte que atravessa todos os coletivos humanos,
porém que se diversifica a cada um deles, produzindo singularidades múltiplas.

A partir desses pressupostos, essa pesquisa construiu o seguinte enquadramento


teórico: a dança autobiográfica é tratada como a dança que encena o self; abordado
enquanto dialógico, multivocal e corporificado, num contexto em que a subjetividade
constitui-se e se transforma num contínuo trânsito entre corpo e ambiente; configurando-
se com a natureza dinâmica de uma unidade múltipla.

No que se refere a um contexto de evidências da prática artística da dança


autobiográfica e uma escassez de reflexões acadêmicas sobre a mesma, a noção de
encenação em dança foi tomada já como dado de realidade, na constituição de uma
metodologia de estudo de caso com a obra O samba do Crioulo Doido, de Luiz de Abreu,
cuja constituição dramatúrgica apontou evidências de autorreferencialidade.

Para tal, foi feita a coleta de dados considerando observação de vídeo-registro da


obra, entrevista não-estruturada e análise documental. Tendo a encenação como foco de
análise, tanto a entrevista com o criador, quanto à análise de documentos estiveram em
cruzamento convergente para a explicitação de questões através da dramaturgia.
Considerei dramaturgia em dança entendida aqui como um aspecto de qualificação do
movimento, bem como das relações interconectadas, não somente justapostas, entre este
212
e os demais elementos constituintes de uma coreografia (figurino, iluminação, trilha
sonora, etc.), enquanto um todo carregado de sentidos. Sentido esse resultante das
invenções/descobertas processuais do criador, ao encontrar soluções corporificadas para
seus objetos de investigação artística (HÉRCOLES, 2005). A construção desses sentidos
continua e depende de sua relação com a fruição, pois, como aponta Ribeiro (1994, p.
17), é a dramaturgia a responsável pela explicitação desses sentidos da obra, tornando-se,
consequentemente, fundamental para a ação comunicativa da mesma. A peça de dança
torna-se “precisa de coerência com a moldura (dramatúrgica) escolhida pelo artista que a
criou”...“esta coerência interna que permitirá o diálogo com o público e com o ambiente
onde se instaura” (GREINER, 2000, p. 356).

Considerando a análise de possibilidades de sentido autobiográfico na obra em


questão, selecionei a primeira cena, cuja relevância metonímica é considerável ao todo
dramatúrgico da obra. A escolha dessa cena dá-se, pois possui uma dimensão
sintetizadora, tanto em relação aos elementos cênicos (bandeira, samba dançado, samba
tocado e nudez corporal, por exemplo) quanto às suas vozes (negro, brasileiro, mulata,
objeto sexual, por exemplo). Uma figura masculina, na contraluz, com um calçado de
salto alto, cuja silhueta mescla-se a um painel cenográfico de bandeiras do Brasil,
dançando um samba de mulata, em que a trilha insistentemente repete o refrão “a carne
mais barata do mercado é a carne negra”.

Inicialmente, o que existe é apenas a silhueta de um corpo humano em pé,


aparentemente sem cabeça e estático, com um calçado de salto alto, numa contra-luz
amarela. Atravessado por essa luz evidencia-se um painel de fundo, composto por uma
multiplicidade de pequenas bandeiras da pátria brasileira. A trilha inicia-se com um som
de ondas do mar, por alguns segundos, como se estivera em uma embarcação, navegando.
Logo em seguida, já é atravessada pelo som de um pandeiro, anunciando o signo musical
que perpassará todo o trabalho: o samba. Uma pulsação lenta e regularmente contínua
faz-se de base, na qual instrumentos diversos do universo do samba (pandeiro, agogô,
apito, entre outros) constroem, ao vivo, intervenções isoladas.

Ao poucos, na medida em que, na silhueta, o corpo sobe a cabeça lentamente,


revela-se uma figura humana que, então, já se pode arriscar dizer masculina. Partindo da
respiração torácica, o corpo propaga um movimento que reverbera pequeno e lento para
os braços. Gradativamente vai tomando conta do tronco, num balanço sinuoso. Aos

213
poucos, a sinuosidade instala-se no corpo como um todo, com uma sutileza de onde
eclodem os passos de um samba ao mesmo tempo sensual e sóbrio.

A sensualidade sóbria vai se metamorfoseando, de modo que pode ser lido um


samba de mulata carioca, usando os braços numa ginga com um requebrado que, com a
mão na cabeça, vai descendo até o chão; ou mesmo, lateralmente ao público, quando ele
samba brincando com a bacia pendida para frente, balançando o pênis (que na silhueta
sugere uma nudez), e ainda, num súbito, a movimentação alterna entre travar algumas
articulações e soltar outras, num movimento que parece robotizar o corpo. Nessa
atmosfera sonora de um samba lânguido, no refrão editado, a voz da cantora Elza Soares
rosna repetidamente que “A carne... a carne... a carne... a carne mais barata... a carne... a
carne mais barata do mercado é a carne negra”. Texto esse que, assim como os
movimentos, entra gradualmente até se completar, e volta a se fragmentar, numa dinâmica
que ocupa praticamente toda a cena.

Relacionei vozes internas (sentidas como parte de si mesmo), como eu-dançarino,


eu-homem, eu-silhueta negra, e também vozes externas (sentidas como parte do
ambiente, relevantes para as internas), como meu país, eu-mulata, meu samba. Essas
vozes podem ser percebidas, como feito na descrição, a partir da composição cênica
gerada pelo criador. Esses são elementos constitutivos dessa cena enquanto vozes ativas
no momento selecionado. Essas vozes da subjetividade encenadas, então, são por mim
propostas enquanto um tipo de propriedade emergente dessa cena.

Compõem-se, coerentemente, numa operação conjunta, na cena, as presenças


destas vozes citadas – negro, homem, meu país-Brasil, dançarino – bem como um
possível assunto como inferência desse diálogo – posicionamento crítico em relação aos
reducionismos sócio-culturais acerca dos negros no Brasil, sua banalização e os
estereótipos decorrentes. Entretanto, é importante lembrar que nem só de concordância e
harmonia são feitos os diálogos. Também é possível perceber a instauração de conflitos
entre as vozes, dramaturgicamente, como na cena em que Luiz de Abreu alterna entre um
sorriso largo armado, um olhar pendular, e um asceno robotizado enquanto máscara e,
passando a mão no rosto, vai a outra, levemente austero, sugerindo uma crítica à anterior
como um comentário (SANTANA, 2010a, p. 66-67).

Dessa maneira, é importante entender que a abordagem que as relações dialógicas


dessa multivocalidade do self encenado são também corporais (não-verbais), porém
supra-verbais. Diferentes das pré-verbais, o corpo que dialoga ao se mover, no contexto
214
dessa pesquisa, já está embebido de signos e constrições culturais, as quais tanto
alimentam a criação quanto emolduram sua dramaturgia dançada, considerando a
singularidade de processamento do artista autor. Tem-se, portanto uma operação
dialógica do tipo dramatúrgica, encenada e corporal.

No Samba do Crioulo Doido, as bandeiras do Brasil produziram um lugar


cenográfico que compunha com o corpo, a depender da alteração da iluminação, como os
momentos em que Luiz de Abreu torna-se um corpo-silhueta movendo-se enquanto um
desenho negro dançante pela bandeira-painel. Mas é no final do espetáculo que a
ambiência produzida pela bandeira, na relação com o corpo, fica mais evidente. Ela se
torna um figurino que é transpassado de variadas formas, moldando-se no corpo de Abreu
e transformando-o, dentro da visibilidade da cena. O jogo compositivo produz uma
sobreposição enfática: eu-brasileiro, “o que me veste é meu país”, relata Abreu. Posição-
de-eu construída a partir de interações tanto com o ambiente-país, que simboliza aspectos
de sua história e cultura, quanto da interação de si consigo mesmo, tomado enquanto
objeto de estudo para sua formulação coreográfica. Vozes de eu, manisfestado-se na
relação entre corpo e ambiente cênico e histórico-cultural.

A temporalidade impressa em uma coreografia compõe-na necessariamente de


deslocamentos que se dão de uma cena à outra, ativando, desativando e reativando
possíveis vozes-de-eu, as quais constituem as atuações do self encenado, dentro da
narrativa dançada. Ainda que operando diversas vozes de eu, como mostrado acima, ao
self encenado pode-se reconhecer uma unidade: seja pela moldura dramatúrgica com a
qual foi proposta por seu autor – conjunto de cenas, com a disposição e o modo de
organização próprios naquela duração –, seja pela imprescindibilidade da existência de
uma coerência dramatúrgica respaldada por um sentido de self.

Se a subjetividade é intrinsecamente passível de ser tratada como objeto, podemos


também reconhecer essa abordagem na alteridade. Podemos tratar o material subjetivo de
uma outra pessoa enquanto objeto. Toda a metodologia desse trabalho o faz, ao escolher
não só a temática ampla da autobiografia dançada, como também ao selecionar no
discurso e na cena de Luiz de Abreu, elementos que reportam a sua pessoa, o que nos
permite, ao estudar esse objeto, construir e compartilhar o conhecimento sobre esse modo
de tratamento e emergência da subjetividade: dança autobiográfica.

O trânsito dentro-fora se reapresenta ao abordarmos os processos subjetivos.


Trânsito esse que demonstra, para além de uma essencialidade subjetiva radical, a
215
possibilidade de tomarmos o material subjetivo dançado enquanto algo compartilhável.
De acordo com a perspectiva aqui apresentada sobre O Samba do Crioulo Doido, percebe-
se que, a partir do próprio modo como a encenação de uma dança é produzida e
organizada, enquanto multivocalidade dialógica, a emergência da subjetividade pode ter
um caráter de compartilhamento, produzindo um espaço senão de identificação, no
mínimo de diálogos possíveis.

Através dos dados apresentados, percebemos que ao construir um programa


encenado, a dança de Abreu apresenta a subjetividade numa continuidade entre aspectos
pessoais que são ao mesmo tempo coletivos: ser negro, ser brasileiro, ser dançarino,
comunicar-se pela arte, sofrer preconceito e discriminação, ser irônico, por exemplo.
Apresenta-se uma encenação carregada por vivências subjetivas significadas, sentidas e
configuradas de maneiras extremamente particulares na história de vida do criador. Ao
mesmo tempo retoma um passado histórico de centenas de anos, do próprio processo
civilizatório brasileiro, em que tantos negros (homens, mulheres e crianças) foram
sujeitos de narrativas de vida muito próximas a essa, como mostram as informações
histórico-antropológicas trazidas por Santana (2010a).

Dessa maneira, a perspectiva do self encenado, de Albright confirma-se


conceitualmente uma vez que o self aqui dramaturgicamente tratado é um self processual,
corporificado, imerso sócio-culturalmente, no mesmo âmbito do qual a autora propunha.

A teorização aqui proposta colabora no sentido de reconhecer os aspectos próprios


da obra, no que tange à encenação do self. Pudemos perceber que o modo de organização
dramatúrgica, nesta dança autobiográfica, sob esse ponto de vista, apresenta um espaço
multivocal em primeira pessoa. A dinâmica dessas vozes são decorrências dos sentidos
produzidos pelas soluções cênicas, organizadas segundo a moldura dramatúrgica
proposta pelo próprio criador. Essas vozes são dotadas como tal, na medida em que se
apresentam em uma posição-de-eu (eu-mulata, eu-dançarino, eu-negro, meu país-brasil,
por exemplo), de acordo com o sentido cênico. O andamento dramatúrgico produz tanto
os diálogos entre as vozes (suas relações de sentido), numa dada configuração cênica,
quanto os deslocamentos de uma posição à outra no espaço do self encenado, diante das
alternâncias de uma cena à outra. Essas posições-de-eu qualificam-se enquanto internas
(sentidas enquanto parte do intérprete-criador – eu-dançarino, eu-homem) e externas
(sentidas enquanto parte do ambiente e relevantes para as posições internas – eu-mulata,
meu samba). Além disso, fora do espaço do self encenado, consideramos posições

216
potenciais, que podem surgir, ou mesmo desaparecer e reaparecer, de acordo com os
processos evolutivos da obra, cujas transformações podem gerar novas soluções cênicas
trazendo sentidos de posições-de-eu inéditas ao processo da obra, no caso o Samba do
crioulo doido. A introdução, por exemplo, de algum elemento dramatúrgico, numa cena
já existente, ou mesmo a criação de uma nova cena, a qual traga um sentido de infância,
gerará no espaço do self encenado uma nova posição-de-eu vocalizada: Eu-criança, a
qual ainda não existe nessa obra.

O self encenado é mais um aspecto corporificado do self dialógico, ao mesmo


tempo em que é mais um modo de organização em dança contemporânea. Situações não-
verbais já vêm sendo caracterizadas enquanto aspectos corporificados do self dialógico.
Na mesma perspectiva, está a linguagem da dança, que prioritariamente, estrutura-se pelo
movimento, porém imerso nas dinâmicas culturais de significação. A produção de sentido
ambientada de maneira sensório-motora do self encenado atribui ao self dialógico, um
modo de construir-se e de operar que é do tipo corporificado e, nas contribuições dessa
pesquisa, dramatúrgico.

A dança autobiográfica, enquanto projeto de encenação, ao colocar- se diante do


olhar do outro, opera com um campo de sentido, passível de transformar experiências
particulares em um espaço comum e/ou compartilhável e ainda, passível de efeito
solidário. A auto-referência, assim, desloca-se do campo restrito do pessoal, entendido
tradicionalmente como radicalmente interno, para um espaço de interesse e de
decodificação que circula nos coletivos – como processos identitários e sociais de ser
negro ou brasileiro – e, inclusive, expande-se para aspectos universais – como a
experiência subjetiva da dor, do prazer, da diversão. Dessa maneira, a experiência
dramatúrgica do Samba do crioulo doido produz uma fala em primeira pessoa que, além
de dar visibilidade às questões do negro, escamoteadas na história e na cultura brasileira,
ainda se abre em um espaço de trânsito solidário, para além de uma auto-afirmação
identitária.

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220
A MEMÓRIA NARRATIVA NA CONSTRUÇÃO DO EU DENTRO
DAS PÁGINAS E FORA DA HISTÓRIA1

THE MEMORY OF NARRATIVE IN CONSTRUCTION OF THE SELF


AND OUT OF THE STORY PAGES

Eduardo Cabeda2

Resumo: A tomada da não linearidade. A exploração do Eu. O lugar onde o tempo é uma
ilusão. Imagens que mergulham no vazio como um ioiô preso no dedo duma criança,
capaz de tanto encolher quanto esticar a projeção da existência dentro e fora do corpo. A
história é o próprio pensamento. Os olhos percorrem e participam das profundezas de
alguém. Alguém como Graciliano que, deliberadamente, vai retirar o coração da terra
para colocá-lo dentro do peito. O solilóquio, o redemoinho mental sofrido pelo escritor
doente e emparedado no quarto de hospital, obrigado a interromper a escrita de São
Bernardo, vai lhe trazer as imagens, a conversa, as ligações, a luz para a construção de
um novo Eu, literário, narrativo. O conto “Relógio de Hospital”, moldado por anestésicos,
dor, vertigem, medo e o desejo de estreitar o caminho entre a mente e a história, remonta
os primeiros passos da chegada do fluxo de consciência – como “técnica narrativa” – ao
Brasil, em meados dos anos 1930. Objeto deste estudo, aberto e apresentado na forma de
fragmentos mentais e imagéticos, intrinsecamente ligados às vozes de Edouard Dujardin,
Willian Faulkner, Virginia Woolf, James Joyce, Robert Humphrey, assim como dos
parâmetros e preceitos teóricos do livro Transparent minds.
Palavras-chave: memória; narrativa; construção do eu; fluxo de consciência; Graciliano
Ramos.

Abstract: The taking of nonlinearity. Exploration of the Self. The place where time is an
illusion. Images that plunge into the void like a yo-yo stuck in a child finger, able to either
shrink stretch as the projection of existence within and outside the body. The story is
thought itself. The eyes go and participate in the depths of someone. Graciliano will
remove the heart of the earth to put it inside the chest. The soliloquy, mental swirl suffered
by the patient and writer immured in the Relógio de hospital (Hospital watch), compelled
to stop writing San Bernardo will bring you the images, the conversation, the links, the
light for the construction of a new narrative of the Self. The short story Hospital watch,
molded anesthetics, pain, vertigo, fear and the desire to strengthen the way between the
mind and the history dates back to the first steps of the arrival of stream of consciousness-
as "narrative technique" - to Brazil in mid 30s. Object of this study, opened and displayed
in the form of mental imagery and fragments, intrinsically linked to the voices of Edouard
Dujardin, William Faulkner, Virginia Woolf, James Joyce, Robert Humphrey, as well as
the parameters and theoretical precepts of the book Transparent minds.

1
Mesa-redonda Memória e ficção em narrativas literárias.
2
Mestre em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

221
Keywords: memory; narrative; construction of the self; stream of consciousness;
Graciliano Ramos.

O FLUXO DE CONSCIÊNCIA CONSTRÓI O “EU” ANTES DA NARRATIVA

O fluxo de consciência surge logo após o impressionismo. E é com o final da


Primeira Guerra Mundial que ocorre a ruptura da técnica do romance. A tomada da não
linearidade e a exploração do Eu como estrutura narrativa. Agora, nesse novo cenário,
uma parte dos escritores se comporta como um explorador que adentrou a caverna do
subconsciente a fim de iluminá-lo com o foco restrito do seu farolete. E embora as
palavras tencionem uma escrita imediata, não é possível desfazer-se do medo de ser
tragado a qualquer instante pelo vão da memória. Por uma fenda que abriga a temida
pessoalidade. Muito antes da intenção e da estética. O lugar onde o tempo é uma ilusão.
Onde as imagens mergulham no vazio como um ioiô preso no dedo de uma criança, capaz
de tanto encolher quanto esticar a projeção da existência dentro e fora do corpo. Cenas
curtas que percorrem e participam das profundezas de alguém. Alguém que vai retirar o
coração de um cenário distante, de outrem, para colocá-lo dentro do peito. O solilóquio,
o redemoinho mental como aquele sofrido por Graciliano Ramos que, anos mais tarde,
doente e emparedado no quarto de um hospital, obrigou-se a interromper a escrita de São
Bernardo para dar voz às imagens projetadas por um novo Eu literário e narrativo. A
escrita como existência concreta a um passo da morte. Se isso é a beirada do fim, que me
diga alguma coisa antes do próximo passo – talvez tenha o escritor assim se perguntado.
Um último ato antes de sumir.

O conto “Relógio de Hospital”, escrito em meado dos anos 1930, foi na verdade
moldado por anestésicos, dor, vertigem, medo e o desejo de estreitar o caminho entre a
mente e a história. O sentimento e a percepção. Mas é justamente esse percurso labiríntico
que ilude a instantaneidade. O passado quase passa despercebido do ato de escrever (vai
ser tratado mais tarde quando o assunto for a autobiografia, por exemplo), derrubando
assim muros entrepostos no caminho do sentir. São paredes solidificadas por anos de
tendência literária em conformidade com a lenta transformação de uma organização
social repleta de regras duras e, até então, inquebráveis. A oportunidade de retirar esse
passado das sombras, perfeitamente adaptado ao escuro depois de tanto tempo, retumba
como a chance de falar livremente sobre si mesmo com base na memória e nas curvas do
pensamento contínuo. Parece uma escritura mais livre, mais perto de quem escreve.

222
“A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrado, cheio de
pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi [...]”, (RAMOS,
1978, p. 9). Assim começa Infância, livro de memórias de Graciliano Ramos, assim
começa a infância de Graciliano, um retalho de memória. A incerteza é, na verdade, a
certeza de que uma cena antes de transformar-se em outra coisa foi capaz de preservar a
sua origem. O vaso foi visto em Quebrangulo – cidade onde nasceu –, em 27 de outubro
de 1892. Registros históricos documentados do vaso são, no entanto, migalhas sopradas
para longe das palavras do escritor alagoano, essencialmente nordestino. A comprovação
da verdade está no esforço da lembrança, preso a um sentimento que soa indesmentível.
Essa imagem inacabada ilustra como a memória ajudou não só na construção de um novo
Eu literário, mas também no deslocamento de uma voz interior que deixou de estar acima
da história para se tornar a própria história. O fluxo de consciência talvez tenha
desempenhado o papel da mais iluminada das portas para se chegar à palavra íntima,
inteiriça – ensaiada por tantos escritores na beirada do século XX – (décadas depois, como
sabemos, modificaria sensivelmente a escrita de ficção e a figura encarnada do escritor,
assim como a vontade de se contar a própria vida), capturando a existência de quem
escreve. Uma vez içada do escuro, a luz dessa “nova palavra” projeta uma imagem que
tem a mesma intensidade ao brilhar e refletir.

Graciliano surge em Infância como alguém que poderia cantar o sertão e a sua
miséria, até lutar por ele pegando em armas se houvesse a chance de fazê-lo ao largo de
sua trajetória. É uma plausibilidade escrita em camadas, está lá em algum lugar, um
engajamento entranhado no texto, mas antes de nos aventuramos a desenrolar um novelo
grosso e pesado de possibilidades por debaixo dos parágrafos, nos é apresentado outro
caminho mais tentador e menos desgastante. Um fio narrativo de sua própria história,
suave e posto delicadamente em volta do punho do leitor, página atrás de página,
conduzindo-o ao seu generoso espaço interno. Um sertão igualmente largo, belo,
assustador e, principalmente, particular. Uma espécie de vida, cuja vida lá fora, sem
grandes mistérios, foi parar dentro de seus livros. O compartilhamento de uma alma sem
tantos tolhimentos estéticos, mas recheada de grandes medos humanos e fluídos que, de
tão próximos, arranham as páginas como se os conhecêssemos desde o nascimento. Esse
diálogo está mais próximo do homem que da literatura. Fazendo dela, ao mesmo tempo,
um instrumento de comunicação poderoso; que em nada diminui, ao dizer para o outro,
aquilo que o escritor só descobre dizendo para si mesmo.

223
A ORIGEM DA MEMÓRIA

Os loureiros estão cortados, novela de Édouard Dujardin, publicada em 1888, ao


relatar seis horas da vida do estudante francês Daniel Prince, enquanto este caminha pelas
ruas de Paris num belo entardecer de abril, esvaziando o tempo até a hora marcada com
a jovem atriz que deseja transformar em amante, virou um marco do fluxo de consciência
e talvez o pai definitivo da técnica narrativa. Uma única situação da história, bastante
curta se vista de fora, mas um círculo inesgotável de imagens se vista de dentro, revela
(sem que o foco principal do livro seja esse) como o comportamento da memória subverte
o Eu do presente, fabricando cenas que soam deliberadamente como lembrança
espelhada. É um desenho que pode pular para o desejo que, por sua vez, rabisca o futuro.
São filetes de imagens que ora conjugam o sentir em si mesmas, ora são colhidas de algum
lugar íntimo do passado recuperado pelo personagem; portanto, não vivido de fato sequer
no terreno ficcional plausível daquilo que poderia ter existido, mas ficou de fora das
páginas. O único propósito de Prince é drenar o relógio e com isso dobrar o peso dos
ponteiros. Essa dança de pensamento se comporta entre idas e vindas, e a situação
evoluída dentro do seu crânio consegue tanto comprimir o tempo quanto alargá-lo. É uma
conversa feita de peças que nasceram separadas, mas que vem à tona sem as suas emendas
aparentes. Justamente como um fluxo, despejado com força, que se não fosse invenção
narrativa seria uma verdade inventada. E essa verdade de Os loureiros estão cortados em
nada se difere daquela que percebemos quando uma lembrança nossa é projetada por um
gatilho de memória.

PRESENTE X PASSADO – FICÇÃO X VERDADE

Mãos adultas e infantis moldam entrelaçadas um narrador híbrido. O Eu


metamorfoseado. Dois narradores que se fundem pelo coração, pelo sabor doce da ilusão,
ou pelo brilho da estilística. O presente é enganado pelo passado. E esse efeito, esse
ilusionismo imagético, faz do narrador alguém que é sorvido pelo sentimento, inebriado
pela sensação de repetir uma experiência de vida, colocando-a um posto acima da
verdade. Qualquer imagem retirada de um feito passado com a finalidade de emergir no
presente em forma narrativa, independente da proximidade ou não de uma voz que já não

224
existe mais, será uma verdade inventada. Não é possível estarmos de novo e nem sermos
outra vez.

Um dia, há muito tempo, dei com uma fotografia do último irmão de


Napoleão, Jeronimo (1852). Eu me disse então, com um espanto que
jamais pude reduzir: “Vejo os olhos que viram o Imperador.” Vez ou
outra, eu falava desse espanto, mas como ninguém parecia compartilhá-
lo, nem mesmo compreendê-lo (a vida é, assim, feita a golpes de
pequenas solidões), eu o esqueci. Meu interesse pela Fotografia
adquiriu uma postura mais cultural. Decretei que gostava da Foto contra
o cinema, do qual, todavia, eu não chegava a separá-la. Essa questão se
fazia insistente. Em relação à Fotografia, eu era tomado de um desejo
“ontológico”: eu queria saber a qualquer preço o que ela era “em si”,
por que traço essencial ela se distinguia da comunidade das imagens.
Um desejo como esse queria dizer que, no fundo, fora das evidências
provenientes da técnica e do uso e a despeito de sua formidável
expansão contemporânea, eu não estava certo de que a Fotografia
existisse, de que ela dispusesse de um “gênio” próprio (BARTHES,
1984, p. 11).
O real, portanto, é como uma fotografia. O fragmento daquilo que estava lá na
forma da matéria orgânica do tempo. Mas quando esse tempo é congelado, mesmo ele se
distorce, deixando de ser o tempo real para virar outra coisa. A lembrança será uma
pintura feita de uma tessitura da verdade, um trecho da memória tão escondido e soterrado
pelo tempo que nos afastou dele para sempre, ao passo que nos brindou com rastros para
reconstruí-lo a partir de pedaços imaginados. Existe uma linha temporal que aferrolha
numa ponta quem viveu a imagem e na outra quem se lembra dela.
É possível recordar da história do alpinista desaparecido numa montanha gelada,
encontrado em perfeito estado de conservação, 30 anos depois, ao acaso, pelas mãos do
próprio filho que, curiosamente inspirado pelo pai, fazia a mesma escalada. Os dois agora
com a mesma idade, respectivamente em morte e em vida, no mesmo lugar, com inúmeras
semelhanças físicas, face a face, vão alterar a lógica do tempo que gira em torno da
existencialidade. Por falar nisso, a reprodução mecânica de um momento vai se distanciar
naturalmente da sua reprodução existencial. Assim como o nosso olhar, diante da imagem
acesa no papel, despejada por quem a viveu ou a encontrou pela primeira vez, vai nos
obrigar a refletir, e refletir sobre uma imagem é o mesmo que ressignificá-la, atraindo
para dentro dela tudo o que o mundo já nos apresentou, ou o “meu mundo” em particular
foi capaz de classificar. Essa classificação, por sua vez, será tão movediça, escorregadia
e sem equilíbrio, que ficará difícil de acomodá-la tanto por ordem de preceitos técnicos
quanto históricos e sociológicos, podendo facilmente ser dissolvida; borrada e
redesenhada a partir do pedaço de um foco clareado por outro pensamento distinto.

225
Entre aquilo que vivemos e aquilo que no presente reproduzimos, está,
invariavelmente, o que Barthes gostaria de ter encontrado nos livros de fotografia e não
encontrou. A imagem mergulhada em emoção, moldada pelo prazer capaz de sobrepujar
a técnica. Para chegar lá seria preciso transportar essa imagem ao lugar de onde ela saiu.
Fazer o movimento contrário, condicionando o fotógrafo (para literatura: o escritor) a
recuperar todos os cheiros, a batida do vento ou o brilho da tarde pelo caminho.

ESTRUTURA DESMONTÁVEL

A memória, como já foi dito, nasce na desordem do pensamento. Não é reta e nem
fácil de montar. Está em nós em pedaços, em fragmentos que se perdem ou se encontram
no caos do tempo passado em choque com o tempo vivo. Como se surgisse a partir de
uma de lágrima que ficou pendida em alguma ponta de verdade, equilibrada por uma
sensação sentida, mas no fundo perdida e que apenas atirou-se na ilusão de ter sido
derramada. Uma sensação ou um sentimento que houve, mas foi deslocado de lugar por
ter sido vivo no coração de um ser que não existe mais. Assim não está em sequência,
não é reta e nem encaixada, mas uma estrutura de pontas diversas que arranham
extremidades que deveriam se encontrar com facilidade. Não estão presas a uma linha,
mas a um vai e volta, um vai e vem de fluxo pensado e emotivo, uma troca entre a
lembrança e o que dela foi possível restaurar no presente. A sensação é a de que uma
“autopista temporal” chumbou e poliu as emendas entre e os anos e fatos passados,
deixando que a mente passe por cima dela em alta velocidade tanto para frente quanto
para trás (o comportamento das autobiografias, não à toa, apresenta uma estrutura
fragmentada de idas e vindas, mesmo quando se pensa em distribuir os acontecimentos
cronologicamente). No máximo existirá o encadeamento dos fatos, um chamará o outro,
tal qual um estalo, mas sem impacto algum na transição de uma coisa e outra. Nenhum
solavanco que nos desacomode da leitura ou tampouco das imagens macias criadas por
nós internamente todos os dias.

A narrativa nesse caso é o achado do Eu e a desconstrução da história. O


pensamento moldado pela memória ocorrerá sempre em pequenos contos: flashes que
iluminam ao fim de si mesmos a ponta de outro conto escondido no escuro e desorientado
pelo tempo. Impreciso, retirado do molde fecundo da sua existência sem que isso seja
suficiente para apagá-lo. Alguém que reconstrói o universo das imagens, distribuídas nas
páginas de um álbum de fotos pela simples ordem do coração. É uma estrutura que lembra
226
o “falso começo” dos discos de jazz, obras de grandes mestres do gênero, cujo coração
terminava por levá-los, em sincronia casual, numa direção oposta àquela exaustivamente
programada e revista em horas de ensaio. Assim abriam a faixa da gravação com um
“erro” (que poderia ser curto ou até mesmo longo), uma espécie de prólogo de última
hora, ou bônus dos produtores fonográficos aos seus clientes, antes da música que haviam
sido contratados para tocar. Um início nascido pelo prazer, pela força da alma, por conta
de uma onda sonora coletiva trazida por um ou outro instrumento antes dos outros, através
de notas emendadas de um jeito imediato e irrepetível, capaz de desvirtuar até mesmo o
improviso.

AUTOFICÇÃO DE TODOS NÓS

O que surge como uma técnica versada em voz narrativa que olha sem medo para
dentro do narrador, a fim de ampliar a forma de narrar, se transforma rapidamente numa
espécie de tendência literária que, uma vez inserida na sociedade globalizada, puxa
intencionalmente para a história o rosto e a vida do escritor. Não é à toa que a narrativa
longa da metade do século XX às primeiras décadas do século XXI tem abandonado o
narrador em terceira pessoa para “vivê-lo” em primeira do começo ao fim da história.

O distanciamento do autor diante da obra, independente do “grau de


ficcionalização”, é encurtado por uma série de fatores, como: a onipresença tecnológica;
as questões de mercado; a valorização da imagem; o estudo, o interesse e aprimoramento
teórico do fazer literário. Nunca se estudou tanto o processo criativo, o embrião da
narrativa, a maquinação e organização das ideias. Mas, sobretudo, graças aos anos de
desinibição psicológica construída a partir do fluxo de consciência. É uma técnica literária
que, assim como as demais, sofreu interferência estética, estilística e também narrativa
desde o berço, mas o seu exercício de execução nos possibilitou imaginar o efeito de
sentido caso fosse de fato fruto duma escrita imediata (impossível de existir sem os freios
naturais do pensamento humano). O resultado é que a ficção contemporânea tornou-se
indissociável daquele que a produz, tanto para fora quanto para dentro das linhas. E foi
preciso observar de perto o cenário interior para chegar num tipo de história que sabíamos
existir, porém, ansiávamos há muito por ler. A vida acima das páginas, definitivamente,
colou na narrativa, constituindo-se em ficção orquestrada ou em verdades explicitas;
filtradas, organicamente, por doses naturais e não corrosivas de intencionalidade.

227
Não posso provar que sou um ser de desejo, um ser de escolha, um ser
de iniciativa. Não posso provar que é na minha relação de alteridade
que eu conquisto a minha identidade, não posso provar que é inserindo-
me como cidadão no trabalho político que vou elaborar instituições
justas, mas creio nisso à medida que o faço, e é por este ato fundamental
de crença e de confiança que me torno naquilo que creio ser
(RICOEUR, 1991, p. 7).
A conquista da ideia fundada de “pessoa” na literatura, no centro e em evidência
dentro das páginas, depois desta peregrinar por um universo simbológico bastante
complexo e difuso, representa uma espécie de recomeço social, baseado na valoração
humana do indivíduo, sem a necessidade de se cortar as raízes culturais e teológicas que
o movimentaram até o presente e podem positivamente projetá-lo no futuro. Por sinal,
um pensamento defendido e sustentado pelo filósofo francês Paul Ricoeur.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A Câmara clara. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984.

COHN, Dorrit. Transparent Minds: narrative modes for presenting consciousness in fiction.
Princeton: Universtity of Princeton, 1983.

RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1978.

WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur e o caminho para o si. Bulletin Du Centre Protestant D´etudes,
Genéve, v. 7, n. 43, p.7-9, 1991. Entrevista concedida a P.M. De Saint-Charon. Disponível em:
<http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/O_caminho_para_o_si_19
91.pdf> Acesso em: 30 maio 2018

228
JODHAA AKBAR, ESCOLHAS DE UMA REPRESENTAÇÃO DO
PASSADO1

JODHAA AKBAR, CHOICES OF A REPRESENTATION OF THE PAST

Emília Teles da Silva2

Resumo: Este trabalho analisa a cinebiografia indiana, realizada em 2008, de um


imperador mogol do século XVI, Akbar. O filme foi realizado na indústria
cinematográfica de Mumbai, conhecida como Bollywood. Embora tenha sido um
imperador notável sob muitos aspectos, o filme Jodhaa Akbar se concentra no seu
relacionamento com uma princesa Rajput. O trabalho busca mostrar que retratar o
envolvimento romântico do imperador muçulmano com sua rainha hindu é uma escolha
com conotações políticas. Em nossa análise, apresentamos outras três biografias do
imperador buscando semelhanças e diferenças na representação do casamento, da
princesa e do imperador.
Palavras-chave: Jodhaa Akbar, Bollywood, biografia, Akbar

Abstract: This paper analyzes a 2008 Indian film about the XVI century Mughal emperor
Akbar. Although Akbar was a notable emperor in many ways, the movie Jodhaa Akbar
focuses on his relationship with a Rajput princess. The work aims at showing that to
portray the romantic involvement of the Muslim emperor with his Hindu queen is a choice
with political overtones. In our analysis, we present three other biographies of the
emperor, two of the sixteenth century and one written in 1917, seeking similarities and
differences in the representation of the marriage and the princess.
Keywords: Jodhaa Akbar, Bollywood, biography, Akbar

INTRODUÇÃO
Achei necessário reduzir o tamanho do hospital de Don
Juan Tavera, não só porque ele cobria o portão de Bisagra,
mas também porque a sua cúpula era muito alta, passando
o horizonte da cidade. E assim, já que eu o fiz menor e
mudei sua posição, eu acho melhor mostrar a sua fachada,
em vez de seus outros lados. Quanto à sua posição real na
cidade, você pode ver no mapa (EL GRECO3 apud
DOXIADIS, 2009, tradução nossa).
The Enchantress of Florence é uma obra de ficção.
Algumas liberdades foram tomadas com o registro
histórico, no interesse da verdade (RUSHDALE, 2008,
tradução nossa).

1
Mesa-redonda Memória e resistência II.
2
Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
3
O pintor explica as liberdades que tomou no seu quadro Tempestade sobre Toledo.

229
[…] eu fiz o filme para entretenimento geral e há pouca
teoria histórica em comparação com os pensamentos
criativos. Meu foco principal é mostrar a proximidade
entre duas sociedades diferentes de pessoas que se
reuniram centenas de anos atrás, por causa de um
casamento. [...] . Faço um apelo a todas as pessoas a tomar
Jodhaa Akbar só como um filme (GOWARIKER, 2008,
tradução nossa).

Em 2008, o diretor indiano Ashutosh Gowariker lançou um filme baseado em um


fato histórico, o casamento entre o imperador mogol Akbar e uma jovem princesa Rajput,
filha do Rei Bharmal4, no século XVI5. Jodhaa Akbar conta a história desse matrimônio,
uma aliança política que favoreceria tanto ao imperador (que com isso ampliaria seu
território) quanto ao rei, que estava numa posição vulnerável e precisava de proteção. O
filme causou certa polêmica e sua exibição foi proibida em alguns estados indianos
devido aos protestos de parte da comunidade Rajput, sob a alegação de que estaria
falsificando a história (ASHRAF, 2008), visto que Jodhaa não seria a esposa do
imperador, mas sua nora. O filme também foi duramente criticado por Khan (2011), que
lista, entre outras omissões, as duas primeiras esposas do imperador (que não aparecem),
aspectos violentos dele e questões ligadas à sua religiosidade (voltaremos ao tema mais
adiante).

O filme abre com um texto que explica que, embora o casamento entre Akbar e a
princesa seja um fato histórico, não há um consenso a respeito do nome da princesa,
“Jodhaa Bai” – este seria o nome pelo qual o povo, atualmente, a conheceria. O texto
acrescenta que o filme é apenas uma versão para os fatos históricos – “poderia haver
outras versões e pontos de vista”. O objetivo deste artigo é recuperar essas outras versões
e pontos de vista, buscando mostrar que as escolhas que cada versão faz são políticas.
Para tanto, recorreremos à biografia de Akbar feita sob sua encomenda pelo historiador
de sua corte6, a biografia “não autorizada” de outro historiador da corte de Akbar7, além
de uma da época colonial, escrita por Smith (1917). Também compararemos o casamento

4
Cujo nome aparece sobre várias grafias: Raja Bihari Mal, Raja Pahárah Mall, Raja Bharmal.
5
O filme é uma superprodução, com cenários requintados, batalhas, milhares de figurantes e vários
elefantes. As joias do filme seriam oficialmente usadas numa linha da joalheria Tanishq. Talvez não seja à
toa que a famosa atriz que faz o papel de Jodhaa, Aishwarya Rai, tenha começado a vida como modelo da
Pepsi.
6
O Akbarnama, de Abul Fazl.
7
Esta segunda biografia se chama Muntakhabu-T-Tawarikh. Ela foi escrita em segredo por al Badaoni (ou
Badauni), que era tradutor na corte de Akbar, e foi encontrada entre seus papéis após a morte do imperador.
230
entre Akbar e Jodhaa tal como aparece no filme com sua representação no livro The
Enchantress of Florence, de Salman Rushdie. Uma referência fundamental, para este
artigo, foi o texto de Shahnaz Khan, “Recovering the past in Jodhaa Akbar: Masculinities,
femininities and cultural politics in Bombay cinema”.

Em cada uma dessas biografias, tanto a cinematográfica quanto as outras, iremos


nos focar na representação do casamento entre o imperador e a princesa. Seguiremos uma
ordem cronológica. Começaremos com as biografias pré-coloniais, escritas pelos
contemporâneos do imperador, depois a biografia de Smith (1917), e encerraremos com
Jodhaa Akbar (ambos de 2008).

Em seu texto A Ilusão Biográfica, Pierre Bourdieu escreve (a respeito dos relatos
biográficos) que uma vida pode ser apreendida como expressão de uma “intenção”
subjetiva e objetiva, de um projeto. Nos relatos, a vida é organizada como uma história,
segundo uma ordem cronológica, mas também lógica, “desde um começo […], no duplo
sentido de ponto de partida, de início, mas também de princípio, de razão de ser, de causa
primeira, até seu término, que também é um objetivo” (2006, p.184). Segundo Bourdieu
(2006), o relato autobiográfico se baseia, pelo menos em parte, na preocupação de se
extrair um sentido, uma lógica retrospectiva e prospectiva, de uma vida. No relato,
estabelecem-se relações inteligíveis entre os estados sucessivos (como a de causa e
efeito), percebidos como etapas de um desenvolvimento necessário. São selecionados
certos acontecimentos considerados significativos, e conexões são estabelecidas entre
eles para lhes dar coerência, em uma criação artificial de sentido.

Em todas essas biografias, sentidos para a vida de Akbar são construídos, e certos
acontecimentos ganham uma relevância maior ou menor no texto, ou são de todo
omitidos. Todas contém, em maior ou menor grau, portanto, silêncios constitutivos.
Orlandi (1997) vai definir o silêncio constitutivo como o que “nos indica que para dizer
é preciso não-dizer” – a palavra dita apaga necessariamente as outras palavras possíveis.
“Há pois uma declinação política de significação que resulta no silenciamento como
forma não de calar mas de dizer ‘uma’ coisa, para não deixar dizer ‘outras’. Ou seja, o
silêncio recorta o dizer. Esta é sua dimensão política”(ORLANDI, 1997, p. 54). Por
exemplo, ainda que, como Gowariker tenha afirmado, Jodhaa Akbar seja só um filme,
ele se atém a determinados fatos históricos e ignora outros. Essa seleção de quais fatos
manter e quais inventar, quais conexões estabelecer, está ligada a esta construção de um
sentido para a vida de Akbar, que é também um sentido para o passado da Índia (sentido

231
este, por sua vez, que altera o sentido do presente). Ao enfocar o casamento, muitos outros
sentidos possíveis para Akbar são negados.

Khan (2011) escreve que filmes históricos dizem muito a respeito do período em
que são feitos: frequentemente, esses filmes moldariam outra vez o passado para
expressar preocupações contemporâneas. Além disso, ela afirma que filmes históricos
ajudariam a produzir as comunidades imaginadas, em que tradições seriam inventadas e
valorizadas por narrativas nacionalistas, conforme apontou Benedict Anderson. Em
Jodhaa Akbar, podemos ver esses processos: a criação de uma comunidade imaginada e
a preocupação contemporânea em relação à tolerância religiosa e a unidade nacional, que
estão interligadas, dado que a Índia é um país marcado e – em certa medida – ameaçado
por uma profunda diversidade religiosa, linguística e cultural. Ao mesmo tempo, o filme
atualiza um momento da história indiana em que o país era bastante próspero, sob um
imperador extremamente poderoso, talvez refletindo o nacionalismo forte que tem
aparecido em diversos filmes indianos recentes (alguns, de uma forma mais óbvia – por
exemplo, filmes de guerra como Lakshya). Nestes filmes, a Índia não passa mais a
imagem da pobreza, mas de um país extremamente poderoso, fortemente armado, e
próspero. Mesmo em filmes de bandido como Don, a prosperidade e tecnologia da nação
e da polícia são bastante evidentes.

Neste sentido de glorificação nacionalista do passado, a escolha de Akbar faz


sentido. O império mogol, sob Akbar, foi o que teve o maior território unificado na região
que hoje constitui a Índia. Akbar foi o imperador mogol que conquistou mais territórios
e estabeleceu mais alianças. Filmes sobre grandes guerreiros são relativamente comuns e
Akbar não apenas teve inúmeras conquistas como ia pessoalmente lutar nas batalhas, ao
lado de seus homens8. Em Jodhaa Akbar há uma cena em que Akbar doma um elefante.
Essa cena pode ter sido inspirada pelo relato de Jahangir9:

Sua coragem e ousadia eram tais que ele podia montar elefantes
furiosos e no cio, e sujeitar à obediência elefantes assassinos que não
permitiriam que suas próprias fêmeas chegassem perto deles [...]. Ele
se colocava em uma parede ou árvore perto de um elefante, que
estivesse passando, e que houvesse matado seu treinador e se soltado,
e, pondo sua confiança em Deus, lançava-se em suas costas e,
simplesmente por montá-lo, punha-o sob controle [...]. Isto foi visto
repetidamente (JAHANGIR, 1968, p. 38, tradução nossa).

8
A cena no filme em que Akbar luta de espada e vence Adham Khan é uma encenação quase literal da
cena descrita por Abul Fazl em Akbarnama.
9
O texto original é do século XVII.

232
Esse processo de glorificação de Akbar já era evidente em sua época. Podemos
imaginar o quanto era importante para o império a construção de relatos favoráveis sobre
o imperador, inclusive para legitimar um poder de origem estrangeira (mogol10).

Esse processo de construção do mito do imperador a partir de sua vida, em suas


omissões e ênfases, parece semelhante ao que ocorreu com um imperador de outro século
e continente, Dom Pedro II. Schwarcz (1998) menciona que, no caso de Pedro II, certos
episódios de sua vida foram privilegiadamente recontados em detrimento de outros. O
monarca brasileiro, como Akbar, também tem um forte valor simbólico, tanto durante seu
reinado quanto depois: Schwarcz (1998) afirma que durante o reinado de Pedro II, e
quando seu exílio na Europa foi “retraduzido”, o “corpo do rei” seria suporte para batalhas
simbólicas de ordem diversa. Mais adiante, ela acrescenta que, como pessoa e mito, o rei
(e ela se refere não apenas a Pedro II, mas a todos os reis) seria acima de tudo uma imagem
evidente de poder, um objeto ritual. Citando Burke, ela vai falar das estratégias de Luis
XIV e sua corte para administrar a imagem pública do príncipe. Para tanto, se recorria ao
trabalho de pintores, escultores, alfaiates11, peruqueiros, dançarinos, poetas, coreógrafos
e historiadores, que tinham a tarefa de glorificar e celebrar o rei. No relato de Abul Fazl,
historiador oficial de Akbar, também podemos ver esse processo. Ele o elogia
profusamente12:

Seu olho atento é o astrolábio do sol [...] ele é de linhagem nobre, de


semblante alegre - de disposição correta - de fronte aberta - de corpo
bem proporcionado - de natureza magnânima - de gênio elevado - de
propósito puro - de fé duradoura - da sabedoria perfeita - […] de
talentos variados - de ampla capacidade - de alta honra - de esplêndida
coragem - de julgamento correto - de excelente conselho - de
generosidade sincera - sem limites de perdão, abundante em compaixão
- [...] de coração puro - não mancha pelo mundo - líder do reino
espiritual - de alerta permanente! Como ele foi reunido em um só lugar?
Ou como um único corpo sustenta sobre os ombros o gênio? (FAZL
apud SOWARDS, 1995, p. 52, tradução nossa).
Seu filho, Jahangir, também o descreve favoravelmente: “[...] em suas ações e
movimentos que ele não era como as pessoas do mundo e a glória de Deus se manifestava

10
Em Jodhaa Akbar, o narrador toma o cuidado de distinguir os mogóis dos outros povos invasores:
“Desde 1011 d.C., inúmeros invasores têm saqueado e devastado esta terra. E então vieram os mogóis.
Eles fizeram da Índia seu lar, dando-lhe amor e respeito. Fundada por Babur, a Dinastia Mogol passou de
Humayun para seu filho, Akbar. Dentre todos os imperadores mogóis, Akbar alcançou os seus maiores
apogeus. Jalaluddin Mohammad Akbar! O primeiro imperador mogol a nascer em solo indiano Akbar
nasceu em uma casa hindu Rajput.”
11
Abul Fazl também fala do vestuário de Akbar.
12
Dado que o imperador acompanhava a execução do texto à medida em que este era escrito, talvez Fazl
tivesse uma motivação adicional para falar bem dele.
233
nele” (JAHANGIR, 1968, p. 33-34, tradução nossa); “[...] As boas qualidades de meu pai
reverenciado estão além do limite de aprovação e de louvor” (JAHANGIR, 1968, p. 37,
tradução nossa).

Mas Akbar realmente parece ter sido uma pessoa cativante. Mesmo seus
opositores, que não teriam nada a ganhar por elogiá-lo, como al Badaoni, falam de suas
qualidades: “[...] tinha uma excelente disposição […] e buscava sinceramente a verdade”.
Padre Monserrate, o padre jesuíta que viveu na corte de Akbar e foi, por um tempo, tutor
de seu filho Murad, escreveu em seu relato (feito quando ele já não estava na Índia):

Este príncipe é de uma estatura e de um tipo de rosto bem adequado à


sua dignidade real, de modo que pode-se reconhecer facilmente, mesmo
ao primeiro relance, que ele é o rei. [...] Sua testa é ampla e aberta, com
os olhos tão brilhantes [...] que parecem um cintilante mar à luz do sol.
[...] Seu corpo é extremamente bem construído [...] A expressão dele é
tranquila, serena e aberta, também cheia de dignidade, e quando ele está
com raiva, de terrível majestade (MONSERRATE, 1922, p. 196-197,
tradução nossa).
É difícil exagerar quão acessível [Akbar] torna-se a todos os que
desejam falar com ele. Pois ele cria uma oportunidade quase todos os
dias para que qualquer das pessoas comuns ou dos nobres possa vê-lo e
conversar com ele, e ele se esforça para mostrar-se a falar
agradavelmente e ser afável ao invés de grave para todos os que vêm
para falar com ele (MONSERRATE apud RICHARDS, 2000, p. 44,
tradução nossa).
Jodhaa Akbar enfatiza estes aspectos atraentes que o imperador parece realmente
ter tido, construindo um personagem ideal. Isso não significa que Akbar não fosse um
homem bastante complexo, com lados menos recomendáveis que o filme não mostra.
Dentro do período de tempo que o filme abrange, houve diversos episódios a respeito dos
quais o longa silencia. Um desses foi o ataque a Chittor, quando o imperador ordenou um
massacre que resultou na morte de 30.000 pessoas (depois que sua vitória já era certa)
(cf. Khan, 2011, p. 197; Smith, 1917, p. 88). Smith (1917, p. 58) relata que, na volta do
casamento com a princesa, a caminho de Agra, Akbar mandou cortar os pés de um
empregado acusado de roubar um par de sapatos (Smith comenta que Akbar, quando mais
velho, dificilmente teria punido tão severamente um roubo tão pequeno – provavelmente,
ele teria concordado com Fazl, que afirma que o imperador, mesmo aborrecido, “[...] não
se desvia do caminho correto: ele olha para tudo com gentileza, avalia bem os boatos, e
é livre de todo preconceito”). Ao “higienizar” a personalidade e a vida do imperador, o
filme cria a base para um passado idealizado, trazendo implicitamente a utopia de um
futuro possível.

234
A maioria das pessoas pensam em sua nação como uma entidade
natural, despertada pela história, opressão, ou revolução. Mas esta visão
ignora a maneira em que as nações procuram estabelecer sua
identidade, definindo-se contra outros estados-nação. Uma das
principais ferramentas de construção de uma nação é o vasculhar
seletivo da história para eventos que podem fornecer histórias
encorajadoras ou mitos (LUCE, 2008, p. 149-150, tradução nossa).
É interessante que, de acordo com o ponto de vista, Akbar não é retratado sob uma
luz favorável. O Coronel Tod, escrevendo no início do século XIX uma história dos
Rajput (portanto, tendo fontes Rajput), descreve Akbar como um homem propenso a
desonrar as esposas alheias. Ele conta a seguinte anedota, que teria acontecido com a
esposa de um nobre Rajput chamado Prithiraj: o “monarca dos Mogois” teria visto a moça
e, devido a sentimentos “não-generosos” e “impuros”, tentado “desonrar” a família do
marido dela. Voltando da feira, ela teria se deparado com Akbar. Retirando um punhal
escondido em suas roupas, ela teria se defendido, forçando-o a prometer não difamar mais
o povo dela (TOD, 1920, p. 401-402)13. Aqui, portanto, os heróis são os Rajputs, e o
imperador é representado como uma ameaça (Fazl provavelmente negaria a história, uma
vez que ele afirmou que o imperador “considera uma grande bênção ter a boa vontade do
povo, e não permite que os prazeres intoxicantes do mundo se sobreponham ao seu juízo
calmo”14).

Voltando à questão da construção de sentido, buscaremos, agora, apresentar as


outras biografias do imperador, para tentarmos ver o que, na construção de um sentido
para a vida de Akbar, Jodhaa Akbar mostra e o que apaga, e o que isso nos diz a respeito
do filme. Começaremos com a escolha do momento do casamento, falaremos do próprio
nome de Jodhaa, seguiremos para as outras esposas de Akbar, para a omissão de aspectos
da religiosidade do imperado e depois para o recorte temporal de sua vida.

AKBARNAMA

A biografia que Akbar encomendou ao seu historiador, o Akbarnama15, enfatiza


sobretudo os aspectos políticos de seu longo reinado: as muitas conquistas de territórios,

13
O volume original foi publicado em duas partes, entre 1829 e 1832. Esta história parece improvável.
Nenhum outro historiador menciona este lado da personalidade de Akbar.
14
Akbarnama (Ain I Akbari, volume 1, capítulo 15).
15
Akbar pediu ao historiador oficial de sua corte, Abul Fazl, que escrevesse sobre sua vida, registrando
os acontecimentos de seu longo reinado, de sua infância e ascensão ao trono. Akbar seguiu o exemplo de
seu avô, o imperador Babur, que escreveu suas memórias. A biografia de seu pai, Humayan, seria escrita
por sua tia Gulbadan Begam, a pedido de Akbar. Segundo Sowards (1995), Fazl lia os capítulos, à
235
os acordos, as traições que ele sofreu, suas visões sobre a religião. A biografia também
aborda amplamente aspectos administrativos do reino. Muitos capítulos são dedicados
aos dados astrológicos do imperador. De sua vida pessoal, o Akbarnama não fala muito;
de fato, nenhuma dessas biografias não ficcionais enfatiza sua vida privada, a não ser no
que diz respeito à sua religiosidade ou seu amor à caça. Isso em si mostra a importância
e visibilidade maior que se dá à vida privada atualmente, em comparação ao século XVII:
assim como Jodhaa Akbar, o livro de Rushdie também traça um retrato da intimidade do
imperador. O harém do palácio, que aparece extensamente tanto no filme quanto no livro,
aparece no Akbarnama brevemente, quando sua administração é explicada16. O amor
parece ter menos importância neste espaço, cuja principal virtude parece ser a ordem:

Sua Majestade é um grande amigo da boa ordem e decência nos


negócios. [...] Por esta razão, o grande número de mulheres – uma
questão vexatória mesmo para grandes estadistas – forneceu à Sua
Majestade uma oportunidade para exibir sua sabedoria [...]. Os palácios
imperial e doméstico estão, portanto, na melhor ordem17.
Nesta parte, Abul Fazl não menciona especificamente nenhuma esposa. E, ao
contrário de Rushdie e de Gowariker, Fazl foi inteiramente omisso no que diz respeito à
sexualidade do imperador. Sobre o grande número de casamentos do imperador, Falz
escreve que ele forma alianças matrimoniais com os príncipes de Hindustan e de outros
países, garantindo por estes “laços de harmonia a paz do mundo”. Para Fazl, portanto, os
casamentos do imperador são essencialmente uma questão de política, cuja principal
motivação é a formação de alianças que assegurariam a paz do império. De fato, a respeito
de casamentos, ele escreveu que “Sobretudo, grandes governantes aprovam [o
casamento], pois seus esforços são dedicados à produção de unidade, e a remover a poeira
de complexidade pela água da simplicidade”18.

Este é outro ponto em que Akbar se assemelha aos outros monarcas: os reinados se
fortalecem através dos laços matrimoniais, que são sobretudo laços políticos, mas no caso
de Pedro II, também uma afirmação do 'corpo do rei', de status. O imperador brasileiro

medida em que eles eram escritos, para o imperador, que os corrigia e comentava. Os dois se tornaram
amigos próximos. Fazl seria assassinado em 1602, a mando do filho do imperador, Jahangir.
16
Essencialmente, ele relata que cada uma das esposas recebe uma quantia de dinheiro mensal, de acordo
com seu status, que cada uma possui seu próprio quarto, que todos os gastos são devidamente registrados,
que há mulheres especialmente encarregadas como escribas, que o harém é protegido por guardas e
eunucos e que é possível para mulheres de fora visitarem o harém sob solicitação.
17
Akbarnama (Ain I Akbari, volume 1, capítulo 15).Tradução nossa.
18
Akbarnama, volume 3, capítulo 94, tradução nossa.

236
também só conheceu sua esposa (escolhida por ser da realeza europeia, o que era
importante para um império nos trópicos) no dia do casamento.

Até este momento da pesquisa, as mulheres que mais aparecem nestas biografias
não-fictícias de Akbar são sua mãe, sua tia e sua ama-de-leite, Maham Anaga, que viria
a exercer uma grande influência política. Sua esposa Salima também aparece no momento
da reconciliação entre Akbar e seu filho Salim. Quanto à filha do Rei Bharmal, ela é
apenas brevemente citada no Akbarnama em relação ao seu casamento:

No dia seguinte, [ ...] Caghatai Khān introduziu Rajah Bihari Mal junto com
muitos de seus parentes e os principais homens de seu clã. [ ...] . O Rajah de
pensar correto e elevada fortuna considerou que ele deveria pôr-se fora da ralé
de proprietários de terras e tornar-se um dos mais ilustres da Corte. A fim de
efetuar essa finalidade ele pensou em uma aliança especial, a saber que ele
deveria [...] introduzir sua filha mais velha , em cuja testa brilhava as luzes da
castidade e do intelecto , entre os atendentes sobre o glorioso pavilhão. Na
medida em que graciosidade é natural a Sua Majestade o Shāhinshāh seu
pedido foi aceito e Sua Majestade mandou-o partir, juntamente com Caghatai
Khān, a fim de que ele pudesse providenciar esta aliança , que é o material da
glória eterna da família , e rapidamente trazer a filha dele. [ ...] Rajah Bihari
Mal da sinceridade de sua disposição fez os arranjos para o casamento da
maneira mais admirável e trouxe sua filha feliz por esta estação e colocou-a
entre as mulheres do harém. Com a finalidade de manter o banquete de
casamento a cavalgada imperial parou por um dia em Sambhar. [...]19.
Este trecho que fala diretamente sobre o casamento é precedido de uma longa
explicação a respeito do Rei Bharmal – sua situação e as razões que o levaram a oferecer
sua filha ao imperador. Novamente, portanto, o mais importante para Fazl não é a moça
em si, mas sua família e as alianças políticas que podem ser obtidas com a união.

MUNTAKHABU-T-TAWARIKH

A biografia que al Badaoni escreve sobre o imperador é muito mais crítica que a de
Abul Fazl. As principais divergências entre al Badaoni e Akbar eram religiosas. O
historiador era um muçulmano muito mais ortodoxo, e criticou a tolerância religiosa do
imperador. Mais ainda, o fato de Akbar ter tomado para si a autoridade religiosa máxima
sob a interpretação do Alcorão, recebido pessoas de todas as seitas, questionado todos os
dogmas, se afastado do Islã e fundado sua própria religião era inaceitável para ele. Al
Badaoni também tinha problemas com Fazl: ao confrontá-lo a respeito de suas heresias,
ele teria ficado furioso quando Fazl respondeu que “I wish to wonder for a few days in
the vale of infidelity for sport” ( cf. GASCOIGNE apud SOWARDS, 1995, p. 59).

19
Akbarnama, capítulo 39, tradução nossa.

237
A biografia é dividida em três partes: o primeiro volume contém breves biografias
dos principais membros das dinastias que antecederam a de Akbar e dos antepassados do
imperador. O segundo volume traz, ano a ano, os acontecimentos da vida do imperador e
os principais eventos do império. O terceiro traz breves biografias de súditos importantes,
incluindo médicos, poetas, etc. Isto é, tanto no relato de Abul Fazl quanto no de al
Badaoni, a vida de Akbar é absolutamente ligada aos seus súditos, ao império e seus
acontecimentos, suas lutas, suas disputas. Quando Fazl descreve a administração do reino,
ele não deixa de estar escrevendo sobre o imperador.

O relato contemporâneo de al Badaoni20 a respeito do casamento é ainda mais breve


do que o de Fazl: “e na cidade de Sámbhar, célebre pelos suas minas de sal, Raja Pahárah
Mall, governador de Ajmer, junto com seu filho Raí Bhagvan Das, veio e se apresentou
respeitosamente ao imperador, que, em seguida, desposou a filha gentil dele em
matrimônio honroso”21.

Al Badaoni insere o casamento no contexto dos eventos de todo o ano de 969


(segundo o calendário que eles usavam – isso corresponde ao nosso ano de 1562), de
modo que o casamento vem no mesmo parágrafo que a peregrinação do imperador à
tumba do santo Khwajah Mu'in-ud-din Chisti, e é seguido, ainda neste parágrafo, pelo
conflito na fortaleza de Mirt'ha, em que uma disputa com os Rajputs levou à morte de
200 soldados destes. Mais parágrafos e poesias são dedicados às mortes de Pir
Muhammad Khan, responsável por tantos massacres, de Adham Khan (um dos principais
vilões de Jodhaa Akbar), e do pai de Badaoni.

Isto é, em termos proporcionais, no filme, o casamento e a princesa são enfatizados


muito mais do que em qualquer das biografias da época, enquanto outros eventos, a
respeito dos quais as biografias discorrem longamente, são eclipsados. Como já foi dito,
à primeira vista, é como se essas biografias contemporâneas do imperador levassem
principalmente em conta o homem público, enquanto o filme e o livro abordassem o
homem privado. Entretanto, a privacidade do imperador não deixa de ter uma
representação política em Jodhaa Akbar: é como se, no filme, não fosse possível separar

20
A biografia escrita no século XVI por al Badaoni, Muntakhabu-T-Tawarikh, à qual já fizemos referência.
21
Muntakhabu-T-Tawarikh, ano 969 (1562).

238
o homem público do homem privado22, como se a privacidade fosse uma questão pública.
A rejeição de uma parte da comunidade Rajput ao filme parece indicar precisamente isso.

AKBAR THE GREAT MOGUL – 1542-1605

Em sua biografia de Akbar, publicada em 1917, Vincent Smith, escrevendo ainda


durante a época colonial, tece diversos elogios ao imperador, embora ele desaprove o fato
de Akbar ser analfabeto. É interessante notar que Smith critica Fazl diversas vezes,
aprovando mais al Badaoni (o qual, entretanto, chama de “muçulmano preconceituoso”).
Sobre o casamento de Akbar com a princesa, Smith fala muito mais sobre a moça do que
sobre seu pai, Raja Bharmal23, no que ele difere de Abul Fazl. Uma grande diferença é
que ele menciona o nome da princesa (ainda que seja o nome que ela viria a ter após o
casamento). Smith acrescenta que ela deu luz ao filho de Akbar, Jahangir, e nos informa
a localização de seu mausoléu.

No Deosa, a meio caminho entre Agra e Ajmer, recebeu Raja Bihar


Mall, o chefe de Amber ou Jaipur em Rajputana, que ofereceu a sua
filha mais velha para Akbar em matrimônio. [...]. O casamento foi
celebrado em Sambhar. [...] A noiva, posteriormente, tornou-se a mãe
de Jahangir. Seu título oficial póstumo, Maryam-zamani (-uz-zamani),
“a Maria da época”, faz com que ela seja confundida por vezes com a
mãe de Akbar, cujo título era Maryam-makani, “habitando com Maria”.
O pó da primeira consorte Hindu de Akbar reside em um belo mausoléu
situado perto do túmulo de Akbar em Sikandara (SMITH, 1917, p. 57-
58, tradução nossa).
Talvez essa maior importância dada à princesa na biografia de Smith, em relação
às de Fazl e Badaoni, esteja numa possível menor desigualdade entre os sexos na
Inglaterra de 1917, em que Smith escreve, se comparada com a Índia do século XVI de
Fazl e Badaoni. Também é possível que já estivesse em ação a questão da maior ênfase
na vida privada. Essas hipóteses requerem pesquisa adicional para serem comprovadas
ou refutadas. Seja como for, Smith escreve mais sobre a princesa, falando que ela
provavelmente se converteu mais ou menos à religião muçulmana, e que com certeza
recebeu um título maometano e foi enterrada numa sepultura maometana.

22
Na verdade, essa dicotomia seria questionável em qualquer pessoa, mas, sobretudo no caso de um
imperador, questões pessoais podem virar questões de Estado.
23
Cujo nome, já mencionamos, aparece sob várias grafias. Por uma questão de uniformidade, ao longo do
texto, nos referimos a ele sempre como Bharmal.
239
Nisso, ele diverge bastante de Jodhaa Akbar, na medida em que, no filme, a
princesa faz questão de se manter hindu, inclusive fazendo disso uma condição para o
casamento. A respeito do efeito desse casamento sobre a vida pública e privada do
imperador, Smith afirma que o casamento com a princesa teve um efeito político imediato
(além de possivelmente ter exercido uma influência sobre sua religiosidade).

JODHAA

O nome da princesa, como ele aparece na autobiografia de seu filho, Jahangir, era
Mariam uz-Zamani24 (conforme já vimos com Smith). Mariam é o nome muçulmano pelo
qual ela seria chamada após o casamento, aponta Khan (2011), que acrescenta que seu
nome original provavelmente seria “Hira Kunwari” ou “Manmati”. Até este momento da
pesquisa, o nome dela não foi encontrado nem no Akbarnama nem no Muntakhabu-T-
Tawarikh (nestes, ela é mencionada como a filha do rei Bihari Mal e, mais tarde, como
“uma das esposas”: filha, esposa, sem nome). O fato do nome dela não ser dado, sendo
citada apenas como filha de seu pai, na ocasião de seu casamento, não é incomum: no
Akbarnama, Fazl relata os casamentos dos filhos de Akbar, Salim e Murad, sem
mencionar os nomes das noivas. Apenas seus pais são nomeados.

O fato de nem o nome da princesa nem o suposto romance entre o casal serem
mencionados nas biografias contemporâneas do imperador não significa que na época o
amor não fosse valorizado pela sociedade (e pelos biógrafos). O exemplo mais
interessante pode ser encontrado na autobiografia do avô de Akbar, o imperador Babur,
que escreveu suas memórias no início do século XVI. A respeito de sua esposa, um
casamento arranjado com a filha de seu tio, ele escreve que, por timidez, a via muito
pouco. Ele acrescenta que, nessa época, se apaixonou por um rapaz chamado Baburi:

Até então eu não tinha tido inclinação para qualquer um, na verdade, de
amor e desejo, seja por ouvir dizer ou experiência, eu não tinha ouvido
falar, eu não tinha falado. Naquela época eu compus dísticos persas, um
ou dois de cada vez, este é um deles:
“Que nenhum ser como eu, humilhado e miserável e doente de amor;
Nenhum amado como tu és para mim, cruel e descuidado”.

24
É importante ressaltar que quem aponta “Mariam uz Zamani” como o nome da mãe de Jahangir são os
editores da obra, em notas de rodapé, não o próprio Jahangir, que se refere ora a Mariam uz Zamani, ora a
“minha mãe”, sem que estas referências estejam próximas. Aqui, obviamente nos faltam outros elementos,
como inscrições em tumbas, outros relatos contemporâneos que desconhecemos, etc.
240
De tempos em tempos Baburi costumava vir à minha presença, mas,
por modéstia e timidez, eu nunca conseguia olhar diretamente para ele,
então como eu poderia conversar? Na minha alegria e agitação eu não
poderia agradecer-lhe (por vir); como seria possível para mim reprová-
lo por ir embora? Que poder tinha eu para exigir o dever de serviço a
mim? [...] Naquele espumar de desejo e paixão, e sob o estresse da
insensatez da juventude, eu costumava passear, cabeça nua, descalço,
através de rua e ruela, pomar e vinhedo [...]2526
Em suas memórias, o filho de Akbar, Jahangir (1968, p. 56), fala do quanto ele sofreu
quando sua esposa Shah Begam (também uma Rajput) se suicidou, afirmando seu profundo
apego a ela. Ele relata ter ficado quatro dias sem comer nem beber depois que ela morreu. A
respeito do terceiro filho de Akbar, Daniel, que morreu jovem, Abul Fazl escreve:

O príncipe era incrivelmente ligado a Janan Begam, a filha do Khan-


khānān. Essa excelente e fiel senhora ficou inconsolável após esta
catástrofe e queria ir para o outro mundo com o príncipe. Ela não obteve
este benefício e, se submetendo às proibições e conselhos dos outros,
permaneceu nesta morada de tristeza. Mas ela foi consumida pela dor
devido à partida do príncipe. Ela viveu por muitos anos, mas, até seu
último suspiro, cada dia de sua viuvez foi o primeiro dia27.
É notável que, neste momento, Fazl cita o nome de Janan Begam. O amor entre ela
e o príncipe Daniel tornou-a importante a ponto de seu nome ser registrado. Al Badaoni,
por sua vez, dedica muitas páginas, e poemas, para contar um evento marcante do ano
97628: as mortes de um jovem muçulmano e sua amante hindu (casada). Todo o drama do
amor proibido entre o casal, que culmina com a morte de ambos, é contado. Al Badaoni
menciona, inclusive, o nome da moça: Mohiní, “cuja beleza era como o ouro mais puro”
(tradução nossa)29. O nome da esposa de um ourives é mencionado; o nome da princesa, não.
Embora al Badaoni pudesse escolher não mencionar o amor do casal real ou o nome de
Mariam por alguma razão, como membro da corte de Akbar, ele provavelmente saberia de
ambos se houvesse alguma evidência deste amor. O mais provável é que, dado que o
imperador tinha quase trezentas esposas (cf. Khan, 2011), não houvesse qualquer indício de
que ele preferisse Mariam às outras, e que, no meio deste vasto harém de cerca de cinco mil
mulheres (Khan, 2011)30, o nome dela não fosse tão conhecido. Lal (2005, p. 205, tradução

25
Baburnama, p. 120-121, tradução nossa.
26
Esse relato do imperador Babur nos faz crer que o amor entre homens não parecia trazer nenhuma
desonra aos mogois. Talvez o conceito de homossexualidade sequer existisse entre eles.
27
Akbarnama, volume 2, capítulo 156, tradução nossa
28
Segundo o calendário da época. No nosso calendário, isso seria o equivalente a 1569.
29
Al Badaoni também relata outro caso de amor proibido que resultou em morte que tinha ocorrido antes
deste.
30
Os haréns não eram exclusivamente de esposas: havia filhas, parentes, crianças, agregadas, escravas...

241
nossa) afirma: “é notável que não encontramos nenhum vestígio de uma amada ou uma
esposa favorita associada a Akbar, em lendas ou na literatura contemporânea”31.

Voltando à questão do nome de Jodhaa, não há, portanto, menção ao nome “Jodhaa
Bhai” nas biografias contemporâneas, o que, a princípio, provavelmente não seria uma
questão digna de nota, a não ser pelo fato de que, ao chamá-la de “Jodhaa”, o filme não usa
o nome muçulmano “Mariam” (ao longo deste artigo, nos referiremos a ela como “Jodhaa”
quando falarmos da personagem do filme e como “Mariam” quando nos referirmos à pessoa
histórica). Segundo Khan (2011), há inclusive indícios de que Mariam teria se convertido ao
islamismo, dado que ela teria fundado uma mesquita e não teria sido cremada, ao contrário
do que requer a tradição hindu. O nome “Jodhaa” ressalta o hinduísmo da princesa, e sua
vitória, no final do filme, é também uma vitória do hinduísmo. Esse hinduísmo é ressaltado
na cena em que Jodhaa exige, como condição para o casamento, que ela não seja forçada à
conversão e que ela possa ter um templo construído no palácio para seu uso. Outra cena que
ressalta a religião hindu é o casamento, uma cerimônia religiosa hindu (não há indícios nas
biografias de como teria sido a cerimônia, mas dado que o imperador era muito mais poderoso
do que o pai de Mariam, e era muçulmano, é mais provável que a cerimônia histórica tenha
sido muçulmana).

JODHAA AKBAR

Conforme Khan (2011) aponta, quando Akbar se casou com Mariam, ele já tinha
duas outras esposas: Ruqayya Sultan Begum e Salima Sultan Begum323334; esta última,
segundo Erely (2000, p. 225) era sua esposa preferida. Nenhuma das duas aparece no
filme – Jodhaa Akbar é a história de um casamento monogâmico. Há duas razões
possíveis para esta omissão. A primeira, óbvia, é que é difícil fazer um filme romântico

31
Erely (2000, p.225), porém, afirma que Salima Sultan Begum era a esposa preferida do imperador, mas
não fica claro com base em qual registro histórico essa afirmação é feita.
32
A precedência das duas também pode ser vista em Gulbadan (1902, p. 274 e 279), e em Eraly (2000, p.
123). O mesmo é afirmado nas memórias de Jahangir (1968, p. 48). Em todas estas referências, os trechos
em que a precedência delas é afirmada não foram escritos por Gulbadan nem por Jahangir, mas pelos
editores e tradutores, séculos depois, em notas de rodapé. Até este momento da pesquisa, não foram
encontradas referências à ordem das esposas nem no texto original de Gulbadan, nem no de Jahangir.
33
Segundo o Akbarnama (p. 449), Akbar teria dito que “Buscar mais de uma esposa é incentivar a própria
ruína. Caso ela [a esposa] fosse estéril ou não tivesse qualquer filho, poderia, então, ser conveniente. Se eu
tivesse sido sábio antes, eu não teria tomado nenhuma mulher do meu próprio reino em meu harém, pois
os meus súditos são para mim como crianças” (tradução nossa).
34
É importante ressaltar que, até o momento desta pesquisa, não foi possível encontrar referência aos
casamentos com Salima e Ruqaiya no Akbarnama.
242
protagonizado por um homem que já tem duas esposas (e que viria a se casar com quase
trezentas outras). O amor romântico pressupõe a exclusividade amorosa, sem a qual ele
deixa de ser romântico. A outra é que a omissão das outras esposas aumenta a importância
desta princesa hindu. Entre as outras, ela seria apenas mais uma. O silêncio em relação às
outras esposas é, portanto, essencial para a construção de um discurso de uma Índia
unificada, fundada pelo amor de um imperador muçulmano e uma imperatriz hindu.

Ao mesmo tempo, como aponta Khan (2011, p. 199), “A supremacia de Jodhaa no


filme permite que os valores hindus de classe média tenham a supremacia na corte de
Akbar – o auge do poder muçulmano. A classe média da Índia pode reivindicar Akbar
como um dos seus próprios. Em certo sentido, ele não pertence mais à comunidade
muçulmana, ele subiu acima deles”. O casamento hindu, o ato religioso hindu no harém
do qual o imperador participa (os gestos de Jodhaa ao realizar o ato são típicos das mães
de tantos filmes de Bollywood), a afirmação de que ele nasceu numa casa hindu – tudo
isso ajuda a mitigar o muçulmanismo de Akbar. Na única cena em que aparece rezando,
ele reza para um santo sufi, não para Allah.

Em Jodhaa Akbar, vemos, portanto, duas tendências: uma em direção à maior


tolerância religiosa entre hindus e muçulmanos, à construção de uma nação em que ambos
possam conviver (não havendo necessidade de uma partição, como aconteceu durante a
criação da Índia e do Paquistão, em que os territórios foram divididos para formar países
diferentes para cada um dos dois grupos religiosos). A outra, em direção a uma
“hinduização” de um passado histórico crucial para a ideia de uma nação forte35.

Mas a Índia é incomum em que mantém dois ideias muito competitivas


e opostas da nação: o primeiro [...] enfatiza a Índia plural, secular, e
composta (em contraste com o Paquistão); a segunda, representada pelo
movimento nacionalista hindu, empurra para uma definição mais
exclusiva e hindu da Índia (em um eco não intencional do Paquistão).
É somente nos últimos vinte anos que o segundo ponto de vista tem
proporcionado um sério desafio para o primeiro (LUCE, 2008, p. 150,
tradução nossa).
O nacionalismo hindu acaba tendo que conciliar duas atitudes incompatíveis: de
conciliação com os muçulmanos, em alguma medida, devido à ameaça de perda
territorial, e a hinduização da Índia. Há ainda uma alternativa à tolerância, que é o
extermínio ou expulsão dessa parte da população, o que em alguns momentos também é

35
O império mogol não apenas foi um momento na história prévia à Índia em que o território foi unificado,
como também um momento em que essa região era extremamente poderosa e próspera.
243
adotado. Jodhaa Akbar apresenta essas três tendências. A tolerância demonstrada pelo
imperador (mas não por Jodhaa); a hinduização, representada pela importância
desproporcional dada a Jodhaa; a expulsão, pelo fato de todos os vilões serem
muçulmanos.

O recorte temporal do filme é bastante conveniente, à medida em que esconde diversos


momentos não idealizáveis da vida do imperador. O filme termina, por exemplo, antes da
morte por alcoolismo dos dois outros filhos de Akbar: Murad e Daniyal36, da rebelião do
príncipe Salim/Jahangir37 (que tentou dar um golpe de estado38) e do assassinato de Abul Fazl
a mando deste (como o próprio relata em suas memórias). Neste sentido, o livro que Salman
Rushdie escreveu, The Enchantress of Florence, é bastante diferente do filme. Rushdie
escolheu retratar o imperador na meia idade, e ainda que ele tenha escolhido um recorte
temporal que igualmente exclui as mortes e a rebelião, no livro os filhos do imperador são
velhos o suficiente para já serem retratados como alcoólatras, dissolutos e conspiradores. Por
todos os relatos históricos, na juventude Jahangir realmente era bastante cruel39. Há suspeitas,
inclusive, de que ele teria envenenado o pai40. Rushdie também mostra um pouco da violência
que o próprio Akbar era capaz: a cena inicial o mostra pessoalmente matando um príncipe
hindu insubmisso.

CONCLUSÃO

Ao longo do tempo, pelo que podemos ver nas biografias que analisamos, a primeira
esposa hindu de Akbar parece ter ganhado importância e visibilidade. O casamento,
entretanto, nunca deixou de ser tratado como um fato político. Mesmo o amor que Jodhaa
sente por Akbar no filme literalmente só surge quando ele conquista o apoio da população
hindu. Ela só começa a amá-lo porque ele passa a ter políticas públicas as quais ela
aprova.

O imperador enquanto homem público (e privado) é apresentado como homem


ideal, modelo de perfeição, à medida em que isso se torna interessante politicamente.

36
Cf. RICHARDS, 2000. Jahangir também era alcóolatra (e usava ópio), mas relata em suas memórias
como conseguiu superar o vício que já fazia suas mãos tremerem. Aparentemente, na juventude ele era
bastante dissoluto. Smith (1917, p. 314) relata que Akbar ficou chocado ao saber que Jahangir (na época,
chamado Salim) tinha assistido à tortura prolongada de um opositor.
37
Salim mudou de nome para “Jahangir” ao assumir o trono após a morte do pai.
38
Ver CANETTI, 1978, p.244, e SMITH, 1917, p. 301.
39
Ver, por exemplo, o livro de Smith (1917).
40
Ver SMITH, 1917, p. 301.

244
Assim, tanto o Akbarnama, que glorificava o império mogol enquanto este ainda existia,
quanto Jodhaa Akbar, que glorifica a Índia atual ao construir um passado grandioso,
apresentam uma visão idealizada de Akbar. Vincent Smith, al Badaoni e Salman Rushdie,
que não têm essa agenda, retratam o imperador de uma forma mais crítica.

O fato é que haveria muitos recortes possíveis para a vida de Akbar, e a escolha de
um ou de outro teria uma dimensão política. Por exemplo, ao escolher um período
posterior da vida do imperador (em que ele já está um pouco gordo, em que seus filhos já
levam uma vida devassa, em que ele pensa em fundar uma nova religião, etc.), Rushdie
faz um retrato pouco lisonjeiro do imperador. O filme, ao contrário, ao optar por mostrar
o início da vida de Akbar, o mostra em uma luz extremamente favorável. Ainda que
ambas as biografias reforcem o papel da primeira esposa hindu de Akbar (eliminando as
duas primeiras), e ambas o tornem mais próximo dos hindus, e o estabeleçam mais como
indiano do que como mogol (ele foi, de fato, o primeiro imperador mogol a nascer na
Índia), cada biografia lança, a partir do imperador, uma luz sobre a Índia histórica. O
filme, bastante patriótico, traça um retrato glorioso do passado indiano. O livro, ao
contrário, ressalta os aspectos menos lisonjeiros desse passado.

REFERÊNCIAS

ASHRAF, Syed Firdaus. Did Jodhabai really exist? Rediff.com, maio 2008. Disponível em:
<http://www.rediff.com/movies/2008/feb/06jodha.htm>. Acesso em: 09 dez. 2013

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Society, 1902.

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246
SILVIANO SANTIAGO E A ESCRITA FICCIONAL DE SI1

SILVIANO SANTIAGO AND THE FICTIONAL SELF-WRITING

Henrique Júlio Vieira Gonçalves dos Santos2

Resumo: Este trabalho pretende apresentar uma leitura do romance O falso mentiroso:
memórias (2004), do professor e escritor mineiro Silviano Santiago, em interlocução com
os seus textos teórico-críticos Epílogo em 1a pessoa: eu & as galinhas-d'angola (2004) e
Meditação sobre o ofício de criar (2008). A sua atuação em diversos locais de enunciação
compõe um projeto intelectual coeso, elucidado pelas migrações discursivas entre as
diversas instâncias de sua produção. Assim, pretendemos refletir sobre as fronteiras e os
trânsitos entre o discurso literário e o discurso biográfico, o texto de ficção e o texto
ensaístico neste corpus de análise, tendo em vista os seguintes aspectos: a contiguidade
entre a autoficção e a bioficção no romance, com a ficcionalização de dados biográficos
do escritor, identificados na construção da personagem literária Samuel Caneiro de Souza
Aguiar; a configuração deste sujeito-narrador-protagonista a partir da representação
autobiográfica empreendida através da sua memória, cujas recordações se efetuam a partir
de vivências reais e vivências ficcionais; as relações de interdiscursividade entre a
produção teórico-crítica, o texto literário e o discurso autobiográfico, considerando-se
estas migrações discursivas como uma das características da produção deste escritor
múltiplo.
Palavras-chave: Silviano Santiago; bioficção; memória.

Abstract: This essay aims to discuss the novel O falso mentiroso: memórias, written by
Silviano Santiago, dialoguing with his essays Epílogo em 1a pessoa: eu & as galinhas-
d'angola (2004) and Meditação sobre o ofício de criar (2008). By reading his texts, the
dialogues between the fictional and theorical production are analyzed, considering the
fictionalization of Silviano Santiago's biographical experiences, identified at the speech
of the character Samuel Carneiro de Souza Aguiar; the autobiographical representation
through his memories, which registers historical moments lived fictionally.
Keywords: Silviano Santiago; biofiction; memory.

Eu sou trezentos...
“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,


E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos taxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

1
Mesa-redonda Potências da Autoficção.
2
Graduado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia. Contato: hjvieira2@gmail.com
247
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo”

Mário de Andrade

“Eu nos faltará sempre”


João Adolfo Hansen

A aparição da figura do escritor múltiplo se anuncia desde o fim do século XIX e


início do século XX, com os chamados “fundadores da modernidade”, geração de
escritores que conjugavam a atividade criativa com a produção ensaística sobre a
literatura e a cultura, a exemplo de Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Virgínia Woolf,
T. S. Eliot, Paul Valéry, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, e que se agrega aos
professores-escritores de nosso tempo. A partir das décadas de 1950 e 1960, com a criação
e expansão dos cursos de pós-graduação nas universidades brasileiras, estes intelectuais
incorporaram o papel de docente à sua atuação na cena cultural, passando a produzir suas
teorias críticas nas faculdades de Letras e Ciências Humanas do país, em que a Teoria da
Literatura se consolidava enquanto disciplina curricular nos estudos literários.

Considerando os novos horizontes que se delineiam na cena cultural


contemporânea, podemos perceber que a presença da subjetividade de artistas e
intelectuais é cada vez mais pulsante em suas produções. No corpus do projeto de
pesquisa O escritor e seus múltiplos: migrações3 possível identificá-la, dentre os
diferentes perfis estudados, nas afinidades literárias e teóricas dos poetas Décio Pignatari
e Haroldo de Campos, na metapoesia de Affonso Romano de Sant'anna, nas diversas
máscaras assumidas pelo “a(u)tor” Evando Nascimento, assim como na presença de
personagens escritores e leitores na ficção de Judith Grossmann.

Ao lado deste perfil literário, podemos situar a atuação de Silviano Santiago,


iniciada nas décadas de 1960 e 1970 em Belo Horizonte, onde iniciou a graduação em
Letras Neolatinas na Universidade Federal de Minas Gerais (1956-1959). Conclui uma

3
Projeto de pesquisa desenvolvido no Instituto de Letras da UFBA, desde o ano 2000, e que tem por
objetivo o estudo da produção de escritores contemporâneos que conjugam, ou conjugaram a criação
literária com a produção teórico-crítica e a atuação acadêmica em instituições de ensino superior.
Pesquisadores responsáveis: Antônia Herrera, Evelina Hoisel e Lígia Telles.

248
especialização em Literatura Francesa no Rio de Janeiro (1960-1961), tendo,
posteriormente, a oportunidade de lecionar em diversas universidades norte-americanas,
ainda durante o doutorado na Universidade de Paris – Sorbonne (1961-1968),
vivenciando o efervescente momento cultural em que se encontravam os Estados Unidos
na década de 1960. Sobre a influência destes movimentos migratórios em sua escrita,
Evelina Hoisel (2008) destaca a insistente elisão das fronteiras discursivas sustentada em
sua produção:

Na produção de Silviano Santiago, o tema das migrações inscreve-se através


de diversos signos – migrações discursivas, geográficas, culturais, metafóricas
– e está associado ao tema da viagem, da mudança no comportamento, na
localização geográfica, no interesse pelo outro. A condição de professor, de
teórico, de crítico e de ficcionista faz proliferarem os fluxos dessas migrações,
uma vez que cada uma dessas funções é exercida a partir de determinado local
e de uma instância discursiva que tem a sua própria ordem, mas que
insistentemente tem as suas fronteiras e os seus limites deslocados e rasurados.
(HOISEL, 2008, p. 147-148)
Ao retornar ao Brasil nos anos 1970, Silviano Santiago é convidado a lecionar no
programa de pós-graduação em Letras da PUC do Rio de Janeiro, então considerado um
espaço de discussão transdisciplinar da literatura e da cultura. Nesta universidade,
Silviano amplia as questões teóricas emergentes do pós-estruturalismo e da psicanálise
nas investigações orientadas no âmbito deste programa, destacando-se a elaboração
coletiva, sob a sua supervisão, de um Glossário de Derrida (1976) com seus orientandos.
Tendo em vista estas nuances da trajetória intelectual de Silviano Santiago,
verticalizamos a nossa reflexão ao texto de ficção O falso mentiroso: memórias, que
apresenta a narrativa autobiográfica do pintor-copista Samuel Carneiro de Souza Aguiar,
a escrever um livro sobre as suas memórias.

A partir da sua condição de filho adotivo, o narrador-protagonista Samuel procura


reconstruir as diferentes versões do seu nascimento, tecendo no discurso memorialístico
uma arqueologia de si. Contudo, uma vez que muitas das passagens narradas são
impossíveis de serem lembradas – como as circunstâncias de sua chegada à casa dos pais
adotivos com 19 dias de nascido –, este filho “enjeitado” as recria pelo seu ponto de vista
e pelos relatos da enfermeira que teria articulado a adoção ilegal, utilizando também como
matéria-prima desta tecelagem os dados biográficos do escritor, que podem ser deduzidos
por aqueles que penetrem astuciosamente na malha das letras de Silviano Santiago.

Nesta relação mútua entre vida e literatura, o prólogo do romance evoca o poema
Eu sou trezentos, Mário de Andrade – escritor com o qual Silviano demonstra grande
afinidade intelectual –, como prelúdio da “grande mascarada” onde serão encenados o
249
resgate, a criação e o recalque dos estilhaços da memória. Além da introdução, outros
signos são incorporados ao tecido textual: Mário é um amigo-mentor de Samuel,
incentivador de sua carreira como artista plástico e Eucanaã Ferraz – nome de um poeta
e professor carioca – é ressemantizado como o nome de seu pai. Para Samuel-Silviano,
ser trezentos-e-cincoenta é se erigir sob o signo do múltiplo, propor, pela criação literária,
uma leitura indecidível dos fragmentos de um sujeito, em que só “o esquecimento é que
condensa”, resgatando-os e, assim, nos levando à indagação: literatura, pois, vida, ou
vida, pois, literatura? Contudo, não nos interessa o levantamento exaustivo do que é
estritamente literário e o que é estritamente biográfico, mas o estudo destas questões como
características da literatura contemporânea e do projeto literário de Silviano Santiago.

Esta escrita ficcional de si, ao integrar um projeto mais amplo, no qual o escritor
se inscreve na sua produção ensaística, literária, pedagógica e, desta forma, biográfica,
aproxima-se do conceito de performance, relação esta já estabelecida por Diana Klinger
(2008), em alusão aos estudos da filósofa norte-americana Judith Butler sobre gêneros
sexuais na contemporaneidade. Butler (KLINGER, 2008) atualiza o conceito de
performance delineado a partir da década de 1950 nas ciências humanas como a fusão
entre arte e vida, emancipando-a de seu pacto com o real, o verdadeiro, propondo-a como
um símile, uma encenação/dramatização de si: “A performance dramatiza o mecanismo
cultural de sua unidade fabricada.” (BUTLER apud KLINGER, 2008, p. 19). Desta
forma, a partir de textos híbridos são problematizadas questões teóricas e biográficas
discutidas por Silviano Santiago, como a noção de representação literária enquanto
espelho do “real”, o cânone, literatura e sociedade, literatura e biografia.

O paradoxo falso mentiroso, atribuído ao matemático grego Euclides de Mileto,


rege a forma como se estrutura o tecer narrativo de Samuel. Pela explicação da
Enciclopedia Mirador, estampada na contra-capa do romance, quando se conta uma
mentira e esta sentença é verdadeira, temos, pois, uma falsidade, porém se é dita uma
inverdade, temos, pois, uma afirmação verdadeira, que, paradoxalmente, também é falsa
– ou falsamente mentirosa. Assim, quando o narrador-personagem relata que pode estar
mentindo, mas inscreve dados biográficos do escritor em suas memórias, configura-se a
narrativa de um falso mentiroso.

As circunstâncias imprecisas de seu nascimento fazem Samuel olhar para os seus


pais e a si mesmo sob os signos do “verdadeiro” e do “falso”, concebendo-se num
entrelugar em que tudo é e não é, gerando um jogo entre verdade e mentira, original e

250
cópia que encontra no ato de narrar a possibilidade de reorganizar as suas memórias e
atravessar os seus fantasmas. Recompondo estas versões embaralhadas, a “enfermeira-
cegonha” revela que Eucanã Ferraz, seu pai adotivo, o falso, era na verdade o seu pai
verdadeiro, cuja ausência ressoara por tanto tempo em sua mente. Este mantivera relações
extra-conjugais e ofertava os bebês nascidos – não abortados – destas traições à Donana,
a mãe falsa e estéril, que os recusava resignadamente até que viesse um filho homem. Por
sua vez, a provável mãe biológica, a verdadeira, a Senhora X, também estaria no jogo da
ambivalência, pois era uma distinta católica fluminense, porém adúltera. Tendo que lidar
com duas datas de nascimento e suas múltiplas versões, o dia 10 de setembro é atribuído
ao bebê “original” que teria sido recolhido pelo casal e o 29 de setembro é relembrado
como referente ao filho adotivo, a “cópia”, que é também, astuciosamente, a data de
nascimento do escritor Silviano Santiago:

Nasci (eu, o original) na maternidade, no dia 10 de setembro. Tenho certeza.


O bebê original é dezenove dias mais novo do que a cópia. É o que não dizem
os documentos pessoais. A certidão de idade, que tenho arquivada no
escritório, diz que não minto. São eles que mentem. Um dia ainda pego um
atestado na maternidade. Para provar a verdade aos autores do verbete de
enciclopédia. Meu nome já aparece na Larousse Cultural. Insistem em datar
equivocadamente o meu nascimento. (SANTIAGO, 2004, p. 49).
Ao lermos comparativamente os textos que escolhemos para análise, percebemos
uma permanência do signo “mãe” nos textos literários e críticos de Silviano Santiago. Se
por um lado, no romance, Samuel registra que aprendera com Donana – aquela que fingira
a gravidez perante sua família – o valor da representação, da cópia, da “imagem
retocada”, influenciando diretamente em sua opção de ser um pintor-copista, por outro
lado, no ensaio Meditação sobre o ofício de criar (2008), o escritor recorda que já
efetuava performances de sua subjetividade, inventando a si mesmo em outro(s) nas suas
confissões dominicais, estimulado pela prematura perda de sua mãe:

Portanto, a preferência pelos dados autobiográficos e a contaminação do


discurso autobiográfico pelo ficcional existiram desde sempre lá na infância e
estarão para sempre em meus escritos. Não tirei distinção, preferência e
contaminação do nada, não as inventei recentemente e é por isso que vale a
pena pagar uma visita ao menino antigo. Desde criança, por razões de caráter
extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe –
não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena,
ou seja, o discurso confessional. (SANTIAGO, 2008, p. 176)
Conforme termo cunhado por Roland Barthes (1984), a inscrição destes
biografemas nas ficções contemporâneas fragilizam a categoria narrador-personagem
desenvolvida na tradição dos estudos literários e nos permite interpretar a autoficção
como um deslocamento da matriz biográfica do autor enquanto referencial de

251
interpretação, uma vez que estamos a ler uma narrativa que se apresenta como as
memórias registradas em livro pela personagem, mas que são publicadas e vendidas sob
a assinatura do escritor Silviano Santiago.

A atuação realizada pelo falso mentiroso evidencia a potência subversiva e


desestabilizadora do simulacro diante do “pacto autobiográfico”, outrora proposto por
Philippe Lejeune (AZEVEDO, 2008, p. 35). O sujeito que agora encena a sua
(re)construção absolve o discurso ficcional do exílio platônico, inscrito no pensamento
ocidental desde que o filósofo grego premeditou o risco em potencial que o “fingimento”
desmedido carrega de elidir as fronteiras entre vida e ficção, gerando sujeitos híbridos e,
portanto, simulacros em performance: “Não tens observado que quando se pratica a
imitação durante muito tempo e desde a meninice ela acaba por se converter num hábito
e numa segunda natureza, infiltrando-se no corpo, na voz e no próprio modo de pensar?”
(PLATÃO, 19--, p. 61).

Pela escrita de Samuel, percebemos que é estabelecida uma equivalência entre o


ato de narrar e o ato de pintar cópias, quando registra em sua narrativa “A tela. Meu
espelho. Meu ateliê, o ex-escritório do papai” (SANTIAGO, 2004, p. 160). Este espaço
característico de transitoriedade, de obras em progresso, em devir, é apresentado como o
local onde serão exorcizados os seus fantasmas. Do retorno à relação conturbada com o
seu pai desde a infância – que o legara inscrições físicas sob a forma de severas dores
cervicais ou desmaios súbitos– e às primeiras práticas sexuais no início da adolescência,
é nesta clínica de artista que serão purgados os traumas inseminados pela figura opressora
do pai: “A cópia é platônica. Reino do belo, do bem e do bom. A cópia substitui o feio, o
mal e o mau. Substitui o que é original e que, ao nascermos, no é dado de presente pelo
sêmen que fecunda o óvulo” (SANTIAGO, 2004, p. 143).

Para o escritor-narrador, na construção de suas “personalidades postiças” há um


eu dominante que se sobrepõe aos embriões mais fracos, tornando esta ficção de si a
narrativa de um possível si dentre as diversas possibilidades. Neste sentido, em nome de
uma persona que se escreve com os cacos da “lata de lixo biográfica”, rompe-se a
concepção metafísica de sujeito unificado, pleno, racional e consciente de si conservado
pela crítica biográfica pretérita, que tinha por objetivo o desvelamento de um sentido
oculto que teria sido conferido pelo próprio autor, a partir de uma visão que vinculava a
vida e a obra dos escritores, como pontua Eneida Souza (2002). Ainda assim, se
pensarmos o texto literário em alusão aos conceitos de estruturalidade e estrutura,

252
propostos por Jacques Derrida (1995), podemos perceber que a crítica literária tradicional
buscou atribuir um centro de organização, coerência e equilíbrio à sua interpretação nas
influências do seu contexto sócio-histórico, na biografia do seu autor ou nas formas
literárias em voga.

Tendo em vista a segunda epígrafe de nosso texto, a frase de João Adolfo Hansen
que também introduz a ficção O inominável (2009)4, de Samuel Beckett, é poeticamente
esclarecedora da falta de um centro irradiador/origem que irá nos constituir ou deflagrar
os sentidos de um texto literário autoficcional, gerando-se assim um “suplemento”, neste
caso, biográfico, em seu vir-a-ser. A partir da leitura do ensaio de Eurídice Figueiredo
(2007), é possível pensar que este embaralhamento entre autor, narrador, motivo literário
e experiência biográfica no romance em estudo – já destacado por Silviano como
“autoficção”, em sua Meditação sobre o ofício de criar (2008) – também pode ser
compreendido pelo que a escritora e ensaísta francesa Régine Robin denominou
“bioficção”, uma vez que os signos de toda a experiência de vida do escritor podem ser
incorporados, ou até mesmo recalcados, na construção da personagem de ficção Samuel
e de seu testemunho autobiográfico.

Na cena da escrita, as primeiras práticas sexuais e a abastada infância em


Copacabana são remontadas quando se trata da fábrica clandestina de preservativos
masculinos do doutor Eucanã, subsistente dos arranjos políticos e econômicos com o
governo Getúlio Vargas e, posteriormente, Eurico Gaspar Dultra, nas décadas de 1930 e
1940. Com a difusão da penicilina e os sais de arsênico como método preventivo às
doenças sexualmente transmissíveis, vê-se a sua decadência financeira e a restrição dos
contatos na alta sociedade fluminense. As considerações de Wander Melo Miranda
(2008) e Evelina Hoisel (2011) são elucidativas sobre a presença da memória na produção
de Silviano Santiago, destacando que o vínculo entre recordação e ficção desestabiliza a
noção de veracidade e autenticidade dos relatos subjetivos, desvelando esquecimentos e
desejos recalcados aos bastidores, tal qual a confissão na última página do livro de que o
casamento com a surda-muda Esmeralda e os seus dois filhos foram apenas invenções.
Esta estratégia fecha um ciclo narrativo, uma vez que esta revelação reitera, após termos

4
Do escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989), o livro publicado em 1949 compõe a “trilogia do pós-
guerra” (Molloy, 1947 e Malone morre, 1948) é uma experiência nos limites da narratividade, cuja ausência
de um sujeito-narrador corporificado em um tempo e espaço demonstra o mais profundo silêncio deixado
pela II Guerra Mundial, a falência da linguagem em representar a realidade e a pergunta que pairava sobre
os artistas e intelectuais: “Há algo mais a dizer?”.
253
compactuado com a narração de Samuel, o seu primeiro alerta: “Posso estar mentindo.
Posso estar dizendo a verdade” (SANTIAGO, 2004b, p. 9). Sobre a sua produção, o
escritor apresenta, com a máscara do professor e crítico, os estágios do seu processo de
criação no palco do ensaio Epílogo em 1a pessoa:

Minhas mentiras em terceira pessoa, enquanto enunciado composto, fechado


e dado como acabado, têm estatuto epistemológico que as distancia das
simples e cotidianas enunciações minhas e nossas, de indivíduos por vezes e
quase sempre mentirosos. Por razões digamos poéticas, dei à forma da mentira
um peso e um valor cujos afetos e resultados serão, só poderão ser avaliados
pelos que tiverem a coragem de entrar nos labirintos da ilusão artística. A
mentira se tornou autônoma em relação à primeira pessoa que a produziu, para
ser equacionada à atividade linguística da minha terceira pessoa que, mesmo
contra a parede das injunções empíricas – e elas existem, ai de nós! – não
consegue senão dizer a verdade. (SANTIAGO, 2004, p. 250)
Finalmente, constatamos que a migração das “mentiras” praticadas pelo escritor
desde a infância para a instância da criação literária nos coloca diante de narrativas com
as quais não podemos estabelecer os mesmos protocolos de leitura que se firmavam com
a figura autoral de outrora. Enquanto forma de dizer a sua verdade poética, a invenção de
memórias de papel, ou “falsas” memórias, adquirem estatuto de vivido e, portanto,
verossímil em seu projeto literário e cultural.

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255
PERSONAGENS REAIS DA FICÇÃO CINEMATOGRÁFICA1

REAL CHARACTERS IN FICTION MOVIES

Igor Azevedo de Albuquerque2

Resumo: O artigo pretende discutir nuances, técnicas e particularidades envolvidas no


complexo processo de representação da vida particular de realizadores em narrativas
cinematográficas ficcionais. Partindo da discussão sobre dois gêneros literários da
modernidade, romance e autobiografia, além do conceito de autoficção, chega-se aos
títulos da cinematografia de Woody Allen e Nanni Moretti. Serão colocados em debate
pontos que se mostram relevantes para a leitura das narrativas de si na sétima arte.
Palavras-chave: romance, autobiografia, autoficção, Woody Allen, Nanni Moretti.

Abstract: The paper discusses techniques and particularities involved on the complex
process of directors private's life representation in fiction movies. From the inquiry of the
novel and autobiography, further the concept of autofiction, the cinema of Woody Allen
and Nanni Moretti are analysed. The debate focuses on the most relevant aspects for the
reading of autobiographic narratives on cinema.
Keywords: novel, autobiography, autofiction, Woody Allen, Nanni Moretti.

INTRODUÇÃO

As narrativas biográficas ocuparem papel de destaque na era da informação


configura um dado curioso. Considerando os notáveis avanços espistêmico-tecnológicos
– observados no arco do desenvolvimento, para o bem e para o mal, das ciências e
humanidades desde a modernidade até a sociedade pós-industrial –, e o aumento
subsequente das áreas de interesse dos indivíduos, parece bastante ordinária a grande
demanda por informação biográfica. Esses simpáticos seres que, na melhor das hipóteses,
nascem, crescem, envelhecem e morrem, nunca foram tão vorazmente observados e
seguidos com tanto gozo (vide o fenômeno recente dos reality shows), mesmo que hoje
se possa – com muito mais sutileza intelectual – palestrar sobre o Bóson de Higgs ou

1
Mesa-redonda Experimentos bioficcionais no cinema e na literatura.
2
Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB).

256
confabular a respeito do próximo aplicativo de celular que mudará o cotidiano de seus
usuários.

Por outro lado, se a vida enquanto matéria deixasse de interessar, algo de estranho
estaria decerto acontecendo. Afinal, como conceber a existência se a própria vida não
fosse digna de atenção? Escapar à vida é morrer ou dedicar-se ao espírito descarnado;
assuntos de outro artigo, não deste.

As maneiras de se contar uma vida são tão variadas quanto as bocas, mãos ou
lentes que dela queiram apropriar-se; não se fala do mesmo modo de um herói grego, do
personagem de romance, da vizinha, de si mesmo. Faz-se mister, portanto, fixar um
primeiro marco: diferenciar narrativas de vidas fictícias (inventadas, fabuladas) das
narrativas de vidas reais (factuais, verificáveis), ou simplesmente separar narrativas
ficcionais de narrativas biográficas. Para tanto, recorro aos gêneros literários modernos
que melhor dialogam com os filmes analisados no artigo: romance e autobiografia.

MODERNIDADE

No final do século XVIII, o romance já era um gênero relativamente estável.


Desde o sucesso do Dom Quixote, quase duzentos anos antes, até a glorificação de autores
como Defoe, Richardson e Fielding, esse novo design narrativo vai ganhando terreno na
literatura, de modo a tornar-se o gênero mais importante do século XIX. De acordo com
Ian Watt, diferente da epopeia e da tradição renascentista, o romance trabalha com uma
perspectiva realista que muda radicalmente os paradigmas de representação: “Parece,
portanto, que a função da linguagem é muito mais referencial no romance que em outras
formas literárias; que o gênero funciona graças à apresentação exaustiva que à
representação elegante” (WATT, 2010, p. 32). Outro ponto destacado por Watt é a função
do tempo:

O enredo do romance também se distingue da maior parte da ficção


anterior por utilizar a experiência passada como a causa da ação
presente: uma relação causal atuando através do tempo substitui a
confiança que as narrativas mais antigas depositavam nos disfarces e
coincidências, e isso tende a dar ao romance uma estrutura muito mais
coesa (WATT, 2010, p. 23).
São muitos os aspectos que diferenciam o romance da produção ficcional
precedente, seria tarefa exaustiva para os fins deste artigo analisá-los todos, sigamos,
então, com esses dois.

257
Na penúltima década do século XVIII, vem a público o molde da autobiografia
moderna, as Confissões de Jean-Jacques Rousseau, que, apesar de levar o nome do
famoso livro de Santo Agostinho, em muito difere do modelo sagrado dirigindo a
existência. Na autobiografia de Rousseau, que foi recebida como obra literária, é
inaugurada a exposição da vida íntima contada com promessa de fidelidade e confiança
na intuição do eu: estão em jogo palavras como cumplicidade (autor x leitor), sinceridade
e segredo. Leonor Arfuch explora a virada representada por esse caso:

O surgimento dessa voz autorreferencial (“Eu, só”), sua “primeiridade”


(“Acometo um empreendimento que jamais teve exemplo”), a
promessa de uma fidelidade absoluta (“Quero mostrar a meus
semelhantes um homem em toda verdade da natureza, e esse homem
serei eu”) e a percepção aguda de um outro como destinatário cuja
adesão é incerta (“Quem quer que sejais... Conjuro-vos... a não
escamotear a honra de minha memória, o único monumento seguro do
meu caráter que não foi desfigurado por meus inimigos”), traçavam
com veemência a topografia do espaço autobiográfico moderno
(ARFUCH, 2010, p. 48-49).
O final da citação traz uma referência, “topografia do espaço autobiográfico
moderno”, ao trabalho de Lejeune, cuja definição de autobiografia é a seguinte: “narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza
sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008,
p. 14).

À parte todas as polêmicas teóricas decorrentes do posicionamento de Lejeune,


gostaria de chamar atenção para a semelhança entre romance e autobiografia: ambos
exploram o aspecto temporal de causalidade e a referencialidade da linguagem, mesmo
que de modos distintos, pois no romance não há necessidade de verificação. Do mesmo
modo que o romancista lança mão de técnicas para dar efeito de realidade à história
contada, o autobiógrafo tenta convencer o leitor de que está falando a verdade. É evidente
que não se trata da mesma coisa; a história da leitura mostra que os gêneros foram
consumidos como coisas distintas – Lejeune desenvolve a ideia de dois pactos de leitura,
pacto romanesco e pacto autobiográfico3, para distingui-los. O romance realista conta a
história como se ela fosse real, a autobiografia moderna conta a história real de seu autor.

3
Em O Pacto autobiográfico, Philippe Lejeune traz a ideia dos pactos de leitura estabelecidos na recepção
dos discursos literários. A confrontação de romance – aqui podemos inserir também os contos – e
autobiografia o leva à conclusão de que se estabelecem contratos de leitura distintos. Enquanto o romance
se constitui como tal através de um atestado de ficcionalidade garantido pelo pacto romanesco – que exclui
a possibilidade de coincidência entre personagem e autor –, a autobiografia é definida pela assinatura do
autor, que, no caso, será também narrador e personagem, assegurando a veracidade de situações e fatos
narrados através de um contrato totalmente distinto, o pacto biográfico.
258
Essa última frase parece bastante grosseira, quase ingênua, ao leitor contemporâneo
acostumado a estratégias de alguns artistas que, nos últimos dois séculos, minaram certas
convicções (lembremos de Proust, Gide, Silviano Santiago...), mas a interpenetração dos
dois gêneros literários em questão é um processo em andamento. Nesse contexto de
hibridismos, o termo autoficção surge nos idos de 1977 com o livro Fils, do escritor e
crítico francês Serge Doubrovsky. Aproveitando-se de uma lacuna deixada pelo esquema
de Lejeune, o personagem, o narrador e o autor que assinará Fils, publicado como
romance, será o próprio Doubrovsky. Sobre o procedimento, ele declara:

Autobiografia? Não, esse é um privilégio reservado aos importantes


deste mundo, ao final da sua vida e em belo estilo. Ficção de
acontecimentos e de fatos estritamente reais, autoficção, se quiser. Por
ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem,
para além da sabedoria e sintaxe do romance, seja ele tradicional ou
novo. (DOUBROVSKY, 1977, prefácio)
Dessa ambiguidade, “ficção de acontecimentos e fatos estritamente reais”,
desprenderam muitas outras. A discussão em torno do conceito de autoficção teve
repercussão considerável no contexto francês e é hoje bastante discutido.

PARÊNTESIS

(É escusado dizer que cinema e literatura estão intimamente vinculados. Se o


romance foi o gênero narrativo mais popular no século XIX, o cinema o foi no século XX
e ainda é. A ficção cinematográfica, de Griffith a Martin Scorsese, utiliza-se de muitos
dos recursos técnicos desenvolvidos no romance e demais gêneros literários. Para não
recorrer ao lugar comum de enumerar técnicas tais quais ponto vista, flashback, etc.,
prefiro acompanhar o pensamento de Aumont em sua leitura do cinema de Alexandre
Astruc:

É a celebre teoria da “câmera caneta”: o material do cinema já está aí,


automaticamente presente, é a “realidade” que abarrota com toda a sua
presença e todas as suas referências. A arte do cinema deve livrar-se
dela, pois não é a arte da imagem, mas de organização de realidade... O
cineasta escreve, dá uma forma estabelecida à lógica da realidade; pela
direção (que inclui todos os gestos do cinema, em primeiro lugar,
evidentemente, o enquadramento), ele articula o sentido das situações,
dos acontecimentos. Essa escrita, como a outra, tem sua ferramenta, a
câmera: mas da mesma forma como a caneta não faz o escritor, não é a
câmera que faz o cineasta, é... o estilo (a direção) (AUMONT, 2004, p.
84).

259
Esse pensamento poderia muito bem referir-se à obra de Flaubert. E quanto à
seguinte consideração de Saul Bellow?

Quando abrimos um romance – e me refiro, é claro, à coisa autêntica


entramos em um estado de intimidade com o seu escritor. Ouvimos uma
voz ou, de modo mais significativo, um tom individual sob as palavras.
Este tom, vocês, leitores, irão identificar não tanto por um nome, o
nome do autor, mas como uma qualidade humana única, distintiva... É
mais musical do que verbal, e constitui a assinatura característica de
uma pessoa, de uma alma (BELLOW, 1995, p. 197, grifo nosso).
Não seria possível enxergar essa assinatura também na obra de alguns cineastas;
Kurosawa, Glauber Rocha, Woody Allen (esse último, inclusive, utiliza sempre a mesma
fonte para escrever seu nome nos créditos)? É claro que sim).

WOODY ALLEN: APROXIMAÇÕES

O que é preciso para se fazer uma boa piada? O que a torna realmente engraçada?
Ela deve ser leve – mas também se pode rir mexendo em tabus profundos –, surpreendente
e ferina, embora haja aquelas bem morosas cujo desfecho já se sabe desde o início. Na
verdade, não há receita infalível para a boa piada: mesmo uma com todas as qualidades
pode resultar em rostos impassíveis. Coloque uma história hilária, com timing perfeito,
contada pelo melhor comediante numa noite ruim, a de um grande desastre, por exemplo,
e nada feito.

No final dos anos 1970 a filmografia de Woody Allen começa a trazer títulos
diferentes. Ficam para trás os papeis de “What's New Pussycat” (1965) e O Dorminhoco
(1973), comédias pastelão. Em 1977, Annie Hall é lançado e, com ele, surge Woody Allen
interpretando protagonistas menos caricatos, quase profundos. Suas comédias se tornam
mais sérias. Em Manhatan (1979) e Interiores (1978), a cor sai de cena para dar lugar a
uma fotografia estudada e a gags menos histriônicas.

Vejamos o caso de Memórias (1980). No filme, Woody Allen interpreta Sandy


Bates, cineasta de certa fama em visita a uma cidade repleta de fãs que não param de lhe
importunar, quase sempre com a frase: “nós gostamos de seus filmes, principalmente os
primeiros, os engraçados”. Esses admiradores são desenhados com traços marcadamente
fellinianos: exagerados, estranhos, plásticos. Estão lá para satirizar o assédio do público
ao ídolo. Ídolo este que sofre de todos os conflitos caros aos enredos do diretor: crises
existenciais, vida amorosa conturbada, dissabores do campo artístico.

260
Uma cena sugestiva: o cineasta pergunta a alienígenas superinteligentes que estão
de passagem pela terra o que fazer para dar sentido a sua vida: “mas eu não deveria parar
de fazer filmes e fazer algo importante, como ajudar os cegos ou me tornar missionário?”
ao que o alien responde: “você não é o tipo do missionário. Você não aguentaria. E você
não é Superman, você é um comediante. Quer fazer um serviço à humanidade? Conte
piadas mais engraçadas”. Até os extraterrestres preferem os primeiros filmes, os mais
engraçados.

É evidente a semelhança entre o próprio Woody Allen e a personagem principal


do filme; embora não tenham o mesmo nome, ambos são cineastas, nova-iorquinos, com
uma carreira quase idêntica. Seus últimos filmes são mais sérios. Em Manhattan e Annie
Hall, os protagonistas compartilham características com Woody Allen; no primeiro um
escritor, no outro um comediante. Se fôssemos buscar etiquetas justas para essas
narrativas, dificilmente as da autobiografia e da autoficção grudariam. O termo menos
ruidoso para pensar esses personagens seria o do duplo; tema recorrente na cultura
ocidental sistematizado pela psicanálise de Freud e que, na literatura do século XX,
aparece insistentemente. Evitemos delongas: esse outro eu-mesmo aparece no autorretrato
duplo de Schiele, escreve para Fernando Pessoa os desassossegos de Bernardo Soares. O
comediante de Annie Hall, o escritor de Manhatan e o cineasta de Memórias seriam
duplos de Woody Allen. Mas ainda não é uma definição satisfatória.

Não consegui responder adequadamente à provocação do início: como, afinal,


fazer uma piada engraçada. Ao invés de tentar respondê-la, me decido por complicar a
questão.

Como fazer um filme sensível, poético, profundo, complexo, questionador e, last


but not least, engraçado? A resposta dada por Woody Allen foi diferente das de Buster
Keaton, Frederico Fellini, Ozu, dentre outros que também montaram time para esse
certame. Quando o cineasta decide segurar a mão nas tintas bufas e carregar na
autorreflexividade narrativa, o resultado se torna uma reação aos aliens que em Memórias
instigam-no a criar piadas mais engraçadas: “ok, não sei se mais engraçadas, mas tentarei
ao menos fazer piadas diferentes, talvez até melhores”. Considero o rosto de Charlotte
Rampling – um dos mais trágicos que já tive a oportunidade de ver – em substituição à
ótima persona cômica de Diane Keaton um marco dessa virada.

Mas são os protagonistas o motivo marcante dessas construções. Sandy, Alvy,


Isaac (Memórias, Annie Hall e Manhatan, respectivamente) são nomes diferentes, mas
261
vestem as mesmas roupas, contam piadas parecidas, são atores do show business. Creio
ser supérfluo salpicar o texto com as similitudes entre os personagens e o diretor. Esses
supostos duplos estabelecem um vínculo impossível em literatura ou pintura, personagem
e criador estão ligados pelo corpo em movimento na tela do cinema. Nesse sentido,
Woody Allen oferece aos espectadores o seguinte: colocar-se em cena através de uma
intimidade ficcionalizada que está em seu próprio espectro biográfico, quase nunca o
extrapolando. Espectro indissociável ao universo do espetáculo, de modo que o processo
de criação necessariamente tem de levar em conta a relação entre público e artista no
contexto da superexposição midiática. É obvio que isso causa um efeito. Seria muita
ingenuidade pensar que o criador não levaria em conta a reação voyeurista diante daquilo
que está na tela, a curiosidade a respeito da sua vida. Memórias envolve, inclusive, uma
coincidência macabra: no final da história, um dos fãs bizarros atira no cineasta Sandy
Bates. Naquele mesmo ano, John Lennon também seria baleado.

Bem, parece-me bastante difícil definir a série em que se inserem esses títulos de
Woody Allen. Uma coisa, porém, é certa: nesse contexto, as noções de duplo, filme
autobiográfico, e autoficção não funcionam. Os pactos do primeiro Lejeune (ficcional e
autobiográfico) também estariam fora do lugar.

NANNI MORETTI: RUPTURA

Já a autoficção, ou a discussão em torno da sua viabilidade, parece se ajustar muito


bem a alguns filmes de Nanni Moretti. Nas comédias Caro diário (1993) e Aprile (1998,
sem título em português) Nanni interpreta ele mesmo valendo-se do nome próprio,
diversamente de Woody Allen. Ambos os filmes tem uma linha de acontecimentos
relativamente simples. Caro diario mostra a relação do diretor com a cidade de Roma,
depois a sua busca por inspiração nas ilhas do Tirreno e por fim como descobriu estar
com câncer. O outro filme, Aprile, mostra o diretor dividido entre fazer um documentário
ou um musical enquanto espera neurótico o nascimento do primeiro filho.

Retomemos à colocação de Dubrovsky: “ficção de fatos estritamente reais; se se


quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da
linguagem...”. Nanni faz o papel do diretor com crises criativas, sua mulher, Silvia, é sua
mulher, seu filho é seu filho etc.

262
E Nanni é muito engraçado, por isso acho injusto partir para a análise mais séria
de seu trabalho sem antes citar algumas gags. Em caro diário, quando tenta descobrir a
causa de sua coceira, depois de ir a vários médicos, consulta um que lhe diz ser uma
coceira causada por estresse. Em seu carro Nanni diz para si mesmo: “Tudo depende de
mim. O médico disse que tenho que colaborar, devo me esforçar para não me coçar. Devo
me concentrar. Eu não posso me coçar. Tudo depende de mim. E se depende de mim,
tenho certeza que... não vou conseguir”. Em Aprile, logo após a primeira vitória de
Berlusconi, Nanni dispara: “Na noite de 28 de março de 1994, quando a direita venceu,
pela primeira vez na vida fumei um baseado”. É uma piada visual: um enorme baseado
enrolado em papel inapropriado e a cara séria de Nanni, que não leva o menor jeito para
a coisa.

Mas repito a pergunta feita ainda há pouco: como fazer um filme sensível, poético,
profundo, complexo, questionador e, ao mesmo tempo, engraçado? Nanni responde com
Caro diario e Aprile: fazendo a mise-en-scène de mim mesmo, aparecendo em situações
cotidianas, dando naturalidade e autenticidade ao todo, enfim, quebrando os grilhões de
uma ficção asséptica que se coloca distante da vida pessoal do realizador. Mas essa não
seria uma estratégia furada? Para quê dar efeito de realidade através da encenação de
eventos verdadeiros da sua própria vida se, ao fim e ao cabo, tem-se um filme de ficção
que funcionaria igualmente bem com personagens inventados? Não parece um tanto
ridículo voltar em casa, reproduzir um episódio já vivido com sua mulher (ou simulá-lo),
por exemplo, diante de uma câmera e de uma equipe de técnicos, só para reviver uma
cena que só será real no universo da ficção?

“Temos que fazer um documentário sobre a Itália. É um dever”. Esse pensamento


obseda Nanni durante Aprile: fazer um documentário sobre a ascensão de Silvio
Berlusconi e da extrema direita. Mas estamos assistindo a uma comédia, desde o início
sabemos que o plano não será concluído. Ou pelo menos todo o plano, pois, de certa
forma, o filme também documenta o cenário político do país: cola-se discursos políticos,
debates televisionados, manchetes de jornal e capas de revista. Um dos momentos mais
dramáticos do filme acontece quando Nanni leva sua equipe à costa da Puglia para filmar
o local onde a marinha italiana abateu um navio de imigrantes ilegais que chegava à Itália
causando a morte de oitenta e nove pessoas. Sem sensacionalismo, agregando a seu filme
por acaso esse evento pavoroso, Nanni dá uma dimensão muito particular a seu trabalho.
Isso porque Aprile também é leve. Ele vive o típico “grávido”. Mais ansioso do que sua

263
mulher durante a gravidez, ela é quem o acalma. Adiante – o filme acompanha vários
anos da vida deles –, nas cenas em que aparece cuidando do filho enquanto recorta
revistas para o documentário, a atmosfera é de uma ternura muito bem trabalhada.

A oscilação de tom também pode ser percebida em Caro diário quando, depois
de fazer uma série de sequências divertidas, Nanni em sua Vespa, como se passeasse, dá
uma volta no bairro onde Pasolini foi brutalmente assassinado. As experimentações em
jogo requerem um percurso de sensações atravessadas por um personagem real, como se
o cinema estivesse exaurido da ficção pura. Assim como o gênero da autobiografia
também estivesse perdendo o vigor; não haveria mais lugar para totens sagrados como
Rousseau, Benjamin Franklin, Akira Kurosawa ou Ingmar Bergman4 (todos escreveram
suas autobiografias clássicas), os tempos pedem uma nova forma. Moretti e Woody Allen
responderam a esse pedido.

Até esse momento, Nanni tinha dirigido filmes pouco inovadores do ponto de vista
formal. Nos anos 1990, ele aposta alto com esses filmes calcados em uma referencialidade
arriscada no que diz respeito à representação. Mas no momento certo: o júri de Cannes
reconhece, aprecia e premia o que estamos chamando de autoficção. Nessa época, o
número de indicações de Woody Allen ao Oscar era quase três vezes maior que a
filmografia de Nanni.

À GUISA DE CONCLUSÃO: SATOSHI KON

Divertido mesmo é começar falando de humor e terminar com um thriller. Faço


menção a Perfect Blue (1998, sem título em português), de Satoshi Kon, pelo instigante
desenvolvimento do tema relação “público x artista”. Mima, a protagonista do filme,
canta em uma banda adolescente de J-pop quando decide mudar de carreira e tornar-se
atriz. O problema é que a imagem da inocência antes vinculada a ela vai se perdendo,
sendo totalmente destruída quando ela aceita fazer uma cena em que é estuprada; o fato
desagrada seus antigos admiradores, que veneravam a Mima “autêntica”. Ela começa a
receber ameaças. Nesse meio tempo, Mima descobre um stalker identificado como Me-
mania (“mania de mim” em inglês) que está no seu encalço. Quando compra um
computador, ela vê que há um blog na internet chamado “o diário de Mima”: seu dia a

4
Como diria Doubrovsky, em seu estilo irônico, “um privilégio reservado aos importantes deste mundo,
ao final da sua vida e em belo estilo”.
264
dia é descrito na rede como se ela mesma tivesse escrito. A partir daí Mima começa a
viver num estado de profunda ansiedade e confusão mental.

É o bastante. Não é necessário descrever todo o enredo do filme. Mas acho que já
se pode perceber um pouco da tensão suscitada pela trama. Imagine entrar na internet e
descobrir um diário público em que a sua rotina é descrita com detalhes, como se você o
escrevesse. Assustador. O fato de se precisar manter uma coerência na narrativa da
própria vida, a ponto de não se poder trocar de profissão se a imagem cândida e doce da
cantora de J-pop estiver em jogo, é coerção discursiva forte. O público decide os rumos
da vida da artista e a hostiliza se ela sai da linha.

O filme pauta a relação violenta entre leitor e artista. Há algo de errado quando as
coisas se desenrolam como em Perfect Blue. Porém trago a imagem do stalker e do
escritor fantasma, espectadores que interagem violentamente, não para salvaguardar os
artistas da leitura biográfica, para ficar ao lado de um Woody Allen irritadiço5 se dizem
que Memórias é um filme autobiográfico. Pelo contrário, invoco os stalkers justamente
para apontar a violência que o leitor faz consigo mesmo quando tenta achar a verdade, o
sujeito real por detrás do personagem, o verdadeiro Woody Allen ou o verdadeiro Nanni
Moretti. Erro que os próprios autores (às vezes stalkers de si mesmos) cometem quando
renegam a hibridez de um discurso nitidamente vestido de vida vivida em nome da
verdade e da nobreza de uma ficção pura; a menos que tudo não passe de uma grande
piada. Se a literatura contaminou o cinema, assim como hoje a literatura é contaminada
pelo cinema, as vidas desses diretores está tão amalgamada a seus filmes quanto é
possível; quer eles queiram, quer não.

REFERÊNCIAS

ANNIE Hall. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1977. (93 min).

APRILE. Direção de Nanni Moretti. Roteiro: Nanni Moretti.1998. (78 min).

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de


Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.

AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo:
Papirus, 2004.

5
Ver entrevistas concedidas ao jornalista Eric Lax.

265
BELLOW, Saul. Tudo faz sentido: do passado obscuro ao futuro incerto. Tradução de Rubens
Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

CARO DIÁRIO. Direção de Nanni Moretti. Roteiro: Nanni Moretti. 1993. (100 min).

DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.

INTERIORES. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1978. (93 min).

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita Maria


Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.

MANHATAN. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1979. (96 min).

MEMÓRIAS. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1989. (89 min).

O DORMINHOCO. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1973. (89 min).

PERFECT BLUE. Direção de Satoshi Kon. 1995. (89 min).

WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das letras, 2010.

WHAT'S NEW PUSSYCAT. Direção de Clive Donner, Richard Talmadge. Roteiro: Woody
Allen. 1965. (108 min).

266
REVERBERAÇÕES DA CRISE DA CIÊNCIA MODERNA NO
JORNALISMO E A EMERGÊNCIA DO “REPÓRTER-
PERSONAGEM”1

REFLEXIONS OF THE CRISIS IN MODERN SCIENCE AT


JOURNALISM AND THE EMERGENCE OF THE “FIRST-PERSON
REPORTER”

Igor Lage Araújo Alves2

Resumo: Partindo dos diagnósticos traçados por Boaventura de Souza Santos (1988) e
Bruno Latour (2006) sobre uma crise na ciência moderna, este artigo busca estabelecer
conexões entre novas propostas metodológicas para a investigação científica e alguns
questionamentos direcionados a valores que sustentam um modo específico de fazer
jornalismo, tido como “de referência”. Nesse movimento, voltamos nossa atenção a
narrativas jornalísticas em primeira pessoa que, por meio de relatos de experiência e
subjetividade, rompem com princípios como objetividade, imparcialidade e
distanciamento, aparecendo, portanto, como importantes elementos tensionadores de um
suposto paradigma jornalístico dominante.
Palavras-chave: crise da ciência, narrativa jornalística, narrativa em primeira pessoa,
subjetividade

Abstract: Starting from prospects traced by Boaventura de Souza Santos (1988) and
Bruno Latour (2006) about a crisis in modern Science, this article seeks to establish
connections between new methodological proposals for scientific research and some
inquirings focused at ideals that sustain a specific method of practicing journalism,
considered to be "referential". While in this movement, we turn our attention to
journalistic narratives in first-person that, using subjectivity and experience reports, break
with ideals like objectivity, impartiality and detachment, thus appearing as important
elements for thinking about a supposedly dominant paradigma in Journalism.
Keywords: crisis in Science, journalistic narrative, first-person narrative, subjectivity

As muitas discussões de caráter epistemológico que colocam em xeque as práticas


científicas dos últimos séculos apontam para diversos caminhos possíveis, porém todas –

1
Mesa-redonda O espaço biográfico e a construção da alteridade.
2
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).
267
ou, pelo menos, a grande maioria – convergem em um ponto: o modo de fazer ciência
está em crise. As razões dessa crise, sua dimensão total e as melhores alternativas para a
reestabilização ainda não são tópicos de comum acordo. Porém, a complexidade dos
objetos que nos intrigam atualmente parece exigir um novo olhar metodológico, que dê
conta de suas muitas camadas, interações e possibilidades.

Boaventura de Sousa Santos descreve esse período em que vivemos como “um
tempo de transição, síncrone com muita coisa que está além ou aquém dele, mas
descompassado em relação a tudo o que o habita” (SANTOS, 1988, p. 46). Seria um
tempo no qual o homem encontra dificuldades para entender seu estar no mundo, e é
constantemente invadido por uma sensação de desconforto causada por um misto de
perplexidade e perda de confiança epistemológica. Essas incertezas originam-se de um
descompasso entre as práticas que regem nosso fazer científico e as reflexões
epistemológicas que o investigam, sendo estas mais avançadas que as primeiras.

Santos (1988) nos lembra que praticamente todo o “progresso” tecnológico


alcançado pela comunidade científica das últimas décadas é pautado por um modelo de
ciência cujas diretrizes foram estabelecidas entre o século XVIII e os primeiros vinte anos
do século XX. Por isso, os objetos que se apresentam agora parecem muito mais
complexos (e provavelmente são, de fato) e a impressão que temos é a de que os limites
do rigor científico tornam-se cada vez mais inegáveis.

Bruno Latour (2008) denomina esses objetos de “híbridos”, pois abarcam, em toda
sua complexidade, elementos humanos e não-humanos sem distinção, dificultando
análises que separam os aspectos que seriam da ordem do social daqueles que seriam do
domínio da natureza. Para ele, o principal fator da crise da ciência moderna seria a
polarização entre natureza e sujeito/sociedade, de modo que o estudo de um objeto deve
se encaixar em um desses compartimentos não-dialógicos. Os híbridos seriam, portanto,
tensionadores dessa configuração, pois não se sentem confortáveis nem de um lado, nem
do outro. Para descrevê-los, é preciso considerar suas características naturais, políticas,
econômicas, culturais, técnicas, jurídicas, etc. Ou seja, considerá-los como redes nas
quais há diversos atores envolvidos, e não simplesmente categorizá-los como de
competência de determinada disciplina, numa tentativa cega de isolar algum aspecto
particular em detrimento da totalidade.

A emergência dos híbridos – e a reavaliação de antigos estudos sob essa ótica – é o


que nos leva a pensar em nosso tempo como um período de transição, no qual “as
268
condições epistêmicas das nossas perguntas estão inscritas no avesso dos conceitos que
utilizamos para lhes dar resposta” (SANTOS, 1988, p. 47). É como se estivéssemos sendo
convidados a rever conceitos-alicerces das nossas ciências, de modo a discutir antigos
valores para romper com as barreiras interdisciplinares.

Nesse momento de efervescentes reflexões epistemológicas, acreditamos que cabe


também ao jornalismo uma revisão de seus princípios fundadores, tendo em vista que
muitos deles são originários justamente do modelo moderno de ciência. O mesmo termo
“crise” que caracteriza as limitações do estatuto do conhecimento científico vigente é
utilizado para descrever um cenário em que os modelos econômicos que orientaram o
mercado jornalístico no século XX parecem perder força numa velocidade preocupante.
Ninguém compra mais jornal, é o que se diz. Em contrapartida, o acesso à informação foi
ampliado, graças à emergência de novas tecnologias, formatos e dinâmicas de produção.

Os contornos dessas duas supostas crises, porém, são muito diferentes. Ainda
assim, acreditamos que seja plausível estabelecer conexões entre elas, de modo a salientar
pontos comuns e divergentes na tentativa de entender melhor as críticas a ambos os
paradigmas. Não fazer isso seria, talvez, ignorar uma rede complexa, nos termos
latourianos, repetindo o vício metodológico de purificação dos objetos e limitando a
multiplicidade de abordagens possíveis.

Para tanto, partiremos primeiramente para a compreensão dos fundamentos da


modernidade científica, com o intuito de tentarmos delinear as razões que a colocaram
em estado de “crise”, e, durante o processo, buscaremos argumentos para perceber de que
modo sua desestabilização reflete-se também nos fundamentos de uma prática jornalística
canonizada pelos manuais de redação.

RACHADURAS NA CIÊNCIA MODERNA, RACHADURAS NO FAZER


JORNALÍSTICO

Um dos principais embasamentos do paradigma científico que dominou nossa


produção do conhecimento nos últimos cinco séculos – e, certamente, um dos mais
criticados nos dias atuais – é a divisão determinista e pouco maleável entre as ciências
naturais e as ciências sociais. Regida por princípios metodológicos severos e utilitaristas,
essa segregação ergue barreiras entre as disciplinas, deixando pouco espaço para
intercâmbios e diálogos. Sua origem pode ser traçada a partir da revolução científica do

269
século XVI, com a emergência de um modelo de racionalidade que presidiria, em caráter
totalitário, os procedimentos de investigação nos anos seguintes.

Esse primeiro embasamento pressupõe, conforme apontado por Santos (1988), que
o único modelo racional de conhecimento é o científico, invalidando outras modalidades
como o senso comum e as humanidades. De fato, a postura científica deve ser, inclusive,
combativa em relação ao senso comum, desconfiando de seus dizeres (por isso suas
“descobertas” possuem um tom revelatório e inesperado).

Uma das grandes ferramentas indispensáveis à ciência moderna seria, portanto, o


rigor das medições. Tomando a observação da natureza como ponto de partida para a
reflexão, o cientista moderno deve encontrar leis reguladoras dos fenômenos, que
sistematizariam uma série de situações ao apagar suas particularidades e ressaltar aquilo
que é comum e recorrente a elas. A validação dessas fórmulas de funcionamento é dada
perante os pares, por meio de testes de verificação e comprovação. Em relação a esse
mecanicismo, Santos aponta que

as leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como
funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas.
É por esta via que o conhecimento científico rompe com o conhecimento do
senso comum. É que, enquanto no senso comum, e portanto no conhecimento
prático em que ele se traduz, a causa e a intenção convivem sem problemas, na
ciência a determinação da causa formal obtém-se com a expulsão da intenção.
(1988, p. 51)
Mesmo nessa breve caracterização, já podemos perceber fundamentos
compartilhados entre o paradigma da ciência moderna e alguns manuais de princípios
editoriais de grandes conglomerados midiáticos, como o da Folha de S. Paulo e o das
Organizações Globo3. A observação orientada por técnicas rigorosas, a fim de explicar a
natureza de modo detalhado, preciso e isento, nos parece bastante similar às noções de
apuração jornalística, por exemplo.

Esse paralelo ganha maior densidade quando pensamos na apropriação das


características do pensamento científico moderno para os estudos da condição humana e
das sociedades ocorrida no século XIX. Segundo Santos (1988), as ciências sociais
emergentes desse processo – que teve Francis Bacon e Montesquieu como precursores
(nos séculos XVII e XVIII, respectivamente) – podem ser distinguidas em duas vertentes.
A primeira, de cunho positivista, baseia-se nos princípios das ciências da natureza, ainda

3
Princípios editoriais das Organizações Globo. Disponível em: http://g1.globo.com/principios-editoriais-
das-organizacoes-globo.html. Acesso em: 30 jul. de 2013.
270
que reconheça as dificuldades de transposição e adaptação dos recursos metodológicos
preteridos para as perguntas e objetos de seu interesse. Já a segunda defende que essas
dificuldades não são superáveis, por isso se faz necessária a elaboração de uma
metodologia própria, haja vista a alegação de que as ciências sociais seriam subjetivas, e
não objetivas.

Dentro dessa divisão, percebemos o jornalismo como fortemente devedor da


primeira vertente. Como afirma Cremilda Medina (2008), a linguagem jornalística
sistematizada pelos países anglo-saxônicos nesse mesmo período, fonte da qual bebe o
jornalismo praticado no Brasil, é notadamente construída com base nos princípios
positivistas. Ao retornar à obra de Auguste Comte, considerado o grande expoente da
corrente positivista, Medina observa que valores como a crença na abordagem objetiva
em relação ao real, o desejo de uma realidade estável e a observação como forma de
conhecer a verdade são comuns a ambos.

Sempre que o jornalista está diante do desafio de produzir notícia, reportagem


e largas coberturas dos acontecimentos sociais, os princípios ou comandos
mentais que conduzem a operação simbólica espelham a força da concepção
de mundo positivista. Das ordens imediatas nas editorias dos meios de
comunicação social às disciplinas acadêmicas do Jornalismo, reproduzem-se
em práticas profissionais os dogmas propostos por Auguste Comte: a aposta
na objetividade da informação, seu realismo positivo, a afirmação de dados
concretos de determinado fenômeno, a precisão da linguagem. Se visitarmos
os manuais de imprensa, livros didáticos da ortodoxia comunicacional, lá
estarão fixados os cânones dessa filosofia, posteriormente reafirmados pela
sociologia funcionalista. (MEDINA, 2008, p. 25)
Assim como acontece na ciência moderna, os fundamentos positivistas desse
jornalismo tido como “de referência” são criticados já há algum tempo e a fragilidade do
modelo, especialmente a dissonância entre prática e teoria, é amplamente reconhecida.
Seria o caso então de “mudar de lado” e assumir a postura antipositivista da segunda
vertente?

Considerações levantadas pelo próprio Sousa (1988) e também por Latour (2008)
nos levam a crer que o caminho não é tão simples. Ainda que defenda um conhecimento
intersubjetivo e descritivo ao invés de um objetivo e explicativo, essa concepção de
ciências sociais também opera dentro das segregações entre natureza/cultura e
humanos/não-humanos, fundadoras do paradigma da ciência moderna. Ou seja, apesar de
não aparentar à primeira vista, a concepção mais “subjetiva” das ciências sociais é tão
devedora do modelo racionalista-mecanicista quanto à vertente de matriz positivista.

271
Para Latour (2008), precisamos superar essa configuração diacrônica, que
caracteriza aquilo que ele chama de constituição da modernidade: um conjunto de
garantias que legitimam e orientam o método científico que tentamos aqui descrever de
modo sucinto, sendo a principal delas a distinção absoluta entre natureza e sociedade. Só
assim nossas pesquisas passariam a dar conta dos objetos híbridos (aos quais ele também
se refere como “quase-objetos”) em toda sua complexidade transdisciplinar.

O estado de crise do paradigma científico moderno é exposto, portanto, pela


proliferação dos híbridos, que trafegam entre as muralhas limítrofes das classificações
cartesianas, sem adequar-se confortavelmente em nenhum dos compartimentos pré-
estabelecidos. Como falar, por exemplo, do aquecimento global sem considerar,
simultaneamente, seus aspectos naturais, políticos e discursivos? Como tratar essas
“quimeras” seguindo os fundamentos científicos utilitaristas de até então? O diagnóstico
da crise fica claro: “o crescimento dos quase-objetos saturou o quadro constitucional dos
modernos” (LATOUR, 2008, p. 55).

A dificuldade de explicar os híbridos não é exclusiva das ciências naturais e sociais.


Também nas páginas dos jornais, os quase-objetos recusam classificações e aparecem em
trânsito constante entre editorias, desenhando uma dinâmica em que os recortes
categóricos são feitos, nem que simplesmente pela manutenção da forma, mas as
características dos objetos descritos estão entrelaçadas em nós górdios.

As páginas de Economia, Política, Ciências, Livros, Cultura, Religião e


Generalidades dividem o layout como se nada acontecesse. O menor vírus da
AIDS nos faz passar do sexo ao inconsciente, à África, às culturas de células,
ao DNA, a São Francisco; mas os analistas, os pensadores, os jornalistas e
todos os que tomam decisões irão cortar a fina rede desenhada pelo vírus em
pequenos compartimentos específicos, onde encontraremos apenas ciência,
apenas economia, apenas representações sociais, apenas generalidades, apenas
piedade, apenas sexo. [...] este fio frágil será cortado em tantos segmentos
quantas forem as disciplinas não puras: não misturemos o conhecimento, o
interesse, a justiça, o poder. Não misturemos o céu e a terra, o global e o local,
o humano e o inumano. (LATOUR, 2008, p. 8)
Apesar de encontrar-se questionada por esses quase-objetos, a constituição
moderna, ainda de acordo com Latour, é ela própria responsável pela proliferação dos
híbridos. Uma de suas práticas fundadoras, a que ele se refere como mediação, tem como
objetivo justamente a construção de cadeias contínuas entre objetos distintos, porém
relacionados, com o intuito de instituir redes híbridas, interseccionadas de natureza e de
cultura. Essas redes, depois de formadas, são submetidas à segunda prática fundadora, a
purificação, na qual quebram-se seus elos e desmembram-se seus elementos em zonas

272
ontológicas opostas, segregando parte de seus atores em um mundo natural (ou não-
humano), e outra parte em um canto oposto, o do mundo social (ou dos humanos)
(LATOUR, 2008, p. 9).

Desse modo, o aprofundamento do conhecimento gerado pelo paradigma


dominante de ciência favorece a multiplicação dos híbridos, porém, paradoxalmente,
também propicia a visualização dos limites de seus próprios pilares fundadores. A
crescente especialização dentro das ramificações da ciência e o surgimento de novas áreas
de conhecimento, como a microfísica e a nanotecnologia, apontam para a desconstrução
dos fundamentos do modelo científico vigente utilizando suas próprias ferramentas
metodológicas. Einstein demonstrou que as condições de um sistema de referência não
são necessariamente as mesmas de outro sistema de referência; Heisenberg e Bohr
concluíram que não é possível medir um sistema sem interferir em sua constituição;
Gödel provou que é possível formular proposições matemáticas que não podem ser
comprovadas, nem refutadas, indicando que o rigor da matemática carece de fundamentos
(SANTOS, 1988, p. 55-56). A hipertrofia dos processos de mediação causou uma pane
no sistema de purificação. Chegamos, assim, a uma miríade de questionamentos em
relação ao nosso modo de fazer ciência, que denotam esse estado de crise.

Diante desse cenário, o movimento proposto por Latour é o de aproximar o pólo


das coisas-em-si do pólo dos homens-entre-eles, ao invés de mantê-los cada vez mais
distanciados. Isso implicaria em não adotar uma visão puramente naturalista, nem uma
visão puramente construtivista. O sentido não está somente nas coisas, tampouco somente
nas interpretações. “Quando abandonamos o mundo moderno, não recaímos sobre
alguém ou sobre alguma coisa, não recaímos sobre uma essência, mas sim sobre um
processo, sobre um movimento, uma passagem” (LATOUR, 2008, p. 127).

Essa visão é compartilhada por Santos (1988) em sua proposição de um paradigma


emergente (ainda que outras de suas opiniões a respeito desse mesmo assunto sejam
divergentes em relação às de Latour). O abandono de uma concepção dualista de ciência
favoreceria a aproximação entre sujeito e objeto, o que, consequentemente, nos
direcionaria para um conhecimento que não nos separe daquilo que estudamos. Porém, é
preciso evitar que nesse gesto de aproximação haja uma sobreposição do humano em
relação ao não-humano, e vice-versa. Considerar o testemunho dos não-humanos mais
valioso do que o dos humanos é cair novamente nos fundamentos modernos que vêm
sendo combatidos. Reduzir o potencial dos objetos à estaticidade é privá-los de seu lugar

273
legítimo como atores no sistema, é apagar as possibilidades de compreensão das redes
em suas complexas nuances. Tanto os objetos como os sujeitos são instâncias dotadas de
historicidade, uma assinatura particular inscrita ao longo de uma trajetória de vida que
lhe confere sentido dentro de uma rede, e que rejeita a aceitação do passado como algo
petrificado, um instante vencido e irrevisitável na passagem regular do tempo. Dessa
forma, entendemos um ponto de determinada rede como possuidor de características
globais e locais, mas nunca universais.

Portanto, ainda que as discussões sobre os rumos do fazer científico não nos
direcionem para um caminho consensual e seguro (e é bom que não o façam), a
manutenção dos fundamentos que estabeleceram o paradigma dominante até o início do
século XX nos parece profundamente improvável. Consequentemente, os
questionamentos sobre a prática jornalista que se edificou sobre esse terreno da ciência
moderna vêem suas vigas estremecerem com o surgimento de rachaduras em todo o seu
pavimento.

O “REPÓRTER-PERSONAGEM”

Nesse processo, dentre vários fenômenos emergentes, o que mais nos chama a
atenção é a hipótese do crescimento das narrativas jornalísticas em primeira pessoa, que,
por meio de relatos de experiência e subjetividade, rompem com princípios caros ao
jornalismo “tradicional”, como a objetividade, a imparcialidade e o distanciamento. São
narrativas em que o repórter não se coloca como um observador afastado, livre de
emoções, mas sim como uma espécie de narrador-personagem, que constrói o seu relato
em proximidade com o objeto, embebendo-se da cena, projetando no relato suas
impressões, opiniões e afetos, sem se deixar ser obstruído pelo método de redação
convencional da área.

Retomando as considerações de Jean-François Lyotard, Márcio Serelle (2012) nos


lembra que, nas condições características da pós-modernidade, a função narrativa deixou
de assumir um caráter totalizante e explicador, marcando uma passagem das coletividades
sociais para a singularidade do indivíduo. As consequências desse processo no discurso
científico são, como vimos, a perda da capacidade de validar formulações universais e a
relativização das leis reguladoras. No discurso jornalístico, Serelle observa o
fortalecimento de uma “guinada subjetiva”, na qual o sujeito retoma para si a palavra:

274
Nos últimos anos, a primeira pessoa multiplicou-se tanto em narrativas sobre
o passado como em relatos de circunstância, sejam eles, por exemplo,
reportagens jornalísticas ou textos das mídias sociais, em que a vivência já vem
à tona narrada – daí a menção ao caráter epidérmico da subjetividade na
atualidade, à diferença daquela cultivada na interioridade, como a plasmada
pelo romance burguês. (SERELLE, 2012, p. 84)
Nessa recuperação do eu, o efeito de verdade – ainda caro para o jornalismo – seria
garantido pela subjetividade e pela afetividade demonstradas nas narrativas. Ao tomar
como expoente desse processo a obra Gomorra, do escritor e jornalista Roberto Saviano,
Serelle (2009) destaca que, desde o início do relato, o narrador deixa claro que aquela é
a sua visão sobre os fatos narrados, reivindicando a verdade como algo parcial, e até
particular. Natural da cidade de Nápoles, Saviano afirma ter crescido envolto a esse
ambiente controlado pela máfia local, conhecida como Camorra, cujas ligações
criminosas e dominadoras são delatadas durante a narrativa. O “olhar autóctone” de
Saviano, repórter infiltrado que não é um completo forasteiro, assume, então, funções
autobiográficas, à medida que o narrador em primeira pessoa por ele projetado não se
restringe à observação da experiência alheia, mas também incorpora à trama suas próprias
subjetividades e até procedimentos típicos da apuração jornalística, como a inclusão de
matérias veiculadas na imprensa e transcrições de conversas telefônicas.

Essa abordagem encontrada em Gomorra, que foge da objetividade jornalística


plena, mas também não se entrega a uma postura exclusivamente subjetiva remete, a
princípio, à aproximação entre sujeito e objeto e à postura de equilíbrio entre naturalismo
e construtivismo proposta pelos críticos da ciência moderna. Serelle (2009) alerta, porém,
que uma análise mais cuidadosa nos permite perceber que, mesmo nos momentos em que
a narrativa assume uma estética mais próxima dos padrões jornalísticos de referência, há
um rastro de subjetividade que não é completamente encoberto.

Essa subjetividade [...] manifesta-se, claramente, no texto de Saviano, em


“ilhas” ensaísticas, e, mesmo em passagens onde ela parece se apagar, em
função da urgência da denúncia, subsiste como lastro testemunhal, conferindo
à narrativa não somente o efeito da verdade íntima, mas a gravidade da repulsa
que move o sujeito em direção ao relato. (SERELLE, 2009, s/p)
Sendo assim, devemos pensar que as narrativas em primeira pessoa no jornalismo
são puramente subjetivas e demonstram grau zero de objetividade? Para Latour (2006),
ser objetivo é levar em consideração as potencialidades dos objetos como atores em suas
próprias redes, e não reduzi-los a entidades estáticas e inflexíveis, que estão simplesmente
no aguardo do advento de uma interpretação subjetiva. O ponto de chegada da ciência, e
acreditamos que também do jornalismo, seria, portanto, “alcançar” o objeto, não no

275
sentido de encontrar a sua essência, mas de entendê-lo dentro da complexidade de suas
redes. Por isso, o trabalho de cientistas e jornalistas, guardadas as devidas peculiaridades
de cada um, não seria explicar os objetos, privando-os de toda sua historicidade, mas
descrevê-los da maneira mais detalhada possível, acrescentando novas camadas à rede,
ao invés de tentar fechá-la.

Seguindo esse pensamento, podemos pressupor que as narrativas jornalísticas em


primeira pessoa apresentam traços tanto de subjetividade, quanto de objetividade, pelo
menos na maioria dos casos. Ao assumir-se como repórter, o narrador de Gomorra, de
acordo com Serelle (2009), opta por manter em seu relato traços característicos do olhar
jornalístico (descrições detalhadas e ausentes de impressões pessoais, presença de
documentos oficiais, depoimentos de fontes, postura investigativa e de denúncia, entre
outros), mas busca entrelaçá-los à sua subjetividade, não abdicando de apresentar-se
explicitamente como um sujeito “ativo” em cena, um personagem da história. Esse
repórter que não se apresenta como um simples observador distanciado é o que estamos
chamando aqui, sem definições muito formais, de “repórter-personagem”.

Longe de ser um fenômeno recente no jornalismo, o “repórter-personagem” surge


até mesmo antes da matriz positivista de apuração e redação jornalística, mas parece ter
perdido força com o sucesso desta desde as últimas décadas do século XIX até os dias
atuais. Ainda assim, as narrativas jornalísticas em primeira pessoa nunca deixaram de
aparecer durante esse período, assumindo muitas vezes um papel de resistência à rigidez
do método dominante, uma válvula de escape para a criatividade, o lirismo e o eu
insistentemente renegado. No Brasil, temos as reportagens de Euclides da Cunha e João
do Rio, datadas do início do século XX, como alguns de nossos principais expoentes
desse repórter-personagem.

O que nos instiga, todavia, é o afloramento de reportagens recentes que demonstram


uma tendência aparentemente crescente de recuperação do eu no jornalismo, como aponta
Serelle (2009; 2012). Essas narrativas, escritas necessariamente em primeira pessoa,
despontam com maior frequência em revistas como Trip, Tpm, Piauí e Vice Brasil, ainda
que não em caráter hegemônico. Esporadicamente, é possível encontrar o repórter-
personagem até mesmo em matérias de revistas informativas semanais, como a Época
(SERELLE, 2012, p. 86). Ainda assim, parece-nos um trabalho bastante estimativo o de
caracterizar essas reportagens como um movimento emergente, tendo em vista que a

276
publicação desses textos é rarefeita e irregular, ainda que sua curva de crescimento seja,
a nosso ver, bastante promissora.

Retomando, enfim, a ideia de uma “crise” instaurada no jornalismo, as assimetrias


encontradas entre as narrativas em primeira pessoa e as narrativas construídas à luz dos
manuais de redação podem parecer sedutoras para avaliarmos a possibilidade de
reescrever a cartilha que rege o paradigma dominante do jornalismo. Não nos parece nada
plausível, entretanto, eleger as narrativas em primeira pessoa como novo modelo a ser
seguido. Primeiramente, porque essa afamada crise do jornalismo ainda carece de
contornos mais nítidos, à medida que parece confundir o declínio de um modelo
econômico com a deslegitimação de um “paradigma clássico”, que é geralmente
desconsiderado de sua historicidade. Talvez, a crise esteja mais nos modos de
compreender o jornalismo do que nele em si, até mesmo pelo fato de que, mesmo com
todas as regulações e expectativas, o jornalismo jamais conseguiu operar plenamente
dentro desses fundamentos (LEAL; JÁCOME; MANNA, 2013).

Além disso, apesar de todas as semelhanças, as discussões metodológicas e


epistemológicas que concernem à ciência são ainda muito diferentes das propostas ao
fazer jornalístico. Apesar das constantes críticas e da celebração de diversos formatos que
escapam à sua regulamentação “tradicional”, o jornalismo não parece viver uma fase de
transição de paradigmas, como a ciência aparentemente está vivendo. De fato, a própria
ideia da substituição de um paradigma jornalístico por outro é, em si, bastante
questionável. Antes de sequer pensarmos em anunciar uma nova era para o jornalismo, é
preciso considerar que, historicamente, os diferentes modos de praticar jornalismo
sempre coexistiram.

Nesse sentido, acreditamos que as tramas do repórter-personagem não parecem


assumir o papel de rivais combativas de um determinado modo de ser fazer e pensar o
jornalismo. Seu lugar está mais próximo do papel de elemento tensionador de questões
acerca do testemunho, do saber, do narrador e das técnicas. Com isso, o mote prioritário
talvez seja, portanto, repensar o jornalismo não como uma trincheira de batalha entre um
paradigma dominante e suas resistências, mas sim como um terreno fértil para uma
produção de conhecimento plural em abordagens e métodos na relação entre sujeito e
objeto.

277
REFERÊNCIAS

FOLHA DE S. PAULO. Manual da redação. São Paulo: Publifolha, 2006.

LATOUR, Bruno. Como terminar uma tese de sociologia: pequeno diálogo entre um aluno e
seu professor (um tanto socrático). Cadernos de campo. São Paulo, n. 14/15, 2006. p. 339-352.

______. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 2008.

LEAL, Bruno; JÁCOME, Phellipy; MANNA, Nuno. A "crise" do jornalismo: o que ela afirma,
o que ela esquece. No prelo. 2013

MEDINA, Cremilda. Ciência e jornalismo: da herança positivista ao diálogo dos afetos. São
Paulo: Summus, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência
pós-moderna. Estudos avançados. São Paulo, v. 2, n. 2, mai/ago 1988. p. 46-71.

SERELLE, Márcio. Jogos cubanos: a ilha, hoje, em reportagens em primeira pessoa. Revista
Famecos. Porto Alegre, v. 19, n. 1, jan/abr 2012. p.83-98.

_____. Jornalismo e guinada subjetiva. Estudos em jornalismo e mídia. Florianópolis, v. 6, n. 2,


2009.

278
BIOGRAFEMAS DE UM CORP’A’SCREVER1

Janaina de Paula2

Resumo: Partindo do diário Finita, buscamos, em Maria Gabriela Llansol, os


“biografemas” de uma vida escrita. O deslocamento da escrita acompanha o trajeto de um
corpo a escrever o amor, um corpo que procura e é procurado pelo amante, abrindo um
espaço para um encontro que resta como pura vida não submetida às leis do poder e das
classificações.
Palavras-chave: amor; biografemas; corpo.

Abstract: From the diary Finita, we looked for “biographèmes” of a written life in Maria
Gabriela Llansol. The writing displacement follows the trajectory of a body that writes
love, a body which seeks and is sought by the lover, making room for an encounter which
remains as pure life that is not subject to the rules of power and classification.
Keywords: love, biographèmes, body.

Quando a noite já vai adiantada em termos de desejo e


me esqueço de todos os recados de que me fazes a
mensageira... Escrevo agora A restante vida.

Parto dela, Maria Gabriela Llansol, parto do movimento das suas mãos para tecer,
à distância, os biografemas desse “corp’a’screver”. Nele, as mãos desenham com as
palavras, bordam, no exercício dos dias, a escrita, a sua composição. Bordam os corpos
que hospedam o amor, a falta, a solidão, (re)trançando-os, aproximando-os e diferindo-
os, numa espécie de costura invisível, e dando a ver, no tecido do bordado, as densidades
e as cores de uma marca sem lembrança de sinal, desenhada ali como imagem sem
sentido. Eis, então, o amor que escreve um corpo, o corpo a escrever o amor.

Dessa escrita-composição restam-nos traços, pequenas cintilações que insistem em


abrir-se ao movimento de uma leitura. Sabemos com Barthes que o “biografema” é uma
noção potente para se pensar a escritura de uma vida aberta à criação de novas
possibilidades. No prefácio ao livro Sade, Fourier, Loyola, Barthes, buscando na escritura
o ponto de gozo, “provoca uma volta amigável do autor”. Mas esse autor que retorna, a

1
Mesa-redonda O biografema como método: Maria Gabriela Llansol.
2
Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

279
partir de uma leitura que desloca o texto de suas moções de garantia, é um autor sem
unidade,

[...] é um simples plural de encantos, o lugar de alguns pormenores


tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto
descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com
muito mais certeza do que na epopeia de um destino; não é uma pessoa
(civil, moral), é um corpo (BARTHES, 2005, p. XVI).
Esse corpo, disperso da sua unidade imaginária, é um corpo para amar e abrigar
os grafemas vivos de uma vida, seus pormenores, suas unidades mínimas. Tem a “[...]
distinção e mobilidade para viajar de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos
epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão” (BARTHES, 2005, p.
XVII); corpo de vida esburacada, em suma.

Essa noção aproxima-se daquela desenvolvida por Maria Gabriela Llansol na figura
do corp’a’screver. Nessa fórmula temos a aproximação do corpo e da escrita, que se
juntam como um ambo, fazendo do corpo pura escrita e da escrita movimento de corpo.
Para Llansol o corpo é “corpo integralmente feito de linguagem”, e a escrita implica num
corpo que a suporte. Nesse percurso, o amor torna-se biografema de uma vida que se
escreve cotidianamente nos diários, cadernos e infinitos papéis avulsos.

Eu escrevo em língua estrangeira dentro da língua de Comuns, e essa


língua não tem nenhum território já povoado, só para ela. Se eu, por
cima desta velocidade, estender sempre a trama dos acontecimentos, a
vida de qualquer ser que esta escrita evoque, parecerá ser rápida ou
fulgurante, só refreada por versículos (LLANSOL, 1988, p. 101).
A escrita evoca a vida de uma mulher que escreve, e “não queria ter filhos do seu
próprio ventre”. “Usava um xaile preto e tinha uma maneira distante de fazer amor: pelos
olhos e pela palavra. Também pelo tempo, pois desde o tempo da sua bisavó, voltar a
qualquer época era sempre possível” (LLANSOL, 1999, p. 11). Essa narradora, que
escreve O Livro das comunidades, recolhe a trama dos acontecimentos para tecer com ela
o seu xale de amor. Recolhe o amor que a tradição lhe ofertou para fazê-lo vibrar em
língua de poema, disperso em suas unidades maiores, esburacado pela densidade da vida
que atravessa todas as mortes. Llansol transpõe o traço dos afetos das vidas que lhe
chegam às mãos – seres que essa escrita evoca – para parti-lo em unidades menores,
alterando certas direções e ampliando suas margens textuais. Esse movimento é dado pelo
silêncio escrito na palavra. Trata-se aqui do amor em sua potência deslocadora, que
promove uma “ruptura em relação às práticas generalizadas de um enquadramento dos
afetos” (LOPES, 1988, p. 20).

280
No texto que acompanha o diário Finita, Augusto Joaquim – aquele que escreve,
também num posfácio: “[...] este texto tornou a minha vida improvável” – realiza uma
leitura dos fragmentos que compõem esse diário escrito nos anos vividos em Bélgica. Ele
percorre os indícios do “[...] trajeto de uma mulher que está escrevendo um livro e
testemunha o inconforto e o deslumbramento de um se cuja existência desconhecia, de
um se a escrever” (JOAQUIM apud LLANSOL, 2005, p. 237). Na dobra dessa escrita,
lemos, pelos traços desse legente, os biografemas de um corpo que atravessa os dias na
companhia dos animais e das plantas, que vai ao café, envia cartas à mãe, faz passeios
com o seu cão Jade, por vezes se deprime e lê, sem quase nunca chegar ao final de um
livro.

Lemos os biografemas de um corpo que escreve, mas “não é parte de nenhum facto
histórico-social marcante”, e por isso “tudo se pode explicar sem ela ou, melhor dito, sem
o seu eu”. Afinal, ela mesma dirá, um pouco mais tarde, no livro que coloca como causa
a pergunta: Onde vais drama-poesia?, que um eu é pouco para o que está em causa. E,
no entanto, continua Augusto Joaquim, quem lê as suas linhas, “retém a imagem de um
ser firme e nítido dos seus contornos, inexplicavelmente insubstituível, que prossegue um
percurso invulgar, tão-só porque é o seu, [...] uma extra-ordinária beleza tornando-se
conhecimento, alargando o âmbito do que se pode pensar” (JOAQUIM apud LLANSOL,
2005, p. 238). No trajeto dessa escrita, Finita torna-se o testemunho acordado, dos traços
in(finitos) de um corpo feminino que procura e é procurado pelo amante. No seu fio, o
amor arrasta o humano, para além do gosto e do prazer, para além da sombra espessa do
poder e das classificações, desfazendo qualquer hipótese de totalização e de fechamento
de uma realidade sobre si mesma.

Testemunho de uma escrita que encontra as mãos que bordariam tecidos de outras
épocas, para traduzir e esperar. Mãos que bordariam, ela diz, sabendo que outras
bordaram, num tempo anterior: Penélope, Ariadne, tecedeiras do amor e do destino. Mas
Penélope e Ariadne não apenas tecem seus fios, elas também os cortam, descosendo-os,
no interior do tecido, enodando e desnodando, num movimento contínuo – à medida que
o corpo desfaz, à medida que o corpo se faz – para que o tecido do texto ganhe densidade
e leveza, sem o nó da dor.

Escrevo nestes cadernos para que, de facto, a experiência do tempo


possa ser absorvida. [...] Em resumo: escrevo nestes cadernos para que
não se afaste do meu corpo a linha montante que conduz à velhice, tal
como a concebo: reflexão imensa, desprendimento obtido dos

281
contrastes, concentração no presente em que todos os tempos
imagináveis já estão a desenrolar-se para sempre. (LLANSOL, 2005, p.
24)
A escrita desses cadernos, que compõe o diário Finita, é acompanhada pela escrita
de A restante vida. Finita parece ser o suporte para acolher isso que não estando no livro,
resta caído dele, depurado nele, a partir dessa vida que resta escrita. Afastando-se da
narrativa diarística e histórica, sem perder a linha dos contrastes obtidos pela experiência
atravessada pelo corpo, o único desejo dessa escrita é o de alinhavar as passagens do “ser
sutil”, seguindo as “bermas dessas passagens”, para que a vida possa, talvez, alcançar as
fontes da alegria.

Nesse passo, o amor erra ao longe, acompanhando o movimento de fuga dos


cânticos, para dobrar-se no instante epifânico da eternidade. Seus tempos imagináveis
desenrolam-se, absorvidos que estão, nas linhas que se deslocam das páginas do diário ao
livro, de Finita a A Restante vida, desenhando um movimento moebiano para acompanhar
os passos desse corpo feminino que “procura e é procurado pelo amante”, fazendo do
momento do encontro um ponto que se desloca para o infinito sem realizar-se. Assim, o
amor torna-se a “partilha do impartilhável”, não apenas como impossível, mas também
como um após. Nessa pulsação, o pensamento espreita como se não fosse dizer, os olhos
percutentes assumem a mais pura graça da presença, como quem, para fazer ficar o amor,
dirige-se a seu justo desaparecimento: “quem diria que são olhos dormentes? O silêncio.
O silêncio”. Uma vez que esse amor se enche de silêncio (e da sua melhor partilha, a
amizade), o corpo dispõe a textualizar para que o vivo se torne oferenda do mais puro
dom:

a fecundidade do dom é a única retribuição do dom


parece-me, antes de mais, que a regra deve repousar sobre si
mesma
quer dizer
quer dizer
que ela deve poder permanecer a dormir,
e ser levada como um sonho (LLANSOL, 2005, p. 41).
Poder dormir e ser levada como um sonho, para que a regra repouse sobre si,
enquanto o tempo dessa noite adianta-se em termos de desejo e faça dela, escrita, a
mensageira de todos os recados. Dar o tempo, ela, amante, para que o esquecimento gere
as condições de movimento, afinal também ela, escrevendo ao nada, altera, nas letras do
seu diário, a lógica circular de um tempo. Escreve a morte nessa vida – a impossibilidade
do encontro –, escreve o vivo na morte – a fuga que gera as condições de movimento –,

282
escreve uma vida no instante em que essa exala o rosto do amante “aspirado”. Pelo dom
do texto, esse mesmo que dá o desastre (il donne le desastre), pelo dom do amor:
caminhante, nômade, aquele que rompe com a ideia de possessão mútua dos afetos,
oferecendo aquilo que não se pode oferecer. Esse movimento conjuga-se com aquilo que
Llansol definirá como sendo a melhor forma de amor: “aquela que se abre para fora de
si”.

Aproximado da escrita – “criar amores novos é o meu maior desejo” –, grafado na


sombra do contorno de um corpo, o amor torna-se palavra feminina e, afastando-se dos
discursos falocêntricos, passa a habitar outro canto. Renunciando ao ideal de uma
completude narcísica, de um todo simbólico, esse feminino escreve o amor, fazendo dele
um lugar que acolhe, em seu horizonte, a língua tocada pela expansão dos corpos.
Escrever o amor no feminino é escrever ao nada, à ausência. Escrever sem repouso e sem
saber. Ou, ainda, o amor, esse ramo, é palavra-oferenda, recortada no invisível que lhe
chama.

Orientando-se na direção desse amor, abertas ao exterior, lançadas ao deserto, o que


essas letras carregam, para além de qualquer propriedade, são os traços grafados e
acentuados na escrita. O que elas abrigam é o feminino – um “feminino de ninguém”,
como o chamou Maria Gabriela Llansol. Na desmemoria desse nome, o amor desliza,
infinito, em sua passagem permanente pelo corpo e, sem posse, torna-se palavra corpórea.
A sua verdade não é outra senão aquela dos fragmentos e dos abismos. Abertos ao
infinito, esses fragmentos reúnem-se para, em seguida, se dispersar. Podemos esquecê-
los, podemos perder o risco que define a direção da sua queda, mas, na rasura desse
esquecimento, ficará, sempre, o fato de terem nos inquietado, de terem nos tocado.

A escrita diária se faz com a experiência do amor. Ex-periência, palavra que guarda
o perigo em sua raiz etimológica, nos lembrando que o amor é também travessia de risco
pelo aberto das coisas. Assim, nessa escrita, o amor, ao contrário de tentar fazer um com
o corpo de dois, abre-se para além de si e busca o terceiro: “o amor não se dirige a
ninguém em particular, mas à reconstituição” (LLANSOL, 2004, p. 27). Para Llansol
“escrever é o mais próximo da sensação de amar” (LLANSOL, 2004, p. 203), experiência
poemática que do corpo vem dar ao texto.

Ontem, que foi Domingo à tarde, falava com o Augusto e ele dizia que
tinha a impressão de que a existência se dividia em três grandes
continentes: o do poder, o da procura do segredo das coisas, e o do amor
– e de que não havia entre eles formas unificadoras possíveis. Nos meus

283
textos recusei, desde logo, o primeiro continente, abandonando todo o
poder nas mãos do príncipe, a que opus o rebelde e o pobre. Ainda me
senti tentada a descobrir um dos segredos do universo. Foi tentação
breve porque me horrorizava o esquematismo das construções, e o
etéreo das explicações. Se há um segredo, desconheço-o, e imagino que,
se vier ter comigo, não serei capaz de o identificar sob essa forma. Não
me segredará nada. Foi no outro continente que eu tenho,
provavelmente, mais vivido; mas como não é doce, nem feito de boa-
vontade, como não faz bem, apesar de não desejar o mal, na estranheza
que definitivamente o define. As figuras que, comigo, percorrem este
texto, não procuram outro continente, a todos os títulos desconhecido.
Antes de lá se chegar, quando se lá está, quando dele se é expulso pela
morte (LLANSOL, 1994, p. 46-47).
O amor que atravessa a morte não é “nem doce, nem feito de boa-vontade, não faz
bem, apesar de não desejar o mal” e, apesar do discurso que se fixou em nossa cultura,
esse amor não se define por uma dicotomia3. Trata-se de um amor que se manifesta, na
escrita, como um sustentador do todo: “um amor do movimento em movimento”
(LLANSOL, 2004, p.91), que guarda a estranheza que o define, sem buscar no
esquematismo das formas estruturadas o caminho para descobrir os segredos do universo.
Mantido o segredo e a ausência do poder como forma de conhecimento, a escrita faz do
amor um espaço não residual e, por um efeito de rarefação, torna-se Causa Amante.

Ainda esta manhã, quando eu ficara a coser na sala bi-solar das duas
janelas, que dá para a rua principal de Herbais, um pássaro pousou no
galho morto do pinheiro, e eu vi-o nitidamente entrar pelo texto da
Comunidade, que se une num só corpo fulcral, e se divide em vários
rostos; o pássaro voava de rosto em rosto, com uma intenção de desenho
que me acompanhava. Subitamente, desapareceu, e a sua ausência
apresentou-me uma visão física do amor que aniquilou definitivamente
esta palavra, e me fez esquecer do papel, e do meu próprio pensamento
no outro lugar; a este pássaro chamei Causa Amante. (LLANSOL,
1994, p. 26)
É na ausência que o amor produz a visão física que aniquila, definitivamente, a
palavra. Na ausência surge o vazio da palavra que escreve os nomes de amor. Esvaziada
dos seus sentidos, a escrita do amor torna-se causa, amante, jardim possível onde o texto,
destituindo o amor do lugar canônico dado a ele por nossa cultura, torna-se caminho para
o desconhecido. Nesse sentido, o amor, em Llansol, ao desenhar a borda do vazio da
palavra que o escreve, coloca os amantes em constante estado de perda, de
“despossessão”. Nesse estado escreve-se a ausência, escreve-se porque os lugares
assumidos pelo discurso do poder estão em ruína, escreve-se para fazer do amor o lugar
do que perdura de pura perda.

3
Sobre isso ver ABREU, 2012, p. 27-28.

284
A fixação de um objeto de amor aparece como limite das modificações
do amor: é-se capturado pela superfície do espelho e o mesmo perpetua-
se circularmente na reprodutibilidade sem renovação. É o que acontece
no modelo conjugal ou no modelo místico. O que se passa de
fundamental na fuga ao poder, a que se dá o nome de Amor, é que este
é o lugar de uma afirmação plena da subjetividade dos amantes. O único
lugar da relação entre sujeitos, que é uma relação de perda, apelo que
atira os amantes para o vazio de si, hipótese de renovação. Do lugar de
uma possessão mútua a uma despossessão. (LOPES, 1988, p. 109)
Produzindo uma dicção que se fragmenta e se prolonga dentro do espaço contínuo
da textualidade, nessa escrita nada é fixo nem definido, a sua composição testemunha um
movimento descentrado para o qual não há medida exata, em que os elementos que
constituem o seu traçado não são apenas as palavras libertas dos seus constrangimentos
sintáticos, os objetos lançados às novas explorações, “mas também os nomes próprios” –
inclusive o de Llansol –, “enquanto pontos aglutinadores”, conjugados a partir de uma
lógica que os remete para o “inaceitável de todo discurso” que não os submete aos
princípios de uma identidade e da não contradição. Com efeito, essa composição textual
reúne o sensível e o inteligível na potência das formas vivas, produzindo efeitos de real.

Às margens de uma língua, a escrita risca o seu céu e toma os estilhaços da palavra,
os fragmentos soltos, as ideias sonhadas, para compor com eles uma infinidade de
constelações e, com todas elas, um corpo para outros corpos: “corpo-poesia”, “corpo-
amante”, como os chama Silvina Rodrigues Lopes. Compondo a textualidade, o diário
Finita define um lugar, sem negar-lhe o seu avesso, sua face oculta, seus segredos. Traça
um movimento, uma passagem, lançando-se para além dele mesmo, no que resta de uma
vida que se conjuga como “corpo-paisagem”.

REFERÊNCIAS

ABREU, Fernanda Gontijo de Araújo. O devir poético do amor: margens de silêncio e escrita em
Maria Gabriela Llansol. 2012. 170 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Teoria da Literatura,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/1843/ECAP-8UXJJZ>. Acesso em: 02 jun. 2018.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BRANCO, Lucia Castello. Chão de letras: as literaturas e a experiência da escrita. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2011.

LLANSOL, Maria Gabriela. A restante vida. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.

______. Amigo e amiga – curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.

285
______. Causa amante. Lisboa: Relógio D’Água, 1996.

______. Contos do mal errante. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

______. Da sebe ao ser. Lisboa: Rolim, 1988.

______. Finita. Lisboa: Assírio e Alvin, 2005.

______. Lisboaleipzig 1 – O encontro inesperado do diverso. Lisboa: Edições Rolim, 1994.

______. O livro das Comunidades. Lisboa: Relógio D’Água, 1999.

LOPES, Silvina Rodrigues. Exercícios de aproximação. Lisboa: Edições Vendaval, 2003.

______. Teoria da Des-possessão. Lisboa: Black son editores, 1988.

286
AS PERSONAGENS ANÔNIMAS DE ELIANE BRUM: AS
NARRATIVAS PROTAGONIZADAS PELO HOMEM COMUM1

ANONYMOUS CHARACTERS ELIANE BRUM: THE NARRATIVE


PUSHED BY THE COMMON MAN

Kassia Nobre dos Santos2

Resumo: O presente trabalho analisa como as fontes jornalísticas do livro-reportagem A


vida que ninguém vê (2006) da jornalista Eliane Brum adquirem status de personagem.
O estudo dos textos de Brum se deu pela escolha da jornalista em narrar histórias de
pessoas anônimas, utilizando o caminho inverso do jornalismo; caminho não tradicional,
em que não se busca pessoas célebres ou conhecidas publicamente. Bem como pela autora
construir uma narrativa com marcas subjetivas a partir da utilização de recursos de
observação e redação originários da (ou inspirados na) literatura.
Palavras-chave: personagens anônimas; jornalismo; literatura; Eliane Brum

Abstract: The present work analyzes how the sources of the report book A vida que
ninguém vê (2006), written by journalist Eliane Brum, become characters. This work
through Brum's texts occurred because of her stories about ordinary people, taking the
opposite way of journalism, the nontraditional way, in which the sources are not public
or famous people. And it also occurred because Eliane Brum's text presents a narrative
with subjective marks, using observation and writing resources from (or inspired by)
literature.
Keywords: journalism; literature; Eliane Brum; humanized journalism

A FONTE NA NARRATIVA JORNALÍSTICA

A personagem representa um papel de primeira ordem na estrutura da narrativa


literária e é a partir dela que se organizam os outros elementos da narrativa (TODOROV,
1970, p. 220). Assim, na construção de uma narrativa, a presença das personagens é
fundamental em virtude de os leitores identificarem-se com elas a partir da representação
do elenco que, inconscientemente, todos carregam dentro de si. O tensionamento
apresentado neste artigo se dá a partir de semelhante ação que acontece quando são

1
Mesa-redonda No compasso do homem comum.
2
Mestre em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul - RS.
287
observados os indivíduos descritos nas narrativas jornalísticas. Para tanto, o presente
trabalho analisa reportagens do livro A vida que ninguém vê (2006), da jornalista Eliane
Brum, como exemplos de narrativas que, assim como na literatura, são capazes de
desvendar o humano.

Uma conceituação imediata dá conta de que fonte no jornalismo é qualquer pessoa


que presta informação ao repórter para a construção da notícia (ERBOLATO, 1985, p.
160), além de ser uma base informativa do processo de apuração/investigação jornalística
(ORLANDO, 2010, p. 4). O que também pode ser observado, logo de imediato, na
definição de fonte é que ela é naturalmente um fator determinante para a qualidade da
informação produzida pela mídia (WOLF, 2001, p. 222).

As fontes são, principalmente, aquelas que refletem a estrutura social do poder


existente. As fontes que estão à margem disso, dificilmente, influenciariam em tese a
cobertura informativa (WOLF, 2001, p. 224). O que se transforma em um círculo vicioso
dos meios de comunicação que geram uma imensa quantidade de informações focadas
nas pessoas que detêm o poder – seja político, social ou cultural. E, assim, as mesmas
figuras são ouvidas, reduzindo o exercício do jornalista de buscar diferentes histórias e a
fonte torna-se somente uma mera “passadora” de informações, suficiente para produzir
os caracteres necessários de uma pauta preestabelecida (MAIA, 2005), sem o
envolvimento profundo entre repórter e entrevistado.

O jornalismo costuma denominar as fontes reconhecidas e que possuem informação


digna de divulgação como as fontes essenciais, que são as preferidas e as mais utilizadas.
Para isso, segue a lógica de que quanto mais alta for a posição social de uma pessoa ou
instituição, mais confiável será a fonte (KUNCZIK, 1998, p. 259). Logo, os jornalistas
preferem fazer referência a fontes que ocupam posições institucionais de autoridade com
o argumento de que essas representam o ponto de vista oficial (WOLF, 2001, p. 226).

Os jornalistas (repórteres, correspondentes) cultivarão contatos


com pessoas de influência porque é mais provável que tomem
parte em eventos notáveis e porque é mais provável que suas
opiniões e ações interessem a outros indivíduos, ou seja, aos
receptores. [...] Este estilo de coleta de informações significa, por
sua vez, dependência em relação a esse meio (perda de
autonomia) (KUNCZIK, 1998, p. 259).

288
Como afirma Medina (1986), já estão à disposição do editor, chefe de reportagem,
repórter ou pauteiro aqueles nomes, endereços e telefones dos entrevistados habituais.
“Outras possíveis fontes são descartadas ou porque não servem (não se explica o motivo),
[...] ou por desconhecimento total” (MEDINA, 1986, p. 35).

Assim, na acelerada rotina jornalística, o contato com as fontes assume um caráter


estritamente utilitário, buscando-se somente os resultados que esse contato pode “render”.
Ou seja, retira-se da fonte apenas o fragmento que faltava para completar o texto pré-
concebido. Então, no processo de interação que ocorre entre jornalista e fonte, há lugares
bem marcados, papéis a serem desempenhados, que compreendem, de certa forma,
relações de força (DIONÍZIO, 2009, p. 7-8). Em outra situação, a pessoa se torna fonte
ao passo que suas ações produzam efeitos noticiáveis positivos ou negativos. Ou seja, o
jornalista terá apenas uma visão dualista sobre a fonte. Então, será sempre observado pelo
jornalista o que a pessoa faz e não o que a pessoa é.

O jornalista deverá (re)pensar-se neste processo, pois é


importante que ele reconheça que existe um ‘outro’, que pode
pensar diferente, que pode ter contribuições desafinadas com o
coro do consenso, que pode fugir da visão dualista do certo e do
errado e levantar questões diferentes das que estão em pauta,
mesmo levando-se em consideração os limites de sua atuação. Se
o repórter não consegue tentar entender quem é o outro neste
processo, corre o risco de tornar-se um ser ‘asséptico’, desprovido
de sua própria humanidade. O que distingue o homem da
inteligência artificial, que tem se tornado uma referência
essencial da sociedade atual é justamente a capacidade de se
emocionar (MAIA, 2005).
Para fugir da visão dualista sobre a fonte, Medina (1986) aponta para a
possibilidade de o leitor construir sua própria interpretação da figura humana. Por meio
da pluralidade de vozes (fonte de informação-repórter-receptor) pode-se concretizar essa
dinâmica pelo uso do diálogo entre a fonte jornalística e o repórter para compor as
reportagens e tratar das questões humanas nas narrativas jornalísticas. No diálogo, os três
protagonistas (fonte, repórter e receptor) interagem e se modificam após a experiência.
Eles se revelam e crescem no conhecimento do mundo e deles próprios (MEDINA, 1986,
p. 8). Por meio do diálogo, o jornalista tem a possibilidade de humanizar a narrativa e,
como afirma Maia (2005), ter uma visão polissêmica da realidade:

Assim, ao estabelecer dialogias no interior da produção


jornalística, o profissional contribuirá para mostrar uma visão
polissêmica da realidade. [...] Se o legado para o futuro se pautar

289
somente pelas fontes oficiais, recorrentes, a realidade não poderá
ser vista de maneira mais rica, diversificada.
No entanto, o diálogo não é uma prática recorrente no jornalismo. O repórter recorre
à entrevista com as fontes oficiais – muitas vezes aquelas que detêm o poder político,
econômico, científico ou cultural – para obtenção de informações. “Enfatiza-se, com isso,
a unilateralidade da informação: só os poderosos falam através das entrevistas”
(MEDINA, 1986, p. 18). Por meio do diálogo proposto por Medina, a fonte ganha outras
feições, em que afloram traços de sua personalidade para revelar comportamentos e
valores. Algo que geralmente é encontrado na narrativa literária e não é comum no texto
objetivo jornalístico.

É justamente aí que o repórter poderá se apropriar de recursos da literatura para


apresentar a pessoa na narrativa, fugindo da forma tradicional de olhar a fonte apenas
pelo o que ela faz. O olhar será para o que ela é. Para isso, o jornalista capta elementos
que o ajudarão a caracterizar fisicamente, moralmente e psicologicamente a pessoa, o que
humanizará a sua narrativa e a aproximará da narrativa literária e, portanto, da
personagem.

Como afirma Ijuim (2012, p.133) “[t]ratar a pessoa mais do que como uma fonte,
mas como personagem de uma história, sim, é uma das possibilidades de humanizar o
relato jornalístico”. Para isso, muitas vezes, são utilizadas pessoas anônimas porque elas
ampliam a identificação com o leitor. Sai-se, assim, do paradigma da fonte reconhecida
em busca da fonte anônima.

FONTE ANÔNIMA E A MUDANÇA DE PARADIGMA

A personagem anônima tem o poder de humanizar o texto e é justamente este


enfoque que produz um efeito de universalidade ou pluralidade de sentidos na literatura
capaz de gerar identificação. Qualquer leitor poderá se identificar e encontrar
características de si próprio ao se deparar com a história de vida da personagem. A
identificação é um ponto forte para a receptividade de uma narrativa literária e
jornalística, como afirma Medina (2003, p.52) ao observar a construção de narrativas do
cotidiano:

[...] pesa para o leitor de uma narrativa o grau de identificação


com os anônimos e suas histórias de vida. De certa forma a ação

290
coletiva da grande reportagem ganha em sedução quando quem a
protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do cotidiano.
Porém, a representação da figura humana no jornalismo é traduzida, muitas vezes,
apenas pelas aspas das fontes habituais. Ou seja, o que é buscado durante a execução da
matéria são as falas de fontes que já são conhecidas pelo público. O foco em pessoas
anônimas possibilitaria a quebra da homogeneidade na construção da notícia, citada por
Wolf (2001), quando afirma que o jornalista produz notícias semelhantes aos seus colegas
de profissão ao utilizar as mesmas fontes. Para fugir da convencionalidade, o jornalista
precisa romper com os modelos hegemônicos. “Para oxigenar a pauta viciada, nada
melhor do que ir à rua. Dos convivas do cotidiano podem surgir vetores de renovação na
atmosfera claustrofóbica de uma redação” (MEDINA, 2003, p.79).

Ao evitar as fontes oficiais e optar pelas anônimas na tentativa de um texto


humanizado, o jornalista poderá se aproximar do seu leitor e, assim, despertar o seu
interesse por sua produção. Como afirma Olinto (2008, p. 43): “O importante é que o
repórter conquiste uma linguagem pessoal e consiga libertar-se da imitação, porque a obra
de arte – seja conto, romance ou reportagem – tem de ser uma mensagem individual,
extraída de uma realidade comum a todos”. Assim, o jornalista poderá “descobrir uma
linguagem sua [...] colocar-se em posição de escrever páginas que o futuro poderá guardar
como documentos importantes de uma época” (OLINTO, 2008, p. 46).

O contato direto com as pessoas envolvidas em acontecimentos proporciona ao


repórter a possibilidade de penetrar nos dramas de uma cidade, assim como ao ouvir
pessoas dos mais diferentes tipos falarem de seus desejos, de suas culpas, de seus sonhos
desfeitos ou reerguidos pode-se convertê-los em histórias reais capazes de se
transformarem em obras de arte de jornalismo (OLINTO, 2008, p. 36).

Assim, quando possível, e necessário que o jornalista busque novas fontes e fugir
daquelas oficiais para a produção da notícia do dia a dia ou de grandes reportagens. A
inspiração na literatura é um caminho para “superar a superficialidade das situações
sociais e o predomínio dos protagonistas oficiais. Há uma demanda reprimida pela
democratização das vozes que se fazem representar na mídia. Torna-se necessário
mergulhar no protagonismo anônimo” (MEDINA, 2003, p. 93).

ELIANE BRUM E OS ANÔNIMOS

291
As reportagens do livro A vida que ninguém vê foram, inicialmente, publicadas por
Eliane aos sábados durante o ano de 1999 na coluna A vida que ninguém vê do jornal Zero
Hora, de Porto Alegre. Todas as histórias foram ambientadas no estado do Rio Grande
do Sul. O objetivo do espaço era apresentar textos de pessoas comuns e situações
ordinárias. Após a coluna, as reportagens foram publicadas no formato livro em 2006. A
obra venceu o Prêmio Jabuti de 2007 como melhor livro-reportagem.

A jornalista trabalhou durante 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, em Porto
Alegre, e dez como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Atualmente, é
colunista na versão brasileira do site do jornal espanhol El País. Publicou três livros-
reportagens: Coluna Prestes: o avesso da lenda (1994); A vida que ninguém vê (2006) e
O olho da rua (2008), além do primeiro romance, Uma duas (2011).

No caso da obra em análise, A vida que ninguém vê, o olhar da autora foi
direcionado para figuras anônimas, algo que é observado na literatura e, com menos
frequência, no jornalismo. A reportagem, segundo Sodré e Ferrari (1986), assumiria esta
perspectiva de representação da figura humana, pois possui o foco no “quem”, entre as
perguntas clássicas do jornalismo: quem, o quê, como, quando, onde e por quê. Assim, o
essencial da reportagem está no interesse humano. Como representou Brum, ao relatar
mais do que acontecimentos, e sim singularidades de histórias de vida de pessoas
desconhecidas em suas reportagens:

Eliane procurava fugir da vala comum da pauta, cavando suas


próprias histórias em quebradas escondidas da mídia onde
descobriria personagens e assuntos que não estão nas agendas das
redações – do solitário enterro de pobre à toca do colecionador
das sobras da cidade, do carregador de malas no aeroporto que
nunca voou ao cantor cego que inferniza a vizinhança anunciando
a mega-sena acumulada (KOTSCHO, 2006, p. 180).
A autora comenta, em um depoimento, sobre o interesse por contar histórias de
pessoas anônimas: “Sempre gostei das histórias pequenas. Das que se repetem, das que
pertencem à gente comum. Das desimportantes. O oposto, portanto, do jornalismo
clássico [...] O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida é o extraordinário”
(BRUM, 2006, p. 187).

Assim, A vida que ninguém vê demonstra, primeiramente, um olhar insubordinado


da autora que rompe com o vício e o automatismo do jornalismo que busca um herói do
cotidiano. Ao fugir das fontes convencionais, Brum concretizou a fala de Medina (2003,
p. 79) sobre a necessidade de oxigenar a pauta viciada para uma renovação na atmosfera
292
claustrofóbica de uma redação. Assim, o olhar de Brum procurou por pessoas anônimas
para traduzir dilemas humanos em reportagens. As narrativas contam histórias de anti-
heróis do cotidiano que ganham destaque de Ulisses:

O ser humano, qualquer um, é infinitivamente mais complexo e


fascinante do que o mais celebrado herói. [...] Esse [...] é o
encanto de A vida que ninguém vê. Inverter essa lógica que nos
afasta para mostrar que o Zé é Ulisses e o Ulisses é Zé. [...] E cada
pequena vida uma Odisséia (BRUM, 2006, p. 195).
A obra é exemplo de um jornalismo focado em pessoas, por isso, humanizado. Ou
seja, “os textos de Eliane Brum revelam um fazer que prioriza a humanização, que
significa trazer o ser humano para o foco dos acontecimentos, dando voz aos personagens,
mostrando sua índole, suas angústias, os sentimentos” (FONSECA; SIMÕES, 2011, p.
11). Para as autoras, A vida que ninguém vê é fruto de um momento de interação, de
imersão, de uma realidade que se construiu a partir da participação de Brum. “É o real
enquadrado por meio dos olhos e da escrita de Eliane Brum” (FONSECA; SIMÕES,
2011, p. 10).

Com essa característica, as reportagens despertaram o interesse de leitores do jornal


gaúcho Zero Hora que sinalizaram por meio de e-mails e cartas uma identificação com
as histórias de vida narradas por Brum. “Toda semana desembarcavam e-mails e cartas
contando sobre vidas próprias, vidas de outros [...] Toda semana me alcançavam relatos
que acabavam assim: ‘Descobri que a minha vida é especial. Mudou tudo’” (BRUM,
2006, p. 188). Todas essas peculiaridades tornaram Eliane Brum a jornalista mais
premiada do Brasil. A repórter ganhou cerca de 50 prêmios nacionais e internacionais de
reportagem.

O CONFLITO DO HOMEM QUE COMIA VIDRO E A INCÓGNITA CHAMADA


GEPPE COPPINI

Frequentemente, o jornalismo utiliza-se de histórias que representam conflitos de


pessoas anônimas que vivem em situações-limites. A notícia nunca parte de algo que se
encontra estável. Ou seja, a prática profissional é orientada pelo valor da
excepcionalidade ou ruptura do padrão rotineiro de expectativas quanto aos fatos sociais
(SODRÉ, 2009, p. 21).

293
Isso também ocorre na literatura, quando o enredo é a representação de uma
situação vivida por uma personagem que também passa por situações singulares. Como
afirma Candido (1998, p. 35), as personagens em conflito e situações-limites servem para
revelar aspectos da vida humana, sejam eles trágicos, grotescos, sublimes etc.

Ainda citando Candido (1998), é descrevendo aspectos da intimidade das


personagens que o autor de ficção consegue representar estas situações. Forster (1974, p.
68) complementa este pensamento ao afirmar que “a particularidade do romance está no
escritor poder falar sobre suas personagens, tanto quanto através delas, ou permitir-nos
ouvi-las enquanto falam consigo mesmas. O autor tem acesso ao monólogo interior e daí
pode ir ainda mais fundo e espiar o subconsciente”.

A reportagem O homem que comia vidro, de Brum, representa a tentativa de o


jornalismo alçar, além do relato da fala das pessoas, os seus sentimentos e reflexões de
pessoas anônimas. Quando o narrador afirma que o homem que comia vidro, um artista
de rua que não tinha mais o seu público, estava deprimido, ele rompe com a ideia de que
jornalismo não pode construir aspectos subjetivos sobre suas fontes.

Jorge Luiz Santos de Oliveira tinha o sonho de ganhar a vida comendo vidro e, para
isso, fazia a sua arte para os transeuntes no centro de Porto Alegre, à espera de
colaborações espontâneas. A reportagem relata o momento em que o homem que comia
vidro para sobreviver passa por um dilema existencial ao perceber que a sua arte de comer
vidro estava ameaçada pela invisibilidade. Os passantes do centro, o seu público, não
mais se importavam com a sua habilidade de comer vidro.

Do interior de um círculo de cacos de vidro, em frente ao Mercado


Público de Porto Alegre, o homem franzino, pouco mais que um
graveto de pele, me fez, à queima-roupa, uma pergunta abissal: -
Moça, me diz uma coisa. Tu acha que eu devo continuar comendo
vidro ou devo desistir, voltar para a minha terra e plantar uma
rocinha? (BRUM, 2006, p. 150).
Primeiramente, o narrador apresenta o protagonista por meio de sua descrição física
quando afirma “o homem franzino, pouco mais que um graveto de pele”. Depois, relata
o dilema do homem que comia vidro: o medo da invisibilidade, da exclusão e do não
reconhecimento, ou até o sentimento de frustração pelo não reconhecimento de
habilidades, talentos etc. O tema central da reportagem é universal, ou seja, poderá atingir
qualquer leitor, o que se assemelha a um dos objetivos da literatura que visa à
aproximação da narrativa com a vida do leitor.

294
Outro ponto identificável na reportagem que também dialoga com a literatura é o
uso da primeira pessoa do plural, em que o narrador vira personagem. Em toda a narrativa,
há o predomínio do narrador observador em terceira pessoa, porém no trecho “Ficamos
ali, olhando feio para o lagarto” (BRUM, 2006, p. 151), o narrador utiliza o nós (narrador
e o homem que comia vidro). Ou seja, o narrador torna-se participante da história ao
também observar o lagarto e ao sofrer junto com a fonte.

Além de ser uma marca literária, o uso da primeira pessoa do plural é um indicativo
de que a jornalista participou da cena e que é um agente ativo na construção da notícia.
Como afirma Resende (2009, p. 39), o jornalista é personagem do texto e participa da
cena sem que haja qualquer interferência no fato propriamente dito. Assim, Brum deixou
de ocupar o lugar de dono da lei para tornar-se uma participante e, consequentemente,
deixou uma marca impressionista em seu texto. As impressões do narrador – marcadas
pelo uso da terceira pessoa do plural – são mais um indicativo da humanização da
reportagem:

A humanização do relato, pois, é tanto maior quanto mais passa


pelo caráter impressionista do narrador. Diretamente ligada à
emotividade, a humanização se acentuará na medida em que o
relato for feito por alguém que não só testemunha a ação, mas
também participa dos fatos. O repórter é aquele ‘que está
presente’, servindo de ponte (e, portanto, diminuindo a distância)
entre o leitor e o acontecimento. Mesmo não sendo feita em
primeira pessoa, a narrativa deverá carregar em seu discurso um
tom impressionista que favoreça essa aproximação (SODRÉ;
FERRARI, 1986, p. 15).
Na posição de observador ativo, o jornalista sugere a sua visão sobre os fatos, e não
uma verdade absoluta. Algo que liberta o leitor para realizar diversas interpretações do
texto, que é outra característica que demonstra a proximidade das reportagens de Brum
com a narrativa literária. A possibilidade de o leitor interpretar a narrativa e, assim,
construir conceitos sobre as figuras humanas apresentadas é evidente na reportagem Um
certo Geppe Coppini, quando o narrador afirma: “Vou contar, então, a história desse tal
de Geppe. E quando eu terminar me digam vocês quem é, afinal, Geppe Coppini. [...]
Quem é Geppe Coppini? Vocês decidem” (BRUM, 2006, p. 42-45). No caso, o narrador
questiona ao leitor e indica possibilidades de respostas, mas deixa claro que é ele que
decidirá no final. A conversa com o leitor é uma marca literária e é encontrada em alguns
textos de escritores como Machado de Assis.

295
Então, ao longo da reportagem, o narrador compõe o perfil de Geppe sempre
deixando em aberto algumas possibilidades para, ao final, o leitor decidir em qual irá
acreditar. Em um trecho, o narrador afirma: “Geppe é um mendigo, dizem. [...] Geppe
Coppini é uma incógnita porque nunca pediu nada. [...] O que seria Geppe então? [...]
Vocês acham que Geppe Coppini é louco? – Pois eu digo. Geppe Coppini é o maior
vivaldino que Anta Gorda já criou” (BRUM, 2006, p. 42).

Assim, a história de Geppe é apresentada ao leitor: um descendente de italiano que


vive em Anta Gorda, que é considerado um pedinte por alguns e, por outros, um louco
porque vive nas ruas, mas nunca pediu nenhuma esmola. Mais uma vez, Brum utiliza a
figura humana como protagonista de uma história que não é fechada nela mesma, e sim
aberta às possibilidades.

TODOS NÓS SOMOS UMA FRIDA E UMA DONA MARIA

O leitor sempre se identificará com algum personagem da ficção. Talvez a


identificação não seja plena porque o ente ficcional viverá, muitas vezes, em histórias que
“só existem em livros”. Entretanto, sempre há traços no mocinho ou vilão que se
encaixam perfeitamente no modo de ser do leitor, caso contrário, ele não acreditaria na
leitura que tem em mãos.

É o que Aristóteles (1992) classificou como a verossimilhança interna de uma obra.


Na literatura, é humanizando a personagem, que o autor tem a possibilidade de tornar o
seu texto verossímil para o leitor e, assim, aproximar-se do real. O ente ficcional recebe
caracterizações humanas para provocar no leitor um sentimento de identificação. Foi no
Realismo que o autor de ficção investiu em personagens que representavam ainda mais o
ser humano por, frequentemente, não ser superior à média humana nem por nascimento
nem por destino, nem superior por rebeldia ou por complexidade psicológica, mas um
homem qualquer, que carrega o peso das misérias e das injustiças sociais (D’ONOFRIO,
1995, p. 95). Dessa forma, o escritor realista pôde apresentar as mazelas da vida pública
e os contrastes da vida íntima.

No jornalismo, o autor também provoca o efeito de verossimilhança ao humanizar


sua narrativa que já tem o compromisso com o real. É o que lembram Sodré e Ferrari
(1986, p. 107), para a reportagem “não é bastante ser verdadeira; reportagem tem que

296
parecer verdadeira – ser verossímil. Isso exige certa técnica na dosagem da seleção e
combinação de elementos”.

Nos textos de Eliane Brum, as fontes são humanizadas e, por isso, as suas histórias
de vida aproximam ainda mais o leitor pelo mecanismo de identificação. É o que acontece
com as reportagens de “Frida...” e “Dona Maria tem olhos brilhantes”. Como afirma
Medina (2003, p. 52), pesa para o leitor de uma narrativa o grau de identificação com os
anônimos e suas histórias de vida. De certa forma, a ação coletiva da grande reportagem
ganha em sedução quando quem a protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do
cotidiano.

A reportagem Frida... conta a história de Nilsa Lydia Hartmann, que sofre de


esquizofrenia e, após ser costureira, mãe de seis filhos e casar-se com um marceneiro,
decidiu criar a Frida e ter como nova moradia a Câmara de Vereadores de Porto Alegre.
Assim, Frida se torna a cidadã mais assídua do local, e o seu trabalho é acompanhar bem
de perto as atividades dos políticos. Porém, sempre que a protagonista percebe que os
vereadores não cumprem com seus deveres públicos, ela não poupa crítica aos
representantes do poder.

Fontes como Frida e Dona Maria – como será visto mais adiante – são mais
comuns no jornalismo diversional, gênero que oportuniza este tipo de construção. No
jornalismo informativo, este tipo de fonte, provavelmente, não se tornaria alvo do
jornalista porque não está ligada a nenhum acontecimento jornalístico. No texto de Brum,
Frida é apresentada como um exemplo de cidadã que participa com assiduidade às sessões
da Câmara e que acompanha as ações dos vereadores. No caso de Frida de uma forma
bem particular: “Frida entendeu que o Legislativo é a sua casa. Interpretou o conceito de
cidadania de uma forma tão radical que mais de uma vez foram avistadas suas calcinhas
recém-lavadas estendidas sobre as folhagens do jardim” (BRUM, 2006, p. 91).

No texto de Brum, a situação da narrativa é descrita de forma leve sem pré-


julgamentos e estranhezas. Além de um ponto de vista crítico do narrador em relação à
opinião dos vereadores sobre a protagonista: “Sempre que alguém não se encaixa no
mundo da maioria, é logo chamado de maluco. É o que acontece com Frida. É o que
dizem dela quando grita lá do plenário” (BRUM, 2006, p. 90). O mecanismo de
identificação do leitor com a narrativa é acionado quando o narrador afirma que todos
têm o sentimento de indignação diante do descaso com ações de interesse público. Então,
pensa-se igual à Frida, porém só se pensa:
297
Frida olha para os vereadores da Câmara de Porto Alegre. E não
acredita no que vê. Nem no que ouve. Contrai o olho doente,
caído, e aperta as bochechas com as mãos. Grita, com forte
sotaque alemão: - Não aguento mais. Mas que coisa horrível! Só
fazem projetos que não prestam. [...] Frida é assim. Aos 68 anos,
diz o que muitos apenas pensam (BRUM, 2006, p. 90).

Brum mostra, em sua narrativa, que havendo a identificação com a protagonista, o


comportamento “estranho” seria, então, dos vereadores que não cumprem com o esperado
pela sociedade. Durante toda a narrativa, há marcas deste posicionamento crítico do
narrador:

Porque uma sessão da Câmara, com exceção dos projetos


polêmicos, é um sono só. Tem sempre alguém discursando para
ninguém, uma turma conversando de frente para a tribuna [...] e
outra conversando de costas para a tribuna. Prestando atenção, só
a Frida (BRUM, 2006, p. 90).
Mais adiante, o narrador afirma: “Frida cumpre expediente. Ela gostaria de ser
vereadora. [...] prepara um projeto de lei para doar malotes de dinheiro aos amigos.
Ninguém imagina onde Frida viu algo parecido” (BRUM, 2006, p. 91).

Já na reportagem Dona Maria tem olhos brilhantes, a história da protagonista evoca


no leitor os sentimentos universais de determinação e superação para a realização de
objetivos que parecem inacessíveis. Para o narrador, a adjetivação “olhos brilhantes” é o
que diferencia a protagonista das outras pessoas que não buscam realizar os seus sonhos:

Você já reparou nos olhos das pessoas na rua? Muitas têm pupilas
opacas [...] esculpem a imagem de uma infelicidade crônica,
venenosa e que mata devagar. Têm olhos de seca, olhos
assassinos. [...] Quando aparece alguém de olhos brilhantes, dá
vontade de parar, pedir licença e intimar: o que você está
escondendo atrás dessas pestanas? [...] Dona Maria tem olhos
brilhantes porque corre atrás do seu [sonho]. E desde então, deu
para ficar com os olhos em facho por aí, alumiando o caminho
(BRUM, 2006, p. 132).
O sonho de Maria Alícia Freitas, a dona Maria, seria, aos 55 anos de idade, aprender
a ler e escrever. Durante a infância, ela teve a primeira dificuldade: “Letras distantes como
a lua, porque a mãe garantiu que Maria era burra demais para alcançá-la. Aos nove anos,
com o peito estourando, Maria jurou: meus filhos vão estudar” (BRUM, 2006, p. 132).
Dona Maria teve nove filhos e garantiu para eles o estudo antes mesmo de realizar o seu

298
desejo de estudar. Quando eles estavam criados, dona Maria abandonou o segundo marido
para ir atrás do seu objetivo:

Um belo dia, pouco mais de um ano atrás, ela cravou o olho no


amado e sentenciou: Eu vou pra perto da capital procurar as letras.
Se tu quiser vir comigo, tu vem porque eu te amo. Se não quiser,
eu vou sozinha. Meu sonho é maior que tudo. O amado ficou. [...]
De segunda a quinta-feira, depois de trabalhar como doméstica e
babá, dona Maria pega a trilha da escola ao anoitecer. Encara 45
minutos de caminhada lomba acima, porque dinheiro para o
ônibus não tem. Vai para dentro do seu sonho. Vai com os olhos
alumiando o caminho (BRUM, 2006, p. 133-134).
Além da temática universal, os recursos literários utilizados na reportagem
aproximam ainda mais o leitor da narrativa, já que, assim, são acionados os mecanismos
de identificação indicado por Candido (1998). Como a presença de caracterização moral
da fonte: “Dona Maria, que ainda nem era dona, era pobre. De bens, não de espírito”
(BRUM, 2006, p. 132). O uso de diálogos entre a repórter e a fonte também é utilizado
para complementar o entendimento do leitor sobre a pessoa da narrativa. No caso de Dona
Maria, a transcrição de sua fala na reportagem revelou a beleza e a simplicidade
[caracterizações morais] da protagonista:

E afinal, o que é ler? [Brum pergunta] É assim. Eu achava que


letra era letra. Era como uma toalha de mesa. Não tinha vida.
Esses dias tava no colégio, olhei e descobri que as letras têm vida.
Eu leio e elas conversam comigo, me dizem o que eu preciso.
Contam coisa que eu nem imaginava. Tipo “M” de Maria, né? É
só um “M”, mas quando junta tudo, a Maria fala comigo. A Maria
fica viva (BRUM, 2006, p. 136).
Além de o diálogo representar a fala transcrita da fonte, o que provoca no leitor a
sensação de estar presente na cena descrita. Por meio das falas da protagonista, o texto de
Brum transmite uma maior veracidade da narrativa e, assim, o processo de identificação
do leitor se concretiza, num processo similar ao que acontece na literatura.

OS PROTAGONISTAS DE BRUM

A análise das reportagens mostrou que o jornalismo produzido por Brum é


humanizado devido ao comportamento de suas fontes, que não representam o estatuto
proposto no jornalismo informativo. O homem que comia vidro, dona Maria e o sonho
de estudar e os outros protagonistas da obra de Brum não representam o que se
convencionou por uma fonte clássica no jornalismo. Porém, ao mesmo tempo, não

299
perderam sua classificação de fonte porque foram entrevistados por uma jornalista que
construiu um texto a partir de seus relatos, comportando-se como personagem da
literatura ao serem humanizadas na narrativa jornalística.

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300
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TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970.

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301
GEORGES BATAILLE: ESCREVENDO PARA APAGAR SEU
NOME?1

GEORGE BATAILLE: WRITING TO ERASE HIS NAME?

Lívia Drummond2

Resumo: Analisar uma obra artística pensando-a a partir do ponto de vista daquele que a
produziu, identificando traços que criam um perfil autoral a partir de redes discursivas
legadas por um determinado autor, implica em uma tomada de posição que recoloca, em
certa medida, a figura autoral, como chave de entendimento para sua produção artística.
No entanto, como proceder se o próprio Bataille afirma: “escrevo para esquecer o meu
nome”? Que nome ele gostaria de esquecer? Como ele procede para tanto? Para pensar
tais questões, entraremos em um dos aspectos dessa grande discussão que interroga o que
é o autor?, mais especificamente, a “íntima” relação entre um determinado autor
moderno, cuja escrita, temas e reflexões, suscitam ainda hoje tanto interesse entre os
contemporâneos, e sua vasta produção teórico-ficcional. Falamos de Georges Bataille.
Concentraremos nosso estudo em algumas passagens da obra que marca a sua entrada nas
letras francesas: a História do olho. Esse texto, tratado por grande parte da crítica como
uma produção autobiográfica, aqui será tratado como um texto estritamente ficcional,
demonstrando como alguns traços deixados nessa obra criam e definem uma assinatura,
construindo para ele uma figura autoral que não corresponde necessariamente a uma
pessoa real, mas que o define enquanto autor de uma rede discursiva sobre o erotismo.
Palavras-chaves: autoria; assinatura; erotismo; morte.

Abstract: To analyze an artistic work considering it from the point of view of its
producer, identifying in discursive networks left by a given author the features that create
an authorial profile, implies taking a position which relocates, to a certain degree, the
authorial figure, as a key to understanding his artistic production. Nevertheless, how do
we proceed if Bataille himself asserts: “I write to forget my name”? What name does he
wish to forget? And how would he go about doing so? To consider such questions, we
will enter into two aspects of the great debate that asks what is the author? more
specifically, that of the “intimate” relationship between a determined modern author,
whose writing, themes, and reflections solicit to this day so much interest among
contemporaries, and his vast theoretical production. We speak of George Bataille. We
will concentrate our study on a few passages of the work that marks his entrance into
French letters: the Story of the Eye. This text treated by and large by criticism as a

1
Mesa-redonda Desafios da (auto)ficção.
2
Mestre em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

302
autobiographical production will here be treated strictly as a fictional text, demonstrating
how some traces left in this work create and define a signature, constructing an authorial
figure which does not necessarily correspond to a real person, but which defines him as
an author of a discursive web on the subject of eroticism.
Keywords: authorship; signature; eroticism; death.

“J’écris pour oublier mon nom.”3


Georges Bataille

Desde a antiguidade clássica greco-latina questões referentes à arte, de uma maneira


geral, e à arte da palavra, mais especificamente, vêm sendo tratadas por pensadores dos
mais diversos campos do saber. Entre muitas outras, questões como: o que definiria uma
obra de arte? Existe alguma relação entre o objeto artístico e o mundo exterior? Quais
critérios de valoração identificam uma obra como arte? Como tratar o indivíduo que
produz tais objetos? Como pensar a relação entre “criatura” e “criador”?

A princípio algumas destas questões incitavam filósofos a menosprezarem a arte


devido ao seu caráter ilusionista e sua capacidade de falsear e deturpar o real. Em um
segundo momento, a arte passa ser valorizada justamente por sua destreza em criar
mundos e realidades possíveis e plausíveis. Num momento bem posterior, a arte passa a
ser pensada por características que lhe seriam intrínsecas: beleza e universalidade. No
entanto, nos últimos dois séculos a arte sofreu outras reformulações, de objeto puramente
estético e singular, alternativa ao cotidiano vulgar e imediato, passou a contar também
pelo que suscita e ativa na experiência cotidiana.

Assim como a noção de obra de arte veio se modificando ao longo dos séculos, a
noção do autor/criador dessas obras, e é esse o ponto que nos interessa abordar nas
reflexões aqui desenvolvidas, vem acompanhando essas modificações. Observamos que
ao longo da história dos estudos literários esse personagem foi marcado por momentos
bem diferentes que vão de uma total indiferença a uma total execração à sua “pessoa”.

Nesse ínterim, vale lembrar que o autor teve o seu grande apogeu entre os século
XVIII e início do século XX, quando ele foi tratado pela crítica literária como categoria
explicativa suficiente e incontestável de uma obra literária. Vimos, no entanto, o império
do autor começar a desmoronar no final do século XIX, com escritores como Mallarmé,

3
“Escrevo para esquecer meu nome” (tradução nossa).

303
que “viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de colocar a própria linguagem
no lugar daquele que era até então considerado seu proprietário” (BARTHES, 2004, p.
59) e quando, no início do século XX, viu-se nascer uma nova disciplina – a Teoria
Literária –, que, ancorada nos estudos do linguista suíço Ferdinand Saussure – para quem
o signo é arbitrário, não tendo, assim, nenhuma relação direta com a coisa nomeada no
mundo exterior –, propôs pensar a obra literária como jogo de linguagem autorreferencial,
sem nenhuma relação direta com um referencial exterior a ela.

Assim, a Teoria Literária moderna, criada pelos formalistas russos, relegou ao


limbo qualquer categoria explicativa para um texto literário que não fosse regida pela sua
estrutura interna. Nos idos dos anos 1960 e 1970, com correntes teóricas como o
estruturalismo francês e a nova crítica americana no calor das reflexões sobre as novas
formas de pensar, a arte, a sociedade, o homem, etc. dentro das suas estruturas internas,
o império do autor/subjetividade biográfica, detentor da verdade sobre o texto, continuou
a ruir.

Não tivemos a pretensão de fazer, nesse trabalho, uma minuciosa reconstituição


histórica de como a obra de arte ou seu autor/criador têm sido pensados e analisados ao
longo da história das civilizações, longe disso, buscamos apontar sucintamente as
guinadas na forma de abordagem da obra artística literária que até meados século XIX
era explicada sobretudo a partir da vida do autor e que em um momento posterior, no final
deste mesmo século e início do século XX, passa a ser radicalmente descartada enquanto
categoria explicativa do texto.

Tentaremos apontar, brevemente, de que maneira o ponto de vista do autor pode ser
retomado como categoria de análise do texto literário. Concentraremos nosso estudo de
algumas passagens da novela História do olho de Georges Bataille, assim como, em
passagens de outros textos da vasta produção desse escritor, demonstrando como alguns
traços deixados em sua obra criam e definem uma voz autoral, uma assinatura,
construindo para ele uma figura autoral que não corresponde necessariamente a uma
pessoa real, mas que o define enquanto autor de uma rede discursiva sobre o erotismo.

Partiremos de algumas reflexões feitas pela teórica argentina Sandra Contreras


sobre a noção de autoria para pensar esta categoria tão controversa e execrada pela teoria
literária que, se por um lado já foi declarada morta, por outro, não deixa de mostrar a sua
força e presença. Contreras em seu artigo “Intervención” parte do “[...] desejo de captar
(parcialmente, claro) algo do que” a produção literária do escritor argentino Cesar Aira
304
estava dizendo à cena literária e ao público leitor argentino e que tomava proporções
enormes. Para tal fim, recorre à “[...] leitura da obra de Aira em seu conjunto..., isto é,
uma leitura que se pode chamar de clássica, e, por conseguinte, como Kohan o determina,
em nosso contexto presente de desconstrução e ‘pós’, uma leitura moderna”
(CONTRERAS, 2003, tradução nossa).

Pensar o conjunto de uma obra retomando categorias teóricas que foram execradas
pela teoria como fez Sandra Contreras afirmando que:

[...] me parece claro que quando hoje nos ocupamos de “autores” não
estamos voltando – ao menos não queremos voltar- ao Autor-Indivíduo-
Pessoa que Barthes declarou morto, mas ao autor como “invenção de
estilo”, “criação de sintaxe”, “singularização do ponto de vista” que
aprendemos a ler [...] (CONTRERAS, 2003, tradução nossa).
e como fizeram outros estudiosos da literatura e como tentaremos fazer nesse
trabalho, é uma tarefa um tanto quanto complexa, mas que nem por isso pode deixar de
ser realizada. Pois desde que Roland Barthes, em 1968, proclamou A morte do Autor-
Indivíduo-Pessoa – declarando que a identidade civil, a subjetividade de um escritor não
servia mais enquanto explicação do texto, pois esse modo de pensar teria por finalidade
fechar o sentido de um texto por natureza polissêmico como o texto literário “[...] um
espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das
quais nenhuma é original” (BARTHES, 2004, p. 62) – e Michel Foucault no ano seguinte
questionou O que é um autor?, a sorte do autor foi lançada e uma grande confusão
interpretativa não cessa de acontecer.

Alguns intérpretes da afirmação de Barthes e da dúvida de Foucault – ambas


lançadas no auge da efervescência pós-estruturalista que pretendia transformar qualquer
indício de subjetividade em construção maquinal e discursiva – oscilaram entre enterrar,
de uma vez e para sempre, a categoria autor ou resgatá-la, em certa medida, substituindo-
a por uma função: a “função autor”, buscando “a regra [de funcionamento] através das
quais eles formaram um certo número de conceitos” (FOUCAULT, 2009, p. 86).

A nosso ver, distanciados no tempo da febre pós-estruturalista e reinterpretando


algumas reflexões de Foucault, as missões iniciadas pelos escritores modernistas
(Mallarmé, etc.) no século XIX, quais sejam: matar e enterrar o autor, não se cumpriram.
Ao invés disso, o autor pode ser recolocado em cena, desde que não seja entendido
enquanto indivíduo puramente subjetivo que garante uma explicação definitiva da sua
obra, mas como figura que é construída pela própria obra. Retomamos abertamente as

305
proposições de Barthes e Foucault reinterpretando-as a favor da importância da reinserção
da figura autoral para análise de uma obra. Façamos nossas as palavras de Foucault (2009,
p. 87): “Gostaria no momento de examinar unicamente a relação do texto com o autor, a
maneira com que o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos
aparentemente”.

Analisar uma obra artística pensando-a a partir do ponto de vista daquele que a
produziu, identificando traços que criam um perfil autoral a partir de redes discursivas
legadas por um determinado autor, implica em uma tomada de posição que recoloca, em
certa medida, a figura autoral como chave de entendimento para sua produção artística.
Vale ressaltar aqui que, assim como Barthes ou Foucault, a figura autor não será tratada
enquanto subjetividade, enquanto pessoa individual e civil que apresentaria as mais
íntimas e verdadeiras confissões em seu discurso, e sim como uma personagem que se
produz no e pelo discurso. Podemos ilustrar nossa tomada de posição partindo de uma
fala do próprio Bataille e que nos serve de epígrafe “escrevo para esquecer o meu nome”.
Que nome ele gostaria de esquecer? Como ele procede para tanto?

Entraremos agora em um dos aspectos dessa grande discussão que interroga o que
é o autor?, mais especificamente, a “íntima” relação entre um determinado autor moderno
cuja escrita, temas e reflexões, suscitam ainda hoje tanto interesse entre os
contemporâneos e sua vasta produção teórico-ficcional, falamos de Georges Bataille. Sua
empresa desde o início se mostra fadada ao insucesso, pois seu nome próprio ecoará e
marcará as análises de sua obra identificando-a na maioria das vezes a traços
autobiográficos. A nossa empresa, no entanto, busca pensar traços deixados na sua obra
que o identificam enquanto autor e não com o sujeito “de carne e osso”. Georges Bataille
(1897-1962) escritor que se insere na tradição moderna, não deixa, contudo, de contestá-
la. Próximo dos grupos de vanguarda do início do século XX, especialmente dos
surrealistas, não deixou de confrontar a literatura moderna francesa, mais propriamente
surrealista, trazendo temas abjetos para o centro de sua obra (sendo esse um dos principais
pontos de tensão entre ele e André Breton). Utilizando-se de uma linguagem crua,
brincando e ridicularizando, na sua literatura, a bela retórica e exaurindo palavras como
cu, pau, punheta, sangue, porra... Veremos proliferar em sua obra, sobretudo na sua
produção artística/literária, emblemáticas passagens como as dos versos seguintes
encontrados no livro Poèmes et nouvelles érotiques:

Gonflée comme une pine ma langue

306
dans ta gorge d’amour rose.
Ma vulve est ma boucherie
Le sang rouge lavé de foutre
Le foutre nage dans le sang.4
Como diria Meizoz (2007): “A postura de um autor se exerce relacionalmente a
outras posturas”. A de Bataille confronta violentamente a de Breton e de parte do
movimento surrealista (do qual fez parte por um breve momento). Segundo Eliane R.
Moraes (2010, p. 155) “À aspiração etérea dos idealista – leia-se: surrealistas – em direção
à pureza, o autor da Histoire de l’oeil preconiza uma ‘cólera negra e até mesmo uma
indiscutível bestialidade’, ameaçadora e repugnante, que se constituiria como a grande
contrapartida das visões sublimadas da realidade.”

A leitura da sua obra pode ser, sim, mediatizada pela sua “postura autoral”, no
entanto, ela não deve ser entendida e identificada imediatamente com a sua biografia,
com o sujeito Bataille. É emblemático observar que a sua primeira obra, História do olho,
publicada originalmente em 1928, foi escrita sob o pseudônimo de Lord Auch (e esse não
foi o único pseudônimo utilizado por ele). A escrita assinada por um pseudônimo não
significa apenas esconder-se atrás de uma personagem para proteger a identidade civil do
sujeito Georges Bataille, então funcionário da Biblioteca Nacional francesa, nem
tampouco serve, apenas, para dissimular aspectos que podem passar por autobiográficos
na obra em questão.

“Algumas semanas após o acesso de loucura de meu pai, minha mãe acabou
perdendo igualmente a razão” (BATAILLE, 2003, p. 90). Tomar tal confissão encontrada
na História do olho, no capítulo intitulado Reminiscências – no qual aparece outro
personagem narrador, muitas vezes identificado à voz do indivíduo Georges Bataille e
não mais ao garoto narrador de quase 16 anos e herói da narrativa – como sendo a
expressão mais íntima do sujeito Bataille, pode incorrer em um grande equívoco, já que
o próprio irmão do escritor nega essa afirmativa dizendo, em cartas citadas na biografia
Georges Bataille, la mort à l’oeuvre escrita por Michel Surya, “Tu sais très bien que
notre père n’est pas mort fou, que notre mère, avant de mourir, n’a pas perdu la raison”5,
mas significa talvez a criação de uma persona que se dramatiza em temas espalhados por
toda a sua obra literária, basta observar a construção do próprio pseudônimo: Lord que

4
“Inchada como uma pica minha língua/em tua garganta rosa de amor/ Minha vulva é meu abatedouro/ o
sangue vermelho lavado de porra/a porra nada no sangue” (tradução nossa).
5
“Você sabe muito bem que nosso pai não morreu louco, que nossa mãe, antes de morrer, não perdeu a
razão” (tradução nossa).
307
em inglês significa Deus/Senhor e Auch a abreviação da expressão francesa aux chiottes
que significa à latrina, podemos concluir da elaboração desse pseudônimo que o nome
que assina a obra funciona como um Deus na latrina evacuando na narrativa excrementos,
abjeções, baixezas de toda sorte.

Não nos interessa aqui observar, nem tampouco confirmar, os aspectos


autobiográficos da História do olho como o faz, por exemplo, Michel Leiris (2003, p.
105-106) afirmando que

o suposto eu do narrador se duplica abertamente em um eu real, pois a


ficção é acompanhada de uma exegese autobiográfica, relato de eventos
da infância e da juventude que haviam impressionado o autor a ponto
de ressurgir, transformados mas retrospectivamente identificáveis[...]
e intuindo que a utilização do pseudônimo se prestaria a dissimular o tom
autobiográfico da narrativa – essa é apenas uma das funções da assinatura fictícia.
Podemos pensá-lo, sim, enquanto estratégia criadora de uma identificação autoral ou,
partindo da reflexão de Contreras, como uma estratégia criadora de um ponto de vista do
autor, percebendo a inserção das reflexões desenvolvidas em sua escrita “como um ponto
de vista excludente, absoluto, criando seus próprios paradigmas [...] [querendo] pensar e
usar os conceitos, as relações críticas, as filiações e os contrastes [...] (CONTRERAS,
2003, tradução nossa)” da sua noção de erotismo.

Podemos dizer da literatura de Bataille o mesmo que Contreras (2003, tradução


nossa) afirma sobre a literatura de Aira: “[ela] emerge no contexto da literatura [...]
[moderna] como um ponto de vista que confronta outros de forma absoluta, que nos
confronta com uma sensibilidade distinta, que nos provoca reações, respostas,
posicionamentos, diferentes”. O ponto de vista-Bataille singulariza a noção de erotismo,
sobretudo, ao confrontá-la com práticas excessivas que culminam na morte, isso porque,
em seus textos, toda narrativa da experiência deve ser levada ao extremo das suas
possibilidades tornando-as impossíveis, tornando-as experiências negativas, já que
negam situações possíveis, basta observar a seguinte “confissão” do personagem narrador
para que possamos ter uma pequena mostra de tal singularidade:

Lembro-me de um dia em que passeávamos de carro, em alta


velocidade. Atropelei uma ciclista jovem e bela, cujo pescoço quase foi
arrancado pelas rodas. Comtemplamos a morta por um bom tempo. O
horror e o desespero que exalavam aquelas carnes, em parte
repugnantes, em parte delicadas, recordam o sentimento de nossos
primeiros encontros. Em geral Simone é uma pessoa simples. É alta e
bonita; nada tem de angustiado no olhar ou na voz. Mas é tão ávida por
qualquer coisa que perturbe os sentidos, que o menor apelo confere ao
308
seu rosto uma expressão que evoca o sangue, o pavor súbito, o crime
[...]. (BATAILLE, 2003, p. 24-25)
De acordo com o filósofo italiano Franco Rella (2010, p. 21) “reler Bataille, hoje,
não significa fazer uma ‘arqueologia do moderno’ [...] significa confrontar-se com um
dos filósofos mais significativos do século XX” e poderíamos dizer, diferentemente:
reler Bataille, hoje, significa confrontar-se com um instigante ficcionista, poeta e teórico
da modernidade, instaurador, como diria Foucault, de uma rede de discursividade sobre
o erotismo e a morte.

Os textos escritos por Bataille giram em torno de temas que evidenciam no nível
discursivo traços que o definem enquanto autor como, por exemplo, reflexões sobre
experiência interior/mística, sacrifício, transgressão, interdito, excesso, entre outros.
Pretendemos tratar um dos temas que mais se sobressai desse conjunto, sobretudo no
que concerne a sua produção literária/artística/criativa: a obsessão pelas práticas eróticas
e a sua associação com a morte.

Suas reflexões a respeito do erotismo perpassam parte da sua obra teórica e toda a
sua obra literária, constituindo, assim, um importante conjunto de textos que tentam
delinear, a partir de um intercâmbio conceitual teórico/ficcional, o erotismo como uma
experiência singular de sujeito falido. “Na passagem da atitude normal ao desejo existe
uma fascinação fundamental pela morte. O que está em jogo no erotismo é sempre uma
dissolução das formas constituídas. Repito: dessas formas da vida social, regular, que
fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos” (BATAILLE,
2004, p. 31).

Segundo Evelina Hoisel (2008), no artigo “Confrontos T. S. Elliot e Paul Valéry”,


“o poeta moderno não é apenas poeta. É também teórico, crítico e historiador da
literatura”. Essa assertiva aplica-se não somente ao poeta, mas aos escritores dos mais
diversos gêneros que, com a modernidade, passaram a desenvolver em seu processo
criativo uma perspicaz “autoconsciência” teórico/reflexiva. Partindo dessa perspectiva,
observaremos que há, na obra de Bataille, “[...] esses constantes deslizamentos,
contaminações, entrecruzamento, migrações e transmigrações entre os textos, e
portanto, entre as várias atuações que se configuram e podem ser depreendidas dessas
produções textuais” (HOISEL, 2008, p. 144).

As reflexões de Bataille sobre o erotismo, seja na sua obra teórica, seja na sua obra
literária confundem-se com suas reflexões sobre o próprio ato de escrever, ressaltando

309
“a consciência dos limites e das possibilidades da linguagem” (HOISEL, 1991, p. 79).
Observemos os próximos versos:

je bois dans ta déchirure


j’étale tes jambes nues
je les ouvre comme un livre
où je lis ce qui me tue.6
A obra de Bataille revela uma escrita angustiante. Dessa maneira, a sua escrita
transgride não apenas na forma fragmentária dos seus escritos, mas também no seu
conteúdo e no estilo permeados de pontuação excessiva e atípica que marcam o vazio
angustiante do não saber, ou da quase impossibilidade de transformar em linguagem
sensações tão ambíguas e aterradoras quanto as provocadas pelo desejo erótico, como
podemos observar na fala de Simone parceira erótica do narrador (outra heroína da
História do olho) “– Mije em cima de mim...mije no meu cu... – repetia com
sofreguidão”.

O filósofo italiano Franco Rella (2010) afirma que existe certa dificuldade em dar
conta do conjunto da obra batailliana devido ao seu caráter essencialmente fragmentário,
descontínuo, caráter este que constitui uma das principais características do escritor
moderno. Sua produção teórica e sua produção literária fragmentárias, articuladas em
uma operação de tráfico de conceitos, abrem perspectivas para a análise da própria
produção da escrita contemporânea, ou mesmo dos intricados processos de erotização
do cotidiano.

Nas discussões empreendidas por Bataille, o erotismo está sempre associado a


conceitos e práticas distintas, inusuais e constitui parte fundamental da experiência do
sujeito contemporâneo. Sua proposta erótica visa o aniquilamento desse sujeito, assim
como o entrelaçamento das práticas eróticas com a morte, Bataille recorre a uma
reflexão de Sade que afirma o império da morte sobre os sentidos: “‘não existe melhor
meio de se familiarizar com a morte que o de ligá-lo a uma ideia libertina’”, apesar de
se tratar de uma ideia comum à uma sensualidade aberrante, ela não é tão rara na
natureza humana, dessa maneira, conclui que “Resta porém uma relação entre a morte e
a excitação sexual” (BATAILLE, 2004, p. 20).

6
Bebo em tua fenda/Estendo tuas pernas nuas/Abro-as como um livro/em que leio o que me mata (tradução
nossa).

310
Não há como não pensar em um projeto literário batailliano, mesmo sabendo que
há muito tempo afirma-se: “não existe uma equação lógica necessária entre o sentido de
uma obra e a intenção do autor” (COMPAGNON, 2001, p. 80). Mesmo depois de ter
refletido sobre a morte do autor, sobre a falácia intencional de Beardsley e Wimsatt para
os quais “a experiência do autor e sua intenção [...] eram indiferentes para a compreensão
do sentido da obra” (COMPAGNON, 2001, p. 80) não é possível, no nosso caso, deixar
de observar e analisar a obra de Georges Bataille como um projeto no qual é construída
uma determinada figura autoral. “Talvez uma vantagem da leitura de autor seja a de
permitir não tanto voltar a falar de, mas de insistir na questão do valor de uma obra –
valor entendido aqui como aquilo que cada mundo imaginário nos comunica como único
e singularíssimo” (CONTRERAS, 2003, tradução nossa).

Basta acompanhar as aventuras eróticas do jovem casal alucinado da História do


olho que nos coloca em face de cenas como essa:

Vou me limitar agora ao relato do enforcamento de Marcela: [...] Cortei


a corda, ela, ela estava bem morta. [...] Simone me viu de pau duro e
me bateu uma punheta; deitamos no chão e eu a fodi ao lado do cadáver.
[...] Olhei para Simone, e o que me agradou, lembro-me claramente, foi
que ela começou a se comportar mal. O cadáver excitou-a.
(BATAILLE, 2003, p. 59-60)
para perceber que o ponto de vista batailliano nos insere no terreno desconhecido
da desmesura, transgressão e violência, de certa forma, inconcebíveis na dimensão do
real, ele traz a tona um sujeito descentrado e fragmentado que se aniquila e se reinventa
a partir de práticas eróticas e de escrita.

Ao reinterpretar a “dessacralização da imagem do Autor” de Barthes, Contreras


(2003) afirma, em suas análises, que tal dessacralização opera “a favor da emergência do
escritor como sujeito que nasce em e com seu texto, a favor da noção de texto como um
espaço de escrituras múltiplas [...]”. Assim, ao tentar dessacralizar a figura mítica de
Georges Bataille tratado, na maioria das vezes, como um filósofo ou “novo místico”,
direcionamo-nos no sentido do que pensou Barthes, Foucault, Contreras e diversos outros
teóricos que problematizam a noção de autoria.

Talvez seja seu ponto de vista singular sobre as práticas eróticas o que faz dos textos
bataillianos serem tratados diferentemente em momentos distintos: inicialmente seus
textos foram tratados como pornográficos e hoje fazem parte da literatura erótica, e, por
conseguinte, talvez seja essa mirada sobre o erotismo que faça com que o autor Bataille
seja ora considerado um pornógrafo libertino não muito sério, ora tratado como um
311
escritor sério cujas reflexões e estilo o exercem uma determinada função-autor, ao criar
uma rede discursiva a respeito do erotismo e da morte. Saber qual dessas figuras autorais,
entre muitas outras criadas pelo escritor, corresponde ao indivíduo Bataille é uma tarefa
que não nos compete, a nós é dada apenas a possibilidade de apontar para esses Batailles
a partir do que nos é oferecido pela linguagem.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. Autour de « La scissiparité ». In: Roman et récit. Paris: Gallimard, 2004.

______. História do Olho. Tradução de Eliane Robert Moaraes. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

______. L' Erotisme. Paris: Minuit, 2004.

______. Poèmes et nouvelles érotiques. Paris: Mercure de France, 2006.

COMPAGNON, Antoine. O autor. In: O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo
Horizonte: UFMG, 2001.

CONTRERAS, Sandra. Intervencion. In: BOLETIN/11 del Centro de Estudios de Teoría y


Crítica Literaria. Disponível em :
<http://www.celarg.org/int/arch_publi/contreras_intervencion.pdf>. Acesso em : 27 de janeiro
de 2013.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor ? In : Ditos e escritos III : Estética, e pintura, música e
cinema. Trad. Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2009.

HOISEL, Evelina de Carvalho Sá. Confrontos T. S. Elliot e Paul Valéry. Estudos Linguísticos e
Literários, Salvador, v. 12, n. 3, p. 79-96, jul. 1991.

LERIS, Michel. Nos tempos de Lord Auch. In: BATAILLE, George. História do Olho.
Tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

MEIZOZ, Jérome. Postures Littéraires. Mises em scène modernes de l'auteur. Essai. Genéve:
Slaktine Érudtion, 2007.

MORAES, Eliane Robert. A transgressão do antropomorfismo. In: ______. O corpo impossível:


A decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo:Iluminuras, 2010.

RELLA, Franco. Georges Bataille, filósofo. Trad. Davi Pessoa Carneiro. Florianópolis:UFSC,
2010.

SURYA, Michel Georges Bataille, la mort à l’oeuvre. Paris: Gallimard, 2007.

312
A RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA
COLETIVA NA ANIMAÇÃO PERSÉPOLIS1

THE RELATIONSHIP BETWEEN INDIVIDUAL MEMORY AND


COLLECTIVE MEMORY IN THE ANIMATION PERSEPOLIS

Lucas Ravazzano de Mattos Batista2

Resumo: O presente trabalho visa analisar a animação Persépolis (2007), de Marjane


Satrapi, filme no qual a autora narra sua infância e juventude no Irã durante a revolução
islâmica que levou ao poder o aiatolá Khomeini. Buscaremos, pois, compreender como a
obra constrói e estabelece um pacto de leitura autobiográfico com seu público e também
como a prática autobiográfica diz respeito a uma rememoração presente de eventos
passados sendo, deste modo, impossível para um autor dissociar sua visão pessoal sobre
os fatos narrados e, sendo assim, o autor constrói sua narrativa de acordo com suas
interpretações da experiência em contextos sócio-culturais.
Palavras-chave: autobiografia; memória; análise fílmica.

Abstract: This study aims to analyze the animation Persepolis (2007), by Marjane
Satrapi, film in which the author narrates her childhood and youth in Iran during the
Islamic revolution that brought Khomeini to power. We intend, therefore, to understand
how the work builds and establishes a pact of autobiographical reading with its audience
as well as the autobiographical practice relates to a present recollection of past events and
is, thus, impossible for an author to dissociate his personal view on the narrated facts and,
therefore, the author builds her narrative according to their interpretations of experience
in socio-cultural contexts.
Keywords: autobiography; memory; film analysis.

INTRODUÇÃO

Sentada em um aeroporto Marjane Satrapi rememora a eventos de sua infância,


primeiro vê a si mesma, enquanto criança, passar correndo diante de si, a câmera então
passa a acompanhar sua versão infantil enquanto ela abraça e conversa com uma tia
recém-chegada e ouvimos Marjane iniciar sua narração com as palavras: “Eu me lembro,

1
Mesa-redonda Memória e Resistência II.
2
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Póscom), da
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
313
naquela época levava uma vida tranqüila e sem problemas...”. É assim que começa o filme
Persépolis (2007).

Esta poderia ser apenas mais uma narrativa narrada por um personagem em
primeira pessoa se não chamasse atenção o fato de que a personagem Marjane Satrapi
possui o mesmo nome da co-diretora e roteirista do filme, em parceria com Vincent
Parronaud. A obra é baseada na graphic novel homônima, também escrita por Marjane e
Parronaud.

Em Persépolis, tanto no filme quanto nos quadrinhos, acompanhamos Marjane


desde a sua infância no Irã durante a revolução islâmica de 1979, seus anos de estudo em
Viena, sua volta ao Irã anos depois e sua ida para França em 1994. Nesse período, Marjane
convive com o novo e repressor regime de seu país, retratando os conflitos e dificuldades
passados por ela e sua família e é enviada para estudar em Viena durante o período da
guerra Irã-Iraque. Em Viena a autora/personagem rememora sua inquietação por estar
vivendo na tranqüilidade da Europa enquanto seus parentes estão em um país em guerra,
ao mesmo tempo em que narra as transformações pelas quais passou, seus
relacionamentos, decepções amorosas e o alheamento da cultura ocidental em relação à
cultura persa e a situação do Irã. A protagonista retorna ao seu país natal após um período
de dificuldades e do fim da guerra. De volta ao Irã ela lida com sua depressão ao mesmo
tempo em que volta a enfrentar a repressão do estado iraniano, experimenta um casamento
que não dá certo e vai para Paris quando se torna insustentável viver sob o duro regime
iraniano.

Não é apenas em Persépolis que Marjane traz relatos sobre a sua família ou a
situação do Irã. As histórias de suas vivências e as de seus parentes também são tema dos
seus trabalhos posteriores com graphic novels. Em Frango com ameixas (2008) ela narra
a história de um tio e em Bordados (2010) ela conta das conversas que aconteciam entre
as mulheres durante os almoços de sua família e que revelam não somente partes da
intimidade da vida da autora, mas também sobre a cultura, os costumes e os problemas
da sociedade iraniana. É importante ressaltar, entretanto, que está análise irá se ater ao
filme Persépolis. Antes de tratarmos diretamente do filme, falaremos um pouco sobre a
perspectiva teórico-analítica da poética do filme, que irá nortear nosso trabalho analítico.

314
A POÉTICA DO FILME

Praticamente toda peça artística gera expectativas em produtores, críticos e público.


Assim sendo, entendemos que, no cinema, os relatos biográficos e autobiográficos
possuem um determinado conjunto de efeitos que guia sua produção e apreciação, tanto
os realizadores como o público tem algum tipo de noção acerca do que o filme deve
suscitar ao longo da sua apreciação. Deste modo, a perspectiva teórico-analítica
denominada como poética do filme por Wilson Gomes (1996; 2004) encaixa bem com o
que se pretende alcançar nesta pesquisa através da análise fílmica, uma vez que ela se
concentra nos efeitos que uma peça artística visa suscitar em seus apreciadores.

Por poética Gomes considera: “[...] os programas ou projetos de formação ou


estruturação da obra de arte onde se inscrevem as intenções operativas dos produtores de
obra de arte, da música à literatura, da arquitetura às artes plásticas” (GOMES, 1996,
p.103). Deste modo, a poética é considerada como um programa operativo que o artista
propõe a cada obra, o projeto de obra a ser feito como o artista o tem em mente.

Em seu tratado, Aristóteles (2011) compreende que toda obra de arte possui uma
finalidade ou destinação3, ou seja, cada peça artística é produzida de modo a cumprir um
intento específico, de realizar algo que lhe é próprio e que está convocado em sua natureza
intrínseca.

Gomes (1996) afirma que a poética, portanto, deveria ser capaz de indicar aquilo
que é convocado por natureza em cada tipo de obra de arte. O autor entende que se uma
obra se realiza somente durante a sua apreciação, então aquilo que é próprio a cada obra
seria identificado como resultado ou efeito desta realização. Assim sendo, pode-se
considerar que todas as obras de arte existem para provocar efeitos específicos em seus
apreciadores.

Sob esta perspectiva, portanto, Gomes considera que o ideal da poética seria
entender “a produção – nas obras de narrativa ficcional e na representação dramática –
dos efeitos específicos de cada gênero de poesia sobre os seus fruidores” (GOMES, 1996,
p.109). Por produção o autor quer dizer que a poética se ocupa com os efeitos “da poesia
sobre os fruidores, mas tais efeitos tais efeitos devem ser considerados do ponto de vista
das estratégias de que lança a mão o poeta na realização da sua obra poética” (p. 109).

3
Possíveis traduções do termo grego dynamis.
315
Assim sendo, a poética visa estudar as estratégias de organização dos elementos da
composição artística que preveem e solicitam determinados efeitos, específicos para cada
gênero, que são construídos pelos realizadores. Deste modo, a obra de arte para o autor é
“um mecanismo de acionamento de efeitos através das tentativas, eliminações e escolhas
de que ela resulta” (GOMES, 1996, p.109). Enquanto programa teórico-metodológico, a
poética buscaria, portanto, entender o que o filme faz com seus espectadores a partir
daquilo que emerge da cooperação entre texto e apreciador. Deste modo, Gomes (2004)
entende que essa máquina de produção de efeitos funciona com três modos de
composição de efeitos que são convocados ao espectador: sensação, sentido e sentimento.
É justamente sobre essa produção de efeitos, em especial a de sentidos, que o trabalho irá
se debruçar, tentando demonstrar como o filme Persépolis utiliza os meios e modos da
linguagem do cinema para construir seu relato autobiográfico.

O PACTO AUTOBIOGRÁFICO

De acordo com Lejeune (2008, p. 15) “para que haja uma autobiografia (e, numa
perspectiva mais geral, literatura intima), é preciso que haja uma relação de identidade
entre o autor, o narrador e o personagem”. Na animação é o nome próprio de Marjane
Satrapi que estabelece essa relação entre as três instâncias citadas por Lejeune e para ele
o uso do nome próprio é uma das condições para a identificação de uma obra
autobiográfica “O que define a autobiografia para quem lê é, antes de tudo, um contrato
de identidade que é selado pelo nome próprio” (LEJEUNE, 2008, p.33). A afirmação
dessa identidade é o que, para Lejeune, constitui o que ele denomina como pacto
autobiográfico. De acordo com o autor os três elementos interagem da seguinte forma:
narrador e personagem são as figuras às quais remetem, no texto, o sujeito da enunciação
e o sujeito do enunciado. Neste ponto, a obra levanta uma importante questão por não se
tratar de um trabalho de autoria única e sim uma colaboração entre Marjane Satrapi e
Vincent Parronaud, seria possível classificá-lo como uma autobiografia, uma vez que a
visão de Vincent estaria também impregnada na obra.

316
Em uma entrevista ao site Twitchfilm4, publicada em dezembro de 2007, Vincent
comenta sobre como se dava a relação de trabalho entre ele e Marjane no processo de
produção do filme:

É meu papel não aparecer mais que ela – a história é dela (grifo do autor
da matéria) – mas eu me faço presente. [...] De um ponto de vista
técnico meu trabalho envolveu a decoração e os cenários do filme e
também os storyboards e os cortes.
Assim, pode-se perceber que, no caso específico de Persépolis, a presença de dois
autores parece não anular o caráter íntimo e pessoal da obra já que o co-autor indica não
interferir nos relatos de Marjane, permitindo que seja a história da autora, contada sob
seu ponto de vista, permaneça em foco.

A relação entre a autora e a personagem não se estabelece somente através do nome


em Persépolis, a maneira como Marjane é desenhada na animação também dá pistas desta
relação. Embora a animação invista em traços mais cartunescos e caricaturais a Marjane
animada conserva traços em comum com a Marjane real, conforme mostra a Figura 1,
principalmente o sinal ao lado do nariz, mas também pelo formato do rosto e a arrumação
do cabelo. Entretanto, não é a Marjane real que faz a voz da personagem, no filme sua
voz pertence à atriz Chiara Mastroianni5.

Para Lejeune isso não chega a ser um problema na firmação do pacto, na verdade o
autor afirma que “quanto mais o cineasta tende a se aproximar da realidade, mais sensível
fica, por vezes, o aspecto ficcional” (2008, p.228). Para Lejeune a presença em cena do
autor da obra fílmica contracenando com outros atores soaria falsa ao invés de mais
realista.

Após a narração inicial de Marjane a animação passa a exibir sua infância utilizando
uma paleta de cores diferente da sequência transcorrida no momento presente da
narrativa. As sequências no passado, que ocupam a maior parte da narrativa, são todas
em preto e branco enquanto que o presente diegético é mostrado em cores. A utilização
do preto e branco e das sombras no passado em contraste com o colorido do presente
contribui para imprimir um tom de reconstrução de um passado, que é impossível ser
lembrado na totalidade de seus detalhes, e, portanto, apresenta-se como uma memória

4
Disponível em: <http://twitchfilm.com/2007/12/persepolisinterview-with-vincent-paronnaud.html>.
Acesso em 13 jan. de 2014.
5
Coincidentemente, a mãe de Marjane é interpretada no filme por Catherine Deneuve, mãe da atriz na
vida real.
317
desgastada. Além disso, a presença do preto e branco nos cenários é utilizada para indicar
o estado de espírito da protagonista, mergulhando-a em ambientes sombrios e escuros nos
momentos de tristeza e tensão ou bastante claros nos momentos de felicidade.

O filme então mergulha no passado, acompanhando a infância e a juventude de


Marjane, retratando o seu amadurecimento frente ao período de revolução pelo qual
passava o Irã e a relação conflituosa de Marjane com seu país e sua cultura. Desta forma,
funciona como um texto regido por um pacto autobiográfico, em que o autor propõe ao
leitor um discurso sobre si. Esse é um discurso, segundo Lejeune, “na qual a resposta à
pergunta quem sou eu? Consiste em uma narrativa que diz como me tornei assim” (2008,
p.54)

O EU EM PERSÉPOLIS

Durante a obra os acontecimentos são sempre mostrados a partir do ponto de vista


da protagonista naquele determinado momento. Se na sua infância a história sobre a
ascensão da família do Xá Reza Pahlavi contada por seu pai é mostrada pela imaginação
da menina como um teatrinho de bonecos de papelão e toda a revolução é acompanhada
por ela com um viés e mistério e até ingenuidade, onde após ouvir sobre as torturas
perpetradas pelo governo resolve “brincar de torturar” com seus amigos. Até mesmo o
movimento e a aparência dos personagens se alteram dependendo de como Marjane os
percebe, evidenciando que a construção das imagens fílmicas também está sujeita à
subjetividade da autora/personagem.

Sendo assim, o filme trabalha para deixar o público imerso no universo emocional
da personagem/autora, através do modo como são construídas as imagens. Ao se dizer
apaixonada os carros e seus próprios passos começam a flutuar, a base de um corrimão
de escada remete a vários corações e quando seu namorado traga um cigarro é Marjane
quem expele a fumaça, representando a união do casal.

Essa imersão também se dá pela narração da personagem, sempre em primeira


pessoa, que explica, analisa e reflete os acontecimentos mostrados ampliando a janela de
percepção que se tem sobre os conflitos e transformações pelas quais ela passa. Em
determinado ponto o filme nos leva para dentro de sua mente para acompanhar suas
conversas com Deus até o momento em que ela literal e metaforicamente o expulsa de
sua vida.

318
A visão distanciada e ingênua dos problemas de seu país que ela tem enquanto
criança vão aos poucos se tornando mais presentes no cotidiano de Marjane como a prisão
de parentes e pessoas próximas, a falta de produtos nos mercados e até mesmo o acesso
à musica torna-se difícil diante das mudanças pelas quais o Irã passa, o que é mostrado
pela autora/personagem sob um viés de humor na cena em que ela vai comprar uma fita
de vendedores de rua que se comportam como traficantes ou quando ela é recriminada
por duas mulheres devido ao broche e a jaqueta que está usando.

As referências a objetos da cultura pop ocidental são constantes ao longo da obra,


desde menções a músicos como Michael Jackson e a banda Iron Maiden até a filmes como
Exterminador do Futuro (que seu marido assiste em dado momento) e Rocky III (ao
construir a montagem de seu “treinamento” pós-depressão ao som de Eye of The Tiger,
tema do filme) passando por um quadro do filme que reproduz a pintura expressionista
alemã O Grito de Munch.

Estes elementos contribuem na construção da identidade de Marjane e do universo


cultural com o qual ela se relaciona bem como para a percepção de seu deslocamento em
relação ao movimento em que se situa o Irã. Além disso, colaboram para explicitar a
natureza referencial do texto autobiográfico, pois, segundo Lejeune, a autobiografia se
propõe “a fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto e a se
submeter, portanto, a uma prova de verificação” (2008, p.36). Para o autor a autobiografia
não buscaria um “efeito de real”, mas a imagem do real.

O sentimento de deslocamento, entretanto, continua a acompanhar Marjane mesmo


quando ela é enviada para a Europa assim como sua dificuldade em assumir sua
nacionalidade perante a visão estereotipada que os europeus possuem da cultura persa.
Seu conflito fica marcado na cena em que a sombra de sua avó surge atrás da sua e ambas
dialogam, revelando o que ocorre no interior da personagem sem, nesse momento precisar
recorrer à narração em voz-over da personagem/autora. Marjane também explicita, dessa
vez com sua narração, o sentimento de culpa que lhe toma conta por estar segura em um
país europeu enquanto sua família vive o perigo da guerra entre Irã e Iraque. Sendo assim,
o filme não exibe intenção de romantizar ou atenuar a conduta autodestrutiva que ela
assume durante o final de sua estada em Viena e que a leva a um estado de depressão,
transmitido até pelo cenário quando a poltrona em que ela senta toma a forma de uma
lápide e enquanto a câmera se afasta e sai do apartamento vemos as janelas cujas divisões
mais parecem grades de uma prisão.

319
Apesar de todos os problemas e dramas vividos por Marjane, é possível notar que
a narrativa é permeada pelo humor e pela ironia crítica presente em seu discurso. Esses
momentos de humor podem ser identificados quando ela se vê maravilhada pela
quantidade de produtos nos supermercados de Viena ou a bem-humorada montagem que
mostra sua saída da depressão. Ao retratar a terapia da protagonista, vemos o seu
psicólogo simplesmente balançando a cabeça enquanto rabisca em um bloco de papel,
nos mostrando, de maneira irônica, que a personagem acredita que o tratamento não a
ajudou a melhorar. O humor, portanto, serve para contrapor e atenuar o peso do drama
que envolve a autora/personagem e também se revela como parte de sua personalidade e
de seu olhar sobre o mundo.

A personagem/autora também não deixa de exprimir sua opinião sobre os fatos


acontecidos no seu país durante os oito anos da guerra Irã-Iraque. Além de diálogos que
revelam a situação da nação, a irracionalidade da guerra e o desejo das potências
ocidentais em prolongar o conflito e enfraquecer os dois países, os fatos são ilustrados
pela sequência que mostra o enfrentamento das duas forças enquanto os soldados abatidos
caem na vala comum que os separa, reforçando ideias presentes no diálogo entre Marjane
e seu pai.

É possível, pois, perceber que toda a narrativa se constrói a partir das reflexões e
sentimentos da autora personagem enquanto ela lida com o seu sentimento de
inadequação, primeiramente em relação a sua própria terra natal e depois em relação a
um país estrangeiro, e com os acontecimentos que contribuíram para a formação de sua
identidade até o momento final da narrativa em que ela finalmente assume “venho do
Irã”, encerrando e explicando o questionamento de “como me tornei assim?” que Lejeune
afirma ser um componente do texto autobiográfico. Ao mesmo tempo, enquanto a
narrativa se encerra com o táxi de Marjane se distanciando, o filme sugere que a história
dela, uma vez que se trata de uma pessoa real, segue em frente.

MEMÓRIA COLETIVA

Na narrativa de Persépolis é possível identificar relatos de duas naturezas


diferentes. Um deles é o relato pessoal de Marjane Satrapi que revela suas experiências
particulares que contribuíram para a sua formação. A autora recorre à exposição do eu

320
passado e do eu presente para mostrar os eventos sobre a ótica que ela os via na época em
que aconteceram e como ela os vê no presente, avaliando as mudanças que lhe ocorreram.

A convivência com sua família é mostrada como uma vivência crucial para a
formação de seus valores, em especial sua avó, que lhe fala constantemente sobre
dignidade e integridade e como não se pode abandonar esses valores mesmo sob um
regime de repressão e medo como o do Irã. Seu tio Anouche também se mostra importante
no desenvolvimento de Marjane, ele lhe narra o sofrimento que passou enquanto preso
político. Além disso, trata das próprias experiências de contestação de Marjane, como as
discussões dela com professores na escola ainda em Teerã ou com o a falta de importância
que seus amigos em Viena dão aos conflitos em seu país, retratando-o como meros “jogos
de poder”.

Ao mesmo tempo Persépolis também remonta a vivências presentes na memória


coletiva da sociedade iraniana, como se Marjane estivesse nos fornecendo um testemunho
sobre tudo o que ela, sua família e o país como um todo passaram após a revolução
islâmica e a guerra Irã-Iraque.

Brian Roberts (2006) afirma que nenhum sujeito existe descolado de uma vivência
social e ao construir um relato sobre sua vida, deixa transparecer, consciente ou
inconscientemente, não apenas suas próprias memórias e experiências, mas elementos
que fazem parte e se inserem em um determinado contexto sócio-cultural. Assim sendo,
memórias individuais retratariam também partes da memória coletiva de um determinado
povo ou grupo social.

Nesses momentos em que o filme narra mais diretamente o contexto histórico e


social do país o discurso adquire um caráter predominante expositivo, como que parando
a narrativa por alguns instantes para explicar os acontecimentos ao público, dando-lhes
ciência dos problemas com os quais os cidadãos do Irã, e, consequentemente, Marjane e
sua família, foram submetidos.

As experiências narradas pela autora certamente encontram ecos em vivencias de


outros cidadãos iranianos do mesmo período e refletem eventos que ficaram na história
do país e na memória de seus cidadãos. Percebe-se, portanto, a intenção do filme em
mostrar não apenas como os eventos no Irã serviram para moldar a personalidade e os
valores da protagonista, mas também tornar conhecido aquilo que uma parcela dos
cidadãos iranianos experimentou após a revolução que levou Khomeini ao poder. Assim

321
sendo, o relato de Marjane, embora pessoal e individual, contribui também para a
percepção de um contexto social mais amplo, que afetou uma ampla gama de pessoas e
que, de algum modo, reside na memória de seu país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou mostrar como o filme Persépolis se insere no pacto


autobiográfico proposto por Philippe Lejeune e como os elementos fílmicos se articulam
para construir a natureza memorial do filme de modo a transmitir o pensamento, a
subjetividade e as emoções experimentadas por Marjane Satrapi durante o período de sua
vida na qual a narrativa se localiza.

Marjane, ao se inserir na obra como autora, narradora e protagonista do filme


reforça o pacto autobiográfico e permite que sua história seja percebida como parte do
seu processo de construção de identidade e reconciliação com seu passado. Ao mesmo
tempo, a narrativa também reconstrói todas as mudanças na nação iraniana do final da
década de 1970 ao início dos anos 1990, mostrando os problemas e confrontos causados
pela instauração de um regime teocrático repressor e que como consequência obriga os
seus cidadãos a abandonar suas convicções, trocando a consciência pela sensação de
segurança.

O filme também serve para levantar questões importantes acerca da construção de


uma obra autobiográfica, como a presença de um co-autor, algo que neste filme não torna
inviável a construção de um relato íntimo, mas é um tema que certamente merece ser mais
discutido em trabalhos posteriores.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Edipro. 2011.

GOMES, Wilson. Estratégias de produção de encanto: O Alcance Contemporâneo da Poética de


Aristóteles. In : Textos de Cultura e Comunicação. V.35, p. 99-125. 1996.

______. La Poética Del Cine y la Cuestión Del Método En El Análisis Fílmico. Significação,
Curitiba, v. 21, n. 1, p. 85-106. 2004.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

ROBERTS, Brian. Biographical Research. Buckingham: Open University Press. 2002.

322
SATRAPI, Marjane. Frango com Ameixas. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.

______. Bordados. São Paulo: Companhia das Letras. 2010.

323
SUJEITOS EM RETORNO EM SERGIO KOKIS E DANY
LAFERRIÈRE1

SUBJECTS IN RETURN IN SERGIO KOKIS AND DANY


LAFERRIÈRE

Luciano Passos Moraes2

Resumo: Na contemporaneidade, inúmeras obras literárias focalizam a fragmentação do


sujeito, a viagem, a errância, o exílio, movimentos ligados diretamente à problemática da
identidade e da alteridade; nas chamadas “literaturas migrantes” nas Américas, tais
aspectos são abordados com frequência. Nossa pesquisa pretende analisar duas obras em
que o foco recai sobre o retorno ao país natal do exilado, no âmbito das literaturas
migrantes no Quebec: Errances, de Sergio Kokis, e L’énigme du retour, de Dany
Laferrière. Embora o Canadá seja o contexto de produção das obras, o espaço ficcional
abordado em cada uma delas é o país de origem das personagens – e dos próprios autores
– o Brasil e o Haiti, respectivamente. A questão autobiográfica entra em jogo em ambos
os romances, fragilizando fronteiras entre ficção e verdade: ambas apresentam como
personagens principais seres migrantes (aliás, ambos escritores), cada um empreendendo
o deslocamento em direção ao local de origem, retornando em momento político
importante. O primeiro, exilado durante a ditadura militar, volta ao Brasil logo após a
anistia, e encontra um país ainda perturbado pelas atrocidades do regime totalitário e uma
sociedade em processo de reaprendizado da vida em liberdade. O segundo reencontra seu
Haiti natal arruinado pelo regime dos Duvalier, após o qual a tão sonhada democracia
ainda está longe da realidade, a miséria se fazendo presente em toda parte. Tanto Kokis
quanto Laferrière afirmam, em textos autobiográficos, utilizarem-se de experiências
vividas como matéria para suas narrativas ficcionais, sobretudo no plano temático (os
regimes totalitários que os levaram ao exílio são aludidos em alguns romances, e
personagens em pleno processo de migração são frequentes). A partir da leitura desses
dois romances, alguns questionamentos podem ser levantados: de que modo o sujeito
errante se (re)constrói quando do retorno ao país natal e quais as implicações desse
retorno em seu processo de reconfiguração identitária? Em que medida o estranhamento
com relação ao contexto encontrado “em casa” é também o estranhamento com relação a
um “si mesmo” transformado? A partir dessas e de outras questões, observaremos a
trajetória dessas personagens em relação às imagens borradas que fazem de seu país natal
idealizado, verificando que apresentam diversos pontos de convergência entre si e com a
trajetória de seus autores.
Palavras-chave: migrância, identidade, exílio, retorno.

1
Mesa-redonda Desafios da (auto)ficção.
2
Doutor em Estudos da Literatura/Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

324
Abstract: To these days, a great number of literary works have focused on the
fragmentation of the contemporary subject, specially through the voyage, errance and
exile, movements that denounce the problem of identity and alterity; in the context of
“migrant literatures” in the Americas, these aspects are recurrent. This research aims at
analyzing two novels in which the focus is directed towards the return to the homeland
of the exiled subject, in the context of migrant literatures in Quebec: Errances, by Sergio
Kokis, and L’énigme du retour, by Dany Laferrière. Even though they have Canada as
the production context, the fictional space explored in each novel is the country of origin
of the characters, Brazil and Haiti. The autobiographical aspect is also in question, which
weakens the borders between fiction and truth: both present as main characters migrant
subjects (both writers, by the way), each following their ways towards the homeland
during important historical moments. The first, exiled during the military dictatorship,
returns to Brazil right after amnesty is announced and finds a country still disturbed by
the atrocities of the totalitarian regime and a society trying to learn how live in freedom.
The second finds Haiti ruined by Duvalier’s dictatorship, after which the democracy
remains a faraway dream, where misery is everywhere. Both Kokis and Laferrière affirm
in autobiographical texts that they take real-life experiences as literary material for their
fictional novels, especially in the thematic field (the dictatorships that led them to exile
are mentioned in several novels, and migrant subjects are also frequent). Through the
analysis of these two novels, some questions come inevitably, especially one: how does
the migrant subject (re)construct himself when returning to the origins and what are the
impacts of this journey in his identities? With this in mind, we intend to observe the
trajectory of these characters also considering the blurred images they have of their
idealized homelands, verifying that they present several intersectional points.
Keywords: migration, identity, exile, return

As literaturas americanas contemporâneas têm oferecido amplo campo de reflexão


acerca dos temas do exílio e da migrância, seja por meio da reescrita de mitos fundadores,
impulsionando a reescrita do próprio discurso historiográfico sob o viés da ficção, seja
denunciando processos muito atuais de redescoberta das relações interculturais e das
identidades, cada vez mais misturadas com a intensificação do deslocamento físico e
psicológico do sujeito. É esperado, portanto, que tais mudanças levem em conta a
migrância e a centralização no sujeito em narrativas contemporâneas: é a emergência das
“literaturas migrantes”. A esse respeito, cabe destacar duas propostas críticas: (1) Simon
Harel pensa a literatura migrante como espaço de “revelação do cruzamento das culturas”
– em cuja escrita a migração ocorre em múltiplos sentidos –, e (2) Anthony Phelps
considera “escrita migrante” uma expressão paradoxal, uma vez que os termos “escrita”
e “migrante” apontam, respectivamente, para o fixo e para o móvel, como um tipo de jogo
de “adivinhação: o que é, o que é?” (PORTO; TORRES, 2012, p. 228).

O exílio é frequentemente uma das molas propulsoras dos conflitos identitários


presentes nas escritas da memória. As implicações do trânsito empreendido por sujeitos

325
exilados são de ordem íntima e contundente, fundando novas formas de imaginário e,
consequentemente, configuram novos espaços para a emergência das escritas migrantes.
Para Pierre Ouellet (2013, p. 146), o exílio é “a nova condição de nosso imaginário, [...]
espaço aberto dos olhares e das palavras para onde convergem as verdadeiras
comunidades em sua mais profunda e mais íntima movência ou transumância”3.

A figura do exilado (assim como a do estrangeiro em geral) passa a ser entendida


de modo a evitar a fixação de traços, como propõe Simon Harel, para quem a experiência
do “tornar-se” estrangeiro ultrapassa a mera desterritorialização. Ele diz não acreditar nos
discursos construídos a partir de uma visão romântica, que fazem do estrangeiro um ser
apátrido cujo único destino seria o exílio: “tornar-se estrangeiro é, em resumo, aceitar a
deiscência que funda a identidade” (HAREL, 1992, p. 11). A noção de diferença não
pode, portanto, ser reduzida a mera configuração espacial, segundo a qual alteridade é
sinônimo de distanciamento físico; ao contrário, é a proximidade do estrangeiro que
constitui o fator desestabilizador.

Em L’Écologie du réel, Pierre Nepveu já se propunha a pensar as escritas migrantes


enquanto categoria significativa do sistema literário quebequense, uma vez que no início
da década de 1980 observou-se um crescimento na difusão de obras que abordaram a
temática do exílio e a consequente hibridação cultural. Entra em jogo nesse pensamento
o componente autobiográfico, já que a maior parte dos escritores “vindos de longe” utiliza
sua experiência pessoal como matéria de sua literatura. Essa particularidade deve-se,
segundo Nepveu, a dois fatos importantes: o primeiro é a definição do imaginário
quebequense desde os anos 1960 “sob o signo do exílio” psíquico ou fictício, da memória
do país ausente, que associa assim a literatura à pluralidade e ao cosmopolitismo; o
segundo fato importante, que mais nos interessa aqui, é que nos anos 1980, passa-se a
privilegiar o desenraizamento, a mestiçagem, bem como o retorno do narrativo, das
referências autobiográficas, da autorrepresentação – características por excelência da
escrita migrante (NEPVEU, 1988, p. 200-201).

Sergio Kokis, afinado com essa tendência, insere-se criticamente ao pensar o


estatuto do escritor migrante nas sociedades contemporâneas. Ele se refere aos escritores
migrantes como “novos bárbaros”, que passam a utilizar cada vez melhor a língua do

3
A tradução das citações em língua estrangeira são de minha responsabilidade, salvo quando indicado
nas referências.
326
colonizador, imigram e se instalam introduzindo ao local de chegada “a maneira de ser
de seus mundos respectivos, suas histórias e sua sensualidade”. No plano temático, Kokis
(1999, p. 135) pondera que a reescrita de mitos é empreendida no lugar de mera nostalgia:
“o tema constante dessas novas literaturas é o mundo estilhaçado e a ruptura dos mitos
tal como os vivem de forma cotidiana esses escritores vindos de longe”.

Para Maximilien Laroche (1999, p. 22), um escritor vindo de longe é


necessariamente aquele que compara, que “faz a ponte entre aqui e lá, entre outrora e
hoje”. Com isso, seus personagens trazem sempre o olhar do Outro com relação à
sociedade em que se estabelecem, ampliando a reflexão acerca da identidade inacabada,
provocando nova compreensão de seus valores e projeções. Para ele, a maior contribuição
do escritor vindo de longe é incitar nos leitores a releitura de si mesmos a partir de um
olhar de fora, crítico e provocador, que muitas vezes acaba por proporcionar um mergulho
no mais profundo de si até então convenientemente escondido, secreto. Os valores
obscurecidos por suas convenções sociais ressurgem sob esse outro olhar
desestabilizador.

Dany Laferrière e Sergio Kokis destacam-se entre os escritores migrantes


estabelecidos no Quebec, e suas experiências pessoais de exilados constituem matéria de
criação; tendo ambos deixado seus países em momentos históricos conturbados, as
questões de escrita autobiográfica são fundamentais à leitura de suas obras.

No primeiro caso, trata-se de um escritor de origem haitiana que deixa seu país em
1976 para viver em Montreal, na província do Quebec, onde se consolida como ficcionista
em 1985. A época da partida é marcada pelo regime do ditador Jean-Claude Duvalier, e
as consequências da ditadura já eram conhecidas de Laferrière, uma vez que desde sua
infância seu próprio pai vivia em exílio. A condição de exilado, a partida de Dany para o
Canadá e as relações entre o novo mundo lá encontrado e seu país de origem oferecem
matéria para diversas de suas obras.

Em entrevista por ocasião do lançamento do livro L’énigme du retour, o próprio


Dany Laferrière, acerca do tema da migrância, frequente em sua obra, afirma que

Todo ser humano normal é estrangeiro até em sua família, quiçá em seu
país, e não se para de aprender, de desaprender, para se adaptar, de
reaprender, porque se retornou ao ponto de partida: a viagem e o retorno
são os dois movimentos que os humanos fazem incessantemente em
suas vidas. E aqueles que não os fazem tornam-se pessoas de caracteres
um pouco limitados às vezes, eles têm medo de tudo o que é estrangeiro,
de tudo o que é novo, mas mover-se pelo planeta, não aceitar as regras

327
do jogo, não reconhecê-las, ou tentar se adaptar, é uma condição de fato
humana (2009b).
Sergio Kokis, escritor e pintor nascido no Rio de Janeiro e estabelecido em
Montreal em 1969, revela-se no meio literário em 1994. O contexto de saída de Sergio
Kokis não é muito diferente do de Laferrière: o Brasil acabara de viver um golpe militar
que instaurou uma ditadura que duraria até 1974. O processo de migração serviu de
matéria para a ficção de Kokis, que abordou em vários de seus romances os anos de
chumbo, além de ter concebido inúmeras personagens viajantes (sob diversas nuances,
como o exilado, o vagabundo, o marginal, a prostituta, por exemplo), seres errantes que
enfrentam processos de fragilização e recomposição de suas identidades.

Na narrativa autobiográfica L’amour du lointain, Kokis (2012, p. 270) afirma estar


em exílio não só fisicamente, mas sobretudo artisticamente: “meu exílio sempre teve para
mim um sentido análogo ao de uma estadia num mundo imaginário da arte e das aventuras
oníricas; só que eu o considero confortável e em consonância com minha natureza”. Vale
lembrar que escreve seus romances em língua francesa – portanto, a língua do Outro, do
país de acolhida, o que oferece igualmente amplo campo de investigação.

Duas obras em particular tomam por eixo central a experiência do retorno do


exilado: de um lado, em Errances (1996), Kokis apresenta a trajetória da personagem
Boris Nikto, intelectual exilado durante a ditadura militar que deve retornar ao Brasil após
receber a notícia da anistia; de outro, em L’énigme du retour (2009), Laferrière narra uma
viagem de retorno ao Haiti de um alter-ego do autor, personagem que também vive
exilado no Canadá francófono e retorna a Porto Príncipe após a morte do pai.

As aproximações possíveis entre as duas obras vão além da questão do retorno. São
pontos comuns entre as narrativas o recurso à figura do pai e à da família como ligações
importantes das personagens com suas origens. Além disso, a arte literária é aludida sob
diversos enfoques: a profissão de escritor, a relação com a língua de escrita, a leitura
enquanto parte integrante da constituição identitária das personagens e a construção de
subtextos que remetem a obras fundadoras dos questionamentos acerca das identidades.

Ambos os heróis transitam entre personagens que disparam reflexões profundas


acerca da diáspora, momentos em que questionam a validade da experiência do retorno.
Em Errances, o exílio é explorado em toda sua complexidade: Boris evidencia a tensão
entre usufruir da posição de sucesso que conquistara e o retorno, que fora tão esperado
nos primeiros anos em exílio. As razões para o retorno e mesmo a validade desse

328
movimento permeiam a narrativa, a partir de diálogos com outras personagens que o
desafiam a se redescobrir. Em L’énigme du retour, embora a narrativa seja mais poética
e concisa, tais reflexões também se fazem presentes por meio do contato com o Outro,
que representa sua origem, seu passado e, portanto, sua identidade referencial. Esse Outro
apresenta-se fragmentado e se projeta a partir de diversas máscaras, seja nos membros da
família ou em simples desconhecidos que são lidos e interpretados por ele de modo a
revelar sua face oculta através da memória e do imaginário com relação ao lugar de
origem.

O recurso à literatura é estratégia para que a tensão entre “eu” e “o Outro” tenha
lugar. O componente metaliterário presente cria espaço para essas reflexões, por vezes
através de subtextos que fazem eco de maneira mais ou menos evidente. Em Dany
Laferrière, este processo vem por meio de uma fluidez poética nos relatos, sobretudo pela
evocação da obra fundadora Diário de um retorno ao país natal, de Aimé Césaire,
publicado pela primeira vez em Paris em 1939. A epígrafe de L’énigme du retour já
anuncia o pensamento do poeta da Martinica que se fará presente nos relatos: é o primeiro
verso “No fim da madrugada...” (CÉSAIRE, 2012, p. 9) que assinala sua presença junto
ao narrador, que carrega consigo o livro de Césaire e o relê constantemente, fazendo ecoar
alguns de seus versos na visão que constrói ao longo da viagem ao Haiti. Texto
emblemático dos escritos sobre a negritude, o poema de Césaire ressurge na narrativa
poética de Laferrière com a acentuação de outros de seus pontos de reflexão, para além
da questão étnica. O narrador aproxima a experiência sentimental expressa no texto de
Césaire às sensações vividas no retorno, principalmente como forma de denunciar e tentar
compreender a devastação deixada como legado pela ditadura de Duvalier.

Para exemplificar esse eco de Césaire, observemos a 39ª estrofe do Diário de um


retorno ao país natal:

Partir. Meu coração estalava de generosidades enfáticas. Partir... eu


voltaria liso e jovem a este país meu e diria a este país cujo limo entra
na composição da minha carne: “Andei por muito tempo errante e volto
para a hediondez desertada das vossas chagas”.
Eu voltaria a esse país meu e lhe diria: “Abraçai-me sem temor... E se
não sei senão falar, é por vós que falarei.”
E eu lhe diria ainda:
“Minha boca será a boca das desgraças que não têm boca, minha voz, a
liberdade daquelas que se abatem no calabouço do desespero.”
E ao voltar diria a mim mesmo:

329
“E sobretudo meu corpo assim como minha alma, livrai-vos de cruzar
os braços na atitude estéril do espectador, porque a vida não é um
espetáculo, um mar de dores não é um proscênio e um homem que grita
não é um urso que dança...” (2012, p. 29, grifo nosso).
Esta passagem denuncia o caráter ambíguo do retorno: de um lado, a memória
evoca o sentimento negativo mantido por aquele que parte em um contexto conturbado,
de outro, outra face da memória acessa, ao mesmo tempo, certa ternura em direção às
origens que se intensifica após a partida, como o corpo abraçado por esse “país meu”. É
importante levar em consideração que, neste ponto do poema, o retorno é ainda hipotético,
marcado pelo uso do modo condicional (no original), aqui traduzido com o emprego do
futuro do pretérito.

Paralelamente, vejamos o seguinte trecho de L’énigme du retour:

O ditador exige estar no centro de nossa vida


e o que eu fiz de melhor na minha
foi tê-lo tirado de minha existência.
Confesso que para isso me foi necessário jogar
às vezes a criança com a água do banho.
Eu então parti e depois voltei. As coisas não se moveram nem um
pouco. Indo ver minha mãe esta noite, atravessei o mercado. As
luminárias acesas me dão a impressão de caminhar em um sonho. Uma
garotinha, em um vestidinho de jersey rosa, dorme nos braços da mãe
que contabiliza a receita do dia. Esta ternura que permite aceitar todo o
resto já me esgotou e não tardará a esgotar meu sobrinho. (2009a, p.
138).
Se o retorno de Césaire inicia-se hipotético, marcado no poema pelo uso do modo
condicional, traduzido para o português com o emprego do futuro do pretérito (voltaria,
veria, diria), de outro lado, o retorno do narrador de Laferrière é narrado no pretérito
perfeito ou do presente do indicativo. O acesso à memória é feito por vezes com certa
doçura, reinventando vivências da infância, outras vezes sob o olhar melancólico do
exilado em regresso. O emprego desses tempos verbais aproxima o tempo da leitura ao
da diegese, indicando que algumas das ações já aconteceram, como se se tratasse da
realização do que, em Césaire, era apenas hipótese ou profecia.

Em Errances, a literatura está igualmente presente, sendo uma primeira evidência


a profissão de escritor. De maneira similar a L’énigme du retour, o ofício da escrita
literária permeia as reflexões, uma vez que ambos os heróis são escritores. Na obra de
Kokis, entretanto, a questão linguística é um dos componentes postos em jogo, já que o
herói, tal como seu autor, escreve em língua estrangeira e traz essa problemática em várias

330
passagens – algumas das quais são narradas ironicamente com vistas a ressignificar o
lugar do escritor e as questões de autoria, sem deixar de reavaliar os valores que permeiam
a história literária nos lugares por onde passa.

Também há o recurso a outros textos que dialogam com a narrativa principal, como
a alusão à obra do escritor inglês de origem ucraniana Joseph Conrad. Além disso, um
elemento recorrente em diversas obras de Kokis é o debate em torno da filosofia e da
crítica literária. Em Errances, particularmente, há diversas cenas narradas com ironia, em
que Boris discute com seus companheiros sobre política, trabalho intelectual, literatura.
Nessa empreitada, cabe destacar as reflexões sobre o exílio, posição “entre” que permite
ao herói fazer explodirem discussões de uma “agressividade juvenil”, como em “Desde
todos esses anos, ele estava habituado ao exterior indiferente que ele tinha tão
penosamente construído para não se fundir nessa Europa estrangeira” (KOKIS, 1996, p.
151). Há muitos outros momentos aparentemente banais, cotidianos, mas nos quais subjaz
a migrância como tema, ou como razão para explicar este ou aquele comportamento das
personagens.

Quanto ao retorno, desde o início do texto o narrador deixa explícitas as reações


adversas do herói: é o momento em que todas as reflexões em torno da condição de
estrangeiro tomam força. Logo nas primeiras páginas o narrador evoca o sentimento de
incerteza:

Sua sombra se prolongava para a frente e para trás entre os postes, e


esse movimento de pêndulo lhe trouxe lembranças que ele tinha durante
muito tempo conseguido esconder sob sua carcaça de estrangeiro. [...]
Desde o tempo em que ele vivia só com suas lembranças, arranjando-
as a sua maneira para conferir certa coerência a sua vida, ele não estava
mais certo de nada (KOKIS, 1996, p. 15).
Nas obras dos dois autores aqui em questão, é incontornável pensar nas estratégias
de retomada de experiências pessoais vividas como matéria de criação ficcional. Na
atualidade, as questões em torno da autonarração estão em voga, sendo fragilizados
sucessivamente os limites entre ficção e realidade. Tanto Kokis quanto Laferrière
escreveram textos declaradamente autobiográficos, nos quais deixam transparente a
influência de suas histórias de vida naquelas de suas personagens. Além disso, diversas
entrevistas e artigos estão disponíveis, a partir dos quais não resta dúvida de que o
componente biográfico está espalhado no conjunto de suas ficções. Em entrevista ao
jornal La Presse em 2010, por exemplo, Kokis (apud LAPOINTE, 2010) deixa pistas das
relações entre ficção e biografia: “Nós somos todos romancistas de nossa vida. Nossa

331
identidade é um produto de ficção, e cada um constrói sua narrativa segundo os
acontecimentos”.

Tanto Kokis quanto Laferrière põem em xeque algumas bases das teorias acerca
das escritas confessionais, sobretudo o segundo, que emprega a palavra “romance” junto
aos títulos de suas obras mas traz como narrador e personagem principal um escritor com
traços idênticos à história de vida do autor. Para além das condições estabelecidas por
Philippe Lejeune para se considerar uma obra como autobiográfica, esses autores
embaralham as instâncias narrador, personagem e autor a partir de novas definições de
uma identidade de exilado.

Seriam Errances e L’énigme du retour exemplos do que Doubrovsky cunhou como


autoficção? Poderíamos responder afirmativamente se levássemos em consideração a
entrada em jogo do ato de remoer, ruminar, reelaborar as obsessões do escritor, repeti-
las, já que, para ele, “escolher escrever, com ou sem razão, a partir de sua própria vida, é
exprimir suas obsessões” (DOUBROVSKY , 2005, p. 187), em consonância portanto
com a fala de Kokis quanto ao sermos todos “romancistas de nossa vida”, e com
Laferrière (2000, p. 15) ao afirmar ser, o tempo todo, si mesmo, vivo: “É meu amigo Walt
Whitman quem diz, a propósito de seu livro Feuilles d’herbe que aquele que toca esse
livro toca um homem. É assim que eu escrevo. É assim que eu vivo. Eu escrevo como eu
vivo”.

Ambos evocam o sentimento existencial de todo aquele que escreve sobre si, o
impulso que o conduz ao ato de repassar pelos pontos principais nos quais se constrói a
identidade do sujeito. Trata-se, portanto, de mais do que mera rememoração, o processo
de reelaboração passa inevitavelmente pela memória, é claro, mas em se tratando de
literatura, com a inclusão do componente ficcional, abre-se espaço para que se pense o
uso poético do vivido, fazendo coexistir o factual e o inventado, para além de estratégias
de categorização.

Segundo Jean-Louis Jeannelle, quando analisa o gênero Memórias, o autor é


mandatário de um “poder testemunhal” a partir de experiências que vão além das questões
individuais vividas. Trata-se dos “valores que emanam de um percurso”, pois a autoridade
delegada ao autor “justifica o ato de autonarração da parte do memorialista e coloca os

332
leitores em situação de tomar conta da herança que ele lhes confia” (JEANNELLE,
2012)4.

Fica clara, segundo essa perspectiva, uma dupla articulação de fatores: de um lado,
o individualismo é aparentemente o fator que impulsiona tais narrativas, já que o escritor
empreende uma autoanálise profunda da qual resultam relatos centrados no eu (sua
experiência, suas influências, seus caminhos muito pessoais, mesmo que por vezes ele se
esconda sob diversas máscaras); de outro, ao focalizar obras associadas à migrância,
verifica-se com frequência a abordagem de experiências coletivas, sobretudo na
constituição de comunidades culturais que compartilham alguns dos componentes
inicialmente tidos como individuais.

Em Kokis e em Laferrière o processo de recepção do movimento migratório


empreendido via literatura revela o problema da identificação, constituindo um paradoxo:
entrar no espaço autobiográfico significa, por um lado, mergulhar no mais profundo de
si, individualizando o discurso; por outro, evoca o sentimento de identificação com uma
coletividade que apresenta traços compartilhados de não-pertencimento, de engajamento,
de busca pela expressão da voz sufocada das minorias étnicas ou culturais.

Se a história tradicional tende mesmo a “afastar o passado do presente”, nos termos


de Paul Ricoeur (1997, p. 249), não só as novas narrativas historiográficas tentam
atualizar a noção de tempo para aproximá-los, mas – e sobretudo – as narrativas migrantes
tentam dar conta das relações entre o passado histórico e o presente vivido no
deslocamento do sujeito. A arte literária tem essa dupla capacidade, de atualizar o
discurso historiográfico via ficção e de tensionar os limites entre real e ficcional. Ou, nas
palavras de Pierre Nepveu, o poder da literatura é o de

inscrever-se não na metade exata [entre a favor e contra], mas numa


certa complexidade, articulando posições adversas - e o romance em
particular pode fazê-lo. Há certamente uma relação com o identitário
que é a relação com uma língua, com um lugar, mas ao mesmo tempo
a literatura se inscreve na tensão e na abertura, e ela não se fixa no
dogmatismo. Seus equívocos fazem justiça a toda a riqueza
efervescente de nossa realidade. A literatura tem essa capacidade de
regenerar nossa relação com o real, sem que ela sirva necessariamente
a um objetivo preciso (NEPVEU, 2010, p. 17).

4
Texto de conferência apresentada na Universidade Federal Fluminense em 4 de junho de 2012,
intitulada “Posturas de si e nomes de gênero”.
333
Os limites da verdade, já postos em dúvida na reavaliação da história (e da
literatura) a partir da emergência das pequenas narrativas, estão também em xeque
quando se entra no campo das escritas de si, sobretudo no âmbito das literaturas
migrantes. Ouellette-Michalska aproxima as duas fragilizações da noção de verdade, a
histórica e a literária, situando a autoficção em um espaço intermediário:

A autoficção, não completamente narrativa nem completamente


romance, se insere em uma época de suspensão da crença histórica. É
uma espécie de imagem congelada, o tempo que os bondes da História
partem novamente como outrora, ou de outra maneira, se por acaso eles
estão ainda em funcionamento (OUELLETTE-MICHALSKA, 2007, p.
72).
Nesse sentido, para além da problematização conceitual acerca do espaço
autobiográfico, não restam dúvidas de que Kokis e Laferrière tangenciam esse campo de
forma complexa e desafiam as barreiras impostas pela crítica. Nada mais natural,
considerando que cada um desses escritores “vindos de longe” traz na bagagem uma
multiplicidade de universos, compostos de experiências individuais ou coletivas, das
quais se servem livremente para compor representações da sociedade contemporânea
através do recurso à rememoração e à fabulação. Sem deixar de tocar as feridas profundas
deixadas pelos regimes totalitários de que se originam, destacam-se na corrente de
exilados que se apropriam da literatura para imprimir sua existência através de suas
leituras do mundo de que fazem parte.

REFERÊNCIAS

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Tradução de Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: EdUSP, 2012.

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334
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RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus,
1997.

335
O ARQUIVO PESSOAL DE ARIOVALDO MATOS: “LUGAR DE
MEMÓRIA” E RESISTÊNCIA1

PERSONNEL ARCHIVE ARIOVALDO MATOS: “PLACE


OF MEMORY” AND RESISTANCE

Mabel Meira Mota2

Rosa Borges dos Santos3

Resumo: O presente trabalho se tece como desdobramento da dissertação de mestrado


Da trama do arquivo à trama detetivesca de Irani ou As Interrogações, de Ariovaldo
Matos: leitura filológica do arquivo e edição do texto (MOTA, 2012), produzida e
defendida no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade
Federal da Bahia, sob a orientação da professora Dra. Rosa Borges. Na referida
dissertação, apresentou-se o inventário de parte dos materiais que constituíam o arquivo
pessoal do jornalista e dramaturgo baiano, Ariovaldo Matos, bem como uma leitura
filológica deste. Percebeu-se, ainda, que o arquivamento do eu nesse espaço físico
assemelha-se às narrativas (auto)biográficas no que diz respeito à construção
performática de um sujeito. Nesta perspectiva, o presente trabalho busca ler criticamente
o arquivamento do escritor baiano, apresentando as operações e técnicas acionadas por
ele para renuir materiais e discursos diversos, e o “desejo do biógrafo” que emana de sua
prática e que possibilita lê-lo como espaço (auto)biográfico.
Palavras-chave: arquivo pessoal; memória; (auto)biografia; Ariovaldo Matos.

Abstract: This work is woven as a development of the Master’s thesis Da trama do


arquivo à trama detetivesca de Irani ou As Interrogações, de Ariovaldo Matos: leitura
filológica do arquivo e edição do texto (MOTA, 2012), produced and defended as part of
the Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura of the Universidade Federal da
Bahia, under the guidance of Prof. Rosa Borges. In the referred thesis it was presented
the inventory of the journalist and playwright Ariovaldo Matos, as well as a philological
reading of it. It was noticed also that the archiving of his personal documents in this
physical space resembles the autobiographies regarding the performative construction of
a subject. In this perspective, this paper discusses the bahian writer process of archiving,
showing the operations and techniques used by him to gather materials and several
speeches, and the “desire of the biographer” that emanates from his practice and enables
reading it as an autobiographic space.

1
Mesa-redonda Arquivo: lugar de memória.
2
Doutora em Literatura e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
3
Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora associada do
Instituto de Letras da UFBA.
336
Key-words: personnel archive; memory; autobiography; Ariovaldo Matos.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A princípio, deve-se dizer que este trabalho se tece como desdobramento da


dissertação de mestrado Da trama do arquivo à trama detetivesca de Irani ou As
Interrogações, de Ariovaldo Matos: leitura filológica do arquivo e edição do texto
(MOTA, 2012), produzida e defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação da professora
Dra. Rosa Borges. Na referida dissertação, apresentou-se o inventário de parte dos
materiais que constituíam o arquivo pessoal do jornalista e dramaturgo baiano, Ariovaldo
Matos (APAM), bem como uma leitura filológica deste.

O APAM, criado a partir da tensão oriunda do desaparecimento e da tentativa de


construção de um legado, possui uma lógica própria de construção que reflete uma
“intenção autobiográfica”. Percebe-se neste, um “movimento de subjetivação” no qual o
titular do arquivo se encena para si mesmo e para os outros, num inventar-se e apagar-se
constantes, cujo principal intuito é controlar sua imagem de futuras representações. O
arquivamento do eu nesse espaço físico assemelha-se, portanto, a outras formas narrativas
que tem como especificidade um eu que se anuncia via escrita, como as narrativas
autobiográficas. Tal correlação é possível, conforme Leonor Arfuch (2009), somente
devido a uma disposição de forma e de sentido que não repõe uma ordem prévia da vida,
já que se trata de uma ordem construída performaticamente no próprio trabalho da
narração. Nesta perspectiva, pretende-se ler criticamente o arquivamento do escritor
baiano, apresentando as operações e técnicas acionadas por ele para agregar materiais e
discursos diversos, e o “desejo do biógrafo” que emana de sua prática e que possibilita
lê-lo como espaço (auto)biográfico.

PROBLEMÁTICA DO ARQUIVO PESSOAL DE ARIOVALDO MATOS (APAM)

É hábito de alguns escritores colecionarem os traços da tensão que perpassam seu


processo criativo, bem como documentos que atestem seu reconhecimento no âmbito
literário. Preservam-se da destruição e do esquecimento, não apenas o resultado final do
seu labor, o texto publicado, mas os rascunhos, notas, esboços, provas corrigidas e outros

337
documentos de processo, bem como a documentação extratextual que os cerca. O espaço
escolhido para armazenar e salvaguardar materiais tão diversos é o arquivo pessoal4.

A prática de arquivar manuscritos remonta ao Iluminismo, momento em que o texto


definitivo foi investido de garantias jurídicas possibilitando a valorização dos
manuscritos que lhe deram nascimento. No entanto, as relações entre os escritores e seus
manuscritos são controversas: muitos foram os escritores que zelaram por seus textos,
salvando-os “do tempo e do exílio”, transformando-os em arquivos pessoais, a exemplo
de Flaubert e Victor Hugo; e aqueles que não gostariam de mostrar aos leitores “a forma
ultrapassada”, deixando “à posteridade somente a imagem perfeita de si”, concretizada
no texto publicado, como Chateaubriand (GRÉSILLON, 2007, p.123-124).

O APAM foi o espaço selecionado pelo escritor baiano Ariovaldo Matos para a
(re)construção da narrativa de sua vida a partir de sua própria perspectiva. Os documentos
que o compõe foram convenientemente reunidos no seu gabinete particular, lugar onde
poucos foram autorizados a entrar. Conforme Fred Matos (2010), em entrevista concedida
a esta pesquisadora:

Ari tinha, no gabinete dele, uma espécie de móvel com prateleiras


onde guardava muitas pastas, mas era território proibido, nem
mesmo o cinzeiro ele gostava que qualquer pessoa limpasse. A
mesa era uma bagunça de papéis e livros empilhados, mas, dizia
ele, que era uma bagunça organizada e que qualquer tentativa de
ordem por outra pessoa era intolerável (MATOS, 2010).
Com o falecimento de Ariovaldo Matos, em 1988, e a mudança da família para um
apartamento menor, parte da documentação disposta no gabinete do autor se perdeu.
Sobre isso, continua o filho do autor:

Depois que meu pai morreu tivemos que vender a casa, na qual
moravam, na época, além do Ari, minha mãe e Zé. Compramos
então um apartamento porque não tínhamos como manter a casa,
e no apartamento não cabia todas as coisas (MATOS, 2010).
Após a referida mudança, parte desta documentação foi entregue aos cuidados do
amigo Guido Guerra, a quem Ariovaldo Matos muito estimava e costumava compartilhar
suas ideias e discutir seus textos. Com a morte de Guido Guerra, em 2006, o material
reunido por Celi Guerra, sua viúva, foi entregue aos cuidados de José Ricardo Malaquias

4
Partindo do que afirma Bellotto (1991, p.171), que “a conceituação de arquivos pessoais está embutida na
própria definição geral de arquivos privados, quando se afirma tratar-se de papéis produzidos por
entidades ou pessoas físicas de direito privado [...]”, decidiu-se utilizar a nomeação arquivo pessoal,
para o conjunto de documentos legados por Ariovaldo Matos, uma vez que esta melhor lhes representa.
338
Matos, filho de Ariovaldo Matos. Este, por sua vez, deixou tal documentação aos
cuidados de Sérgio Costa5, que os armazenou em seu escritório. No início de 2011, após
o contato com os demais filhos do autor, esse material foi cedido para a pesquisa da
ETTC, aos cuidados desta pesquisadora que preparou a documentação para as
intervenções arquivísticas.

O arquivo enquanto “lugar de memória”, na acepção de Pierre Nora (1993), define-


se como lugar “com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional,
simultaneamente”; que tem como objetivo a cristalização de uma memória e o reforço da
identidade individual e coletiva. O arquivo de Ariovaldo Matos pode ser visto nesta
perspectiva por se tratar de um espaço que congrega materiais diversos e expõe de
diferentes modos a vida do escritor, como: guias de recolhimento do INSS, que indicam
os saldos bancários do escritor; sua carteira de trabalho, que informa sobre sua vida
profissional; recortes de jornais sobre casamento dos filhos e nascimento dos netos; dentre
outros elementos que mostram o escritor para além de sua produção, pois apontam para
o privado, para a história de vida, para os valores, para as posições e para a maneira como
se inserira no mundo social. Através do arquivamento de materiais, que vão de
documentos pessoais a manuscritos, Ariovaldo Matos demonstra ser o arquivamento do
eu algo além de uma obrigatoriedade de guardar comprovantes de sua atuação nos
diversos âmbitos, bem como permite inferir seus objetivos ao constituir seu arquivo:
evitar que seja esquecido e reforçar sua identidade individual que, por sua vez, se estende
a uma identidade coletiva, pois aponta para o indivíduo construído em meio às redes
sociais em que ele atuou.

Além de lugar privilegiado para apreender memórias pessoais, dando ênfase à vida
social e a condição de intelectual de um indivíduo, o arquivo não se dissocia de uma
coletividade, que surge perpassada pela subjetividade do indivíduo que se arquiva. No
APAM acredita-se que a compulsão por guardar papéis aponta para uma dupla
funcionalidade: a de suplementar, uma memória daquilo que foi vivido por Ariovaldo
Matos, tendo em vista a demarcação do seu lugar na história; ao mesmo tempo, em que
suplementa a memória cultural e intelectual da sociedade baiana. Por esse motivo, seu
arquivo pessoal é a expressão direta do cotidiano e do contexto em que foi instituído,
funcionando como via de acesso à mentalidade de uma época.

5
De acordo com Fred Matos [informação verbal], Sérgio Costa é um amigo da família.
339
Reinaldo Marques, em O arquivamento do escritor (2003), afirma que o
estabelecimento de relações literárias e afinidades intelectuais, em alguns casos, pode
mobilizar uma ação compartilhada na criação e na manutenção de arquivos. Acredita-se
que o APAM não tenha sido uma exceção quanto a este aspecto, pois se percebem casos
em que é possível entrever uma “alimentação” do arquivo por terceiros. Consta neste
arquivo, um envelope pardo, contendo a anotação manuscrita em tinta azul: “Papai
/Gazeta do Povo/ A Notícia/ Jornal de Notícias”, indicativo da manutenção do arquivo
por parte dos seus filhos, que enviavam a ele alguns excetos de jornais. Outro caso que
chama atenção, diz respeito a um envelope contendo apenas recortes de jornais que
circularam após a morte do escritor Ariovaldo Matos, dentre os quais se destacam aqueles
referentes a depoimentos de amigos, políticos e familiares; e homenagens póstumas.

A existência de recortes de jornais posteriores à morte do titula do arquivo,


juntamente com o itinerário percorrido pelo arquivo até o presente momento, nos remete
para a problemática da violabilidade do princípio da proveniência, quando os herdeiros
ou responsáveis pelos arquivos tentam “organizar” os documentos, não obedecendo ao
contexto de produção e os motivos que levaram aqueles documentos a serem arquivados
pelo titular. Nesse viés, é possível propor o seguinte questionamento: A quantas mãos foi
construído o APAM? Até que ponto é Ariovaldo Matos que dá o tom da narrativa de sua
vida? E quando ela passa a ser contada/arquivada por outros?

De acordo com André Porto Âncona Lopez (2003), o ato de arquivar ocorre com a
finalidade de provar atividades realizadas. Assim, os documentos arquivísticos não
podem ser analisados no vazio, mas contextualizados, pois “as atividades do produtor são
expressas por documentos [que] mantêm com [estas] uma relação de indicialidade”
(LOPEZ, 2003, p.73). Por esse motivo, no que tange aos arquivos pessoais, é
imprescindível o respeito à individualidade do conjunto [documental], sem misturá-los à
documentos de outras origens6, no sentido de manter a singularidade orgânica, ao refletir
atividades, dinâmica e critérios da instância responsável pela acumulação” (HEYMANN,
2005, p.47).

6
Considerando que os arquivos pessoais, permanentes por natureza, devem ter seu fechamento com a morte
do titular, pressupõe-se que os acréscimos posteriores tendem a desvirtuar a lógica do arquivo quando
não inseridos de maneira criteriosa. O acréscimo de novos documentos recolhidos das mais diversas
origens é possível, mas somente após as devidas etapas de classificação e descrição tomando como
base o produtor dos documentos e a finalidade do arquivamento. Esses acréscimos devem ser inseridos
como complementos da organização primária, uma vez que seu conteúdo informativo preenchem
lacunas, ao mesmo tempo em que mantém viva parte da memória do titular, suplementando-a.
340
No sentido de identificar as estratégias e operações utilizadas por Ariovaldo Matos
para dar a ler sua história de vida, toma-se o APAM como um depositário de rastros no
sentido que lhes atribui Paul Ricoeur “a significância de um passado findo que, no
entanto, permanece preservado em seus vestígios” (RICOUER, 1997, p. 320-321). Dessa
forma, entende-se que o arquivo apresenta-se como ponto de emergência do qual emanam
diversas escolhas possibilitadas pelo comportamento ético e político do escritor que deixa
nele seus vestígios.

ARQUIVO COMO NARRATIVA (AUTO)BIOGRÁFICA

Preocupado com a organização da sua vida profissional e intelectual, Ariovaldo


Matos empenhou-se em arquivar recortes de jornais, originais datiloscritos,
correspondências, documentos burocráticos, fotografias, dentre outros itens que
testemunham aspectos de sua vida, formação intelectual e abrangência da obra. O APAM
é, portanto, “produto de um desejo de perpetuar intencionalmente uma certa imagem, um
(propósito) concebido que, na verdade, se destina à monumentalização do próprio
indivíduo [...]” (COOK, 1998, p.131).

Conforme Artiéres (1998, p.11), o arquivamento do eu é “uma prática de construção


de si mesmo e de resistência” que se produz de maneiras diversas. O autor aponta para
um “movimento de subjetivação”, no qual o titular do arquivo se encena para si mesmo
e para os outros, num inventar-se e apagar-se constantes cujo principal intuito é controlar
sua imagem de futuras representações. Aquele que se arquiva estabelece, portanto, o tom
da narrativa de sua vida, pois dá a conhecer as fontes e referências que a suplementam,
enquanto materializa seu capital emocional e intelectual.

Nessa direção, pode-se afirma que

está presente no arquivamento do escritor uma clara intenção


autobiográfica, voltada especialmente para os aspectos
intelectuais e culturais de sua trajetória de vida. Ao recorrer a
múltiplas e incessantes práticas de arquivo, ele parece manifestar
o desejo de distanciar-se de si mesmo, tornando-se um
personagem – o autor. [...] Arquivando, o escritor deseja escrever
o livro da própria vida, da sua formação intelectual; quer
testemunhar, se insurgir contra a ordem das coisas, afirmando o
valor cultural dos arquivos (MARQUES, 2003, 149).
O arquivamento do eu não é, portanto, imparcial. Ao arquivar-se, o indivíduo
projeta-se no arquivamento como testemunha do que acredita ser. Expõe,
341
intencionalmente, as imagens que estabelece de si e aquelas pelas quais pretende ser
lembrado, numa tentativa, ainda, de controlar a maneira como isso acontecerá. Por esse
motivo, tal prática enuncia “um trabalho calculado em função da posteridade” (REIS,
1998, p. 15), funcionando como uma extensão da consciência e da personalidade cultural
e intelectual do indivíduo que se arquiva, como meio de permanecer vivo no fluir do
tempo e da história. Ele cria seu epitáfio, apresentando a imagem que deseja deixar para
a posteridade.

No APAM, percebe-se que, consciente ou inconscientemente, Ariovaldo Matos


deixa entrever um perfil multifacetado. Acumulou documentos referentes aos diversos
campos em que atuou, cuja massa documental é comprobatória. O perfil do jornalista é
ocultado pela gama de documentos de cunho administrativo e pelos documentos de cunho
literário ali dispostos. Ressalta-se neste, a figura do empresário competente e do escritor
que fora consagrado pela crítica local e nacional, com obras consolidadas em linguagens
diversas. Os excetos de jornais que noticiam suas obras, certificados de prêmios,
comprovantes de edições, contrato de locação de teatro e um recibo de registro da peça A
escolha e de admissão do autor, na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), em
1968; são documentos que atestam a preocupação de Ariovaldo Matos em ser visto como
um homem ligado às artes. Além disto, os recortes de jornais que veiculam suas ideias e
também a recepção da obra pelo público leitor/expectador, contribuindo para o
entendimento sobre sua criação literária e teatral.

Para arquivar-se, faz-se, então, necessário estabelecer critérios e acionar


determinadas práticas de arquivamento. Através destas “práticas de arquivamento”, na
acepção de Artiéres (1998), manifesta-se a valoração de determinados itens em
detrimento de outros, salientando “seu grau de importância, a sua origem, a sua função,
a data de sua produção” (ARTIÉRES, 1998, p.14), dentre outros aspectos.

Apesar do pouco rigor na prática arquivística, Ariovaldo Matos agrupou e


classificou seu arquivo em envelopes e pastas considerando, para isso, a espécie do
material ou um determinado tema. Os documentos do APAM encontravam-se,
inicialmente, acondicionados em quatro caixas com separações internas através de pastas
e envelopes, que indicam um arranjo prévio estabelecido pelo escritor. Estes, por sua vez,
são identificados, em sua maioria, através de etiquetas e/ou inscrições manuscritas
indicativas dos itens que estavam armazenados. Consta, por exemplo, um envelope pardo
contendo artigos de jornais referentes a Arthur Matos, pai do autor.

342
Dentre as práticas de arquivamento utilizadas por Ariovaldo Matos, no que tange a
ordenação e classificação dos materiais, destaca-se o tratamento dado aos recortes de
jornais pelo cuidado com sua disponibilização e conservação. As informações sobre suas
produções ou sobre temas e pessoas que lhe interessavam foram selecionadas, recortadas
e coladas, em geral, em papel ofício, no qual constava, em sua maioria: nome do jornal,
data completa, indicação de seção, autor e página7. Em alguns casos, quando se tratava
de publicações sobre uma mesma obra, estas eram reunidas e coladas num mesmo papel.
Diferentemente do tratamento dado estes materiais, os manuscritos de Ariovaldo Matos
encontravam-se armazenados em uma única caixa, sem ordenamento aparente.
Apresentam-se, em geral, fragmentários e não identificados.

Para Ulpiano Bezerra de Meneses (1998), os objetos que constituem arquivos e


coleções, refletem a subjetividade do colecionador e, por esse motivo, informam para
além de suas propriedades físicas, alcançando a vida, a obra e o tempo em que o
colecionador viveu. Desse modo, as estratégias de organização utilizadas por Ariovaldo
Matos facultam imaginar uma lógica própria que torna possível entrever sua relação com
seus “guardados”, pondo em destaque o valor funcional ou utilitário dos mesmos, ou seja,
a serventia destes8. Isso é percebido no APAM por meio de alguns recortes de jornais
guardados sobre o nascimento dos netos, que remetem para o aspecto afetivo do
arquivamento, em que o escritor preserva parte da memória familiar; bem como de
documentos encontrados em envelope pardo, com inscrição manuscrita em tinta azul, “O
Momento”, no qual constam dois números do jornal O Momento 9, jornal do Partido
Comunista Baiano: o primeiro, do ano 1950, traz artigo do autor, na coluna “Mural da
cidade”, intitulado “Enquanto segunda-feira não vem”; o segundo exemplar, de 1988,
edição comemorativa que buscou resgatar a experiência e a herança deixada pelo Partido
Comunista na Bahia, traz o artigo “Fracasso numa missão em Itabuna”, assinado por
Ariovaldo Matos. Estes itens são representativos da ativa atuação de Ariovaldo Matos,
como jornalista ligado ao Partido Comunista.

7
Em alguns casos, utilizou-se carimbo com nomes dos jornais e contendo apenas as entradas data e assunto.
8
Benjamin (1985, p. 228) afirma que a criação de uma coleção está sujeita a uma relação do colecionador
com suas coisas que muitas vezes “não põem em destaque o seu valor funcional ou utilitário, a sua
serventia”. Por esse motivo há a necessidade de relacionar os objetos colecionados com informações
sobre a vida do colecionador para se tentar perceber o valor de uso dado a estes elementos.
9
Foram encontrados nos números do jornal O Momento, além de artigos de Ariovaldo Matos, artigos
assinados por Jorge Amado, Guido Guerra e Levi Vasconcelos.
343
Chamam à atenção também no APAM alguns documentos que mostram a rede de
relações estabelecidas entre Ariovaldo Matos e escritores que viveram sob as mesmas
condições políticas, econômicas, culturais e artísticas que ele. Das relações estabelecidas
pelo escritor baiano, cita-se sua amizade com o escritor Jorge Amado, com quem
comungara, ainda, a militância política. Consta no arquivo do autor uma carta enviada
por Jorge Amado – escritor já consagrado pela crítica nacional –, quando da censura à
peça O ringue, em 1975. Nesta, o já reconhecido escritor baiano se mostra solidário aos
protestos de Ariovaldo Matos, pela liberdade de expressão e direito de criação, contra o
abuso imposto pelos órgãos de censura ao escritor “cuja obra, nascida da realidade de
vida baiana, aumenta de importância a cada dia” (AMADO, 1975).

A percepção desse indivíduo, construído também a partir das redes sociais em que
esteve envolvido encontram eco em Pierre Bordieu (2006, P. 185)

não podemos compreender uma trajetória [...] sem que tenhamos


previamente construído os estados sucessivos do campo no qual
ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que
uniram o agente considerado [...] ao conjunto dos outros agentes
envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo
espaço dos possíveis.
A massa documental armazenada pelo escritor permite ler as diferentes atividades
exercidas em sua vida e a necessidade de mantê-las interligadas num mesmo espaço. O
APAM caracteriza-se, em maior número, por documentos que ressaltam as atividades
profissionais e empresariais empreendidas por Ariovaldo Matos ao longo de sua vida.
Trata-se de duas caixas, contento pastas e envelopes, dentre os quais se destaca uma pasta
contendo cinquenta e seis (56) documentos referentes às atividades exercidas pelo autor
na Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (ADEMI).
Trata-se de cópias de anteprojetos de leis, boletins da Câmara Brasileira da Indústria da
Construção, relatórios de reuniões realizadas na empresa, cópia de nota oficial do
Sindicato da Indústria de Construção de Estradas, relatórios do Banco Nacional para o
Desenvolvimento Econômico (BNDE), pautas de trabalho do XXV Encontro Nacional
da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), circulares do Sindicato da
Indústria da Construção Civil do Município do Rio de Janeiro, pronunciamentos de
engenheiros acerca dos trabalhos desenvolvidos no Encontro Nacional da Câmara
Brasileira da Construção, realizado em 1980, em Salvador. Há, ainda, recortes de jornais
que trazem informações referentes à construção civil, desenvolvimento urbano e

344
economia, temas estes ligados as atividades desenvolvidas pela ADEMI, da qual o
escritor foi membro.

Em A auto/biografia como (mal de) arquivo, Leonor Arfuch (2009), a partir de


Derrida (2001), reelabora o conceito de arquivo conciliando alguns de seus aspectos
singulares – como a possibilidade de reunir elementos variados e uma temporalidade
disjuntiva –, com o “desejo do biógrafo” que se manifesta na narrativa da própria
vivência. Tal pensamento encontra eco em Phillipe Artiéres (1998), para quem “o
arquivamento do eu é uma prática plural e incessante”.

Para Arfuch, a coleção das memórias em espaços físicos se assemelham, em maior


ou menor grau, a outras formas narrativas que tem como especificidade um eu que se
anuncia via escrita. A correlação entre arquivo ou coleção e narrativas auto/biográficas
somente é possível devido a uma disposição de forma e de sentido que “depende
exclusivamente da trama [...] não repõe uma ordem prévia da vida, já que se trata de uma
ordem construída performaticamente, no próprio trabalho da narração” (ARFUCH, 2009,
p.373).

É possível, então, pensar o APAM enquanto narrativa auto/biográfica, uma vez que
muitos dos registros armazenados permitem reconstruir parte da história de vida de
Ariovaldo Matos. Estes documentos, por sua vez, não permitem encerrar uma cronologia
harmônica dos fatos que compõem a trajetória de vida do escritor baiano, nem
determinam uma sucessão linear de eventos ou manifestam uma coerência entre estes. O
arquivo, enquanto narrativa de (re)construção de si, expressa o tempo e a vida em que foi
erigido, atendendo às regras fixadas pelas circunstâncias do momento e do contexto em
que o sujeito arquivante se encontra inserido. Como a narração, o arquivo é um construto
social10.

Leonor Arfuch (2009) ainda esclarece que a demarcação dos eventos que compõem
uma narrativa, tanto num relato autobiográfico como num arquivo pessoal literário, é
entrecortada pelo esquecimento e por silêncios, denunciando que “os rastros são
frequentemente fragmentários e a parte somente adquirem sentido frente a uma totalidade
hipotética, ainda que inalcançável” (ARFUCH, 2009, p. 374). Acerca do APAM, mesmo

10
De acordo com Marques (2000, p. 35) faz-se necessário desnaturalizar e desconstruir “a intenção que
totalizou um arquivo, e desvelando seu caráter de universo fragmentário, de artifício, de construção
social, numa atitude típica da pós-modernidade, que desconfia do que se presume natural, da verdade
absoluta”.
345
contendo informações de eventos variados, ainda assim, não se consegue abarcar a vida
de Ariovaldo Matos em sua totalidade. Tal fato pode ser comprovado pela lacuna
existente acerca de sua produção dramatúrgica, representada no arquivo por apenas dois
fragmentos de textos.

Um aspecto relevante acerca dos documentos de arquivo, diz respeito ao caráter


real ou fictício dos registros. Diferentemente da maioria das narrativas auto/biográficas,
o arquivo, apesar de sustentar-se em algumas técnicas e procedimentos próprios das
narrativas de vida, evidencia sua especificidade: as informações disponibilizadas nestes
espaços têm o caráter de prova, permitindo, muitas vezes, autenticar a veracidade dos
inúmeros registros. No APAM, encontram-se, em geral, elementos que permeiam a
existência de Ariovaldo Matos, como comprovantes de sua atuação em diferentes
âmbitos. Contudo, este espaço não se estabelece como réplica de sua vida, mas como
fragmentos que, apesar de constituí-la, necessitam ser relacionados para que esta seja
melhor compreendida.

Para refletir acerca da veracidade e da autenticidade dos registros encontrados no


APAM, recorre-se às categorias propostas por Le Goff (2003): documento e monumento.
O primeiro funciona como prova, como confirmação; enquanto o segundo tem a função
de legar, de transmitir a memória, de ampliar-lhe o alcance, de imortalizá-la. No entanto,
“o documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao
futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias” (LE
GOFF, 2003, p. 538). Nessa esteira, acredita-se que muitos dos registros encontrados no
APAM estão aptos a serem enquadrados na categoria documento-monumento, na medida
em que compõem o legado de Ariovaldo Matos, que se esforçou para guardar uma
imagem duradoura de si, a partir do lugar único que ocupou no mundo.

Contudo, há riscos implícitos em acreditar que todos os registros preservados em


arquivos são provas fidedignas, principalmente quando há manipulação do arquivo por
terceiros, como no caso do APAM. Le Goff (2003, p.537-538) nos diz que:

[...] O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado


de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da
época, da sociedade que o produziam, mas também das épocas
sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido,
durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo
silêncio.

346
A forma como o documento é disposto no arquivo não é aleatória, casual, expõe o
comportamento ético e político de quem o organiza (MOREIRA, 2008, p. 3). Ao tratar
da “experiência biográfica”, Jacques Ravel salienta que uma biografia, assim como um
arquivo pessoal, “pode ser relida [o] como um conjunto de tentativas, de escolhas, de
tomadas de posição diante da incerteza. Ela não é mais pensável apenas sob a forma da
necessidade [...], mas como um campo de possibilidades entre as quais o ator histórico
teve que escolher” (RAVEL, 1998, p.38).

Torna-se inevitável, nesse prisma, uma referência ao arquivo enquanto “morada da


censura”: lugar cuja construção é perpassada pelo poder de uma autoridade que convive
simultaneamente com o desejo de conservação e de destruição. Essa pulsão de destruição
é denominada por Jacques Derrida (2001) de “pulsão de morte”. Impulsionado pelo “mal
de arquivo”, aquele que se arquiva trabalha contra seu próprio arquivamento, rasurando-
o. Daí, o caráter inacabado e lacunar do arquivo, que torna impossível a recuperação da
memória do indivíduo em sua totalidade, conforme também ponderou Ângela de Castro
Gomes (1998, p. 125), em Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos
privados. Para a autora, o arquivo nem sempre pode revelar seu produtor de forma
“verdadeira”, uma vez que ele não reflete um sujeito completo e real, mas fragmentos de
um “eu”.

Além da pulsão interna que institui e configura um arquivo, este é perpassado


também por pressões externas que, muitas vezes, fazem com que a escolha dos
documentos a serem arquivados não pertença apenas ao instituidor do arquivo. No
APAM, observa-se que muitos documentos estão dispersos nas mãos de familiares,
amigos, editores, encenadores e em algumas instituições. Tal situação remete à
problemática da interpretação discutida por Antoine Compagnon (2010, p. 81), em O
demônio da teoria, para quem toda “interpretação é contextual”:

A obra vive a sua vida. Aliás, a significação total de uma obra não
pode ser definida simplesmente nos termos de sua significação
para o autor e seus contemporâneos (a primeira recepção), mas
deve, de preferência, ser descrita como o produto de uma
acumulação, isto é, a história de suas interpretações pelos leitores,
até o presente.
Pensando no APAM e nas possibilidades de interpretações do mesmo, percebe-se
que o sentido dado à narrativa de vida proposta por Ariovaldo Matos, ali representada,
supera os limites temporais e espaciais. A cada leitura, a cada descoberta de relações entre
os documentos, a construção do arquivo pode ser ressignificada e atualizada permitindo
347
uma “fusão de horizontes [...] que preserva o passado no presente” (COMPAGNON,
2010, p. 63).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguindo os vestígios deixados por Ariovaldo Matos, tem-se buscado ler o seu
arquivo, tomando como base o que propõe Fausto Colombo (1991): o arquivo como
itinerário. Desse modo, o estudo do arquivo privado do escritor baiano parte,
primeiramente, do itinerário criado pelo escritor na organização do arquivo, passando ao
traçado de um novo percurso de leitura, criado a partir da inserção de outras narrativas,
de outros vestígios arqueológicos buscados em outros arquivos.

A leitura do arquivo ora apresentada, foi perpassada pelos anseios do pesquisador


filólogo, editor crítico, que olha para o arquivo privado do autor não apenas como uma
“representação de sua personalidade”, mas como uma fonte inesgotável de elementos que
possibilitam analisar o processo de produção, transmissão e recepção dos textos, tarefas
fundamentais para a proposição de projetos de edição da obra de Ariovaldo Matos.

Através dos documentos reunidos no APAM, torna-se possível a constituição de


dossiês, no sentido que lhes atribui Almuth Grésillon (2007, p.150): “conjunto constituído
pelos documentos escritos que podem ser atribuídos a posteriori a um projeto de escritura
determinado, cujo fato de resultar ou não num texto publicado importa pouco”. A
constituição de dossiês que reúnam documentação textual e paratextual, como o dossiê
do texto teatral A Escolha ou O Desembestado, que possibilita “interrogar as práticas de
escrita e o seu fazer intertextual ou interdiscursivo, exibindo a relação [...] entre o texto
do escritor em processo e as coisas lidas, sabidas, ouvidas, vistas e entendidas de uma
cultura de época” (BALDWIN, 2010, p.8-9). O APAM, portanto, oferece uma
heterogeneidade de materiais, abrindo espaço para o diálogo, onde cada documento
chama o outro, onda as séries interagem através de ligações infinitas.

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349
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350
LITERATURA E MUSEOLOGIA: UM ENFOQUE
INTERDISCIPLINAR1

LITERATURE AND MUSEOLOGY: AN INTERDISCIPLINARY


APPROACH

Márcio Flávio Torres Pimenta2

Velha fantasia deste colunista – e digo fantasia porque


continua dormindo no porão da irrealidade – é a criação
de um museu de literatura. Temos museus de arte,
história, ciências naturais, carpologia, caça e pesca,
anatomia, patologia, imprensa, folclore, teatro, imagens
e sons, moedas, armas, índio, república... de literatura
não temos.
(Carlos Drummond de Andrade)

Resumo: O Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais


(AEM/UFMG) é um lugar de memória privilegiado constituído de arquivo/ museu/
biblioteca reunindo documentos, objetos, livros e outros itens dos seguintes escritores:
Abgar Renault, Carlos Herculano Lopes, Cyro dos Anjos, Fernando Sabino, Frei Betto,
Henriqueta Lisboa, José Maria Cançado, Lúcia Machado de Almeida, Murilo Rubião,
Octavio Dias Leite, Oswaldo França Junior e Wander Piroli, além das Coleções Especiais
que integram o AEM: Lélia Coelho Frota (Coleção Alexandre Eulálio), Ana Haterly,
Valmiki Vilela Guimarães, Francisco Aníbal Machado Gontijo (Coleção Aníbal
Machado), Ângelo Oswaldo de Araújo Santos (Coleção José Oswaldo de Araújo), UFMG
(Coleção Genevieve Naylor), além das coleções Achilles Vivacqua, Adão Ventura,
Leopoldo da Silva Pereira, Paulo Emílio Rubião e Maria Stella Libânio Christo. O Acervo
propicia aos seus visitantes e pesquisadores acadêmicos um amplo leque de
possibilidades contemplativas e investigativas. Fruto da recriação do ambiente de
trabalho dos escritores cujos arquivos foram doados pelos seus familiares desde 1989 até
os nossos dias, tem cumprido no decorrer do tempo o seu papel de um espaço
museográfico de alto valor simbólico para a história literária e cultural de Minas Gerais
e do País. Dada à sua própria característica cenográfica, é de fato um espaço biográfico,
que vem alcançando, nos seus, quase 25 anos de existência, uma função mais dinâmica,
em que os elementos que o compõem, não possuam um aspecto meramente expositivo,
mas que incitam a pesquisa, a reflexão e a crítica. De certa maneira, o Acervo traz a
possibilidade de se produzir narrativas, uma vez que, de acordo com Walter Benjamin é
terapêutico esse exercício do literal para o figurativo. Este trabalho tem, portanto, a
finalidade de realizar um enfoque interdisciplinar da literatura com a museologia, ao
discutir a constituição desse espaço genuinamente biográfico com os estudos da
1
Mesa-redonda Arquivo: lugar de memória.
2
Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Secretário do Centro
de Estudos Literários e Culturais da Faculdade de Letras da UFMG, órgão responsável pelo Acervo de
Escritores Mineiros.
351
subjetividade. A proposta se inscreve no debate sobre os processos de subjetivação por
meio dos estudos literários privilegiando o ponto de vista da leitura literária e crítica
considerando a cenografia.
Palavras-chave: espaço biográfico, arquivo literário, museu, performance, literatura.

Abstract: The Acervo de Escritores Mineiros da UFMG (AEM/UFMG) is a place of


privileged memory consisting archival / museum / gathering documents, objects, books
and other library items from the following writers: Abgar Renault, Carlos Herculano
Lopes, Cyro dos Anjos, Fernando Sabino, Frei Betto, Henriqueta Lisboa, José Maria
Cançado, Lúcia Machado de Almeida, Murilo Rubião, Octavio Dias Leite, Oswaldo
França Junior and Wander Piroli, apart from Special Collections that comprise the AEM:
Lelia Coelho Frota (Alexandre Eulalio Collection), Ana Haterly, Valmiki Vilela
Guimarães, Francisco Anibal Machado Gontijo (Anibal Machado Collection), Angelo
Oswaldo de Araújo Santos (José Oswaldo de Araújo Collection), UFMG (Collection
Genevieve Naylor), in addition to Collections Achilles Vivacqua, Adão Ventura,
Leopoldo da Silva Pereira, Paulo Emilio Rubião and Maria Stella Libanio Christo. The
AEM offers its visitors and academic researchers a wide range of contemplative and
investigative possibilities. Fruit of the recreation of the working environment of the
writers whose archives were donated by his family since 1989 until today, has fulfilled
over time the role of a museological space of symbolic value to the literary and cultural
history of Minas Gerais and the country. Given to its own scenographic feature is indeed
a biographical space, which has achieved, in their almost 25 years of existence, a more
dynamic role, where the elements that compose it, not including a purely expository
aspect but that incite research, reflection and criticism. In a way, the AEM brings the
possibility of producing narratives, since, according to Walter Benjamin is therapeutic
exercise of this literal to the figurative. This study therefore aims to carry out an
interdisciplinary approach to literature and museology, to discuss the constitution of this
space with genuinely biographical studies of subjectivity. The proposal is the debate
about the processes of subjectivation through literary studies emphasizing the point of
view of literary reading and critical considering the scenography.
Keywords: biographical space, literary archive, museum, performance, literature.

Nos últimos tempos a consulta aos fundos documentais nos museus literários
motivou pesquisadores das áreas de Literatura e História a estabelecerem hábito frequente
de coleta de dados. Os papéis do arquivista, bibliotecário e museólogo estão sendo mais
exigidos nas instituições afins, consequentemente, a produção intelectual vem crescendo
cada vez mais no país e os acervos literários vêm se transformando em verdadeiros
laboratórios de pesquisa documental, não só no campo literário como também no campo
histórico.

A primeira iniciativa oficial no sentido de preservação do patrimônio histórico e


artístico brasileiro configurou-se com a criação do Projeto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – SPHAN – por Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de

352
Andrade, em 1936, quando este último foi designado diretor da instituição durante a
gestão de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde no governo Vargas (1930-
1945). O SPHAN conceituou como patrimônio a ser preservado “o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país cuja conservação seja de interesse público, quer por
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (LEMOS, 2004, p. 42-43). Nesse
mesmo sentido, em Minas, na década de 1960, figuras como o poeta Affonso Ávila,
Francisco Iglesias, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Berenice Menegale e outros,
também se empenharam na captação de recursos para as primeiras providências a serem
tomadas para realização do tombamento dos monumentos/ documentos e igrejas do
Barroco Mineiro já em condições bastante precárias.

Os trabalhos de Rodrigo Melo e Mário de Andrade, no âmbito nacional, e o do


grupo mineiro, entretanto, não contemplaram com a especificidade necessária a
organização e preservação de acervos e arquivos literários, visto que a orientação teórica
a que estavam vinculados tratava de preservar, sobretudo, imóveis públicos e particulares
que, do ponto de vista da história ou da arte, fossem de interesse nacional. E, acervos e
arquivos literários dizem respeito a documentos de ordem privada, que adquirem valor
memorialístico mediante seus titulares, configurando um novo objeto de pesquisa,
anteriormente pouco explorado, e que exige novas orientações teóricas, cujas reflexões,
de modo geral, estão contempladas através da crítica genética, dos estudos culturais e da
crítica biográfica.

A crítica genética configura-se numa disciplina que se propõe a refletir sobre o


processo de criação dos escritores através do estudo de seus manuscritos, sem, no entanto,
ter a pretensão de desvendá-lo, buscando, antes, transformar esse processo em um valor.
O primeiro grupo de pesquisadores a trabalhar com essas novas proposições surgiu na
França, em 1968, com o objetivo de organizar os manuscritos do poeta alemão Heinrich
Heine, adquiridos pela Biblioteca Nacional de Paris. Os estudos culturais, por sua vez,
interagem em favor da produção de novos discursos acerca dos objetos culturais que nos
rodeiam. Surgidos na Inglaterra, no pós-guerra, expandiram-se largamente, chegando ao
Brasil na década de 1970. Seu corpo conceitual é tão amplo quanto a sua pretensão como
projeto sócio-político, todavia, parece unânime caracterizá-lo como um campo
interdisciplinar que procura fazer convergir conhecimentos em favor da compreensão de
relações entre a cultura contemporânea e a sociedade: “Os Estudos Culturais não

353
configuram uma ‘disciplina’, mas uma área onde diferentes disciplinas interagem,
visando o estudo de aspectos culturais da sociedade” (HALL apud ESCOSTEGUY, 1998,
p. 88). Já a crítica biográfica se propõe a considerar uma articulação cada vez mais ampla
entre obra e vida, considerando a produção documental do escritor como uma
possibilidade de discurso, na qual se observa uma instigante ficcionalização do sujeito
por si próprio através de seu arquivo.

O presente trabalho pretende caracterizar os museus literários não apenas como


bens do patrimônio cultural do país, mas também como espaços performáticos
memorialísticos, como uma nova possibilidade de exploração biográfica. Mesmo que se
entenda por performance aquilo “que não foi nomeado, que carece de uma tradição, ainda
que seja recente, que ainda não tem lugar nas instituições.” (RAVETTI; ARBEX, 2002,
p. 60). Nesse sentido, é preciso cuidar que não sejam excluídas a ficção, as lacunas, os
interstícios, a multiplicidade, o intrigante conflito entre o consciente e o inconsciente,
enfim, o personagem em construção constante. Além disso, os museus literários ainda
apresentam potencial de objetos de investigação científica capazes de ampliar o
conhecimento de nossa literatura em geral, bem como de outros aspectos que tangem a
realidade, tais como costumes, fatos históricos e políticos e suas repercussões. Toma
possível, assim, a existência de uma rica fonte de pesquisa para os fins mais diversos,
conforme nos aponta Silviano Santiago, aproximando Literatura e História ao afirmar:
“Quem lê Machado de Assis aprende o Brasil do século XIX. A ficção é a mentira que
diz a verdade, e seus personagens a expressam com força idêntica à dos personagens
históricos.” (RIGUEIRA JR., 2008).

Ainda na virada do século XX para o XXI, a preservação da memória cultural de


nosso país é um desafio que, felizmente, apesar de toda a dificuldade burocrática e
escassez de recursos, gera iniciativas como a do Projeto de Pesquisa Acervo de Escritores
Mineiros da UFMG, criado na Faculdade de Letras, em 1991, sob a coordenação geral do
Prof. Dr. Wander Melo Miranda e colaboração de outros professores pesquisadores
vinculados à instituição. As instalações definitivas foram inauguradas em 16 de dezembro
de 2003, no terceiro andar da Biblioteca Central da UFMG conformando-se em um
espaço performático-biográfico permanente de exposição, concebido a partir de uma
perspectiva museográfica que recria o ambiente de trabalho dos escritores. A totalidade
do espaço ficou constituída por biblioteca, na qual se destacam obras raras do
modernismo brasileiro e também preciosas coleções de periódicos, correspondência,

354
fotografias, obras de arte, mobiliário e objetos pessoais dos escritores Henriqueta Lisboa,
Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior, Abgar Renault e Cyro dos Anjos, além das
Coleções: Ana Haterly, Aníbal Machado, Alexandre Eulalio, José Osvaldo de Araújo,
Valmiki Villela e Genevieve Naylor.

O Acervo de Escritores Mineiros está sob a responsabilidade do Centro de Estudos


Literários e Culturais, órgão complementar da Faculdade de Letras, cuja criação foi
aprovada pelo Conselho Universitário da UFMG em 19 de dezembro de 2007. Seu
objetivo principal incide na captação, organização, guarda e pesquisa de acervos
literários, disponibilizando-os à consulta e estudo de pesquisadores e do público em geral.
E, além de pesquisas na área de literatura, ainda promove intercâmbios com instituições
afins do país e do exterior, no sentido de garantir melhor identificação e localização de
documentos culturais. Desde então, o projeto tem cumprido a sua meta, pois em 2007 foi
contemplado com a doação dos fundos documentais dos escritores: Wander Piroli, Otávio
Dias Leite e Achilles Vivacqua. Em 2008, foram doados também os acervos de Fernando
Sabino e José Maria Cançado. Em 2009, o acervo de Lúcia Machado de Almeida e as
coleções Leopoldo Pereira, e Márcio Sampaio (constituída de pôsteres da exposição
comemorativa do centenário de nascimento de Pedro Nava) também passaram a integrar
os fundos documentais do Acervo de Escritores Mineiros.

Mais recentemente, já em 2010, também foram acolhidos documentos de Adão


Ventura e Eugênio Rubião. Nesse momento mesmo, há um diálogo aberto com os
familiares de Affonso Ávila (1928-2012), poeta, ensaísta e pesquisador do barroco no
Brasil, para acertar a doação de seus fundos documentais e de sua esposa Laís Corrêa de
Araújo (1928-2006), poeta e jornalista. Ainda em vida, em 2010, ressalte-se a doação dos
fundos do escritor, jornalista, contista e romancista, Carlos Herculano Lopes (1956...)
feita pelo próprio escritor. E, também em dezembro de 2011, a exemplo de Carlos
Herculano, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto (1944...), romancista, religioso
dominicano e militante de movimentos pastorais e sociais, contemplou a UFMG com a
doação da sua biblioteca e documentos. No mês de abril de 2013, o Acervo foi
presenteado com a Coleção Maria Stella Libânio Christo, mãe de Frei Betto, constituída
de manuscritos, placas, medalhas e livros de gastronomia.

O Acervo é motivo de orgulho para a Universidade por pelo menos dois motivos:
o pioneirismo na criação de um espaço com a configuração de uma área museográfica e,
obviamente, o fato de evitar a evasão de arquivos mineiros para outros estados, a exemplo

355
dos fundos de Guimarães Rosa, Pedro Nava, Lúcio Cardoso e Carlos Drummond de
Andrade. É importante salientar que o Acervo não se limita a contemplar a guarda de
fundos apenas de escritores canonizados. Na verdade, há um objetivo mais amplo, que é
a constituição de um espaço aberto para a memória literária e cultural, componentes
indispensáveis do constante processo de modernização cultural do país, independente do
que convencionalmente se entende por notoriedade pública.

Nota-se que nas últimas décadas está se dando a devida ênfase à captação,
organização e catalogação de documentos diversos de bibliotecas expressivas, de
pertences representativos de gerações passadas, com o intuito de adequá-los a um novo
conceito de existência física e cultural; ou seja, de um arquivo/ museu/ biblioteca. Esse
novo conceito físico-cultural, destinado à alocação dos acervos literários, coloca em voga
uma nova concepção de museu, que deixa de ser um simples espaço de contemplação,
estático e distante do observador; e passa a ter uma estrutura que lhe confere dinamismo.
Transformado em espaço de interação, possibilita a revitalização do antigo na
contemporaneidade, à medida que convida o pesquisador a perpassar a dimensão de uma
outra existência, que neste determinado momento – o do encontro, o do contato – interage
consigo e assim cria novas possibilidades de discursos. Essa nova concepção veio projetar
a imagem vinculada a um novo tipo formal de laboratório, um laboratório consolidado e
comprometido com o debate, o intercâmbio, a interarte e a interlocução de várias linhas
de pesquisa, afinal, embora saibamos que

[...] a Literatura Comparada tem tradicionalmente a tarefa de se ocupar,


sobretudo, de relações textuais, isso vale também para os Estudos
Interartes, e, se for verdade que o Comparativismo não compara nem
mais nem de forma diferente do que os Estudos Literários (embora às
vezes trate de outros objetos ou tenha outros interesses) isso também
acontece, mutatis mutandis com os Estudos Interartes, apesar de que,
neste campo, a comparação explícita assume um papel mais acentuado.
Independente dos tipos de textos e formas de relacionamentos
envolvidos e dos interesses de estudo, a inclusão direta ou indireta de
mais de uma mídia com diversas possibilidades de comunicação e
representação e de vários sistemas sígnicos, bem como códigos e
convenções a eles associados, lança continuamente questões sobre a
base comparatista e às relações analógicas as funções e efeitos dos
meios encontrados. (CLÜVER, 2006, p. 14)
O historiador Evaldo Cabral de Mello, que teve um volume dedicado a sua pessoa
e obra na coleção Intelectuais do Brasil, editada pela Editora UFMG e Fundação Perseu
Abramo, em entrevista no dia 25 de março de 2008, durante o lançamento da coleção,
afirmou que

356
No Brasil, os historiadores brigam pelos conceitos e não pela
documentação. Os conceitos dão retorno até certo ponto. Só recorro a
eles pragmaticamente. Leio e releio os documentos. Aprendi a nunca
desistir deles. (RIGUEIRA JR., 2008)
Isso motiva cada vez mais a apropriação dos arquivos para o enriquecimento da
memória cultural, sem negar suas características subjetivas, mas, antes, e as toma como
formas cada vez mais democráticas de se reinventar o passado, abrangendo novas áreas
do conhecimento no sentido de produzir novos enunciados e operações do nosso
imaginário cultural. Derrida, em seu ensaio Mal de arquivo, coloca a seguinte questão:
“Não se renuncia jamais ao poder sobre um documento, sobre sua detenção, retenção ou
interpretação.” (2001, p. 32).

A partir dessas novas perspectivas e possibilidades, o papel do escritor passa a lidar


com uma sensível intervenção, a das narrativas extra-oficiais disponibilizadas pelos
acervos através de inúmeros documentos, como correspondência entre intelectuais,
apontamentos de leituras diversas, às vezes, nas próprias obras, recortes de jornais, bem
como resquícios de entrevistas, publicações encomendadas, comentários, diários, que não
foram, na íntegra, a público e que ficaram guardados em seus arquivos pessoais,
permitindo traçar um perfil antes desconhecido desses escritores. Sobretudo, de escritores
que não fazem parte do cânone, o que, aliás, constitui, por um lado, um dos objetivos do
Acervo de Escritores Mineiros, conforme já foi mencionado; por outro, uma tendência
atual da crítica literária, que busca ampliar suas possibilidades discursivas através da
crítica biográfica:

A crítica biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional quanto a


documental do autor – correspondência, depoimentos, ensaios, crítica –
desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e
expande o feixe de relações culturais. Os limites provocados pela leitura
de natureza textual, cujo foco se reduz à matéria de natureza literária e
à sua especificidade, são equacionados em favor do exercício de
ficcionalização da crítica, no qual o próprio sujeito teórico se inscreve
como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção.
(SOUZA, 2002, p. 111)
Nesse sentido, este trabalho se propõe a analisar, também dentro dessas
perspectivas, a interface entre literatura e museologia, literatura e arquivística, analisando
as possibilidades de se tomar o arquivo literário como autobiografia, pela observação dos
arquivamentos pessoais presentes no Acervo, bem como da configuração do espaço
performático.

Ao observar, por exemplo, o arquivamento literário da escritora Lúcia Machado de

357
Almeida, em seu espaço arquivístico podemos deduzir seu envolvimento especial com
algumas artes, como por exemplo, com a música, conforme sinaliza seu piano francês
Pleyel, fabricado no início do século passado, peça formidável de seu acervo. Outro
objeto atraente de seu ambiente caseiro é um painel, cuja peculiaridade está na grande
diversidade de sua composição: fotografias de familiares e amigos (Carlos Drummond de
Andrade, Pedro Nava, Cecília Meireles, entre outros), cartões postais, recortes de revistas
nos quais destacam-se lugares como Veneza, figuras da cultura antiga como as rainhas
Cleópatra e Nefertiti, imagens de vasos e estátuas da cultura greco-romana,
personalidades modernas como Nietsche, Ghandi, Sabin etc. Sua vivência, inclusive,
aparece permeada pela presença de elementos museológicos, bem como, do ato de
colecionar, influência da própria família, que esteve envolvida com o barroco mineiro e,
mais especialmente, do marido, o museólogo paulista Antônio Joaquim de Almeida, na
criação e direção do Museu do Ouro de Sabará, local que lhe foi bastante íntimo. Outros
exemplos performáticos que costumam se destacar diante dos visitantes são: as coleções
de miniaturas eróticas da Índia e da Guatemala, de Oswaldo França Júnior; o busto e a
máscara mortuária de Murilo Rubião; o fardão e a espada, respectivamente, de Cyro dos
Anjos e de Abgar Renault, os quais usaram na ocasião da solenidade de posse como
membros da Academia Brasileira de Letras.

Ao trabalhar na construção de seu arquivo, o escritor faz um exercício de


identificação de si mesmo, do que se admira em si e para si, e, ainda mais interessante há
uma ficcionalização de si pelo próprio ficcionista, a construção de uma narrativa
performática que, ao contrário do que seria o convencional, não tem princípio, nem meio
nem fim. Aliás, traz, assim, à tona, exemplarmente, um dos eixos centrais da problemática
do sujeito na pós-modernidade: a fragmentação de si e de todo o mundo que o rodeia, a
perda da convicção de uma totalidade fiel e exata, o senso da imperfeição das fronteiras
entre consciente e inconsciente, enfim, o caráter transitório dos seres e das coisas. Eis,
então, o caráter dos arquivos:

[...] o arquivo literário se une provisoriamente a esse desenho, sempre


provisório do espaço biográfico. Poderíamos dizer que se trata de um
espaço biográfico em si mesmo, visto que pode reunir o imaginável,
assim como o inimaginável, em termos do traçado de uma vida; um
lugar – casa natal, morada, lar, recinto – o arco de uma temporalidade
disjuntiva, textos acabados e inacabados, entrevistas, rastos, vestígios
arqueológicos, recordações, esquecimentos, objetos pessoais, heranças,
legados, tradições, coleções, enfim, tudo aquilo que entrelaça a
articulação imprevisível, e por isso mesmo misteriosa, entre vida e obra.
(ARFUCH, 2009, p. 373)

358
A partir da observação dos fundos do Acervo de Escritores Mineiros da UFMG é
possível suspeitarmos prováveis manias, impulsos de vaidade, excesso de zelo,
compulsão por colecionar desde livros até miniaturas, canetas, suvenires, selos, cartões
postais, cachimbos e cinzeiros, flâmulas etc., pois bibliotecas e arquivos pessoais
guardam em si memórias de vida. Segundo Artières, “o arquivamento do eu não é uma
prática neutra, é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele
se vê e tal como ele desejaria ser visto” (2000, p. 11). Podemos dizer, então, que os
arquivos literários, por um lado, permitem entrever imagens e representações do escritor,
num exercício de construção do sujeito por si mesmo, por meio de, como afirmava
Benjamin (1987, p. 227-235), um impulso lúdico próprio da infância.

Por outro lado, na interface entre os Estudos Literários e Culturais, sobretudo, nas
perspectivas da crítica biográfica, como cada ambiente construído por cada um desses
escritores, hoje recriados, numa perspectiva museográfica no Acervo de Escritores
Mineiros da UFMG, propicia a articulação de discursos em prol da construção de uma
memória social? Que diálogos esse recinto íntimo de criação e reflexão propõem em sua
passagem de privado a público? Ora,

Surge daí a articulação entre o individual e o social. Não como pólos


antitéticos, mas como pólos dos momentos em perpétua interação; se
somente somos em relação aos outros, pouco haverá de
verdadeiramente individual numa biografia. Sua trama será
indissociável do meio, do grupo, da comunidade. Este é exatamente um
dos fortes sentidos que animam [...] a própria construção dos arquivos
literários em Minas Gerais: a aparição, a preservação, a conservação
daquilo que na vida de certos personagens, fala por todos, quer dizer,
alimenta o patrimônio cultural comum. Talvez, o que incentiva o
contínuo devir do espaço biográfico – seguindo o caminho da
psicanálise – é esse caráter incompleto de toda biografia, de todo
sujeito. Esse vazio que tenta ser preenchido através de atos de
identificação com outros e com a vida de outros. (ARFUCH, 2009, p.
378).
O ambiente museológico literário proporciona ao interessado um resgate do imaginário
do próprio escritor, por meio do contato com o recinto de trabalho no qual o mesmo operava
sua obra, como uma rede de relações que divergem em inúmeras e até inesperadas direções,
se levarmos em conta, e não há como não fazê-lo, o embate constante e inevitável entre
memória e imaginação. Enfim, um espaço no qual o sujeito ora se reconhece, ora se dissolve
– infinitamente se erige:

Pois o que seria uma coleção senão uma ‘forma de rememoração prática’?
Formada por objetos destacados de seu uso cotidiano, a coleção consiste
na escrita de uma autobiografia paralela, num suplemento de sentido

359
produzido por um trabalho inconsciente, no qual o sujeito deborda das
margens do livro para escrever-se em bilhetes esparsos... (LIMA, 2000, p.
82)
O ambiente museológico literário se inscreve, pois, como uma obra poética e
performática, cujas possibilidades podem ser tão infinitas quanto a da escrita ficcional:

O espaço poético é uma arena de representações e performances mais


ou menos conscientes que encenam ou colocam em jogo os pontos de
interesse de quem escreve, suas tentativas – sempre falidas – de criar
um mundo ao mesmo tempo próprio e compartido, concreto e
cosmológico, que possa ser experimentado por um ato de leitura que
seja, também individual e coletivo, intransferível e intransitivo, mas
que, de certo modo, permita estabelecer comunicações ainda que sejam
somente instantes comunicativos, “ a iminência de uma revelação que
não se produz”, como dizia Borges. (RAVETTI, 2002, p. 60)
Segundo Philippe Artières (2000), ao tratar dos arquivos pessoais é preciso
considerar que, nas sociedades ocidentais, a partir do século XVII, para garantir sua
existência o indivíduo precisa, antes, passar pelo papel. Assim, de alguma maneira
estamos sempre gerando um arquivamento de nossas vidas, senão diários ou registros do
tipo, documentos que regulam nossa participação nas sociedades ou são capazes de
conservar memórias.

Aliás, “escrever, talvez tenha sido o primeiro ato performático consciente desde os
tempos em que os homens lançavam seus desenhos nas cavernas, até o encontro coma as
formas idiomáticas e discursivas de representação.” (BEIGUI , 2011, p. 29). A prática de
gerar arquivos possibilita ao indivíduo a construção de si para si, e, por vezes, para outros.
E, sendo assim, há que se considerar que:

[...] não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não


guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo
com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos,
riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens.
(ARTIÈRES, 2000, p. 11)
E nem haveria como ser diferente já que no eu não nos reconhecemos mais como
antes. O que parecia muito lógico compreende-se, agora, como uma entidade esquiva.
Fica, então, evidente que qualquer construção de um eu precisa lidar com um processo
que parece paradoxal, cuja compreensão, embora contemporânea, já estava preconizado
desde a clássica antiguidade: o exercício de lembrar e esquecer, do qual, afinal, resultará
o que vulgarmente chamamos de memória. Assim, nas bases da nossa cultura
encontramos sinalizado o que seria próprio do gênero humano realizar em relação à
potência de memória: a construção de um arranjo através do qual lhe seria dado relembrar
certos fatos e determinadas personalidades; arranjo esse que conhecemos como
360
narrativas. Nesse sentido, poderíamos entender o arquivo como uma forma elaborada a
favor da memória, um objeto de arte como o próprio canto do poeta inspirado pelas
musas. E, naturalmente, permeado pela ficção, artifício do qual o homem aprendeu a
lançar mão para conseguir produzir e acessar memórias de forma eficiente. Os estudos
mais recentes da mente comprovam que informações são guardadas e acessadas com
muito mais eficiência quando estabelecidas relações de sentido entre essas e a vivência
pessoal de cada indivíduo. Assim, o arquivo seria um tecido de ficções no qual
encontraremos o que chamamos de verdade e o que entendemos como mentira,
imiscuídos um ao outro de forma que se torne impossível diferenciá-los.

Dessa maneira, a análise de um arquivo literário pode resultar numa ampla rede de
discursos e informações que, consequentemente, levarão à formação de uma memória,
que poderá interagir em diversos níveis da produção dos estudos literários e culturais,
sobretudo por seu caráter polivalente, que se desdobra e multiplica-se infinita e
indefinidamente a cada novo acesso. Sendo importante salientar que a análise do arquivo
literário não assume um compromisso, necessariamente, com a biografia do escritor, um
compromisso de confirmá-la ou não através deste ou daquele objeto, documento, carta
etc. A relação que há entre biografias e esses arquivos incide na especificidade narrativa
comum a ambas as realizações. Arfuch (2009) trata de elucidar esse traço característico
no sentido de corroborar para a compreensão das possibilidades do trabalho com os
arquivos literários:

O arquivo é então espaço, acumulação. Um espaço singular atravessado


pela temporalidade: constituído no passado se projeta até o porvir. Seu
presente é sempre uma construção, visto que é ativado pela leitura,
pelas atualizações sucessivas, pela forma do olhar, pela descoberta
súbita ou pelo retomo obstinado. [...] Uma primeira semelhança estaria
justamente relacionada com o espaço e a temporalidade. O arquivo e a
biografia são construídos a partir desse eixo indissociável, já que a
simples lembrança ou vivência – como o texto, a fotografia, o objeto –
trazem consigo o tempo e o lugar. Contudo, essa dimensão da
experiência, que para Ricoeur articula toda e qualquer narrativa, se
encontra distante da linha canônica de um devir datado, atestado de uma
concatenação harmônica de acontecimentos. Pelo contrário, o
“ordenamento” do arquivo, expressão já presente desde o distante
vocábulo grego – que é, como a narrativa, uma disposição de forma e
de sentido – depende exclusivamente da trama, desse tecido caprichoso
que tanto a memória como a escrita, ou a busca de indícios que
aproxima o arquivista do detetive, possam requerer. O relato não repõe
uma ordem previa da vida, a qual concebe como inexistente, já que se
trata de uma ordem construída performaticamente, no próprio trabalho
da narração, o que comprova o trabalho narrativo do arquivo.
Recorrendo a Derrida, “o arquivamento, além de registrar, produz o

361
acontecimento”. (ARFUCH, 2009, p. 370-373)
O trabalho com os acervos literários aspira um novo olhar sobre a área de literatura,
artes e mídias na rede de relações intelectuais dos escritores, de sua formação e construção
como indivíduos culturalmente ativos, capazes de articular o próprio passado e suas
possíveis representações. No Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, como nos demais
museus, muitas vezes, objetos banais, adquirem nova aura sob a égide das vanguardas do
século XX, as quais deram impulso para a crise da representação, o fim das posturas e
valores estéticos legados pelo Renascimento. Houve em contraponto uma emergência,
assim, de atuações, ou, melhor dizendo, performances, consideradas marginais na
composição de novos espaços institucionalizados, os museus modernos, que, contudo,
ainda trazem consigo enorme herança de uma tradição imperativa. Todavia, novas
possibilidades passaram, efetivamente, a existir. Por outro lado, certas tradições talvez
tenham sido positivamente resgatadas com a iminência dos espaços museológicos
performáticos. Melot (2012, p. 130-131) ressente-se do abandono às casas dos escritores.
Ora, o que é o Acervo de Escritores Mineiros senão, também, uma “casa de escritores”?
Um espaço no qual o visitante poderá ter contato com a escrivaninha de escritores como
se estivesse diante do “altar [...] em que um mistério foi consumado”? A explicação para
o envolvimento nessa atmosfera é simples: por nos configurar uma sociedade da escrita,
há um fascínio natural em relação às ferramentas e aos lugares da escrita.

REFERÊNCIAS

ARFUCH, Leonor. A auto/biografia como (mal) de arquivo. Tradução de Rômulo Monte Alto e
Mayla Santos Pereira. In: SOUZA, Eneida Maria de; MARQUES, Reinaldo (Org.).
Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: UFMG: 2009. p. 370-382.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos históricos – Arquivos Pessoais, Fundação
Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 2000. p. 9-34.

BEIGUI, Alex. Performances da escrita. In: Aletria, Performance, Belo Horizonte, v. 7, n.15, p.
27-36, jan./abr 2011.

BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador. In:


Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CLÜVER, Claus. Inter textus/ inter artes/ inter media. In: Aletria, Intermidialidade, Belo
Horizonte, v. 6, n.14, p. 11-41, jul./dez 2006.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

362
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem-malícia. In: Diante do tempo. Trad. Vera Casa Nova e
Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG. (No prelo).

DINIZ, Thaïs Flores N. (Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte


contemporânea 1. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2012.

ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Uma introdução aos Estudos Culturais, Revista FAMECOS, Porto
Alegre, nº 9, dezembro 1998, semestral. p. 87-97

FOUCAULT, Michel. O a priori histórico e o arquivo. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia do


saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
p. 145-151.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.

LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. O que é patrimônio histórico? São Paulo: Brasiliense, 2004.

LIMA, Rachel. Inventários críticos. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 4, n. 3, p. 79-85, jul./dez. 2000.

MELOT, Michel. Livro,. Cotia: Ateliê Editorial, 2012.

OLIVEIRA, Solange Ribeiro. Perdida entre signos: literatura, artes e mídias, hoje. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras, 2012.

POULOT, Dominique. Museu e museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RAVETTI, Graciela. Narrativas performáticas. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia.


(Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Departamento de
Letras Românicas, Programa de Pós-Graduação em Letras, Estudos Literários, Faculdade de
Letras, UFMG, 2002. p. 47-68.

RIGUEIRA JR., Itamar. Conversa com três intelectuais "setentões", Boletim da UFMG, n. 1603,
ano 34, 31/03/2008. Disponível em: <https://www.ufmg.br/boletim/bol1603/5.shtml>. Acesso
em: 26 mai. 2018.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

363
O DESVIO DO OLHAR EM DOULEUR EXQUISE, DE SOPHIE
CALLE1

DEFLECTING THE GAZE IN SOPHIE CALLE’S EXQUISITE PAIN

Marcio Freitas2

Resumo: O artigo investiga imagens da artista francesa Sophie Calle para a instalação
fotográfica Douleur exquise, de 2003. Nessa obra, Calle reconstitui seu processo de luto
por um rompimento amoroso, pareando seus textos autobiográficos com relatos de dor
cedidos por sujeitos anônimos. Nas fotografias que acompanham os depoimentos alheios,
Calle parece apagar as marcas da articulação histórica, distanciando-se em escolhas
similares a de imagens de publicidade. Neste gesto de esvaziamento, a artista equipara
suas imagens a superfícies opacas, instigando o olhar do espectador.
Palavras-chave: Sophie Calle; fotografia; autobiografia.

Abstract: This article investigates images presented by French artist Sophie Calle in her
photographic installation Exquisite pain (2003). In the work, Calle rebuilds her process
of grieving after a love breakup, pairing her autobiographical texts with narrations of pain
given by anonymous subjects. On the images that accompany the testimony of others,
Calle seems to erase the marks of historical articulation, distancing herself in choices
similar to those of advertisements. With this gesture of emptying, the artist transforms
her photos into opaque surfaces, prompting the viewer's gaze.
Keywords: Sophie Calle; photography; autobiography.

Retomo, neste artigo, um objeto artístico que há anos me acompanha, e


periodicamente encontro-me escrevendo pequenas coisas sobre ele, citando-o para
alguém, lembrando-me de algum aspecto seu. Ao término da única apresentação que
assisti do espetáculo teatral Exquisite pain, baseado em Douleur exquise, de Sophie Calle,
não mensurei estar diante de uma obra que por tantas vezes retomaria minha atenção.
Havia nela tal simplicidade de recursos, tal evidência na apresentação da materialidade,
que apenas aos poucos ela foi se tornando referência para minha reflexão artística. Fui
recuperando pedaços seus ao longo do tempo: vi uma parte da instalação original de
Sophie Calle, assisti pequenos trechos de montagens na Internet, tive contato com o livro
que deu origem à performance, busquei fotos em diferentes websites. Quero dizer com
esse breve depoimento pessoal que parto da instauração de algo na minha recepção, algo

1
Mesa-redonda Potências da autoficção.
2
Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

364
como uma latência, e apenas aos poucos certas percepções ganharam consistência, com
repetidas visualizações de pedaços dispersos da obra.

Escolhi centrar minha análise em um aspecto particular dessa obra: as apropriações


fotográficas da artista sobre relatos biográficos de sujeitos anônimos. Almejo observar,
nas qualidades dessas imagens – no modo como elas se relacionam com o texto escrito
(no caso da obra em museus) ou texto falado (no caso da performance), nas escolhas
tomadas por Calle no contexto específico da obra –, certos elementos que, de modo
bastante particular, induzem o espectador a se posicionar de forma diferenciada perante
o relato, problematizando a função, comumente designada à imagem fotográfica, de
apresentar um recorte da realidade.

Douleur exquise se constitui a partir da confissão de uma dor, advinda de um


rompimento amoroso. A partir de dados autobiográficos, Calle concebeu uma série de
textos combinados com imagens fotográficas, num esforço declarado de expor e expurgar
a dor sofrida. Desde o ano de 2003, o trabalho tem sido apresentado, em museus e galerias
de arte, como uma exposição de uma série de painéis fixados nas paredes. A obra foi
também publicada em francês e em inglês. Em 2005, o trabalho foi levado ao palco do
teatro pelo grupo inglês Forced Entertainment. Assisti a tal espetáculo em outubro de
2006, quando foi apresentado no Rio de Janeiro.

A exposição da obra no museu divide-se em três seções. Na primeira seção,


visualiza-se uma série de fotos, acompanhadas de pequenas notas. Cada foto está marcada
por um carimbo em vermelho, com uma inscrição composta por um número variável e
um texto fixo: “douleur J-XX”, sendo que XX varia de 92 até 1. As fotos estão dispostas
em uma sequência, em ordem decrescente do número. São supostamente fotos capturadas
em uma viagem que teria feito ao Japão em 1985. As fotos mostram espaços que a artista
teria percorrido, sendo que ela própria posa de modelo fotográfico, como em uma espécie
de diário de viagem. Ela promove, com essa sequência, uma contagem regressiva até o
dia da instauração de sua declarada infelicidade.

Na segunda seção, há a ampliação de uma única foto.3 Nela, vê-se uma cama de
solteiro com cabeceira de madeira escura; uma mesinha também de madeira à direita;
sobre a mesinha há um cinzeiro, um abajur de haste longa dourada e pedaços de papel; a

3
Cf. reprodução digital das páginas 198 e 199 de CALLE, Sophie. Douleur exquise. Paris: Actes Sud,
2003. Disponível em: <http://24.media.tumblr.com/tumblr_ma7cio0Vbe1qaihw2o1_1280.jpg>. Acesso
em: dez. 2013.
365
cama está forrada por um lençol branco, levemente amassado, como se houvesse sido
recentemente usada; sobre ela há um travesseiro branco, à esquerda, e um telefone
vermelho, à direita, um modelo antigo de telefone com roda para discagem, seu receptor
está colocado no gancho, o fio preto estendido desde a mesinha. Vê-se apenas a metade
superior da cama. O telefone está mais ou menos centralizado na horizontal e ocupa a
parte inferior da figura. O abajur está desligado. Há uma luz cuja fonte não é possível
identificar, ela ilumina o ambiente uniformemente, aparecendo refletida na madeira da
cama e na haste do abajur. Vê-se, ainda, um pedaço do papel de parede, sobre a parede
bege atrás da cama, com um padrão floral na cor verde, no topo da figura.

Esta imagem ilustraria o momento pontual da inflição da dor, a dor para a qual as
variadas fotos de viagem apontam. A centralidade dessa dor no sistema sígnico da obra
está indicada tanto pela contagem regressiva como pelo tamanho comparativamente
avantajado dessa reprodução fotográfica nas paredes do museu. A foto, contudo, não
revela em si a dor mencionada, nada explicita causa ou contexto.

No início da terceira seção, tal lacuna de conteúdo é imediatamente preenchida por


uma narrativa autobiográfica:

En 1984, le ministère des Affaires étrangères m'a accordé une bourse


d'études de trois mois au Japon. Je suis partie le 25 octobre sans savoir
que cette date marquait le début d'un compte à rebours de quatre-vingt-
douze jours qui allait aboutir à une rupture, banale, mais que j'ai vécue
alors comme le moment le plus douloureux de ma vie. J'en ai tenu ce
voyage pour responsable.
De retour en France, le 28 janvier 1985, j’ai choisi, par conjuration, de
raconter ma souffrance plutôt que mon périple. En contrepartie, j’ai
demandé à mes interlocuteurs, amis ou rencontres de fortune: ‘Quand
avez-vous le plus souffert?’ Cet échange cesserait quand j’aurais épuisé
ma propre histoire à force de la raconter, ou bien relativisé ma peine
face à celle des autres. La méthode a été radicale: en trois mois j’étais
guérie. L’exorcisme réussi, dans la crainte d’une rechute, j’ai délaissé
mon projet. Pour l’exhumer quinze ans plus tard (CALLE, 2003, p.
202)4.

4
“Em 1984, o Ministério dos Negócios Estrangeiros me concedeu uma bolsa de estudos de três meses no
Japão. Eu parti no dia 25 de outubro sem saber que essa data marcaria o início de uma contagem regressiva
de noventa e dois dias que culminariam em um rompimento, banal, mas que eu vivi como o momento mais
doloroso da minha vida. Eu culpo essa viagem por isso”.
“De volta à França, em 28 de janeiro de 1985, eu escolhi contar meu sofrimento ao invés de meu périplo.
Em contrapartida, eu perguntei a meus interlocutores, amigos ou encontros casuais: ‘Quando na sua vida
você mais sofreu?’ Essa troca terminaria quando eu tivesse esgotado minha própria história de tanto tê-la
contado, ou mesmo relativizado minha dor diante da dor dos outros. O método foi radical: em três meses
eu estava curada. Concluído o exorcismo, temendo uma recaída, abandonei meu projeto. Para exumá-lo
quinze anos mais tarde” (tradução nossa).

366
Consonante com tal proposta, a terceira seção apresenta relatos escritos, tanto da
artista quanto de seus conhecidos, em uma sequência de painéis. Os painéis estão
dispostos em uma série de duplos: na esquerda, em painéis de fundo preto com letras
brancas, a artista conta detalhes do término, consumado no dia 24 de janeiro de 1985, por
telefone, no quarto 261 do Hotel Imperial em Nova Déli, esmiuçando também os
precedentes do relacionamento com o então namorado; na direita, em painéis de fundo
branco com letras pretas, sujeitos anônimos contam experiências autobiográficas de
sofrimento e dor, não necessariamente relacionadas a rompimentos amorosos. Cada
painel de fundo preto tem, acima do texto, a reprodução de uma mesma foto, a foto da
segunda seção, da cama com o telefone vermelho. Cada painel branco tem, acima do
texto, uma foto diferente relacionada ao relato nele contido. Esses painéis duplos
encontram-se espalhados pelo espaço da galeria, e há a indicação de uma ordem correta
para percorrê-los5. Cada painel de fundo preto relata uma versão ligeiramente diferente
da história autobiográfica de Sophie Calle, com a mesma foto, e cada painel de fundo
branco contém uma nova história com uma nova foto. Não há incoerências nos múltiplos
relatos de Calle à esquerda, a mesma história se repete com adições de alguns detalhes e
sínteses de outros. Os relatos anônimos, por sua vez, não estão diretamente ligados uns
aos outros, em momento algum são evidenciadas conexões narrativas entre os indivíduos
e situações apresentados.

Assim como na primeira seção, há uma numeração guiando a sequência de duplas


de painéis. O texto de cada um dos painéis pretos inicia com a mesma frase: “Il y a XX
jours, l’homme que j’aime m’a quittée”6, na qual XX varia de 5 a 99, sendo que nem todos
os números aparecem, ou seja, nem todos os dias nesse espaço de tempo são citados. No
penúltimo painel de fundo preto, a frase repetida modifica-se ligeiramente: ao invés de
aime a palavra é aimais, deslocando o amor para o passado, em consonância com a
afirmação introdutória de que a artista teria se curado em três meses. O esmaecimento
progressivo da dor é indicado tanto pela diminuição no tamanho dos relatos escritos de
Calle quanto pela variação da cor da letra sobre o painel preto, que vai se confundindo

5
Frequentemente, a obra é exposta com um conjunto reduzido de painéis. Cf. reprodução no site do
Centre Georges Pompidou, Paris. Disponível em:
<http://mediation.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-beaute/images/xl/13_calle.jpg>. Acesso
em: dezembro/2013.
6
“Há XX dias, o homem que eu amo me deixou” (tradução nossa).

367
com a cor do fundo, variando, em escalas de cinza, do branco do 5º dia ao preto ilegível
do 99º dia.

Tendo descrito, brevemente, essa obra de Sophie Calle, centrarei a análise em


algumas das imagens usadas na terceira seção do trabalho: as ilustrações dos relatos
anônimos. Parto do primeiro relato:

Il s’appelait Jean. J’avais vingt-sept ans, lui, quarante-sept. Nous


vivions ensemble. C’était la passion, la passion, véritable. Ce matin-là,
je me suis réveillée, je suis allée dans la salle de bains. Une lettre était
posée sur le lavabo. Quelques mots compliqués, je ne me souviens plus
lesquels, qui signifiaient qu’il fallait nous séparer. […] Comme une
somnambule, pendant des mois, je me sus retirée du monde, j’ai souffert
nuit et jour. […] Et ce lavabo me hantait. La brutalité féroce de la lettre
blanche sur le lavabo. C’est peut-être la raison pour laquelle, depuis
douze ans, j’ai un appartement sans salle de bains (CALLE, 2003, p.
205).7
A narração é de uma perda equiparável à de Calle, sendo possível tecer um
paralelismo imediato entre ambas. Assim como no relato central de Douleur exquise, essa
mulher (a utilização de palavras no feminino, em francês, revela que é uma mulher; nem
sempre é possível identificar o gênero dos sujeitos anônimos) separou-se de alguém que
amava, pela vontade unilateral do parceiro, e foi informada da separação de modo súbito.
Ela se diz “assombrada” pela imagem de uma pia, a imagem do momento pontual e
impactante em que leu a carta que finalizava a relação.

No segundo relato anônimo, a associação de uma imagem visual a uma dor


subjetiva se dá por outra via:

C’est une image de bonheur qui m’a fait le plus souffrir. Cela se passait
en 1964. Au printemps. Sur le boulevard Montparnasse. Un dimanche
matin ensoleillé. Je possédais un voiture américaine bleu pâle, avec un
intérieur en cuir bleu. La femme que j'aimais et notre fils, en
imperméable jaune citron, m'accompagnaient. En conduisant, j'ai
réalisé la rareté d'un tel moment de félicité. Ce bonheur, je l'ai perdu, et
cette image m'est revenue, tel un couteau […] (CALLE, 2003, p. 207).8

7
“Ele se chamava Jean. Eu tinha vinte e sete anos, ele, quarenta e sete. Nós vivíamos juntos. Era a paixão,
a paixão verdadeira. Naquela manhã, eu acordei, eu fui ao banheiro. Havia uma carta pousada sobre a pia.
Algumas palavras complicadas, não me lembro mais quais, que diziam que precisávamos nos separar. [...]
Como uma sonâmbula, por meses eu me retirei do mundo, sofri noite e dia. [...] E aquela pia me assombrava.
A brutalidade feroz da carta branca sobre a pia. Talvez seja essa a razão pela qual, depois de doze anos, eu
moro em um apartamento sem banheiro” (tradução nossa).
8
“É uma imagem de felicidade que mais me fez sofrer. Isso aconteceu em 1964. Na primavera. No
Boulevard Montparnasse. Uma manhã ensolarada de domingo. Eu tinha um carro americano azul claro,
com o interior de couro azul. A mulher que eu amava e nosso filho, vestindo uma capa amarelo-limão,
estavam comigo. Dirigindo, percebi a raridade de tal momento de felicidade. Essa felicidade, eu a perdi, e
essa imagem voltou a mim, tal como uma faca” (tradução nossa).

368
Nesse caso, a imagem ilustra o reverso da dor, ela é como a memória de algo valioso
que foi perdido, e a dor associa-se à perda – e, descobrimos mais adiante em seu relato,
trata-se também de uma perda amorosa, ainda que não se tenha dados precisos sobre causa
ou contexto da separação.

Na foto que acompanha o primeiro relato, vê-se, centralizada e ocupando a quase


totalidade do campo visual, uma pia de banheiro branca.9 Sua base tem um formato oval,
sendo seu comprimento horizontal aproximadamente o dobro do vertical. Ela tem duas
maçanetas metálicas, uma torneira e um ralo também metálicos. Ela está embutida em
um aparador, mas pouco se vê deste, sua cor também é branca, ainda que a tonalidade
difira ligeiramente. Há uma fonte de luz que ilumina a foto, mas não se pode perceber de
onde vem, ela lança uma sombra sobre o centro da pia. O formato da sombra nada informa
sobre um anteparo entre a fonte de luz e a pia. Não há nada de particularmente específico
que se possa ressaltar, sobre a pia ou sobre o espaço em torno dela. O recorte fotográfico
é muito fechado, o formato oval da base da pia quase se encaixa na moldura horizontal
da foto, portanto nada se pode dizer sobre seu entorno.

A foto do segundo relato anônimo é de um carro azul claro, um modelo antigo, de


fabricação anterior aos anos 1970.10 Vê-se o carro de frente, sua porta frontal à esquerda
está um pouco mais aberta do que a da direita. A luz do sol ilumina o veículo projetando
sobre ele a sombra das árvores em volta. O carro está parado em uma rua bastante
arborizada, há árvores em ambas as calçadas. Não se avista outros carros ou pessoas,
mesmo porque a frente do carro ocupa a maior parte do quadro. Mais uma vez, não há
marcas que deem especificidade ao carro ou ao espaço, há poucas informações a serem
lidas além das que descrevi.

É particular a esta fotografia o fato de que apenas o carro está colorido de azul, e o
resto da imagem está em preto e branco. Há, na terceira seção de Douleur exquise, tanto
fotos coloridas como em preto e branco, não há nessa escolha uma significação
identificável pelo espectador da obra. O efeito de coloração sobre esta foto específica
ressalta o azul claro, citado no relato. Mas não se encontra a reiteração desse tipo de efeito

9
Cf. registro fotográfico da instalação de Douleur exquise, contendo a foto citada. Disponível em:
<http://www.thewowa.com/upload/rss_download/20130428/600_600/201304280806064655.jpg>.
Acesso em: dez. 2013.
10
Cf. registro fotográfico da instalação de Douleur exquise, contendo a foto citada. Disponível em:
<http://www.portlandart.net/archives/images/calle_exquisite_pain.jpg>. Acesso em: dez. 2013.

369
(comum, por exemplo, em fotos de casamento) em outras fotos da série. Intuo que não
estou apenas diante de uma tentativa de produção de beleza a partir do jogo de cores.
Parece haver aí uma espécie de falsificação, retenho essa impressão.

Observando o conjunto de fotos da terceira seção de Douleur exquise, percebe-se,


já no primeiro lance de olhar, certa uniformização. Não há a irregularidade comum a um
apanhado genérico de instantâneos. Aponto, inicialmente, para três indicadores de
uniformização: os objetos retratados têm sempre nitidez; as fotos não apresentam
manchas ou borrados, indicando um original preservado em condições ideais ou
capturado digitalmente em alta resolução; a iluminação sempre dá a ver claramente o
objeto ou espaço retratado.

Cito mais um exemplo de relato:

C'était durant l'hiver 1976. En novembre. J'avais vingt-cinq ans. Je


répétais une pièce au théâtre de Nanterre. L'après-midi, durant la
répétition, j'ai soudain éprouvé une sensation d'angoisse, une inquiétude
étrange. J'ai quitté le plateau pour joindre, au téléphone, l'homme que
j'aimais. Dans le foyer toujours désert, il y avait une moquette rouge et
je portais, ce jour-là, un costume rouge vif. [...] j'ai demandé à lui parler.
La standardiste a répondu qu'elle était désolée, que ce n'était pas
possible. ‘Pourquoi?’ ai-je questionné. Elle a dit: ‘M. R. est décédé’.
Mon français était alors approximatif, j’ai insisté [...]. J'ai d'abord cru à
un malentendu, puis tout ce rouge m'est tombé dessus. [...] Je me
souviens aujourd'hui de la toute petite voix d'une jeune fille que j'ai
forcée à m'expliquer le mot décédé. La cabine n'existe plus. Le rouge
non plus, tout est blanc maintenant (CALLE, 2003, p. 215)11.
A foto que acompanha tal relato enquadra a fachada do Théâtre Nanterre-
Amandiers, em Nanterre, na França12. O letreiro vermelho, com o nome do teatro, ocupa
precisamente a largura da fotografia. Acima do letreiro, são avistadas, refletidas no vidro
espelhado, nuvens volumosas em um céu azul. O reflexo na fachada do teatro também dá

11
“Foi durante o inverno de 1976. Em novembro. Eu tinha vinte e cinco anos. Eu ensaiava uma peça no
teatro de Nanterre. À tarde, durante o ensaio, eu senti subitamente uma sensação de angústia, uma
inquietude estranha. Eu saí do palco para falar, ao telefone, com o homem que eu amava. No foyer deserto,
havia um carpete vermelho e eu estava vestindo, naquele dia, um traje vermelho-vivo. [...] eu pedi para
falar com ele. A voz ao telefone respondeu que sentia muito, que não era possível. ‘Por quê?’ eu questionei.
Ela disse: ‘M. R. Faleceu’. Meu francês naquela época era aproximativo, eu insisti […]. Primeiramente
acreditei tratar-se de um mal-entendido, depois todo aquele vermelho desabou sobre mim. […] Hoje me
lembro da voz minúscula da moça que eu obriguei a me explicar a palavra falecido. A cabine telefônica
não existe mais. O vermelho também não, agora tudo é branco” (tradução nossa).
12
Cf. registro fotográfico da instalação de Douleur exquise, contendo a foto citada. Disponível em:
<http://4.bp.blogspot.com/_dKQZ3F2Seho/TSvgGJAWv5I/AAAAAAAABdU/tCQtcsRcKDc/s1600/Dou
leur+exquise.JPG>. Acesso em: dez. 2013.

370
a ver o pedaço de outro prédio, sombreado, que estaria atrás do fotógrafo, sem detalhes
específicos a notar. Abaixo do letreiro estão quatro grandes portas de entrada para o
teatro, fechadas. Abaixo delas, ocupando o terço inferior da fotografia, vê-se o piso do
pátio que leva ao teatro, com ladrilhos brancos retangulares. Não há áreas de sombras
sobre o piso do pátio, tampouco há objetos ou pessoas ocupando-o. Não é possível avistar
o contorno do prédio do teatro, o recorte da foto enquadra apenas o pedaço da fachada
que contém o letreiro com seu nome. A composição de cores da fotografia ressalta o
vermelho da pintura do prédio do teatro – cor tematizada na narrativa, na qual o depoente
cita a percepção metafórica de que “todo aquele vermelho desabou sobre mim”.

Tendo selecionado e descrito três fotos da série, volto à introdução do projeto,


citada previamente. Segundo ela, Calle teria colecionado depoimentos de sujeitos
anônimos nas semanas que sucederam o término de seu relacionamento, como uma
espécie de compartilhamento que acompanhou seu luto. O emparelhamento dos painéis
duplos indica, assim, um jogo de troca de falas, que tem uma duração temporal – desde 5
dias após o término até 99 dias após o término. O painel final indica a conclusão do
processo – quando o aime vira aimais, e nada mais há a falar. Porém, após essa
operacionalização do luto, Calle se afasta do tema, para transformá-lo em obra artística
só 15 anos depois, em um novo processo, que ela chama de exumação.

Assumo como hipótese que a concepção das fotos da terceira seção faz parte do
processo de exumação, em 2000, e não do processo de compartilhamento, de 1985. Ou
seja, no presente da criação da obra, Calle retoma os relatos, e, a partir desses registros
(orais ou escritos, não se sabe), ela cria imagens fotográficas para as situações narradas.
Minha hipótese é que, em vez de tomar um caminho biográfico talvez mais usual – que
seria o de pesquisar entre registros pessoais dos sujeitos biografados, seus objetos e
fotografias, como ela mesma fez na primeira seção do trabalho, com seus próprios
registros – ela se basta com os relatos e a partir deles propõe recriações fotográficas.

Há qualidades nas fotos que corroboram minha hipótese. Há um estilo que se repete
em todo o conjunto: a nitidez e ausência de borrados; a iluminação, que produz sombras
sutis sem chamar atenção demasiada para si nem deixar de mostrar claramente os objetos
centrais; a escolha de ângulos ligeiramente ousados – como a rua vista de cima, parecendo
bidimensional (CALLE, 2003, p. 235), ou a igreja vista de baixo, ressaltando sua
monumentalidade (CALLE, 2003, p. 239); e, ainda, os recortes fechados, que excluem
possíveis ruídos sígnicos, promovendo a centralidade da exposição. Tais escolhas, entre

371
outras, parecem supor a mão de um diretor de arte, que dispõe os elementos na cena com
precisão e apresenta um belo quadro-síntese. Essa uniformização informa da intervenção
de um profissional específico, dá a ver a presença de um estilo (um conjunto de operações
artísticas que reaparecem em diferentes instâncias).

Não identifico as características desse estilo na obra fotográfica da artista como um


todo, mas como uma marca específica da terceira seção deste trabalho. Cabe pensar qual
papel essas escolhas cumprem aqui. Em vez de buscar imagens que pudessem, por sua
qualidade residual, dar testemunho do passado, Calle cria imagens mais ou menos
genéricas, que, de certo modo, ofuscam a historicidade dos objetos retratados.

Não há detalhe que contextualize a imagem da pia do primeiro relato: não sei se é
um modelo de pia recente ou antigo (percebo-a como modelo genérico), se a foto foi
tirada recentemente ou há 20 anos, se o objeto está novo ou desgastado pelo tempo. Não
sei onde ela está, se em uma casa ou em um banheiro público: é como se estivesse em
lugar nenhum e em tempo nenhum. Assim como a sacralização do relato, a pia foi
transformada em objeto ideal. Similar a ela é a cadeira que acompanha o relato de um
indivíduo que convalesceu durante três meses, sentado em uma cadeira (CALLE, 2003,
p. 241). A imagem mostra um modelo genérico de cadeira de madeira, banhada por uma
luz lateral que não facilita a visualização de detalhes específicos de sua superfície, e sem
nada informar sobre o espaço em volta, como se nada houvesse para além dela.

A recriação do domingo ensolarado no Boulevard Montparnasse do segundo relato


está centrada no carro azul. É possível observar os arredores, mas de modo tão restrito
que o observador não identifica indícios temporais (se é uma foto de 1964, 1985 ou 2000).
O jogo com o preto e branco é provavelmente um truque: na impossibilidade de achar um
carro com a mesma cor da narrativa, suponho que a artista tirou uma foto em preto e
branco e aplicou a cor azul artificialmente. Tal manipulação fotográfica não é, porém,
afirmada como jogo de reconstituição, a temporalidade múltipla não aparece de modo
evidente, pois as marcas do jogo são apagadas, e a fotografia transforma-se em idealidade
– consonante com a lembrança mítica do relato.

O teatro de Nanterre, marco preciso do terceiro relato analisado, chega quase a


perder sua especificidade. Ainda que, em certo sentido, Calle esteja aqui mais próxima
de uma tentativa de reconstituição espacial, ao tomar uma foto do lugar real (certificado
pelo letreiro informativo), seu recorte privilegia um jogo visual preciso e inteligente entre
três cores (vermelho, azul e branco). Não se vê o contorno do prédio, e, assim, é como se
372
as estruturas vermelhas pudessem tender ao infinito. A perspectiva criada pelos ladrilhos
brancos parece abrir também a base inferior da cena para o infinito. O belo reflexo do céu
azul com nuvens traz um dado de idealidade, propondo jogos dramáticos de oposições
alto/baixo, céu/terra, azul/branco, mediados pelo vermelho vivo, cor do sangue (a fachada
parece mesmo repleta de artérias). Ou seja, o lugar real chega próximo de perder seu
elemento fortemente referencial devido a jogos dramáticos sugeridos pelas escolhas da
fotógrafa.

Walter Benjamin, em seu ensaio sobre o conceito de história, afirma que “articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”
(BENJAMIN, 1996, p. 224). O que é problemático nas fotos da terceira seção de Douleur
exquise é o apagamento das marcas dessa articulação histórica. A escolha de
reapropriação a partir dos relatos, em vez de afirmar o presente daquele que reinterpreta
(pois a criação artística que lida com a memória deve, inevitavelmente, reconhecer-se
como um ato de interpretação), parece eximir-se de tal responsabilidade, distanciando-se
em escolhas similares àquelas de certas fotos de publicidade (nas quais os objetos
retratados aparecem descontextualizados, pois interessam acima de tudo por seu potencial
de criar quadros sedutores).

Poder-se-ia considerar que Calle não viveu as dores anônimas, e que a distância
com a qual se apropria dos objetos seria uma distância intransponível, por não ter sido ela
sujeito das narrativas biográficas. Contudo, o mesmo gesto descontextualizador marca a
foto central do trabalho, do quarto de hotel em Nova Déli, supostamente sua própria
imagem-trauma. Nela, como descrevi anteriormente, os elementos (cama, travesseiro,
telefone, abajur) parecem idealmente equilibrados. Mesmo ali, não há qualquer elemento
mais pessoal, ou que cause estranheza. A foto se integra, em termos de luz, angulação,
recorte e disposição dos objetos, no conjunto de fotos dos relatos anônimos. Em
contrapartida, contrasta radicalmente com as fotos de viagem da primeira seção de
Douleur exquise, produzindo sentido com essa diferença e mesmo provendo uma chave
de leitura para esta análise.

Sugiro que a resposta de Calle à exigência autoimposta de ilustrar o relato, de prover


um correspondente imagético a partir de uma captura fotográfica, desestabiliza o olhar do
espectador sem recorrer diretamente ao ruído, à desfiguração da realidade, ou tampouco

373
a um silêncio “heroico” que recuse a figuração.13 Se, por um lado, suas fotos podem ser
descritas como claras, pertinentes, nunca tão falsas a ponto de deixar de invocar seu
estatuto documental, e informativas em uma justa medida, é inevitável desconfiar
precisamente dessa “justa medida”, do pareamento de confissões que tematizam o que há
de mais doloroso na experiência dos indivíduos (rupturas, perdas, mortes) com uma
fotografia algo ausente, algo distante.

Como espectador, ao me deparar com histórias reais sendo contadas a mim, espero
que uma imagem fotográfica adicione detalhes, que mostre ainda mais do que posso ler
ou ouvir. Essa expectativa vem em parte do costume com o fotojornalismo, que lida
diariamente com a evidenciação de relatos da realidade. Defronto-me, aqui, porém, com
uma redundância. Enquanto superfície legível, as fotos de Calle são dispensáveis: não
põem em questão o que é dito, não confirmam a veracidade do relato, e praticamente não
acrescentam detalhes. Em vez disso, são como planos de fundo: mal se olha para elas; são
como fotos de um álbum de casamento, não há surpresa; parecem propor uma prolixidade
tranquila. Mas não há nada de tranquilo nos relatos.

Julgo que tal pareamento, em Douleur exquise, opera uma espécie de jogo de
opacidade, passível de ser comparado àquele que Georges Didi-Huberman identifica na
obra de Tony Smith. Diferenciando a visibilidade – a evidência visual, aquilo que vemos
– da visualidade – o que pode ser produzido no jogo com o que vemos –, Didi-Huberman
cita os cubos de Smith como exemplos de uma volumetria evidente associada à potência
de produzir desvio: “Por mais que representem uma ordem de evidência visível, a saber,
uma certa clareza geométrica, elas rapidamente se tornam objetos de inevidência, objetos
capazes de apresentar sua convexidade como a suspeita de um vazio e de uma
concavidade em obra” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 105-6).

Há, nas escolhas de Sophie Calle para Douleur exquise, um esforço análogo de criar
visibilidades belas e ironicamente precisas, que possam também tornar-se inevidentes.
Suas fotos parecem almejar ser, em seu esvaziamento, em sua pretensão a certa

13
A respeito de tal silêncio “heroico”, Roland Barthes (2003, p. 58.) adverte, em sua reflexão a respeito do
Neutro: “o que é produzido contra os signos, fora dos signos, o que é produzido expressamente para não
ser signo é bem depressa recuperado como signo. [...] o próprio silêncio assume a forma de imagem, de
postura mais ou menos estoica, ‘sábia’, heroica ou sibilina”.

374
neutralidade, superfícies de desvio, opacas, nem via de acesso a um conteúdo fixo nem
espelho, mas lugar de jogo para o espectador.

Como a fotografia pode figurar a falta, documentando o mundo sensível? Aqui, a


resposta de Calle parece ser: ilustrar de longe, de forma sucinta. Em vez de presentificar
o sujeito do relato, a instância do relato ou objetos apontados pelo relato (fotogramas
possíveis e comumente utilizados), escolher invólucros esvaziados. Em vez de mostrar
diretamente o sofrimento, barrar o acesso a ele, sem, contudo, produzir alarde, sem
denunciar sua própria operação, provendo um substituto possível, quase suficiente. Algo
falta nele, mas não está claro o quê.

A figuração pode ganhar, assim, outro status, sugerir outras operações receptivas –
pode tornar-se superfície de jogo. Em certa medida, a obra oferece ao espectador uma
ficção: não importa se o telefone esteve sobre a cama do modo que está sendo mostrado
na foto – suponha um telefone vermelho e suponha uma cama. Tal oferta é, sem dúvida,
problemática, pois a obra informa no início que tudo é realidade, ao expor detalhes
precisos sobre o procedimento de coleta dos relatos. A realidade de origem, porém, não
só é inacessível, mas deve aos poucos tornar-se irrelevante: percorrendo a obra, os relatos
anônimos passam um após o outro sem que haja a preocupação de identificar os relatores
ou de ligar as narrativas; cada novo relato é apenas mais uma iteração, que pode servir a
alguma coisa ou a nada, não há nada de relevante a se comprovar, ou mesmo a se ver.
Implícita nessa despreocupação pode estar uma liberação dos compromissos usuais do
espectador: não preciso me compadecer da dor do outro, não preciso investigar a verdade
dos fatos, não preciso de mais detalhes, posso acessar outra dor, minha dor, posso divagar.
Não é importante a revelação do próximo relato, não estou sendo guiado por um caminho
de revelações – a opacidade equipara, problematicamente, a figuração fotográfica a uma
superfície que facilita um jogo de desvios, e o desvio é do espectador.

E também, em certo sentido, ela apresenta uma crítica aos procedimentos do


fotojornalismo e da fotografia de publicidade, através do modo como se aproxima delas.
Por um lado, ela reduz a operação da imagem jornalística a um sensacionalismo mórbido,
apontando (através de uma representação em falha) para seu modo cotidiano de suprir e
estimular a demanda por detalhes da vida alheia. E por outro lado, ela utiliza-se
ironicamente dos meios da foto publicitária, de sua pretensão à idealidade. Porque, ao
associar-se a um conteúdo disperso, sem moral ou conclusão, as fotos de Calle subvertem
o funcionalismo da publicidade: seus clichês não enganam, não apontam para nada, não

375
reforçam mensagem alguma; ao contrário, lançam o outro no vazio da sua experiência
individual, na dificuldade, comum aos homens, de lidar com a dor.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O neutro: anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de


France, 1977-1978. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CALLE, Sophie. Douleur exquise. Paris: Actes Sud, 2003.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Editora 34, 1998.

376
SOU UM NOME E UM SOBRENOME E QUANDO CASO ‘RECEBO’
OUTRO?!: RELATOS SOBRE A ALTERAÇÃO DO SOBRENOME
COM O CASAMENTO1

I AM ONE NAME AND LAST NAME AND WHEN I MARRIED I


'RECEIVE' OTHER?!: REPORTS ON THE AMENDMENT OF LAST
NAME WITH MARRIAGE

Maria Angélica Vitoriano da Silva2


Sinara Dantas Neves3

Resumo: Este estudo originou-se a partir das experiências de duas pesquisadoras do


Grupo de pesquisa “Família, (auto)biografia e poética” – UCSal/CNPq acerca da
constituição do sobrenome no casamento e nos convida a refletir sobre alguns temas
subjacentes, dentre eles, aspectos de caráter subjetivo, que envolvem os efeitos da
mudança de nome, e aspectos mais objetivos, que tratam do seu caráter legal. A partir da
narrativa autobiográfica, a discussão transita as dimensões do indivíduo e da legislação,
com aporte teórico da abordagem sistêmica. Um nome, um sobrenome, carregam em si
mais do que uma palavra ou registro, eles são um marco que nos posiciona dentro e
através de uma linha do tempo que traduz nossa linhagem, nossas origens. A expressão
nome tem um significado genérico e compreende tanto o prenome como o sobrenome.
Sendo o nome, portanto, uma forma de individualização do ser humano mesmo após a
morte, é o nome da pessoa, juntamente com outros atributos da personalidade, que a
distingue das demais dentro da sociedade. Para Venosa (2005), trata-se da manifestação
mais expressiva da personalidade. Ao nascermos, recebemos dos nossos pais um nome,
que carregamos por toda a vida, e seus sobrenomes de família. Depois crescemos e
descobrimos a condição de status desses sobrenomes. E, mais tarde, percebemos a
referência deles também na nossa vida profissional, em que somos associados a um
currículo; a uma formação. Mas se, nesse ínterim, ainda nos casamos, aí é que nos damos
conta de que “recebemos” uma família e que é comum, num casamento civil, utilizarmos
o sobrenome dela para socialmente demonstrar que agora fazemos parte dessa família.
Antes, essa preocupação cabia somente à mulher, mas, após o novo Código Civil, passou
a ser de ambos, a ponto de permitir que o marido também acrescente o sobrenome da
esposa ao dele, caso deseje, ou que qualquer um dos cônjuges tire o próprio sobrenome e
assuma por inteiro o do parceiro. Quando duas pessoas escolhem formar um casal,
formam também um novo sistema, estruturado a partir das experiências advindas de suas
famílias de origem e de outras experiências matrimoniais e de casal. Nessa perspectiva,
o presente estudo vincula-se ao movimento biográfico a partir de narrativas sobre as

1
Mesa-redonda Família e Identidade.
2
Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
3
Doutora em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

377
experiências matrimoniais relacionadas à alteração dos sobrenomes das autoras, com o
advento do casamento, sob olhares lançados aos aspectos objetivos e subjetivos que este
ato pode estar representando, já que o sobrenome faz parte de um patrimônio simbólico
familiar que legitima o pertencer àquela família. Enquanto a tendência das autobiografias
é serem convencionais, nesse estudo valorizou-se o modo como as experiências informam
a autocompreensão.
Palavras-chave autobiografia; sobrenome; casamento.

Abstract: This study was based on the experiences of two researchers of the Research
Group "Family, (auto) biography and poetic" - UCSal / CNPq about the constitution of
the surname in marriage and invites us to reflect on some underlying themes, among them,
aspects of subjective character, involving the effects of name change, more objective
aspects, dealing with its legal character. From the autobiographical narrative, the
discussion moves the dimensions of the individual and the law, with theoretical support
of the systemic approach. A name, a surname, carry with them more than a word or
record, they are a milestone that puts us into and through a timeline that reflects our
lineage, our origins. The expression name has a generic meaning and comprises both the
first name and surname. As the name, so a form of individualized human being even after
death, is the person's name, along with other attributes of personality that distinguishes it
from the others within the society. To Venosa (2005), it is the most significant
manifestation of personality. When we are born, our parents received a name, we carry
throughout life, and their family surnames. After we grow and discover the condition
status of these surnames. And later, we noticed their reference also in our professional
life, in which we are associated to a curriculum, the training. But if, in the meantime, still
we got married, that's when we realize that "received" a family and that is typical of a
civil marriage, we use the same surname for socially demonstrate that we are now part of
it. Before this concern fit only for women, but after the new Civil Code, shall be either
the point of allowing her husband also add his wife's surname to his, if he wishes, or that
any one of the spouses take own surname and assume the entire partner. When two people
choose to form a couple, also form a new system, structured experiences stemming from
their families of origin and other marital and family experiences. In this perspective, this
study is linked to the movement from biographical narratives on matrimonial experiences
related to the change of surnames of the authors, with the advent of marriage under looks
thrown to the objective and subjective aspects that this act may be representing, as that
the name is part of a family heritage that legitimizes the symbol belonging to that family.
While the trend is being conventional autobiographies, this study appreciated the way the
experiences that inform self understanding.
Keywords: Autobiography; Conjugality; Childhood; Poetics

INTRODUÇÃO

O presente artigo, fruto de estudos realizados no Grupo de pesquisa “Família,


(auto)biografia e poética” – UCSal/CNPq, versa acerca da constituição do sobrenome no
casamento e nos convida a refletir sobre alguns temas subjacentes, dentre eles, aspectos
de caráter subjetivo, que envolvem os efeitos da mudança de nome, e aspectos mais

378
objetivos, que tratam do seu caráter legal. A partir da narrativa autobiográfica, a discussão
transita as dimensões do indivíduo e da legislação, com aporte teórico da abordagem
sistêmica. Sabemos a importancia que o nome exerce na vida dos indivíduos e que um
nome e um sobrenome carregam em si mais do que uma palavra ou registro, eles são um
marco que nos posiciona dentro e através de uma linha do tempo que traduz nossa
linhagem, nossas origens. A expressão nome tem um significado genérico e compreende
tanto o prenome como o sobrenome. Sendo o nome, portanto, uma forma de
individualização do ser humano mesmo após a morte, é o nome da pessoa, juntamente
com outros atributos da personalidade, que a distingue das demais dentro da sociedade.
Para Venosa (2005), trata-se da manifestação mais expressiva da personalidade. Ao
nascermos, recebemos dos nossos pais um nome, que carregamos por toda a vida, e seus
sobrenomes de família. Depois crescemos e descobrimos a condição de status desses
sobrenomes. E, mais tarde, percebemos a referência deles também na nossa vida
profissional, em que somos associados a um currículo; a uma formação. Mas se, nesse
ínterim, ainda nos casamos, aí é que nos damos conta de que “recebemos” uma família e
que é comum, num casamento civil, utilizarmos o sobrenome dela para socialmente
demonstrar que agora fazemos parte dessa família. Antes, essa preocupação cabia
somente à mulher, mas, após o novo Código Civil, passa a ser de ambos, a ponto de
permitir que o marido também acrescente o sobrenome da esposa ao dele, caso deseje, ou
que qualquer um dos cônjuges tire o próprio sobrenome e assuma por inteiro o do
parceiro. Quando duas pessoas escolhem formar um casal, formam também um novo
sistema, estruturado a partir das experiências advindas de suas famílias de origem e de
outras experiências matrimoniais e de casal. Nessa perspectiva, o presente estudo vincula-
se ao movimento biográfico a partir de narrativas sobre as experiências matrimoniais
relacionadas à alteração dos sobrenomes das autoras, com o advento do casamento, sob
olhares lançados aos aspectos objetivos e subjetivos que este ato pode estar
representando, já que o sobrenome faz parte de um patrimônio simbólico familiar que
legitima o pertencer àquela família. Enquanto a tendência das autobiografias é serem
convencionais, nesse estudo valorizou-se o modo como as experiências informam a
autocompreensão.

Assim, discorremos aqui, acerca da constituição do sobrenome no casamento,


assunto que nos convida a refletir acerca de alguns temas que ao mesmo estão
subjacentes, dentre eles, aspectos de caráter subjetivos, quando se fala a respeito dos

379
efeitos da mudança de nome4, entre outros que se encontram relacionados à subjetividade
e aspectos mais objetivos, quando se trata do caráter legal a ele relacionado. Portanto, a
presente discussão transitará entre estas duas dimensões: a do indivíduo e a da legislação.
Para tanto, buscamos o aporte teórico da abordagem sistêmica.

O CASAMENTO E A FAMÍLIA NO CASAMENTO – ASPECTOS OBJETIVOS


Quando duas pessoas escolhem formar um casal, formam também um novo
sistema, estruturado a partir das experiências advindas de suas famílias de origem e de
outras experiências matrimoniais e de casal.

A construção do conceito de família tem como base os diferentes contextos


sociohistóricos e culturais, assumindo assim sua heterogeneidade, permeada pelos mais
diversos significados baseados, na sua constituição, tanto por experiências do dia a dia
como construídos a partir de inferências de estudiosos e pesquisadores interessados na
temática. Dentre eles, na perspectiva de Reed (2008):

A família, como as demais instituições sociais, é um produto da história


humana e não da biologia. E feita pelo homem e não pela natureza.
Como se baseia nas necessidades de sexo e procriação, modela, domina
e condiciona essas necessidades mediante fatores legais, econômicos e
culturais (Reed, 2008, p. 114).
Nesta perspectiva a família se constitui a partir das necessidades naturais e dos
fatores sociais, os quais são determinantes para produzir suas características.

Para a abordagem sistêmica, a família é considerada como um sistema aberto, isto


é, em constante troca com seu ambiente. Os “sistemas” são compreendidos como
complexos de subsistemas ou elementos, unidos por alguma forma de interação ou
interdependência que dá forma a um todo integral (Jordan, 1974, apud Couto et al, 2008).
No que diz respeito à família, Macedo (2005 apud Cerveny, 2005, p. 9), considera-a “um
universo múltiplo e variado cuja complexidade permite um sem-número de olhares e
reflexões”. Portanto, a união de dois indivíduos para a formação de um casal pode ser
compreendida por diferentes perspectivas e uma delas é a considerada legal, ou seja,
normatizada pelas leis vigentes no país.

O artigo 1576 do Código Civil (CC) considera a família como a constituição de


pessoas ligadas pelo casamento, pelo parentesco, pela afinidade e pela adoção. Como

4
Nome aqui se refere ao nome de registro civil do indivíduo composto de nome e sobrenome.

380
consequência do casamento, ocorre a relação matrimonial que se estabelece entre os
cônjuges. A união de fato não é casamento, mas assume algumas das suas características.
Não é regulada de modo semelhante ao casamento, embora produza alguns efeitos de
Direito.

Neste sentido observa-se que o Direito comunga na definição de família com idéias
da Antropologia de Lévi-Strauss (1982), para quem parentesco e família dizem respeito
a fatos básicos da vida (nascimento, acasalamento e morte), sendo a família, no entanto,
um grupo social concreto resultante da combinação de três tipos de relações consideradas
básicas: a relação de descendência (entre pais e filhos); a relação de consanguinidade
(entre irmãos) e a relação de afinidade, que se dá através do casamento, pela aliança.

Para o Direito, a simples união do homem e da mulher não é considerada


casamento. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de
consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. Quando se casa, os
sogros e cunhados se tornam, legalmente, parentes por afinidade, porque, segundo a lei,
cria-se um vínculo familiar a partir do vínculo matrimonial.

A afinidade é o vínculo que liga um dos cônjuges aos parentes do outro cônjuge
(art. 1584 CC). A fonte da afinidade é o casamento, não cessando, porém, com a
dissolução deste (art. 1585 § 2º do CC): não se pode falar em extinção do parentesco em
linha reta, mesmo quando a relação que lhe deu origem inexista.

Assim, ainda que um homem se separe de uma mulher legalmente, permanecerá


legalmente tendo a mãe de sua ex-esposa como sua sogra, inexistindo, em nível legal, o
termo “ex-sogra”. Esta limitação veio garantir os princípios sociais do instituto
fundamental para a organização da sociedade, que é a família, visto que estariam
desimpedidos os casamentos entre o cônjuge e seu sogro ou sogra, indo de encontro a
questões éticas e morais da sociedade.

Tal princípio regulador das relações de parentesco é definido pela Antropologia


como o da “aliança”, regulado pelo interdito das relações sexuais entre os parentes e os
não parentes, ou seja, o tabu do incesto.

Acrescentando-se, assim, a dimensão cultural à família, o parentesco ocupa o status


de definidor das relações, depreendendo-se daí os direitos e deveres da pessoa, os
privilégios e obrigações na família e na sociedade como pontua Lévi-Strauss (1982).
Todavia, nesta perspectiva, a proibição do incesto, a proibição do casamento entre os

381
parentes (pais, filhos, sogros) está destituída de caráter moral, tendo por certo, o caráter
mais funcional socialmente que é o da exogamia.

Como criação legal, o parentesco por afinidade surge da relação familiar decorrente
do vínculo do casamento ou das relações entre companheiros em razão da união estável.
É um vínculo derivado exclusivamente de norma legal, não havendo qualquer ligação de
sangue. Aqueles que estabelecem uma relação por afinidade, na maioria das vezes, não
possuem parentes consanguíneos, sendo um estranho ao outro. O art. 1595 § 1º limita o
parentesco por afinidade apenas aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do
cônjuge, o que implica em dizer que são parentes por afinidade o sogro, a sogra, nora,
genros e cunhados. Cônjuge não é parente; cônjuge é cônjuge!

Apesar de legalmente não serem considerados parentes, surge no momento da


decisão formal do casamento civil a questão do sobrenome que será adotado. A alteração
do nome com o casamento tem como fundamento a possibilidade de tornar notória a
modificação do estado civil e integração do cônjuge a uma nova família. Antes uma
preocupação que cabia somente à mulher, mas que, após o novo Código Civil, passa a ser
de ambos.

Aqui no Brasil, à semelhança de Portugal, país que exerceu enorme influência na


criação dos hábitos e costumes do povo brasileiro, o nome do indivíduo tem um maior
poder de identificação do que o sobrenome. Porém, sabemos, durante muitos anos e em
algumas regiões do Brasil, ou ainda, dependendo do status que o sobrenome confere ao
indivíduo este assume, muitas vezes, a função identificatória que o mesmo ocupa na
classe social a que pertence.

Como coloca Reed:

Não é do conhecimento de todos os fatos de que, originalmente, o


matrimonio legal foi instituído somente para as classes proprietárias.
As pessoas trabalhadoras que viviam do seu trabalho agrícola,
simplesmente se juntavam, tal como acontecia no passado, já que o
matrimonio legal não era necessariamente desejável. (Reed, 2008, p.
43)
Ainda de acordo com a autora, foi com o advento da vida urbana e da Igreja que
gradativamente o matrimônio se ampliou para a população industrial, cuja intenção foi
de obrigar legalmente os homens que trabalhavam a manter a subsistência da mulher e
filhos que não tinham condições para tal.

382
O atual Código Civil (Lei nº 10.406, de 2002) não confere ao homem a chefia da
sociedade matrimonial. O art. 1.511 determina que o casamento estabelece comunhão
plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Assim, a mulher
assume, ao lado do seu consorte, a direção da sociedade conjugal e ambos são
responsáveis pela criação e pela educação dos filhos, submetendo os cônjuges ao dever
de apoio material e moral mútuo.

Antes do novo Código Civil a mulher obrigatoriamente tirava o sobrenome da mãe


e acrescentava o do marido. Mas, hoje, as regras mudaram. O novo Código Civil entrou
em vigor em janeiro de 2003, com o objetivo principal de adequar a legislação à evolução
da sociedade, não deixando de fora o casamento.

Agora as noivas têm opções. É possível manter o sobrenome de solteira, após o


casamento, sem alterar nada, ou acrescentar o sobrenome do marido. Com o objetivo de
compatibilizar a Lei Civil com a igualdade entre homens e mulheres estampada na
Constituição Federal de 1988, o Código evoluiu a ponto de permitir que o marido também
acrescente o sobrenome da esposa ao dele, caso deseje. Também é permitido a qualquer
um dos cônjuges tirar o próprio sobrenome e assumir por inteiro o do parceiro.

Neste contexto, o nome de família, longe de perder sua importância foi


reestruturado pelos princípios dessa nova concepção de família que preza pela
consagração do princípio da igualdade entre homens e mulheres.

Se, por um lado, estas modificações brindam a homens e mulheres com um dos
princípios básicos dos direitos humanos, por outro, exigem dos nubentes o exercício do
diálogo, da compreensão das reais motivações para a tomada de decisão, em momento
tão significativo na vida de ambos e de suas famílias de origem, por extensão.

OS INDIVÍDUOS NO CASAMENTO – ASPECTOS SUBJETIVOS

Os nubentes, ao se habilitarem para um casamento, ou conversando com


conhecidos que já se casaram, se deparam com diferentes orientações: alguns optam pela
supressão parcial do sobrenome de origem com o acréscimo do sobrenome do cônjuge;
outros admitem a supressão de todo o sobrenome de origem com o acréscimo do
sobrenome do cônjuge; outra parcela defende a manutenção do nome de solteiro; ainda
há quem entenda como obrigatória a manutenção do sobrenome de origem com o

383
acréscimo do sobrenome do cônjuge e aqueles que facultam aos nubentes o acréscimo
recíproco do sobrenome do outro cônjuge.

Porém, o que não está definido é como irão se desenvolver os vínculos afetivos
entre os parentes por afinidade, que passam muitas vezes a comungar de um mesmo
sobrenome, mas nem sempre compartilham coisas mais importantes. Não é o sobrenome
comum que garante o grau de afinidade com o novo membro da família. Isso varia de
acordo com a personalidade do novo membro e a eventual assimilação pelos outros
membros da família.

Estudos geracionais apresentam questionamentos referentes: “[...] as lealdades que


perpassam quando se repete o nome das pessoas de gerações anteriores aos membros das
gerações atuais?” (SANTOS, 2011, p. 13). O que em nossa discussão não implica, como
dito anteriormente, na dimensão de afinidade que os novos membros irão estabelecer com
os outros membros após o casamento.

De acordo com Santos:

A lealdade corresponde a relações que buscam, sobretudo, dar unidade


ao sistema familiar – que podem se dar de forma explícita (como
repetindo o nome) ou invisível: de um lado, estão as motivações
manifestas e, do outro, a hierarquia de obrigações implícitas à posição
ocupada. A lealdade inclui a noção de vínculos afetivos, de
pertencimento, compromisso que, junto com crenças, os valores e as
normas da família, formam a “trama de lealdade familiar” (Santos,
2011, p. 13).
Nessa perspectiva, a entrada de um novo membro na família implica na sua eleição,
se ele ou ela assume o vínculo com a nova família. Como em qualquer relação, à medida
que os interesses comuns vão desaparecendo, os vínculos afetivos também tendem a se
diluir, o que, provavelmente, gera impactos na relação conjugal.

O vínculo de parentesco por afinidade vai além de uma mera relação de amizade,
que é subjetiva. Ele passa a ser uma relação formal, objetiva, e, por isso mesmo, mais
fácil de ser identificada, bastando algumas certidões públicas para provar a relação. A
família por afinidade tem como base de formação uma relação de parentesco obrigatória
e necessária entre pessoas oriundas de famílias diferentes, que possuem hábitos, valores
e crenças muitas vezes incompatíveis. A princípio, elas só possuem uma coisa em
comum: o marido/filho ou a esposa/filha, mas, com o tempo, passam a estabelecer algum
tipo de relação que pode ser prazerosa, gratificante, competitiva e até hostil.

384
Considerando que a faculdade legal decorre do surgimento de uma nova família,
caso ambos queiram alterar o sobrenome, nada mais razoável que esse sobrenome seja,
no todo ou em parte, comum. Alguns casais contemporâneos defendem a ideia de que a
mudança de sobrenome é desnecessária, já que cada um tem sua própria identidade, e
permanecer com os nomes termina servindo, para eles, como uma estratégia de
manutenção da sua própria individualidade. Porém, ainda existem muitos casais que
preferem manter a tradição, por uma questão cultural, garantindo que as mulheres ainda
acrescentem o sobrenome do marido, mesmo cientes de que seja necessária a modificação
de todos os documentos pessoais, haja vista os que têm o nome de solteira, que perdem
imediatamente a validade após o registro civil do matrimônio.

A retirada do sobrenome de família de um dos nubentes, de certa forma, é a


estratégia adotada pelos casais em que um dos nubentes deseja um desligamento do grupo
familiar ao qual pertence, materno ou paterno, para assumir a designação de outro grupo
familiar. Essa supressão, além de ter suas raízes arraigadas no Direito Romano (quando
a mulher romana casava e desvinculava-se de sua família de origem, passando a pertencer
à família do marido), implica na dificuldade de identificar os laços familiares da parte
renunciante, muitas vezes interesse deste. Em termos subjetivos, esta atitude de
“renúncia” aos laços consanguíneos através de um ato legal, pode ser considerada como
uma tentativa de “divórcio emocional” discutido por Bowen (1991).

A possibilidade de modificar os nomes em decorrência da contração do matrimônio,


muitas vezes, funciona como uma forma sutil de renunciar à origem, apagar o passado,
sua procedência, sua filiação e sua estirpe. Porém, conforme Rossi (1994), a qualidade
dos vínculos estabelecidos entre os cônjuges e suas famílias de origem termina
influenciando as relações vinculares da nova família como, por exemplo, a relação que
se teve com a mãe ou com o pai é base para futuros relacionamentos amorosos, assim
como a relação que a nora estabeleceu com sua mãe poderá definir a possibilidade de
relacionamento dela com outras mulheres, como no caso, sua sogra.

Ou seja, se o interesse for livrar-se de alguns padrões, já que não existem garantias
de que serão estabelecidos novos padrões familiares nesse novo sistema, do qual se
tenham motivos de orgulho em sustentar esse novo sobrenome, em detrimento de outro,
mais preventivo seria se cada nubente pensasse primeiro em acrescentar, do que em
suprimir ou substituir sobrenomes.

385
Vale destacar que não é possível pré-estabelecer que o procedimento preventivo,
no que se refere a suprimir ou substituir sobrenomes, seja instituído como correto e que
este deva extinguir o desejo de efetivar a mudança que o cônjuge acredite ser significativa
para ele(a), pois os resultados da substituição do sobrenome somente poderão ser sentidos
no processo, isto é, nas consequências que irão implicar esta ação de mudança.

As relações de parentesco por afinidade oriundas do vínculo matrimonial


desencadeiam sentimentos como: ciúme, inveja, insegurança, raiva, tristeza, amizade,
amor, carinho, respeito, entre outros. Kahn (1963) ilustra que quando os cônjuges se
sentem recebidos pela família afim como mais um filho, também passam a sentir seus
sogros como amigos, ao invés de inimigos, o que favorece para que os conflitos que
surgirem sejam administrados de forma saudável. Mesmo as relações que são alvos de
preconceito social, como a relação sogra-nora, podem conviver com sentimentos bons, e
isso já era diagnosticado há três décadas, em estudos que comentavam a possibilidade do
matrimônio trazer mais um filho ou filha para a família.

Cabe a cada cônjuge desenvolver uma postura que possa auxiliar o seu parceiro,
recém-chegado à sua família, a contribuir favoravelmente para o desenvolvimento das
relações afins, já que possuem maior intimidade com esta família, sua, de origem, que, a
partir do matrimônio, também fará parte dos parentes do seu parceiro, com os quais deve
desenvolver relações afetivas para melhor convivência entre as partes.

De acordo com Rossi (1994), é importante que cada um identifique seu novo papel
nessa nova família, oriunda do matrimônio, conscientizando-se de que não é preciso
competir, já que cada um exerce um papel diferente. Essa construção de papéis e regras
de relação é um processo circular de influência recíproca ao longo do tempo.

O pacto conjugal é uma área fundamental do vínculo, afinal, é um pacto que se


coloca entre a declaração de compromisso (na saúde e na doença, nas alegrias e nas
tristezas) e a presença de uma dimensão desconhecida. Andolfi (2002) considera-o algo
essencialmente privado que, quando bem esclarecido, tem como consequência a
marginalização do terceiro na relação, seja ele a comunidade, a família de origem, a
família por afinidade ou o próprio corpo social.

Em toda cultura os casais fazem uma espécie de contrato metafórico no início da


relação, que, de acordo com Rosset (2004), no desenrolar do relacionamento, vai se
atualizando e moldando as regras da própria relação. Alguns itens são intencionais, outros

386
surgem de acordo com as situações, e assim vão ficando definidos os direitos das partes,
em que cada um recebe alguma coisa em troca de algo que dá. Isso muitas vezes ocorre
de forma subliminar ou implícita, e não formalmente contratada.

A forma repetitiva que o casal usa para responder e reagir às situações da vida e às
situações relacionais, englobando tudo o que é dito e não dito, a forma como dizem e
fazem as coisas e as nuances do comportamento do casal compõem o que é chamado de
padrão de funcionamento do casal.

No curso do ciclo vital do casal, os parceiros tentam construir uma variedade de


paradigmas relacionais não tradicionais. Por um lado, experimentam novos contratos
relacionais, mas, por outro, ainda sofrem influências muito fortes sobre os contratos e
modelos interativos que desenvolvem. Essas influências são tanto das famílias de origem,
como das famílias por afinidade, além da própria sociedade, a respeito dos papéis, dos
direitos e das responsabilidades da esposa e do marido, do pai e da mãe. Esses valores,
segundo Andolfi (2002), permeiam os modos de conceber o casamento e condicionam o
modo de ser marido e mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo que temos observado e fomos discorrendo ao longo deste nosso breve estudo,
depreendemos que, além dos aspectos objetivos referentes à alteração do sobrenome com
o advento do casamento, gravitam motivações subjacentes que podem fazer emergir, nos
indivíduos e famílias, questões subjetivas que este ato pode estar representando, já que o
sobrenome faz parte de um patrimônio simbólico familiar que legitima o pertencer àquela
família.

REFERÊNCIAS

ANDOLFI, Maurizio. A Crise do casal: uma perspectiva sistêmico-relacional. São Paulo:


Artmed, 2002.

BOWEN, Murray. De la familia al individuo: la diferenciación del si mismo en el sistema


familiar. Barcelona: Ed. Paidós, 1991.

CERVENY, Ceneide Maria Oliveira. Família e... comunicação, divórcio, mudança, resiliência,
deficiência, lei, bioética, doença, religião e drogadição. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

387
COUTO, Maria Clara; PRATI, Laissa; FALCAO, Deusivania; KOLLER, Silvia. Terapia
familiar sistêmica e idosos: contribuições e desafios. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, 2008.
v.20, n.1, p. 135-152. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652008000100009>. Acesso
em: 02 jun. 2018

KAHN, Fritz. Amor e felicidade no casamento. São Paulo: Boa Leitura, 1963.

LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares de parentesco. [Trad. Mariano Ferreira]. 2


ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

REED, Evelyn. Sexo contra sexo ou classe contra classe. São Paulo: Sundermann, 2008.

ROSSET, Maria Solange. O casal nosso de cada dia. Curitiba: Sol, 2004.

ROSSI. J.S.S.S.: Síndrome Sogra-Nora – Uma relação de parentesco (des) conhecida.


Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS. 1994

SANTOS, Bruna Francinetti dos. Legado familiar: uma história com nome e sobrenome. In:
CERVENY, Ceneide Maria Oliveira. Intergeracionalidade: heranças na produção do
conhecimento. Cap. 2. São Paulo: Roca, 2011.

388
ARQUIVOS LITERÁRIOS COMO SUPLEMENTO PARA A
CRÍTICA BIOGRÁFICA: A ATUAÇÃO DE MURILO RUBIÃO NO
SUPLEMENTO LITERÁRIO DO MINAS GERAIS (1966-1969)1

LITERARY ARCHIVES AS A SUPPLEMENT TO A BIOGRAPHICAL


CRITICISM: THE MURILO RUBIÃO ACTION’S IN THE LITERARY
SUPPLEMENT OF MINAS GERAIS (1966-1969)

Mariana Novaes2

Resumo: A partir da segunda metade do século 20 o universo documental ampliou-se e


passou a ser estudado não apenas na sua relação de história e memória, mas também de
identidade. Surge, então, nas instituições públicas e privadas, os arquivos privados e
pessoais e iniciam-se pesquisas multidisciplinares que fazem uso das fontes primárias
para o cotejamento da história narrada com a história que se diz ser vivida, e, no caso dos
arquivos de escritores, do estudo da vitae da obra, sem que um dependa exclusivamente
do outro. O documento adiciona, amplia, funciona como um suplemento para o que se
pretende ser estudado. Este trabalho pretende apresentar os Arquivos Pessoais – mais
especificamente, “os arquivos literários” – como uma alternativa metodológica e teórica
para o estudo da crítica biográfica, para a análise e comparação do universo pessoal e
literário do escritor. Além disso, será feito um estudo de caso no arquivo do escritor
Murilo Rubião e no jornal Suplemento Literário do Minas Gerais (SLMG), do qual foi
fundador e diretor nos anos de 1966 a 1969. O estudo de caso permitirá entender e
demonstrar como o arquivo de Murilo Rubião e os documentos contidos nele
(correspondências, periódicos e fotografias) podem ajudar e entrelaçar o estudo
biobibliográfico do escritor.
Palavras-chave: arquivos pessoais, crítica biográfica; Murilo Rubião, Suplemento
Literário do Minas Gerais.

Abstract: From the second half of the 20th century up to the present, the documentary
universe has expanded and has begun to be studied not only in its relation to history and
memory, but also identity. It then arises, in public and private institutions, private and
personal archives,followed by multidisciplinary research that makes use of the primary
sources for the collation of the narrated story with the story that is told to be lived and,in
the case ofwriters’ files, the study of vita and work, without exclusive interdependence
betweenone the other. The document adds, expands, and works as a supplement to what
is intended to be studied. This work aims to present the Personal Archive – specifically,
“the literary archives” – as a methodological and theoretical alternative for the study of

1
Mesa-redonda Arquivo: lugar de memória.
2
Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

389
biographical criticism, in order to analyze and compare the writer’s personal and literary
world. Furthermore, a case study will be done onwriter Murilo Rubião’s archive and the
newspaper Suplemento Literário do Minas Gerais (SLMG ), which he was the founder
and director during the years 1966–1969. The case study will highlight and demonstrate
how Murilo Rubião’s archive and the documents contained therein (letters , journals and
photographs) can help to interweave the bio-bibliographical study of the writer.
Keywords : personal archives, biographical criticism, Murilo Rubião, Suplemento
Literário do Minas Gerais.

Por que sentimos tanto a necessidade de arquivar nossa própria vida? Por que a
arquivamos? Por que vivemos o presente já pensando no passado? A necessidade de
registrar e documentar aumentou nos dias hoje? Ou será que sempre nos apegamos ao
passado e sempre tivemos uma urgência pela aprovação, nem que esta venha após a
morte? Estamos desde sempre na recherche de um tempo perdido e a madeleine
experimentada tem outro sabor quando ativada na nossa memória, não é mais a mesma e
toda lembrança passa a ser ficção.

Qual é o seu sonho? “Ser imortal e depois morrer”, já dizia Godard. A necessidade
de arquivar e documentar a própria vida e de dar tanta importância ao passado nasce nas
pinturas rupestres feitas nas cavernas e hoje ela passa pela arte – como arquivo, como
memória e processo criativo – chegando até a moda retrô, aos hipsters, aos fotologs, blogs
e afins. Se não somos importantes, queremos sê-lo, queremos pertencer: a uma época, a
um grupo, a uma classe.

A identidade e a subjetividade de um sujeito estão muito mais ligadas à


aproximação e identificação do que às diferenças. As semelhanças que temos entre nós
são infinitamente maiores que as diferenças e é justamente nos temas comuns (carreira,
lugar de nascimento, morte, classe, relações afetivas e familiares, afinidades literárias)
que organizamos e fazemos o nosso arquivo. O nosso “arranjo”3 é determinado pela nossa
trajetória de vida, gerando o inventário4: o legado que, no caso do artista e do escritor, é
a sua obra. Para que esse arquivo seja aberto e lido por outro além do titular, é preciso

3
Segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, arranjo é a “sequência de operações
intelectuais e físicas que visam à organização dos documentos de um arquivo ou coleção, de acordo com
um plano ou quadro previamente estabelecido” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 37).
4
Segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, o inventário é o “instrumento de pesquisa
que descreve, sumária ou analiticamente, as unidades de arquivamento de um fundo ou parte dele, cuja
apresentação obedece a uma ordenação lógica que poderá refletir ou não a disposição física dos
documentos.” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 109).
390
que ocorra algum tipo de identificação, nem que esta aproximação seja feita somente pelo
lado parental, pelos álbuns de família.

Por isso, o feitiço pelo arquivo, o “mal de arquivo”, pois, de alguma forma a nossa
vida e a vida do outro é repleta de significados para nós. No final das contas,
independentemente das nossas escolhas profissionais e pessoais, somos todos da mesma
espécie e a nossa felicidade está também ligada a nossa necessidade de reconhecimento,
seja ele profissional ou pessoal, e balizada pela nossa carência e insegurança. O escritor,
não diferente de qualquer ser humano e de qualquer artista, quer que sua obra seja pública,
quer revelar-se, ser reconhecido. O que muda é o objeto que, no caso, é a literatura.

Muitos querem arquivar não só a obra, como também a própria vida. Quando
reconhecido, o objeto que se cria (a obra) deixa de ser o centro e passa a ser o meio, a sua
arte é eventualmente canonizada e, posteriormente, surge a curiosidade de saber onde e
como foi deixada aquela assinatura: em saber sobre o autor, dos detalhes de sua vida
íntima, do seu processo criativo e de todo o percurso de vida (profissional, acadêmico,
familiar, de classe e gênero, sucesso e dificuldades) que o levou a se tornar aquele artista:
canonizado, pertencente a um grupo literário e à história da literatura. Por isso, já
prevendo, um escritor guarda o seu arquivo, documenta, cataloga e manuscreve; por isso
os seus familiares, após a morte do autor, doam ou vendem os seus arquivos, bibliotecas
e mobiliários: para serem imortais e depois morrerem.

Murilo Rubião não seria diferente. O escritor arquivou a própria vida,


possivelmente, já pensando que estudantes como eu iriam mais tarde estudar a sua obra e
a sua vida e a relação de uma com a outra: ou seja, de que maneira a trajetória de vida de
Murilo Rubião influenciou na sua sensibilidade artística. Neste ponto, além dos 33 contos
que o escritor publicou e que foram várias vezes reescritos e republicados, considero o
jornal Suplemento Literário do Minas Gerais, quando foi diretor, nos anos de 1966 a
1969, como parte de sua obra, já que ali se revelou uma geração, uma época, uma
literatura que se formou graças ao escritor Murilo Rubião.

Primeiramente, foi preciso saber quem foi Murilo Rubião, conhecer e ler sua obra:
seus contos e o Suplemento. Para que isso acontecesse passei por todo um percurso
acadêmico e profissional. Quando adolescente e criança tive contato em minha própria
casa com escritores que fizeram parte da “geração Suplemento” (Jaime Prado Gouvêa,
Libério Neves, Luiz Vilela, Humberto Werneck e Sérgio Sant’Anna). Entrei para a
Faculdade de Letras; em 2008, comecei como bolsista e pesquisadora do CNPq no Acervo
391
de Escritores Mineiros onde comecei estudando a escritora Lúcia Machado de Almeida e
as correspondências de Cecília Meireles (que oferecem um rico estudo sobre os bastidores
do seu livro Romanceiro da Inconfidência); cheguei à poesia de Adão Ventura; aos 40
anos de amizade epistolar entre Drummond e Abgar Renault e acabei caindo no arquivo
de Murilo Rubião. Junta-se à minha experiência no Acervo de Escritores Mineiros o
tempo em que estagiei no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 2009 e 2010, o
mesmo jornal dirigido por Murilo Rubião, que após mais de 40 anos ainda se configura
como um dos principais jornais culturais e literários do Brasil. Assim, houve todo um
percurso de minha vida: intelectual, acadêmico, pessoal e profissional, que me levou a
chegar em minha pesquisa, em tornar Murilo Rubião e o Suplemento Literário objetos de
minha dissertação de mestrado.

De uma maneira ou de outra, aconteceu comigo e com qualquer outro ser humano,
o mesmo que com Murilo Rubião: a minha vida e trajetória, minhas escolhas
influenciaram no meu sentimento e na minha sensibilidade, ou seja, moldaram as minhas
escolhas pessoais e profissionais.

A personalidade de Murilo Rubião, a sua atuação como jornalista e funcionário


público, suas amizades e relações no meio intelectual foram importantes e fundamentais
para que Murilo se destacasse como escritor, como secretário do Suplemento e como
chefe de gabinete do governo de JK. O comportamento sistemático de Murilo – seja na
escrita e reescrita de seus contos, no trabalho minucioso com a linguagem e na
organização de seu arquivo –, a personalidade enigmática, suas relações profissionais e
de amizade irão influenciar sua obra e, consequentemente, sua atuação como diretor do
Suplemento Literário do Minas Gerais.

O estudo da relação entre a obra e a vida dos escritores está associado à crítica
biográfica, e o estudo dos seus bastidores, do seu processo criativo, liga-se também à
crítica genética. Nestas adjacências da crítica literária, há ainda a crítica textual, que
pretende aproximar o texto da sua forma originária, do texto desejado pelo autor. O
arquivo de um escritor, seus documentos, conhecidos também como fonte primária, é um
meio, uma bibliografia e uma metodologia que o pesquisador utiliza para trabalhar nestes
três ramos da crítica literária.

Segundo Eneida Maria de Souza (2011, p. 21), a crítica biográfica não é um retorno
ao pensamento positivista do século 19 e início do século 20, “ela não pretende reduzir a
obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a ficção produto de sua vivência pessoal
392
e intransferível”, ela “amplia o polo literário para o biográfico e daí para o alegórico”.
Também, segundo Eneida, “o próprio acontecimento vivido pelo autor – ou lembrado,
imaginado – é incapaz de atingir o nível de escrita se não são processados o mínimo
distanciamento e o máximo de invenção” (SOUZA, 2011, p. 21). Assim, a obra de Murilo
Rubião é mais importante do que qualquer estudo sobre ela, mesmo que os documentos
contidos no seu arquivo sirvam como “suplemento”, como ampliação do universo do
pesquisador e para a construção do cânone literário.

O tratamento, o gerenciamento e a catalogação das fontes primárias são de


responsabilidade da arquivística, e a sua interpretação, do pesquisador (que pode ser um
historiador, um jornalista, um professor ou um arquivista). “Arquivos literários”,
“arquivos políticos”, “arquivos militares” e “arquivos religiosos” são designações que
atrelam o titular (o dono do arquivo) a sua função, convertendo uma atividade do titular
em atributo geral de todos os documentos de seu arquivo. Na verdade, segundo a
arquivística, esses arquivos são classificados como privados ou pessoais.

É importante pensarmos quais imagens são refletidas no arquivo daquele escritor e


até mesmo qual a relevância desse arquivo para que uma instituição tome sua guarda; na
seleção e descarte que foram feitos e na relevância que o escritor e sua obra tiveram para
que o arquivo de Murilo fosse acolhido e tratado por uma instituição. É importante, assim,
refletirmos quais figuras de Murilo Rubião têm relevância para a sua obra: se a sua
personalidade enigmática e sistemática, que caracteriza a concisão de sua linguagem e a
temática uniforme de seus contos, ou se a sua atuação jornalística e burocrática, que
reflete no seu papel como diretor e idealizador do Suplemento Literários do Minas Gerais.

MURILO RUBIÃO E O ARQUIVO DE MURILO

Não diferente de muitos intelectuais no Brasil, a atividade jornalística e o


funcionalismo público farão parte de toda a trajetória profissional de Murilo Rubião. E
na sua literatura, a mágica se dá quando a realidade se transforma no universo fantástico
e alegórico do escritor. Segundo o próprio autor, o gênero realismo fantástico é “o
fantástico que tem como base a própria realidade, o cotidiano. Que por sua vez é
fantástica. Você quer algo mais fantástico do que a própria vida? Ou a própria morte?”
(RUBIÃO, 1979).

393
Murilo Rubião foi um dos primeiros escritores a se aventurar no gênero do realismo
fantástico, causando, por isso, estranhamento por parte de críticos literários e muitas
dificuldades para a publicação de sua obra. Antes da publicação de seu primeiro livro, O
ex-mágico, em 1947,Murilo ainda escreveu quase três livros, num total de cinquenta
contos. Por cerca de quatro anos, seus originais circularam nas editoras do Rio de Janeiro
e de Porto Alegre. Sua primeira coletânea de contos, Elvira e outros mistérios, foi
recusada por sete editoras. Depois dela, escreveu O dono do arco íris, que também não
conseguiu publicar.

Somente no final dos anos 1960, com o sucesso de escritores como Júlio Cortázar,
Gabriel Garcia Marquez e Jorge Luís Borges, que sua obra passaria a ser reconhecida e
inserida no boom do gênero fantástico na literatura latino-americana. Em 1974, com a
publicação dos livros O pirotécnico Zacarias (que venderia mais de cem mil exemplares)
e O convidado, a literatura de Murilo Rubião passaria de fato a ser reconhecida. A partir
de então, novas edições de seus livros foram lançadas e traduzidas e sua obra passou a
ser estudada nas escolas e nas academias. Em 1978, publica A casa do girassol vermelho
e, em 1990, o seu último livro em vida, O homem do boné cinzento.

Sua estreia na edição de jornais culturais se deu muito antes da criação do


Suplemento. Em 1938, fundou com um pequeno grupo a revista de cultura Tentativa, de
publicação mensal, que chegou a ter doze números. Nos anos 1940, trabalhou como
repórter e redator do jornal Folha de Minas, da revista Belo Horizonte e foi diretor da
Rádio Inconfidência.

Em 1951, Murilo Rubião foi nomeado oficial de gabinete do governador Juscelino


Kubitschek, respondendo ainda pelo expediente da Imprensa Oficial e da Folha de Minas.
Em Madrid, o escritor viveu quatro anos, no período de 1956 a 1960. Lá foi nomeado
Chefe do Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil e, quando retornou a
Belo Horizonte, em 1961, foi designado para a função de redator do Minas Gerais.
Finalmente, em 1966, foi convidado pelo governador Israel Pinheiro para assumir a
criação e direção do Suplemento Literário do Minas Gerais.

No fundo5 de Murilo Rubião, organizado em dezesseis séries, com


aproximadamente 9.600 documentos manuscritos e datilografados, que foi doado pela

5
Também segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística o fundo é o “conjunto de
documentos de uma mesma proveniência. Termo que equivale a arquivo.” (ARQUIVO NACIONAL, 2007,
p. 97).
394
família, encontramos os originais de suas obras, textos e contos inéditos, a
correspondência trocada com vários escritores, como João Cabral de Melo Neto, Mário
de Andrade, Autran Dourado, Fernando Sabino, sua documentação de ordem pessoal e
profissional, fotografias que tratam de sua vida pública e privada, periódicos que
colecionava e, também, os documentos que tratam sobre o jornal Suplemento Literário
do Minas Gerais, do qual foi diretor e fundador.

No arquivo do escritor, o maior volume documental sobre a sua participação na


vida pública é o que se refere ao Suplemento Literário do Minas Gerais. Totalizam-se
mais de 1.700 documentos, dentre recortes de jornais e revistas, correspondências e
fotografias que tratam sobre a história e os bastidores do jornal criado por Murilo Rubião.

Nélida Piñon, Silviano Santiago, Carlos Drummond de Andrade, Autran Dourado,


Affonso Romano de Sant’Anna, Augusto e Haroldo de Campos e João Cabral de Melo
Neto, dentre outros, eram correspondentes de Murilo e colaboradores do jornal. O
Suplemento do Estado de São Paulo (SESP), o Diário de Notícias, o Correio da Manhã
(Rio de Janeiro) e o Estado de Minas – com as crônicas semanais de Drummond – eram
alguns dos jornais que publicavam notícias e críticas sobre o Suplemento Literário do
Minas Gerais, e em suas páginas também narraram sua história.

Vale destacar a correspondência datada de 1967, em que Carlos Drummond de


Andrade faz considerações e tece elogios ao periódico mineiro:

Suplementos Literários: até dá enjôo falar neles. Que retrato falso


costumam oferecer da literatura. Entretanto têm função importante a
executar, no quadro cultural do país. Se não a executam, a culpa é de
quem os faz, não da forma jornalística. O SL do Minas põe o jornal a
serviço da literatura e das artes, mediados entre a criação e o
consumidor, o faz com dignidade e imaginação. Merece ser lido.
(DRUMMOND, 1967).
Em trecho de uma carta de Autran Dourado, ao falar sobre uma dificuldade pontual
de sua colaboração no jornal, acaba explicitando sua forma de produzir, gerar seu texto
literário e refere-se também ao processo muriliano de escrita literária.

Mas o que tem mesmo dificultado a remessa de minha colaboração é


que fiz, há dois meses, uma verdadeira loucura: os originais de meu
romance Ópera dos Mortos, já entregues à Civilização, pedi-os de volta
para uma simples revisão e acabei quase louco de tanto que neles mexi,
retoquei, reescrevi; você sabe como é isso, você que é um escritor por
demais, excessivamente até – acho, cuidadoso e limpo. (DOURADO,
1967).

395
Observe-se, ainda que, na correspondência acima, lê-se o fato importante da
literatura brasileira da época – a publicação em 1967 do romance Ópera dos mortos, de
Autran Dourado e frise-se referência às constantes reescritas e correções que Murilo
Rubião fazia nos seus contos, como se confirma através das sucessivas reedições de seus
livros.

O arquivo de Murilo Rubião merece estudos à parte quanto à maneira com que o
escritor organizou, tratou e catalogou o seu arquivo. Quando doado ao Acervo de
Escritores Mineiros (AEM), o arquivo do escritor apresentava uma organização e uma
sistematização feitas pelo próprio Murilo Rubião, que em parte foram preservadas, como,
por exemplo, o arranjo de suas correspondências em que o titular separa suas cartas em
subséries, em pastas intituladas “Mário de Andrade, Otto Lara Rezende, Jair Rebêlo Horta
e Paulo Mendes Campos”, “Fernando Sabino”, “colegas”, “amigos e conhecidas”,
“correspondência feminina (amigas, etc.)”. Outro aspecto importante no acervo de
correspondências de Murilo Rubião são as anotações, grifos e correções que fazia em
cada carta recebida. Com um lápis colorido, Murilo corrigia os erros de português, grifava
os estrangeirismos e títulos de obras, escrevia “responder” em algumas cartas e também
a profissão e nome de cada remetente. Nos periódicos evidenciamos a mesma
característica: em jornais recortados e colados em papel A4, além de sublinhados alguns
trechos, encontramos datilografados a fonte, a data e o local de publicação da matéria
publicada.

Tais características denunciam o rigor arquivístico do escritor; a intenção de


documentar, arquivar e tornar acessível o seu acervo, revelam traços de suas relações e
personalidades, mas também podem muitas vezes confundir o pesquisador – duvidamos
da autenticidade das rasuras e nos perdemos em arquivos que, pela classificação dada,
julgávamos conter o que estávamos procurando6.

Quando abrimos o arquivo de Murilo Rubião e, mais especificamente, o arquivo do


Suplemento, lemos o surgimento, a divulgação e a crítica de novos escritores, vê-se o
aparecimento de novas tendências literárias e de outros críticos. Constrói-se, portanto,

6
Um exemplo da “traição” dos arquivos se mostra na carta de João Cabral de Melo Neto a Murilo Rubião.
Datada (legivelmente) de janeiro de 1966, antes da criação do Suplemento, a carta causou certo
estranhamento da minha parte, levando-me a pensar que poderia ser uma espécie de brincadeira de João
Cabral de Melo Neto ao escritor fantástico Murilo Rubião ou, então, que o Suplemento já existisse antes.
Com a ajuda de Jaime Prado Gouvêa, descobri que era apenas um erro de data “Pode ser que, como acontece
muito com meus cheques de início do ano, os missivistas tenham se esquecido que já estavam em 1967, o
que explicaria isso (GOUVÊA, 2013).
396
uma gênese e faz-se a narração da história do jornal e da história e crítica literária da
época, não somente a partir do arquivo do escritor e diretor Murilo, mas também a partir
do arquivo do SLMG – dos textos, ensaios e ilustrações publicados no jornal nesta época,
nas 172 edições que o escritor assinou como diretor e secretário.

O SUPLEMENTO LITERÁRIO DO MINAS GERAIS 7

Numa breve leitura, a história do Suplemento é extremamente rica, tanto no que


refere a suas fases (com os seus diferentes secretários) quanto a suas publicações. Nesses
mais de quarenta anos de vida, o SLMG teve, além de Murilo Rubião, mais de quinze
diretores, e cada um deles imprimiu característica e importância singular à fase que viveu
no jornal. Muitos, inclusive, tiveram como referência a atuação de Murilo nos primeiros
anos do periódico.

Criado por Murilo Rubião, a primeira edição do Suplemento Literário do Minas


Gerais foi lançada em 3 de setembro de 1966, com uma tiragem de 27 mil exemplares. O
jornal, no início, tinha uma periodicidade semanal e, além de um mailing que chegava
aos principais intelectuais e escritores brasileiros, atingia mais de duzentos municípios de
Minas Gerais. O Suplemento Literário do Minas Gerais saia como encarte do jornal
Minas Gerais – Diário Oficial do Estado que tinha como principal função a publicação
de atos e decretos do governo e era impresso e redigido na Imprensa Oficial de Minas
Gerais. Murilo Rubião, então funcionário da Imprensa Oficial, foi nomeado pelo
governador Israel Pinheiro e criou um suplemento literário que em pouco tempo alcançou
repercussão e sucesso nacional e internacional, podendo ser comparado, na época, a
suplementos como o do Jornal do Brasil e Suplemento Literário do Estado de São Paulo.

Focado na ficção, na poesia e no ensaio, o Suplemento Literário abriu-se também a


outros campos da cultura, como cinema, o teatro e as artes plásticas. Seguindo a receita
de Mário de Andrade, o jornal apresentava sempre a preocupação de mesclar vozes de
distintas gerações. E para isso contou com a colaboração de escritores já consagrados pela
crítica, mas também publicou e contratou para a redação do jornal, consecutivamente,
escritores novos.

7
Todas as edições do Suplemento Literário de Minas Gerais encontram-se digitalizadas e disponíveis nos
sites: www.letras.ufmg.br/websuplit e http://www.cultura.mg.gov.br/imprensa/publicacoes/suplemento-
literario.
397
A primeira comissão de redação do SLMG contou com Affonso Ávila, Laís Corrêa
de Araújo e Aires da Mata Machado Filho e pelos redatores Márcio Sampaio e José
Márcio Penido e pelo diagramador Lucas Raposo. Mais tarde, se juntariam Valdimir
Diniz, João Paulo Gonçalves da Costa, Carlos Roberto Pellegrino, Jaime Prado Gouvêa,
Adão Ventura, Humberto Werneck, Paulinho Assunção, dentre outros.

Graças a Laís, o semanário foi pioneiro na tradução de autores como Julio Cortázar,
Gabriel Garcia Márquez e Javier Villafañe. Além de revelar novos nomes, o Suplemento
publicou autores consagrados da literatura brasileira da época, como Carlos Drummond
de Andrade, Murilo Mendes, Antonio Candido, Osman Lins, Luís Costa Lima, Lygia
Fagundes Telles, Silviano Santiago, entre outros – além de mineiros, como Emílio Moura,
Eduardo Frieiro, Bueno de Rivera e Francisco Iglésias.

Numerosas edições especiais, publicadas quase mensalmente, em capa dura e


colorida, trataram de temas como o Barroco ou os quarenta anos do Movimento
Antropofágico e homenagearam escritores como Abgar Renault, Mário de Andrade,
Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Rodrigo M. F. de Andrade, Guimarães Rosa, Lúcio
Cardoso e Cyro dos Anjos.

Os primeiros contos de Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna, Jaime Prado Gouvêa e


Humberto Werneck e os primeiros poemas de Libério Neves e Bueno de Rivera foram
publicados nas páginas do jornal. Para esses escritores em formação, que seriam mais
tarde chamados pela crítica de a “Geração Suplemento” ou o seu grupo de “Os Novos”,
a divulgação e a revelação promovidas pelo Suplemento Literário e a influência de Murilo
Rubião e de um ambiente literário, boêmio e fraterno que efervescia na redação do
Suplemento foram fundamentais.

A Sala Carlos Drummond de Andrade, como era chamada a redação do Suplemento,


foi também um ponto de convergência, encontro e amadurecimento de intelectuais e
escritores. Como disse Sérgio Sant’Anna, além da preparação do jornal, “reuniam-se lá
nos fins de tarde para conversar fiado, mostrar seus novos trabalhos e fazer uma hora para
ir para os bares da vizinhança, de preferência o Saloon e o Lucas” (SANT’ANNA, 2009).

O Suplemento Literário recebeu também a visita de vários escritores e pensadores


do Brasil e do exterior. Roman Jakobson, Ana Hatherly, Murilo Mendes, Haroldo de
Campos, Clarice Lispector, Otto Maria Carpeaux e Tzvetan Todorov estiveram em Belo

398
Horizonte, e na redação do Suplemento produziram-se várias colaborações, matérias e
entrevistas.

Criado em plena ditadura militar, não tardou muito para que o jornal passasse por
algumas dificuldades. O provincianismo mineiro, a descrença da parte mais conservadora
de escritores (a maioria da Academia Mineira de Letras) e a ditadura fizeram com que se
instalasse uma crise no jornal, culminando com a saída de Murilo Rubião. “Um pequeno
grupo de acadêmicos movia ardilosa campanha contra o ‘vanguardismo’ do Suplemento
e a blindagem estabelecida por Rubião contra a subliteratura que costuma assaltar
publicações do gênero”. (OSWALDO, 2011, p. 9). Denunciado como subversivo, Murilo
se afasta do jornal, sendo substituído por Rui Mourão, que também seria vítima do regime
autoritário, permanecendo pouco tempo no SLMG, assim como os diretores seguintes,
Libério Neves e Ildeu Brandão.

Como secretário do Suplemento, a seriedade e a solidez de sua literatura refletiram-


se também na sua personalidade e atuação no jornal. Em entrevista, Jaime Prado Gouvêa,
atual superintendente e também redator do jornal na época de Murilo, diz que a maior
influência que teve de Murilo Rubião não foi estética (para ele, a literatura de Murilo
Rubião não deixou seguidores). Segundo o escritor, Murilo deixou o exemplo da
seriedade com que encarava o seu ofício e, mesmo que involuntariamente, legou aos
jovens escritores a busca por um estilo próprio e conciso. Nas palavras de Jaime, Murilo
“deu a régua, o compasso e o espaço do Suplemento pra gente criar e crescer.”
(GOUVÊA, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Beatriz Bacher, quando convidada em 2010 para o colóquio “Crítica da Cultura: o


Futuro do Presente”, organizado pela Universidade de São João Del Rey, no texto
“Literatura e vida – experiência e gesto criador”, diz o seguinte:

O que quero dizer é que a experiência do autor, suas experiências


pessoais, não são tanto “do autor”, “pessoais”, no sentido de originais e
únicas. É claro que, exatamente porque as variáveis são inumeráveis
(apesar de infinitas) e podem atuar de maneiras tão diversas, cada ser
humano é original, diferente do outro, mesmo em características em que
o livre-arbítrio não tem vez, como a impressão digital.

399
E não há nenhuma dúvida de que a vida de qualquer pessoa é muito
mais relevante, intensa, inesperada e original do qualquer literatura
(BRACHER, 2012, p. 267).
Por que sentimos essa necessidade de arquivar a própria vida? Por que a
arquivamos? Arquivamos para ficar na memória como documento e monumento. Cada
ser tem sua urgência, seu desejo, suas lembranças que são muitas vezes comuns a todo
indivíduo, mas o que o torna arquivável e imortal é a sua originalidade.

No caso de Murilo Rubião, o escritor deixou uma obra singular: foi precursor do
gênero realismo fantástico, elaborando com minúcia e concisão o seu texto e sua
linguagem. Foi ainda responsável pela criação e idealização do Suplemento Literário do
Minas Gerais, um jornal reconhecido nacionalmente e internacionalmente e que, se
sobrevive até hoje, é porque ainda resta muito do mágico Murilo.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Carta a Murilo Rubião. Rio de Janeiro, 1967. Acervo de
Escritores Mineiros, Universidade Federal de Minas Gerais.

ANDRADE, Vera Lúcia. A trajetória fantástica de Murilo Rubião, Suplemento Literário do


Minas Gerais, n.20, Belo Horizonte, dez. 1996.

ARQUIVO NACIONAL. Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística. Rio de Janeiro:


Arquivo Nacional, 2005. Disponível em: <
http://www.arquivonacional.gov.br/images/pdf/Dicion_Term_Arquiv.pdf>. Acesso em: 30 mai.
2018.

BRACHER, Beatriz. Notas para o depoimento sobre “literatura e vida, experiência e gesto
criador”. In: SOUZA, Eneida Marida de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS,
Anderson Bastos (org.). O futuro do presente: arquivo, gênero e discurso. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2012. p. 263-276.

DOURADO, Autran. Carta a Murilo Rubião. Rio de Janeiro, 19 de março de 1967. Acervo de
Escritores Mineiros, Universidade Federal de Minas Gerais.

GOUVÊA, Jaime Prado. Dúvidas sobre o SLMG. Mensagem recebida por:


<marianagonovate@hotmail.com>, em 03 maio 2013.

______. Entrevista com Jaime Prado Gouvêa. Nos rastros dos novos: o fazer crítico e literário
do Suplemento Literário do Minas Gerais (1966-1975). Dissertação de Mestrado. Belo
Horizonte: UFMG, 2009, p. 126-129. Entrevista concedida a Viviane Monteiro Maroca.

NETO, João Cabral de Melo. Carta a Murilo Rubião.Berna, 4 de janeiro de 1967. Acervo de
Escritores Mineiros, Universidade Federal de Minas Gerais.

OSWALDO, Ângelo. Uma luz em tempo de sombra. Suplemento Literário de Minas Gerais.
Belo Horizonte. Edição nº1337, p. 9-10. Julho/agosto 2011.

400
SANT’ANNA, Sérgio. Entrevista com Sérgio Sant’Anna. Nos rastros dos novos: o fazer crítico
e literário do Suplemento Literário do Minas Gerais (1966-1975). Dissertação de Mestrado.
Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 137-153. Entrevista concedida a Viviane Monteiro Maroca.

SOUZA, Eneida Maria de. A crítica biográfica. In: Janelas Indiscretas. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011. p. 17-25.

401
A ESCRITURA BIOFICCIONAL COMO MONTAGEM
CINEMATOGRÁFICA EM O AMANTE DA CHINA DO NORTE, DE
MARGUERITTE DURAS1

THE BIOFICTIONAL SCRIPTURE AS A CINEMATOGRAPHIC


EDITION IN MARGUERITTE DURAS’S THE LOVER OF NORTHERN
CHINA

Mírian Sumica Carneiro Reis2

Resumo: Projeto do Nouveau Roman apropriado nos romances de Margueritte Duras, a


narrativa do olhar é emblemática para a compreensão da escrita e reescrita dos enredos,
na maioria das vezes baseados em experiências autobiográficas desdobradas em ficção.
É o que ocorre, por exemplo, em O amante da China do Norte, publicado em 1991.
Apesar do aspecto biográfico, o teor ficcional da escrita é reforçado no pacto proposto
pela autora na introdução do livro, quando ela afirma: “voltei a ser uma escritora de
romances”. Nesse texto bioficcional, as imagens da memória são reinventadas conforme
um novo roteiro, híbrido, em que cinema e literatura compõem um mosaico que reinventa
também a escrita de si, para além do (auto)biografismo tradicional das cartas e confissões,
como se pretende mostrar neste artigo.
Palavras-chave: literatura, cinema, bioficção.

Abstract: A Nouveau Roman’s project, appropriated in Margueritte Duras’ novels,


the eye-narrative is a key to understand the writing and re-writing of plots, most of the
times based on autobiographical experiences unfold in fiction. That is what happens, for
instance, in The North China Lover, publish in 1991. Despite the biographic aspect, the
fictional content of writing is strengthened when the author proposed a pact with the
reader at the introduction, when she states: “I’m a writer of novels again”. In this
bioficcional text, memory images are re-invented as a new script, a hybrid one, in which
cinema and literature make a self-writing inventive mosaic, not only the traditional
(auto)biographical aspect of letters and reports, as this paper intends to present and
discuss.
Keywords: literature, cinema, bio-fiction.

Ao apresentar as suas Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino (1990)
inclui, entre estas, a visibilidade como um conceito estratégico para pensar a

1
Mesa-redonda Experimentos bioficcionais no cinema e na literatura.
2
Doutora em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professora Adjunta A-I de Teoria da Literatura na
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB).
402
representação de imagens na literatura. Para o autor a relação entre imagem e palavra está
imbricada pelos processos imaginativos que constroem narrativas numa espécie de “tela
interior”, na qual podemos visualizar as cenas descritas, antes mesmo de elas tornarem-
se texto. Segundo Calvino,

Podemos distinguir dois tipos de processos imaginativos: o que parte


da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem para
chegar à expressão verbal. O primeiro processo é o que ocorre
normalmente na leitura: lemos, por exemplo, uma cena de romance ou
a reportagem de um acontecimento num jornal, e conforme a maior ou
menor eficácia do texto somos levados a ver a cena como se esta se
desenrolasse diante dos nossos olhos, se não toda a cena, pelo menos
fragmentos e detalhes que emergem do indistinto. (CALVINO, 1990,
p. 99)
Em contraponto, em um texto pautado em memórias, o esforço de rememoração
baseia-se na reconstrução de imagens do vivido, numa possibilidade de atualização do
passado no presente da diegese narrativa. O acesso a experiências anteriores, por maior
que seja o empenho em priorizar a(s) verdade(s), se dá por uma reconfiguração das cenas
passadas, marcadas por recordação, reminiscência, esquecimento e seleção, como num
filme em que as imagens são antecipadas, atrasadas, editadas conforme a prioridade do
enredo. Ainda seguindo a proposta de Calvino, mesmo o avanço das técnicas
cinematográficas e a popularização do cinema como produto da indústria cultural não
abole a problemática do imbricamento entre texto e imagem. Pelo contrário, segundo o
autor:

No cinema, a imagem que vemos na tela também passou por um texto


escrito, foi primeiro “vista” mentalmente pelo diretor, em seguida
reconstruída em sua corporeidade num set, para ser finalmente fixada
em fotogramas de um filme. Todo filme é, pois, o resultado de uma
sucessão de etapas, imateriais, nas quais as imagens tomam forma;
nesse processo, o “cinema mental” da imaginação desempenha um
papel tão importante quanto o das fases de realização efetiva das
sequências, de que a câmera permitirá o registro e a moviola a
montagem. Esse “cinema mental” funciona continuamente em nós – e
sempre funcionou, mesmo antes da invenção do cinema – e não cessa
nunca de projetar imagens em nossa tela interior (CALVINO, 1990,
p.99, grifos do autor).
No romance realista tradicional, a construção de imagens confunde-se com um
esforço descritivo que visa ilustrar o real da forma mais fidedigna possível, pautada na
referencialidade. Contudo, a narrativa com ênfase no referencial objetivo vai cedendo
espaço ao plano do imaginário e o foco narrativo se descola do ele, objeto, para um eu
que assume uma voz e uma identidade, mesmo quando se coloca na condição de ele. A
temporalidade da narrativa deixa de seguir um fluxo de continuidade organizada que
403
Benedito Nunes (1995) considera como um encadeamento temporal dos fatos, que se
ajustam entre si, promovendo o desenrolar de um enredo ou intriga. As ações deixam de
seguir uma sequência lógica de antecedente e consequente e passa a seguir uma
temporalidade deslocável, movediça, marcada pelo fluxo de consciência do eu que se
institui na narrativa. Tanto no tocante aos acontecimentos presentes, quanto para os
passados ou futuros, o deslocamento do tempo na narrativa “pode inverter a ordem desses
momentos ou perturbar a distinção entre eles, de tal maneira que será capaz de dilatá-los
indefinidamente ou de contraí-los num momento único, caso em que se transforma no
oposto do tempo, figurando o intemporal e o eterno” (NUNES, 1995, p. 25).

O rompimento com as regras de referencialidade e de temporalidade contínua são


características que se acentuam no romance do século XX, em especial no Nouveau
Roman, mas nem por isso descarta-se a importância do legado do realismo para as novas
produções. O que ocorre, segundo análise de Alain Robbe-Grillet, em Por um novo
romance,

De Flaubert a Kafka é toda uma filiação que se impõe à nossa mente,


uma filiação que exige um devenir. Esta paixão por descrever, que
anima todos os dois, é exatamente aquela que encontramos no novo
romance de hoje. Para além do naturalismo de um e do onirismo
metafísico do outro, esboçam-se os primeiros elementos de um estilo
realista desconhecido (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 12).
A grande diferença dessa nova forma narrativa, ainda segundo Robbe-Grillet, está
no método e sobretudo no projeto literário e ideológico do Nouveau Roman. A busca de
uma linguagem mais crua, ao contrário de abolir as subjetividades como pensaram alguns
críticos, pretende deslocar o ponto de vista da narrativa, sair da reificação, em que
inclusive o humano é tornado objeto e partir para uma expressão do real, não mais através
da verossimilhança, mas de um olhar que se lança diferentemente sobre perspectivas do
real. No combate à reificação e na defesa do olhar, Robbe-Grillet afirma:

Mas eis que o olhar desse homem pousa sobre as coisas com uma
inquebrantável insistência: ele as vê, mas recusa apropriar-se delas,
recusa-se a manter com elas um entendimento suspeito, não quer ter
com elas nenhuma conivência; não lhes pede nada; em relação a elas
não sente nem concordância nem dissentimento de espécie alguma.
Pode, talvez, fazer delas o suporte para suas paixões, bem como de seu
olhar. Mas seu olhar contenta-se em tomar as medidas dessas coisas; e
sua paixão, da mesma forma coloca-se à superfície delas, sem desejar
penetrá-las, uma vez que nada há em seu interior, sem ousar fazer o
menor apelo, pois elas não responderiam (ROBBE-GRILLET, 1969, p.
38).

404
É a predominância do olhar, que desnuda os objetos e se desnuda em face deles, a
presença marcante em diversas obras bioficcionais de Marguerite Duras. Projeto do
Nouveau Roman apropriado nos seus romances, a narrativa do olhar é emblemática para
a compreensão da escrita e reescrita dos enredos, na maioria das vezes baseados em
experiências autobiográficas desdobradas em ficção. É o que ocorre, por exemplo, em O
amante da China do Norte, publicado em 1991. A narrativa retoma a história de amor
entre a menina francesa e pobre da Indochina e o chinês do norte, homem rico e mais
velho que a inicia sexualmente. É talvez a última das várias reescrituras de um momento
biográfico marcante da vida da escritora, enquanto ainda vivia em Saigon, ainda jovem,
no começo do século XX, contado e recontado sob diversas perspectivas ao longo da sua
obra literária.

O livro começa com uma apresentação, assinada pela autora, que pretensamente
explica as razões que a motivaram a escrever a história: a notícia da morte, em maio de
1990 do homem que fora seu primeiro amante (amor?), quase sessenta anos depois de
ocorridos os fatos narrados em seus livros, e o desejo de resgatar essa memória (DURAS,
2006, p. 5): “Escrevi a história do amante da China do Norte e da criança: ela ainda não
existia em O amante, não havia tempo. Escrevi este livro em meio à louca felicidade de
escrever. Demorei um ano com ele, fechada naquele ano do amor entre o chinês e a
criança”. E conclui, num aviso, ao leitor: “Voltei a ser uma escritora de romances”
(DURAS, 2006, p. 6).

Ao fazer esse anúncio, Duras põe em destaque um novo pacto, que já não é o
autobiográfico, como proposto por Philippe Lejeune (2008), embora talvez possa ser lido
como um dos projetos propostos pelo autor, para quem a estrutura autobiográfica pode
seguir dois sistemas:

Um sistema referencial “real” (em que o compromisso autobiográfico,


mesmo passando pelo livro e pela escrita, tem valor de ato) e um
sistema literário, no qual a escrita não tem pretensões à transparência,
mas pode perfeitamente imitar, mobilizar as crenças do primeiro
sistema (LEJEUNE, 2008, p. 57).
No sistema literário, Marguerite Duras reescreve e ressignifica cenas biográficas na
(re)construção das histórias de si, onde a escritura representa uma espécie de tradução (às
vezes traição, às vezes invenção) das experiências vividas.

Quando afirma que voltou a ser uma escritora de romances, Duras apresenta
também a teoria do romance que escreve em seu livro: ela assina a obra, mas abre mão

405
da primeira pessoa para relatar suas memórias; ela assume tratar-se de memórias, mas
assume também a ficção que mobiliza a escrita dessas memórias. O caráter biográfico
inerente à obra desdobra-se nos meandros da linguagem, mas não se impõe como chave
única de leitura, numa obra que, inclusive, subverte a linguagem convencional do
romance e apresenta-se nos moldes de roteiro cinematográfico: “Um livro. Um filme. A
noite” (DURAS, 2006, p.9).

Mesmo em terceira pessoa, o olhar do narrador (a escritora?) alterna-se com o olhar


da jovem protagonista, a “Criança” branca de quinze anos (“Criança”, com inicial
maiúscula, como a narradora passa a chamar a protagonista do enredo), para apresentar
os cenários onde transcorrerão as cenas de sua iniciação na ambiguidade da vida adulta
antecipada no corpo da criança, que já não poderia reivindicar para si uma inocência
infantil. Este jogo se estabelece através do relacionamento, também ambíguo, com o
chinês da Manchúria, recém-chegado de Paris, que com 27 anos não tem outra profissão
além de fazer amor com muitas mulheres, fumar ópio, jogar e gastar a fortuna do pai.

A frase inicial soa como uma rubrica de diretor cinematográfico num cenário de um
roteiro: “Uma casa no centro de um pátio escolar. Está completamente aberta. Dir-se-ia
uma festa. É possível ouvir valsas de Strauss e de Franz Lehar, e também Ramona e Noites
da China saindo pelas portas e janelas. Jorra água em toda parte, dentro e fora” (DURAS,
2006, p. 7). Estão apresentados aí cenário, música (que inclui as valsas e os barulhos da
água que jorra), o tom da cena – “uma festa”, mas que já anuncia, nas canções escolhidas,
o desfecho dessa história de amor.

Os amantes sabem, desde o princípio da sua história, que a realidade tem um peso
muito maior do que o desejo. E a realidade, neste caso, inclui o vaticínio proferido pelo
chinês que diz, logo no primeiro momento, que a criança jamais será de um homem só,
bem como, a impossibilidade de uma menina branca, mesmo pobre, casar-se com um
chinês, mesmo milionário. Neste caso, a impossibilidade é justamente a alteridade do
exótico que os estimula, porque os induz a uma transgressão, mesmo que breve, daquilo
que foi determinado pelas tradições familiares envolvidas em relações coloniais. O irmão
mais velho venderia por um valor irrisório a Criança a um médico francês de passagem
por Saigon, mas não aceita que ela se “prostitua” com um colonizado, mesmo rico. O
chinês não pode deixar de casar com a mulher escolhida pela sua família desde que ele
era criança, não pode trocar a chinesa coberta de ouro, jade e diamantes que traz consigo
o peso de uma tradição milenar pela “pequena prostituta branca”. Em O amante da China

406
do Norte, como nas outras histórias desse amor, não há final feliz de amor romântico,
nem idílio para além do permitido pelo desejo – pulsão de vida e de morte nos enlaces de
Eros.

A própria descrição da criança aponta para essa subversão dos códigos


estabelecidos para a época. Ela usa um chapéu de homem, de feltro rosa e abas caídas,
com uma larga fita preta. Um vestido largo, de modelo nativo, que deforma o seu corpo,
e que ela transforma combinando-o com cintos largos de couro emprestados dos irmãos.
Em contraste ao que poderia parecer uma masculinização de sua figura, ela usa um batom
cor de cereja exagerado e velhos sapatos de festa pretos com strass. Os pequenos seios e
as tranças completam a androginia do conjunto denunciando a infância que ainda há no
seu corpo e em várias de suas atitudes. Ela é a melhor aluna do liceu, embora falte algumas
vezes às aulas. Enfim, ela é a garota que rompe com o destino convencional de
feminilidade e casamento, representado na figura da amiga Heléne Langonele a quem a
criança tanto admira e ama, subverte o patriarcalismo representado pela violência e
autoridade do irmão mais velho, e aceita a “desonra” de tornar-se amante do homem
chinês.

Assim, no romance, a autora não precisa ser panfletária para delinear um projeto
ideológico e de escrita que se insinua na tessitura narrativa da memória. Apresentando-se
como uma “memória sem lembrança”, como afirma Foucault (2009, p. 357), as histórias
já contadas do amor entre a criança branca e o chinês vão se justapondo na montagem
desta nova narrativa, desde a apresentação dos personagens: “Ela é a que não tem nome
no primeiro livro, nem no precedente, nem neste aqui. Ele é Paulo, o irmãozinho adorado
por esta jovem irmã, a que não tem nome” (DURAS, 2006, p.7).

Entre Barragem contra o Pacífico (1950), O amante (1984) e O amante da China


do Norte (1991), o entrelaçamento entre ficção e biografia na história da Criança e do
amante chinês segue uma trajetória de deslocamento, translação e reposicionamento
respectivamente. Ou seja, nesses enredos as experiências enfocam dados biográficos
recorrentes, mas com ênfase diferente. Em Barragem contra o Pacífico o foco narrativo
desloca o olhar da história dos amantes para contá-la de forma enviesada, a partir da
história da mãe e a má sorte da vida injusta que levara; em O amante, a história desse
romance é traduzida na subjetividade desvelada no rosto devastado da moça de quinze
anos, e as memórias são sugeridas entre as brumas do que é recordado e do que é
esquecido, num deslocamento temporal em que o hoje da narrativa se contrapõe ao ontem

407
do narrado. Em O amante da China do Norte, a história dos amantes é reposicionada,
assume o protagonismo do enredo e a figura do chinês apresenta mais força moral e
estética, desdobradas na crise causada pelas interdições e separações do amor, e as
memórias se mostram a partir do olhar cinematográfico que conduz ao desvelamento das
subjetividades.

O olho da câmera é indicado no texto pela primeira pessoa do plural, em sequências


em que a perspectiva se desloca, as cenas se apresentam em profundidade de campo,
dando uma visão geral de conjunto, ou em close, enfatizando as expressões e as
subjetividades exteriorizadas pelo semblante dos personagens, como nos exemplos
seguintes: “A jovem toma a direção do parque e vai ver o lugar da festa por trás da grade.
Nós a seguimos. Paramos em frente ao parque” (DURAS, 2006, p. 10, grifos meus), ou
ainda:

A criança abre o portão.


Volta a fechá-lo.
Atravessa o pátio vazio.
Entra na casa.

Nós a perdemos de vista.


Ficamos no pátio vazio.
(DURAS, 2006, p. 12, grifos meus).
O nós que fica de fora e amplia o enquadramento da cena – visualizamos o parque,
uma festa para além das grades, a casa e o pátio do pensionato onde mora a criança
durante o período letivo – abarca a presença do narrador, da câmera e do leitor e impõe
limitações que incitam a imaginação. A narrativa não é onisciente e só se pode seguir até
onde o olhar do “nós” também alcança. A criança segue em frente, mas a narrativa é
descontínua e as marcações de cena são, muitas vezes, montadas sobre cortes abruptos,
como apontam os parágrafos curtos, de apenas uma linha ou duas. Nós (narrador, câmera,
leitor) ficamos impotentes diante dessa descontinuidade, então as ações passam a ser
deduzidas ao invés de descritas, como no exemplo:

Sob a luz de um lampadário, uma pista branca atravessa o parque. Está


vazia.
Agora uma mulher num vestido longo vermelho escuro avança
lentamente no espaço branco da pista. Ela vem do rio.
Desaparece na Residência.
A festa deve ter acabado cedo devido ao calor. Resta apenas esse disco
esquecido que roda num deserto.
A mulher de vermelho não voltou a aparecer. Deve estar no interior da
Residência. (DURAS, 2006, p. 10, grifos meus)

408
“Deve ter acabado”, “Deve estar no interior” são possibilidades de leitura das cenas
apresentadas. Pode ter acontecido isso como não, apenas deduz-se. O olhar da objetiva
não consegue avançar para além do tempo e do espaço na cena e assume, deste modo, sua
falibilidade, como na primeira apresentação do rosto da jovem:

Está diante de nós. Vê-se mal o seu rosto na luz amarela da rua. No
entanto, parece que sim, é muito jovem. Talvez uma criança. De raça
branca.
[...].
Logo depois que a pista se apagou começou a chegar da Residência,
tocada ao piano, aquela canção da valsa morta. A de um livro, não se
sabe mais qual.
A jovem para. E escuta. Pode-se vê-la escutando.
Virou a cabeça na direção da música e fechou os olhos. O olhar cego
está fixo.
Pode-se vê-la melhor. Sim, é muito jovem. Ainda uma criança. E está
chorando.
[...].
A criança sai da imagem. Ela deixa o campo da câmera e o da festa.
A câmera varre lentamente o que acabamos de ver, depois vira e parte
na direção que a criança tomou (DURAS, 2006, p. 11, grifos meus).
A imagem – primeiro mental, depois cinematográfica – proposta pelo narrador-
cineasta indica as nuances de enquadramento, aumentando em nitidez até revelar o rosto
da criança, depois perdendo-o de vista, transferindo a desolação expressa pelas lágrimas
da criança para o cenário de desolamento geral, o fim da festa, o calor, a valsa triste.

Além das marcações cinematográficas sugeridas no corpo do texto, o romance


apresenta notas de rodapé com explicações e/ou sugestões de filmagem, como estratégias
de anular o aparente autoritarismo de algumas descrições e também como crítica a um
outro filme que conta a história desses amantes, a adaptação de O amante feita por Jean-
Jacques Annaud e Gerárd Brach lançada em 1991 (Marguerite Duras fazia parte do
projeto de produção, mas se retirou antes de tê-lo concluído3 e, não por acaso, publicou
no mesmo ano O amante da China do Norte). Nessas notas, as vozes do narrador e da
escritora se confundem, e Marguerite Duras assume no texto a persona autoral, de
romancista e cineasta, e imbrica autobiografia e ficção na construção das imagens do
romance.

3
A informação sobre o “desentendimento” entre Annaud, Brach e Duras foi retirada de um trecho do livro
Os melhores filmes de todos os tempos (1995), de Alan Smithee, disponível na internet em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Amante>. Acesso em 04 ago. 2011.
409
No caso de um filme pode-se escolher: permanece-se sobre o rosto da
mãe que fala sem ver, ou vê-se a mesa e as crianças a quem a mãe se
refere. A autora prefere a segunda opção (DURAS, 2006, p. 17, grifos
meus).
No caso de um filme baseado neste livro, a criança não deverá ser de
uma beleza apenas bela. Talvez fosse perigoso para o filme. É outra
coisa que acontece com ela, a criança, “difícil de evitar”, uma
curiosidade selvagem, uma falta de educação, uma falta, sim, de
timidez. A beleza pura e simples estragaria completamente o filme.
Mais ainda: faria com que desaparecesse. A beleza não faz nada. Ela
não olha. É olhada. (DURAS, 2006, p. 49).
No caso de um filme tudo seria percebido através do olhar. O
encadeamento seria o olhar. Os que estão olhando, por sua vez são
olhados pelos outros. A câmera anula a reciprocidade: ela filma apenas
as pessoas, isto é, a solidão de cada um (aqui cada um dança de uma
vez). Os planos de conjunto não cabem neste caso já que o conjunto,
aqui, não existe. São pessoas sozinhas, “solidões” do acaso. A paixão é
o encadeamento do filme (DURAS, 2006, p. 120).
Nessas notas – rubricas de uma diretora de cinema – o projeto do livro-filme ganha
simetria: é o olhar quem direciona a narrativa, porque é através dele que o humano pode
se revelar no relato, sem tipificação ou reificação, sem engajamento a uma causa que não
seja o relato das memórias de uma paixão, direcionando a leitura.

As notas são os lugares reservados na narrativa para explicitar que as memórias não
se confundem na temporalidade da escrita, mas são montadas também como cenas do
romance. Em algumas delas a autora explica memórias que se desdobraram em outros
fatos, alheios ao enredo central do romance, mas também marcantes em sua vida, unindo
mais uma vez, assim, os laços entre o ficcional e o biográfico, como quando ela esclarece
detalhes da vida “real” da grande amiga da infância:

Helène Langonelle morreu de tuberculose em Pau, para onde a sua


família voltara, dez anos após ter deixado o pensionato de Lyautey.
Tinha 27 anos. Voltara da Indochina onde havia se casado. Tinha dois
filhos. Continuara sempre bonita. Segundo suas tias, que telefonaram
após a publicação do livro O amante” (DURAS, 2006, p. 37).
Ou ainda quando conta:

Esse sonho durou anos depois da partida da criança: rever Prey-Nop, a


pista de Réam. À noite. Também a estrada de Kampot até o mar. E os
bailes da cantina do porto de Réam e as danças, Noites da China,
Ramona, com os jovens estrangeiros que faziam contrabando na costa
(DURAS, 2006, p. 130).
Neste ciclo infinito de memórias sobrepostas, o esquecido, não-lembrado, atua com
tanto vigor quanto o recordado ou recriado. Um lugar, os objetos, os sons e cheiros
deixam de ter tanta importância quando a prioridade é restaurar os sentidos legados pelo

410
momento, os sentimentos preservados mesmo sob camadas de outras experiências e
memórias, como os causados pela dor da separação inevitável e iminente e a sensação de
liberdade dos corpos que a chuva proporciona, aliviando o peso dessa dor.

O esquecido, tanto quanto o recordado, traz a possibilidade de recriação. O nome


do amante é “esquecido”, por que a narradora assim o deseja: “o nome dele, esquecera-
se. Chamava-o você. Haviam-lhe dito o seu nome outra vez. E novamente esquecera.
Depois, havia preferido calar mais uma vez aquele nome no livro e deixa-lo para sempre
esquecido” (DURAS, 2006, p. 56). Nos liames da memória, ele revela a impotência de
lembrar tudo e paradoxalmente a importância de esquecer certos fatos para continuar
vivendo, ou seja, o esquecimento é também uma forma de poder.

O olhar cinematográfico empregado em O amante da China do Norte é a estratégia


narrativa utilizada para representar esse movimento de ocultamento e revelação da
memória. As técnicas de montagem apoiam-se no olhar – e na subjetividade - dos
personagens para compor uma sucessão de planos, nem sempre lineares já que a memória
não segue normas de continuidade, linearidade ou exposição cronológica. O que importa
para a construção da narrativa é o dinamismo mental que justapõe as cenas acessadas e
selecionadas da memória para compor um dinamismo visual, acessível ao leitor, e que às
vezes convida-o a completar a construção dessas imagens, apenas insinuando os planos
seguintes e por isso mesmo tornando-os até mais evidentes do que se tivessem uma
descrição meticulosa, o que representaria uma ilusão de “verdade”.

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2: a experiência limite. Trad.: João Moura Jr.
São Paulo: Escuta, 2007.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo
Barroso. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DURAS, Marguerite. O amante. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.

______. Barragem contra o Pacífico. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Arx, 2003.

______. O amante da China do Norte. Trad. Denise Rangé Barreto. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.

411
EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Apresentação, notas e revisão técnica: José
Carlos Avelar. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização: Jovita


Maria Gerheim Noronha. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra
Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. (Humanitas).

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo:


Brasiliense, 2007.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995.

ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance. Tradução: T. C. Netto. São Paulo:


Documentos, 1969. (Nova crítica).

412
RETRATOS EM CÁRCERE1

PORTRAITS ON JAIL

Rodrigo Jorge2

Resumo: Graciliano Ramos, em Memórias do cárcere, reúne uma galeria de tipos


diversos em retratos que compõe um quadro vivo, em que o memorialista também se vê,
num jogo transtextual de espelhamento e redescoberta de si e do outro. O confinamento
na prisão força o escritor alagoano à convivência com indivíduos de quem jamais, na
rotina cotidiana, se aproximaria. Deste modo, o esboroamento da intimidade no ambiente
prisional contribui para a diluição das fronteiras sociais, o que reconfigura as estratégias
de relação com o outro. A fim de aprofundar a reflexão em torno dos procedimentos de
retratação empreendidos por Graciliano, foram escolhidos como estudos de caso as
figuras do capitão Lobo, responsável pela custódia do escritor em Recife, e Gaúcho,
ladrão que conheceu na Colônia Correcional, em Ilha Grande.
Palavras-chave: Graciliano Ramos; Memórias do cárcere; retratos literários.

Abstract: Graciliano Ramos, in Memórias do cárcere (Memories of jail), puts together


a gallery of various types of portraits that makes up a live picture in which the memorialist
also seen himself in a play of transtextual mirroring and rediscovery of self and other.
The confinement in prison forces the writer to living with people who never in daily
routine would approach. Thus, intimacy raveling in the prison environment contributes
to the blurring of social boundaries, which reconfigures the strategies of relationship with
each other. In order to deepen the reflection on the procedures undertaken by Graciliano,
we choose as case studies the figures of Captain Lobo, custodian of the writer in Recife,
and Gaúcho, thief who met in Colônia Correcional, in Ilha Grande.
Keywords: Graciliano Ramos; Memórias do cárcere (Memories of jail); Literary
portraits.

A violência carcerária provoca fendas profundas no corpo e no espírito de suas


vítimas. No entanto, a aplicação sistemática dessa violência, distribuída em métodos mais
lentos e específicos, agrava ainda mais a situação do indivíduo encarcerado, levando-o,
quando não à morte, à extremidade da desrazão. Das práticas prisionais, a mais pungente,
como revela Orígenes Lessa (1933), é a impossibilidade de estar só. A perda da
intimidade, de suas condições básicas, contribui para a eficiência do processo de
despersonalização. Aos poucos, a capacidade de dizer “Eu” desmorona-se.

1
Mesa-redonda Memória e resistência I.
2
Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

413
Contudo, a experiência narrada, em Memórias do cárcere, refaz, por meio de
instrumentos que Graciliano domina como ficcionista, o caminho coberto de escombros.
Estaria garantida e efetivada novamente a comunicação entre os homens que se perderam,
ou ficaram soterrados? Bem, acreditamos que não seja exatamente isso. Não há a intenção
de Graciliano em restaurar nada nem a ilusão da busca por uma totalidade. Justamente o
contrário, é a admissão de fraturas e fissuras, de absurdos e incongruências, que aponta
para uma outra possibilidade: “Certeza de que não estamos certos, aptidão para
enxergarmos pedaços de verdades nos absurdos mais claros. Necessidade de
compreender, e se isto é impossível, a pura aceitação do pensamento alheio.” (RAMOS,
2008, p. 73; I, XI3)

Tarefa difícil e arriscada esta, tão quanto a rememoração dos casos passados no
“ano terrível”. Esquivando-se sempre, revelando não ter biografia, Graciliano decide
fazer, de sua experiência com aquelas “estranhas figuras”, algumas histórias para contar.
Evita o “pronomezinho” e lança-se na narração difícil e lenta de suas memórias.
Entretanto, não podemos perder de vista um pequeno e expressivo detalhe: Graciliano
não dá voz ao Outro, mas apresenta-o por meio da reconstituição. Cabe relembrar-nos do
último parágrafo do capítulo-prefácio: “Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei
às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se.”
(RAMOS, 2008, p. 16; I, I). O memorialista, ao esconder-se, deixa o Outro à mostra,
manifesto-o, ou seja, patenteia-o. Não arroga a si a posição alheia, mas não prescinde da
sua: “Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não
recusem as minhas [...]” (RAMOS, 2008, p. 15). A narrativa arrisca-se a cair na ficção, o
que compromete a fidelidade de apresentar aquela gente “em cuecas”. Um risco que
Graciliano estava ciente de que podia correr, tanto que apresenta-o como um dos motivos
que o fizeram postergar ao máximo a escrita do livro.

Assumindo, então, o risco, o memorialista retoma as experiências vividas e


observadas no espaço carcerário, reconfigura-as por meio dos códigos da linguagem
escrita e, assim, abre-se para experiências no espaço narrativo. Na tentativa de ultrapassar
os pormenores e insignificâncias que se apresentam nas máscaras de seus personagens, o
memorialista, passa a correr outro risco: ele mesmo. Não obstante ter alertado que
evitaria, sempre que possível, o uso da primeira pessoa, Graciliano não consegue se livrar

3
Para facilitar a consulta a edições diferentes, além da página, serão indicados também a parte e o
capítulo de onde foram extraídas as citações de Memórias do cárcere.
414
das consequências do “pronomezinho”. O filósofo romeno Emil Cioran (2011, p. 72),
sobre isto, observa: “Quanto mais procuramos nos afastar de nosso eu, mais nos
absorvemos nele.”. A galeria de tipos, em Memórias do cárcere, revela ainda mais duas
galerias, a do próprio Graciliano, que se revê e se reescreve a partir do Outro, e a da
palavra escrita, que se amplia e se reconfigura. Não quer dizer que a insuficiência da
literatura em expressar a realidade seja superada, muito menos que permanece como
obstáculo ao fluxo narrativo. Graciliano não nega as margens nem os seixos que
compõem seu pequeno rio. A escrita de Memórias do cárcere, ao ser produzida pela
experiência com o Outro, redescobre outras formas de narrar o inenarrável.

O REVOLUCIONÁRIO E O DILETANTE

No capítulo XV, de Viagens, temos um dos episódios mais humanos de Memórias


do cárcere, e talvez o determinante para a mudança de postura de Graciliano Ramos em
relação aos militares. Farda, estrelas e fitas, “símbolos mortos”, humanizam-se, e os
indivíduos, lentamente, vão sendo dissociados dos partidos e instituições. Em poucas
linhas, podemos resumir o capítulo assim: depois de avisar a Graciliano de que este
embarca para mais uma viagem, capitão Lobo oferece um empréstimo no valor que o
escritor julgar necessário. Constrangido, Graciliano recusa. O oficial mantém disponível
a oferta e retira-se, deixando o outro pasmo e desorientado com o que acaba de ouvir.

A descrição sucinta do episódio não o torna menos curioso, claro. Um militar de


alta patente facilitando a vida de um preso político considerado inimigo da ordem e do
Estado. Apenas esta observação já desperta-nos para algo intrigante. Seria um dos
revoltosos de 1935 infiltrado? A troco de que o militar se arriscava? Entretanto, o mais
intrigante, e fascinante, são as reflexões do memorialista proporcionadas pelos encontros
com o capitão. A escavação de recordações trazem à superfície indagações dolorosas e
descobertas transformadoras na vida de Graciliano, do homem e do escritor.

O capitão José de Figueiredo Lobo era o encarregado dos presos políticos no Forte
das Cinco Pontas. O primeiro encontro com o escritor ocorre no capítulo VIII, em que o
oficial, “moço grave, de olhos ligeiramente estrábicos”, repassa secamente instruções
para os recém-chegados. No capítulo seguinte, temos o segundo encontro, quando a figura
do capitão começa a chamar a atenção do escritor ao declarar: “Respeito as suas ideias.
Não concordo com elas, mas respeito-as.” (RAMOS, 2008, p. 59; I, XI). Graciliano fica

415
desconfiado com o respeito assumido pelo outro por ideias não expressas. No entanto, o
temor de uma possível armadilha arrefece: “A sinceridade transparecia no rosto claro, no
olhar um tanto vesgo, que se cravava na gente como um prego, no gesto amplo. A piteira
movia-se continuamente, parecia um martelo a fazer pontas em sílabas duras. Nenhuma
razão para desconfiança.” (RAMOS, 2008, p. 59-60)

Em outro encontro, capitão Lobo repreende furiosamente Graciliano por este ter
usado o banheiro dos sargentos, em vez do reservado aos oficiais, onde o escritor estava
sob custódia. Pensando que a reprimenda do oficial não era tão séria quanto parecia,
Graciliano explica que usou aquele banheiro porque o outro estava ocupado, acendendo
ainda mais a irritação do oficial: “O senhor não podia fazer isso.” (RAMOS, 2008, p. 70;
I, XI). Concluindo que a admoestação era por ofender as normas, o memorialista relembra
a dificuldade que teve de compreender a reação do militar: “Esforcei-me por manifestar
que, no meu parecer, culpa seria utilizar um banheiro de categoria superior ao permitido
a mim, um banheiro de generais, por exemplo; contentando-me com um de sargentos, não
praticava nenhum ato censurável.” (ibid.). O uso do pretérito perfeito indica que o
raciocínio não é mais adotado pelo memorialista, que começa, a partir de então, a
reconstituir o Outro por meio das regras, e a si mesmo, pela incompreensão das mesmas.
A lógica seguida pelo escritor é a mesma que, para ele, orienta o mundo: a dominação e
exploração do mais fraco pelo mais forte. Por isso, espanta-se com a atitude justamente
da instituição, representada por um de seus comandantes, que, para ele, sempre se impôs
pela força. Capitão Lobo, ainda aborrecido, insiste em saber se o escritor estaria
insatisfeito, porque, em caso positivo, poderia transferi-lo para uma prisão de sargentos.
Graciliano agradece, pedindo que o outro não se incomodasse. Diante do diálogo peculiar,
o memorialista analisa o próprio comportamento na ocasião e surpreende-se por não ter
se melindrado. Por quê? A desconfiança e o constrangimento por qualquer coisa sempre
o torturaram. Retoma os castigos e a brutalidade da infância para explicar a origem desses
sentimentos. No entanto, a reprimenda do oficial não o incomoda.

Achava-me em situação realmente singular, advertido como uma


criança, e isto não me vexava, talvez por julgar aquilo estapafúrdio,
talvez por estimar a franqueza nua. Se me falassem lá fora de tal
maneira, provavelmente me zangaria, mas não sentiria o acanhamento
que avermelha o rosto e esmorece o coração. De fato o que mais nos
choca não é a sinceridade, às vezes impertinente: é a arranhadela com
mão de gato, a perfídia embrulhada num sorriso, a faca de dois gumes,
alfinetes espalhados numa conversa. Agora não podia molestar-me.
(RAMOS, 2008, p. 71)

416
Pesando cuidadosamente os sentimentos experimentados por meio de “talvez”, o
memorialista primeiro indica o fato de ter achado “estapafúrdio”, pelo escritor-
personagem, depois deixa assomar o entendimento no instante da recordação e da escrita:
“franqueza nua”. Um pouco depois, num dos malabarismos anunciados no capítulo-
prefácio, ocorre a mudança da primeira pessoa do singular para a do plural. É apenas
recurso para fugir do “pronomezinho”? Há o recurso, mas como meio. A partir das
reflexões provocadas pelo evento singular, Graciliano ultrapassa as grades do que está
sendo narrado e procura aplicar na vida comum. A experiência com o Outro produz, no
empenho recordativo e crítico, condições que não podem ser comportadas no mesmo
registro, o que obriga o memorialista a adotar outra via. Assim, observamos a ampliação
da experiência da memória para uma experiência da narração, que necessita integrar
outros recursos para ser construída. A repreensão de capitão Lobo, a fala e a atitude
incisiva, passa a integrar o fluxo da narrativa por meio do que impeliu no discurso do
memorialista, como a influência, na velocidade de um rio, das margens e dos obstáculos
que se apresentam ao longo de seu percurso. Mesmo que não estejam presentes em
determinado ponto observado, o fluxo das águas não seria o mesmo. Um rio não é apenas
a água correndo, mas também o conjunto de fatores que a faz correr, do contrário, seria
apenas uma poça de água parada.

Para Graciliano, estar numa prisão de oficiais é um privilégio que nunca se


considerou merecedor. Prosseguindo com a análise da atitude do militar, o memorialista
tenta reconstituir as suspeitas do escritor-personagem que, sob tensão, o conduzem à
natureza essencial e indefectível do Outro, quase impossível de perceber pela simples
observação.

Possivelmente eu devia essa vantagem, esse acidente, à influência de


alguém desejoso de beneficiar-me: capitão Lobo, neste caso: o
despropósito dele era uma indicação. E também era presumível que,
deixando-me na superfície algum tempo, quisessem me dar um súbito
mergulho nas profundidades, submeter-me a variações dolorosas. Mais
tarde esta segunda hipótese pareceu confirmar-se, embora eu hesite em
afirmar que na modificação operada tenha havido um desígnio.
(RAMOS, 2008, p. 72)
Temos aqui procedimento semelhante ao utilizado na citação anterior. A diferença
está no tipo de material que passa a confluir com a narrativa. No primeiro caso, o
memorialista, ao mesmo tempo que abre o espaço narrativo para sua condição de
personagem, interfere nas hipóteses levantadas, visto que apenas depois ficaria sabendo

417
que capitão Lobo, de fato, queria ajudá-lo4. A certeza faz com que a terceira pessoa do
singular introduza as suspeitas do benefício. No outro caso, quando aventa a possibilidade
do tratamento diferenciado fazer parte do processo de despersonalização infligido, passa
o discurso para a terceira pessoa do plural, retirando capitão Lobo que já havia sido
destacado na situação anterior. A afirmação de que depois esta hipótese “pareceu
confirmar-se” antecede as situações experienciadas no porão do Manaus, no Pavilhão dos
Primários e, principalmente, na Colônia Correcional. O hesitante desígnio, talvez o mais
importante, é a própria obra sobre os acontecimentos e a experiência proporcionada pela
sua escrita.

Desenvolvendo a primeira possibilidade, o memorialista questiona as razões que


motivaram o comandante a ser condescendente com ele, a quem nunca viu na vida. E se
o escritor fosse realmente perigoso? Seria arriscado demais tratar com generosidade
alguém preso por ser considerado inimigo da ordem. E é justamente neste ponto que
Graciliano se aproxima do oficial: “Fora do regulamento, pois capitão Lobo se desviava
da justiça. E era isso talvez que me prendia a ele, me fazia baixar a cabeça, sem me
considerar humilhado, ouvindo-lhe os propósitos rabugentes” (RAMOS, 2008, p. 73).
Como se olhasse para um espelho, Graciliano aproxima-se da figura de capitão Lobo.
Não porque se considera igual ao outro, mas porque ambos compartilham da mesma
postura contrária à ordem vigente, cada um de sua maneira.

— Não concordo com as suas ideias, mas respeito-as.


Irreflexão discordar do que não foi expresso? Em todo caso tolerância,
uma admirável tolerância imprudente que, sem exame, tudo chega a
admitir. Era o que me levava a admirar capitão Lobo. Isso e a suspeita
de me achar diante de uma criatura singular. Observava-lhe a máscara
expressiva, esforçava-me também por ultrapassá-la, divisar lá no íntimo
embriões de atos generosos. (RAMOS, 2008, p. 73)
A frase e a figura de capitão Lobo serviram a Graciliano em sua única incursão pela
dramaturgia. Em julho de 1942, foi publicado, no nº 49 da Revista do Brasil, o texto
teatral Ideias Novas (SALLA, 2012, p. 192-206), sendo o personagem capitão Lobo
caracterizado como “negociante e delegado de polícia”. A peça discute a produção
literária e sua recepção a partir do tipo de leitura feita pela filha do “delegado”, Mariana.
A mãe da menina e esposa de capitão Lobo, D. Aurora, repreende Seu Rodrigues por este

4
Segundo Dênis de Moraes (2012), capitão Lobo, amante da literatura, conhecia Graciliano por meio de
seus romances Caetés e São Bernardo, que tinha lido e gostado. Diante da situação, o oficial não podia
fugir à discrição e à disciplina militar, apesar de suas atitudes deixarem à mostra a admiração secreta pelo
escritor.
418
emprestar “histórias dissolventes” a Mariana. O personagem de Seu Rodrigues, que
repete algumas vezes a fala “Respeito as suas ideias”, indica os livros sem os ler, fiando-
se apenas na opinião de literatos e críticos. Na delegacia, capitão Lobo e seu subordinado,
cabo Feliciano, cuidam das prisões. Em determinado momento, o capitão declara:
“Brandura no começo, amabilidade, tapeação. Agora o meliante incha o papo e se faz de
besta, porrada nele.” (SALLA, 2012, p. 200). O dramaturgo Graciliano Ramos combina
as qualidades do oficial do exército que conheceu com as práticas da política de Vargas,
que não chegou a sofrer literalmente na pele, mas conviveu meses com indivíduos
barbaramente torturados. Na última cena da peça, o capitão interpõe-se entre a esposa e a
filha, a primeira exigindo um posicionamento do marido, a fim de proibir as leituras de
Mariana, e esta defendendo o progresso e criticando o atraso da mãe. A cada uma, capitão
Lobo tenta dar razão, fazendo referência às “ideias modernas”. Para dona Aurora: “Oh!
Oh! Exagero. Ela tem bom coração. É meio esquentada, o sangue dos Lobos, mas tem
ótimo coração. E quanto às ideias modernas, potocas, não valem nada.” (SALLA, 2012,
p. 205). Voltando-se para Mariana, também faz concessões: “Calma, calma. Sua mãe fala
demais e se desconchava, mas é uma boa alma. Infelizmente não compreende as ideias
modernas. Mulher atrasada” (SALLA, 2012, p. 205). Apesar do esforço de conciliação,
as coisas só pioram e cada uma tenta obter para si a razão. O delegado não suporta a
pressão toda e irrompe furiosamente: “Com os diabos! Eu sei lá quem é que tem razão!
Um inferno. No princípio do século não havia disso” (SALLA, 2012, p. 205). Escrito
alguns anos antes de iniciar Memórias do cárcere, o texto dramático expõe, especialmente
na cena final, a postura condescendente demonstrada pelo capitão no quartel. O espanto
diante dessa postura serve de elemento jocoso na peça, mas depois, no livro de memórias,
contribui para mergulhos bem mais profundos.

No último encontro com capitão Lobo no quartel, Graciliano também é


surpreendido, mas com uma dimensão tal que é forçado a utilizar determinados recursos
narrativos para reconstituir o caso. A história começa com o aviso do oficial de que
Graciliano parte no dia seguinte para outra viagem. O escritor questiona a respeito do
destino, mas o outro afirma não poder responder, ressentindo-se com o comentário
disparado em seguida por Graciliano de que em qualquer lugar longe dali estará bem:
“Não devia falar desse jeito. O senhor aqui tem amigos” (RAMOS, 2008, p. 87; I, XV).
Graciliano, então, desculpa-se, garantindo que não teve intenção de lhe ofender.

Ao cabo de alguns minutos, a conversa findou com uma proposta que


me assombrou, ainda me enche de espanto. Não a mencionaria se, anos
419
atrás, num encontro inesperado, o homem estranho, já coronel grisalho,
não a confirmasse, vago e indiferente, enquanto me censurava por
haverem fugido da memória as roupas de cama e as toalhas. Sem esse
depoimento, não me abalançaria a narrar o caso singular. Difícil
acreditarem nele, e talvez eu próprio chegasse a convencer-me de que
tinha sido vítima de uma ilusão. Tento reproduzi-lo, ainda receoso,
perguntando a mim mesmo se se deu aquela inverossimilhança.
(RAMOS, 2008, p. 87-88)
O memorialista prepara o terreno. O fato a ser narrado não partiu de suas
recordações, mas das reminiscências do capitão. No entanto, não se trata de algo que
tenha caído no esquecimento, como o caso das “roupas de cama e as toalhas”. Como deixa
bem claro, a menção dependeu da confirmação, ou seja, da convalidação do outro, sendo
este uma espécie de auctor meus da narração sobre o “caso singular”. O memorialista
admite que precisou do depoimento do então “coronel grisalho” para ser capaz de narrar,
não porque tenha esquecido ou porque não se ache no direito de contar ou de tomar o
lugar do outro. A incapacidade ou a insuficiência em narrar o fato deve-se à dificuldade
de “acreditarem nele”, tal é seu caráter insólito, ocorrendo ao memorialista a possibilidade
de ele mesmo ter sido “vítima de uma ilusão”. Não importa tanto a atuação do
memorialista, preocupado em registrar os fatos como ocorridos no passado, mas a atuação
do escritor, que se detém na inteligibilidade dos signos utilizados na elaboração de suas
histórias. A tentativa de reprodução, como já nos antecipa, não é justificada por algo ter
escapado de sua memória, mas devido ao caráter inverossímil da situação.

Antes de retirar-se, capitão Lobo oferece um empréstimo a Graciliano. Sabendo que


o alagoano havia sido demitido, e por desconhecer suas finanças, o oficial sugere buscar
um cheque em branco para que Graciliano anote o valor que achar necessário e, depois
de descontá-lo no banco, retornar com o dinheiro. Estarrecido e sem acreditar no que
ouvia, o escritor tenta se livrar rapidamente da situação embaraçosa com uma recusa e
um agradecimento inexpressivos. O capitão insiste e acrescenta que não há prazo para a
restituição, deixando escapar, em seguida, que o gesto parte também de compreender as
difíceis condições atravessadas pelo escritor: “Também já estive preso e vivi no exílio:
viajei num porão de São Paulo à Europa5” (RAMOS, 2008, p. 88).

O memorialista, então, inicia um processo de revisão complexo e doloroso.


Complexo porque desemboca em análises e observações mais amplas, como a respeito
do capitalismo e do quadro em que se encontra a política nacional no momento da escrita:

5
“Ajudante-de-ordens do general Euclides Figueiredo na Revolução Constitucionalista de 1932, Lobo
tivera que se exilar, sendo depois anistiado.” (MORAES, 2012, p. 118)
420
“É o que me atormenta. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu em
sistema.” (RAMOS, 2008, p. 92). Quanto a ser doloroso, deve-se ao mergulho no interior
de si mesmo, descobrir faces desagradáveis, arrancar certezas empoeiradas e revolver
uma terra há muito estéril de sua concepção de mundo: “Isto me causava dolorosa
surpresa: chocava-me exames anteriores, contradizia opiniões firmes – e experimentei
uma sensação molesta [...]” (RAMOS, 2008, p. 90).

Na mesma linguagem utilizada pelo capitão para dar ordens, o empréstimo é


oferecido: “Surgira como fato ordinário, entre gestos vulgares, no mesmo tom de voz com
que, ainda na véspera, se emitiam conceitos mais ou menos agrestes sobre a questão
social.” (RAMOS, 2008, p. 90). A voz do militar era também a voz do amigo. Há questões
que vão além da mera fronteira ideológica de classes e que nem mesmo a literatura possui
recursos suficientes para compreender, o que torna impraticável, do ponto de vista
humano, uma literatura ideológica, pautada nos preceitos zdanovistas de heroicização do
proletariado e demonização da classe dominante. Aliás, os dirigentes do PCB receberam
com muita irritação o retrato feito do oficial pelo escritor comunista.

Era possível então alguém proceder de tal maneira? Por quê? Não
conseguia orientar-me, agarrar um móvel qualquer, justificar o
disparate. Sem dúvida um homem que resolvia prejudicar-se em
benefício de um estranho não estava no seu juízo perfeito. Razoável,
normal, não me comportaria nunca de tal modo. Não me comportaria?
Nem sequer imaginava que alguém pudesse ter aquele procedimento. E
chocava-me em demasia ver a insensatez realizada por um cavalheiro
grave afeito à regra, de aspereza firme e autoritária. (RAMOS, 2008, p.
90-91)
Justamente por estarem em polos opostos é que o caso adquire feições absurdas e
inexplicáveis. Se o escritor também usasse farda, haveria algum sentido, não menos
absurdo, mas seria possível esboçar alguma explicação razoável. No entanto, o que se via
era “uma espécie de deserção”, a desobediência à ordem e ao preceito militar. O risco
assumido pelo capitão, a abdicação de bens para custear um outro que, além de não
conhecer, é considerado inimigo do Estado, constitui um sacrifício que nada tem de
estratégico ou coletivo, mas estritamente individual.

Afinal capitão Lobo devia ser muito mais revolucionário que eu. Tinha-
me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do
fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na
superfície, nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um
diletante. (RAMOS, 2008, p. 94)
A experiência iniciada no quartel tornou possível a lição do que é ser
verdadeiramente um revolucionário. Não são os grandes feitos e conquistas, mas o gesto
421
entre grades ou quatro paredes, sem que ninguém precise saber: “[...] ali me surgia uma
sensibilidade curiosa, diferente das outras, pelo menos uma nova aplicação do egoísmo,
vista na fábula, mas nunca percebida na realidade.” (RAMOS, 2008, p. 94).

HISTÓRIAS DE UM ESCRUNCHANTE

Colônia Correcional, o “desgraçado lugar”. Só em mencioná-la, um arrepio


dolorido percorre as espinhas. A parte III, de Memórias do cárcere, narra a ida de
Graciliano à Ilha Grande, para a temida Colônia. Lá chegando, o escritor, já debilitado,
recebe condenações de morte de um anspeçada, presencia os estertores de um preso com
uma ferida aberta e ouve dizer que há excremento de rato na comida. Os absurdos
contados sobre o lugar não eram frutos de imaginações doentias. Ali, o humano
degradava-se. A mistura de tipos era bem mais acentuada do que no Pavilhão dos
Primários. Conviviam juntos os presos políticos e marginais comuns, vigaristas,
assassinos e ladrões. Parece quase impossível suportar a vida naquele ambiente.

No entanto, vindo justamente da galeria dos marginais comuns, surgem duas figuras
humanas que mais tocaram o escritor alagoano: Gaúcho e Cubano. Na despedida da
Colônia, o memorialista não esconde o sentimento de respeito e amizade por eles:
“Abracei-os ao separar-nos, afirmei que sentiria muito prazer se nos encontrássemos na
rua. Parecia-me entretanto difícil rever-nos, e isto me afligia.” (RAMOS, 2008, p. 519;
III, XXXI). Entre os dois, destacaremos Gaúcho, não apenas por conta do necessário
recorte da pesquisa, mas porque os episódios em que aparece sofrem, de certa forma,
tensões no discurso do memorialista diferentes das apontadas nas situações dos
personagens anteriores.

A apresentação de Gaúcho foi feita por Vanderlino: “Gaúcho, ladrão, arrombador”


(RAMOS, 2008, p. 425; III, XI). O escritor espanta-se com o que parecia ser um insulto.
No entanto, percebe que o outro em nada se ofendeu. “Tinha a aparência de uma ave de
rapina. Estendeu-me a garra larga, acocorou-se junto à esteira, pôs-se a conversar
naturalmente. Apertando-lhe a mão, declarei ter muito prazer em conhecê-lo. Tinha. Não
era apenas curiosidade.” (RAMOS, 2008, p. 425; III, XI). Na verdade, o prazer é do
memorialista, a aproximação do personagem Graciliano deve-se principalmente por
curiosidade, o que é confirmado pela antecipação logo no início do livro: “[...]
possivelmente me poriam em contato com alguns criminosos, pessoas que, interessando-

422
me demais, até então me haviam aparecido em tratados ou de longe.” (RAMOS, 2008 p.
51; I, VII). Retornando à apresentação de Gaúcho, há mais um trecho que não deixa
dúvida a respeito da interferência do memorialista: “[...] confessei a mim mesmo que
poderia tornar-me sem esforço amigo do ladrão” (RAMOS, 2008, p. 425; III, XI).

Nas tentativas de distanciamento com o que está sendo narrado, o escritor de


memórias corre o risco de, como observamos há pouco, interferir no fluxo narrativo e cair
na ficcionalização. Como o interesse inicial em conhecer Gaúcho, e que também o levou
a Paraíba, era motivado pela possibilidade de ter algo disponível para o próximo conto
ou romance, não nos surpreende a presença de elementos, não necessariamente ficcionais,
mas que tensionam com as recordações descritas. Então, o escritor busca conhecer mais
o ladrão e aprender sua gíria. Que queria dizer escrunchante? “Ora essa! O lunfa que
trabalha no escruncho, quer dizer, no arrombamento.” (RAMOS, 2008, p. 425; III, XI)
Nas ocasiões seguintes, Gaúcho passa a procurar Graciliano e mantinha-o informado da
natureza de sua linguagem e seu ofício. Percebendo o pudor do outro ao se dirigir a ele,
Gaúcho dispara: “Vossa mercê usa panos mornos comigo, parece que tem receio de me
ofender. Não precisa ter receio, não; diga tudo: eu sou ladrão” (RAMOS, 2008, p. 451;
III, XVII). Graciliano, desconcertado com a sinceridade nua de seu companheiro de
cadeia, sugere que talvez o outro consiga um ofício menos perigoso quando sair. No
entanto, Gaúcho discorda. Só sabia roubar e muito mal: “sou um ladrão porco”.

Diversos profissionais corroboravam esse juízo severo, ostentavam


desprezo à modesta criatura. Eram em geral vaidosos em excesso,
fingiam possuir qualidades extraordinárias e técnica superior.
Tentavam enganar-nos, talvez enganar-se, mentiam, queriam dar a
impressão de realizar trabalho perfeito. Não se misturavam com os
indivíduos comuns, e o natural expansivo do escrunchante exasperava-
os. (RAMOS, 2008, p. 452)
Não são os crimes nem o quanto tinha para contar. O que impressiona mesmo
Graciliano em Gaúcho e o faz se identificar, neste ponto, com ele, é a franqueza, a
ausência de ornamentos e ênfase para falar de si. Assim como o ladrão, o escritor sempre
reconhecera que não sabia fazer outra coisa que não fosse escrever e não poupava a sua
produção de uma autocrítica severa. Por isso, o interesse em utilizar Gaúcho e suas
histórias em livro animava-o. O escritor alagoano fala de sua intenção, e o escrunchante,
mesmo gostando da ideia, não se deixa seduzir pelo destaque, ao contrário, desvia-se dele:

— Ó Gaúcho, perguntei, você sabe que eu tenho interesse em ouvir suas


histórias?
— Sei. Vossa mercê vai me botar num livro.

423
— Quer que mude seu nome?
— Mudar? Por quê? Eu queria que saísse o meu retrato.
Logo se esquivava, humilde, engrandecia os talentos de alguns
companheiros:
— Mas vosse mercê está perdendo seu tempo comigo. Eu sou um vira-
lata. O pouquinho que faço, aprendi com minha mulher, que é uma rata
de valor: trinta e duas entradas na Casa de Detenção. Aqui vossa mercê
encontra muitos homens sabidos. (RAMOS, 2008, p. 452)
Talvez Gaúcho fosse o primeiro companheiro de cadeia que tinha autorizado a sua
referência no livro pretendido por Graciliano. Na ocasião, o escritor alagoano não estava
certo se faria um livro de memórias, tanto que, após a soltura, lemos suas cartas fazendo
menção a um romance. Era certo que, de alguma forma, faria literatura dos casos. E fez.
No conto “Um ladrão”, de Insônia, o escritor narra uma das histórias contadas por
Gaúcho. Além do nome, a tatuagem na perna do ladrão também é descrita no conto,
cumprindo com o pedido do outro de que fosse feito o seu retrato, pois uma tatuagem, na
cadeia, exerce função de identidade:

— Ó Gaúcho, inquiri, você não acha um horror essa tatuagem? Por que
não mandou pintar coisa menos indecente?
— Isto é meu cartão de visita, respondeu o escrunchante. Quando entro
na cadeia, os veteranos vão-se chegando, e sei perfeitamente as
intenções deles. Se não tivesse a marca do ofício, estava perdido, era
uma pessoa enrabada. Os tipos se assanham e eu tiro a roupa devagar.
Eles veem a tatuagem e baixam o fogo: compreendem que sou lunfa e
mereço respeito. (RAMOS, 2008, p. 505; III, XXVIII)
No conto, apesar de ser uma produção ficcional, a tatuagem, ou seja, a identidade
do ladrão não é modificada: “A tatuagem da perna de Gaúcho era medonha, uma tatuagem
indecente [...]” (RAMOS, 2003, p. 26). O conto, segundo consta em seu manuscrito
autógrafo, foi escrito no Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 1938, e publicado pela
primeira vez no periódico Brasil Novo, em 1º de junho de 1939. Como dissemos,
Graciliano ainda estava, neste período, alimentando a ideia do romance. A história
contada na narrativa curta descreve uma das incursões de Gaúcho numa casa, juntamente
com um cúmplice. A diferença da história real é que Gaúcho não está presente na invasão,
apenas o outro, o que se justifica por um motivo simples: o fato principal da peripécia
narrada por Gaúcho fora protagonizada pelo cúmplice. Depois de terem recolhido o que
pretendiam, avistam uma jovem de seios desnudos em seu quarto. O outro ladrão não se
contém e dá um beijo na boca da moça. O final, tanto na ficção quanto na realidade, é a
prisão do inconsequente. Gaúcho aparece no conto pelo pensamento do ladrão, que
lembra de seus conselhos e imagina seus comentários: “Entrara na casa, fingindo-se de

424
consertador de fogões, e atentara na disposição das peças no andar térreo. Arrependeu-se
de não ter estudado melhor o local: devia ter-se empregado lá como criado uma semana.
Era o conselho de Gaúcho, que tinha prática.” (RAMOS, 2003, p. 18). Em Memórias do
cárcere, o escrunchante explica o procedimento, que é utilizado pelo escritor e narrado
no conto: “É preciso estudar o terreno, bancar vendedor ambulante, consertador de
fogões, caixeiro de venda. Eu às vezes me emprego, faço o papel de criado uma semana,
saio com as peças de cor, o lugar dos móveis, posso trabalhar no escuro” (RAMOS, 2008,
p. 454; III, XXVIII). Há coincidências, ou semelhanças, evidentes entre palavras e
expressões como: “estudar melhor o local” e “estudar o terreno”; “consertador de fogões”;
“faço o papel de criado uma semana” e “como criado uma semana”; e “disposição das
peças” e “lugar dos móveis”. Como a narrativa curta foi escrita bem antes da versão
publicada de Memórias do cárcere, é possível que o memorialista tenha recorrido à sua
produção ficcional que faça alguma referência aos meses de cadeia.

Outro dado interessante observado nos capítulos que narram os encontros com
Gaúcho, em relação aos dos personagens vistos anteriormente, é a frequência maior do
discurso direto. Além, claro, da preocupação do memorialista em cumprir com os
princípios de fidelidade, há ainda o exercício literário de composição de diálogos e
personagens, como se estivesse escrevendo um romance. Pelas respostas concisas,
diretas, quase sem adjetivos, de Gaúcho, não é difícil identificar a interferência do
escritor, melhor dizendo, do ficcionista no trabalho do memorialista.

REFERÊNCIAS

CIORAN, E. M. História e utopia. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo,
2012.

LESSA, Orígenes. Ilha Grande: do jornal de um prisioneiro de guerra. Rio de Janeiro: Companhia
Editora Nacional, 1933.

RAMOS, Graciliano. Insônia. Rio de Janeiro: Record, 2003.

______. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2008.

425
A ORIGEM DO SOBRENOME: A ÁRVORE GENEALÓGICA1

THE ORIGIN OF THE SURNAME: THE GENEALOGICAL TREE

Rosa Maria da Motta Azambuja2


Elaine Pedreira Rabinovich3

Resumo: A geneologia é conhecida como a ciência da história da família e tem como


objetivo desvendar as origens das pessoas e famílias por intermédio do levantamento
sistemático de seus antepassados ou descendentes, dos locais onde nasceram e viveram e
dos relacionamentos interfamiliares, através do poder da nomeação. Em princípio, não se
escolhe o próprio sobrenome: é um nome que já existe de um grupo de pessoas ao qual
se pertence. O sobrenome inscreve a pessoa em uma linhagem, em uma história e em uma
comunidade que o nomeia. Em linha ascendente, traz a memória das gerações
precedentes; em linha descendente, está dirigido ao futuro. A história da família,
percorrendo os marcos dos sobrenomes, abrange necessariamente os cenários e as
circunstâncias nos quais viveram os personagens, enfrentando os seus desafios e
assumindo suas aventuras. A reconstrução histórica da formação familiar conduz a
interpretações capazes de estabelecer uma ponte entre o passado e o presente, entre os
ancestrais e seus descendentes. O presente estudo tem como objetivo analisar a
genealogia do sobrenome identificando a origem do sobrenome por meio da imagem
metafórica da árvore. Pretende, assim, oferecer subsídios para esclarecer algumas
dinâmicas encontradas na relação entre o nomeado e o seu sobrenome em um percurso
de reconhecimento de si próprio que é também “outro”: o de pertencer a uma família.
Palavras-chave: sobrenomes; família; árvore genealógica.

Abstract: The genealogy is known as the science of family history and aims to unravel
the origins of individuals and families through the systematic survey of their ancestors or
descendants, the places where they were born and lived and inter - family relationships
through the power of naming. In principle, oneself does not choose the surname itself: it
is a name that already exists in a group of people to whom it belongs. The surname
inscribed the person in a line of a story and of a community that nominates the person. In
the ascending line, it brings the memory of previous generations, in descending line, is
directed to the future. Family history, touching landmarks of surnames, necessarily
encompasses the scenarios and circumstances in which the characters lived, facing their
challenges and assuming his adventures. The historical reconstruction of family
formation leads to interpretations able to establish a bridge between the past and the
present, between the ancestors and their descendants. The present study aims to analyze
the genealogy of the surname identifying the origin of the surname through the
metaphorical image of the tree. It intends, this way, to provide insight to clarify some

1
Mesa-redonda Família e identidade.
2
Doutora em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSal).
3
Pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Católica do Salvador
(UCSal).
426
dynamics found in the relationship between the nominee and his surname on a journey of
recognition of a self that is also an “other”: the belongingness to a family.
Keywords: names; family; genealogical tree.

INTRODUÇÃO

A geneologia é conhecida como a ciência da história da família e tem como objetivo


desvendar as origens das pessoas e famílias por intermédio do levantamento sistemático
de seus antepassados ou descendentes, dos locais onde nasceram e viveram e dos
relacionamentos interfamiliares, através do poder da nomeação (BARATA; BUENO,
2000).

Em princípio, não se escolhe o próprio sobrenome: é um nome que já existe de um


grupo de pessoas ao qual “se pertence”: “Se a família dá o sobrenome, o sobrenome dá a
família” (SOMER, 2008, p. 27). O sobrenome inscreve a pessoa em uma linhagem, em
uma história e em uma comunidade que o nomeia. Em linha ascendente, traz a memória
das gerações precedentes; em linha descendente, está dirigido ao futuro.

Pierron (2009) aponta que o ser da família e o ser-em-família estão concentrados


no tema da “hospitalidade genealógica”, a qual situa o nosso ser na sequência das
gerações dos homens e entre os seres.

De cada um de nós, a família descobre um fundo imemorial que recolhe


e acolhe todo neo-vindo quando de sua entrada no mundo, designando-
o como um alguém, dotado de um nome próprio, inscrito em uma rede
de imagens e de relatos que mantêm experiências. A história individual
é também coordenada à história de uma família. Assim, em toda
família, o fazer-parte do nascimento faz a parte entre este mundo de
antes da criança, portador de uma memória e de expectativas, e o plano
de fundo sobre o qual esta existência singular que chegou vai poder se
descolar para inovar (PIERRON, 2009, p. 33).
Para o referido autor, a família legitima e estabiliza sua identidade. Ela a fixa, por
exemplo, na honra de um nome, na grandeza de um sangue, na epopeia de uma ascenção
familiar. Mas esta ideologia deforma, às vezes, sua história, manipulando a memória a
fim de se fazer conservadora, a qualquer preço, da ordem familiar.

A família mantem uma memória e é guardiã, às vezes intransigente, de uma ordem,


de uma organização ou de valores da honra familiar. Sendo a guardiã de promessas e de
expectativas, a família realizará concretamente um projeto genealógico e práticas de
transmissão. Pertencer a uma familia tem assim, afetiva e efetivamente, o seu lugar no

427
espaço, no tempo, segundo o eixo vertical temporal da genealogia e do eixo espacial da
comunicação familiar.

Assim, conhecer a origem dos sobrenomes poderá indicar o local de origem de


determinada família, a sua ocupação, ou revelar algumas características dos ancestrais
desta família, segundo Polanah (1986), que considera dois tipos básicos: os que eram
dados, ou chamados, pelos “de fora” a alguém; e aqueles que eram escolhidos pela própria
pessoa para se afirmar ou se distinguir perante os outros: assim, o sobrenome começa por
ser um apelido individual “mais tarde, constituída a família, os filhos poderão herdá-lo,
independente de cada descendente possuir um hipocorístico ou alcunha que os
companheiros de rua ou da escola lhe tenham posto” (POLANAH, 1986, p. 133).

A existência dos antropônimos, nome próprio da pessoa, está documentada em


todos os povos, em todas as línguas, em todas as culturas, em todos os tempos, desde os
primórdios da humanidade. Estes, quando surgiram, traziam consigo um significado que,
em geral, traduzia uma realidade condizente com os seus portadores. Porém, as pessoas
recebiam apenas um nome, o nome individual, como acontece ainda hoje entre diversos
agrupamentos humanos (MONTESSO NETO, 2011).

Devido à necessidade de identificar pessoas que têm o mesmo nome, a sociedade


criou mecanismos para diferenciá-las através da utilização de um nome atribuído que
pode estar ligado à ocupação, localidade de origem ou de residência, filhação,
características físicas ou psicológicas, religião, natureza.

Para Polanah (1986, p. 126), o aparecimento do segundo nome, ou sobrenome, em


certos povos, verificou-se em tempos relativamente recentes, algumas vezes por
obrigação de dispositivo legal. Segundo o Portal São Francisco, os sobrenomes ou nomes
de família surgiram para a identificação das pessoas do povo durante a baixa Idade Média.
Anteriormente, só eram utilizados pelos reis e nobres para reproduzir os hábitos de
personagens importantes, ou simplesmente para buscar diferenciação numa época de
grande expansão demográfica.

Muito além de mera designação, o sobrenome é um patrimônio da família, marca


exclusiva que representa toda a linhagem, nomeação que se estende por gerações e
gerações. A descendência não se limita ao plano genético, mas se desenvolve no campo
histórico das famílias.

428
A história da família, percorrendo os marcos dos sobrenomes, abrange
necessariamente os cenários e as circunstâncias nos quais viveram os personagens,
enfrentando os seus desafios e assumindo suas aventuras. A reconstrução histórica da
formação familiar conduz a interpretações capazes de estabelecer uma ponte entre o
passado e o presente, entre os ancestrais e seus descendentes, revelando-se como maior
homenagem que se pode prestar aos antepassados.

Os primeiros registros do uso de sobrenomes familiares, como conhecemos hoje,


foram encontrados por volta do século VII, ou seja, após o ano 701 d.C. Na Inglaterra, só
passaram a ser usados depois da sua conquista pelos normandos, no ano de 1066. No ano
de 1563, o Concílio de Trento concretizou a adoção de sobrenomes, ao estabelecer nas
igrejas os registros batismais que exigiam, além do nome do batismo, que teria que ser
um nome cristão, de santo ou santa, um sobrenome ou nome de família (CUNHA, 2009;
MONTESSO NETO, 2011).

Surgiu então a necessidade de se estabelecer uma modalidade para se distinguir um


cidadão do outro. Para tal finalidade, foram criadas algumas fórmulas que auxiliavam tal
distinção. Na verdade, não foram estabelecidas normas baixadas por autoridades, mas sim
o surgimento de um modo espontâneo na pena do escrivão, no convívio social e na
linguagem popular que inventava formas para distinguir os dez ou vinte Johannes (João)
que viviam na mesma comunidade.

A maior parte dos sobrenomes que circulam no Brasil é de origem portuguesa e


chegou aqui com os colonizadores. Alguns tinham origem geográfica, ou seja, no local
onde a pessoa nasceu ou em que morava. Alguns destes sobrenomes não se referem à
localidade, mas a simples propriedades rurais onde um determinado tipo de plantação era
privilegiado. Exemplo: os moradores de uma quinta em que cultivavam oliveiras
passaram a ser conhecidos como Oliveira, o mesmo acontecendo com Pereira, Amoreira,
Macieira e tantos outros.

As alcunhas ou apelidos atribuídos a uma pessoa para identificá-la podiam se


incorporar a seu nome. É o caso de Louro, Moreno, Guerreiro, Bravo, Pequeno, Calvo,
Severo, entre tantos outros.

Muitos nomes de família se originaram também de nomes de animais, fosse por


traços de semelhança física ou de características de temperamento, como: Lobo, Carneiro,
Aranha, Leão e Canário.

429
Como muitos habitantes do Brasil vieram fugidos da Inquisição, ou seja, foram
judeus obrigados a adotar a religião católica, desapareceram os Isaac, Jacob, Judas,
Salomão, Levi, Abeacar, entre outros. Ficaram somente os sobrenomes cristãos.
Tomaram nomes vulgares, sem nada que os diferenciasse da maioria dos cristãos velhos,
a não ser, por vezes, a manutenção de algum sobrenome antigo judaico pelo qual o
indivíduo era vulgarmente conhecido.

O processo de nomeação visa ancorar cada um de nós em uma linhagem


configurada em uma árvore genalógica. A figura da árvore recorta uma configuração
familiar na multidão das relações humanas, tanto fornecendo um enraizamento, quanto se
abrindo em uma dimensão aérea de extensão (PIERRON, 2009, p. 38). Cada pessoa tem,
assim, o seu lugar no espaço e no tempo, disposto no eixo temporal vertical da genealogia
e no eixo espacial horizontal da comunicação entre as pessoas.

Decifrar-se e compreender-se como inscrito genealogicamente no ser


entre os seres e os homens, é fazer do ser familiar menos uma natureza
do que o trabalho de elucidação. Aprende-se a se denominar de uma
família soletrando-se nela no decurso do tempo familiar. Esta
familialidade encontra a sua tradução na grande imagem da árvore
genealógica, que organiza tanto o espaço interior quanto as aberturas
para o mundo exterior (PIERRON, 2009, p. 40).
A árvore genealógica fala de uma metáfora em que a imagem de renda significa um
conjunto de linhas entrelaçadas. Já o genograma corresponde a um sistema de
comunicação descrito segundo uma lógica transacional. Finalmente, haveria um sistema
de rede visto como um sistema conectado relativamente estável, capaz de autorregulação,
de auto-organização e de autonomia, dando-lhe uma relativa plasticidade. “A inscrição
genealógica e o percurso do reconhecimento que ela supõe explicita esta plasticidade do
vínculo que encontramos na ideia de ser da mesma família” (PIERRON, 2009, p. 41).

ELEMENTOS DE ANÁLISE: A METÁFORA DA ÁRVORE

Os dados apresentados a seguir foram obtidos por uma pesquisa realizada pelo
grupo “Família, (auto)biografia e poética”, da Universidade Católica do Salvador, em que
seus membros analisaram suas histórias familiares a partir de seus sobrenomes. Os
resultados detalhados foram publicados em Nomes de famílias: subjetividade,
genealogia, juridicidade e historicidade (RABINOVICH; AZAMBUJA; SOUZA;
NEVES, 2013).

430
O sobrenome inscreve a pessoa em uma linhagem, em uma história e em uma
comunidade que o nomeia. Em linha ascendente, traz a memória das gerações
precedentes; em linha descendente, está dirigido ao futuro. Assim, a leitura analítica das
histórias dos sobrenomes encaminha diretamente à imagem da árvore genealógica. Esta
imagem define níveis de análise na forma de núcleos de significação: em um nível mais
amplo e geral, a raiz e o tronco; em um nível mais social, os ramos das famílias materna
e paterna; em um nível mais individual, os níveis de análise referentes à pessoa.

Nível de análise mais geral: raiz e tronco

No nível da origem, há vários tempos a serem considerados: um tempo longo


(BRAUDEL, 1983; SOMER, 2008; PIERRON, 2009), provavelmente atrelado às raízes,
comum a todos os relatos e a todos os humanos, referente a pertencimentos a grupos
étnicos, religiosos, geográficos. Um segundo tempo pode buscar a origem situando-a
geograficamente. No estudo por nós realizado, pudemos contabilizar as seguintes origens
patronímicas dos pesquisadores:

Localidade de origem:
a) Países estrangeiros: Portugal (13), Rússia (3), Espanha (2), Líbano
(1), Uruguai;
b) Brasil: Bahia (9), Paraíba (1), Minas Gerais (1), Rio Grande do
Norte (1), Ceará (1), Rio Grande do Sul (1).
Deste modo, referente ao local de origem, dezenove autores apontam para raízes
europeias, enquanto catorze indicam origens em solo brasileiro. No entanto, todas as
autoras nasceram no Brasil, assim como a maioria de seus pais.

Outras classificações, conforme as usualmente encontradas na análise de


patronímicos, foram: religião: cinco; natureza: cinco; condições socioeconômicas
(nobreza): três; local: três; ocupação: dois; características pessoais: dois; judeu novo:
dois; negro: dois; filiação: um; inventado: um.

Das dezesseis atribuições de significado, muitas histórias associam a localidade à


religião, usualmente à católica. Duas autoras têm antecedentes judeus. Os sobrenomes
referidos à natureza, como Oliveira, e à profissão, como Ferreira, designam
procedimentos que foram muito utilizados para nomear famílias até então sem
sobrenomes. Apenas Rabinovich tem em seu nome filho de, por isso classificado como
filiação. O sobrenome Leal pode ser atribuído a uma característica pessoal. Apenas um

431
relato evidencia claramente a origem africana, provavelmente escrava, e nenhum a
origem indígena, certamente presente em vários dos sobrenomes elencados.

Eis que um dia, o Cardozo aventureiro


Se encantou por uma moça negra Legítima baiana, descendente de
escravos Religião de matriz africana
E que na família do amado só lhe cabia o papel de criada...
Para viver esse amor, Miguel rompeu com a tradição daquela família
Cardozo...
Casou-se com Aurelina e em uma casa modesta
Uma nova ramificação dos Cardozo foi criada e seis filhos vingaram...
(Lorena).
De fato, este é um “vazio na origem” (RIBEIRO, 2006) dos brasileiros que preferem
se identificar com ascendentes europeus e, se possível, nobres. Poucos descendentes
parecem a ascendentes mais longínquos, como tetravôs, bisavôs, e mesmo, avôs. Um país
com curta história e ainda mais curta memória, parece não reter nem se incomodar com
essa “não memória”.

Esta recuperação da memória parece ter algo a ver com a possibilidade de cura que
Massimi (2011) atribui à autobiografia: é uma história que é escrita ou reescrita, como,
por exemplo, por aqueles que recuperam o sobrenome do seu avô: “Meu nome, Cinthia
Barreto SANTOS Souza. Agora sou mais Santos do que nunca”, havendo ainda quem
confirme não querer assumir uma carga deixada pelo pai: “Na minha infância – até os
nove anos, assinava Ariadne Pereira de Araújo, nome de solteira da minha mãe, pois não
sabia como ficaria o meu nome completo com a inclusão do sobrenome do meu pai, que
até então, não registrara a mim e nem os meus dois irmãos”.

Ou quem supera o traumatismo causado pela figura paterna pelo perdão: “Não tive
amor de pai e ainda tinha que carregar o sobrenome Livramento, um constrangimento
para uma adolescente, um estorvo em minha vida” (Teresa Ferreira). Teresa narra que,
depois de casada, na quarta gestação teve complicações no parto e suplicou com fé para
que Nossa Senhora intercedesse pelo seu “Livramento” e comenta: “Nesse momento de
oração, lembrei do meu pai, do nome que ele me deu e pedi perdão... percebi a
importância do nome Livramento em minha vida e senti orgulho desse sobrenome”
(Teresa Ferreira). Ou ainda quem se define pelo lado materno e adquire a identidade
almejada “Já do sobrenome Pereira (sobrenome materno) me identifico, apesar de
conhecê-lo tão pouco, ainda” (Elisângela).

432
Os sobrenomes, assim, aparecem como o citado acima a respeito do sobrenome
Livramento, como uma carga, mas também como semente, ou até uma carga que pode
ser também uma semente. Uma participante enfatiza o poder germinador do sobrenome
em sua trajetória como pesquisadora: “Com isto, quero apenas apontar para a força de um
impulso ‘germinador’, como uma semente que desembocou e se desenvolveu numa
carreira acadêmica. Dentro desta mesma dinâmica coordeno um grupo de pesquisa
denominado ‘Família, (auto)biografia e poética’” (Elaine).

Nível de análise dos ramos

Consideramos como galhos o lado materno e o lado paterno. Entre eles, ou após
eles, temos de colocar o sobrenome oriundo do casamento. Os “lados” podem não se dar
bem, e nem coexistir ocorrendo uma “guerra de sobrenomes”: “Nesse momento, há exatos
20 anos, pude constatar as consequências de quanto essa ‘guerra dos sobrenomes’ teria
tido seu efeito. Naquela época mantinha-se a lei de se retirar o nome materno para colocar
o nome da nova família, ou apenas acrescentá-lo ao nome de batismo” (Sinara).

Lado paterno

O lado paterno emergiu originando várias questões ligadas ao “nome do pai”, ou


seja, ao reconhecimento, quer jurídico, quer social, quer pessoal do/da filho/filha pelo pai
genitor. Diríamos que mãe é mãe, mas pai nem sempre é pai.

A ausência do pai é algo a que se deve responder: recuperar a história dos


antepassados pode ser uma forma de se dar uma genealogia e uma paternidade.

O sobrenome paterno, socialmente, pode ser visto como ligado à proteção “Ser filha
do meu pai é para mim e para as minhas irmãs algo divino, nós fomos escolhidas pelo
universo e lhes dadas como suas filhas” (Luciene). Para outras autoras, simboliza a marca
da rejeição ou da inadequação nas relações: “Apenas aos 17 anos, meu pai me reconheceu
como filha. Entretanto, por questões práticas, preferi não mudar meu sobrenome, que
também é meu nome artístico” (Hannah).

Lado materno

Varias autoras identificam-se com o sobrenome materno: “Sou soteropolitana e


filha de mãe solteira, tendo um único sobrenome: o materno” (Hannah), “Nasci na família
Ferreira. Lembro que, quando pequena, admirava a assinatura da minha mãe,
principalmente a letra ‘F’ de (Ferreira), toda desenhada, imponente, expressiva, a letra

433
mais linda de todas as letras” (Teresa Ferreira), “Algumas figuras familiares femininas
foram ‘desbravadoras’ de um caminho no qual a geração seguinte, na sua maioria
mulheres, iria trilhar... Minha mãe cursou contabilidade, trabalhou fora e buscou a sua
independência financeira e só se casou aos 30 anos” (Eliana).

As mulheres são descritas ora como submissas, ora desbravadoras, ora os dois
concomitantemente. Quanto às filhas, as autoras, orgulham-se de estar podendo realizar
um projeto educacional – mestrado e doutorado – que muitas alcançam, pela primeira
vez, dentre os membros femininos familiares.

Sobrenomes únicos e diferentes e muito comuns

Uma categoria de análise que surgiu foi a dos sobrenomes diferentes: “Eu sou a
única que tem o sobrenome Cardoso com S. Será um presságio?” (Lorena); “No entanto,
eu sou a única a portar o sobrenome Pedreira na família. [...] A partir de certo momento
de minha vida, comecei a gostar dele por me sentir ‘única’” (Elaine); “Acho meu nome
harmonioso, diferente, sempre me orgulhei dele!” (Eliana); “O meu nome sempre teve
um significado mágico para mim, pois desde criança que sei a responsabilidade da escolha
e por isso sempre me senti ‘dona’ do meu nome” (Lúcia).

Uma autora tem um sobrenome familiar único, inventado pelo avô, e gosta demais
desta história. “Ao ouvirem meu sobrenome, as pessoas costumam perguntar: ‘Rosier, é
francês?’ Eu muitas vezes para encurtar a história dizia que sim, afinal como explicar que
meu sobrenome foi ‘inventado’?”(Mirna).

Não podendo ser reduzido a um mesmo significado, pareceu encaminhar suas


possuidoras a ter orgulho por tal “unicidade” ou singularidade, quer familiar quer social.
Representa, no entanto, um desafio para estas, assim como para aquelas sem o sobrenome
ligado à origem, pois ambas tiveram e terão de responder a um possível “vazio na origem”
no que Beaucarbot (2004, p. 264) denomina “genealogia fantasma”, ou seja, uma espécie
de desenraizamento, de ausência de anterioridade, o que levaria a questões referentes à
identidade.

Outra categoria é a pessoa que é conhecida por nome e sobrenome, e que tem
orgulho disto “Quando me chamam pelo meu nome não me sinto devidamente
reconhecida. A sensação que tenho é que meu sobrenome Amorim me empodera e
autoriza que eu siga meu caminho sem titubear” (Rita).

434
Uma autora opta por seu sobrenome materno, de origem libanesa, por nele
identificar uma forma de estar no mundo:

Sumaia, este é meu nome. Sumaia de quê? Midlej. É assim que hoje me
identifico, mesmo tendo também acoplado ao meu nome no registro
civil, o Pimentel e o Sá (o primeiro do meu pai e o segundo adquirido
do marido) [...] A partir dele, me sinto pertencente a uma família, a uma
cidade, a uma história: sinto-me ligada a uma genealogia (Sumaia).
Se sobrenomes diferentes podem causar reações positivas, os muitos comuns, como
diz Cinthia “Silva, Souza, Santos [...] ‘queria ser diferente’!” acabam por não diferenciar
e também causam dilemas em suas possuidoras, que optam, sem dúvida, por um
sobrenome que as diferencie.

Mudança de sobrenome com casamento

Vários relatos se estendem sobre os significados da mudança de nome com o


casamento. Uma das autoras lamenta o sobrenome paterno “perdido” para os seus filhos,
donde seu pai não terá descendentes com o seu nome, o que a entristece, pois sente que
rompe uma cadeia geracional: “Agora, diante de meus questionamentos íntimos e
afetivos, tal fato se rebelou bastante violento. É como se, meu pai, se sua lembrança,
tivesse se acabado comigo. Meus filhos não têm Rosas, meus netos também não e os
bisnetos muito menos” (Lúcia).

Outra, por ter se casado ainda adolescente, tem sua vida de adulta associada ao
sobrenome do marido, do que gosta por estar totalmente inserido em sua própria
identidade:

Gozado, uma senhora adolescente! É fato. Percebo que faço uso do


nome Cinthia Souza para identificar a professora na faculdade e na
escola. Uso em outras situações também. Penso que nas próximas
linhas, esse dado torne explicito o que representa ser Souza, mas por
hora, quero falar dos Santos (Cinthia).
No entanto, ao colocar em questão a história do sobrenome, recupera o seu
sobrenome menos usado, e praticamente esquecido, o Santos ou dos Santos, mergulhando
em seus inúmeros e sagrados significados.

A mudança de nome por ocasião do casamento foi relatada de modo muito


emocionado por várias autoras: “Meu pai ficou arrasado com a minha insistência em
retirar ‘o seu’ sobrenome do meu nome” (Sinara);

Maria Angélica da Silva Vitoriano, ou Vitoriano da Silva: apesar de


parecer ser a mesma coisa, já que é composto dos mesmos nomes em
posições alternadas, não é, pois, diferentemente da matemática, a ordem

435
dos fatores altera o produto. A mudança de estado civil inscreve novos
elementos à subjetividade do indivíduo (Angélica).
Algumas lutaram para conservar seus sobrenomes originais, como Angélica, citada
acima, e ficaram felizes por recuperá-lo, quando puderam. Uma autora justifica a retirada
do sobrenome paterno pela real ausência de sua vida: “A incorporação do sobrenome Leal
não implicou apenas em mudanças/ameaças na posição que ocupava na família materna,
mas também em mudanças no padrão familiar da família de meu marido, o que promoveu
a construção de um novo núcleo familiar” (Teresa Leal).

Há o caso oposto em que, com o casamento, a autora finalmente se livra do


sobrenome que era apenas persecutório: “Assim, adotei o patronímico da família do meu
esposo, livrando-me do Livramento, pelo menos era isso que eu queria para toda minha
vida” (Teresa Ferreira). Outra autora relata a dificuldade para trocar, nos documentos, a
alteração feita no matrimônio, na qual retira o sobrenome materno e acrescenta o do
marido: “Me despeço do sobrenome Souza já mudado em cartório após o matrimônio,
mas não alterado nos documentos” (Priscila). Percebe-se, neste caso, uma resistência
inicial em se desapegar do sobrenome materno, e de toda história que este carrega, para
assim dar início à construção da sua futura família nuclear.

Duas autoras descrevem relações difíceis com a figura paterna, mas escolhendo, ao
escrever suas histórias sobre seus sobrenomes, pelo perdão. “Nesse momento de oração,
lembrei do meu pai, do nome que ele me deu e pedi perdão” (Teresa Ferreira). Já Teresa
Leal descreve em seu relato a ausência da figura paterna em sua vida e o não uso do
sobrenome paterno, conjuntamente com a força do sobrenome Leal de seu marido,
manifestando, contudo in memoriam, a gratidão ao pai por ter lhe dado a vida.

Em outra dinâmica, associada à mudança de nome por ocasião do casamento, outra


participante, após várias peripécias em torno do sobrenome, e casada algumas vezes,
decidiu fazer um pacto consigo mesma, “[...] que independia de qual era a família: morrer
com o nome com que nasci!” (Sinara).

Nível de análise das Folhas

Questões ligadas à origem e à aceitação parental denotaram levar a dúvidas


identitárias: “Mas, após a legalização do meu sobrenome aos nove anos, não esqueci as
histórias que vi, ouvi e vivi. Quase não consigo escrever o sobrenome Cruz e, quando

436
isso acontece, tenho a certeza que foi por falta de atenção ou para obedecer às normas de
uma sociedade que cobra cada vez mais o nome paterno” (Ariadne);

Não conseguia entender como poderia estar ligada a pessoas tão


diferentes de mim. Perguntas me vinham à mente: Quem sou eu? Por
que estou nesta família? Que sobrenome é este? Todas essas perguntas
sem respostas me traziam mais e mais o sentimento de vazio. Não
entendia como podia carregar dois sobrenomes (o materno e o paterno)
e não me identificar com nenhum deles (Elisângela).
Uma não aceitação, quer da mãe, quer do pai, pelos seus próprios pais ou avós, a
preferência de outros familiares que não os dos pais, acaba se refletindo no interjogo
complexo da formação da identidade e no relacionamento com os sobrenomes recebidos
ou não.

Conflitos são abertamente vividos com a entrada na escola, em que os sobrenomes


são os escritos (Teresa Ferreira), ou não escritos (Hannah e Ariadne) quer pelo seu
significado (Teresa Ferreira) e por serem diferentes (Elaine e Sumaia).

O desenraizamento ocorre por uma não aceitação, pelas nomeadas, da família de


origem, em que uma afirma: “[...] agora sei por que não me identifico, afinal eu não sou
daqui!” (Luciene), enquanto outra diz nunca ter tido afinidade com sua família, quer
materna quer paterna, para, finalmente, vir a descobrir laços com a materna, de quem não
tem o sobrenome.

Um vazio da origem é apontado como ligado à dúvida da origem do sobrenome:

Outro aspecto que a investigação do meu sobrenome me conecta é o do


vazio da origem, ou seja, a uma das dimensões deste vazio, pois,
exatamente onde tenho certeza da minha origem é que ela se manifesta:
através da dúvida da origem do sobrenome, pois minha mãe, única fonte
viva para coleta de informações deste tipo, me diz que “não sabe de
onde vem” (Angélica).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A imagem metafórica da árvore pareceu, assim, ser pertinente quando se intenta


estudar a própria história a partir da história do sobrenome em sua conjunção com a vida
do nomeado. Muitos elementos referentes à origem do sobrenome se acavalam com a
identidade da pessoa e ajudam a trazer luz à sua trajetória de vida. A apropriação do
sobrenome, da sua história e das redes de relações, conflituosas ou não, criam um
reconhecimento pela pessoa como parte “igual” de sua família, mas, ao mesmo tempo,
distinta dela.

437
REFERÊNCIAS

BARATA, Carlos; BUENO, Antonio. Dicionário das famílias brasileiras: um livro sem fim. Rio
de Janeiro: [s.n.], 1999. 2 v.

BEAUCARNOT, Jean-Louis. Laissez parler les noms. Paris: Eds. Jean-Claude Lattès, 2004.

BRAUDEL, Ferdinand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes,


1983. 2 v.

CUNHA, Juliana. Qual a origem dos sobrenomes? Revista Superinteressante, São Paulo, n. 271,
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sobrenomes/>. Acesso em 18 abr. 2013.

MANTESSO NETO, Virgínio. Entrevista: origens dos sobrenomes. 2011. Disponível em:
<www.imigracaoitaliana.com.br>. Acesso em: 27 mar. 2013.

MASSIMI, Marina. A fonte autobiográfica como recurso para a apresentação do processo de


elaboração da experiência na história dos saberes psicológicos. Memorandum, Belo Horizonte, n.
20, 2011. p. 11-30.

RABINOVICH, Elaine Pedreira, AZAMBUJA, Rosa Maria da Motta, SOUZA, Cinthia Barreto
Santos, NEVES, Sinara Dantas. Nomes de famílias. Subjetividade, genealogia, juridicidade e
historicidade. Salvador: Quarteto Editora, 2013.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.

ORIGEM DOS SOBRENOMES. Disponível em:


<http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/origem-dos-sobrenomes/index.php>. Acesso em :
17 abr. 2013.

PIERRON, Jean-Philippe. Le climat familial, Une poétique de la famille. Paris: Cerf, 2009.

POLANAH, Luis. O estudo antropológico das alcunhas. Revista Lusitana (nova Série), Braga, n.
7, p. 125-145, 1986. Disponível em:
<http://ww3.fl.ul.pt/unidades/centros/ctp/lusitana/rlus_ns/rlns07/rlns07_p125.pdf>. Acesso em:
27 mar. 2013.

SOMER, Anne de. Psychogénéalogie: Rompre le sortilège des prénoms qui prédestinent. Paris:
Chiron, 2008.

438
SOBRE A NOÇÃO DE CONJUGALIDADE NA MINHA VIDA, A
PARTIR DA INFÂNCIA: EXCERTOS POÉTICOS
AUTOBIOGRÁFICOS1

ON THE CONCEPT OF MY LIFE IN CONJUGAL, FROM


CHILDHOOD: EXCERPTS POETICAL AUTOBIOGRAPHICAL

Sinara Dantas Neves2

Resumo: Este estudo constituiu-se a partir de experiências no Grupo de pesquisa


“Família, (auto)biografia e poética”- UCSal/CNPq, mediante proposta do trabalho final
da disciplina “Família e subjetividade”, do Programa de Doutorado em Família, em que
cada discente desenvolveu um olhar sobre a infância e a percepção da sua intrínseca
poesia, na posição do adulto que há em si, com objetivo de investigar a relação do objeto
de estudo de doutoramento com a sua infância, a partir do reencontro entre a criança e a
pesquisadora da atualidade. Cerveny (2011) comenta a fala do pesquisador Servulo
Figueira, a respeito da sua consideração de que toda tese é um acerto de contas, por isso,
a intenção desse estudo envolve a investigação da noção da conjugalidade, meu objeto de
pesquisa doutoral, a partir da minha infância. Desse modo, como pesquisadora, sensível
à minha biografia pessoal, conduzi a investigação como um convite a um mergulho nas
minhas memórias, numa narrativa poética autobiográfica. Nessa perspectiva, acredita-se
que o relato autobiográfico pode ser um caminho metodológico para explorar a condição
humana, por meio de narrativas ancoradas em uma profundidade subjetiva de um olhar
infantil e de uma possível re-criação, visto que um novo self é moldado. Esta
revivescência pode trazer elementos que transcendem as narrativas em geral, elaboradas
consciente e racionalmente. Freeman (2007) sugere que esta questão pode ser associada
à sua dimensão poética na medida em que tal relato se aproxima da literatura imaginativa
e pode abrir caminho para uma compreensão mais plena da narrativa e de sua promessa
de compreender a condição humana e a condição da ciência em si. A vida recontada toma
uma perspectiva inacessível à percepção comum e marca uma extrapolação poética que
remodela nossas relações com relação ao mundo. Assim, há uma dupla poiesis neste
processo: a síntese de elementos heterogêneos de uma vida e a reconstrução do self em
sua imagem (Freeman, 2007, p. 32). Paz (1973 apud Freeman, 2007) diz que a experiência
poética deve ser compreendida como uma revelação de nossa condição original, que
emerge sempre como a criação de nós mesmos. É nesta direção que relatos imersos em
uma profundidade subjetiva de re-criação de um olhar infantil podem olhar para e
perceber um momento datado de suas vidas que permita ordenar retrospectivamente as
escolhas que levaram à opção profissional/ temática da pessoa. A partir de narrativas
sobre a infância, e não da infância, o presente estudo vincula-se ao movimento biográfico,
sob olhares retrospectivos e prospectivos lançados sobre a família, a sociedade e a

1
Mesa-redonda Família e identidade.
2
Doutora em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

439
formação dos sujeitos, em que fui elegendo marcadores da vida para literalizar
experiências de conjugalidade vividas no meu cotidiano familiar: “Que família é essa?”;
“Já nasci casada...”; “Como cresci...”; “Menina-Mulher e Profissional...”; “E tantos
outros Casamentos...”; “O Casamento com o Doutorado...”. Acredita-se que, ao se
submergir as lembranças da infância, torna-se possível vislumbrar, na perspectiva do
adulto, os caminhos percorridos que implicam nas escolhas que os tornaram quem são
hoje, o que de outra maneira estaria perdido devido a nossa própria tendência ao
esquecimento.
Palavras-chave: autobiografia; conjugalidade; infância; poética.

Abstract: This study was based on experiences from research group “Family, (auto)
biography and poetic” – UCSal/CNPq, upon proposal of the final work discipline "Family
and subjectivity", the Doctoral Program in Family, where each student developed a look
on children and perception of its intrinsic poetry, the position of the adult in you, in order
to investigate the relationship of the object of study for doctoral her childhood, from the
reunion between the child and the researcher today. Cerveny (2011) says speech
researcher Servulo Figueira, regarding the consideration of the whole thesis is a
reckoning, therefore, the intention of this study is to investigate the concept of conjugal,
object of my doctoral research, from of my childhood. Thus, as a researcher, sensitive to
my personal biography, conduct research as an invitation to a dip in my memories, in an
autobiographical poetic narrative. From this perspective, it is believed that the
autobiographical account can be a methodological way to explore the human condition
through narrative anchored in a subjective depth of a childish look and a possible re-
creation, as a new self is shaped. This revival can bring elements that transcend narratives
generally prepared consciously and rationally. Freeman (2007) suggests that this issue
may be associated with its poetic dimension to the extent that such reporting approaches
of imaginative literature and can pave the way to a fuller understanding of the narrative
and its promise of understanding the human condition and the condition of science itself.
The retold life takes an inaccessible to common perception and perspective marks a poetic
extrapolation remodeling our relations toward the world. Thus, there is a double poiesis
in this process: the synthesis of heterogeneous elements of a life and reconstruction of
self in your image (Freeman, 2007, p 32.). Paz (1973 cited in Freeman, 2007) says that
the poetic experience must be understood as a revelation of our original condition, which
always emerges as the creation of ourselves. It is in this direction that reports immersed
in a depth of subjective re-creation of a childish look can look for a moment and notice
dated their lives enabling retrospectively sort the choices that led to professional / theme
of person option. From stories about childhood, not childhood, this study is linked to the
biographical motion under retrospective and prospective glances cast upon the family,
society and the formation of the subject, in which I was elected to literalize markers of
life experiences conjugal family lived in my daily life: "What family is this?" "I was born
married ..." "Growing up ..." "girl-woman and Professional ..." "And many others
Weddings …," "The Marrying the Doctor... " . It is believed that by submerging the
memories of childhood, it is possible to discern, in the perspective of the adult, the paths
taken to imply the choices that made them who they are today, which would otherwise be
lost due to our own tendency oblivion.
Keywords: autobiography; conjugality; childhood; poetics.

440
INTRODUÇÃO

A oportunidade de estar vivendo intensa e diariamente a expectativa de participar


das aulas do Programa de Doutorado em Família na Sociedade Contemporânea da
Universidade Católica do Salvador (UCSAL) tem me provocado a ressignificar e
reencontrar meu papel de aluna, cheia de sonhos, desejos e tensões. Para dar conta desta
nova abordagem que guia a minha nova linha de pesquisa e a minha vida, costumo propor
um olhar e uma escuta aberta, sensível e generosa, na perspectiva de dar a voz e a palavra
para as vidas que se en(tre)laçarem com a minha, ao longo do Programa, procurando
captar o que pode ser visto e dito acerca das trajetórias destes atores. Na disciplina
“Família e subjetividade” surge, então, a oportunidade de dar voz à minha criança,
viabilizar um reencontro e uma troca, afinal, muito dela define a pesquisadora da
conjugalidade da atualidade. Um convite a um mergulho nas memórias e na minha
história de vida, numa narrativa poética autobiográfica.

Imersa em uma profundidade subjetiva de uma recriação de um olhar infantil, meus


relatos me levaram a olhar para e perceber um momento datado de minha vida que
permitiu ordenar retrospectivamente as escolhas que levaram à opção do meu tema de
estudo doutoral. Com isto, estou supondo que há “verdades” que se mantêm, “uma
espécie de tradição entre eu próprio e mim que estabelece uma antiga e nova fidelidade,
pois o passado elaborado no presente é também uma promessa e uma profecia do futuro”
(GUSTORF, 1980 apud FREEMAN, 2007, p. 148). Foi propósito do grupo de pesquisa,
na pergunta a nós próprios dirigida, “recoletar” em nossas trajetórias as histórias não
totalmente ditas e que passam a ser ditas num relato autobiográfico. “A compreensão
autobiográfica assim emerge como um instrumento fundamental para a re-coleção ética
e moral, tomada aqui no sentido clássico de juntar o que de outra maneira estaria perdido
devido a nossa própria tendência para o esquecimento”. (FREEMAN, 2007, p. 21).

“QUE FAMÍLIA É ESSA?”

Antes mesmo de se casar, meu pai precisou passar por uma cirurgia para poder ter
filhos e, assim, realizar os sonhos de duas pessoas: minha mãe, que sempre pensou na
maternidade como condição para o casório; e meu avô paterno, que já tinha 70 anos e
nenhum neto, já que todos os quatro irmãos casados do meu pai tinham problemas de
fertilidade e medo de enfrentar o centro cirúrgico, como ele fez. Assim, já vim ao mundo

441
com uma proposta: ser a primeira filha; primeira neta (por parte de pai) e primeira
sobrinha! E que peso isso sempre teve na minha vida! Era como se fosse um troféu dos
meus pais! Durante quatro anos, era o centro das atenções na família, mas, vira e mexe,
pedia à minha mãe para comprar uma irmã no supermercado. Até que, com quatro
aninhos, ganhei uma irmã e, exatamente aos oito anos de idade, mais uma, fruto de um
investimento frustrado dos meus pais num filho homem! Ilana e Manuela: minhas
bonecas vivas, minhas alunas, que se tornaram parceiras e confidentes, das quais às vezes
me sinto mãe, e outras vezes, filha. Quando meus pais se casaram, meu pai tinha uma loja
de materiais de construção e era técnico em Contabilidade, e minha mãe era orientadora
educacional de um colégio particular e funcionária pública de um colégio estadual. Eles
trabalhavam muito! Na minha casa os papéis e responsabilidades da
maternidade/paternidade sempre foram invertidos, devido ao fato de meu pai ser
autônomo (empresário) e minha mãe empregada! De origem simples, meus pais se
esforçavam para poder oferecer os melhores colégios como opção de educação para as
três filhas. Minha mãe trabalhava em três turnos e, com isso, levava uma vida corrida!
Meu pai, que perdeu a mãe no momento do parto de meu tio caçula, teve três filhas, e
convivia numa casa em que era o único homem! Ele sempre se desdobrou levando e
pegando na escola e, por ter que encaixar esse transporte na sua agenda de trabalho, por
muitas vezes me esqueceu no colégio, chegando correndo, desesperado, tentando
justificar para os diretores: uma cena inesquecível! Na minha família, os estudos sempre
foram a base de tudo; por isso, mesmo depois de casado, meu pai resolveu voltar à sala
de aula, fazer faculdade, e se formou em Licenciatura em História e depois frequentou
aulas do curso de Engenharia Civil: seu grande sonho! Minha mãe também nunca parou
de estudar, e isso tenho bem registrado na minha memória, por isso tanta exigência com
suas filhas! Só que nunca teve muito tempo para contato físico conosco, atividade que
confiava à minha vó... O que, pelo menos para mim, gerou uma dificuldade imensa em
tomar a iniciativa de abraçar e beijar minha mãe. Apesar de não ter dúvidas do quanto ela
me ama, as trocas de carinho sempre foram diferentes do que assistia entre as minhas
amigas e suas mães! Na casa em que morávamos, desde que me entendo por gente,
sempre existiu um conflito instaurado, mas muitas vezes velado, entre meu pai e minha
vó materna. Eu não entendia direito, mas sabia manipular o afeto dos dois direitinho:
tinha os dois, ao mesmo tempo, em torno de mim! Era um conflito entre duas pessoas que
dependiam uma da outra, mas que entravam numa disputa entre o amor de minha mãe e
a preferência afetiva deles por mim, que, mesmo com a chegada das minhas irmãs, ainda
442
era o centro das atenções! Eu sou louca por minha vó, até que se compare ela com meu
pai... Aí não sei quem prefiro: se é que tenho que preferir alguém, como eles fazem
comigo em relação às minhas irmãs. Minha vó, além de vó, é também minha madrinha e
sempre esteve entre meus pais, acompanhando a gente em viagens e passeios de qualquer
distância. Não me recordo de ter momentos entre meus pais e minhas irmãs sem a
presença da minha vó! Apesar do amor que sinto por ela, sempre achei um absurdo o
controle que ela exercia sobre a minha família, sobretudo com a minha mãe que, coitada,
para ir num shopping fazer compras após o trabalho, tinha que esconder da minha vó,
porque, se não, ela “jogava na cara” o fato de “estar tomando conta das crianças para
minha mãe passear”. Nessa vida de corre-corre para oferecer do bom e do melhor para as
filhas, eu e minhas irmãs fomos criadas numa família de três adultos que girava em torno
da gente! Três meninas que nasceram num bairro humilde (morávamos num prédio, de
escadas, próximo a um cemitério, visto da janela do meu quarto) e se mudaram para um
bairro nobre e essencialmente residencial (próximo do primeiro shopping da cidade, ainda
em construção, visto também pela janela da nova casa, uma mansão com piscina e área
de lazer), o que influenciou nas relações de amizade e de novos hábitos. Nunca tive muita
intimidade com a minha família paterna, apesar de esta ter um número bem maior de
membros do que a materna, que só tinha uma tia e duas primas, que, apesar de morarem
em Feira de Santana-BA, eram como irmãs em relação ao convívio. Meu pai era noivo
de uma prima carnal (um padrão que se repetia na família dele) quando foi apresentado à
minha mãe num Carnaval, por um amigo em comum, e se encantou por ela, terminando
o noivado para assumir a relação. Algo que ela só descobriu tempos depois, mas que
marcou as dificuldades de a inserirem na família, da qual também sempre se sentiu
diferenciada: era a única mulher com nível superior e postura independente, o que
provavelmente despertou a atenção do meu pai, acostumado a conviver com mulheres, na
maioria, submissas e sem muita cultura. Meus pais eram muito rígidos com a educação
das filhas, tinham muito medo de errar e de serem julgados pelos outros membros da
família de origem, por isso, qualquer pedido era primeiramente proibido para depois ser
satisfeito! Um ficava passando pro outro a decisão final de cada pedido das filhas, apesar
de ficar claro que quem decidia mesmo era minha mãe! Nunca podia descer para brincar
no playground nem ir para casa dos amiguinhos do prédio, quase todos inquilinos do meu
pai... Assim, vivíamos nós cinco: eu, minhas duas irmãs, meus pais e minha vó materna!
Cada vez mais donos da razão: de uma razão somente nossa!

443
“JÁ NASCI CASADA...”

Desde muito cedo lembro que morria de medo de não casar. Isso era muito forte!
Muito forte meeeeesmo! Desde que tomei consciência do quanto meu nome era incomum:
SINARA. “Como pode alguém se chamar Sinara? Não tem ninguém na minha sala, na
minha escola, no meu bairro, com um nome desse! Onde minha mãe estava com a cabeça
quando resolveu colocar em mim esse nome tão estranho?! Meu nome não poderia ser
como o da minha irmã, Manuela, ou até o da outra, Ilana?!” Pensava que nunca iria casar
porque ninguém ia ter coragem de me apresentar a alguém, por causa do meu nome!
Pensei em trocar de nome, e até o fiz, na escola, numa tarde inteirinha, em que consegui
convencer meus amiguinhos de que minha mãe mudou meu nome para Patrícia... mas
isso só durou realmente uma tarde, até que minha mãe chegasse para me buscar na escola
e acabar com a brincadeira: “Oxente, o que é isso, Sinaaaarrrraaaaaa? Seu coleguinha está
aqui me dizendo que você mudou de nome? Que mentira é essa?! Você sabe que não
gosto de mentiras!” Acabou com meus sonhos... Era tão melhor escutar me chamarem de
Patrícia, um nome comum, fácil de falar, de gravar, de se apaixonar... “É agora que não
vou casar mesmo!”, pensei, em silêncio! Aos sete anos de idade, a menina que nasceu no
dia 21 de abril de 1977, em Salvador-BA, já anunciava em alto e bom tom: “Antes do ano
2000 estarei casada e com filho”. Lembrando dessa filosofia de vida e das inúmeras vezes
que escutei minha mãe falar: “Você nasceu exatamente aos 9 meses e 13 dias de casada
com seu pai; gerada na lua de mel, para quem quiser fazer as contas”, posso agora
imaginar o quanto que a conjugalidade sempre fez parte da minha vida. Nunca entendi
direito o significado dessa fala da minha mãe, mas, mesmo sem entender, tinha uma ideia
do peso que era ter sido gerada na lua de mel e, vira e mexe, queria saber sobre isso:
“Mãe, você e meu pai só viveram sozinhos até o dia que eu nasci?!”, porque quando nasci
minha avó materna veio morar com eles para ajudá-los a cuidar de mim e ficou, já que,
nessa mesma época, a minha bisavó materna havia falecido e minha vó, que era viúva,
não tinha mais companhia para morar. E eu vim preencher o vazio que se formara no
mundo da minha vó, que sempre teve os cuidados maternais essenciais comigo. Passou
na televisão a previsão do fim do mundo no ano 2000 e isso nunca mais havia saído da
minha mente. Tenho lembranças nítidas desse processo na minha memória infantil.
Contava para todo mundo o meu planejamento de vida; era engraçada a reação das
pessoas, e, por conta disso, me sentia estimulada a repetir, como um mantra, e perceber
como cada um iria reagir. Não demorou muito para eu descobrir o quanto isso deixava

444
minha mãe desconfortável, e eu adorava vê-la assim... Era engraçado, porque minha mãe
é muito exagerada e transformava tudo num campo de batalha! Nessa família que vivia
para si, e numa casa em que um conflito era latente: o do meu pai com a minha vó, cresci
pensando muitas coisas acerca do casamento: 1. Nas brincadeiras de casinha, era quase
sempre a mãe. E como naquela época fui educada pensando que só podia ter filhos quem
fosse casado, logo cedo o casamento passou a ser prioridade dentre os meus planos de
futuro. Mas como casar com esse nome que me deram? 2. Como minha mãe trabalhava
muito e os cuidados maternos eram da minha vó, sonhava em ter filhos para poder fazer
o que minha mãe não fazia: passar o dia inteirinho com os filhos! Perguntavam-me: “O
que você vai ser quando crescer?” e eu respondia: “Não quero trabalhar! Quero ficar em
casa cuidando dos meus filhos, ou então quero ser professora!”. 3. Morria de medo dos
meus pais se separarem. Tinha pesadelos constantes e fazia xixi na cama todas as noites.
Essa história de viver com meus amores tão perto e tão distantes de mim me transformou
numa criança insegura e sensível demais! Minha mãe nas atividades profissionais; meu
pai e minha vó convivendo o dia inteiro sem se falar, comigo no meio... Até dói lembrar...
Dava um medo danado de tudo desmoronar! A cada briga em que minha mãe tentava
mediar sentia que tudo poderia ruir: “Quero meu pai com a minha mãe, mas também
quero minha vó!” Era essa a sensação, como se não desse para ter os três ao mesmo
tempo; como se a qualquer momento alguém fosse propor uma escolha: “Ou ela/ele ou
eu!”. Todo esse convívio familiar me levou a tentar resolver a situação. Por muitos anos
acreditei que isso fosse possível: que eu poderia promover a paz, forçar a paz, na
verdade... até que fui crescendo e transferi a responsabi- lidade por salvar em culpa, muita
culpa. Me sentia culpada por todo aquele contexto: na minha cabeça eu era a culpada pelo
não entendimento da minha família; afinal, era por mim, pelo meu amor, que eles
brigavam! A vida da minha mãe também era um inferno por tudo isso. E, mais uma vez,
muitas culpas... Pensava assim: “Minha vó veio morar com meus pais porque eu nasci e
ela veio cuidar de mim. Só que ela pensa muito diferente do meu pai e, por isso, eles
sempre discutem por causa da melhor forma de me educar. Minha mãe tenta controlar a
situação, mas não sabe de qual lado fica, sendo cobrada por meu pai e minha vó. E tudo
isso por minha causa!”.

Aos 16 anos, proibida de tantas coisas, devido à rígida educação, realmente a


profecia se cumpriu: eu me casei! Em 1993: antes do ano 2000! Transgredi: fui uma
“adolescente-grávida” e, pior: a primeira adolescente grávida de um colégio tradicional

445
de Salvador, no qual minha mãe trabalhava. Adivinhem em qual setor? No SOE: Serviço
de Orientação Educacional! Minha mãe era orientadora e eu agora tinha mais culpas para
administrar! Desse momento em diante, a impressão que dava era que toda a minha vida
de adulto teria que ser definida. Fui emancipada para poder casar; adquiri uma coragem
imensa para enfrentar a vida e não deixar que os outros me atropelassem e, em um mês,
toda a minha vida estava modificada! De solteira insegura para casada e... desesperada!
Muita coisa ao mesmo tempo! Lembro até do artifício que passei a utilizar para me
proteger dos questionamentos que o povo fazia nas ruas quando descobriam que eu era
casada (uma menina casada! Algo tão comum no passado, na época dos meus avós, mas
tão raro após a descoberta da pílula anticoncepcional). Eu respondia aos olhares de
surpresa dizendo assim: “Não ligue não; eu já nasci casada!”. Descobri que isso
intimidava as pessoas de qualquer outra indagação! Que sorte!

“COMO CRESCI...”

A gravidez não planejada resultou num feto natimorto por prematuridade, mas o
casamento continuou. Por isso era tão estranho dizer que era casada, se, seguidamente,
faziam a pergunta: “E tem filhos?”. Ninguém entendia nada e não era toda hora que estava
a fim de explicar. Mas uma coisa foi certa: não posso dizer que foi um casamento por
obrigação. Já namorava há quase dois anos e meus pais me deram a opção de escolher:
“Você só casa se você quiser”. Mas, como não casar, se meu pai não iria nunca deixar eu
“morar junto” e meu sonho de família estaria ameaçado, mesmo tão antes do ano 2000?!
Duro foi perceber a reação das minhas irmãs com a notícia da gravidez... tão novas,
sentindo-se traídas por mim! Sentia que elas expressavam sentimentos perdidos de amor
e de ódio, tudo junto... Entendi como se não me perdoassem, como se eu as tivesse
abandonado. Não sabiam elas que tudo isso seria um marco na postura dos meus pais
quanto à criação delas duas, que teriam uma vida mais saudável a partir dali. Nunca quis
decepcionar meus pais quanto aos estudos, por isso nunca perdi ano, fiz poucas provas de
recuperação e entrei na faculdade no tempo certo. Tornei-me administradora de empresas
e logo me apaixonei pela área de Recursos Humanos. Mas eu queria saber além das
práticas de R.H., queria entender o que estava por trás do candidato num processo
seletivo; enxergá-lo como ser humano! Interessante que esse viés humano é o traço mais
marcante da minha mãe e o interesse pela gestão surgiu do convívio com a veia comercial
do meu pai. A partir de leituras, pude constatar que precisava encontrar respostas para

446
minhas indagações em outras fontes. Assim, me apaixonei pela Psicologia
Organizacional e pude dar continuidade à minha formação, especializando-me e
satisfazendo as minhas curiosidades pela gestão de pessoas a partir do viés do ser humano.
Tão apegada à família de origem, “a menina que casou adolescente” precisava cuidar da
família que constituiu, sua família nuclear...

“MENINA-MULHER E PROFISSIONAL...”

Prorrogado o plano da maternidade, por obra do destino, cinco anos depois, nascia
Felipe, o filho tão esperado e, dessa vez, planejado! E toda a vontade de fazer diferente
da minha mãe iria por “água abaixo”. Nunca pude ficar em casa somente cuidando da
cria, como minha vó fazia, afinal, precisava contribuir com as despesas do meu casamento
pré-maturo. Quando Felipe tinha dois anos, eu e o pai dele decidimos morar em Ribeirão
Preto-SP, devido a minha aprovação no Mestrado em Psicologia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), do Departamento de Psicologia
e Educação da Universidade de São Paulo (USP), que me levou à decisão de colocá-lo
numa creche, tempo integral, para viabilizar meus estudos. Empolgada, lá também investi
numa Formação de Coordenador de Grupos Operativos no Instituto Pichon-Rivière de
Ribeirão Preto. A psicologia social entrou, então, na minha vida. Com a proposta de
trabalhar a questão da identidade e a análise de instituições e grupos a partir das
representações sociais, defendi a dissertação do Mestrado, curiosamente, exatamente na
data em que havia me casado, só que 12 anos antes: 28 de julho. Uma data escolhida pelo
meu avô paterno para evitar casar em agosto, segundo ele, o mês do desgosto. Um ano
antes da defesa, porém, chegou o momento de uma nova decisão familiar: o divórcio.
Tantos planos, tantos sonhos, tanto investimento! Mas como dizer que não deu certo?
Deu certo sim, por 11 anos, não fossem os inúmeros episódios de infidelidade!
Pesquisadora das representações sociais, eu já sabia que nesse momento tínhamos uma
representação distorcida um do outro e da nossa relação. Antes de me separar, participei
de algumas seleções para docente de nível superior em Salvador e fui chamada para
lecionar. Isso modificou a minha vida, por completo. Era a realização de um sonho de
infância, de carreira e de vida! Minha mãe sempre exerceu este ofício, e eu amava “ser
professora”, seja das bonecas, dos vizinhos, ou das minhas irmãs! Na graduação, me
inspirava nas professoras das disciplinas de que mais gostava e sempre tive a certeza de
que trabalhar com isso me daria muito prazer.

447
“E TANTOS OUTROS CASAMENTOS...”

Muito interessante este exercício de pensar nessa história de casamentos e,


naturalmente, perceber como tudo sempre veio acompanhado dessa ideia na minha vida...
Terminei casando novamente apenas dois anos e meio após o divórcio, e dessa nova
relação, dois anos depois do casório, nasce Sofia, para iluminar ainda mais essa nova
família, reconfigurada! Mas nesse pequeno intervalo de solteira, também vivi um quase
casamento... um “morar junto” que nunca havia experimentado. Num mundo
contemporâneo em que, dizem as minhas amigas, “homem para casar está cada vez mais
em extinção”, tenho muitas vezes até cautela de falar nisso, mas, sinceramente, prá mim
nunca foi dificuldade! Na menina medrosa que achava que não ia casar por causa do
nome, sempre aquele que adquiria maior grau de intimidade terminava demonstrando
essa intenção: de querer fazer tudo junto; ficar “colado”; dormir e acordar “de
conchinha”; e até assumir um filho que já existia. Alguém para curtir, sem maiores
compromissos, nunca apareceu! Por isso, surge sempre uma íntima indagação: “-Por que
sou alvo de tanta intimidade e compromisso? O que será que proporciono e desperto, sem
perceber?” Esses pensamentos sempre foram segredos da minha vida afetiva... porque,
apesar dos poucos meses de solteirice, só eu sei o sacrifício para não cair em tentação do
“morar junto”... Porque, se não me vigiasse, me deixava seduzir. Eu não aprendi a
namorar, nem a viver só... porque “já nasci casada”.

“O CASAMENTO COM O DOUTORADO...”

Com a separação e o “recasamento”, fui movida a estudar a área de casais, haja


vista o estranhamento quanto aos rumos que o fim da minha relação conjugal tomou. Na
verdade, em meio a tudo isso, certos questionamentos tomaram proporções
incontroláveis: Como pode existir ‘ex-pai’? Como pode alguém viver por quase 12 anos
com outrem e fingirem que não se conhecem? Tem um filho no meio disso tudo! Fui a
fundo e logo me tornei psicoterapeuta sistêmica de família, casal e individual! Não sei ao
certo se já consigo responder às minhas questões conjugais sozinha, por isso, e para isso,
mantenho um processo terapêutico pessoal por quase 20 anos. E, nessa vontade de um
maior aprofundamento teórico na área da família para ampliar e continuar exercitando
minha curiosidade coube, agora, um espaço especial para um Doutorado. A proposta é
estudar a conjugalidade, mas ir além: investigar que tantas dimensões compõem a vida
de um casal; as influências da família de origem na construção da autonomia conjugal do
448
novo casal; a possibilidade de individuação na construção da intimidade. E agora uma
atividade de uma das disciplinas do programa me interroga, me encosta na parede, ou
melhor, me coloca diante de um espelho, e grita: “Qual a relação da sua história de vida
com o tema a que se propõe a investigar como pesquisadora no Doutorado?”. De repente,
ecoa em mim: Será que alguém que nasceu na lua de mel dos pais que têm 36 anos de
vida conjugal; provocou mudanças na rotina de um casal; fez os únicos membros vivos
da família nuclear morarem juntos ao novo casal que se formava; foi troféu de uma
família extensa; núcleo de um conflito; começou a vida sexual já casada; divorciou-se;
morou junto; viveu uma relação estável e mantém um “recasamento”; quis exercer a
maternidade de forma diferente da mãe, mas se vê cada vez mais a cópia dela; mantém
um vínculo de fidelidade ao pai até hoje e, como mãe, deixa um tantão de metas traçadas
na infância a desejar tem algum motivo para se interessar pelo tema família,
conjugalidade, autonomia conjugal e possibilidade de individuação?! Enfim, em 2012,
casei-me com esta ideia!

REFERÊNCIAS

CERVENY, Ceneide Maria de Oliveira. Intergeracionalidade: heranças na produção de


conhecimento. São Paulo: Roca, 2011.

FREEMAN, Mark. Narrative inquiry and autobiographical understanding. In: CLANDININ,


Jean. Handbook of narrative inquiry: Mapping a methodology. Alberta: Sage Publish, 2007. p.
120-145

449
O EU E A CIDADE: AUTORRETRATO E MULTIDÃO EM DOIS
ENSAIOS FÍLMICOS1

THE SELF AND THE CITY: THE SELF PORTRAIT AND THE
CROWD IN TWO ESSAYISTIC FILMS

Tatiana Hora Alves de Lima2

Resumo: Como o cinema de ensaio apresenta intersecções entre o personagem que narra
a experiência na metrópole e a multidão que cruza os seus caminhos? Dois ensaios
fílmicos, Lost book found (1996), de Jem Cohen, e News from home (1977), de Chantal
Akerman, nos apresentam distintas temporalidades e espaços que dão a ver experiências
que intercalam o indivíduo e a coletividade tendo como palco uma mesma cidade, Nova
Iorque. Ao narrar a experiência, esses filmes aderem à subjetiva indireta livre: ou seja,
trazem o olhar do personagem impregnado no estilo de modo a romper com os limites
entre o objetivo e o subjetivo. A ruptura da dicotomia entre as imagens que a câmera vê
(objetivas) e as imagens que a personagem vê (subjetivas), conduz a uma quebra na
identidade Eu=Eu da câmera, em que o cineasta tem certeza de quem é (sujeito) e sobre
quem filma (objeto) e conduz à identidade Eu=Outro, em que ambos se encontram num
devir, em constante transformação. Deste modo, investigamos nesses dois ensaios o modo
como eles formulam agenciamentos coletivos de enunciação, apresentando formas em
que existe uma engrenagem entre o eu e a coletividade incrustada na própria forma do
filme.
Palavras-chave: autorretrato; multidão; ensaio; agenciamentos coletivos de enunciação.

Abstract: How does the essayistic films have intersections among the narrator who tells
his/her experience in a big town and the crowd crossing paths? Two essayistic films- Lost
Book Found (1996), by Jem Cohen and News from home (1977), by Chantal Akerman –
show us distinct temporalities e and spaces which promote experiences related to
individual and the collectivity. The space where ocurrs these stories is New York city.
So, this free indirect subjectivity shows a character’s point of view aimed at breaking
limits among the objectivity and subjectivity The hypothesis is based on the rupture of
duality among the images the camera captures (objective ones) and the images the
character sees (subjective ones). It leads to the self rupture=camera self identity, in which
the filmmaker is aware of who is (subject) and who makes a film. Consequently, the self
leads towards other = Self identity. Thus, both films find themselves in a constant
mutation becoming. We carry out a research which demonstrates how the presentation
collective agencies of enunciation are elaborated. They present forms in which there is a
machine among the self and the collectivity inherent in this type of film.
Keywords: self portrait; crowd; essay; collective agency of enunciation

1
Mesa-redonda Derivas do sujeito no espaço urbano.
2
Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
450
Ruas percorridas por automóveis e transeuntes, enquadradas por planos
geométricos3, que valorizam o equilíbrio das linhas e formas da arquitetura da cidade. Em
News from home (1977), Chantal Akerman4 constrói um olhar entre a objetividade da
arquitetura de Nova Iorque e a subjetividade da experiência da estrangeira que nela reside
temporariamente. A voz over da cineasta Chantal Akerman lê as cartas escritas por sua
mãe perguntando por notícias de sua estadia em Nova Iorque, e tudo o que vemos é o
exterior: a ensaísta escreve sobre si com imagens através do espaço da rua, como se
houvesse uma intersecção entre o seu eu e aquela cidade, de modo que até mesmo os
ruídos de carros e metrôs se sobrepõem à sua voz em certas partes do ensaio; um eu que
é uma condição passageira, como vemos ao final do filme, num plano feito do ponto de
vista de um navio que vai embora de Nova Iorque. Diversos personagens percorrem o
espaço sem sabermos de onde eles vêm, muito menos para onde vão, não nos deixando
nenhuma história, nem sequer um rastro além de suas aparições furtivas. No entanto, é
através do relativo apagamento da cineasta nas marcas de enunciação que esses anônimos
adquirem uma maior força dentro do filme, não se submetendo à sua biografia, e
assumindo uma presença própria que nos remete a outras experiências vividas naquele
espaço.

Lost book found (1996), de Jem Cohen, traz planos do ponto de vista do alto de um
arranha-céu, e ouvimos o narrador-personagem comentar sobre a paisagem que vê e
também sobre aquilo que não pode enxergar, enquanto perscruta as janelas do edifício
em frente, mostrando pessoas percorrendo seus apartamentos na forma de vultos. Em Lost
book found a montagem justapõe os planos do ponto de vista do arranha-céu a imagens
ao rés do chão5 de carrinhos de ambulantes, e o narrador-personagem conta: “eu descobri

3
Segundo Deleuze (1983), o quadro geométrico é aquele onde o espaço é composto por linhas paralelas e
diagonais de acordo com o equilíbrio das formas, apresentando um movimento invariável. Se, de acordo
com o autor, o enquadramento é limitação, os limites do quadro geométrico são definidos por ele como
matemáticos, ou seja, são os limites do quadro que impõem as condições sobre os corpos que o percorrem.
4
Segundo Ivone Marguiles (1996), durante sua estadia em Nova Iorque de 1971 a 1972, a cineasta Chantal
Akerman entrou em contato com o cinema experimental de Andy Warhol e os filmes-diários de Jonas
Mekas. Lembremos que Warhol realizou obras como Empire State Building (1964), um plano-sequência de
pouco mais de oito horas do edifício homônimo em Nova Iorque da noite até o amanhecer, e Sleep (1963),
que mostra mais de seis horas de sono de um rapaz, filmes que apresentam um aniquilamento da
subjetividade e uma pretensão de capturar o cotidiano no seu transcorrer pela reprodução técnica. Já Jonas
Mekas, num ensaio como Lost, lost, lost (1976), apresenta um diário íntimo com imagens fragmentárias da
sua experiência enquanto exilado da Lituânia residente em Nova Iorque. Entre Warhol e Mekas, Chantal
parece herdar o apagamento da subjetividade de Warhol e as inflexões ensaístas com tom autobiográfico
de Mekas.
5
Expressão cunhada por Cláudia Mesquita (2006) no artigo Lost book found: uma cidade ao rés do chão,
451
que, por ficar atrás do carrinho, vendendo, eu havia construído uma parede e uma janela,
de onde podia observar o que acontecia na rua, naquele longo corredor de empresários e
passantes”. Jem Cohen elabora um ensaio que cria ficções a partir de imagens do
cotidiano de Nova Iorque, chegando a confundir não só os limites entre o objetivo e o
subjetivo, promovendo também uma dialética entre o real e o imaginário ao elaborar a
atmosfera onírica sobre a iminência de uma chuva de moedas em Nova Iorque a partir de
flagrantes documentais. As múltiplas narrativas possíveis que habitam as ruas interessam
ao narrador-personagem de tal modo, que chegam a ter autonomia e desestabilizam a
instância narrativa, e assim o filme parte de uma experiência que se conecta a infinitas
outras experiências possíveis na cidade.

Vestígios? São as vidas que passaram por aí, os corpos, as palavras, as


narrativas, todo um emaranhado de encontros tão intensivamente
vividos quanto rapidamente perdidos. Filmada, a cidade se torna texto,
hipertexto, e mesmo, simultaneamente, coletânea de todas as histórias
possíveis nas cidades e léxico de todas as palavras trocadas.
(COMOLLI, 2008 p. 180)

ENSAIO E AUTORRETRATO

Os ensaios News from home e Lost book found apresentam subjetividades instáveis,
multifacetadas, proteiformes. Lembremos que, no ensaio, “o sujeito está em movimento,
em metamorfose, em explosões, ele pode tomar diversas faces, elas também
contraditórias”6 (NEYRAT, 2004, p.159, tradução nossa).

Em News from home, a leitora das cartas, Chantal, fala de si convivendo com a voz
da autora das cartas, sua mãe, e se oculta sob a austeridade de planos aparentemente
impessoais. Já em Lost book found, a narração do ex-vendedor ambulante convive com a
instabilidade da memória empreendida pela voz do livro. Os narradores personagens se
esboçam na relação com os outros personagens com os quais se deparam nas andanças
por Nova Iorque: sejam os ambulantes de Lost book found, ou os anônimos no metrô
encarando a câmera em News from home. Esses filmes seguem a lição de Montaigne, que,
segundo Starobinski, elaborava ensaios como registros da sua vida, “mas os ensaios de
sua vida, excedendo sua existência individual, concernem à vida dos outros, que ele não
pode separar da sua” (STAROBINSKI, 2011, p.8).

referindo-se aos enquadramentos do ensaio, que privilegiam um olhar sobre as ruínas de Nova Iorque.
6
No original : “Le sujet y est en mouvement, en métamorphose, éclate, il peut prendre plusiers visages,
eux aussi contradictoires”.
452
Segundo Cyril Neyrat (2004), se o ensaísta é a matéria da sua obra, o ensaísmo está
mais para os autorretratos do que para as autobiografias. Mas, antes de chegar à noção de
autorretrato, vamos primeiramente apresentar o conceito de autobiografia segundo a
concepção pragmática de Phillipe Lejeune (2008), noção problematizada por Paul de Man
(1979) no ensaio Autobiografia como desfiguração.

Primeiramente, saber se os ensaios News from home e Lost book found são
autobiografias envolve parâmetros complexos. Phillipe Lejeune (2008) parte da definição
da autobiografia como um texto onde há identidade entre autor, narrador e personagem,
para depois, a partir de narrativas que tensionam essa relação e deslocam o problema da
primeira pessoa como aspecto central (na autobiografia nem sempre o narrador diz eu),
chegar ao conceito de pacto autobiográfico. Lejeune (2008) conceitua a autobiografia
com base no contrato estabelecido entre escritor e leitor, ou, como no nosso caso, entre
cineasta e espectador. Para o autor, a essência do pacto autobiográfico está na
coincidência de nome entre o autor, o narrador e a pessoa de quem se fala.

News from home, por exemplo, apresenta a leitura de cartas em voz over dirigidas
a Chantal, mesmo nome da diretora Chantal Akerman, o que nos levaria a concluir, tendo
como norte o conceito de Lejeune (2008), que se trata de uma autobiografia. No entanto,
a cineasta jamais fala de si nem da sua relação com a cidade de Nova Iorque, todavia a
sua subjetividade e a experiência da cidade encontram expressão através de planos com
uma duração dilatada, que acolhem a banalidade cotidiana. Como afirma Bergstrom
(2004), “neste filme como em todos os outros, Chantal Akerman não utiliza os elementos
autobiográficos cuidadosamente delineados. Sua vida não é um livro aberto e estamos
bem longe do cinema verdade” 7.

Já em Lost book found nós não conhecemos o nome do narrador que trabalhou como
vendedor ambulante nas ruas de Nova Iorque, embora saibamos por informações
exteriores ao filme que o cineasta Jem Cohen exerceu essa atividade na metrópole, o que
nos leva a suspeitar que a obra apresente elementos autobiográficos. Segundo Philippe
Lejeune (2008), alguns textos ficcionais narram eventos que são conhecidos como

7
No original :“L’oeuvre de Chantal Akerman a toujours une dimension autobiographique. Dans ce cas
précis, on en est proche car, bien que cela ne soit à aucun moment énoncé dans le film, c’est la voix de
Chantal Akerman lisant les letters que sa mere lui a écrites au cours de son premier voyage à New York,
lorsqu’elle avait vingt ans, que nous entendons. Néanmoins, dans ce film comme dans tous les autres,
Chantal Akerman n’utilise que des elements autobiographiques soigneusement délimités. Sa vie n’est pas
un livre ouvert et l’on est bien loin du cinema-vérité”.
453
integrantes da trajetória de vida do autor, mas isso não leva a caracterizar tais textos como
autobiografias, e sim como romances autobiográficos, posto que o autor não assume a
identidade entre autor e personagem, não conformando o pacto autobiográfico. Lost book
found está circunscrito ao grau zero do pacto, ou à ausência de contrato, como afirma
Lejeune acerca de obras literárias em que “não apenas o personagem não tem nome, mas
o autor não firma nenhum pacto - nem autobiográfico, nem romanesco. A indeterminação
é total” (LEJEUNE, 2008 p.29).

Como podemos perceber, os ensaios News from home e Lost book found estão bem
longe de compor autobiografias no sentido clássico do termo, ou seja, não apresentam
uma identidade plena entre autor, narrador e protagonista, nem trazem à tona confissões
acerca de suas biografias que poderiam aludir a uma continuidade coerente de suas
trajetórias de vida.

Partindo da contestação do conceito de autobiografia de Lejeune, Paul De Man


(1979) afirma que, apesar de Lejeune deslocar a noção de autobiografia do problema do
referente, ou seja, definindo-a não a partir da verdade dos relatos, mas sim da relação
contratual estabelecida com o leitor através do nome próprio, o autor acaba por não
superar a questão do referente. De Man argumenta que o sujeito contratual finda por se
tornar uma autoridade transcendental que permite ao leitor julgá-lo por suas histórias;
sendo assim, a antiga estrutura especular teria sido desarticulada, mas não suplantada.

Segundo Paul De Man (1979), a autobiografia não é um gênero, mas sim uma figura
de leitura que, de certo modo, é encontrável em todos os textos, pois o momento
autobiográfico consistiria na substituição reflexiva mútua entre os dois sujeitos
envolvidos no processo de leitura, o autor e o leitor. Ainda de acordo com De Man (1979),
se todo texto é autobiográfico, ao mesmo tempo nenhum pode ser, pois não é possível o
autoconhecimento pleno, nem a totalização do eu.

De Man (1979) afirma que a figura de linguagem da autobiografia é a prosopopeia:


se a prosopopeia quer dizer personificação, ou seja, atribuir qualidades humanas a seres
inanimados, a autobiografia consiste em dar voz ou face através da linguagem; e ela
envolve figurar e desfigurar, figuração e desfiguração. Esse processo ocorre nos dois
ensaios em questão no presente trabalho: News from home utiliza estratégias de
linguagem como os planos áridos e a voz over da diretora lendo cartas para promover
uma dialética entre figuração e desfiguração, de modo a personificar a cidade de Nova
Iorque na fricção entre sujeito e mundo; em Lost book found, a voz do livro assume a
454
forma de uma alegoria do texto urbano escrito por múltiplos autores do livro-cidade, e as
vozes encontradas nas ruas ganham uma autonomia que confere ao filme uma
multiplicidade de narrativas não contadas; o ex-ambulante se desfigura para então se
figurar ao se agenciar com a coletividade que habita as ruas da cidade.

Segundo Raymond Bellour, no cinema a autobiografia “se torna fragmentária,


limitada, dissociada, incerta – influenciada por essa forma superior de dissociação que
nasce dos disfarces da ficção”8 (BELLOUR, 2009, p. 293). E é por isso que o autor,
referindo-se ao cinema, se afasta do conceito de autobiografia (ele parte da contestação
da noção de Lejeune) e recorre à noção de autorretrato. Em vez de evocar a experiência
pelas palavras, o autorretrato promove uma experiência de escavação em busca de
imagens. Entretanto, o autor de autorretratos é comparado a Narciso por Raymond
Bellour: ao se deparar com sua imagem refletida na água, ele mergulha no rio e acaba se
afogando, e “é verdadeiramente afogando a si mesmo que Narciso se constrói como
autorretrato” (BELLOUR, 2009, p. 308).

Em certo momento de Lost book found, o ex vendedor ambulante conta que, a


medida que se tornava invisível, começava a enxergar coisas que antes eram invisíveis
para ele; durante o seu processo de rememoração, o narrador se encontra entre imagens,
deparando-se com lacunas e flashes, construindo um relato entre o esquecer e o lembrar
como se fossem duas atividades indissolúveis. Já em News from home, os planos frontais
e fixos de longa duração promovem uma aparente “não-mediação”, como se o dispositivo
cinematográfico acolhesse o tempo em seu transcorrer.

EU É OUTRO

Os ensaios News from home e Lost book found vão muito além do falar sobre si em
seus autorretratos elaborados no espaço da cidade, não apenas porque se afastam de uma
narrativa autobiográfica confessional, mas também e, principalmente, porque empregam
recursos estilísticos que dão a ver uma ruptura com uma identidade estável para a câmera.
Não se trata de um eu que explora a sua trajetória de vida, nem de um eu que encara o
outro como objeto. News from home e Lost book found produzem, cada um ao seu modo,
um pacto com a experiência coletiva urbana.

8
No original: “Se vuelve fragmentaria, limitada, disociada, incierta – obsesionada con esta forma superior
de disociación que nace de los disfraces de la ficción”.
455
Ao abordar a narração clássica, Deleuze (2005) a define sob o conceito de “regime
orgânico”, e afirma que “por convenção, chama-se objetivo o que a câmera ‘vê’, e
subjetivo o que a personagem ‘vê’” (DELEUZE, 2005, p. 179-180); isso resulta numa
dicotomia entre imagens objetivas e subjetivas no cinema, como também numa
identidade constante do tipo Eu=Eu. Tal convenção da narrativa clássica é definida por
Pasolini como cinema de prosa, que o cineasta italiano opõe ao cinema de poesia, ou ao
cinema moderno por excelência. Segundo Pasolini (1982), enquanto o cinema clássico
traça uma clara distinção entre o mundo objetivo e a subjetividade dos personagens,
oferecendo pistas bastante didáticas de que “trata-se de uma subjetividade” e não do
“real”, o cinema de poesia confunde os limites entre objetividade e subjetividade ao aderir
à subjetiva indireta livre. No cinema de poesia defendido por Pasolini, o autor não fala
sobre uma personagem, mas segundo sua língua, isto é, incorpora na escritura da obra a
percepção de mundo da personagem através de princípios formais e estilísticos.

De acordo com Deleuze (2005), diferente da narração do regime orgânico, na


narração do regime cristalino não há um eu que se identifica com a câmera e filma o outro
como objeto. A identidade Eu=Outro, segundo Deleuze, refere-se à infinita capacidade
de metamorfose do cineasta e dos sujeitos filmados, de modo que ambos se envolvem
num devir.

Ao tratar dos filmes de Jean Rouch e de Pierre Perrault, Deleuze (2005) alega que
o cinema direto9 que envereda pelas potências do falso apresenta personagens que vivem
o antes e o depois na encenação, que se transformam e fabulam a si mesmas para além do
real e do fictício, cuja verdade é essa mudança e essa interpretação que transcorre diante
da câmera. Deste modo, a subjetividade, não mais centrada, não mais fixa, não mais
constante, migra para a coletividade, transmuta do Eu=Eu para o Eu=Outro, e, portanto,
“a personagem está sempre se tornando outra, e não é mais separável desse devir que se
confunde com um povo” (DELEUZE, 2005, p.185). Assim sendo, as personagens fazem
o discurso da África enquanto Jean Rouch realiza o seu discurso indireto livre em Moi,

9
O cinema direto nasce por volta do final dos anos 50, com a criação dos novos aparelhos portáteis de
gravação de som e imagem, e, em seu primeiro momento, “acredita-se numa posição ética centrada no
recuo do cineasta em seu corpo-a-corpo com o mundo” (RAMOS, 2008 p.269), sendo exemplar o filme
Primary (1960), de Robert Drew. Num segundo momento, um filme como Crônica de um verão (1960), de
Jean Rouch e Edgar Morin, revela uma modalidade do cinema direto que prefere explicitar a intervenção
do cineasta no mundo e a encenação dos personagens no documentário, sendo chamado também de cinema
verdade.
456
un noir, enquanto as personagens de Perrault elaboram o discurso do Quebec em Pour la
suite du monde.

Nos ensaios Lost book found e News from home o coletivo não é apenas o objeto
que está fora e que encanta o ensaísta, mas se incrusta na própria forma fílmica de modo
a desestabilizar a identidade da câmera Eu=eu e convertê-la em Eu=outro. Lembremos
da literatura menor de Kafka, tal como lida por Deleuze e Guattari (1977): uma forma
literária que, diferente da grande literatura, que apresenta o individual tendo como pano
de fundo o contexto político, vincula imediatamente o individual ao político. Da relação
intrínseca entre o individual e o político presente na literatura menor resultam enunciados
completamente contaminados pelo político, de modo que não há enunciações individuais,
mas sim enunciações coletivas. Assim, na literatura menor não há sujeito, mas sim
agenciamentos coletivos de enunciação. Para Deleuze e Guattari (1977), não há um
sujeito por trás do enunciado, assim como não há um sujeito que emana do enunciado10.
Haveria, antes, uma função geral que promove um agenciamento polívoco, de múltiplas
vozes e sentidos, da qual o indivíduo é uma parte e a coletividade outra parte, formando
partes que se relacionam numa engrenagem. Segundo Deleuze e Guattari, a letra K não
designa nem um narrador nem um personagem, mas sim um agenciamento maquínico,
um agente coletivo.

Assim como não se trata de Kafka, nos filmes que estudamos não é Chantal, a quem
se dirigem as cartas de News from home, nem o personagem sem nome de Lost book
found que estão por detrás do enunciado. Em termos de montagem, voz e enquadramento
executados nestes filmes, é possível perceber a instabilidade da subjetividade frente aos
agenciamentos coletivos de enunciação.

Não estamos falando de identificação, mas de agenciar. Segundo Deleuze e Pernet


(1998), agenciar é estar no meio, é ser absorvido na linha de encontro entre o mundo
interior e o mundo exterior, e se absorver na corrente comum. Agenciar não é imitar o
outro nem se identificar, mas produzir algo entre mim e o outro, o que nos leva a um
devir, em que ambos não continuam sendo os mesmos. Como em News from home, pois

10
Ao falar em “enunciado”, é preciso enfatizar que estamos num âmbito diferente da literatura, pois estamos
abordando o cinema. Diferente de Metz, que assimilava a imagem cinematográfica a um enunciado,
Deleuze (2005) se desfaz das amarras do paradigma linguístico, e afirma que a imagem não é um enunciado,
mas sim enunciável. Segundo Deleuze (2005, p.43), a língua existe em relação a uma matéria não-
linguística, e “é por isso que os enunciados e as narrações não são um dado das imagens aparentes, mas
uma consequência que resulta dessa reação. A narração está fundada na própria imagem, mas não é dada”.
457
a leitora das cartas submerge na multidão e nos olhares. Ou em Lost book found, em que
o ex-ambulante, do ponto de vista “de baixo”, vive o corpo-a-corpo na deriva pela cidade.
O agenciamento como co-funcionamento: “nem identificação nem distância, nem
proximidade nem afastamento, pois, em todos estes casos, se é levado a falar por, ou no
lugar de... Ao contrário, é preciso falar com, escrever com. Com o mundo, com uma
porção de mundo, com pessoas” (DELEUZE e PERNET, 1998, p.43).

Lost book found e News from home recorrem à subjetiva indireta livre e dão a ver,
portanto, realidades e subjetividades instáveis e narradores proteiformes, multifacetados.
São narradores mutantes, que narram a experiência em constante transformação. Se o
devir é um infinito tornar-se que nunca chega a uma identidade acabada, que não cabe na
forma do modelo, e implica um encontro, ou núpcias, entre solidões, trata-se de “achar,
encontrar, roubar, ao invés de regular, reconhecer e julgar. Pois reconhecer é o contrário
do encontro” (DELEUZE e PERNET, 1998, p. 8). Segundo Deleuze, o devir pode ser
expresso no estilo, sendo o estilo considerado como um agenciamento de enunciação, ou,
conforme sua síntese trata-se de “conseguir gaguejar em sua própria língua [...]”
(DELEUZE, 1998, p. 4). O autor cita como exemplos de “gagos usando sua linguagem”
o cineasta Godard e o escritor Kafka, entre outros.

Mas não é disso mesmo que é feito o ensaio, desse gaguejar em sua própria
linguagem? Experimentar a linguagem cinematográfica, testar as fronteiras entre os
domínios da ficção e do documentário, através do ensaísta que ensaia a si mesmo nos
encontros que promove com os personagens e o mundo. Numa sequência de Lost book
found, o narrador-personagem parece nos confessar a sua forma inacabada e a incerteza
do assunto do filme. O narrador afirma que as listas do livro perdido permaneceram sendo
ecoadas pela sua memória, com “certos lugares, coisas, e incidentes que parecem se
encaixar como palavras cruzadas”. Um plano em câmera baixa faz travellings e atenta
para uma sacola rodopiando ao sabor do vento numa calçada, enquanto ouvimos a voz do
narrador afirmar: “Com uma forma que sempre muda, cujo assunto eu nunca tive certeza
em primeiro lugar”.

Numa passagem de Lost book found, vemos um cartão onde está escrito “A lifetime
income opportunity”11 – em seguida, um pequeno bilhete com letras escritas à mão
dizendo “To Mom, may you get lots of Money/ Love, Kisha”12; então um travelling segue

11
Uma oportunidade de renda vitalícia (tradução nossa).
12
Para a mamãe, você pode conseguir muito dinheiro. Com amor, Kisha (tradução nossa).
458
um homem adentrando uma passagem subterrânea numa calçada, até que ele fecha as
portas; uma superposição de imagens nos leva a um travelling que avança na direção da
escada que conduz a uma estação no subsolo, por onde desce um casal; em contra-
plongée, a imagem apresenta um outdoor com o rosto de uma mulher sob a penumbra da
noite; ouvimos uma voz dizer: “Eu lhe contarei tudo, tenho uma cidade subterrânea aqui”,
e vemos um misterioso homem de chapéu, de costas, descendo uma escada rolante que
leva a uma estação de trens. Bilhetes que remetem a histórias que não conhecemos,
passagens enigmáticas no espaço da cidade, imagens da metrópole desconhecidas por
nós. Lost book found não atenta apenas para o que antes era invisível aos olhos do
narrador, mas também aponta para o que ainda não é visível no ensaio, para os espaços
da cidade que o filme não consegue alcançar, o que está no fora de campo, e faz alusão a
tantas narrativas que não foram contadas e que nos deixam apenas pistas, rastros, pegadas.

É por isso que o narrador-personagem nos pergunta quem escreveu o livro perdido,
e em seguida apresenta uma série de retratos de anônimos. O ex-ambulante conta suas
histórias mostrando imagens de outros ambulantes como se o narrador se agenciasse com
eles; e o ensaio mostra imagens de pessoas dormindo num trem como se o narrador
também fosse um deles, quando conta que pegava o trem para ir ao trabalho, e por
trabalhar num escritório aos poucos foi perdendo contato com a cidade.

Ao contrário de Lost book found, em que o investimento nos travellings promove


uma perambulação pela metrópole ao modo de um flâneur baudelaireano, os planos fixos
em boa parte de News from home (à exceção de algumas poucas panorâmicas no decorrer
do ensaio, ou dos travellings que remetem ao progressivo movimento de partida da
personagem de Nova Iorque para a Bélgica) transmitem a impressão de que estamos
lidando com uma observadora estática que registra as imagens dos transeuntes.

Em muitos planos de News from home, o descentramento do olhar promovido pela


valorização da profundidade de campo, ampliando as possibilidades da perspectiva em
detrimento das restrições estabelecidas por um olho central, em vez de encenar “a
ausência do sujeito”, faz prevalecer a elaboração de uma subjetividade opaca por meio de
uma estrutura fílmica anti-revelatória, que reforça os limites do quadro.

Akerman abre mão de um olhar unívoco e de voltar-se para si mesma, e prefere


narrar a experiência a partir do mundo exterior, observando atentamente os personagens
com os quais a câmera cruza. Segundo Jacques Aumont (1993), todo enquadramento
supõe uma relação entre um olho fictício e um conjunto de objetos organizado num
459
cenário; enquadrar é criar centros visuais, sendo o centro absoluto o olho fictício do
espectador. Akerman rompe com esse “olhar privilegiado” ao apresentar imagens entre o
mecanicismo e impessoalidade do quadro cinematográfico e a subjetividade do olhar.

A rigidez da moldura, promovida pela fixidez do plano, a frontalidade, as


panorâmicas enviesadas, os travellings feitos a partir de trens e automóveis que jamais
demonstram uma personalização do olhar, e, por fim, o uso recorrente do quadro dentro
do quadro são alguns elementos que reforçam os limites da janela cinematográfica e se
afastam de efeitos de identificação – não olhamos para o mundo a partir de um olho
central, pois o enquadramento apresenta uma abertura para as múltiplas possibilidades do
olhar através da profundidade de campo.

Em imagens como a sequência em que a câmera permanece fixa entre as colunas


de uma estação de metrô, por onde passam diversos passageiros que aguardam a sua
viagem, vemos uma multiplicação de quadros a partir das relações entre figura e fundo,
entre os personagens que percorrem o espaço próximo à câmera, e aqueles que se
deslocam no fundo do quadro. Às vezes o quadro fica vazio, ou mal conseguimos ver um
determinado personagem. News from home apresenta em diversas sequências imagens
segundo o princípio do desenquadramento. Segundo Jacques Aumont (2004),
desenquadrar envolve os processos de esvaziar o centro da imagem e reforçar as bordas
do quadro: assim, em News from home estamos sempre em confronto com os limites da
imagem, somos cotejados com o fora de quadro.

Os enquadramentos rentes ao chão em Lost book found, cujo narrador-personagem


logo desce do ponto de vista do alto de um arranha-céu para mostrar a cidade a partir do
corpo-a-corpo com outros personagens, estão muito longe de um olhar privilegiado sobre
Nova Iorque. Segundo Certeau (1998), as pinturas renascentistas representavam a cidade
a partir de um olho celeste conduzido por uma pulsão gnóstica diante desse texto não
redutível à univocidade, o texto urbano. O quadro em Lost book found vai mais embaixo,
onde atuam os praticantes ordinários da cidade. E o filme cede a esses inúmeros caminhos
possíveis desenhados por tantos outros habitantes, num ensaio seduzido pelo desejo de
perder-se no meio da cidade-labirinto.

Youssef Ishaghpour, a partir de uma metáfora, nos fornece uma pista sobre News
from home. Em seu ensaio O fluxo e o quadro, o autor defende que há uma relação
intrínseca na obra de Akerman entre a reprodução técnica e a busca pelo apagamento da
subjetividade. No entanto, ao referir-se a News from home, o autor nos indica (com um
460
questionamento) uma relação entre procedimentos estéticos áridos (especialmente no que
diz respeito ao enquadramento), na transmissão da experiência, e uma forma que vincula
o pessoal e o coletivo.

Não haveria com a reprodução técnica um desaparecimento da


subjetividade, um sentimento inapelável de perda e de morte, uma
regressão, nostálgica de um estado de dependência, de um “lar”
(“home”) desaparecido? E se o que ouvimos no filme, como o mais
pessoal, fosse apenas a voz dessa multidão solitária que vemos no
metrô? (ISHAGHPOUR, 2010, p. 32, grifo nosso).
A montagem de News from home apresenta planos com princípios formais
repetitivos, que constituem uma montagem por serialização, impondo a reprodução
técnica contra uma experiência contínua. Por outro lado, a duração artesanal dos longos
planos exige a paciência, o tempo de espera. Ao se afastar dos psicologismos da narrativa
autobiográfica, News from home apresenta uma forma que sugere a experiência de
qualquer um, de espaços quaisquer, do tempo em que nada acontece, e não a experiência
de um sujeito centrado em si que revela episódios de uma trajetória coerente. News from
home dá a ver a experiência através de procedimentos estilísticos que valorizam as
imagens-tempo em que diversos personagens aparecem em seu cotidiano em espaços
quaisquer. Uma montagem que faz sucederem espaços quaisquer para além de sentidos
unívocos impostos pelos espaços reduzidos ao encadeamento de ações de uma
personagem autobiográfica.

Já a montagem de Lost book found não exprime o pensamento de um sujeito. A


coexistência da voz-eu do narrador-personagem com a “voz do livro perdido e sem autor”
produz uma multiplicidade de vozes sobre a justaposição das imagens. Trata-se de um
texto fílmico em busca do texto urbano, com uma narrativa elaborada por múltiplas vozes,
tal como o texto urbano é enunciado por tantos autores, os habitantes da cidade. O ensaio
como uma “forma que pensa”13: não um sujeito que expressa o pensamento em imagens
cinematográficas, mas sim através de uma montagem que se quer à maneira de um
agenciamento coletivo, tal como os habitantes agem nas enunciações do texto urbano. Os
habitantes são os múltiplos autores do livro-cidade, e as relações entre a voz do livro e a
voz-eu do narrador-personagem elaboram imbricações entre o indivíduo e a coletividade
incrustadas na forma do filme.

13
Godard define o ensaio como “uma forma que pensa” em Histoire(s) du cinéma.

461
Na literatura menor, tal como definida por Deleuze e Guattari (1977), em que o
universo individual é perpassado pelo político: é o flâneur de Lost book found que tem
“um olhar para baixo”, um interesse pelas coisas ínfimas e pelos personagens menores,
marginalizados na sociedade capitalista. Já News from home se situa entre a
impessoalidade da rigidez do quadro e a subjetividade da leitora das cartas, no cruzamento
dos olhares entre a câmera e os personagens: quadros em que a negação da perspectiva
central e a mobilidade do olhar estimulada pela profundidade de campo se afastam do
ponto de vista do “sujeito que vê o mundo”, desestabilizando a identidade Eu=eu da
câmera através de uma narradora-personagem que se agencia com a multidão que
atravessa a cidade. Eu e outro não são essências, e conhecemos a narradora-personagem
através da relação que ela estabelece com a cidade e os seus personagens.

Eu é outro, ou o ex-ambulante se encontra num devir ambulante. Eu é outro ou a


estrangeira que se recusa a falar de si e escreve a sua história sem fatos a partir desses
encontros com os personagens em Nova Iorque, para no fim partir, sempre “sem lar”, à
deriva.

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Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Comunicação/Mestrado em Antropologia
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RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? – São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2008.

STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio?. Revista Remate de Males –


Campinas, 2011.

463
A CONSTRUÇÃO DE UM SUJEITO DE OPOSIÇÃO NO
WEBDOCUMENTÁRIO THIS LAND1

THE CONSTRUCTION OF A SUBJECT IN OPPOSITION IN THE


WEBDOCUMENTARY THIS LAND

Tatiana Levin2

Resumo: Este artigo traz uma análise de This land, um webdocumentário em formato de
diário de viagem realizado pela primeira mulher a ser membro de uma expedição militar
de patrulhamento das fronteiras canadenses do extremo Ártico. This land é ainda um
documentário autobiográfico que narra a experiência de uma cineasta acompanhando
uma expedição militar por 16 dias em mais de 2000 km de paisagens gélidas e baixas
temperaturas. Queremos olhar primeiramente para esse webdocumentário do ponto de
vista do conteúdo narrativo, visando contemplar a especificidade de um documentário
feito para a web e as possibilidades narrativas que derivam desse formato. Em segundo
lugar, vamos posicionar This Land como um produto autobiográfico. Pensaremos ainda
em como a escolha pela autobiografia atendeu às demandas de um suposto interesse
público diante das possibilidades derivadas da situação em foco. Finalmente, vamos
perceber como é construído o eu personagem e o outro e de que modo essas vozes estão
organizadas nesse produto documental.
Palavras-chave: Autobiografia, webdocumentário, análise fílmica, narrativa

Abstract: The aim of this article is to analyse This Land, a webdocumentary in the form
of a travel diary of the first woman to be a member of a military expedition patrolling the
Canadian border in the Arctic Circle. This Land is also an autobiographical documentary
which narrates the experience of the filmmaker accompanying the expedition for 16 days
covering more than 2000km of frozen territories in freezing conditions. We examine this
webdocumentary first of all from the viewpoint of the narrative content and its specificity
as a documentary made for the web and the narrative possibilities which come with this
format. Secondly, we examine This Land as an autobiographical work. We are going to
consider if the choice for an autobiographic approach satisfies the supposed demands of
the public interest, given the possibilities that arise from this theme. Finally, we go on to
see how the first person and the other are constructed and the way in which these voices
are organized in this work.
Keywords: Autobiography, webdocumentary, film analysis, narrative

1
Mesa-redonda Experimentos bioficcionais no cinema e na literatura.
2
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).

464
INTRODUÇÃO

This land é um webdocumentário em formato de diário de viagem realizado pela


primeira mulher a ser membro de uma expedição militar de patrulhamento das fronteiras
canadenses no extremo Ártico. É também um diário de viagem, que podemos classificar
como autobiográfico, narrado do ponto de vista de um eu que é a cineasta autora do relato
e que deixa prevalecer um olhar subjetivo a filtrar os acontecimentos da realidade. O eu
aparece como uma voz off onipresente a ditar o andamento de uma narrativa dividida nos
16 dias necessários para o patrulhamento das fronteiras.

Embora esse eu narrador seja fartamente ouvido, não há sua imagem visual, mas
daquilo que ele registrou com sua câmera. O espectador pode apenas construí-lo por meio
dessa mulher que fala em tom confessional desfilando verdades privadas num espaço que
poderia ser o de um relato objetivo, de algo de caráter público, se pensarmos que uma
missão oficial governamental tem relação com uma nação e com seus cidadãos. E se o
relato autobiográfico pode mesmo que subjetivamente desenhar o outro, há nesse caso,
pouco espaço para a percepção desse outro, pelo menos o outro que é humano, pois aqui
o outro é tudo aquilo que a cineasta tem que enfrentar para completar a jornada a que se
propõe. O outro é tanto a realidade adversa do Ártico que traz enormes dificuldades para
ela quanto a equipe que cria obstáculos por ser um grupo militar com um esquema rígido,
o que é característico da própria instituição.

Mas quem é esse eu criado em This land? E por que ele se torna algo tão
frontalmente oposto ao outro humano relatado? Existe uma construção do eu enquanto
um sujeito de oposição. Interessa ainda pensar o uso que faz a autora do espaço
documental para falar do outro. Começamos destacando a organização do conteúdo
narrativo a contemplar a especificidade de um documentário feito para a web nas
possibilidades que derivam desse formato. Um webdocumentário é um tipo de
documentário não linear e interativo que permite diversas linhas paralelas de apresentação
do conteúdo narrativo e que é feito para ser experienciado on-line.

THIS LAND COMO WEBDOCUMENTÁRIO

This land organiza-se numa ordem cronológica onde a voz off da narradora liga os
diversos dias de expedição. Um dos recursos interativos permite que se navegue em cada
465
dia separadamente determinando-se a velocidade do conteúdo imagético a ser acessado,
sendo ele composto de fotos, filmes, textos na tela e da localização em mapas. Pode-se
baixar o off separadamente e acompanhar o texto escrito na tela por dia enquanto se escuta
o relato na banda sonora. A duração do off de cada dia determina o tempo que o
espectador-usuário tem para interagir com o conteúdo visual disponível, sendo a sua
velocidade de cliques o que lhe permitirá ver mais ou menos conteúdo imagético.

No seu formato de diário de viagem, cada dia tem um número e um título particular.
A primeira fala da autora é, no entanto geral, sendo enquadrada como o dia zero, e é lá
que ela fala de sua motivação para a viagem, introduz os outros (paisagem e grupo militar)
e desenha o seu eu como um sujeito diferente do grupo. De título Sonhos de uma
paisagem congelada. Preparações para um Everest horizontal3, o dia zero começa com
a seguinte fala: “Eu queria desesperadamente ir para o Norte e não apenas para ver por
mim mesma, mas para fotografar e capturar aquilo de alguma maneira antes que sumisse”.
E então ela explica que negociou sua entrada na missão militar por meio da promessa de
contar com suas câmeras a história de como esse grupo realiza essa missão e porque o
faz.

O eu narrador traz as dificuldades de se estar numa missão que privilegia o grupo


ao indivíduo e que não distingue sexo diante das adversidades. A autora revela detalhes
pessoais dessa convivência em grupo negando o relato técnico da missão, num lugar de
narração de oposição ao admitir-se uma fotógrafa lésbica dentro desse ambiente
conservador. Cria um sujeito polêmico, de falas fortes4. Nessa relação de oposição,
desqualifica ainda o objetivo da missão de patrulhamento. A motivação do grupo é
patrulhar as fronteiras e fincar a bandeira e o que ela questiona é até que ponto isso é
necessário. A dela é fotografar uma paisagem nórdica que tende a desaparecer. Ela deixa
claro que a condição para que ela pudesse fotografar e filmar era a de ser membro da

3
Todas as traduções contidas neste artigo são de responsabilidade nossa.
4
Algumas falas polêmicas: “Eu não sou exatamente um exemplo para o exército. Sou gay, apreciadora de
whisky, usuária de maconha, fotógrafa cineasta”; “Nunca havia tido uma mulher nessa patrulha e havia
muito ceticismo quanto a mim, eu era a garota da mídia”; “Eu preferiria ir para a cama com suas esposas”;
“Os rapazes estavam tendo bastantes problemas com o fato de eu ser mulher. Seria provavelmente melhor
que eles não soubessem que eu também era lésbica” (Quando o comandante soube que ela era gay – “Você
não pode dizer que é gay aos Inuítes do nosso grupo. Eu não me importo, mas os Inuítes não aceitam a
homossexualidade. Para mim, é importante que todos trabalhem como um time na nossa patrulha. Eles
podem te deixar morrer lá fora se souberem que você é gay”.
466
patrulha militar, obedecendo regras militares. Sua dificuldade e provavelmente sucesso
na missão deriva daí, daquilo que primeiramente lhe pareceu uma restrição5.

Nesse jogo entre som, imagem e como ambos estão relacionados há uma estrutura
disjuntiva em This land, onde imagem e som estão desvinculados independentemente da
velocidade de cliques do espectador-usuário. Há um excesso de informação escrita na tela
que tende a desconcentrar, já que é o áudio em off que traz o conteúdo principal e que,
supostamente, organiza toda a narrativa. Recursos como baixar o áudio separadamente
em mp3 ou ler o texto na tela remetem a um aproveitamento restrito dos recursos do
webdocumentário.

O PACTO AUTOBIOGRÁFICO EM THIS LAND

Uma análise dos créditos desse webdocumentário derruba a premissa básica de


autobiografia como um texto no qual autor, narrador e personagem são a mesma pessoa6.
A autoria da história é dividida entre a cineasta que vivenciou a experiência narrada,
Dianne Whelan, e Jeremy Mendes. A narração em off é o recurso principal que organiza
a narrativa, sendo a narradora outra pessoa e não Dianne. Tanto a autoria compartilhada
como a construção de personagem como Dianne a partir da narração em off de um outro
narrador poderiam colocar um problema na classificação desse produto como
autobiográfico. Vamos olhar essas questões em detalhe. Primeiramente vale a pena
retomar as considerações de Philippe Lejeune para a definição de autobiografia. Sandra
Coelho e Ana Camila Esteves (2010, p. 25) discutem o que é a autobiografia retomando
a noção de “pacto autobiográfico” desse autor. Segundo elas, a ideia de pacto
autobiográfico do autor pressupõe a classificação do produto a partir da recepção do
mesmo ao estabelecer a noção de autoria como contrato social. Isso resolveria para as
autoras aquilo que poderia ser teoricamente problemático, já que a intenção autoral seria
suficiente para caracterizar um texto como autobiográfico, eliminando assim a
necessidade de se confirmar no texto e nas informaçãoes extra-textuais uma coincidência
real da afirmação autobiográfica.

5
Algumas falas nesse sentido: “Para ir na missão eu tinha que ser parte da patrulha”; “De repente, eu não
me senti como uma fotojornalista. Me senti mais como um soldado desertor, relutante em ir para a guerra”.
6
“Para que haja autobiografia […], é preciso que haja relação de identidade entre o ‘autor’, o ‘narrador’ e
o ‘personagem’” (LEJEUNE apud COELHO; ESTEVES, 2010, p. 25).
467
Podemos, dessa forma, retomar o primeiro problema colocado aqui, o de verificar
que estamos lidando com um produto autobiográfico. This land trabalharia a coincidência
entre autor e personagem a partir dessa intenção autobiográfica já que há uma autoria
compartilhada no texto. Um segundo problema seria o uso de uma voz outra a narrar os
acontecimentos, portanto de uma intérprete, sendo a voz off o recurso que nos faz
reconhecer Dianne e não sua imagem, já que esta não se faz presente. Novamente,
podemos pensar num uso estilístico dessa outra voz. A discussão assim já seria deslocada
para o que pode ou não ser feito no documentário e, nesse sentido, o próprio campo já
incorporou a encenação como recurso de mise en scéne que não descaracteriza o gênero.

O LUGAR DA AUTOBIOGRAFIA NO CAMPO DO DOCUMENTÁRIO

Se a autobiografia coloca problemas de definição em qualquer campo, na literatura


ela encontra um vasto campo de estudo acadêmico, mas no campo do documentário tem
sido uma modalidade de discurso que ainda busca por maior atenção enquanto objeto de
pesquisa teórica. Michael Renov no texto First-person films coloca-se como um estudioso
de autobiografia fílmica há pelo menos 20 anos. O autor fala a partir do campo do
documentário retratando a falta de reconhecimento da autobiografia fílmica nos estudos
deste campo, algo que começa a mudar nos anos 1990. Para tratar de autobiografia
documental, Renov fala da fusão de duas culturas, a da autobiografia, fundamentada no
campo literário, e a do documentário. Renov (2008, p. 39) usa o conceito de cultura no
sentido de Raymond Willians, como um conjunto de práticas materiais e simbólicas e fala
do campo do documentário institucionalizado como espaço para um “discurso de
sobriedade” (RENOV, 2008, p. 40), para o fato e a disposição lógica de argumentos a
produzir um conhecimento verificável. Para ele, é a ideia do documentário tido como
capaz de produzir conhecimento, evidência visível.

Renov situa-se a partir dos estudos autobiográficos, para falar da construção do eu


fundamentada menos no factual para ser algo incompleto e traz como referência Michel
de Montaigne para relembrar características tais como a indeterminação e a arbitrariedade
no retrato do eu (2008, p. 40-41). Há, portanto, para o autor uma oposição clara entre a
cultura mainstream sobre o documentário como espaço para o factual e para a certeza
imutável e a cultura da autobiografia onde a verdade é passageira, contraditória, subjetiva.
O ponto defendido pelo autor é que a autobiografia traz uma verdade, ainda que mutável.
É uma construção de vida por meio do texto que no plano fílmico traz marcas de uma
468
realidade. É a verdade interior que aparece, mais do que a exterior, são verdades
psicológicas, de modo que a realidade nesse caso não pode ser ligada à exteriorização
segundo Renov. Para esse autor, a própria ideia de autobiografia desafiaria a própria ideia
de documentário. A autobiografia reinventaria a própria ideia de documentário no sentido
de organizar-se de outra forma, não com provas, mas com correlações visuais para
verdades interiores.

Outra tese defendida por Renov nesse texto é a de que o autobiográfico envolve e
é contagiado pelo político (2008, p. 47). Essa tese é trazida pelo autor na função de
mostrar que a autobiografia não é incapaz de fazer referência ao campo social. Dialoga
ainda com a ideia de documentário como lugar para o discurso político defendida na
cultura institucionalizada do gênero. A auto-construção para o autor é realizada através e
com o político, do lugar de uma reconciliação de múltiplas identidades que com sucesso
podem despreender-se de relações sociais. Citando Michel Foucault, Renov (2008, p. 47)
relembra que pensar “quem somos nós” é a questão mais importante do nosso tempo, pois
reafirma uma atitude política de sobrevivência. É a negação do sujeito em submeter-se às
pressões massivas tanto no plano da representação - trazida para ele na publicidade, nas
notícias e na indústria de entretenimento -, quanto nas pressões sociais exercidas pelas
instituições governamentais. “Não somos apenas o que fazemos num mundo de imagens;
somos também aquilo que mostramos de nós mesmos” (RENOV, 2008, p. 48). A
autobiografia fílmica é, portanto, para o autor um movimento que se insere numa ação de
política identitária.

Tomando-se como base a visão de Renov e as questões colocadas por ele, podemos
dizer que em This land Dianne faz um movimento de afirmação política. Uma afirmação
que se dá na revelação do seu homossexualismo e a implicação disso no contexto de uma
missão militar, de caráter governamental, na qual ela é pioneira como mulher presente.
Manter segredo de sua opção sexual naquela situação passa a ser uma questão de
sobrevivência em meio ao grupo, como lhe alertou o comandante da missão7. Por
questões talvez ideológicas e certamente estratégicas na construção da personagem,
Dianne faz questão de revelar-se lésbica para o espectador, compartilhando assim uma
dificuldade a mais a superar na viagem. Poderíamos supor que um outro relato que não
passasse por esse filtro subjetivo pudesse ser feito por qualquer um. É a exposição de um

7
Rever falas transcritas citadas anteriormente na nota 4 deste mesmo texto.
469
conteúdo de ordem privada que agrega autenticidade ao relato, afirmando uma identidade
e trajetória particulares de Dianne na jornada pelo Ártico.

PÚBLICO X PRIVADO

Ao falar de autobiografia documental reforçamos que a verdade da qual ela trata


deriva de uma natureza privada, sendo assim uma leitura, um filtro subjetivo da realidade.
Isso não descarta, no entanto, a implicação de um outro. Mesmo que seja uma verdade
privada assinada por um alguém que assume autoria sobre o conteúdo mostrado, ela passa
a suscitar questões de ordem ética ao tornar-se pública. Brian Winston discute como o
documentário implica o interesse público em texto publicado no livro Claiming the real
II. Nesse texto, o autor lembra que a relação entre o interesse privado e público é uma via
de mão dupla que tem como base o direito do documentarista em exercer sua liberdade
enquanto comunicador e o da audiência em ouvir o que ele tem a dizer. Segundo Winston,
a audiência tem ainda o direito de receber informações e ideias sem a interferência de
uma autoridade pública, sendo que essa relação é baseada no vínculo com o real, com a
expressão de uma verdade. A ressalva feita pelo autor é a de que a revelação de algo em
nome de um suposto interesse público pode desafiar por vezes os limites éticos, onde o
público invade o espaço privado. O problema é o equilíbrio entre o interesse público e os
custos para a vida pessoal dos atores sociais8 que são objetos do filme.

A partir da argumentação de Winston, podemos pensar em como a missão


governamental canadense é retratada na fala subjetiva de Dianne. Pela primeira vez foi
dada a uma mulher a oportunidade de ser membro do grupo de patrulha, e
independentemente disso, foi dada a alguém a oportunidade de filmar e documentar a
missão de patrulhamento das fronteiras canadenses do extremo Ártico. Como é atendido
o interesse público nessa situação no uso que é feito desse espaço de possíveis da
representação documental de This land?

Ao analisarmos o conteúdo que pode ser caracterizado como informação objetiva


sobre a missão, temos dados a cada dia da quilometragem percorrida, da temperatura e da
quantidade de horas de luz solar. Há também disponível um mapa que muda a cada dia

8
Ator social é um conceito trazido por Bill Nichols (2001, p. 31) que remete a noção de que em um
documentário as pessoas filmadas representam a si mesmas, sendo uma definição em si que dialoga
com a de ator de ficção, aquele que representa um papel que não é relacionado diretamente a sua vida
real.
470
acessado, dando uma visão geral do percurso e do que foi percorrido naquele dia. Existe
ainda um quadro com fotos de alguns membros da missão apresentando com textos
personalizados em tom informal e afetivo9, do ponto de vista da importância deles na
equipe segundo o olhar de Dianne. No entanto, embora This land contenha alguns dados
que trazem um viés objetivo ao relato, a narrativa principal que é guiada pelo off
representando Dianne é dominada pelo tom subjetivo e confessional. Os dados objetivos
servem para construir o Ártico como esse outro quase intransponível, o que eleva o status
de Dianne ao cumprir a missão. Embora a dificuldade e adversidades climáticas atinjam
a todos, é relatada a dificuldade de Dianne. As informações assim apresentam como foco
a jornada de dificuldades enfrentada para que o eu-personagem conseguisse cumprir a
missão. O viés subjetivo predominante pode não contemplar a riqueza da situação
retratada, bem como a ausência de depoimentos de outros membros da missão tende a dar
a impressão de que faltou algo10.

A ORGANIZAÇÃO DA INTERAÇÃO: CINEASTA, TEMAS OU ATORES SOCIAIS


E PÚBLICO

Bill Nichols (2001) teorizou sobre o documentário a partir da organização das vozes
numa narrativa feita de escolhas. Ele falou do lugar para a expressão da voz desse outro
que não representa necessariamente a opinião do cineasta e lembra que o ângulo de
narração proposto e de representação do outro mostra uma determinada interação entre
cineasta, tema ou atores sociais, e público. O autor formulou verbalmente algumas
possibilidades dessa interação a depender de como esse eu (autor) fala do outro (ator
social/tema) para um outro (espectador), sendo “eu falo deles para vocês” a forma que
considera clássica (NICHOLS, 2001, p. 40).

No caso do documentário autobiográfico, a ênfase pode ser transferida da tentativa


de persuadir o público sobre um ponto de vista para a representação de uma visão

9
A descrição de um dos membros segue assim: “Paul dirigiu na segunda posição atrás de Allen. Ele é
bisneto de Roald Amundsen, o primeiro homem a navegar a Passagem do Noroeste. Ele é um guerreiro;
o tipo de cara que você quer por perto se estiver com problemas”.
10
Há um outro documentário This land d a mesma Dianne Whelan disponível na internet, mas sem as
características de um webdocumentário, pois se apresenta com duração fixada em cerca de 35 minutos
e sem opções interativas com conteúdos diversos a serem acessados. Esse outro produto apresenta
depoimentos dos outros membros, trazendo um outro olhar para a missão. É a missão que está em foco
e não os pensamentos de Dianne. Disponível em: < https://www.nfb.ca/film/this_land>. Acesso em: 20
fev. 2014.
471
claramente subjetiva do tipo onde aquele que fala, o “eu”, fala não apenas deles, mas
também de si. E se há um tema retratado, ou atores sociais dentro da situação filmada, é
preciso perceber de que forma essa história é contada, se além do eu autor falante há um
outro que tem voz a construir o ponto de vista do filme.

Em This land somente Dianne-personagem-autora do relato fala. Pouco se sabe dos


indivíduos membros do grupo. Pode-se acessar um quadro extra com as identificações de
alguns membros e sua função no grupo e vê-los em ação nas fotos e filmes da cineasta
que documentam a missão. No contexto narrativo da jornada em forma de diário que é a
história principal, eles aparecem sempre relacionados a ela, no sentido de a terem afetado
de uma determinada maneira. Seria uma composição do tipo: “Eu falo de mim e deles em
relação a mim para vocês”. Trato o tema como aquilo que me atinge. Eu falo de mim, da
minha impressão subjetiva, das minhas dificuldades e deles e do ambiente gélido para
vocês, mas sempre quando tem alguma implicação no meu eu. Embora essa seja a
composição principal de This land, há algumas frases escritas na tela que falam
especificamente das dificuldades em relação ao clima nórdico. Nesses momentos aparece
um nós, ela fala pelo grupo, a composição muda para “Eu falo de nós para vocês”. Esses
momentos são raros, sendo a composição do eu falante objeto de atenção temática aquela
que aparece com maior força.

Se em This land não existe um nós em grande parte da narrativa, já que a cineasta
se constrói como o “estranho no ninho”, interessa falar das dificuldades pessoais, como
fazer xixi e ter alguma privacidade dentro do grupo. Isso muda um pouco no 15º dia da
missão quando há uma transformação desse eu-autor-personagem quanto ao seu
entendimento da função da missão. Ao fim da jornada ela se descobre emocionada: “Eu
sou o sangue do Canadá”. A emoção de desempenhar um papel patriótico iguala todos
nesse momento e faz a cineasta desenvolver uma digressão em busca da raiz de seus
antepassados.

CONCLUSÃO

Numa análise visando contemplar a especificidade de um webdocumentário


percebemos que This land dialoga de forma limitada com as possibilidades narrativas que
derivam desse formato. Os vários recursos oferecidos implicam numa quebra constante
da experiência porque há claramente uma tentativa de se manter uma linearidade narrativa

472
apoiada no off. Uma das grandes novidades desse formato está no oferecimento de
diversos modos de se organizar o conteúdo da narrativa desafiando-se a linearidade,
quebrando-se a sensação de que há uma única história fixada. Sendo esse um formato
novo, explorá-lo narrativamente com criatividade para contar uma história parece ainda
ser o grande desafio.

Se a autobiografia tem encontrado terreno no campo do documentário, ainda assim


o uso dessa etiqueta num produto gera um problema de classificação colocado por essa
modalidade de discurso que não depende de gênero. Embora This land apresente uma
composição com outras pessoas envolvidas na criação e desenvolvimento do produto,
além da personagem que se mostra como autora-personagem, isso não inibe o uso da
etiqueta documentário autobiográfico já que tomamos a ideia de pacto autobiográfico. O
espectador, que não se preocupar em ler créditos, vai ter a impressão que Dianne mostra
nesse webdocumentário um diário sobre a sua experiência na expedição militar. Ele não
vai pensar em um segundo autor ou entender que a voz que ouve é de um narrador
contratado que interpreta a experiência de Dianne. Essa escolha por uma outra voz é
apenas um recurso estilístico.

Portanto, o uso do relato autobiográfico não é um problema, mas sim o recorte que
implica numa perda de oportunidade de falar da missão e do seu caráter patriótico de mais
de um ponto de vista. Até a verdade final de Dianne quando da descoberta de uma veia
patriótica é uma verdade privada. E se algo pode ser entrevisto do outro é apenas sua
imagem fotográfica, uma pose ao fim da jornada.

Do ponto de vista do interesse público, até podemos supor que a ressignificação do


lugar patriótico daquele que se pensa pouco ligado a sua terra possa repercutir no
espectador. Talvez seja esse o público previsto para esse documentário, o dos canadenses
que não enxergam tão claramente a veia patriótica em si. A verdade subjetiva da cineasta
pode ser uma verdade de um apelo maior desse ponto de vista. É a documentação da sua
jornada de superação e da descoberta final desse patriotismo adormecido que justifica
provavelmente o vínculo com a própria instituição que abriga esse webdocumentário, o
National film board of Canada.

REFERÊNCIAS

473
COELHO, Sandra; ESTEVES, Ana Camila. A narrativa autobiográfica no filme documentário:
uma análise de Tarnation (2003), de Jonathan Caouette. Doc on-line: Revista digital de cinema
documentário, Covilhã, PT; Campinas, BR, n. 9, dez, 2010. Semestral. ISSN 1646-477X.
Disponível em: < http://www.doc.ubi.pt/index09.html>. Acesso em: 20 fev. 2014.

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474
IMAGENS EM AMBIENTES DIGITAIS E SUA RELAÇÃO COM O
PRESENTE1

IMAGES IN DIGITAL ENVIRONMENTS AND ITS RELATION


TO THE PRESENT

Vitor Braga2

Resumo: Os dispositivos móveis, os sites de redes sociais e a imagem digital


proporcionaram à fotografia um papel importante dentro da sociabilidade contemporânea.
Essas imagens compartilhadas criam narrativas de si mesmo em um contexto de constante
exibição. O trabalho refletirá sobre a capacidade das imagens em construir uma memória
individual ou coletiva que esteve baseada na capacidade de se voltar a um passado e que,
com as novas dinâmicas interacionais, cada vez mais apresenta uma relação com o
presente.
Palavras-chave: fotografia; redes sociais; memória; mobilidade.

Abstract: Mobile devices, social networking sites and digital photography have an
important role within contemporary sociability. These shared images create narratives of
itself in a context of constant display. The work reflects on the ability of images to build
an individual or collective memory, which was based on the ability to return to a past that
with the new interactional dynamics increasingly has a bearing on the present.
Keywords: photography; social networks; memory, mobility.

1. INTRODUÇÃO

Os adventos dos dispositivos móveis de comunicação, das redes sociais na internet


e do processo de digitalização da imagem garantiram à fotografia um lugar importante no
processo de subjetivação contemporâneo daqueles em interação, em interlocução, por
meio das tecnologias digitais. Isto porque, nessa última década, esses três fatores fizeram
com que as imagens fossem capazes de criar narrativas visuais de cada um, ao revelar
momentos do dia-a-dia, em uma profunda imbricação com o querer ver e ser visto,

1
Mesa- redonda As múltiplas narrativas de si presentes nas plataformas das redes sociais digitais.
2
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e Contemporâneas, da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e professor do curso de comunicação da Universidade Federal de Sergipe
(UFS).
475
resultante dessa grande demanda pela exibição de si característico da contemporaneidade,
como sugere Fernanda Bruno (2005).

É possível observar como a fotografia passou a ser um mecanismo promotor de


práticas sociais importantes para uma cultura visual que, nos últimos dois séculos, foi
sendo solidificada por meio dos retratos das pessoas em diferentes situações,
representados para diferentes públicos (CHALFEN, 1987; SARVAS & FROHLICH,
2011). Resultado de um processo de objetivação de um olhar subjetivo do fotógrafo, uma
imagem que torna visível aquilo presente apenas na subjetividade do indivíduo
(SOBCHACK, 1994), a fotografia passa a ter um papel importante para a expressão do
indivíduo perante a sua rede social em um processo de conexão generalizada e sempre
disponível (TURKLE, 2011).

O presente trabalho buscará trazer reflexões para se compreender como as imagens


compartilhadas nessas ambiências digitais, outrora importantes para retratar momentos
solenes e para resgatar um passado, passaram a assumir uma função de registrar um
presente cada vez mais rápido, fugaz. Falar de um “presente”, aqui, significa refletir na
possibilidade de estar em curso: (1) a busca por uma instantaneidade em virtude da
interveniência dos dispositivos de registro imagético a todo o tempo; e (2) de uma
demanda social que solicita ao indivíduo compartilhar suas experiências cotidianas
através das fotografias.

Será discutido, nessa perspectiva, como a memória associada às imagens passaria


por alterações em decorrência de uma fotografia vernacular – ou seja, desprovida de
pretensões estéticas profissionais, direta e simplificada, como a fala da rua, produzida
para um consumo doméstico e que habita álbuns de família, se acumula em caixas de
sapato e, contemporaneamente, nos computadores e sistemas de internet. Tal prática da
fotografia, associada aos ambientes promotores de redes sociais na internet, possibilitaria
aos indivíduos uma interlocução com sua rede, bem como um instrumento importante na
sua performance – em exercício a partir de um enquadramento do ambiente e dos atores
envolvidos.

2. FOTOGRAFIA E COMPARTILHAMENTO

A argumentação desse trabalho está voltada para uma prática fotográfica que,
conforme Batchen (2002), costumou aparecer de maneira periférica, supostamente sem

476
profundidade e densidade. Seria o que o autor chama de lado vernacular da fotografia; ou
seja, trata-se de um tipo de imagem produzida domesticamente, e que costuma não ter
espaço na grande história da fotografia. Porém é onde a indústria do setor, com as câmeras
ditas amadoras, vai obter a maior parte dos seus lucros – com aproximadamente 95%.
São os retratos fotográficos, que comumente recebe a expressão snapshot (em inglês) e
que, em 2013, passou a ter grande repercussão principalmente nos autorretratos nas redes
sociais na internet, tendo a expressão selfie recebido bastante destaque no vocabulário
comum dessas redes3.

De acordo com Silva Junior (2013) para a grande maioria das pessoas, a fotografia
vernacular seria a prática cultural de imagens mais acessível, direta e vinculada ao
percurso de cada um – como o de uma família indo às férias, ocasiões sociais como
reuniões com amigos, ou mesmo eventos solenes como casamentos e batismos, dentre
outras possibilidades. Por ter temáticas e enquadramentos aparentemente parecidos em
todo o mundo (BOURDIEU, 1990), esse grande volume de imagens produzidas tende a
ter sua menor importância no círculo acadêmico; isto porque se compreende que nessa
sua “repetição” reside justamente uma fraqueza.

Ainda, Batchen (2002) vai tratá-la como algo ordinário, com menor pretensão
estética, produzido para um consumo doméstico e que habita álbuns de família e,
atualmente, podemos constatar a sua existência nas páginas dos sites de redes sociais.
Tais imagens condensam valores preciosos para seus praticantes, como as nossas noções
de identidade, de relação com os outros, de unidade familiar. Nesse sentido, trabalhos
irão concluir que o nível de interação e disseminação de cada imagem está ligado à
amplitude rede de contatos dos usuários que as postam, e não a valores normalmente
atribuídos por um determinado grupo às fotografias.

Por outro lado, o número de imagens produzidas está diretamente ligado ao


momento histórico do indivíduo ou de uma família. Sendo assim, Sontag (2004) aponta
que nas residências com filhos será produzido um maior volume de imagens, justamente
pela possibilidade de criação dos álbuns de família. Já Chalfen (1987) vai constatar que

3
Abreviatura de self portrait, o termo ganhou um registro na versão eletrônica do dicionário Oxford, que
ainda o consagrou com o título de “palavra do ano” no início de novembro de 2013. Segundo Ruic (2013)
a decisão do dicionário aconteceu depois que foi detectado um aumento de mais de 17.000% no uso da
palavra selfie entre 2012 e 2013.
477
o período da juventude é a fase da vida na qual dois terços de todas as imagens de um
indivíduo são produzidas.

Essas imagens tradicionalmente foram percebidas como testemunhos das pessoas


de algo que já ocorreu, se passou – e obviamente merece ser lembrado, guardado. Daí
reside seu caráter de perda, morte, passado. Como discorre Sobchack (1994, p. 78)

[...] funciona para fixar um ser-que-tem sido (uma presença no presente


que é sempre passado). Paradoxalmente, como objetiva e preserva em
seus atos de possessão, a fotografia tem algo a ver com a perda, com o
passado, e com a morte, seus significados e valores intimamente ligados
dentro da estrutura e investimentos de nostalgia4 (tradução nossa).
Nessa perspectiva as imagens conectam o indivíduo com fatos passados, ao mesmo
tempo em que funcionam como vetores para práticas sociais. Porém, como afirma Van
Dijck (2007), essas duas possibilidades sempre apareceram de maneira assimétrica. Nesse
ponto ressaltamos a argumentação desse trabalho. Isto porque, em sua fase analógica,
essas imagens eram primeiramente um meio para a construção de narrativas
autobiográficas, sendo comumente salvaguardadas em álbuns – ou caixas de sapato. Essa
imagem como ferramenta para a performatividade individual, através do seu uso nas
interações, sempre estiveram com um propósito secundário, e que agora parece estar
ocorrendo alguma inversão nessa apropriação que os usuários fazem das imagens de si
(VAN DIJCK, 2007).

A partir dessas considerações, faremos uma análise comparativa de dois momentos


históricos – das imagens analógicas às digitais, enfocando nos dispositivos móveis –,
considerando três variáveis passíveis de observação para ambos os casos, como
apresentado abaixo (Tabela 1).

Variáveis Propriedades
Mediação dos cenários de interação. Desenvolvimento de dispositivos
1. Condições materiais
e ambientes que estimulam o processo.
Mecanismo para compartilhar o agora. Fotografia que promove
2. Fotografias
relações afetivas.
Apropriações dos ambientes e dos dispositivos. Demanda social;
3. Usuários
exposição de si.
Tabela 1: Variáveis para a análise das imagens compartilhadas

4
Tradução livre para: “it functions to fix a being-that-has been (a presence in the present that is always
past). Paradoxically, as it objectifies and preserves in its acts of possession, the photographic has
something to do with loss, with pastness, and with death, its meanings and value intimately bound within
the structure and investments of nostalgia.”
478
Conforme observamos na Tabela 1, as variáveis buscariam dar conta de
componentes que ao longo do tempo se alterariam e, com isto, transformariam o papel
que as fotografias exerceriam nas trocas sociais. Dessa forma, a primeira variável
considera de que forma o próprio ambiente no qual as redes sociais se articulam poderia
prescrever ações, ao passo que por um lado permitiria determinados engajamentos e
restringiria outros. Na segunda, cabe observar o modo como os dispositivos técnicos
produtores de imagens seriam capazes de prover imagens que os indivíduos demandam;
nesse caso, se observaria como as câmeras estão presentes no cotidiano – sua
disponibilidade. Já a terceira variável pretende se voltar para os usuários, e de que maneira
eles se apropriariam das duas primeiras variáveis a fim de satisfazer necessidades como
o gerenciamento de sua impressão ou a exposição de si nos mais diversos cenários de
interação.

3. A MEMÓRIA E OS PROCESSOS FOTOGRÁFICOS

De todas as manifestações artísticas, a fotografia foi a primeira a surgir dentro do


sistema de produção industrial. Seu nascimento só pode ser imaginável frente à
possibilidade da reprodução (LEITE, 2000). Já no final do século XIX a sociedade
ocidental passou a valorizar os retratos provenientes das câmeras analógicas, em
detrimento das pinturas – que tinham um maior custo.

Desde que surgiram as formas de registro de imagens em superfícies fotossensíveis,


a fotografia tem sido um importante mediador de interações entre indivíduos nos mais
diferentes ambientes (BOURDIEU, 1990; SARVAS & FROHLICH, 2011). As imagens
das pessoas, antes possíveis apenas nas pinturas, passaram a existir no século XIX
também por intermédio das câmeras fotográficas; por meio destas, ocorreu um aumento
considerável no número de imagens circuladas, vistas através das fotografias impressas e
posteriormente nas tecnologias digitais.

Tomando como caso para a compreensão da fotografia analógica a popularização


do processo graças à empresa americana Kodak – ao oferecer câmeras de uso simplificado
no fim do século XIX –, temos um vastíssimo depósito de imagens capaz de dar conta
dos hábitos, costumes e percursos dessa imagem como vetor de práticas sociais. George
Eastman (1854-1932), na sua campanha, adotou um slogan – “você aperta o botão e nós
fazemos o resto” – que impulsionou o fotógrafo doméstico, amador, e entregava a

479
reboque um tipo de fotografia que começava a surgir como recurso de construção de
narrativas pessoais, familiares, amadoras (FABRIS, 1998).

Se tomarmos para análise o desenvolvimento dessa relação em mais de cem anos


de práticas – e no caso da fotografia digital o aplicativo Instagram5 – encontramos no
modelo atual, voltado para a interação mediada por computador, um prolongamento e
uma potencialização sem precedentes desse modo de narrar o dia-a-dia.

3.1. FOTOGRAFIA ANALÓGICA

Embora a história da fotografia tenha vários antecedentes importantes, estamos


nesse trabalho partindo do momento no qual, como apontam vários autores (SOUGEZ,
2001; GUSTAVSON, 2005; BOURDIEU, 1990; SOLOMUN, 2011; KOSSOY, 2001), a
companhia americana Kodak6 proporcionou a massificação das imagens, a partir de uma
produção em escala industrial, principalmente através das pesquisas de Eastman.

De acordo com Johnson et al. (2005), a popularização da fotografia ocasionou não


apenas o surgimento de uma fotografia não profissional, mas também possibilitou a
captura de uma grande variedade de eventos do dia-a-dia. Dessa forma, a prática
fotográfica passou por grandes mudanças proporcionadas pelo número crescente de
novos adeptos e pela portabilidade das câmeras.

Essas mudanças vieram principalmente por uma reconfiguração do pensamento da


prática como algo acessível a um maior número de interessados. Para tanto, Eastman
desenvolveu um modelo de negócio na fotografia através do desenvolvimento de câmeras
mais baratas e que não necessitavam o conhecimento técnico do equipamento e do
processo de revelação do filme fotográfico7. Cresce com isso uma cultura fotográfica
amadora e o compartilhamento de imagens do mundo.

As imagens produzidas visavam atingir a um público curioso pelas possibilidades


que o novo aparato conseguia o que até então não era possível: a fixação de imagens em
superfícies. Carecia, no momento pré-fotográfico, daquilo que Sobchack (1994) aponta

5
<www.instagram.com>.
6
Responsável pela popularização das câmeras analógicas, tendo seu formato de filme analógico
considerado importante até a contemporaneidade.
7
O primeiro modelo comercial, a Kodak nº 1, também conhecida como Brownie, só vinha com o botão de
disparo do obturador e todo o processo de troca do filme e revelação era feito nos laboratórios, facilitando
o manuseio da câmera (GUSTAVSON, 2005).
480
como uma das principais capacidades da fotografia: a de “congelar” e preservar a
dinâmica homogênea e irreversível deste fluxo temporal para o espaço abstrato,
atomizado e protegido de um momento.

Nesse sentido, Rouillé (2009) aponta que o processo conhecido por analógico, ao
ser facilmente reproduzido e guardado, adquire um valor documental – mesmo que esta
concepção possa ter seguido por um caminho que foi passível de críticas8. Sendo uma
das funções do documento justamente arquivar, Ruillé (2009) acredita que tal valor
documental seja característico da modernidade, em decorrência do processo de
industrialização no qual esse momento histórico está inserido. A fotografia surgiria em
substituição às máquinas manuais; ou seja, do setor primário ao setor secundário,
surgindo assim a função do operador. Essas fotografias seriam, nessa perspectiva,
resultantes dessa passagem da ferramenta para a máquina e da oficina para o laboratório;
o que, no campo das imagens, teríamos a substituição da pintura (figurativa) para a
fotografia, em função da crença em sua exatidão e em sua verdade. As imagens
fotográficas seriam assim a representação moderna das cidades que passavam por um
rápido crescimento populacional, principalmente no continente europeu. O mundo
tornava-se familiar, pela multiplicidade de retratos e temáticas (FABRIS, 2008).

As imagens, agora produzidas com maior frequência e de maneira sistemática,


considerando as ocasiões sociais, passaram a ser exibidas em álbuns de retrato,
instrumento que organiza o mundo visível, fragmentando-o e relacionando-o em séries
classificadas (LEITE, 2000). Representações autobiográficas através de imagens e textos,
esses álbuns requeriam relações com o objeto físico palpável; dessa maneira, as condições
materiais de consumo trouxeram consigo uma afetividade dos indivíduos, principalmente
àquelas fotografias mais valiosas dos parentes – as antigas fotos dos antepassados, por
exemplo.

Esses álbuns obedeciam a uma temporalidade diferente, se comparadas às imagens


digitais; isto porque o processo envolvia comprar os filmes fotográficos, realizar as
imagens e esperar pelas revelações. Apenas posteriormente é que seria possível
compartilhar em situação de co-presença física, tudo isso conferindo um tempo maior

8
Dentre as abordagens que vão de encontro ao seu valor primeiramente documental, Rouillé (2009) vai
apontar que essa capacidade de ser rastro – de ser o “isso foi” como considera Barthes (1984) – não atenta
para o seu valor de produzir também imagens, de fabricar mundos. O importante não seria posicionar a
fotografia enquanto mero registro de algo no qual o fotógrafo apenas opera em sua fixação no tempo, mas
sim explorar como a imagem produz o real.
481
entre a produção e a apreciação. A única forma de se desvencilhar desse tipo de situação
seria o envio dessas imagens, o que também obedeceria a um tempo ainda maior entre
produzir imagens e a rede social do indivíduo ter acesso às mesmas.

Mais do que facilitar e garantir o acesso, a questão que se colocava para a Kodak
era como a fotografia poderia passar a ser um produto que despertasse o interesse das
pessoas em registrar os momentos cotidianos e posteriormente compartilhar, através de
diversos meios – álbuns, correspondências, reuniões –, para uma rede social que, por
conseguinte, teria o interesse por essas imagens. Como aponta Sontag (2004), a proposta
de Eastman de transformar a imagem fotográfica numa prática cultural foi bem-sucedida,
a ponto dos indivíduos estarem inseridos num contexto no qual são impelidos a registrar
suas vivências cotidianas, tendo em vista uma demanda social por esse compartilhamento
de experiências das pessoas nos lugares e nos diferentes contextos.

3.2. A DIGITALIZAÇÃO DA FOTOGRAFIA

Nesse segundo momento no qual abordaremos a fotografia vernacular, citamos de


início o trabalho de Van House (2009) acerca de usos sociais resultantes do
compartilhamento de imagens digitais, no qual destacou três formas de uso social: (1)
forma de auto-representação ou auto-retrato; (2) modo de criação relacional, ou seja, de
um sentido de união, expressão da sociabilidade; e (3) como dispositivo de memória para
a construção de narrativas dos indivíduos.

Partindo desse entendimento da autora, esse trabalho compreende que a mediação


pelas tecnologias digitais intervém na forma em que os usuários adotariam padrões sócio-
comportamentais no compartilhamento de conteúdos fotográficos. No primeiro ponto,
entendemos que o usuário, nesses ambientes de compartilhamento, adotará aquilo que
Goffman (1999) já apontou anteriormente como uma atitude performática, visando o
gerenciamento de sua impressão de modo a atingir certas finalidades a uma rede na qual
se relaciona; no caso das imagens, caberá a ele fazer referências a fotos que demonstrem
suas viagens, lugares que frequentou, de modo a salientar aos demais suas preferências,
revelando com isto traços de cujo usuário deseja. Trata-se, então, de uma articulação
social em torno das imagens, de modo que sua experiência nas localidades visitadas possa
criar representações de si, manipuláveis pelo usuário de forma seletiva, e que vão com
isto possibilitar a leitura que o outro faz desse usuário.

482
Com relação ao segundo uso proposto por Van House (2009), citamos aqui o
trabalho de Sibilia (2005), ao entender que o motivo do engajamento dos usuários, bem
como as possibilidades fornecidas pela ambiência, auxiliaria na construção de narrativas
de si, visando sempre à compreensão de (1) qual a sua rede social, (2) quais os seus gostos
e (3) as suas afinidades. Já em seu livro, a autora parte de uma mesma perspectiva de
análise para tentar defender como essa construção de narrativas do “eu” estariam
operando para uma reconfiguração do que estaria restrito apenas a determinados grupos,
mas que atualmente é compartilhado com uma rede muito mais ampla, e com menor
restrição (SIBILIA, 2008).

Por fim, no que tange à memória, seria possível compreender como o conhecimento
das pessoas acerca dos lugares é influenciado por uma rede social que opera na orientação
daquilo que é cabível de ser visitado e, por conseguinte, fotografado. Assim como
defendeu Sontag (2004), o conhecimento que os indivíduos possuem das grandes cidades
é fruto de uma promoção feita pela experiência mediada das imagens – que pode ser
obtido através de campanhas de turismo, ensaios fotográficos, álbuns de amigos e
parentes, dentre outras formas de acesso através das imagens; tal conhecimento, de certa
maneira, agenciaria na atividade de visitação e ação perante algum lugar, que nos faz
eleger aquilo que é “digno de conhecer e ser fotografado” na nossa experiência direta com
este. Ainda, como aponta Bourdieu (1990), tal memória estaria também em processo a
partir de certos cânones – ainda que implícitos – do modo como se devem ocorrer as
representações nas imagens: a forma como as pessoas deveriam estar posicionadas para
a câmera, o modo como certos lugares deveriam compor um pano de fundo para retratar
a presença da pessoa em determinada localidade, dentre outros códigos possíveis de
serem identificados.

Ainda considerando as relações que os indivíduos estabelecem a partir da


digitalização da fotografia, temos de considerar então um momento histórico em que o
objeto físico, palpável, impresso e guardado em álbuns, passa a ter menor importância.
Isto porque o lócus para a interação não está mais situado na co-presença física; sendo
assim, os usuários darão preferência a compartilhar rapidamente em um algum site de
rede social, e não dias depois no meio impresso.

Não por acaso, os usuários, nesse contexto de grande exposição de si, buscam essa
rápida circulação de suas imagens por essa demanda social que se criou nesses ambientes.
O resultado desse investimento dos usuários no ato de fotografar e compartilhar nas redes

483
sociais na internet pode ser percebido no número de imagens produzidas: dados do site
10.000 memories vão indicar que, a cada dois minutos, tiramos mais fotos que toda a
humanidade tirou no século XIX. Tomando como exemplo o Facebook9, o site com maior
número de usuários ativos10, os álbuns são as páginas mais acessadas.

Nesse montante, o blog do Facebook publicou que no último ano seus usuários
fizeram o upload de 70 bilhões de fotos. E, como estratégia de reserva de mercado, se
antecipou a outras grandes empresas do setor ao anunciar em 2012 a compra do aplicativo
Instagram – um investimento buscando ampliar a utilização de redes sociais mediadas
por tecnologias de comunicação nos aparelhos móveis, como veremos a seguir.

3.2.1. DISPOSITIVOS MÓVEIS E APLICATIVOS

Nesse terceiro ponto refletimos sobre como essas narrativas visuais estão cada vez
mais próximas de uma expressão do “agora”. Isto porque, ao revelar narrativas cotidianas
de si, o uso social das imagens estaria mais localizado na representação dos fatos diários,
ao invés dos momentos solenes. Em acréscimo à velocidade da informação que precisa
ser transmitida, questionamos se essas imagens teriam o mesmo valor documental. De
que memória estamos falando aqui? Esta se trata de uma questão importante para o
presente trabalho.

Do ponto de vista do dispositivo técnico produtor de imagens, além de ser portátil


também está facilmente acessível em vários outros dispositivos, facilitando assim a sua
presença nas mais diversas situações. Nessa ubiquidade das câmeras (HAND, 2012)
reside um ponto importante para a análise: como a fotografia passa a falar principalmente
do presente. Desassociada da necessidade em servir como instrumento para falar de um
passado, as imagens compartilhadas estariam agora focadas como uma tecnologia
associada à auto-apresentação – entre o “ver” e o “ser visto”.

Com a ampliação dos cenários desses cenários de auto-apresentação, e com a


ubiquidade das câmeras, consideramos como objeto para análise o aplicativo Instagram.
Isto porque ele é útil para argumentar de que forma a presença de dispositivos de registro
fotográfico estão cada vez mais associados aos ambientes de redes sociais na internet.

9
<www.facebook.com>.
10
De acordo com os últimos relatórios disponíveis no blog oficial, o Facebook chegou em 2014 à marca
de 1,23 bilhão de usuários ativos – ou seja, que acessaram a conta nos últimos 30 dias. Fonte:
<https://blog.facebook.com/>.
484
Nesse sentido, o referido aplicativo se apresenta como um exemplo contumaz, pois o ato
de compartilhar as imagens não está descolado do próprio ato de fotografar. Ou seja,
fotografar através do aplicativo requer o estabelecimento de uma interlocução imediata
com sua rede social, pois para seu efetivo uso é necessário estar conectado; do contrário,
o usuário se depara com uma mensagem de erro.

Note-se que o ato de “estar conectado”, disponível, envolve uma particularidade


inerente ao ambiente: enquanto o usuário não estiver acessando o aplicativo por
intermédio de um dispositivo móvel com o acesso à internet, o mesmo não funcionará
amplamente; não será possível, dessa maneira, fotografar nem conferir as imagens
compartilhadas. Nesse sentido, problemas que poderiam ser preocupantes, como a baixa
resolução, resultante da compressão das imagens feita pelo aplicativo, não é um
problema, visto que o espaço onde as imagens circulam se restringe ao próprio aplicativo.

Tal restrição só reforça o argumento de que essas imagens compartilhadas nos


aplicativos podem ser resultantes dessa aceleração do processo de fotografar e difundir,
que tem andado cada vez mais próximos. O que parece ser uma característica importante
para poder se falar do “presente”, do instante vivido – em detrimento de uma preocupação
em se criar artefatos para a posteridade.

Seguindo uma lógica de se estar sempre disponível, comum a esses ambientes


(TURKLE, 2011), a performance do indivíduo, adotada nas imagens e legendas, recebe
um estímulo de sua rede, que tem uma grande demanda por saber o que seus contatos
estão interessados ao mesmo tempo que requer um constante olhar do outro, funcionando
como uma resposta para suas ações performáticas. Seria assim, um novo cenário de
interação, voltado para a presença constante da câmera e para a performance quase “em
tempo real” do indivíduo.

O próprio dispositivo produtor de imagens é outra variável importante, pois a partir


do momento em que é facilmente acessado permite que as imagens não fiquem reservadas
a apenas momentos mais solenes, como ocasiões sociais já comentadas aqui. Não é à toa
que os usuários sofrem sanções pelos excessos: o uso indevido do Instagram, nos
dispositivos móveis, em determinadas situações formais é coibido; a exemplo das
proibições no local de votação ou na sala onde está sendo aplicada uma prova em uma
seleção pública. Mais do que finalidades escusas, a penalidade a essas pessoas é sintoma
de uma sociedade voltada para uma superexposição de si. É nesse lugar que a fotografia
se coaduna com a performance do indivíduo, conectado às redes sociais digitais.
485
Entra em cena um novo cenário de interação, voltado para a presença da câmera e
impulsionado pelo caráter performativo do indivíduo que buscará gerenciar impressões
com uma rede social sempre disponível e móvel. O que pode dar pistas para uma
apropriação da fotografia centrada na perfomance em tempo real, em oposição à
fotografia enquanto artefato para a memória. No caso desses aplicativos, a metáfora do
álbum fotográfico – ainda presente nos sites de redes sociais – não existe mais; o que
aparece com força, mas não em seu lugar, é a timeline, que organizará apenas pelas
imagens mais recentes postadas por aqueles cujo usuário está seguindo. Não apenas
organizar, mas também enquadrar a visão ao direcionar para que as pessoas só interajam
com as últimas imagens postadas. As anteriores ficariam “apenas acessíveis” (ver Figura
1).

Figura 1 - Reprodução da timeline de um usuário, apresentando as fotos


de acordo com a data de postagem (a começar pelas mais recentes).

A inexistência dos álbuns nos leva a crer que, no ponto de vista das condições
materiais, aplicativos como o Instagram operam com a finalidade de não arquivar
necessariamente, mas sim de servir como um canal de interação. A própria lógica da
timeline não ajuda no resgate das imagens mais antigas, pois para tanto o usuário teria
que acessar individualmente cada conta e teria que buscar as imagens mais antigas,
conforme a Figura 1; o que parece ser uma limitação técnica no ambiente pode ser

486
entendido também como um mecanismo para que as “curtidas” e os comentários11
ocorram sempre nas postagens mais recentes de cada um.

Como argumenta Afonso Silva Junior (2012), olhar para uma linha do tempo do
Instagram seria estabelecer uma conversa que fala, simultaneamente, através do olho, e
da percepção de um regime de visão autobiográfico que perpassa a produção fotográfica
contemporânea. Pequenas imagens, pequenas narrativas, outras histórias.

Nesse momento histórico da crise do documento na fotografia (ROUILLÉ, 2009),


surge uma apropriação dos dispositivos enquanto promotores de performances em um
tempo de exposição e de compartilhamento com dimensões totalmente diferentes. Isto
porque essa aproximação entre fotografar e difundir pode alterar o tempo dedicado à
visualização, à apreciação das imagens12.

Ainda, é importante frisar que o Instagram é formatado para o acesso em


mobilidade. Ou seja, embora pareça uma limitação técnica, faz parte de um
direcionamento da sua prática ao impedir que o usuário venha a postar suas imagens
através de um laptop ou um desktop. Ao mesmo tempo em que impede o uso para aqueles
que não detêm smartphones ou tablets, restringe o seu uso para a mobilidade e reforça
para a necessidade de uma ubiquidade das câmeras – estar com um aparelho móvel
significa virtualmente poder acessá-lo para criar imagens que porventura o indivíduo
escolha. Do contrário, um desvio seria conseguir compartilhar imagens através de
aparelhos “estáticos” através de câmeras compactas ou DSLR13, através do upload de
fotos em um disco rígido.

O Instagram, assim, tem se apresentado como um importante exemplo para a


compreensão do lugar em que a fotografia vernacular tem encontrado espaço,
principalmente pelo público jovem. Não por acaso, trata-se da fase da vida em que as
pessoas mais compartilham o que é compreendido como ordinário. Parte da explicação
deve-se a um interesse recorrente na fotografia, mesmo anterior à fase digital, das
imagens que buscam sugerir relacionamentos entre pessoas, quer sejam fotos de amigos
ou de parceiros. Sendo a juventude o momento da vida em que justamente o indivíduo
possui uma maior amplitude da sua rede de relacionamentos, por conseguinte interessaria

11
Recursos possíveis para o estabelecimento de trocas sociais no aplicativo Instagram.
12
Resultado de uma cultura do excesso, as imagens se apresentam na timeline de um indivíduo em uma
sequência muito rápida, quase fugaz, na qual ele é tomado a endossar algo (curtir, comentar,
compartilhar) em uma frequência muito mais rápida do que antes.
13
Abreviação para Digital Single Lens Reflex.
487
a essa parcela da população essas demonstrações de amizade apresentadas por meio das
fotos no Instagram.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos nesse trabalho discutir o atual papel da fotografia, tendo em vista o modo
como ocorrem as interações nos ambientes digitais – especificamente nos sites de redes
sociais (SRS). Procuramos argumentar de que maneira as câmeras ganharam ainda mais
força como um mecanismo para a performatividade dos indivíduos, para além de uma
memória autobiográfica. Nesse sentido, a fotografia perde o valor enquanto artefato de
memória, ao passo que amplia suas formas de compartilhar nas redes sociais na internet.

De objetos para serem guardados, as imagens digitais estariam amplificando e


alterando o próprio regime de visualidade da fotografia, ao considerarmos que se trata de
um objeto importante para ser guardado, catalogado nas coleções das famílias, para algo
que opera sob a lógica da rápida disseminação, circulação nas redes sociais na internet.
Predominaria, assim, uma cultura do compartilhar, que não está presente apenas nas
fotografias, em detrimento ao seu tradicional valor documental.

Não por acaso, essa experiência, quase em tempo real, inerente ao Instagram é
importante para a conversação em rede e principalmente no processo de negociação social
travado entre os atores em um contexto de grande exposição de si. Assim, é importante
ressaltar que essa exibição do dia a dia pode, em uma primeira análise, conferir às
imagens um valor mais efêmero, porém não menos importante para os usuários. Esse
trabalho, assim, esteve tratando de uma forma de narrativa visual, contínua e
interdependente, que estaria se complementando em pequenas partes, a cada dia, sem um
projeto definido.

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1984.

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488
BRUNO, Fernanda. Quem está olhando? Variações do público e do privado em weblogs,
fotologs e reality shows. Contemporânea, Vol. 3. Salvador, Julho/Dezembro de 2005.

CHALFEN, Richard. Snapshot versions of life. Ohio (EUA): Bowling Green State University
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(org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2008.

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TURKLE, Sherry. Alone together: why we expect more from technology and less from each
other. Nova York: Basic Books, 2011.

490
A COLONIZAÇÃO DO COTIDIANO NA FICÇÃO DE JEAN RHYS1

THE COLONIZATION OF EVERYDAY LIFE IN JEAN RHYS’S


FICTION

Viviane de Freitas2

Resumo: A escritora Jean Rhys (1890 – 1979) deixou a ilha caribenha da Dominica, onde
nasceu, aos dezesseis anos para viver na Inglaterra. A situação de não pertencimento,
desterritorialização e deslocamento experimentada pelas heroínas dos seus romances
modernistas reflete a própria experiência da escritora, que desde muito jovem teve que
lutar sozinha pela sobrevivência nos centros metropolitanos europeus. Essas narrativas
ficcionais, publicadas entre 1928 e 1939, têm em comum o cenário das cidades modernas
no período entre guerras e a figura da protagonista, uma mulher jovem, de origem
caribenha ou de origem não identificada, sem família e deslocada, que vive nas margens
destes centros metropolitanos. Os romances modernistas de Jean Rhys são marcados pelo
senso de sobrevivência e pela repetição, traduzindo perfeitamente a ideia de Maurice
Blanchot de que “nada acontece, isso é o cotidiano”3 (BLANCHOT apud
SHERINGHAM, 2006, p. 19, tradução nossa). Bom dia, Meia-noite em particular, com
o seu enredo mínimo no qual nada parece acontecer, concentra-se em atividades comuns
do dia-a-dia, como andar, comer, beber, fazer compras, olhar vitrines de lojas, observar
o movimento da vida da cidade parisiense. O romance evoca de diferentes formas a ideia
de estagnação, repetição, passividade e falta de perspectiva explorada por Blanchot. A
imagem de uma mulher presa num labirinto, andando em círculos, sem conseguir
encontrar uma saída é dominante neste e nos outros romances metropolitanos da escritora.
Em seu livro Everyday Life, o teórico Michael Sheringham observa que a modernização
resultou naquilo que o filósofo e sociólogo Henri Lefebvre e os Situacionistas nomearam
"a colonização da vida cotidiana"4 (SHERINGHAM, 2006, p. 10, tradução nossa).
Centrando-se nas respectivas análises de Lefebvre em Critique of Everyday Life e do
situacionista Guy Debord sobre a alienação do cotidiano, Sheringham indica como a
ascensão e a predominância da industrialização trouxe a privatização e o empobrecimento
da vida cotidiana, desconectando a vida da história e de acontecimentos reais, e tornando-
se uma construção essencialmente imaginária, o mundo do consumo puro. Este trabalho
tem por objetivo fazer uma leitura do romance Bom dia, Meia-noite, a partir do diálogo
com teóricos do cotidiano.
Palavras-Chave: Jean Rhys; cotidiano; cidade moderna; consumo.

1
Mesa-redonda Memória e resistência.
2
Doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
3
No original: “rien ne se passe, voilà le quotidien” (BLANCHOT apud SHERINGHAM, 2006, p. 19).
4
No original: “the colonization of everyday life” (LEFEBVRE apud SHERINGHAM, 2006, p. 10).

491
Abstract: The writer Jean Rhys (1890 - 1979) left the Caribbean island of Dominica,
where she was born, at the age of sixteen to live in England. The situation of not
belonging, displacement and dispossession, experienced by the heroines of Rhys’s
modernist novels reflects the writer’s own experience, who had to struggle for survival
alone in London and Paris since she was young. These fictional narratives published
between 1928 and 1939 have in common the setting of the modern cities in the interwar
period, and also the figure of the protagonist, a young woman of Caribbean origin, or of
unidentified origin, familyless and displaced, who lives on the margins of these
metropolitan centers. Jean Rhys’s modernist novels are marked by a sense of survival and
repetition, perfectly translating Maurice Blanchot’s idea that "nothing happens, this is the
everyday". The novel Good Morning, Midnight, in particular, with its minimal plot in
which nothing seems to happen, focuses on ordinary everyday activities, such as walking,
eating, drinking, shopping, looking at shop windows, watching the movement of the
Parisian city life. In different ways, the novel evokes the idea of stagnation, repetition,
passivity and lack of perspective explored by Blanchot. The image of a woman trapped
in a maze, walking in circles, unable to find a way out, is dominant in this and other
metropolitan novels by the writer. In Everyday Life, Michael Sheringham notes that
modernization resulted in what the philosopher and sociologist Henri Lefebvre and the
Situationists named "the colonization of everyday life". Focusing on his analysis of
Lefebvre’s Critique of Everyday Life and the Situationist Guy Debord on the alienation
of everyday life, Sheringham indicates how the rise and dominance of industrialization
brought about the privatization and impoverishment of everyday life by removing life
from history and real events, and becoming an essentially imaginary construction, the
world of pure consumption. This work aims to read the novel Good Morning, Midnight
in dialogue with the theorists of everyday life.
Keywords: Jean Rhys; everyday life; modern city; consumption.

JEAN RHYS, UMA BREVE INTRODUÇÃO

Jean Rhys, pseudônimo de Ella Gwendolen Rees Williams, nasceu na ilha


caribenha da Dominica, uma colônia britânica5. Filha de médico galês e de mãe crioula,
Rhys mudou-se aos dezesseis anos para Londres com o objetivo de estudar e seguir a
carreira de atriz. Estudou em internato e chegou a ser admitida na Academia Real de Arte
Dramática (Royal Academy of Dramatic Art), mas teve que interromper o curso após a
morte do seu pai, quando não pôde mais contar com ajuda financeira que recebia da
família. Quando jovem, Rhys trabalhou como artista itinerante, como atriz, corista, e
modelo. A escritora viveu o resto da sua vida na Europa, onde passou pelas duas guerras
mundiais, voltando a visitar a sua terra natal uma única vez em 1936. Sua obra é
comumente dividida em duas fases, a fase modernista, quando publica quatro romances

5
A Dominica (não confundir com a República Dominicana) torna-se colônia da coroa quando o Reino
Unido reassume o controle direto da ilha em 1896 (Rhys tinha 6 anos), e apesar de ter se constituído como
um Estado livre associado ao Reino Unido desde 1967, somente em 1978 (um ano antes da morte da
escritora), torna-se independente do Reino Unido, .
492
entre 1928–1939, e a fase pós-colonial, com a publicação de Vasto mar de sargaços em
1966)6

O caráter autobiográfico da obra de Rhys é destacado por Leonor Arfuch em O


Espaço Biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, que cita Rhys: “Acho que
escrevo sobre mim mesma porque é o único assunto que verdadeiramente conheço”
(RHYS apud ARFUCH, 2010, p. 236). Entretanto, embora as narrativas ficcionais de
Rhys estejam situadas em determinados momentos e lugares e tenham por base a sua
própria experiência, é interessante ressaltar que esses textos são atemporais, algo que
Rhys deliberadamente buscou. O fato é que Rhys foi uma escritora muito à frente de seu
tempo, uma prova disso é que nunca houve tanto interesse pela sua obra como há agora,
quase um século depois.

Rhys demanda dos seus leitores que abandonem a tradicional filiação do romance
aos valores e preconceitos da classe média, convidando-os a habitar um mundo ficcional
muito menos confortável. Elaine Savory (2009, p. 18) destaca a importância da ligação
de Rhys com o teatro (music hall), um espaço marginal e transgressor, que dava às atrizes
apenas um pouco mais de posição social que as prostitutas. Segundo Savory, esta
experiência ofereceu uma liberdade, desconhecida para a grande maioria das mulheres da
época, de expressão sexual e de aventura, e a aproximou do submundo explorado nos
seus romances. Esta experiência também serviu de base para as realizações artísticas não
convencionais de Rhys.

Um outro aspecto relevante sobre a ficção de Rhys é que nenhuma leitura


unidimensional de seu trabalho, como, por exemplo, através de uma perspectiva
feminista, modernista, ou pós-colonial, por si só, fazem justiça a seus textos. Eles são
textos que se renovam a cada leitura, permitindo, à medida que o tempo passa e os leitores
mudam, maneiras multifacetadas de serem lidos. Para mim, o mundo ficcional de Rhys é
inquietante e provocador. A voz introspectiva, o olhar enviesado e a situação marginal de
suas protagonistas são capazes de oferecer uma perspectiva crítica valiosa, o que tento
explorar neste trabalho.

6
Fazem parte da fase modernista os romances Quartet (publicado em 1929), After Leaving Mr Mackenzie
(publicado em 1931), Voyage in the Dark (publicado em 1934), Good Morning, Midnight (publicado em
1939), e da fase pós-colonialista o romance Wide Sargasso Sea (publicado em 1966), traduzido no Brasil
como Vasto Mar de Sargaços (RHYS, 2012).
No original: “I have no pride, no name, no face, no country. I don’t belong anywhere” (RHYS, 2000a, p.
38).
493
A COLONIZAÇÃO DO COTIDIANO

A ficção de Rhys capta com precisão a noção de que a modernização trouxe consigo
a “colonização da vida cotidiana” (SHERINGHAM, 2006, p. 10). Segundo os teóricos
Henri Lefebvre e Guy Debord, se o processo de colonização produz o
subdesenvolvimento dos lugares colonizados, então, similarmente, a manipulação e o
policiamento que atuam na vida cotidiana tendem a gerar o seu esgotamento e alienação.
Eles defendem que a sociedade moderna envolve formas especializadas de conhecimento,
entretanto, ao nível geral do cotidiano o que existe é ignorância, o vazio e a passividade.
Para esses críticos do cotidiano, as inovações tecnológicas modificam a vida cotidiana,
mas não a transformam porque operam aleatoriamente e tendem a reduzir a autonomia e
a criatividade individual (cf. SHERINGHAM, 2006, p. 171).

Em seu livro Vida cotidiana [Everyday Life] Michael Sheringham investiga uma
variedade de modos de pensar e questionar a dimensão da experiência denominada “vida
cotidiana”, através de uma abordagem interdisciplinar das obras de pensadores e artistas.
Ele mostra que, explorando o tecido complexo da experiência vivida, estas obras reagem
contra "a forma como a vida cotidiana estava sendo subordinada ao estreito
funcionalismo”7 (SHERINGHAM, 2006, p. 14, tradução nossa). Sheringham investiga
como a lógica do capitalismo avançado, que se baseia nos princípios de aceleração e
acumulação, resulta na deterioração inevitável e constante da vida cotidiana. A existência
precária das heroínas de Rhys nos centros metropolitanos de Paris e Londres põem em
evidência o empobrecimento da experiência forjada pelo processo de modernização e pela
lógica do capitalismo tardio.

As heroínas de Rhys revolvem em torno de um universo no qual nada parece mudar,


todos os tempos são os mesmos, e seu mundo social uma sucessão repetida de empregos
frustrantes, aparência feminina insatisfatória, amores fracassados e moradias precárias e
temporárias. A ideia de que nada parece progredir na vida da protagonista de Bom dia,
meia-noite é particularmente simbolizada pelas imagens de bloqueio e homogeneidade
das representações espaciais. O impasse vivido por Sasha é aludido logo na primeira
página do romance, através da representação da rua do seu quarto de hotel: “A rua lá fora

7
No original: “the way everyday life was being subordinated to narrow functionalism” (SHERINGHAM,
2006p. 14).
494
é estreita, de pedra, uma ladeira acentuada que termina num lance de degraus. O que eles
chamam um impasse”8 (RHYS, 2000, p. 9, tradução nossa).

O impasse refere-se tanto ao fato da rua não ter saída quanto à impossibilidade da
protagonista, Sasha Jansen, mudar e sair da estagnação que caracteriza sua vida. A
situação da heroína é configurada em uma série de outras imagens espaciais, como becos
sem saída, paredes e muros sufocantes que bloqueiam o caminho ou a vista, tetos que
parecem pressionar a cabeça, e diversas representações opressivas e claustrofóbicas de
quartos que serviram como alojamentos temporários para a protagonista. Essas imagens
exemplificam a ligação frequente entre características psíquicas e espaciais nos romances
da escritora, em que a fronteira entre espaço interior e exterior é rasurada. Desta forma,
assim como representações espaciais espelham o estado psicológico das heroínas, o
espaço íntimo das protagonistas muitas vezes assume qualidades do ambiente urbano.

Os romances da fase modernista de Rhys são marcados pelo senso de sobrevivência


e pela repetição. Eles ilustram perfeitamente a noção criticada por Henri Lefebvre e por
Maurice Blanchot a respeito do cotidiano concebido como rotina, repetição, um tempo
vazio esperando momentos extraordinários. (cf. SHERINGHAM, 2006, p. 20) No
romance Bom dia, meia-noite, o fato de que Sasha está sempre esperando um
acontecimento que vai mudar a sua vida, monótona e sem sentido, reflete a ideia do
cotidiano como tédio aliviado por momentos miraculosos. Neste sentido, é significativo,
no excerto abaixo, o fato de que a referência da protagonista à expectativa de um
acontecimento que irá mudar a sua vida aparece ironicamente justaposta à descrição de
mais um quarto sombrio e asfixiante de hotel, mais uma das residências temporárias da
protagonista:

Minha linda vida pela frente, abrindo como um leque na minha mão...
*
O que aconteceu então?... Bem, o que acontece?
O quarto do hotel em Bruxelas - muito quente. O sino do cinema ao
lado tocando. Um quarto longo e estreito, com uma janela longa e
estreita e o sino do cinema ao lado, agudo e sem sentido9 (RHYS,
2000, p. 99, tradução nossa).

8
No original: “The street outside is narrow, cobble-stoned, going sharply uphill and ending in a flight of
steps. What they call an impasse” (RHYS, 2000, p. 9).
9
No original: “My beautiful life in front of me, opening out like a fan in my hand…
*
What happened then? … Well, what happens?

495
Neste trecho, a mudança do tempo verbal do passado simples “O que aconteceu,
então?” para o presente simples “Bem, o que acontece?” endossa a ideia de que nunca
nada de significativo acontece em sua vida, apenas uma sucessão de quartos. É
interessante notar que a justaposição da expectativa de um acontecimento à recorrência
de outro quarto de hotel acontece em diversos momentos na narrativa de Bom dia meia-
noite.

Ao refletir sobre a frase “nada acontece, isso é o cotidiano”, Maurice Blanchot


questiona para quem nada acontece. E procurando traçar um perfil desse sujeito do
cotidiano, Blanchot o identifica com uma participação quase passiva nas atividades do
dia-a-dia, em que o eu se dissolve no anonimato (cf. SHERINGHAM, 2006, p. 19 - 20).
Essa ideia é endossada por Lefebvre, cujas teorias sobre o cotidiano são indissociáveis do
seu pensamento sobre a modernidade. Para ele, “se a modernidade é o lado brilhante,
festivo do novo, o cotidiano é seu lado insignificante”10 (LEFEBVRE apud
SHERINGHAM, 2006, p. xxvi, tradução nossa).

A situação marginal da heroína de Bom dia, Meia-noite, definida por sua identidade
nacional provisória, sua experiência como uma mulher sozinha nas cidades de Londres e
Paris, e a situação de quem vive nas margens da pobreza, oferece uma posição estratégica
para a elaboração de contranarrativas em relação às ficções da modernidade. A voz
irônica da heroína de Rhys denuncia os ideais de ordem e progresso engendrados pelo
processo de modernização. É interessante destacar que estes ideais aparecem associados
aos projetos de felicidade material que remontam ao século XVIII, quando a fé nas
potencialidades do ser humano e na razão iluminista fez com que o homem acreditasse
ser possível trazer o paraíso do Céu para a Terra.

As cidades modernas de Londres e Paris, cenário do romance de Rhys, espelham


esses projetos de felicidade material, um mundo marcado pela evidência fantástica de
consumo e abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos bens
materiais. Um dos primeiros sinais desse “progresso” trazido pela indústria e tecnologia
foi a transformação física pela qual passaram as capitais, das quais Paris era o modelo,
com seus enormes bulevares arborizados, lojas, museus, galerias de arte, teatros, cafés,

The room in the Brussels hotel – very hot. The bell of the cinema next door ringing. A long, narrow room
with a long narrow window and the bell of the cinema next door, sharp and meaningless” (RHYS, 2000,
p. 99).
10
No original: “if modernity is the brilliant, even gaudy, side of the new, the everyday is its insignificant
side” (LEFEBVRE apud SHERINGHAM, 2006, p. xxvi).
496
galerias, lojas de departamentos e monumentos nacionais. A novidade deslumbrava a
multidão que assistia ao desfile de bens de consumo corrente, o luxo urbano e as luzes
que iluminavam a cidade. Entretanto, ao circular pelas áreas marginais destes centros
metropolitanos, e ao incorporar na sua narrativa imagens do submundo parisiense e
londrino, bem como as vozes de outros sujeitos subalternos, a heroína Sasha revela o
outro lado da história, ou, para usar uma imagem do romance, ela dá voz àquela história
que representa os destroços de uma história espetacular, o lixo varrido para debaixo do
tapete (cf. RHYS, 2000, p. 13).

Rhys parece dar uma resposta não só a qualquer ideia de progresso proclamada pelo
processo de modernização, como também à expectativa de emancipação feminina. De
diversas maneiras, a narrativa denuncia a falta de espaço para a mulher, principalmente
para uma mulher sem família que vive nas margens dos centros urbanos modernos. Os
primeiros romances de Rhys aparecem no mesmo período entre guerras das publicações
da escritora inglesa Virginia Woolf (1882 – 1941). É interessante notar que a promessa
de emancipação feminina vislumbrada no ensaio Um teto todo seu (A room of one’s own)
(publicado em 1929), assim como a experiência urbana positiva das flâneuses de Woolf,
especialmente Mrs Dalloway, parecem contos de fadas se comparados à experiência
urbana vertiginosa vivida pelas heroínas de Rhys. Em Bom dia meia-noite, Rhys parece
zombar da famosa declaração de Woolf em Um teto todo seu de que a mulher precisa ter
quinhentas libras por ano e um quarto todo seu como base para sua independência. A
coincidência entre a situação vivida pela protagonista Sasha e aquela experimentada em
Um teto todo seu por Mary Carmichael abre caminho para a crítica de Rhys à crença de
Woolf. Da mesma forma inesperada, Sasha passa a receber uma renda mensal como
herança de uma parente. :

Bem, isso foi o meu fim, meu verdadeiro fim. Duas libras e dez toda
terça-feira e um quarto na Rua Gray Inn. Salva, resgatada e com o meu
lugar para me esconder - o que mais eu queria? Eu rastejei para dentro
e me escondi. A tampa do caixão fechou com um estrondo. Agora eu já
não desejo ser amada, linda, feliz e bem-sucedida. Eu quero só uma
coisa e apenas isso - ser deixada em paz11 (RHYS, 2000, p. 37, tradução
nossa).

11
No original: “Well, that was the end of me, the real end. Two-pound-ten every Tuesday and a room off
the Gray's Inn Road. Saved, rescued and with my place to hide in - what more did I want? I crept in and
hid. The lid of the coffin shut down with a bang. Now I no longer wish to be loved, beautiful, happy or
successful. I want one thing and one thing only - to be left alone” (RHYS, 2000, p. 37).

497
Ironicamente, no lugar de fornecer a base material para uma vida mais plena, a
posse da renda e do próprio teto representou para Sasha a oportunidade de se isolar. O
mundo excluído pela protagonista de Rhys, assim como o caixão do quarto, está associado
a uma espécie de morte, como indica a repetição de uma série de clichés: “Amada, linda,
feliz e bem-sucedida”.

Rhys explora as formas como a mídia aperfeiçoou a arte de embalar o cotidiano,


através dos clichês e imagens estereotipadas promovidas pelos ditames do mercado. De
várias maneiras, a voz irônica e crítica da protagonista Sasha denuncia essas construções.
O teórico francês Henri Lefebvre defende que o que torna a vida cotidiana privada de
realidade social e de verdade é a falta de significado. Para Lefebvre, no mundo moderno,
o empobrecimento espiritual é de fato a norma. Ele associa esse empobrecimento à crise
simbólica desencadeada pela prevalência dos signos e símbolos da mídia e do mercado.
Segundo a sua visão, a consciência cotidiana, cada vez mais invadida pela multiplicidade
de signos no ambiente moderno, tende a suprimir a dimensão simbólica da experiência
humana, associada aos ritmos vitais e impulsos ligados ao dia e a noite, à fome, à
sexualidade (cf. SHERINGHAM, 2006, p. 151).

A mediocridade simbólica é denunciada em Bom dia meia noite, por exemplo, ao


enfatizar a função assumida pelos ditames da moda, da publicidade e da cultura das lojas
de departamento. Um trecho ilustrativo aparece na passagem em que Sasha critica a
linguagem vulgar usada por uma moça num restaurante: “Que linguagem, que linguagem!
O que Debenham & Freebody diriam, e o que diria Harvey Nichols?”12 (RHYS, 2000, p.
44, tradução nossa). Essa fala evidencia o papel das lojas de departamento como árbitros
do bom gosto e estilo.

Outros exemplos da influência do mercado e da mídia ocorrem quando Sasha lê


revistas femininas no cabeleireiro. Lá, onde ela mesma está pintando o seu cabelo de
acordo com a moda para se sentir “amada, linda, feliz e bem-sucedida” (RHYS, 2000, p.
37), enquanto espera, lê sobre as várias possibilidades de transformação da aparência
feminina através de cirurgias plásticas, dietas, moda, novos estilos de cabelo (RHYS,
2000, p. 52 - 53). Nas revistas, os ditames da moda e publicidade são justapostos a
definições de amor, felicidade, beleza e sucesso. Sasha lê a seção de correspondência com

12
No original: “What language, what language! What would Debenham & Freebody say, and what Harvey
Nichols?” (RHYS, 2000, p. 44).
498
as leitoras, na qual as mulheres são aconselhadas sobre como devem viver e sobre o que
devem saber. No excerto que segue, é interessante notar que “esperança” aparece
associada à compra de um produto ou serviço que promete mudar a aparência da mulher
e transformar a sua vida: “Não, mademoiselle, não, madame, a vida não é fácil. Não se
iludam. Nada é fácil. Mas há esperança (vá para a página 5), e ainda mais esperança (vá
para a página 9)13” (RHYS, 2000, p. 53, tradução nossa).

No seu livro A vida cotidiana no mundo moderno (Everyday life in the modern
world) Lefebvre discute como as revistas femininas misturam experiência e faz-de conta,
ao incluírem instruções práticas e informações precisas ao lado de uma forma de retórica
que investe roupas e outros objetos com uma aura de irrealidade (cf. LEFEBVRE, 1971,
p. 86). A crítica aguda de Lefebvre revela como a experiência corporal, a experiência
vivida do nosso cotidiano, aparece mesclada à fantasia. O teórico examina as maneiras
pelas quais os métodos de publicidade exploram a função metafórica dos produtos a fim
de levar as pessoas a consumirem não só o produto, mas também o valor abstrato e
simbólico agregado a ele. Neste sentido, Lefebvre chama a atenção para a forma como a
substância material da nossa vida cotidiana é distorcida pela dimensão de irrealidade
criada pela retórica da propaganda e as estratégias de mercado, que projetam o impossível
naquilo que é comum, tornando fascinante aquilo que é insignificante (cf. LEFEBVRE,
1971, p. 86).

De várias maneiras, a ficção de Rhys expõe as formas com que a vida cotidiana é
reduzida "através de uma política de exploração e repressão”14 (SHERINGHAM, 2006,
p. 171, tradução nossa). As heroínas de Rhys são exemplos perfeitos do sujeito passivo
do cotidiano, conforme caracterizado por Maurice Blanchot, ou, do sujeito privado,
conforme a leitura de Guy Debord, que traduz a expressão vida privada como “privada
de”, na medida em que os sujeitos cotidianos são sujeitos “privados da possibilidade de
fazer sua própria história, pessoalmente”15 (SHERINGHAM, 2006, p. 172, tradução
nossa). A partir da sua leitura desses teóricos do cotidiano, Sheringham indica como a
ascensão e predomínio da industrialização trouxe a privatização da vida cotidiana, ao
remover a vida da história e dos acontecimentos reais, tornando-se "uma construção

13
No original: “No mademoiselle, no madame, life is not easy. Do not delude yourselves. Nothing is easy.
But there is hope (turn to page 5), and yet more hope (turn to page 9)...” (RHYS, 2000, p. 53).
14
No original: “by a politics of exploitation and repression” (SHERINGHAM, 2006, p. 171).
15
No original: “deprived of the possibility of making their own history, personally” (SHERINGHAM,
2006, p. 172).
499
essencialmente imaginária, um espaço sem corpo – o mundo do consumo puro”16.
(SHERINGHAM, 2006, p. 10, tradução nossa).

Sasha, protagonista de Bom dia, meia-noite, em particular, a heroína mais madura


e mais complexa de Rhys, possibilita uma crítica aguda das perversidades morais
específicas que caracterizam as sociedades de alto consumo. Em Bom dia meia-noite, é
bastante revelador o fato de que a heroína planeja reinventar-se através de uma viagem a
Paris, o centro da moda e do consumo. Fazer compras e exibir roupas novas é uma das
raras ocasiões em que Sasha parece esquecer a monotonia e o peso da sua existência.
Também significativamente para o contexto do romance, Paris é, no tempo presente da
narrativa, a cidade que acolhe uma feira mundial, não nomeada no romance mas pelo ano
sabemos que se refere à Exposição Internacional de Artes e Técnicas Aplicadas à Vida
Moderna17 de 1937 (cf. EMERY, 1990, p. 144, tradução nossa).

As referências indiretas à Exposição mundial e a outros eventos históricos, como a


Primeira Guerra Mundial, em Bom dia meia-noite, não só fornecem o pano de fundo do
romance, mas também nos levam a considerar a situação precária da heroína de Rhys à
luz do amplo contexto sócio-histórico europeu. Além disso, o contexto e o significado
simbólico da Exposição Mundial dão um sentido mais profundo para as questões
tematicamente exploradas no romance, como a metáfora central da exposição, a ênfase
nos temas da aparência, do olhar e do exibir, a noção de cotidiano como espetáculo, a
repetição mecânica e a desumanização da vida, a lógica consumista difundida e as
racionalizações irrestritas que vieram a predominar no mundo capitalista moderno. A
celebração dos avanços tecnológicos e industriais representada pela Feira Mundial de
1937, sua ênfase no nacionalismo competitivo, assim como os conflitos inter-europeus
encenados na arquitetura da Exposição, conforme destacado por Emery (1990, p. 144-
145), são extremamente significativos para o romance.

As múltiplas alusões a exposições ao longo do romance evocam a noção de


cotidiano como espetáculo, segundo Maurice Blanchot. Blanchot observa como a cultura
de massa e a mídia buscam atender a nossa necessidade, fornecendo, na forma de
mercadorias, modas, filmes, novelas, notícias e escândalos, substitutos para o cotidiano

16
No original: “an essentially imaginary construct, a disembodied space – the world of pure consumption”
(SHERINGHAM, 2006, p. 10).
17
No original: “Exhibition Internationale des Arts et des Techniques Appliqués à la Vie Moderne” (cf.
EMERY, 1990, p. 144).
500
vivido que deixamos de reconhecer ao nosso redor, fabricando um cotidiano como
espetáculo, segundo o qual o cotidiano “já não é o que é vivido, mas o que é visto ou
mostrado, espetáculo ou descrição, sem interação”18 (BLANCHOT apud SHRINGHAM,
2006, p. 18, tradução nossa).

A noção do mundo como espetáculo é reforçada no texto de Rhys pela figura da


cidade moderna como uma prisão, um labirinto de espelhos no qual as imagens do
consumo se proliferam. A imagem de uma mulher presa num labirinto sem conseguir
encontrar a saída é evocada de diversas formas nos romances de Rhys. Em Bom dia, meia-
noite Sasha procura desesperadamente a saída de uma estação de metrô, mas, como indica
a frase que se repete no pesadelo de Sasha, simplesmente não há saída fora do espetáculo,
aqui simbolizado pela figura da Exposição:

Estou no corredor de uma estação de metrô em Londres. Muitas pessoas


estão na minha frente, muitas pessoas estão atrás de mim. Por toda parte
há placas em letras vermelhas: Siga em Frente para a Exposição, Siga
em Frente para a Exposição. Mas eu não quero o caminho para a
Exposição – Eu quero o caminho da saída. Há corredores para a direita
e corredores para a esquerda, mas nenhum sinal de saída. Em todos os
lugares o os dedos apontam e os cartazes dizem: Siga em Frente para a
Exposição. ... Eu toco o ombro do homem andando na minha frente. Eu
digo: "Estou procurando a saída." Mas ele aponta para as placas e sua
mão é feita de aço. Eu ando de cabeça baixa, muito envergonhada,
pensando: "Tinha que ser eu – sempre querendo ser diferente das outras
pessoas." Os dedos de aço apontam para um corredor de pedra. Siga em
Frente – Siga em Frente – Siga em Frente para a Exposição...19 (RHYS,
2000, p. 12, tradução nossa).
É significativo considerar que os momentos excepcionais do romance Bom dia,
Meia-noite, quando finalmente a narrativa assume um tom mais otimista e alegre, são
aqueles em que uma promessa para o futuro é vislumbrada na forma da sensação de gastar
dinheiro em compras de coisas aleatórias, baratas em uma loja de departamento:

Bem, às vezes é um bom dia, não é? Às vezes, o céu está azul. Por
vezes, o ar é leve, fácil de respirar. E há sempre um amanhã...
Amanhã eu vou para as Galeries Lafayette, escolher um vestido, vou à

18
No original: “the quotidien is no longer what is lived, but what is looked at or shown, spectacle or
description, without interaction” (SHERINGHAM, 2006, p. 18).
19
No original: I am in the passage of a tube station in London. Many people are in front of me; many
people are behind me. Everywhere there are placards printed in red letters: This Way to the Exhibition,
This Way to the Exhibition. But I don’t want the way to the exhibition – I want the way out. There are
passages to the right and passages to the left, but no exit sign. Everywhere the fingers point and the placards
read: This Way to the Exhibition. …I touch the shoulder of the man walking in front of me. I say: “I want
the way out.” But he points to the placards and his hand is made of steel. I walk along with my head bent,
very ashamed, thinking: “Just like me – always wanting to be different from other people.” The steel finger
points along a long stone passage. This Way – This Way – This Way to the Exhibition… (RHYS, 2000, p.
12).
501
Printemps, comprar luvas, comprar perfume, comprar batom, comprar
coisas que custam 6,25 francos, 19,50 francos, comprar qualquer coisa
barata. Apenas a sensação de gastar, esse é o ponto. Eu vou olhar
pulseiras cravejadas com jóias artificiais, vermelhas, verdes e azúis,
colares de imitação de pérolas, cigarreiras, tartarugas cravejadas com
jóias. E ... quando eu tiver tomado um par de copos não vou saber se é
ontem, hoje ou amanhã20 (RHYS, 2000, p. 121, tradução nossa).
No caso da heroína de Bom dia, meia-noite, apenas o consumo de mercadorias e
modas parece endossar a possibilidade de imaginar o futuro: “Amanhã eu vou ser bonita
de novo, eu vou ser feliz novamente, amanhã, amanhã, amanhã ....”21 (RHYS, 2000, p.
48, tradução nossa). A sensação de gastar tem um efeito confortador também pelo fato de
que o tráfego no mercado parece prover um lugar legítimo, ainda que ilusório, para essas
heroínas deslocadas. Ao assumirem, ainda que precária e temporariamente, o papel de
consumidoras, o mercado configura-se como uma espécie de refúgio dentro do ambiente
urbano alienante. A visita “reconfortante”22 (RHYS, 2000, p.57, tradução nossa) de Sasha
ao cabeleireiro (RHYS, 2000, p. 52-53), e o processo de compra de um chapéu, descrito
por ela como “a celebração de um ritual extraordinário”23 (RHYS, 2000, p. 59, tradução
nossa), são exemplos de consumismo como um meio de inclusão na vida metropolitana
para a personagem de Rhys. Em última análise, o movimento de Sasha como consumidora
parece suspender momentaneamente o seu impasse, a ideia de que “nada acontece” e
oferecer a ilusão de que tudo pode acontecer.

REFERÊNCIAS

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de


Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

EMERY, Mary Lou. Jean Rhys at “World’s End”: novels of colonial and sexual exile. Austin:
University of Texas Press, 1990.

20
No original: Well, sometimes it’s a fine day, isn’t it? Sometimes the skies are blue. Sometimes the air is
light, easy to breathe. And there is always tomorrow… Tomorrow I’ll go to the Galeries Lafayette, choose
a dress, go along to the Printemps, buy gloves, buy scent, buy lipstick, buy things costing fcs. 6.25 and fcs.
19.50, buy anything cheap. Just the sensation of spending, that’s the point. I’ll look at bracelets studded
with artificial jewels, red, green and blue, necklaces of imitation pearls, cigarette-cases, jewelled tortoises.
… And when I have had a couple of drinks I shan’t know whether it’s yesterday, today or tomorrow (RHYS,
2000, p. 121).
21
No original: “Tomorrow I’ll be pretty again, tomorrow I’ll be happy again, tomorrow, tomorrow….”
(RHYS, 2000, p. 48).
22
No original: “comforting” (RHYS, 2000, p. 57).
23
No original: “celebrating this extraordinary ritual” (RHYS, 2000, p. 59).

502
LEFEBVRE, Henri. Everyday life in the modern world. Tradução de Sacha Rabinovitch. London:
Allen Lane, 1971.

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Press, 2009.

SHERINGHAM, Michael. Everyday life: theories and practices from surrealism to the present.
Oxford: Oxford University Press, 2006.

503
OS CAMPOS DE EXTERMÍNIO E A MEMÓRIA DA INFÂNCIA
EM W DE GEORGES PEREC1

THE EXTERMINATION CAMPS AND THE MEMORY OF


CHILDHOOD IN W OF GEORGES PEREC

Zacarias Eduardo da Silva2

Resumo: A narrativa W ou le souvenir d’enfance de Georges Perec é um testemunho


biofictício que mescla sua vida ao relato dos campos de extermínio. A ficção que se
mistura ao fato de o autor “não ter lembranças da infância” (PEREC, 1975, p. 17),
conforme ele mesmo afirma, resgata os vazios presentes nas lembranças e embaralha-as
à História. Essa percepção de histórias que se engolem, deixando para trás figuras sem
rosto, desaparecidas, é a grande ficção que une a História e a biografia e que permite à
Perec criar suas memórias, ficcionalizar sua identidade e suas recordações e incluí-las,
miudamente, no grande círculo da História, da Guerra, do Desaparecimento e do
Anonimato.
Palavras chave: Campos de extermínio; Memória; Autoficção.

Abstract: The narrative W ou le souvenir d'enfance of Georges Perec is a bio-fiction


testimony that merges his life to the story of the extermination camps. The fiction that
blends with the fact that the author “does not have childhood memories” (PEREC, 1975,
p. 17), as he ratify, rescues the voids present in the memories and scrambles them into the
History. This perception of stories that swallow themselves, leaving behind faceless
figures, missing, is the great fiction that unites History and biography and allowing the
author create his own memories, fictionalizing your identity and your remembrances and
include them in large circle of History, War, Disappearance and the Anonymity.

Keywords: Extermination camps; Memory; Self fiction.

1. O ESPELHO OBLIQUO

Je cherche en même temps l’éternel et l’éphémère.3


Georges Perec

1
Mesa-redonda Memória e Resistência II.
2
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
3
“Busco ao mesmo tempo o eterno e o efêmero” (PEREC apud BERTELLI, RIBIÈRE. 2003, p. 187,
tradução nossa).

504
Em seu projeto inicial de escrita de W ou le souvenir d’enfance, Georges Perec
pensara em lançá-lo em folhetins na revista La quinzaine littéraire, empreitada que se
prolongou entre setembro 1969 e agosto de 1970. Abandonado o projeto em função de
sua entrada no OuLiPo e da confecção de suas grandes obras oulipianas, este só será
retomado, definitivamente, em 1974 e publicado em abril de 1975.
W se apresenta como uma mescla de ficção e autobiografia. O livro porta duas
histórias distintas, ainda que unidas pela busca da identidade daqueles que as contam. Os
capítulos são apresentados sempre na ordem de um ficcional para um biográfico. A
narrativa ficcional traz duas histórias distintas que dizem respeito às biografias, ainda que
inexatas, de dois personagens homônimos, ou dois personagens que se desdobram, tanto
em sua fragilidade (a saúde de um e a situação do outro) quanto em seu mutismo (real no
primeiro e a identidade secreta do segundo).
Em W, a ficção é construída em torno do nome do protagonista, Gaspard Winckler.
Façamos a divisão para esclarecer a história dentro da história: o primeiro Gaspard fora
o filho adolescente de uma cantora de ópera austríaca, portador de uma saúde frágil, surdo
e mudo, embora sem nenhuma deficiência física comprovada por médicos e de
temperamento melancólico e solitário. Numa tentativa desesperada de fazer algo pelo
filho autista, que se isolava a maior parte do tempo, Caecilia, sua mãe resolve viajar o
mundo num barco durante o tempo que for preciso para que ele se recuperasse,
acreditando irracionalmente que até mesmo sua mudez seria sanada. Seu barco naufraga
na Terra do Fogo, os corpos de todos os tripulantes, exceto o de Gaspard são encontrados
e todos os indícios levam a crer que ele ainda poderia estar vivo quinze meses após o
desastre, momento em que entra em cena o segundo Gaspard.
O segundo Gaspard é um soldado desertor, que, para poder prosseguir com sua vida
recebe uma nova identidade de um instituto financiado por Caecilia. Levando uma vida
pacata numa cidade alemã, próxima à fronteira com o grão-ducado de Luxemburgo,
Winckler vê sua paz perturbada por um homem chamado Otto Apfelstahl, que conhece
toda a biografia do primeiro Gaspard e por sua vez acredita na possibilidade de que ele
esteja vivo. O segundo Gaspard recebe e aceita, de Otto, a proposta de iniciar uma busca
pelo pouco provável sobrevivente do naufrágio. É nessa busca, que Gaspard tomará
conhecimento da ilha de W, uma das milhares de ilhas da Terra do Fogo, que possui um
modo de vida bastante curioso.
Toda a segunda parte da narrativa fictícia de W é dedicada à chegada do segundo
Gaspard na ilha, à descrição das tradições da população local e de sua inexorável ligação
505
com o esporte. Existem, na ilha de W, quatro cidadelas e seus habitantes são,
exclusivamente, esportistas: saltadores, corredores ou lutadores que são governados por
equipes sempre escolhidas entre não atletas, no caso, árbitros, diretores esportivos e
organizadores. As cidadelas são apenas para atletas. Mulheres, velhos e crianças ficam
separados num pavilhão central, o mesmo ocupado pelo governo. Seguindo regras
rigorosas e disputas incessantes entre as quatro vilas, os esportistas levam sua vida inteira,
sem esperar nada, nem das vitórias, nem do futuro. O texto ficcional de W, sempre com
mudanças súbitas, abre espaço, a cada capítulo para os souvenirs d’enfance de Georges
Perec.

2. LES SOUVENIRS D’ENFANCE

“Eu não tenho recordações da infância”4. Com esta afirmação categórica Georges
Perec nos introduz em suas memórias de infância. Sua apresentação inicial se dá por fatos
que não são necessariamente lembrados, as poucas linhas da história de sua vida antes
dos 12 anos: “eu perdi meu pai aos quatro anos, minha mãe aos seis: passei a guerra em
diversos pensionatos de Villard-de-Lans. Em 1945, a irmã de meu pai e seu marido me
adotaram.”5 Essa pequena série de informações inscreve, de imediato, a história de vida
do autor ao grande evento do século, a Segunda Guerra Mundial, responsável por
modificar radicalmente o pensamento global e também por aproximar histórias,
generalizá-las em seu contexto de desaparecimento, exílio, diáspora e morte.

A relação imediata de apagamento de memória e o esfacelamento da vida como se


conhecia, traz em W uma conotação de ferida, de cicatriz que, embora indelével, se busca
esconder ou simplesmente se eclipsa atrás da grande “História, com seu h maiúsculo”6,
que conta, por si e por tantos outros uma parte substancial de suas vidas.

Paradoxalmente à não existência das memórias de infância, Perec se propõe a contá-


las, a extrair de trechos ou de imagens (nem sempre confiáveis) algo que possa se tornar
uma biografia, não como uma promessa de verdade, mas como uma tentativa de reavivar
fantasmas, de dar corpo aos mais ínfimos lampejos e torná-los memória viva. O

4
“Je n’ai pas des souvenirs d’enfance”. (PEREC, 1975, p. 17, tradução nossa).
5
“ ...j’ai perdu mon père à quatre ans, ma mère à six ; j’ai passé la guerre dans diverses pensions de
Villard-de-Lans. En 1945, la sœur de mon père e son mari m’adoptèrent”. (PEREC, 1975, p. 17, tradução
nossa).
6
“ ...L’Histoire avec as grande hache... ” (PEREC, 1975, p. 17, tradução nossa)
506
compromisso autobiográfico é um compromisso de reinvenção do indivíduo onde a
verdade é relativizada, embora não se perca por completo. “A autobiografia se inscreve
no campo do conhecimento histórico (desejo de saber e compreender) e no campo da ação
(promessa de oferecer essa verdade aos outros) tanto quanto no campo a criação artística”
(LEJEUNE, 2008, p. 104). É nesse campo da criação que a memória do campo se pode
fazer viva, que a recordação da tipóia no braço se pode apresentar sem maiores problemas,
mesmo que haja a mais perene dúvida sobre sua real existência. É nesse lampejo que o
objeto entregue pelo pai pode ser uma chave de ouro, uma moeda ou apenas uma chave
comum e que a própria cena se pareça mais com um sonho do que com uma memória
sólida. Ambos os exemplos fazem parte das lembranças elencadas em W e são colocados
em dúvida, devido a uma bruma de esquecimento que paira sobre eles.

A primeira lembrança auferida pelo autor é bastante simbólica para toda a


construção memorialística que se realizará em sua obra. Aos três anos de idade, a criança
estava cercada pelos familiares que exultavam: “todo mundo se extasiou diante do fato
de que eu desenhara uma letra hebraica identificando-a: o signo teria a forma de um
quadrado aberto em seu ângulo inferior esquerdo e seu nome seria gammeth ou gammel”7.
Diversas ligações são criadas por essa pequena passagem: a origem judaica, o futuro
como escritor, a memória evanescente que carece de precisão. É justamente ao buscar
precisão para a rememoração que Perec descobre que não existe letra com esse nome no
alfabeto hebraico, embora exista um gimmel que não se parece àquele signo desenhado
pelo infante. Ainda na tentativa de precisar a lembrança, o autor descobre que era
freqüente que brincasse com jornais e revistas na idade de três anos, mas em francês, não
em yiddish. O que fazer dessa memória da qual não se tem certeza? É ela realmente uma
memória? Para Lejeune “o fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar
pela narrativa não significa de modo algum que ela seja uma ficção” (LEJEUNE, 2008,
p. 104), contrariamente, é apenas na busca pela memória que se pode seguir criando uma
identidade narrativa, aperfeiçoando lembranças através da criação.

3. A HISTÓRIA NA HISTÓRIA

7
“Tout le monde s’extasie devant le fait que j’ai désigné une lettre hébraïque en l’identifiant : le signe
aurait eu la forme d’un carré ouvert à son angle inférieur gauche e son nom aurait été gammeth ou
gammel”. (PEREC, 1975, p. 26-27, tradução nossa).
507
“O projeto de escrever minha história se formou quase ao mesmo tempo que meu
projeto de escrever,”8 nos aponta Perec, embora a escrita de sua história propriamente
dita tenha demorado bastante a ser realizado. O silêncio do pós-guerra, a dificuldade da
realização do poema ou da narrativa, embora não viesse a ser eterna, trazia consigo,
sempre, a dúvida sobre a possibilidade da narração, a questão “de saber se ainda é possível
viver depois de Auschwitz, se aquele que por acaso escapou quando deveria ter sido
assassinado tem plenamente o direito à vida” (ADORNO, 2009, p. 300) e o pleno direito
de expor suas memórias, que não são mais apenas suas. É nesse vácuo da memória
coletiva que Perec cria o espaço para inserir sua própria história, seu testemunho. Se, para
Agambem, bem como para Primo Levi, o verdadeiro testemunho seria o daquele que
viveu plenamente a experiência do campo e viver plenamente culmina, necessariamente
na morte, abre-se a dúvida para a legitimidade de todos os outros testemunhos. Para Levi
o testemunho dos sobreviventes é delegado a estes pelos que não sobreviveram, sendo os
primeiros apenas porta-vozes dos segundos.

Perec não foi prisioneiro nos campos, jamais foi deportado e, também não conviveu
com seus pais após a guerra (ambos morreram nela). Seu testemunho não é primário
(sobrevivente de algum campo) nem secundário (filho de pais sobreviventes que ouviu
deles as narrativas do campo). Os horrores passados nos campos não o tocaram
diretamente, mas toda sua vida infantil (e também a adulta) foi marcada pelo perigo
iminente e pela sensação de perda. A validade de seu testemunho é inegável, justamente
por se concentrar numa outra faceta da guerra, a dos órfãos que acabaram se tornando
fugitivos desde muito jovens. Embora não tivesse conhecimento direto da rotina dos
Campos, e talvez justamente por isso, Perec cria sua visão do evento a partir daquilo que
se torna conhecimento público. Em um texto sobre Robert Antelme, no qual Perec fala
sobre a dificuldade, ou a quase impossibilidade, de se ‘exprimir o inexprimível’ através
da linguagem, ele nos aponta também a dificuldade de conciliar o que conhecemos:

Nós acreditamos que conhecemos o terrível. É um evento “terrível”,


uma história “terrível”. Há um começo, um clímax, um fim. Mas nós
não compreendemos nada. Nós não compreendemos a eternidade da
fome. O vazio. A ausência. O corpo que se devora. A palavra “nada”.
Nós não conhecemos os campos.9

8
“Le projet d’écrire mon histoire s’est formé presque en même temps que mon projet d’écrire”. (PEREC,
1975, p. 45, tradução nossa).
9
“Nous croyons connaître ce qui est terrible. C’est un événement ‘terrible’; une histoire ‘terrible’. Il ya a
un début, un point culminant, une fin. Mais nous ne comprenons rien. Nous ne comprenons pas l’éternité
de la faim. Le vide. L’absence. Le corps qui se mange. Le mot ‘rien’. Nous ne conaissons pas les
508
A ficção da ilha de W soa como uma tentativa de adentrar a compreensão do
incompreensível, uma busca pelo vazio e pela ausência, que também figuram nas histórias
pessoais, nos relatos de sobreviventes, dos fugitivos e das crianças, que, tal como Perec,
guardam consigo a marca de um gesto inexistente de adeus ao embarcarem num trem da
cruz vermelha, rumo a um destino incerto. O jogo no qual a memória se inscreve não é
apenas o de espelhamento da realidade, mas é, sobretudo, um jogo narrativo que,
conforme Benjamin (1985), é um processo começado na guerra e que continua até hoje,
essa observação que “os combatentes voltavam mudos do campo de batalha, não mais
ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos
depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com a experiência
transmitida de boca em boca.” (BENJAMIN, 1985, p. 198). Este embate entre o narrado
e o acontecido fora problematizado por Antelme e citado por Perec que assume para si as
mesmas preocupações: “desde os primeiros dias, nos parecia impossível de preencher a
lacuna que descobrimos existir entre a linguagem da qual dispúnhamos e esta experiência
que, em grande parte, ainda sentíamos em nosso corpo”10. Em suma, como exprimir o
inexprimível? Como conseguir que o horror não seja anestesiado pela linguagem?

A ficção, essa linguagem que nos obriga a dizer, toma, assumidamente, o papel de
detentora do terrível em W, além de fazer a ligação direta entre a memória do vivido e a
memória apreendida através dos fatos da grande história. Contar é essencial, pois “dizer
que Auschwitz é “indizível” ou “incompreensível” equivale a euphemein, a adorá-lo em
silêncio como se faz com um deus” (AGAMBEN, 2008, p. 42), e, para muitos, a única
razão de sobrevivência é o testemunho. Assim Perec narra, testemunha duas histórias,
uma fictícia, similar à história oficial, com seu H maiúsculo, a outra, a sua própria história,
cheia de lacunas, repleta de vazios, reticente e suficientemente inventada, para garantir,
entre outras coisas, a única sobrevivência possível para seus fantasmas. “Escrever é antes
de tudo, testemunhar. Dizer o que sabemos ter acontecido”11, contar, falar, descrever,
inscrever-se e também sobreviver. A memória está em ação, mas “não há nenhum tempo
perdido a se redescobrir e é inútil se interrogar sobre os poderes salvadores da arte. Aqui,

camps”. (PEREC, 1992, p. 92-93, tradução nossa).


10
“Dès les premiers jours, il nous paraissait impossible de combler la distance que nous découvrions entre
le langage dont nous disposions et cette expérience que, pour la plus part, nous étions encore en train de
poursuivre dans notre corps” (ANTELME apud PEREC, 1992, p. 91, tradução nossa).
11
“Écrire, c’est donc d’abord témoigner. Dire ce que l’on sait avoir été” (BURGELIN, 1990, p. 146,
tradução nossa).
509
a escrita se origina como algo abruptamente vital”12. Narrar surge nas obras de
testemunho como oposto à ‘injúria do tempo’, postulada por Giambattista Vico, para
quem há o risco de que o tempo e o esquecimento possam gerar o desaparecimento total
de determinada cultura ou evento. A sobrevida e a lembrança tem, em grande parte, essa
função e surgem como uma necessidade essencial na obra testemunhal perequiana.

4. O ENCAIXE EM X, A PEÇA EM W

“ARBEIT MACHT FREI (O trabalho liberta)” (LEVI, 1988, p. 20), a divisa vista
por Primo Levi em sua chegada em Auchwitz e que o acompanhará em seus pesadelos
pelo resto de sua vida é o espelho direto da divisa da ilha de W: FORTIUS ALTIUS
CITIUS – mais forte, mais longe, mais rápido. Esse espelhamento de uma rotina de campo
de extermínio ao de uma ilha na qual as regras do esporte predominam sobre a vida da
população se mostra um tanto quanto oblíquo. O reflexo indireto da ficção sobre uma
realidade ‘indizível’ acaba por torná-la (a ficção) depositária de valor testemunhal. O
biógrafo Perec constrói, no campo da ficção, toda a sua história que é, para si mesmo,
absolutamente desconhecida, exceto através de relatos ou de pesquisa histórica. Sua
tentativa de escrever sobre si mesmo esbarra nessa história de W, conforme conta em
entrevista: “são duas histórias que são como... espelhos que se esclarecem, quer dizer,
elas praticamente não têm relação entre si, exceto por pequenas, poucas palavras em uma
e na outra que lhes agregam”13. Para Claude Burgelin há um jogo de esconde-esconde,
um segredo visível, responsável pelo encadeamento das duas narrativas; Perec “cria um
espaço onde o entrecruzamento designa e oculta um alhures secreto e visível”14. O que é
mostrado nesse jogo é a própria ligação entre o testemunho e a narrativa que ele se propõe
executar, um texto que aponta sua própria máscara.

A infância, repleta de brechas e falhas, une-se ao testemunho dos campos que por
si, é já bastante lacunar. “A Shoá é um acontecimento sem testemunhas no duplo sentido
de que, sobre ela é impossível testemunhar a partir de dentro – pois não se pode
testemunhar de dentro da morte, não há voz para a extinção da voz – quanto a partir de

12
“Il n’y a nul temps perdu à retrouver et il est inutile de s’interroger sur les pouvoirs salvateurs de l’art.
Ici, l’écriture s’origine à quelque chose d’abruptement vital”. (BURGELIN, 1990, p. 145, tradução nossa).
13
“Et les deux histoires sont comme des… miroirs qui s’éclaireraient, c’est-à-dire qu’elles n’ont
pratiquement pas de rapport, sauf des petits, de petits mots dan l’une e l’autre que les… rejoignent…”
(BERTELLI; RIBIÈRE, 2003, p. 199, tradução nossa).
14
“...crée un espace ou l’enchevêtrement désigne et occulte un ailleurs secret et visible”. (BURGELIN,
1990, p. 141, tradução nossa).
510
fora, pois o outsider é excluído do acontecimento”, conforme Agamben (2008, p. 44).
Também Primo Levi aponta a testemunha ideal como aquele que cumpriu todo o ciclo do
campo, culminando com sua morte, enquanto os sobreviventes falam em seu lugar, por
delegação. É uma lacuna do testemunho dos campos que só se pode tentar preencher com
a linguagem, com a escrita que por si, gera outras tantas lacunas. Claramente, para o
escritor, afeito às contraintes oulipianas, o que se lhe apresenta é mais uma grande regra:
partir do falso para tentar aproximar-se, ou ao menos tocar, ainda que obliquamente, a
verdade dos campos. Para o biógrafo surgem as reticências! A divisão entre as duas partes
do livro é feita por uma página quase em branco, exceto pelo sinal de reticências entre
parênteses. Claude Burgelin observa que “essas reticências indicam o não dito (omitido,
censurado, guardado para si, impossível de delimitar). Elas significam a ruptura e também
o engate (dos fios rompidos da infância, da trama da escrita)”15. O biógrafo Perec tem a
seu favor (ou contra si) as reticências, reiteradas a todo tempo pela bruma da lembrança,
pelo teor de sonho que envolve os momentos, pela afirmação do apagamento da memória,
pela tentativa de precisão de detalhes, que quase sempre o levam a uma revisão da
recordação e tem, ainda, toda uma obra anterior que aponta, em alguns escritos, para sua
própria vida.

Perec, enquanto biógrafo, sempre será um ficcionista. A autobiografia é, para ele,


um dos quatro eixos que orientam sua escrita e ela se espalha por várias narrativas, como
em Un homme qui dort ou em Les choses, além de estar em Je me souviens, no projeto
de Lieux e de La boutique obscure, todos eles, de alguma forma, elevando a escrita a
ponto de torná-la testemunho, uma escrita de e sobre si, fragmentária e repleta de
potencialidades ficcionais. Sobre isso, Perec discorre em entrevista: “Sim, todas as
minhas obras são autobiográficas. Algumas constituem minha autobiografia de escritor,
outras são [realmente] autobiográficas. [...] Tudo consiste em percorrer um caminho ou
preencher um espaço”16. Tudo consiste em utilizar a escrita para se percorrer, para
percorrer as trilhas da história, da grande e da individual, explorar os espaços oferecidos
pelo jogo da escrita, o qual sempre se joga a dois, como um quebra cabeças.

15
“Ces points de suspension indiquent le non-dit (omis, censuré, gardé par-devers soi, impossible à cerner).
Ils signifient la rupture, mais aussi l’accrochage (des fils rompus de l’enfance, de la trame de l’écriture)”
(BURGELIN, 1990, p. 139, tradução nossa).
16
“Oui, toutes mes œuvres sont autobiographiques. Les unes constituent mon autobiographie d’écrivain,
d’autres sont autobiographiques. […] Tout consiste à parcourir un chemin ou à remplir un espace”.
(BERTELLI; RIBIÈRE, 2003, p. 186, tradução nossa).
511
A imagem do puzzle, definidora mais precisa da literatura e do ato de escrever
segundo Perec, pode também definir a forma como este pensa e procede em relação à
autobiografia, esse emaranhado de peças cuja função do (auto) biógrafo é unir, sem,
entretanto, conhecer a imagem final. O melhor que se pode esperar de tal procedimento é
não encontrar, no fim da montagem, um vão em forma de X e ter apenas uma peça no
formato de W nas mãos.

REFERÊNCIAS

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Boitempo Editorial, 2008.

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513

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