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2018/ UFBA
Anais eletrônicos do Seminário de Estudos sobre o
Espaço Biográfico: Desafios da Bioficção –
20 a 22 de novembro de 2013
ISBN: 978-85-8292-178-4
Sistema de Bibliotecas – SIBI/UFBA
ISBN: 978-85-8292-178-4
CDD – 920
CDU – 82-94
Bibliotecário
Evandro Ramos dos Santos
CRB-5/1205
Comissão Organizadora
Comissão Científica
Revisão
2013.
nesse evento, importante não somente para aqueles que se interessam pelo
que se conseguisse concluir esse feito em tão bons ares. Um seminário sobre
o espaço biográfico tinha, como primeiro objetivo, o desejo de ser uma grata
A-feto de teatro.
Aline Job 40
André Arieta 77
BIOGRAFEMAS DE UM CORP’A’SCREVER
RETRATOS EM CÁRCERE
Resumo: O objetivo aqui será analisar a tensão entre verdade e ficção no perfil, gênero
jornalístico centrado em histórias de vida. A entrevista é o procedimento básico de coleta
de dados no jornalismo. Não há dúvida então, que as principais fontes para a elaboração
de reportagens e notícias são as declarações e relatos orais dos entrevistados. Declarações
que exercem um importante papel na sugestão de um “efeito de verdade” no texto
jornalístico. Acontece que toda entrevista lida com a rememoração oral e a memória é
sempre seletiva e imaginativa. Assim, o jornalismo, ao mesmo tempo em que promete
mostrar a “verdade”, de forma objetiva, imparcial, transparente, não pode escapar da
fecundidade das fontes que utiliza. No caso do gênero perfil, essa tensão está ainda mais
presente, pois os perfis costumam ser baseados exclusivamente na entrevista com o
perfilado e trata-se de uma entrevista, com todas as inevitáveis nuances envolvidas,
quando o assunto é uma historia de vida: esquecimentos, eliminações, recriações,
ressignificações. Pois a narrativa biográfica lida com as nossas emoções, dores, afetos,
identidades, autoestima. Talvez exatamente por essa sua abertura intrínseca, o perfil é um
gênero pouco estudado na bibliografia da área. O seu formato é caracterizado como
“flexível”. Tentaremos recuperar aqui algumas discussões sobre o papel desse gênero no
jornalismo e dialogar com reflexões de outros campos que também enfrentam a mesma
tensão entre verdade e ficção nos relatos orais sobre histórias de vida. Essas reflexões
apontam na direção de um entendimento dos textos sobre histórias de vida como
facilitadores da empatia, possibilidades de contato com “experiências” de vida com
mitobiografias o que transcenderia, portanto, o papel informativo.
Palavras-chave: perfil, entrevista, jornalismo biográfico, memória.
Abstract: The goal of this paper is to analyze the tension between fact and fiction in the
profile, journalistic genre that focuses on life histories. Interview is a basic data collection
procedure used in journalism. There is no question then that statements and oral reports
are the main sources for articles and news coverage. Statements play an important role as
they produce a “truth effect” in journalistic writing. Every interview deals with oral
recollection and memory is always selective and imaginative. Therefore, while
journalism is committed to showing the “truth” in an objective, impartial, transparent
way, it cannot escape from the fertile imagination of its sources. In the profile genre, this
tension is even more present, as profiles are often based exclusively on an interview with
1
Mesa-redonda A construção da figura do autor na contemporaneidade.
2
Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), professora, pesquisadora,
jornalista e membro do grupo de pesquisa Jornalismo e a Construção da Cidadania (ECA/USP).
11
the person to be profiled. It is worth noting that, when the subject is a life history,
interviews will also include inevitable subtleties as forgetfulness, deletion, re-creations
and redefinitions. It happens because the biographical narrative deals with our emotions,
sorrows, affection, identities, self-esteem. Perhaps because of this intrinsic amplitude,
there are not many studies on the profile genre. Its format is characterized as “flexible”.
We will gather here some discussions about the role of this genre in journalism and will
open dialogue with reflections from other fields of study that also face tension between
fact and fiction in the oral reports about life histories. These reflections point towards an
understanding of the texts about life histories as empathy facilitators and as possibilities
of being in touch with life “experiences” and myth biographies, which would go beyond
the informative role.
Keywords: profile, interview, biographical journalism, memory.
JORNALISMO E ENTREVISTA
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dados documentais e à observação, compõem juntas um tripé que “sustenta o
levantamento de informações no Jornalismo”. Ainda que a afirmação da pesquisadora
indique o modo mais confiável de obter informações, esse tripé nem sempre será
acionado. Pois nem sempre há documentos a serem apurados, tempo disponível ou
interesse. E nem sempre a observação é praticada, inclusive porque frequentemente os
repórteres produzem matérias sem sair das redações. O que nos leva a concordar com
Lage: a apuração no jornalismo, na maioria dos casos, está centrada na entrevista, seja ao
vivo, por telefone ou e-mail.
13
jornalistas ficaram apenas com seu esqueleto instrumental: a busca da transparência em
si, como valor único, ‘valor de verdade’”.
[...] jamais pensamos que o fato narrado não poderia ter se dado ou que
poderia ser uma invenção do seu produtor. O relato jornalístico é
revestido da característica de crível antes de qualquer outra presunção
(BARBOSA, 2004, p. 4).
No texto jornalístico, as entrevistas exercem um importante papel na construção
desse “efeito de verdade”. Como afirma Suely Maciel (2006, p. 9), “a informação
fornecida por pessoas normalmente é apresentada para afiançar a ‘verdade’ dos dados”.
Ela cita o manual de redação do jornal O Estado de S. Paulo, que recomenda o uso de
declarações a cada um ou dois parágrafos, como forma de confirmar a história narrada
(MACIEL, 2006, p. 15). Portanto, além do ato de entrevistar, o uso da citação se tornou
indissociável da profissão: “As citações são uma das marcas mais comuns do texto
jornalístico” (SOUSA, 2004, p. 702-703). Outros procedimentos também participam da
construção do efeito de verdade, da sugestão de imparcialidade: “A fala testemunhal da
fonte, as versões de fontes conflitantes, os modos discursivos de incluí-las e provocar
efeitos de real e de impessoalidade narrativa, entre outras estratégias, sinalizaram a
emergência de um campo de tensões no interior dos enunciados” (MAROCCO, 2008, p.
1). É verdade que o mito da transparência e a busca da verdade ainda são citados como
metas do jornalismo. Mas não se pode negar que muitos autores também já apontaram as
tensões e fragilidades dessa abordagem, propondo outros caminhos3.
3
Trata-se de um modo de encarar as entrevistas e o jornalismo de uma forma menos objetiva, até porque,
como diz Cremilda Medina (1995), a categoria “objetividade” é bastante pobre. O que ela propõe em
substituição é o reconhecimento de que fazer jornalismo é lançar-se a uma decifração possível: “Surge
então a consciência de que entramos numa especulação ilimitada, um mergulho na Verdade de muitas faces,
contradições, em que a atuação do jornalismo é sempre relativa, nunca totalmente objetiva, cientificista”
(MEDINA, 1995, p. 33). Reconhecer que o conhecimento produzido pelo jornalismo é sujeito a erros não
é o mesmo que invalidá-lo. É um conhecimento que salva o presente da morte, diz Cremilda que, por isso
mesmo, define a profissão como a “arte de tecer o presente”.
14
A preocupação com a verdade, a objetividade, a imparcialidade, evidentemente,
não estão restritas ao jornalismo. Nem a problematização desses temas. Há historiadores,
por exemplo, que discutem a distinção entre imparcialidade e objetividade:
ENTREVISTA E MEMÓRIA
15
memorialístico, usualmente comemorativas de datas e eventos históricos importantes.”
(PALACIOS, 2010, p. 47). Ou até de recursos de memória que passaram cada vez mais
a integrar o texto jornalístico, em função da tecnologia digital, que facilitou a
incorporação de “(comparações, analogias, nostalgia, desconstrução etc.), mas
igualmente tornou-se praxe uma forma de edição que remete à memória. Textos
relacionados passam a ser indexados hipertextualmente (Leia mais; Veja também, etc.).”
(PALACIOS, 2010, p. 46).
O que nos interessa aqui, entretanto, é um outro aspecto da relação entre jornalismo
e passado: a sua dependência da entrevista e, portanto, da memória das fontes. E,
principalmente, quais as implicações disso para a tal “busca da verdade”. A abordagem
da questão, em geral, é pontual. Marli dos Santos (2009, p. 22) afirma que “o jornalismo,
para desvendar o presente, precisa do passado: na memória das fontes, na
contextualização dos fatos”. Marialva Barbosa (2004, p. 4) lembra que “é dado ao
produtor do discurso o direito de falar de fatos, eventos, ocorrências que não foram
registrados em sua presença”. Nilson Lage é mais explícito ao relacionar entrevista e
memória, sem deixar de sugerir caminhos para chegar ao “confiável”, que para ele estaria
no testemunho imediato:
16
disponível. Ou ainda porque se trata de um gênero jornalístico que lida muitas vezes com
apenas um entrevistado, como ocorre com o perfil. Frequentemente os perfis tomam como
base apenas uma entrevista: com aquele que conta a sua história de vida. Mas antes de
tratar do perfil e da entrevista sobre história de vida, é importante enfrentar uma questão
mais abrangente, pois diz respeito a qualquer entrevista: o que é a memória?
Um aspecto que tem profunda relação com a tão discutida autenticidade da memória
é a sua relação com o presente. Como diz Marialva Barbosa (2004, p. 5), “a memória é
sempre uma ação do presente”. Ou seja, a memória é construída com as palavras e ideias
do presente:
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processo. Tanto a lembrança quanto o esquecimento podem ser conscientes ou
inconscientes e guiados por uma lista infindável de motivos, que incluem “interesse, a
afetividade, o desejo, a inibição, a censura” (LE GOFF, 1990, p. 426). Velhice, debilidade
física e circunstâncias traumáticas também afetam o que lembramos e esquecemos,
pontua Sebe Bom Meihy (2002). Lembrar de tudo é humanamente impossível e, além
disso, esquecer detalhes é necessário à vida social. O que não se confunde com
“esquecimentos forçados que podem ser considerados ‘apagamentos’, ou seja, promoção
de censuras que obstaculizam o conhecimento de alguma coisa” (MEIHY, 2002, p. 67).
Após esse breve percurso, podemos sintetizar um conceito de memória que inclua
esses diversos aspectos. Iremos recorrer aqui à definição de José Carlos Sebe Bom Meihy,
que, como pesquisador da história oral, tem na memória o centro do seu trabalho:
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perfil’, não necessariamente vinculada a acontecimentos, que explora e desvenda, com
habilidades literárias, a notoriedade de pessoas, cidades, lugares e instituições”
(CHAPARRO, 1998, p. 95). A mesma concepção aparece num livro de Ricardo Kotscho
(2002, p. 42): “Filão mais rico das matérias chamadas humanas, o perfil dá ao repórter a
chance de fazer um texto mais trabalhado – seja sobre um personagem, um prédio ou uma
cidade”4. A maior parte dos autores de comunicação, entretanto, recorre à palavra perfil
na mesma acepção que estamos utilizando aqui. Dizem Muniz Sodré e Maria Helena
Ferrari: “Em jornalismo, perfil significa enfoque na pessoa – seja uma celebridade, seja
um tipo popular, mas sempre o focalizado é protagonista de uma história: sua própria
vida” (SODRÉ, 1986, p. 126).
Retrato, personalidade, pessoa e biografia são outras palavras utilizadas para definir
o que estamos chamando de perfil. Jorge Pedro Sousa (2001, p. 261) descreve a
“reportagem de personalidade” como “Reportagem cujo tema central é uma pessoa,
relatando, por exemplo, a sua vida (reportagem biográfica), o seu dia a dia, etc.”. Na
bibliografia francesa a palavra retrato (portrait) está muito associada ao gênero. Jean-Luc
Martin-Lagardette define assim o “retrato (perfil)”, que ele situa entre os “gêneros de
comentário”: “Artigo que desenha a personalidade de alguém (conhecido ou não) através
das suas características: biografia, actividades, declarações, maneira de ser, aparência
física...” (MARTIN-LAGARDETTE, 1998, p. 67). Oswaldo Coimbra (2002, p. 117)
utiliza a palavra perfil como sinônimo de “texto jornalístico sobre uma pessoa”. Mas
também adota expressões como “reportagem descritiva de pessoa” ou “texto descritivo
de pessoa” (2002). Sergio Vilas Boas (2002, p. 93) incorpora à sua definição a ideia de
biografia: “O perfil jornalístico é um texto biográfico curto (também chamado short-term
biography) publicado em veículo impresso ou eletrônico, que narra episódios e
circunstâncias marcantes da vida de um indivíduo, famoso ou não”.
4
Apesar dessa afirmação, todos os exemplos citados por Kotscho no capítulo são de perfis de indivíduos.
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planejamento distinto da notícia, a estrutura do texto é menos rígida e a linguagem é mais
livre. É possível abandonar o lead, a pirâmide invertida e usar recursos literários. O perfil
seria, portanto, um tipo específico de reportagem: aquela com teor biográfico.
Como lida com tema não factual que exige sensibilidade na apuração e escrita, o
perfil costuma ser associado ao New Journalism ou jornalismo literário. Isto é, uma forma
de apuração e escrita que incorpora recursos literários e que, para muitos, não tem tido
mais espaço nas redações contemporâneas. Estudioso do tema, Sergio Vilas Boas (2003)
indica as pistas para quem deseja compreender o espaço do perfil no jornalismo. Segundo
ele, perfis vêm sendo publicados na imprensa há 200 anos. Mas nos últimos 50 anos é
que apareceu o que ele chama de “perfis longos, em profundidade e escritos
literariamente”. Revistas norte-americanas aparecem em destaque com a publicação de
perfis antológicos. Ele cita Esquire, The New Yorker, Vanity Fair, Life, Harper's, People
e Biography. No Brasil, O Cruzeiro, Realidade, Senhor e Manchete. Quando afirma que
falta espaço hoje para um “jornalismo visceral”, Vilas Boas se refere a esse jornalismo
literário da The New Yorker, da Realidade, com semanas para apurar, com textos longos
e linguagem literária.
5
Falando sobre as novas perspectivas trazidas pela Escola dos Annales, Boris Fausto (2009, p. 03) explica:
“Esses autores não tiveram por objetivo extrair leis da história, à semelhança das ciências naturais [...]. Mas
trataram de aprofundar o conhecimento histórico, criticando a chamada 'história-batalha' e o excessivo
interesse no estudo dos grandes personagens”.
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reportagem. Pode também ser o centro do texto, que assume dimensões muito variáveis:
uma reportagem curta, uma grande reportagem ou um livro-reportagem perfil.
Independente da extensão, todas essas modalidades são formas de abordar histórias de
vida em textos jornalísticos. E nunca deixaram de ser publicadas. As reportagens são o
gênero por excelência das revistas. Muitas vezes não nos damos conta, mas o teor
biográfico aparece, sim, em muitas delas. Para citar apenas um caso: ao menos metade
das reportagens publicadas mensalmente na revista Serafina, da Folha de S. Paulo, são
claramente biográficas. No mesmo jornal, textos biográficos aparecem com frequência,
especialmente nas editorias Ilustrada e Cotidiano. Nem sempre o gênero escolhido é a
reportagem. O relato em primeira pessoa tem sido usado em vários momentos. No jornal
O Estado de S. Paulo, a seção Paulistânia frequentemente publica perfis. Fora do eixo
Rio-São Paulo, ocorrem muitas experimentações que, frequentemente, permanecem
desconhecidas. No Rio Grande do Sul, no final da década de 1990, a jornalista Eliane
Brum publicou dezenas de textos no jornal Zero Hora sobre a vida de pessoas comuns
em situações comuns, muitos deles, belíssimos perfis depois reunidos no livro A vida que
ninguém vê (2006), que recebeu um prêmio Jabuti. Na Bahia, entre 2000 e 2008, o jornal
Correio publicou o caderno semanal Correio Repórter, com perfis e grandes reportagens.
Vários deles com caráter biográfico e utilizando recursos literários6.
Os perfis são escritos a partir, principalmente, de relatos de vida obtidos por meio
de entrevistas. Portanto, aquele que relata/narra a sua vida lida necessariamente com a
memória. E não só a de curto prazo. Infância, adolescência e episódios ligados a um
passado ainda mais remoto podem aparecer nessas conversas. Se, conforme afirmamos,
toda entrevista recorre em certa medida à memoria dos entrevistados, no caso das
entrevistas sobre histórias de vida esse aspecto é mais predominante, assim como as
omissões, recriações, fabulações, tal aspecto possivelmente integra a lista de motivos da
ambiguidade (ou receio) com que ele é visto. Muitas vezes, por conta da disponibilidade
de tempo, o perfil toma como base apenas um entrevistado: o perfilado. A observação
6
Citamos anteriormente o desprestígio da biografia, mas é preciso lembrar também que, nas últimas
décadas, o gênero recuperou a sua força. Nos últimos anos, sejam elas escritas por historiadores ou por
jornalistas, “as biografias têm alcançado um grande sucesso editorial no Brasil, igualando até as vendagens
dos manuais de auto-ajuda e dos livros escritos por magos, anjos e esotéricos em geral” (SCHMIDT, 1997,
p. 01). Segundo Schmidt, o destaque maior ficou por conta das biografias escritas por jornalistas. No Brasil,
um dos mais bem sucedidos no ramo é Fernando Morais, autor de Olga (1985) e Chatô - O rei do Brasil
(1994). Mas historiadores também voltaram a se interessar pelo gênero: “Esta volta da biografia está
relacionada com a crise do paradigma estruturalista que orientou uma porção significativa da historiografia
a partir dos anos 60” (SCHMIDT, 1997, p. 02). Um interesse que se manifesta em diferentes países e
correntes teóricas.
21
como forma de coleta de dados, nesse caso, serve muito mais para acrescentar detalhes
que confirmar a veracidade de informações. O mesmo pode ser dito sobre dados
provenientes de pesquisas, documentos, estatísticas. O relato do perfilado tem a seu favor
a força do testemunho, que, como diz Le Goff (1990, p. 09), foi a base da história, que
“começou como um relato, a narração daquele que pode dizer ‘Eu vi, senti’. Este aspecto
da história-relato, da história-testemunho, jamais deixou de estar presente no
desenvolvimento da ciência histórica”.
Se, para jornalistas que trabalham com histórias de vida, as omissões e recriações
são típicas “armadilhas da memória” (VILAS BOAS, 2002), entre os pesquisadores da
história oral, o entendimento da “verdade” dos fatos na entrevista é distinto. O que
interessa é a “subjetividade de quem narra” e até a “mentira”, quando localizada, tem suas
intenções e merece ser compreendida:
22
Reabilitar a memória é também reconhecer que documentos e estatísticas são
socialmente construídos, a partir de determinada perspectiva e atendendo a interesses.
Até os historiadores já reconhecem que mesmo as fontes documentais não são “menos
seletivas ou menos tendenciosas” (THOMSON, FRISCH e HAMILTON, 2006, p. 67)
que a memória oral. Como afirma Paul Thompson, estatísticas não podem ser tomadas
como fatos, assim como notícias de jornais, cartas ou biografias. “Do mesmo modo que
o material de entrevistas gravadas, todos eles representam, quer a partir de posições
pessoais ou de agregados, a percepção social dos fatos” (THOMPSON, 2002, p. 145).
Chegar a essa “percepção” é o objetivo. Pois essa percepção influencia as nossas crenças,
o modo como encaramos o mundo, fazemos escolhas e lidamos com as outras pessoas.
Por isso se diz que o perfil é indissociável da empatia, mobilizando escreventes e leitores:
23
Explicando o seu próprio trabalho, João Moreira Salles7 afirma que o papel do
documentarista é transmitir “uma certa experiência”. Não se trata de informação, mas da
experiência do que é ser aquele indivíduo. E acrescenta que a informação expulsa a
experiência. Biografias e perfis são apenas seleções, versões, referências limitadas a
alguns aspectos de uma vida, e, ainda assim, interessam a tantas pessoas. Porque
compartilham experiências e precisamos dessas experiências para somar às nossas. Sem
essas experiências, precisaríamos sempre começar de novo, refazer os percursos, pois não
teríamos o apoio da sabedoria das experiências compartilhadas. Sabedoria que nos ajuda
a tomar decisões e a dar sentido às nossas experiências.
Da mesma forma que conhecer a vida do outro nos modifica, narrar a própria vida
pode ser um processo intenso e transformador. Falando sobre a entrevista em ambiente
clínico, Edgar Morin (1973) lembra que certas conversas podem ter efeito “purificador”
e até de “cura”. Há pesquisadores, entretanto, que identificam o potencial terapêutico em
entrevistas que sequer têm esse objetivo e mesmo não sendo conduzidas por profissionais
da saúde. É o que defende o oralista José Sebe Meihy (MARIANO, 2009, p. 29): “Alguém
que conta a própria história, ao fazer isso, se reidentifica, retraça alguma coisa que a sociedade
moderna tem tirado destes contadores. [...] A pessoa que faz esse relato se reencontra com um
processo narrativo que tem sido roubado dela”.
Numa perspectiva similar, Luisa Passerini (1993, p. 39) acredita que as “histórias
de vida podem ser vistas como construções de mitobiografias singulares, usando opções
de recursos diversos, que incluem mitos, combinando o novo e o antigo em expressões
únicas”. E nessa relação entre o novo e o antigo, a sua proposta é a de “não mais usar
mitos do passado para ler o presente, e sim usar o presente para reinterpretá-los”
(PASSERINI, 1993, p. 39).
Sim, já dizia Pierre Bourdieu (2006, p. 185), tratar as nossas vidas como uma
história, como “um relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado
e direção”, provavelmente é uma ilusão. Pois “o real é descontínuo, formado de elementos
justapostos sem razão” (BOURDIEU, 2006, p. 185). Ainda assim, insistimos em contar
histórias:
7
Palestra proferida no Seminário Acadêmico Internacional sobre Jorge Amado, em 25.05.2010, na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP).
24
narrativa, e todos os seres humanos são em essência contadores de
histórias” (SUNWOLF, 2005, p. 305-306).
As nossas vidas não são histórias, não há uma sequência coerente de
acontecimentos, mas precisamos compreendê-las assim para dar sentido a elas. E também
porque esse é um caminho para o nosso encontro com o outro, para a prática do diálogo.
Para Martin Buber (1982), o dialógico é uma forma de comportamento dos homens uns
com outros, uma abertura. Assim, pessoas dialogicamente ligadas precisam,
necessariamente, estarem voltadas uma para a outra. Entre as maneiras de perceber o
outro, Buber distingue três: duas mais distantes – o observador e o contemplador – e uma
terceira que ele nomeia como “tomada de conhecimento íntimo”. Essa última forma de
perceber traduz um encontro mais profundo, quando o outro “diz algo a mim, transmite
algo a mim, fala algo que se introduz dentro da minha própria vida” (BUBER, 1982, p.
42).
REFERÊNCIAS
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1985. p. 197-221.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. (Orgs.). Usos &
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 183-191.
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75.
25
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Géneros do jornalismo português e brasileiro. São Paulo: Summus, 1998. p. 75-96.
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<http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/RC19/index.asp>. Acesso em 20 fev. 2009.
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26
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THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
VILAS BOAS, Sergio. Biografias & biógrafos. São Paulo: Summus, 2002.
27
“QUE HOJE NADA E NEM NINGUÉM ESTRAGUE SEU DIA”:
OTIMISMO E MEMÓRIA DO DISCURSO RELIGIOSO NO
FACEBOOK1
Resumo: Esse trabalho tem como objetivo identificar traços de uma memória coletiva
relativa ao discurso religioso, materializada em narrativas de otimismo divulgadas na rede
social Facebook pela página “Otimismo sempre”. A rede social é tomada enquanto “lugar
de memória”, ou seja, enquanto um recurso para a necessidade humana de registrar e dar
visibilidade às suas memórias vivas, um espaço em que se difunde aquilo que deve ser
lembrado pela comunidade. O estudo é exploratório, realizado por meio de revisão
bibliográfica multidisciplinar e estudo de caso. Dentre os resultados alcançados, constata-
se a proposição de um quadro de memória social delineado por um otimismo referente à
afirmação de valores morais sobre valores materiais ou de status e confiança na
intervenção de elementos metafísicos sobre o futuro, o que funciona como estratégia de
memória do discurso religioso na internet.
Palavras-chave: memória, otimismo, discurso religioso, internet.
Abstract: This paper aims to identify traces of a collective memory on the religious
discourse, embodied in narratives of optimism disclosed in the social network facebook
page "Optimism forever". Social networking is taking “sites of memory”, ie as a resource
for the human need to register and give visibility to their memories alive, in a space that
diffuses what it should be remembered by the community. The study is exploratory,
conducted by multidisciplinary literature review and case study. Among the results
obtained, it appears to propose a framework of social memory outlined by an optimism
concerning the affirmation of moral values over material values or intervention status and
confidence in the future of metaphysical elements, which acts as a memory strategy of
religious discourse on the Internet.
Keywords: memory, optimism, religious discourse, internet.
1
Mesa-redonda A exposição do sujeito nos meios de comunicação I.
2
Doutora em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
3
Professora Adjunta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
28
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Qualquer usuário pode fazer uso desses espaços virtuais para disseminar suas
opiniões, suas reflexões, seus estados emocionais ou, simplesmente, compartilhar
conteúdos produzidos por outrem. Nesse sentido, são muitos os perfis impessoais, criados
em formato de comunidade, a congregar seguidores interessados em um tema específico
e com divulgação de conteúdos que costuma ter frequência diária.
4
https://www.facebook.com/pages/Otimismo-Sempre/231866063491708?fref=ts
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A MEMÓRIA, O OTIMISMO E O DISCURSO RELIGIOSO
Os estudos sobre memória não são recentes, mas a produção científica referente à
memória é relativamente nova, especialmente a que se liga à Nova História, cuja
proposição é uma perspectiva crítica sobre o estudo da história e sobre o olhar teórico
referente ao passado. O sujeito histórico, largamente descrito e documentado, passa a ser
compreendido também por meio de características subjetivas, dialéticas e culturais,
recorrendo-se, inclusive, a memórias coletivas e a fontes orais, ou seja, a fontes não
convencionais ao conhecimento científico. A relação com o tempo não está subjugada à
linearidade cronológica, mas admite focos não-lineares sobre a temporalidade (LE GOFF,
1990).
A memória, por sua vez, figura junto à Nova História enquanto um campo vivo,
dinâmico, instalado no momento presente, seja para o sujeito ou para grupos sociais
(NORA, 1993). A memória se configura como o laço que une os sujeitos, carregando
consigo uma conotação afetiva, mágica. Sem perder de vista sua condição de aptidão
natural aos sujeitos, a memória tem apenas o corpo como suporte, mas pode ser
materializada no que Pierre Nora chama “lugares de memória”, aqueles espaços
simbólicos onde se “sacralizam” as memórias coletivas. Ainda segundo Nora:
30
passível de diluição e anulação, decorrentes da perda de interesse desse sujeito por um
determinado tema ou pelo seu afastamento do grupo que o partilha. Assim, a memória
individual é marcada por sua fragilidade. Entretanto, quando compartilhadas por um
grupo, as memórias constituem um “sistema independente”, pois em perspectiva social
“elas estão ligadas uma a outra e apoiadas de certo modo uma sobre a outra”
(HALBWACHS, 2004, p. 33), compondo “quadros sociais de memória”.
Tais mecanismos estão, em alguma medida, relacionados aos “fatos sociais” de que
tratou Durkheim, referência maior de Halbwachs. Os quadros de memória exercem sobre
os grupos sociais a coerção necessária à manutenção de um “estado de coisas”,
alimentando-se, ao mesmo tempo, dele.
Halbwachs acrescenta que a memória sempre será acionada pelo outro. Ela se torna
um meio de conhecer a realidade, mesmo que de forma subjetiva.
É nesse âmbito que emerge o interesse pelo otimismo e pelo discurso religioso.
Embora haja, nos estudos filosóficos das décadas de 1980 e 1990, um pessimismo
decorrente do reconhecimento de que a modernidade não se desenvolveu conforme o
iluminismo propôs, existe, nas redes virtuais, a proliferação de narrativas otimistas quanto
à ética, aos valores, à melhoria da qualidade de vida de modo geral.
31
O otimismo notado nas relações virtuais pode ser compreendido a partir da
contribuição filosófica de Artur Schopenhauer. Em Aforismos para a sabedoria de vida
(2006), o chamado filósofo do pessimismo admite elaborar um trabalho em contramão à
sua filosofia, dedicando-se à eudemonologia. Em primeiro lugar, há uma apropriação da
divisão tripartite do homem, explicada por Aristóteles: o que o homem é, sua
personalidade, valores etc.; o que ele tem, seu conjunto de bens ou patrimônio; o que ele
representa face os demais, sua “honra, posição e glória” (SCHOPENHAUER, 2006, p.
5).
Investir apenas sobre o ter e o aparentar seria uma tentativa de encobrir de uma
imagem de felicidade o que em verdade “emerge da pobreza e vacuidade mentais”. Ainda
segundo o referido filósofo, priorizar o ser, ou seja, o intelecto, a educação e o modo de
se colocar para o mundo seria o caminho para superar os males que a ênfase sobre as
demais instâncias podem causar, quais sejam: “vazio de suas vidas interiores, a
obtusidade de suas consciências e a pobreza de suas mentes” (SCHOPENHAUER, 2006,
p. 5). Em seguida, o filósofo faz referência a Homero, pois sugere deixar o futuro no
“colo dos deuses”, ou seja, concentrar-se sobre o momento presente.
32
Figura 01: imagem de capa da página “Otimismo sempre”
Para esse estudo, foram selecionadas cinco imagens postadas na página em questão.
A partir desse corpus, foram observadas pontes possíveis de sentido entre o otimismo e
discursos religiosos de diversos livros da Bíblia Sagrada, portanto, com os sistemas de
orientação e devotamento judaico e cristão.
O primeiro elemento a ser destacado nesse corpus é a imagem que foi compartilhada
pela fan page em 14 de outubro de 2013 e versa sobre a ideia de riqueza.
33
material – o ter de que trata Aristóteles –, em função de elementos apenas assimiláveis
na dimensão do ser, da subjetividade.
Também o evangelista Lucas trata dessa questão quando afirma que: "mesmo na
abundância, a vida do homem não é assegurada por seus bens"" (Lc 12.15) e conclui
“Pelo contrário, buscai o seu Reino, e essas coisas vos serão acrescentadas” (Lc 12.31).
Ainda sobre esse tema, o apóstolo Paulo foi assertivo, em sua primeira carta a
Timóteo: "o amor ao dinheiro é raiz de todos os males” (I Tm 6.10).
O segundo material que compõe o corpus desse estudo faz uso da ideia de status e
aborda valores morais.
34
O texto lança mão da ideia de elegância, de adequação ao comportamento social,
para sugerir que as categorias da aparência ou da representação do sujeito devem ser
sustentadas por valores morais. Em outras palavras, sugere-se que uma pessoa só pode
ser considerada chique ou requintada quando tais características estiverem vinculadas ao
âmbito do ser, conforme referiu Schopenhauer acerca do pensamento de Aristóteles. A
imagem de fundo contribui para essa leitura no campo da ética, pois se assemelha a uma
cortina transparente à luz, como transparente seria aquele que mantém os valores morais
como algo central na sua vida.
Na carta aos Romanos, Paulo de Tarso faz ponte entre o texto apresentado na
mensagem e o discurso religioso cristão: “Igualmente o mundo fica escandalizado e o
nome de Deus é blasfemado, quando um crente deixa de honrar os seus compromissos”
(Rm 2:21-24). E ainda no livro dos Salmos, considerado o coração do Antigo Testamento,
lemos: “Como é feliz aquele que não segue o conselho dos ímpios, não imita a conduta
dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores! Ao contrário, sua satisfação está
na lei do Senhor, e nessa lei medita dia e noite” (Sl 1:1-3).
A primeira postagem apresenta a proposta de que aquele que cultiva valores morais
acumula gradativamente possibilidades maiores de responder com atitudes exemplares às
condições adversas estabelecidas por outrem.
35
A imagem das mãos unidas sugere reconciliação em lugar de rompimento. Assim,
pode-se inferir uma ligação com o discurso religioso como mostra a citação do
evangelista Mateus: “Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau; antes, àquele que
te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda” (Mt, 5: 39). Tal passagem bíblica
coaduna-se com o exposto na mensagem de otimismo selecionada, pois ambas sugerem
a possibilidade do perdão em oposição à ira e ao rancor.
O sorriso não resulta de custos materiais e embeleza o seu portador, bem como
suscita reciprocidade nos demais pelo compartilhamento de um estado de ânimo desejado
pelas pessoas, em atitude de generosidade para com os outros, de fazer o bem aos outros.
A mensagem coloca a roupa material em condição de menor importância ante a decisão
de fazer o bem por si e pelos demais.
Pode-se, aqui, tecer uma relação com a passagem bíblica do livro atribuído a
Salomão, que diz: “E compreendi que não há felicidade para o homem a não ser a de
alegrar-se e fazer o bem durante sua vida” (Eclesiastes, 3: 12).
36
A postagem a seguir encerra os itens destacados na leitura de Schopenhauer acerca
do conceito de otimismo adotado nessa pesquisa. A partir do significado da palavra
“resiliência”, é apresentada a influência de elementos exteriores na conduta dos sujeitos.
37
CONSIDERAÇÕES SOBRE A REVERBERAÇÃO DOS DISCURSOS
Os discursos que "se dizem" no correr dos dias e das trocas, e que passam
com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na origem
de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam
ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de
sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer
(FOUCAULT, 1996, p. 22, grifos do autor).
Trata-se de uma observação acerca da permanência de certos discursos em
perspectiva histórica, bem como da impermanência de algumas de suas referências ou
formas. Isso significa que o deslocamento que constitui o comentário não é estável,
tampouco absoluto. “Muitos textos maiores se confundem e desaparecem, e, por vezes,
comentários vêm tomar o primeiro lugar” (FOUCAULT, 1996, p. 23). Assim, o
comentário é o princípio interno que permite a classificação e a categorização dos
discursos, dada sua repetição em distintas materialidades históricas.
38
em seu horizonte não há talvez nada além daquilo que já havia em
seu ponto de partida, a simples recitação (FOUCAULT, 1996, p.
25).
O princípio do comentário coopera com a perspectiva desse estudo no sentido de
explicar como a memória dos discursos religiosos podem se materializar nas narrativas
de otimismo por meio de uma remodelagem da forma, mantendo, porém, o conjunto
elementar de sua existência.
REFERÊNCIAS
FROMM, Erich. Análise do Homem. Tradução de Octavio Alves Velho. 8ª ed. Rio de Janeiro:
Zahar editores, 1972.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994.
LEMOS, Andre. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre:
Sulina, 2004.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. 2ª ed. São Paulo: Wmf Martins
Fontes, 2006.
39
NOS PLATÔS DO DESASSOSSEGO DE BERNARDO SOARES E DE
FERNANDO PESSOA: IDENTIDADE E ALTERIDADE1
Aline Job2
1
Mesa-Redonda Memória e ficção em narrativas literárias.
2
Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
40
Abstract: The approach of this article focuses on the hypothesis of a representation of
the many and varied dimensions of identity, ie, the subject is not unique but myriadic,
which can be seen physically by the creation of Fernando Pessoa’s heteronym. So, this
idea of plurality of centers is inserted on the understanding of these different identities as
an implosion of a unit that has ever existed. The contemporary subject is part of an
epistemic perspective that reveals the search for a sense of being, of existence, which
seems lost long ago. In this panorama of a life mediated by the speed and fluidity, nothing
has fixed or stable meaning, but a constant becoming, and this becoming also represents
a continuous process that does not have a closure, revealing inconsistent and fragmented.
In contemporary literature, familiar with the constituent elements of a postmodern
narrative, there are several examples of texts that function as an epistemological
assumption to think about the existence, identity, and truth itself. So, is through scripture
that seem to arise these perspectives of yearnings of human existence, an alternative way
to think about the elements that constitute the philosophical knowledge, namely the
identity (existence, to some extent) and otherness. The Book of Disquiet seems to
approximate this contemporary conception of fragmented and unstable knowledge (most
commonly located in postmodern texts) and was selected for this reason to discuss the
themes identity and otherness. Thus, the game that is done in the scripture with the
creation of this Fernando Pessoa’s semi-heteronym provides a constant relation of
otherness that occurs between all these creations of the author. Thought so, Bernardo
Soares, as a sign, can be observed in terms of différance (Derrida) and in terms of plateaus
and rhizome (Gilles Deleuze and Félix Guattari) . In that regard , The Book of Disquiet is
taken as a set of fragmented thousand plateaus that give existence to Bernardo Soares,
giving materiality to its fictional existence, formalized by memories and philosophical
reflections, thereby generating a narrative identity (Ricoeur), produced in and through
otherness, through the Fernando Pessoa " auto-fictions", in a game to recreate itself in the
narrative, allowing the necessary mediation for reflections of the self.
Keywords: Fernando Pessoa, Bernardo Soares, The Book of Disquiet, Identity, Alterity.
Assim, é pela escritura que parecem surgir perspectivas de se pensar esses anseios
humanos da existência, uma forma alternativa de refletir sobre os elementos que
constituem o saber filosófico, a saber: o da identidade (existência, até certo ponto) e da
alteridade. Em The Gift of Death, Jacques Derrida afirma que “tout autre est tout autre”
e posiciona a questão da singularidade e da alteridade sobre o próprio jogo da linguagem
dessa afirmação: “the other is the other, that is always so, the alterity of the other is the
alterity of the other” (DERRIDA, 1995, p. 83). Nesse sentido, a busca pela identidade só
se dá no reconhecimento do outro, ou do “wholly other” como denomina Derrida, e é um
processo constante em que não se atinge um ponto definido, fixo, mas, sim, instável,
sempre no devir.
43
vir e a ser processado pelo leitor, o Livro do Desassossego descentra-se da instituição
“livro”.
3
ECO, Umberto. Obra Aberta. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1971.
44
transbordam dos fragmentos, como a ideia da identidade multifacetada de Bernardo
Soares como a criação ficcional de Fernando Pessoa em mais um de seus heterônimos.
A ideia de Bernardo Soares como ser que jamais morrerá serve de metáfora para
as criações literárias (as personagens) que da mesma forma jamais deixarão de existir (a
não ser aqueles que morrem na narrativa – e que morrerão para sempre), pois são
existências de papel, de palavras, voltando sempre à vida quando alguém ler o texto em
que ganharam forma.
45
Exemplo disso está já quase no fim de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa,
quando Diadorim é ferida mortalmente em batalha e Riobaldo assiste a tudo sem que nada
possa ser feito (ou sem querer fazer nada). Nesse trecho, Riobaldo descreve o que
significa narrar o evento da morte de Diadorim: “Eu despertei de todo – como no instante
em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio... Diadorim
tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber,
meus olhos marejavam.” (ROSA, 1994, p. 857) e “[...] Não escrevo, não falo! – para
assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...” (ROSA, 1994, p. 861).
O que o narrador de Rosa sugere nesse trecho é que o ato de narrar a morte de
Diadorim é o que vai tornar a morte de fato verdadeira: se ele não narrar, se não estiver
em palavras em um texto, Diadorim pode viver para sempre. No entanto, a morte dela
está escondida nas palavras não ditas e o ato de contar a história do livro é uma ação de
manutenção da vida ficcional, da existência narrativa, tanto de Riobaldo como Urutu
Branco, como de Diadorim ainda viva com ele.
Assim, tem-se a proposta de pensar a narrativa como escritura, como uma forma de
exercer um processo de permanência daquilo que é substancial numa tentativa de
manutenção de si no devir do tempo. Dessa forma, a narrativa serve como afirmação de
uma existência e, no caso de Bernardo Soares, a única existência possível.
Em certo fragmento, comentando sobre a vida que teria caso tivesse nascido rico
ou tivesse posses, Bernardo Soares faz referência a sua realidade como uma existência de
papel, ainda que em termos textuais possa-se afirmar que o trecho seria uma metáfora
sobre o sujeito que coloca no papel a sua autobiografia. O trecho em questão: “Sim, se eu
tivesse sido rico, resguardado, escovado, ornamental, não teria sido nem esse breve
episódio de papel bonito entre migalhas [...]” (PESSOA, 1986, p. 83).
Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que
eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo
em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos
que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De
tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e
deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda
agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço
alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo. (PESSOA,
1986, p. 180)
Nessa passagem, evidencia-se essa realização de uma identidade em
relação a sua construção como papel, como escritura: Bernardo Soares é feito de palavras.
Ao mesmo tempo em que se afirma uma identidade falsa, pois sem fatos (autobiografia
sem fatos) e apenas com palavras, afirma-se uma identidade narrativa pela conjunção
desses fragmentos que sustentam quem foi Bernardo Soares.
47
Bernardo Soares faz do Livro do Desassossego sua autobiografia sem fatos, o que
torna o texto um tanto paradoxal pensando na sua organização como a construção de uma
identidade narrativa que estaria no cruzamento entre a história e a ficção. Entretanto, a
tentativa de aplicar a forma escrita e narrativa nos fragmentos representa uma forma de
materializar essa existência não factual de Bernardo Soares. Nas notas de O Si-mesmo
Como um Outro, Paul Ricoeur afirma que “a compreensão de si é uma interpretação”,
enquanto Bernardo Soares afirma que “ser compreendido é prostituir-se”. Entretanto,
Bernardo Soares não poderia ser de outra forma compreendido senão lido, o que
necessariamente se realiza construindo uma interpretação: o semi-heterônimo de
Fernando Pessoa usa a escrita para sustentar a sua existência, que sem as palavras e o
papel não seria nada.
Embora Bernardo Soares não busque compreensão através de seus fragmentos, eles
servem diretamente para a construção desse indivíduo que passa os dias inteiros a
escrever “histórias inúteis” em livros contábeis. Na terceira parte do Livro do
Desassossego, “A Ficção de Mim Mesmo”, o guarda-livros começa por afirmar que está
“evaporando”, entretanto será pela escrita, e isso é demonstrado em fragmento logo no
início dessa terceira parte, que se percebe o devir do tempo no sujeito que se modifica (ao
mesmo tempo em que isso revela o sujeito como um processo contínuo de modificação,
de alteridade, tanto consigo mesmo – o eu de antes e o eu de agora – com o Fernando
Pessoa, autor que lhe cede a pena para que seja auto-criado):
48
aos elementos de identidade e alteridade: o eu de hoje e o eu de ontem ou, ainda, o eu de
papel e o eu factual.
Não obstante, a formação dessa identidade narrativa de Bernardo Soares, ainda que
seja um processo que se desenvolva relacionado com a ideia de intriga dentro de uma
narrativa e com o devir da personagem envolvida nessa intriga, se dá menos pela
apresentação de uma intriga que o mostra em relação consigo mesmo em distâncias
temporais, do que pelas próprias reflexões acerca do ele foi, é e, quem sabe, será.
Bernardo Soares é um “Poder saber pensar! Poder saber sentir!” (PESSOA, 1986, p. 157)
e representa “Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma”
(PESSOA, 1986, p. 157).
Bernardo Soares, então, coloca-se justamente dentro dessas relações e das relações
que a mesmidade e a ipseidade o colocam em relação com o próprio Fernando Pessoa e
com seus outros heterônimos. Mais uma vez, Ricouer oferece suporte para que se sustente
o texto, a escritura, como a base para a construção da identidade de Bernardo Soares
quando afirma que “(a) narrativa constrói a identidade do personagem, que podemos
chamar de identidade narrativa, construindo a da história relatada. É a identidade da
história que faz a identidade do personagem.” (RICOUER, 1991, p. 176).
49
Nesse sentido, é pela rede formada de fragmentos textuais que Bernardo Soares
passa a existir e ter uma identidade e ser considerado entre os outros tantos heterônimos
de Fernando Pessoa, ainda que essa construção não seja pelo relato de uma história, mas
pela construção rizomática de um indivíduo fragmentado, em que apenas pedaços de
quem ele é fazem parte de sua memória e de suas considerações diversas.
[...] listou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a
monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão a
monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem,
é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, nunca
houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade — a
identidade sentida, embora falsa, consigo mesma — pela qual tudo se
assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas
diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.
(PESSOA, 1986, p. 275)
50
série de reproduções do mesmo; e, ao mesmo tempo, realça o papel da ipseidade quando
relaciona elementos temporalmente distantes (como a mesquita , o templo e a igreja),
revelando sobre a mesmidade o caráter de mudança pela busca do novo e do
descobrimento, o que se dá somente no devir do tempo.
Pouco antes do fim que não finaliza, Bernardo Soares apresenta diversos
fragmentos que realçam a possibilidade de permanência pela literatura e como a literatura
cria uma outra vida: “Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de
ignorar a vida.” (PESSOA, 1986, p. 392); “Toda a literatura consiste num esforço para
tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é
absolutamente irreal na sua realidade direta;” (PESSOA, 1986, p. 396); “Mover-se é
viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se
51
descreveu bem.” (PESSOA, 1986, p. 398); “Se me disserem que é nulo o prazer de durar
depois de não existir, responderei, primeiro, que não sei se o é ou não, pois não sei a
verdade sobre a sobrevivência humana.” (PESSOA, 1986, p. 400); e “Para os valores
maiores não há moeda: são de papel e esse valor é sempre pouco.” (PESSOA, 1986, p.
401).
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
p.11-16.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.11-37.
MCCARTHY, Cormac. No Country For Old Men. UK: Vintage International, 2005.
52
MCCARTHY, Cormac. The Road. New York: Random House, 2007.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1986.
ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
53
SONOROSA DONA LÚCIA: CARTAS DE CECÍLIA MEIRELES A
LÚCIA MACHADO DE ALMEIDA1
Abstract: The present paper intends to research the correspondence of Cecília Meireles
to the writer Lúcia Machado de Almeida and focuses on the dialogical space in which it
is possible to observe the practice of the literary creation of Cecília Meireles as well as
the discourse about herself. The letters also enables the researcher to note a very important
trait in the literature of Cecília Meireles: the presence of the oriental philosophy (more
precisely the Indian philosophy) in the intellectual formation of the author and in her
literary production. Also, it is relevant to highlight the correspondence between Cecília
and Lúcia as empowerment of Cecília's voice in the context of the Brazilian Modernism.
For that, I use the theoretical concepts of Michel Foucalt about the author, the thought of
Marcos Antonio de Morais, Silviano Santiago and Eneida Maria de Sousa about
1
Mesa-redonda Espaços da escrita da intimidade.
2
Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
54
correspondence and the productions of Mario de Andrade about Brazilian Modernism.
The studies of Dilip Loundo are important in reference to the presence of India in the
literature of Cecília Meireles. The researched letters are unpublished and kept in the
Acervo de Escritores Mineiros (AEM), do Centro de Estudos Literários da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
Keywords: Cecília Meireles, correspondence, Lúcia Machado de Almeida, India,
Modernism.
A obra literária de Cecília Meireles é campo vasto, múltiplo, que tem grande
representatividade nas letras brasileiras. Os poemas, crônicas, escritos sobre educação, já
foram amplamente estudados por críticos de renome e acadêmicos de inúmeras
universidades do Brasil e de outras partes do mundo, especialmente, Portugal e Índia.
Dentre esta multiplicidade da obra de Cecília, há um traço que une, veicula versos
e prosa, mesmo que a temática seja da inconfidência mineira, de viagens, ou a tentativa
de entender isto e aquilo. Este traço, que Alfredo Bosi chama de “linha mestra”, e que
“percorre toda a obra de Cecília, de Viagem a Solombra, é precisamente o sentimento de
distância do eu-lírico em relação ao mundo” (BOSI, 2007, p. 13). Em consonância com
esta visão, as análises que se dedicam à obra da autora, não raro, se utilizam de adjetivos
como espiritual, profunda, metafísica, filosófica quando abordam o modo de construção
do discurso ceciliano escolhido para desenvolver múltiplas temáticas.
Como leitora de Cecília, fui inicialmente atraída para sua literatura devido aos
poemas sobre a Índia e as crônicas de viagem3. Porém, ao conhecer um pouco mais de
sua obra, percebo que esta “linha mestra” pode ser compreendida como a presença da
Índia (compreende-se a filosofia, cultura, mitologia e literatura indianas) na literatura de
Cecília Meireles como um todo e não apenas nos textos em que a temática é explicitada.
O professor Dilip Loundo corrobora e esclarece esta visão de maneira precisa:
3
Ver Poemas escritos na Índia e Crônicas de viagem, vol. 1, 2 e 3.
55
multidimensional da Índia, visível e explícita, em alguns momentos,
porém, mais amiúde, invisível e simbólica (LOUNDO, 2007, p. 129).
Dilip Loundo dedicou grande parte de suas pesquisas às relações Brasil e Índia,
especialmente, enfocando a poeta. Assim, contamos com um estudo de fôlego, bem
mapeado, no que tange a produção literária de Cecília e suas possíveis leituras com base
no pensamento indiano.
Ao ter contato com este vasto conjunto de cartas5, para além da incursão sobre os
contatos pessoais que Cecília manteve na Índia, interessaram-me alguns traços que
aparecem em suas missivas, com especial enfoque aos rastros da formação intelectual da
4
As cartas pesquisadas se encontram no Acervo de Escritores Mineiros (AEM – CEL), da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
5
O acervo abriga a correspondência passiva de Cecília Meireles para Lúcia Machado de Almeida.
56
poeta com relação ao pensamento indiano e mesmo as vivências relacionadas à Índia ou
no próprio país.
Dos traços que considerei relevantes sobre o conjunto analisado, ressalto alguns
tópicos em subtemas para melhor abordar este universo amplo que revela, para além de
uma verdade histórica, local e particular (DIAZ, 2002, p. 51)6, uma pessoa construindo-
se a partir do discurso que oferece ao destinatário: “a carta é uma ‘abertura que alguém
oferece a outro sobre si mesmo’” (FOUCAULT apud DIAZ, 2000, p. 50)7.
CECÍLIA E O MODERNISMO
Em 02 de março de 1949, Cecília escreve uma longa carta a Lúcia, em que retoma
o diálogo após um período de intenso trabalho. Nesta carta, Cecília atualiza a amiga de
uma festa que participou na embaixada (provavelmente da Índia), em que uma artista
apresenta uma dança tradicional indiana. Após minuciosa descrição do figurino e dos
movimentos, ela comenta, quase em tom de desabafo:
6
Tradução nossa.
7
Tradução nossa.
8
Carta de 02 de março de 1949 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG.
9
Ibidem.
57
panorama e, levando-se em conta as pontuações feitas sobre a obra de Cecília (que traz a
marca da “distância do mundo”), poderia parecer conflituosa a filiação da autora no
Modernismo. Há estudiosos que preferem tratá-la como moderna e não modernista; o que
gera frutífera reflexão, plausível de aprofundamento futuro.
Dilip Loundo nos mostra que este diálogo, da autora com a filosofia indiana, deu-
se, principalmente, por meio das leituras dos Upanishads (textos de base para a filosofia
e religião hinduístas):
58
É interessante notar que, mesmo ressoando as vozes “modernas” da época, Cecília
se coloca em posição um pouco diferenciada, na maneira que compreende o próprio
momento do qual faz parte. Este contraponto pode ser enfatizado se analisarmos um
trecho da carta enviada por Mário de Andrade a Otávio Dias Leite, em 29 de outubro de
1936: “comprei mais trabalho, luta danada e completo desassossego. Mas pra meu espírito
vale mais lançar uma biblioteca popular ou fazer uma pesquisa etnográfica do que
escrever uma obra-prima. E trabalho entusiasmadíssimo” (ANDRADE, 2005, p. 75).
Mário, pelo que podemos compreender de sua declaração, considerava o efeito social um
balizador de valor para as ações. Fundar uma biblioteca popular parece ser mais
significativo do que escrever uma obra prima. Há uma comparação entre instâncias que
podem se apresentar em campos distintos de ocorrência. Daí que a obra de arte, para
Mário de Andrade, devia engajar-se com um aspecto de transformação social. Já Cecília
não demonstrava ter esta expectativa com relação ao seu próprio fazer literário. Há uma
condição de alheamento e ausência (BOSI, 2007, p. 14) no modo de construção da autora,
que se utiliza da memória, do lembrar, como matéria literária. Entretanto, este alheamento
não é vazio, é o modo de existência de sua poética, que pode ser contundente para a
sociedade, por um viés que, por vezes, está ao revés do pensamento andradiano.
CECÍLIA E LÚCIA
Outro aspecto relevante encontrado nas cartas de Cecília a Lúcia é uma troca em
que o traço feminino delineia e, por vezes, molda o discurso. Na carta, anteriormente
citada, de 02 de março de 1949, Cecília, antes de revelar sua opinião sobre o Modernismo,
descreve com riqueza de detalhes a dança indiana:
10
Carta de 01 de outubro de 1945 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
59
Fiquei de contar-lhe a festa da embaixada. Foi muito interessante, mas,
talvez, por já estar familiarizada com os costumes, a mim, não me
causou grande impressão.
[...]
A roupa de dança compunha-se de umas calças compridas, mais ou
menos ajustadas ao corpo, mas sem serem colantes, e unidas as duas
pernas, na frente, por um plissado, que funciona mais ou menos como
um fole. Uma blusinha idêntica a dos sáris, isto é, justa ao corpo e aos
braços, e sem chegar até a cintura, que fica descoberta entre ela e as
calças. Tudo era de uma belíssima seda azul turquesa, entretecida de
ouro, formando aqui e ali desenhos de ouro, como nos tecidos
adamascados. A dança era descritiva e mística representando a paixão
espiritual de uma princesa pelo deus Krishna. A bailarina adornou a
cabeça e as orelhas com muitas coisas bonitas, recamadas de pérolas;
trazia um cinto de ouro com um grande pendente tecido em ouro
formando arabescos complicados e caindo na parte da frente como um
minúsculo avental. Colares, pulseiras, e, nos tornozelos, os clássicos
guisos que, neste caso, eram em torno de 200. A função dos guisos é
muito interessante: formam um acompanhamento que depende da
expressão que se queira dar, marcam o ritmo, são como os aros dos
pandeiros, ora tintinando levemente, ora acentuando com fôrça uma
pausa ou transição de movimento. Quanto a esses movimentos, cada
um quer dizer uma coisa (pelo menos nessas danças que vimos). Assim,
a posição dos dedos, das mãos, o deslocamento do pescoço (sem nada
de ridículo nem horrível), a elevação das sobrancelhas, os gestos dos
braços, e das pernas (se assim se pode dizer) tudo funciona como um
alfabeto. Há abelhas, pavões, chuva, sol, lua, rio, ondas, flores, desejo,
amor... – deve ser uma felicidade poder dançar – se desse modo 11.
Colares, pulseiras, pérolas, tecido em ouro, plissado, guisos, belíssima seda azul
turquesa, blusinha, calça. Esses termos, além de darem um caráter descritivo à escrita
deste longo parágrafo, revela-nos este traço de uma conversa “feminina”, num sentido
construído, socialmente, de que assuntos domésticos e de adornos externos, se assim
podemos chamar, o interesse por roupas, enfeites, tecidos etc., interessam às mulheres.
Até os dias atuais, com uma complexidade maior nos níveis dessas divisões, podemos
observar, em bancas de revistas e livrarias, uma divisão temática clara nos assuntos
“femininos” e “masculinos”. Nesta passagem da carta de Cecília, parece haver um acordo
implícito, sob o qual o discurso se constrói. Um acordo que norteia a escolha do assunto
e o modo como dizê-lo: “Fiquei de contar-lhe a festa da embaixada”. Esta informalidade
e a utilização de uma retomada em assunto anterior (“fiquei de contar-lhe”) é a chave para
uma troca íntima, em que o sujeito se expõe, não, necessariamente, por meio de assuntos
particulares, mas por meio de uma confiança implícita de interesse mútuo pelo assunto.
Esta troca tem um lugar específico, bem demarcado na correspondência de Cecília a
11
Carta de 02 de março de 1949 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG.
60
Lúcia. É possível, entretanto, dado o caráter do “pacto feminino”, que uma descrição
como esta termine e seja sucedida de uma crítica mordaz ao Modernismo, como referido
previamente, assunto que amplia o espectro de interesse e diversifica a temática da carta.
Podemos identificar um espaço especial da correspondência para temas mais versados ao
cotidiano das duas mulheres.
1ª receita
5 colheres, das de servir arroz, de farinha de trigo e 1 de maisena
peneirada com 2 colheres, das de sopa, de fermento, e 1 colher, das de
chá, de sal. Faz-se uma cova na farinha, e aí se deitam 2 ovos inteiros,
2 colheres, das de sopa, bem cheios de manteiga, e 1 colher, também de
sopa, de açúcar. (Enquanto V. arruma a mesa do chá, os pãezinhos
ficam prontos) 12.
O trecho entre parênteses é significativo da cumplicidade e de um pacto de
compreensão mútua do papel desempenhado na casa: “enquanto você arruma a mesa”,
tem implícita a voz da própria interlocutora que, possivelmente, desempenha esta função.
Os parênteses abrem um espaço de compartilhar a experiência que a própria Cecília pode
ter experimentado e, por isso, sabe que os pães ficam prontos durante aquele tempo. Neste
sentido, temos um texto íntimo.
12 Carta de 31 de julho de 1947 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG
61
que a autora traduz pode ser considerada menor (neste caso a tradutora justifica-se a si
mesma). Ao que parece, longe de concordar com esta visão, especialmente por ser uma
mulher intelectual, Cecília tem clareza dos espaços de atuação e da condição das mulheres
em meados do século XX. Ela demonstra, por meio das cartas, transitar bem entre esses
universos (doméstico e intelectual / feminino e masculino) que, à época, traziam
separações mais estanques.
CECÍLIA E A ÍNDIA
Na carta de 1953, Cecília expressa à amiga que não há palavras para descrever sua
vivência naquele país. A carta, que pode ser considerada um bilhete (como a própria
interlocutora diz, “um pensamento amigo”), pela sua extensão, é escrita de Bangalore e a
autora a inicia explicando a dificuldade de escrever entre tantas viagens pelo país e, então,
expõe suas impressões:
13
Carta de 02 de setembro de 1948 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
62
(Isto nem chega a ser carta: é só um pensamento amigo)14.
Analisando as duas cartas que Cecília fala diretamente da Índia, observo que há
uma coerência com relação ao que foi lido e experimentado. Desde a carta de 02 de março
de 1949, quando ela descreve a dançarina e a dança, com profusão de detalhes, ela se
utiliza de notório conhecimento prévio sobre o assunto. Por exemplo, quando comenta
que os movimentos são como um alfabeto, simbolizando abelhas, pavões, chuva, sol etc.,
ela mesma deixa claro este conhecimento ao comentar o espetáculo: “por já estar
familiarizada com os costumes, a mim, não me causou grande impressão” 15. Ao visitar
o país, também se utiliza das leituras como garantia de familiaridade e desenvoltura,
repetindo: “Eu não me espanto muito porque já sabia de tudo isto por leitura”; mas deixa
transparecer certa estupefação: “A Índia é um espetáculo fabuloso”.
Neste contexto, foi-me motivador encontrar, para além dos traços explícitos, os
traços simbólicos da Índia, ou melhor, do pensamento indiano, nas cartas à amiga Lúcia.
Em carta de 02 de setembro de 1948, Cecília dedica grande parte das notícias ao
Romanceiro da Inconfidência:
14
Carta de 14 de fevereiro de 1953 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
15 Carta de 02 de março de 1949 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG
.
63
se não é como lhe digo. O Alvarenga. Pensando bem, é um miserável
tão miserável que não se pode deixar de ter uma pena infinita. Lúcia,
por que eu não tenho mais tempo para poder fazer essas coisas que me
apaixonam? Essa história da Inconfidência tem sobre mim um tal
poder, vejo tantas coisas nela, através dela, em redor dela, como
consequência dela, por ela, para ela, sem ela, que até parece que fui
inconfidente. É bem possível que tenha sido, pelo menos algum
moleque portador de recados, escrevo de um dos coronéis ou de um dos
padres [...] 16.
Na declaração sobre o impacto que a história da inconfidência tem sobre a autora,
podendo ter sido, ela mesma, uma inconfidente, escapa pelo discurso uma naturalidade
ao mencionar a reencarnação, tema desveladamente complexo em nossa formação
colonial católica. Leio estas linhas como uma marca no discurso de Cecília, que se deve
à bagagem de leituras de textos de filosofia e religião orientais, especialmente, de origem
indiana, em que a reencarnação é um ponto indiscutível. Com isto, não pretendo me
posicionar quanto à “verdade” da afirmativa de Cecília. Pela construção de um crescente
envolvimento com a Inconfidência: “vejo tantas coisas nela”, “através”, “em redor”,
“como consequência” que, ter nascido inconfidente é a culminância da construção desta
imagem (poética?) de completa absorção.
Para finalizar este ensaio, transcrevo as palavras da própria Cecília em carta a Lúcia
por considerar que, por meio deste trecho, Cecília sintetiza tanto a vertente de criação de
16
Carta de 02 de setembro de 1948 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
17
“[...] Ora, acontece que esses deuses pagãos, são uns grandes malandros, que troçam a valer tanto dos
católicos como dos livres pensadores: e sabe o que nos mandaram das entranhas do mar, amarrado em papel
e barbante, como se fossem anzol e isca? Pois o meu livro: o próprio “Mar absoluto”, que é tão relativo,
coitadinho, mesmo sem Einstein. Então, a Sereia e eu pensamos (já que ambas somos mulheres, e temos
maneiras complicadas de interpretar...)”. Carta de 01 de outubro de 1945 a Lúcia Machado de Almeida.
Acervo de Escritores Mineiros da UFMG.
64
sua poética (mística e lírica), apontando para o traço indiano em sua literatura, quando
para a afirmação de sua voz no árido contexto do modernismo para as mulheres, bem
como a confirmação de uma poética dissonante do seu contexto de produção, a saber, o
Modernismo: “e afinal vamos fundar a Confraria da Sereia, que não será uma Nossa
Ordem Social ou Política, mas uma Nossa Ordem Lírica e Mística”18.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Cecília e a Poesia. In: O empalhador de passarinho. 3ª ed. São Paulo:
Livraria Martins Editora, 1972 (p. 71-76).
______. Viagem. In: O empalhador de passarinho. 3ª ed. São Paulo, Livraria Martins Editora,
1972 (p. 60-64).
______. Mário, Otávio – Cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2005, Edição de Marcos Antonio de Moraes.
BOSI, Alfredo. Em torno da poesia de Cecília Meireles. In: GOUVÊA, Leila V. B. (org.).
Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007 (p. 13-32).
DIAZ, Brigitte. L’epistolaire ou la pensée nomade. Paris: Puf, 2002 (p. 51).
______. Poemas escritos na Índia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962.
18
Carta de 8 de setembro de 1945 a Lúcia Machado de Almeida. Acervo de Escritores Mineiros da
UFMG.
65
NO PALCO DAS MEMÓRIAS: OS PROCESSOS DE AUTO/ALTER
SUBJETIVAÇÃO NA ESCRITA DE JORGE AMADO E ZÉLIA
GATTAI1
1
Mesa-redonda A representação literária e os museus da memória.
2
Doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Professora Assistente da
Universidade Estadual da Bahia (UNEB).
66
Abstract: Through the art of memory, the subjects of biofictional writings have infused
drama on the existence of others and their own, in other words, brings life to the scene,
bringing it to light to the reader. In this process, they excercise the anamnesis - word
coming from the Greek that, according to Aristotelian acceptance, means remembering
as a result of the active search or effort of recalling. From mnémé - greek term refering
to memory as affection, simple evocation, passive and espontaneous apparition of the
recalled - to the anamnésis, i.e., to the recollection as reflected memory. The biofictional
writings built through the obliquity of memories are configured as an act of performance
that implies dramatization resulting of language skills on the creation of
(self)biographical profiles. It is through that perspective that the memories of Jorge
Amado and Zélia Gattai are conceived, as acts of scriptural performances that bring to
light processes of self\alter subjectivity. The books studied in this work - O menino
grapiúna and Um chapéu para viagem - fulfill the double function of aproximating
"memory as action" to "memory as representation", definitions coined by Ulpiano
Bezerra de Menezes (2007). In this sense, perceived an opportunity to celebrate life,
celebrate the event(s) of birth and career of Jorge Amado in a self/alter contemplation
process, as they promote interpretations of one's life by representing themselves and/or
the other. Objective is thus to reflect on the performative rituals of construction of writing
for oneself and for others mentioned in the works, considering multiple glances. Besides
this aspect, it is interesting to analyze how the authors lend meaning to living matter,
building the characters themselves and the supporting characters represented in writing,
and to what extent the (self) biographical report moves from the real to the fictional. The
questions posed will be examined by conducting a literature review, from which are taken
as a starting point readings Arfuch Leonor (2010), Eneida Maria de Souza (2011), Diana
Klinger (2012) and Eurydice Figueiredo (2013).
Keywords: biofiction, (self)biographic memories, self/alter subjectivity, performance.
67
bioficcionais construídas pelo viés das memórias configuram-se, assim, como ato de
performance que implica dramatização resultante de artifícios de linguagem para a
construção de perfis (auto)biográficos3. É por essa perspectiva que se concebem as
memórias de Jorge Amado e Zélia Gattai como atos de performance escritural que põem
em cena processos de auto/alter subjetivação. Os livros reunidos neste estudo – O menino
grapiúna e Um chapéu para viagem – cumprem a dupla função de aproximar a “memória
como ação” da “memória como representação”, denominações cunhadas por Ulpiano
Bezerra de Menezes (2007). Nesse sentido, vislumbram o ensejo de celebrar a vida,
comemorar o(s) aniversário(s) de nascimento e carreira de Jorge Amado num processo
de auto/alter contemplação, à medida que promovem interpretações sobre uma vida
mediante representação de si ou do outro.
3
Adverte-se que toda vez que for grafado o termo (auto)biográfico – em qualquer variação de gênero e
número – se está referindo à escrita de si ou do outro. Isto porque as obras de Jorge Amado e Zélia Gattai
apresentam variação de foco. O menino grapiúna constitui-se como relato de vida do próprio sujeito que
se narra, ao passo que em Um chapéu para viagem a narradora desloca o olhar de si para o outro biografado,
promovendo a imagem de Jorge Amado por meio de processos de alter-representação e altercelebração.
4
Denominação tomada de empréstimo a Henry Bergson (2001).
68
palavras de Klinger, como ocorre no palco teatral, o que se vê é a dramatização de “um
sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem” (KLINGER,
2012, p. 49, grifo nosso). Se de um lado a escrita (auto)biográfica reserva o caráter de
referencialidade e remete para um ser real que está fora do texto, por outro, o ser
biografado passa a constituir-se um ser de linguagem. Sendo assim, a escrita de si e do
outro deve ser entendida enquanto bioficção e, como o nome já indica, enquanto ficção
de uma vida. No entendimento de Antonella Rita Roscilli (2011, p.60), “a biografia
narrada através das trajetórias de vida poderia ser vista como espaço ficcional, a partir do
qual lembrar e contar são sempre (re)organizar e (re)construir uma identidade narrativa”.
A par disso, postula-se que, se tratando dos relatos (auto)biográficos de Zélia Gattai e
Jorge Amado, tem-se uma performance de escrita que está no entre-lugar, entre a ficção
e o real, e que, portanto, engendra o ser de papel e o ser de carne e osso que se quer
performar. Nesse sentido, corroborando e, ao mesmo tempo, suplementando as
considerações de Roscilli (2011), argumenta-se que o relato (auto)biográfico assume o
caráter de autoinvenção – ou de alterinvenção, conforme o olhar que se lança sobre o
sujeito biografado e biografável –, pois não (apenas) representa o autor – ou o ser a quem
o relato se destina –, mas (sobretudo) o produz. É por esse viés que será procedido o
estudo de Anarquistas, graças a Deus e O menino grapiúna.
Com relação a Um chapéu para viagem, vale destacar que, embora a narrativa
assuma o veio testemunhal e biográfico, através do qual o real se insinua, deixando à
mostra as relações familiares, de amizade e profissionais de Jorge Amado, não se pode
perder de vista o fato de que, por meio da memória refletida e do labor de reconstrução,
a narradora-escritora apreende momentos e episódios significativos da matéria do vivido
para compor a imagem que quer ver representada para o Amado Jorge.
69
construção da biografia de seu Amado marido), a escritora acaba reforçando alguns mitos
que giram em torno da figura de Jorge Amado. Assim, a autora reafirma a imagem do
“herói popular”, um herói que resgata aspectos culturais da vida do povo em suas obras,
garantindo que estas sejam veiculadas em plena ditadura do Estado Novo; um “herói”,
cujo prestígio como escritor o levou a ocupar uma cadeira no Congresso Nacional na
qualidade de Deputado Federal. Fica evidente também, na construção do perfil do
biografado, a imagem do homem que dedicou a vida à família e ao trabalho, a imagem de
um marido dedicado e de um escritor incansável, o que vem a corroborar as imagens
veiculadas pela mídia acerca do escritor baiano. Nesse sentido, percebe-se que os relatos
de Zélia Gattai buscam positivar a imagem de Amado. Eis o valor predominantemente
celebrativo presente em Um Chapéu para a viagem.
70
e comícios, e que, tamanha a sua popularidade como escritor, foi eleito, com votação
expressiva, a Deputado Federal pelo PCB.
71
do herói ‘honrado e bom’, centrado na vida familiar ou pessoal e no desejo de felicidade”
(ARFUCH, 2010, p. 196) e justiça social.
72
Passei a ser uma personalidade, segundo os cânones do colégio [...]. Fui
admitido numa espécie de Círculo literário onde brilhavam alunos mais
velhos. (AMADO, 2006, p. 127-128).
Nesse sentido, a obra se aproxima da autobiografia canônica que, segundo enfatiza
Leonor Arfuch, “supõe um propósito, um projeto de autocriação através da linguagem”
(ARFUCH, 2010, p. 193). Reside aí a estratégia e o desejo de permanência, a luta
simbólica contra o esquecimento. Como se sabe, quando a obra vem a lume, o escritor
está completando setenta anos de vida, estando, portanto, na terceira idade. Acredita-se,
deste modo, que a encenação da vida por intermédio das memórias autobiográficas é uma
maneira de superar a mortalidade, transcender o declínio dos dias. “Contar a (própria)
história se transformará também, aqui, irremediavelmente, em experiência do tempo e
pugna contra a morte, uma espécie de antecipação aos possíveis relatos dos outros, uma
disputa da voz, em resistência a toda expropriação futura” (ARFUCH, 2010, p. 193).
“Assim, faz-se provisão de lembranças para os dias vindouros, para o tempo dedicado às
lembranças...” (RICOEUR, 2007, p. 56). Nesse caso, o esforço de memória pode ser
entendido como uma forma de vencer as barreiras do tempo e lutar contra o esquecimento
social. Caminhando nessa direção, as memórias de O menino grapiúna recobram “‘o
saldo das miudezas de uma vida bem vivida’, mas que o autor deseja que não se percam,
pois insiste em contá-las, ou seja, torná-las públicas, ir ao encontro do leitor” (SILVA,
2006, p. 16). Esta é uma análise empreendida por Odalice de Castro Silva em relação aos
autorrelatos de Navegação de Cabotagem, mas que se aplicam também ao primeiro livro
de memórias. Conforme entendimento da pesquisadora:
73
uma ação contra a própria morte que não o deixará no esquecimento
(SILVA, 2006, p. 25).
Tal empreendimento vai de encontro à declaração do autor registrada no segundo
livro de memórias, Navegação de Cabotagem: “Não quero erguer um monumento nem
posar para a História cavalgando a glória. Que glória?” (AMADO, 1992, p. IV). As
memórias evocadas em O menino grapiúna contradizem essas palavras, pois trazem à
cena da escritura o relato do período de formação intelectual, das experiências de leitura
que contribuíram para torná-lo um escritor e os temas recorrentes em suas obras. Cita-se
aqui o seguinte fragmento:
74
Tanto em Anarquistas, graças a Deus quanto em O menino grapiúna pode-se
acompanhar o registro de “fenômenos mnemônicos ligados à comemoração” (RICOEUR,
2007, p. 60). Seguindo nessa direção, Gattai e Amado põem no palco das memórias a
“recordação-ação”, e, assim, perfis identitários são recriados por meio de processos de
auto/alter subjetivação. Em meio ao exercício de escrita dos referidos autores, pode-se
apreender o papel idealizado da (auto)biografia como espaço de memória e como forma
de consagração do escritor – neste caso, Jorge Amado, o qual ocupa o centro da cena em
ambas as escrituras. Confirma-se, desse modo, o caráter performático da construção
narrativa nas obras aqui apresentadas.
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Navegações de cabotagem: anotações para um livro de memória que jamais
escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1992.
______. O menino grapiúna. 24ª ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2006.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução
de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GATTAI, Zélia. Um chapéu para viagem. 16ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. 2ª
ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
LIMA, Maria Raquel Passos. Tradução de menino ou Jorge Amado grapiúna: uma análise
antropológica sobre memória e subjetividade. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE
ANTROPOLOGIA, 26., Porto Seguro. Anais... . Porto Seguro: Associação Brasileira de
Antropologia, 2008. Disponível em: <
http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/
GT%2033/maria%20raquel%20passos%20lima.pdf >. Acesso em: 25 out. 2013
75
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. Os paradoxos da memória. In: MIRANDA, Danilo Santos de.
A importância da formação cultural humana. São Paulo: SESC, 2007.
RAMOS, Ana Rosa. Zélia Gattai: a transformação da intimidade. In: Seminário Zélia Gatai:
Gênero e Memória. Apresentação Myriam Fraga. Salvador: FCJA; Museu Carlos Costa Pinto,
2002.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François et. al.
Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2007.
SILVA, Maria Cleonice Fantinati da. Navegação de cabotagem: o mosaico das memórias de
Jorge Amado. 2012. 96 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Estudos de Linguagem,
Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá/mt, 2012. Disponível em:
<http://www1.ufmt.br/ufmt/unidade/userfiles/publicacoes/eed950fc22909925b86d17e0ad57b87
8.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2018.
SILVA, Odalice de Castro. Lembrar e esquecer em O menino grapiúna. In: FIÙZA, Regina
Pamploa (Org.). Panorama literário: Academia cearense de letras. Fortaleza: Expressão Gráfica,
2006.
SOUZA, Eneida Maria. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.
76
UMWELT, PROCESSOS CRIATIVOS HÍBRIDOS1
André Arieta2
Abstract: Study of the creative relationship between the director and the actors of
experimental theater group in Porto Alegre, Falos & Stercus, the construction of spectacle
Hybris (to the start of the rehearsals at the last show of the season in November 2010),
accompanying the transition between theatrical practices, since a room of 40 square
meters in the Psychiatric Hospital St. Peter (public mental hospital where there is a space
for theater groups) at the performances of the play in an abandoned four-floors building,
from a process of cinematographic creation, in that the idea is to make a film that relates
1
Mesa-redonda Subjetividades e experiências interartes.
2
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vinculado à
Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó).
77
the reciprocal influences between casting and direction on how troupe autonomous
relational and artistic events, and end up interfering in filmmaking. For both were filmed
and studied: the training of actors in rehearsals, interviews with the director, a vocal
coach, the designer and the cast, addressing his artwork and personal issues of each
involved in these creative processes of theater and cinema. Yet been registered and two
other narrative axes present in the daily researcher/ filmmaker, who dealt with the
academic context that influences the research and its practical outcomes (classes,
meetings with the guidance counselor, seminars, conversations with colleagues at the
university, in bars, etc.) and another that addressed their personal lives, through
recordings of intimate moments, in that his creative process is a result of their
experiences, not only of academic research and essay film that is performing. Imagery
reflection on recording images of these three narrative axes, each with a specific aesthetic
approach, and the possibilities for edition and finalization of picture and sound of this
film essay, from their structural characteristics, and the relationship between references
and biographical experiences (director and cast of the play) and autobiographical
(investigator/ director). How to build a relationship between these creative processes, film
and theater, with the 80 hours of rough cut.
Keywords: actor; author; direction; creative processes; Falos & Stercus; film;
documentary.
O presente artigo trata da relação entre dois processos criativos, um teatral, outro
cinematográfico, através de um documentário que estou realizando e que se encontra na
etapa de montagem. Este tema começou como objeto de estudo de meu mestrado em
Artes Cênicas, realizado entre 2009 e 2011, no Departamento de Arte Dramática (DAD)
da UFRGS. Foram acompanhados todos os ensaios, de março a novembro de 2010, e a
primeira temporada do espetáculo Hybris3, do grupo gaúcho de teatro Falos & Stercus,
em dezembro de 2010.
O nome desse texto surge do conceito de Umwelt4, do biólogo Jacob Von Uexkull,
que fala da reciprocidade na construção da identidade individual, o DNA animal forjado
no meio e vice-versa. A criação artística é uma impressão digital que nasceu na influência
de seu ambiente, assim, cada ser humano tem um processo criativo intrínseco e único
construído ao seu redor. Esta identidade pessoal, esta noção de si no outro e no espaço
3
Definição apresentada por Christine Greiner no seu livro O corpo (2006).
4
Teoria criada por Jacob Von Uexkull com colaboração de Thomas A. Sebeok, a partir do significado da
palavra em alemão: meio ambiente, mas que amplia bastante seu sentido, pois parte de um processo
comunicativo entre os seres vivos que compartilham o mesmo ambiente. Cada componente funcional de
um Umwelt tem um significado e por isso representa o organismo modelo do mundo, incluindo todos os
seus aspectos simbólicos para qualquer organismo em particular, isto é, pode ser fogo, comida, alimento,
abrigo, as ameaças potenciais, os pontos de referência, etc. Um organismo cria e reformula seu próprio
Umwelt quando ele interage com o mundo. Isto é chamado de círculo funcional. O biólogo belga e seu
colaborador afirmam que a mente e o mundo são inseparáveis, porque é ela que interpreta o mundo para o
organismo, logo o Umwelt dos diferentes organismos decorre da individualidade e da singularidade da
história de cada ser vivo.
78
vivo, pode ou não se transformar em arte através do corpo do artista. Todo ser vivo
carrega consigo uma autoria ancestral e apreendida: única. O indivíduo não se diferencia
do seu ambiente, forma e é formado por ele dentro do universo de cada espécie, através
de uma análise do mundo sensorial. Entre as diferentes espécies existe uma progressão
de complexidade. Ocorre subjetivismo na adaptação na medida em que cada uma delas
constrói seu mundo e é construída por ele. Existe uma criação artística neste processo,
ainda que não intencional.
É importante salientar que o grupo Falos & Stercus foi escolhido porque tem um
trabalho bastante experimental e provocador, com uma trajetória polêmica de 20 anos,
mas de grande sucesso na cidade de Porto Alegre, em outros estados e também fora do
Brasil.
1. O DOCUMENTÁRIO
80
testemunhar a vida dos outros quando eles parecem pertencer ao mesmo mundo histórico
a que pertencemos.” (NICHOLS, 2005, p.18).
Porém é importante esclarecer que se trata sempre de uma ficção5 uma interpretação
do real que expressa o que o documentarista tem a dizer, como escreve o autor a respeito
do documentário: “Ele não é uma reprodução da realidade, é uma representação do mundo
em que vivemos. Representa uma determinada visão de mundo.” (NICHOLS, 2005, p.
47).
Uma vez postas as diretrizes tecnológicas, ou seja, um filme documentário que será
feito em vídeo, preciso dizer que a questão não é aprofundar este assunto, mas apenas
deixar mais clara a opção pelo cinema (apesar do suporte, pois se trata de um filme) no
presente trabalho, pois como diz Philipe Dubois:
5
Tanto o filme de ficção quanto o documentário, por serem ficcionais, utilizam as ferramentas do outro.
Assim, existem documentários com cenários e atores, como as dramatizações presentes em várias
produções do gênero, e filmes de ficção sem cenários ou atores profissionais, como o neorrealismo italiano,
mas estas são exceções, e como tal não serão levadas em conta no presente trabalho.
81
Quais são as diretrizes estéticas e narrativas, quanto ao registro das imagens e à
interação entre o diretor e as pessoas registradas durante as filmagens? Bill Nichols
(2005) divide o documentário em diferentes modos (poético, expositivo, observativo,
participativo, reflexivo e performático), a partir das diferentes expressões de uma tradição
documental que remonta há um século. No presente caso, trata-se de um filme realizado
através de combinações dos modos observativo, participativo e performático, que vão dar
origem a um documentário poético.
6
Planejamento técnico da forma de filmar: o tipo de plano a ser utilizado, o ângulo e o movimento da
câmera, a definição da lente, os atores e o cenário que estarão sendo filmados, etc.
82
mestrado, das reuniões com a orientadora, de seminários e até conversas no bar próximo
ao Departamento de Arte Dramática.
Conforme será explicado na próxima seção, comecei a gravar esse ambiente para
me familiarizar com a linguagem da câmera que utilizei, mas as imagens ficaram
interessantes e ele foi incorporado ao filme. Neste caso, a relação documentarista/atores
sociais foi extremamente participativa por dois motivos: o primeiro foi um misto de
curiosidade e cuidado com a própria imagem por parte dos colegas e professores. Quando
disse que iria gravar o cotidiano do curso de mestrado, fui questionado a respeito dos
meus motivos, de como suas imagens seriam registradas e com que intenções. Conversei
muito com todos a este respeito, procurei ouvir bastante para não retratar ninguém de uma
maneira diferente daquela que eu havia anunciado. E o segundo porque, como o filme
fazia parte do meu trabalho de mestrado, estava constantemente falando sobre ele com
todos os colegas e professores, em conversas informais, mas principalmente, em sala de
aula, em apresentações do projeto em diversas cadeiras. Além de exibir trechos do filme,
ouvia muitas opiniões, especialmente da minha orientadora.
O último modo que vai ser utilizado nas gravações é o performático, onde o diretor
e as suas circunstâncias e angústias aparecem diretamente no documentário, na medida
em que o realizador se coloca em ambientes íntimos, revelando elementos de sua
personalidade e exercita experiências subjetivas com a própria identidade. Será utilizado
na gravação das cenas da vida pessoal do diretor.
E por fim, o uso destes modos diferentes e até opostos, em um mesmo filme, desloca
intenções mais práticas, caracterizando, assim, o modo poético. Não existe um ponto de
chegada definido, apenas um desejo criativo indefinido, no sentido de ser construído mais
por afeto do que por objetivos, apresentando certa descontinuidade espaço/temporal, com
muita subjetividade e até incoerência, onde as dúvidas dão uma moldura poética a estas
diferentes combinações de modos narrativos.
1.2 VOZ
Todo documentário tem uma voz, muitas vezes subjetiva e multifacetada, mas, na
maioria das vezes, objetiva e explicativa. Ela não é exatamente, ou somente, uma narração
em off, ou a voz dos depoimentos ou do diretor. É a costura retórica que se expressa
através dos desejos da direção em todos os elementos presentes no filme: som, montagem,
83
fotografia. Não deixa de ser a mise en scène, mas é algo a mais também, neste caso, é um
discurso artístico sem objetivos definidos. Ela congrega o documentário em si, as pessoas
retratadas, o diretor e o público. Fala de dois elementos: a direção e os atores sociais,
normalmente para um terceiro (muitas vezes o espectador faz parte da comunidade que
está sendo retratada, não constituindo assim um terceiro elemento), o espectador. O
realizador, representando a si mesmo ou a um grupo, causa ou comunidade, fala para um
tipo de espectador, de origem semelhante ou diversa da comunidade representada (no
sentido de re-apresentação, pessoas que aparecem e se expressam como são, mas de
acordo com o que pensa e sente o documentarista).
Bill Nichols então formulou diversas frases que enquadram a voz: “Eu falo deles
para vocês”, “Eu falo de nós para eles”, “Eu falo de nós para nós mesmos”, etc. As
sentenças são múltiplas, mas aquela que escolhi para definir os caminhos no presente
documentário é a seguinte: “Eu falo de nós para vocês”, pois meu registro do grupo é o
processo criativo de um artista que observa o processo de outros7, ou seja, existe uma
inclusão, um pertencimento a algo maior, a arte. Mais do que um distanciamento do tipo
eu, cineasta e pesquisador falo de um grupo de atores, o que seria “Eu falo deles para
vocês”, mais fria e distanciada, esta possibilidade foi descartada. “Vocês”, como último
vocábulo representando o público (em vez de “nós”), porque a intenção não é fazer um
filme de nicho, para iniciados, mas uma obra mais abrangente, que possa interessar
pessoas que não tenham nenhuma relação com a arte.
7
Entre o pesquisador e o cineasta, prevalece o segundo, e acredito que o cinema seja, acima de tudo, um
trabalho artístico.
8
O microfone Boom é cilíndrico e comprido, de grande sensibilidade. Tem como suporte uma haste que o
leva até a cena que está sendo gravada.
9
Para a etapa de pós-produção do documentário uma equipe passou a participar do projeto, nas áreas de
produção montagem e finalização de imagem e som.
84
deterei nesta questão) do equipamento; e a autonomia e solidão do realizador. Estas
decisões foram tomadas não apenas para facilitar a realização do filme (na medida em
que não existe verba para contratar outros profissionais), mas com o intuito de se
conseguir um resultado mais expressivo e sincero nas gravações, especialmente do eixo
narrativo que trata dos ensaios do grupo para o espetáculo Hybris10. Explico: o ambiente
de preparação dos atores é sempre muito reservado, porque muita coisa é experimentada,
eles expõem suas fragilidades, inseguranças, e dificuldades a todo momento. Uma equipe
técnica, mais tripé para a câmera, microfone com suporte, spot de iluminação, etc., é
quase um circo eletrônico num quarto de casal, o espaço íntimo do elenco seria invadido.
Existem diretores, como Robert Drew, que acreditam na invisibilidade da equipe, ou seja,
que com o tempo, na medida em que a presença do equipamento se torne uma rotina, a
tendência é que ele perca importância, no sentido de atrair a atenção ou inibir os atores.
Penso que este conceito é ingênuo, apesar de grandes filmes terem sido produzidos com
esta premissa11. Talvez esta argumentação sirva para a documentação audiovisual de
outras atividades, mas em se tratando de um ensaio de teatro, a câmera e os outros
equipamentos nunca deixam de ser corpos estranhos, pois a entrega dos atores é muito
grande, e muitas vezes agem de forma impulsiva e inconsciente, e o fato de saberem que
podem ter sua imagem capturada num destes momentos cria uma certa inibição12. Mesmo
trabalhando com uma câmera muito pequena e sem equipe ou outros acessórios, percebi
diversas vezes olhares furtivos para a lente. Existe ainda a possibilidade de que aqueles
que estão sendo retratados atuem para a câmera, tentando fazer uma interpretação de si
mesmos, ainda que seja um processo inconsciente, e em se tratando de atores, como é o
caso, esta possibilidade se multiplica em realimentação, pois como escreveu Bill
Nicholls: “O grau de mudança de comportamento e personalidade nas pessoas, durante a
10
Na busca de trabalhos similares ao meu, ou seja, filmes sobre processos criativos de grupos teatrais, me
deparei com muitas obras calcadas em imagens de espetáculos e depoimentos, como o filme sobre o teatro
Oficina, por exemplo. São raros os exemplos quando se trata do trabalho do ator, desde a sua chegada no
teatro até a volta para casa.
11
Como Primárias (1960), deste mesmo diretor. Ninguém age naturalmente se esta sendo filmado, ainda
que de forma inconsciente, os comportamentos são afetados, as pessoas procuram se preservar, ou o efeito
contrário, se tornam exibicionistas, de qualquer forma é um tipo de atuação. O cinema verdade, escola
documental que prega a neutralidade do realizador (durante as filmagens), é tão ficcional quanto um
Blockbuster.
12
No caso de Moscou, de Eduardo Coutinho, que poderia ser um trabalho similar ao documentário que
pretendo realizar, pois também acompanha o processo criativo de um grupo de teatro, existe uma diferença
fundamental, os atores estão com figurino, maquiados, a luz é preparada para a cena, etc., o filme parte de
uma estrutura ficcional (logo a inibição é menor), enquanto eu parto de uma observação mais realista, sem
adornos.
85
filmagem, pode introduzir um elemento de ficção no processo do documentário.” (2005,
p. 31).
Então, houve uma opção por diminuir a qualidade da captação de imagem e som
para que fosse obtida uma real intimidade com os atores. Assim, ambos foram captados
pela câmera Sony, que tem o formato, o tamanho e as lentes de uma câmera comum de
foto digital, uma imagem de menor definição se projetada em uma tela grande e um
microfone embutido de pouco alcance. Assumo estes “defeitos” de imagem e som como
elementos formadores da construção estética do filme.
O uso constante das palavras cinema e vídeo, muitas vezes na mesma frase, quando
me refiro a este trabalho, não é coincidência. É cada vez mais infrutífera, além de inócua,
esta tentativa de encontrar uma fronteira exata entre os dois suportes de imagem, pois
como diz Philipe Dubois: “A integração do vídeo no filme transforma radicalmente os
dados da linguagem cinematográfica, mas paradoxalmente, a perpetua.” (2004, p. 225).
13
Copolla e Godard falaram a respeito deste assunto, o primeiro sugeriu que o futuro do cinema vai
acontecer através de uma menina gordinha do meio oeste americano com sua câmera digital, já o mestre
francês disse que o cinema acabou, e que sua renovação só é possível através do amadorismo. São frases
retóricas, mas ao mesmo tempo significativas, em relação ao atual momento do audiovisual.
86
As imagens amadoras levam grande vantagem porque é justamente a sua natureza
tremida e borrada que dá credibilidade ao que está sendo visto. O fato de se perceber que
quem está usando a câmera não sabe operá-la muito bem é um atestado de verdade que é
dado ao público. O que ficou perceptível nas imagens realizadas durante as rebeliões dos
povos árabes. A câmera com alta definição, e utilizada com destreza pelo operador, não
tem a mesma contundência. É exatamente este o objetivo do presente documentário,
revelar a intimidade do processo criativo do grupo Falos & Stercus, do ambiente
acadêmico do PPGAC (Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas) e de alguns
momentos de minha vida pessoal. Hoje, a imagem precária é a essência do realismo
cinematográfico, e a questão do som é resolvida com legendas. O filme não perde nada
assumindo estas limitações técnicas, bem utilizadas e justificadas elas se constituem num
trunfo, na medida em que possibilitam uma aproximação e intimidade muito grande com
os atores.
O meu corpo como elemento estranho persiste, mas isto foi se resolvendo com o
tempo, apesar de não conhecer ninguém do grupo quando comecei a filmar, a não ser
Alexandre Vargas e Luciana Paz (os dois membros fundadores que deixaram o grupo
após o espetáculo), nunca me senti um invasor, pois ao mesmo tempo em que a trupe me
recebeu muito bem e me deu total liberdade, eu “pisei naquele chão devagarinho”, como
diria João Nogueira.
87
3. PROCESSO DE GRAVAÇÃO DAS IMAGENS
O segundo momento, ou seja, a outra maneira pela qual esta linha narrativa se
expressa, era utilizada durante os ensaios propriamente ditos. Como a minha abordagem
era mais realista, em função do objetivo de entender melhor o processo criativo do grupo
em todos os seus detalhes, nestas ocasiões som e imagem compunham a mesma narrativa.
Utilizava muito planos abertos para mostrar a energia criada no espaço entre os atores, e
a abrangência de seus movimentos. Quase sempre me colocava no mesmo lugar, num
canto perto de uma janela, para conseguir mais profundidade de campo através do ângulo
diagonal da câmera em relação à sala. Aos poucos fui sendo contaminado pelo espírito
da trupe, inserido no seu belo caos polifônico, e comecei a experimentar novos espaços,
88
ângulos e movimentos de câmera, mas sempre com a imagem e o som compondo o
mesmo discurso.
14
Ver a seção 1.1 Uso dos modos.
89
utilizar ângulos inusitados, sem mostrar exatamente o que estava acontecendo15, e
comecei a experimentá-los na gravação deste contexto acadêmico. Depois de assistir às
imagens percebi que desta maneira o registro imagético parecia um pouco descolado do
som, construindo um discurso duplo. Resolvi então continuar gravando este ambiente,
porque afinal de contas era ali que eu ia formulando, junto com a minha orientadora, os
caminhos da dissertação. Para tal decidi utilizar esta linha narrativa que acabei de
descrever, a fim de dar uma unidade às imagens. Comecei a ter um pouco mais de método,
nas gravações, no sentido de incorporar o enquadramento estranho e eventualmente
experimentar movimentos de câmera inusitados. Assim, a abordagem das imagens do
contexto acadêmico é parecida com a que mais tarde será empregada nos momentos
iniciais e finais dos ensaios do grupo16.
Este eixo narrativo, assim como o do contexto acadêmico, não estava previsto
quando surgiu a ideia de incorporar o documentário ao projeto de pesquisa. Comecei a
gravar coisas pessoais, porque estava continuamente com a câmera, e sempre tive este
costume, de capturar imagens de algumas coisas ao meu redor. São momentos íntimos,
mas não chegam a ser confessionais. Eventos e circunstâncias que tenham algum
significado ou apenas imagens interessantes que cruzam o meu caminho. Não é um
material exatamente cotidiano, ou ilustrativo, não mostro minha rotina, ou as pessoas que
convivem comigo. Sempre estou sozinho, no máximo com o meu cachorro. Existe um
ambiente de silêncio e repetição de lugares e imagens. Gravo, por exemplo, a vista da
janela do meu quarto ou uma rua próxima da minha, em vários dias e horários diferentes,
assim como o meu cão dormindo em sua cama, ou passeando nestes mesmos lugares.
Coisas banais e insignificantes, que vão adquirir (ou não) certa relevância estética na
montagem, junto aos outros dois eixos narrativos. Os planos, de um modo geral, assim
como os dos ensaios do Falos, são realistas no sentido de imagem e som contarem a
mesma história. A diferença maior talvez seja a movimentação. Para gravar os ensaios, a
não ser em ocasiões específicas, eu me movia pouco, até porque a circulação dos atores
15
Ver a seção 1.2. Voz.
16
Juntando, desta maneira, os modos observativo e participativo na mesma gravação. O primeiro era
exercido através da quase independência de uma câmera camuflada (no chão, nos cantos), discreta. O
segundo porque, nestes momentos, eu não me mantinha distante, silencioso, mas participava das conversas.
90
era intensa, mas nas imagens da vida pessoal não havia tanto movimento para ser gravado,
então eu me deslocava mais, quase sempre com a câmera na mão.
Outra questão importante desta seção são as caminhadas. Gravo meus passos com
a lente voltada para a direita ou à esquerda sempre num ângulo perpendicular à minha
marcha. Ou então eu coloco a câmera junto ao meu peito com a lente voltada para cima
e filmo meu rosto de baixo e o céu passando em segundo plano. Filmo muitas vezes
quando estou chegando em algum lugar, qualquer local serve. Depois percebi que estes
passeios gravados formam quase um quarto eixo narrativo independente, e talvez o
principal deles. Entre uma cena e outra, o elemento de ligação é a minha caminhada,
mesmo que seja uma metáfora meio rasteira: a minha jornada até a defesa da dissertação,
blá, blá, blá. Mas o fato é que nas primeiras experiências de montagem meus passos como
ligação entre as cenas funcionaram como narrativa e ritmo.
4. AGORA
Começou a haver um olhar crítico acerca das premissas estéticas citadas acima, não
no sentido de modificá-las, mas de torná-las eficazes, no sentido de servirem ao propósito
de construir um filme que dialogue com o público sem perder seu caráter experimental.
E este diálogo é muito rico, pois não existe um roteiro, apenas a progressão narrativa dos
ensaios (e tudo o que os envolveu, incluindo questões pessoais do elenco e da direção),
costurada com a minha vida pessoal e o contexto acadêmico que realimentou a minha
tese de mestrado e, consequentemente, o documentário que está sendo realizado. Está
17
Processo que já não faz parte do mestrado. Vou terminar o filme como cineasta, não mais como
pesquisador.
91
pronta uma primeira versão de 70 minutos, esboço que tenho assistido indefinidamente,
a fim de encontrar as imagens que faltam para completar esta trajetória errante.
Saravá!
REFERÊNCIAS
ALABARSE, Luciano. Alguns diretores e muita conversa. Porto Alegre: Secretaria Municipal
da Cultura, 2000.
BARBA, Eugenio & SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator. Dicionário de Antropologia
Teatral. São Paulo: Hucitec UNICAMP, 1995.
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas:
Editora da Unicamp, 2003.
GREINER, Christine. O corpo, pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Editora
Annablume, 2006.
______. Toward a biological theory of the body in performance. New theatre Quaterly, vol VI,
number 21, February, 1990. (tradução para fins didáticos de Leda Alcaraz Marocco).
SCHECHNER, Richard. El teatro ambientalista, Árbol editorial, Santa Cruz de Atoyac, 1988.
______. Performance: teoria y prácticas interculturales. Buenos Aires: Libros del Rojas, 2000.
______. Victor Turner´s last adventure. New York: Paj publication 1987.
93
NO FUNDO NEM TUDO É MEMÓRIA: MEMÓRIA, ESCRITURA E
INVENÇÃO1
Abstract: The contemporary Self has found various manners of inhabiting the
cinematographic writing in order to re-encounter and re-design the past. As the game
narrate – memory, writing and invention – indicates the presence of Benjamin's aesthetics
of Erfahrung? In film No fundo nem tudo é memória (Carlos Segundo, 2012) is know the
story of New Bridge, a town that was submerged with the construction of a dam. Former
residents try to rebuild the city's memory. The life of a submerged past is being remade
bit by bit in the language. For film analysis of this work, we will use the studies of David
Bordwell on the mise en scène.
Keywords: documentary, memory, mise en scène, narratives of the self.
INTRODUÇÃO
1
Mesa-redonda No compasso do homem comum.
2
Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
professora assistente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB).
94
Para o estudo das narrativas de si no documentário contemporâneo selecionamos
para este artigo o filme No fundo nem tudo é memória (Uberlândia, 2012), primeiro longa
metragem do diretor mineiro Carlos Segundo. O documentário conta a história de Nova
Ponte, uma cidade de Minas Gerais que foi submersa em 1993 com a construção de uma
barragem. Antigos moradores, através de suas recordações, tentam reconstruir a cidade
memória. Ruas, casas, amizades e costumes de um passado submerso aos poucos vão
sendo refeitos na linguagem. Um morador nos diz “o tempo tem pacto com a água”, e
assim, a cada depoimento vamos mergulhando na história de Nova Ponte através das
memórias, das invenções e da poesia dos diversos personagens de No fundo nem tudo é
memória.
3
Adotamos o termo bloco temático para demonstrarmos que a narrativa vai se metamorfoseando, no entanto
não há nenhuma marca expressiva adotada pelo diretor como um título para marcar as passagens entre
os temas.
95
Nas primeiras sequências, os depoimentos apresentam algumas descrições de Nova
Ponte: dimensão, localização, geografia, a igreja, a praça, o mapa da cidade. A partir do
terceiro bloco narrativo é iniciado um movimento de internalização das histórias.
Entramos nas casas de seus moradores, nas memórias sobre os seus animais domésticos,
os móveis, o padre da paróquia, os estudos na escola sob a luz de velas. Imagens de
palavras. Não há uma fotografia4, recortes de jornais, nem um filme caseiro para nos
apresentar Nova Ponte. Apenas narrativas orais são responsáveis pela reconstrução da
cidade.
4
Carlos Segundo mostra uma foto que diz ser da sua bisavó, no entanto não há registros, nem documentos
sobre a cidade de Nova Ponte.
96
campinho de terra, a sorveteria, a escola [...] mas a vida me mostrou
que a realidade é muito menos ficcional do que a gente imagina e por
um tempo eu me vi obrigado a abandonar meu sonho.
(Carlos Segundo em No fundo nem tudo é memória)
A proposta desta análise tem como principal objetivo compreender como esse relato
memorialístico se inscreve na linguagem fílmica, ou seja, como esta experiência estética,
entre os diversos narradores e o registro fílmico, realiza as ações ao invés de
simplesmente relatá-las.
5
David Bordwell (2008) define os elementos técnicos que compõem a mise en scène: cenário, iluminação,
figurino, maquiagem e atuação dos atores dentro do quadro. Para esta análise vamos nos centrar em
alguns destes elementos – os que forem mais significativos do nosso ponto de vista para a encenação
cinematográfica.
6
Sobre análise no nível do Plano, cf. JULLIER; MARIE, 2009.
97
Carlos Segundo, apropriadamente, opta por uma profundidade de campo pequena, apenas
as pessoas em cena estão em foco, e mesmo assim, o bruxulear da chama borra, por vezes,
o quadro todo. No entanto, mesmo a visão periférica estando desfocada, podemos
distinguir muitos objetos presentes no quadro: panelas, livros, imagens de santo, o
suficiente para nos situar no espaço doméstico de cada personagem. Embora Bordwell
considere que “a imagem da mise en scène por excelência é um plano-sequência com
grande profundidade de campo” (2008, p.36), defendemos a pertinência de uma pequena
zona de nitidez para o registro de narrativas memorialísticas. O efeito cênico das imagens
borradas representam o fenômeno da memória e sua forma inexata de experenciar o
tempo e a história. Bordwell, ele mesmo chega a reconhecer que em alguns casos existe
um “potencial estético” na profundidade mínima7.
São essas histórias narradas em meio às sombras, tingidas por uma paleta de cores
quentes, entre alaranjados e rubros, que o diretor busca reacender a imagem da cidade
submersa. Lâmpadas, candeeiros e fósforos são recursos cênicos, adotados por Segundo,
7
Cf. BORDWELL, 2008, p. 39.
98
para negociar com as formas narrativas da “história”, do “discurso” e da “invenção”,
respectivamente.
99
que tece a encenação parte de uma cidade existente e experenciada, por isso podemos
chamá-la de invenção-memória.
A quebra da ilusão vem seguida da cena de uma senhora benzedeira. Diante do seu
altar, a rezadeira faz uma oração para os membros da equipe de filmagem. Aqui, temos
a inscrição de uma história-memória, a reza enquanto forma fixa traz a marca do passado
imutável.
Toda a mise en scène desta sequência final aponta para as diferentes formas
narrativas da memória – da dança do candeeiro aos depoimentos, avistamos uma Nova
Ponte “vivida”, “experenciada” e “encenada” na linguagem fílmica.
O destino de toda a cidade é ser inundada quando não pela água, pelo
esquecimento essa capacidade que o tempo tem.
Acho que o tempo tem pacto com água.
(Personagem em No fundo nem tudo é memória)
A Erfahrung ao ser entendida por Benjamin como uma experiência em fluxo com
o passado, amplia a dimensão espaço-temporal da narrativa, libertando a memória
historiográfica de sua rigidez cronológica e pretérita. No documentário, No fundo nem
8
Cf. nesse artigo a seção A estrutura narrativa: memória, discurso e invenção.
100
tudo é memória, a memória solicita a invenção, e assim, seus narradores se relacionam
com as fraturas promovidas pelo passado esquecido ou perdido possibilitando o
surgimento de novas imagens da cidade-infância.
O professor Luis Krausz declara que Walter Benjamin em seu texto Infância
berlinense: 1900 perambula por este território lúdico da cidade originária,
101
primordiais que ainda não se busca compreender, nem desvendar,
apenas vivenciar e relembrar. (KRAUSZ, 2013, p. 54)
Carlos Segundo mergulha neste jogo memorialístico dando vazão à sua própria
história. Partindo de fragmentos concretos de relatos de uma cidade submersa, o narrador-
diretor navega por lugares e pessoas apoderando-se de suas imagens. O “pacto do tempo”
com a água e o fogo, do qual se recente o narrador-diretor quando diz, “A cidade velha
se perdia no tempo pela força da água e do fogo”, trata-se do pacto da irreversibilidade.
Diante da impossibilidade de retorno ao passado tal qual ele foi, a linguagem da cidade
dos poetas oferece um modo de irromper estes recantos de um tempo perdido. Carlos
Segundo relata que seu bisavô Oliveira José dos Santos viveu em Nova Ponte, mas não
há nenhum rastro da passagem dele pela velha cidade. Em uma conversa do diretor com
Dona Nenê, proprietária mais antiga do cartório da cidade, ele declara que um incêndio
em 1918 teria destruído o cartório da cidade, e com isso, a memória do seu bisavô teria
se perdido pela força do fogo e da água. No entanto, o diretor percebe que a memória do
seu Oliveira, mesmo sem uma lápide e nem um registro civil, poderia ressurgir: “Meu
bisavô (declara o narrador-diretor), só através do cinema, veio fazer parte da minha vida”,
Carlos Segundo rompe com a irreversibilidade da não existência de seu bisavô e na
linguagem cria um rastro dele.
9
BENJAMIN, 1989.
10
All language communicates itself.
102
(The lamp), um objeto muito caro à narrativa que estamos analisando. O candeeiro ganha
uma singularidade e uma essência comunicável apenas na própria linguagem. O
candeeiro que analisamos11 não expressa o candeeiro-objeto, mas apresenta o candeeiro-
linguagem, ele (o candeeiro) não pode ser apreciado de fora da linguagem. O autor alemão
formula o pensamento da seguinte forma:
Carlos Segundo, consciente do poder da linguagem, cria a cidade dos seus sonhos
conectando-a aos rastros do seu bisavô, uma cidade que o Google realmente não vai
localizar.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. On language as such and the language of man. In: DEMETZ, Peter (Org).
Reflections: Walter Benjamin Essays, Aphorisms, Autobiographical Writings. Nova York:
Schocken Books, 1989.
______. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
______. Rua de mão única e infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
11
Cf. o exemplo citado na seção Análise da mise en scène: delicadezas que nos escapam.
12
O que a linguagem comunica? A linguagem comunica a essência que lhe corresponde. É fundamental
que esta essência se comunique na linguagem e não através da linguagem. (tradução nossa)
103
BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas: Papirus,
2008.
JULLIER, Laurente; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora Senac,
2009.
KRAUSZ, Luis. O lirismo de Walter Benjamin. In: Revista CULT, nº. 181, julho de 2013, ano
16. (p. 52-55).
SEDIMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime. (Orgs). Walter Benjamin: rastro, aura e história.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
NO FUNDO nem tudo é memória. Direção e roteiro: Carlos Segundo. Fotografia: Roberto
Chacur. Edição e produção: Carlos Segundo. Brasil, 2012 (75 min.), 1 DVD.
104
O PERIGO DA AUTOFICÇÃO: VINGANÇA, LUTO E TRAUMA EM
DIVÓRCIO, DE RICARDO LÍSIAS1
Abstract: This study intends to analyse the danger of autofiction exercise as self exposure
and also the other exposure in the Brazilian literature. By reading the novel Divorce, by
Ricardo Lísias, we intend to discuss the limits of overexposure in autofiction, ethical,
moral and legal losses, as well as self-writing as a practice of cure.
Keywords: autofiction, revenge, grief, trauma, Divorce, Brazilian literature.
1
Mesa-redonda Potências da autoficção.
2
Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
3
A mesma identidade onomástica já aparecia em O céu dos suicidas, romance de Ricardo Lísias anterior a
Divórcio, publicado em 2012, também pela editora Alfaguara. O estilo de escrita fluido, dividido em
pequenas partes, a identidade onomástica, o trabalho de um trauma, o tom pesado, a partilha da dor, da
culpa, da raiva, aproximam os dois romances autoficcionais de Lísias. No primeiro, O céu dos suicidas, a
experiência pessoal da perda do amigo André, que se enforcou, leva o escritor à trajetória agônica de luto
e desabafo. Ricardo Lísias não se conforma com o suicídio do amigo e compartilha, através da escrita, o
seu sofrimento, o seu sentimento de culpa e a sua resistência às verdades estabelecidas (religiões e
psiquiatria, principalmente), realizando, assim, uma espécie de luto da morte do amigo.
105
O romance trata de um trauma recente na vida do autor: a descoberta inesperada do diário
da sua mulher.
4
A intenção é mostrar que a identidade não é preservada fora da narrativa e que isso traz prejuízos de
diversas ordens.
5
Mantivemos o texto em itálico porque assim aparece no romance para diferenciar o diário da ex-mulher.
106
Lísias recorre à literatura (“Recorri à literatura porque não tenho mais nada”6, “Só
vou recobrar minha pele e me sentir de novo emocionalmente estável se escrever sobre o
que aconteceu”7) e à corrida exaustiva (“Depois, comecei a correr”8) para “recuperar a
pele”, ou seja, realizar o luto da morte da relação matrimonial, aliviando e reinventado a
sua raiva e decepção, elaborando uma espécie de romance-vingança (“Divórcio pode ser
visto como uma manifestação de ressentimento”9).
Mandei uma mensagem pelo celular quando ela estava saindo para o
almoço de despedida com os colegas do jornal. Fiz uma cópia do seu
diário e não quero mais te ver. Aceito o divórcio amigável, mas exijo
que você devolva o dinheiro que gastei no casamento. Ela respondeu na
hora: Ricardo, você descobriu minha sombra (LÍSIAS, 2013, p. 88).
O conteúdo do romance é impactante. É forte e cruel. O narrador não nos poupa
dos detalhes sórdidos nem do seu ressentimento. O ritmo das situações reveladas é
acelerado; o narrador é nervoso e agressivo; a crítica aos jornalistas é ácida; a estrutura
desordenada e não-linear da narrativa é reflexo do caos interno do protagonista agoniado.
6
LÍSIAS, 2013, p. 226
7
LÍSIAS, 2013a, p. 189.
8
Idem, Ibidem.
9
LÍSIAS, 2013a, p.214.
107
curiosamente, fotos antigas dele mesmo quando criança e da família: “Minha pele nasceu
de novo. Divórcio não é um livro de jornalismo, não tem fontes, não usa off, as fotos são
de arquivos familiares e o autor do livro, responsável por todas as linhas, é Ricardo
Lísias” (LÍSIAS, 2013a, p. 196).
[...] Ardeu porque meu corpo estava sem pele. O caixão continuava ali.
De alguma forma, meu queixo acertou o joelho esquerdo. A carne viva
latejou e ardeu. Como o choque foi leve, não durou muito. A sensação
de queimadura também passou logo. Mesmo assim, meus olhos
reviraram. Alguns desses movimentos são claros para mim. Estão em
câmera lenta na minha cabeça.
Outra vez estendi o braço direito e ele tocou o caixão. O cadáver sem
pele ainda me obedecia. Tentei abrir os olhos para confirmar se
continuava morto na cama nova. Não consegui. Meu estômago
encolheu. Senti falta de ar. É difícil respirar com tanta escuridão. O
coração dispara. Veio-me à cabeça o dia em que minha ex-mulher
demorou para fazer alguma coisa enquanto eu me afogava. Tive
dificuldade para abrir os olhos. Minhas mãos latejavam. Um clarão
distante me deixou com tontura. Um corpo em carne viva é quente
(LÍSIAS, 2013a, p. 7-8, grifo nosso).
O romance apresenta identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista;
Ricardo Lísias assina corajosamente embaixo de tudo o que escreve, mostrando seu
desprezo em relação ao modo como o jornalismo trabalha, com fontes ocultas e, por isso,
covardes (para usar o termo do próprio autor); apresenta fotos de seu arquivo pessoal –
ele quando bebê e fotos da família –, o que reforça a veracidade dos fatos; também há
referências explícitas à sua profissão, à cidade onde mora e aos romances anteriormente
publicados. Entretanto, há uma série de elementos que confundem o leitor, como a
contradição nos argumentos do narrador, que uma hora afirma escrever “sem uma palavra
de ficção” e outra hora afirma o extremo oposto, “Divórcio é um livro de ficção em todos
os seus trechos” e fala em “personagens”, deixando o leitor numa zona de incertezas, sem
possibilidade de definir com segurança o que é, afinal, o Divórcio:
108
Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos. Agradeço às
três pessoas que foram fundamentais no processo de recuperação que
ele recria, mas que não aparecem na trama (LÍSIAS, 2013a, p. 189-190,
grifo nosso).
Tal jogo de contradições, que leva o leitor à dupla recepção – autobiográfica e
ficcional – da obra, é próprio da autoficção. Na fronteira entre o pacto autobiográfico e
os princípios de veracidade e identidade e o pacto romanesco e os princípios de invenção
e de não identidade, a autoficção firma o pacto ambíguo, através do qual torna possível a
produção da equivalência A = N = P (Autor = Narrador = Personagem) no espaço
romanesco. Sendo assim, a autoficção é uma terceira via ficcional, já que ela circula entre
dois gêneros – autobiografia e romance. Podemos dizer que a autoficção é um novo
gênero literário.
[...] cada leitor é livre para fazer a própria leitura. A literatura – e de novo
a arte de maneira mais ampla – não é capaz de reproduzir a “realidade”.
Assim, nenhum romance “expõe” a vida de seu autor ou de qualquer
outra pessoa, mas sim cria personagens e situações ficcionais. (LÍSIAS,
2013b) 10
Na autoficção, o narrador conta que foi ameaçado de processo judicial pela ex-
mulher e por isso teve de se justificar: “Não estou tratando de uma pessoa em particular.
Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance” (LÍSIAS, 2013a, p.128). Ou
seja, teve que argumentar que o livro é para ser lido como romance, como ficção, as
personagens e o narrador foram criados, tornando assim ridículo o fato de ser levado a
julgamento:
10
Ricardo Lísias em resposta a Luciano Trigo. Trigo perguntou: “A exposição de episódios da vida
pessoal que envolve também outras pessoas não cria uma questão ética? Como você lida com ela?”.
109
O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro
lugar, Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à
trama ficcional elementos da realidade. Depois há um narrador
visivelmente criado e diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência,
para justamente causar uma separação. Eu queria me ver livre de muita
coisa. Sim, Excelência, a palavra adequada é “separar-me”. [...] Enfim,
Excelência, o senhor sabe que a literatura recria outra realidade para
que a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era justamente reparar
um trauma: como achei que estava dentro de um romance ou de um
conto que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter certeza de que
estou aqui do lado de fora, Excelência (LÍSIAS, 2013a, p. 217-218).
E assim têm sido as respostas do autor nas entrevistas sobre o romance polêmico.
Talvez, sem compreender bem a proposta da autoficção, já que ela se apresenta tão
complexa e controvertida, Lísias nos respondeu o seguinte:
110
É sabido também que o ponto de partida dele é pessoal e traumático. Seria
suficiente, agora, dizer que a literatura não reproduz a realidade e que ele criou situações
ficcionais? Ao responder à notificação extrajudicial, Lísias discorda da ex-mulher sobre
a invasão de privacidade dela pela divulgação parcial de seu diário íntimo (como vemos
as justificativas no próprio romance). Afirmar que o livro é ficção seria, então, uma forma
de se absolver da censura e da cobrança de outrem pela superexposição? Falar em criação
de personagens não seria uma maneira de se aliviar da questão ética e jurídica que
envolveria a escrita escandalosa desse trauma irrecuperável?
Luciana Hidalgo (2013) ajuda-nos nessa questão lançando mão de um caso muito
semelhante ao de Lísias. Camille Laurens também escreve em L’amour (2003) sobre seu
divórcio. Porém, com uma diferença: Laurens mantém o nome verdadeiro do ex-marido
– Yves Mézières. Em consequência disso, ela foi processada, sendo esse mais um caso
de “autoficção no tribunal”, e foi justamente a palavra “ficção” que a livrou da pena.
11
No original : «serait donc qu’il est possible de parler, par elle, de soi-même et des autres sans
aucun souci de censure»..
12
Título do romance de Silviano Santiago, no qual o autor joga com as noções de ficção/realidade;
verdade/mentira; real/imaginário etc.
111
é um fenômeno que “vem se transformando em pendenga judicial”. O melhor exemplo
disso é o caso do próprio Serge Doubrovsky, o “pai da autoficção”, que, no romance Livre
brisé, “contou tantos detalhes do alcoolismo de sua outra mulher, que ela, ao ouvir trechos
lidos pelo próprio marido ao telefone (ele estava em Nova York, ela em Paris), bebeu
vodca até a morte” (cf. HILDALGO, 2013).
Todos esses exemplos nos levam a pensar: qual o perigo da autoficção? O perigo
é para quem escreve, adentrando em questões éticas e morais, e também jurídicas, pois
há o risco de o autor ser processado e de pagar um preço alto por isso? O perigo para
quem escreve também entraria no terreno da culpa? Como no exemplo drástico de
Doubrovsky, seria possível não se sentir culpado pela morte da mulher? O perigo é
também para quem está envolvido na história, tendo sua intimidade e seus segredos
expostos de maneira invasiva, sem autorização prévia? Reinventar a si mesmo e aos
outros, misturar realidade e ficção, através do exercício autoficcional, seria uma prática
indiscreta? Uma escrita do constrangimento? Até aonde vai o nosso direito de expor o
outro? Apenas ocultar o nome de alguém na narrativa é preservar esse alguém? Se
Ricardo Lísias fala da ex-mulher, nós, leitores anônimos e desavisados, podemos não
saber de quem se trata, mas a família, os amigos próximos, os vizinhos e os conhecidos
certamente o saberão. Como é que fica a dita “preservação”? Que prejuízos não teve essa
mulher por ter a sua intimidade exposta na ficção?
112
pode render ótimos livros, desde que apresentem qualidade literária
suficiente para diluir o tom lavagem-de-roupa-suja. (HIDALGO, 2013)
E quando a autoficção trata de alguém que já morreu, como no caso d’O céu dos
suicidas ou mesmo de Ribamar, de José Castelo? Se fosse o caso, onde ficaria o direito
de essa pessoa se defender (via processo ou, como tem sido comum na França, via a
escrita de um romance-resposta)? Qual seria, então, a diferença entre a recepção de uma
autoficção e de uma autobiografia? Se os biografemas dos quais o autor parte para a
escritura da própria vida são fontes de ferimento ao outro, de vergonha e de intimidação,
se acarretam em processos jurídicos, humilhação e ofensa, qual a real distinção entre uma
autobiografia e seu pacto autobiográfico e uma autoficção e seu pacto ambíguo? Que
ambiguidade é essa que acaba por não livrar o seu escritor da pendenga judicial? Ou
melhor, que até pode livrar do conflito judicial, mas não livra da pendenga ética-moral?
13
“Associação composta por autores, intérpretes e herdeiros de direitos autorais sobre obras musicais e
líteromusicais, dedicada a estudar e informar aos interessados, e à população em geral, as regras, leis e o
funcionamento de associações de direito autoral, entidades e instituições relacionadas à administração e ao
licenciamento de direitos autorais e conexos e da indústria da música, bem como atuar como uma
plataforma profissional de atuação política e representativa na defesa e implementação dos interesses da
classe” (PROCURE SABER, 2013)
113
tivesse o direito de preservar sua vida pessoal. Parece que não”14) e, de outro, temos uma
série de jornalistas e biógrafos, principalmente, alegando a liberdade de expressão
conquistada a duras penas (inclusive pelos próprios Chico Buarque e Caetano Veloso na
época da Ditadura Militar) e o retrocesso que é censurar as biografias.
14
BUARQUE, 2013.
114
A seriedade do trabalho de pesquisa do biógrafo não pode ser comparada com o
sensacionalismo das revistas de fofocas e da invasão dos paparazzi. Sendo assim, Britto
observa que a lei protege o biografado daquele biógrafo que inventar, distorcer fatos ou
ofender a sua honra:
115
que nos unir para ninguém comprar esse livro, não dar ibope para esse maluco!”.
Ademais, o autor pode ter grande sucesso com a autoficção, ainda mais se pensarmos na
trajetória de Lísias, principalmente depois de publicar O livro dos mandarins (2009), que,
de acordo com Luciene Azevedo (2013, p. 88), “claramente delineia a assinatura de Lísias
no contexto da literatura contemporânea” e é considerado o “romance de maturidade” do
autor.
Azevedo ainda aposta que uma grande marca distintiva de Lísias como autor possa
estar “na ‘guinada subjetiva’ como gesto performático de inscrição de um nome de autor,
de inscrição de uma assinatura literária”. A estudiosa observa os mesmos motes temáticos
na obra de Lísias, que parecem reescrever, reelaborar o mesmo texto: “o apelo a uma
intimidade mezzo fake, o retorno do narrador solitário e dolorido com a morte de seu
melhor amigo, com a separação conjugal –, recuperados em publicações distintas”
(AZEVEDO, 2013, p. 104).
Sendo assim, não há como negar que o exercício autoficcional coloca à mostra a
vida de quem escreve (autoexposição) e de quem participa da vida do autor (exposição
do outro). As histórias partem da experiência pessoal e traumática, mesmo que a partir
disso criem situações ficcionais. Trata-se de uma exposição espetacularizada, em que não
é possível escrever sobre si sem expor o outro. Como o caráter ficcional livra o autor da
pendenga judicial, caberia então ao escritor, assim como na biografia, o bom senso na
escolha da forma como vai utilizar a experiência de si e do outro na literatura: “[...]
perguntou se eu não estava me expondo muito. Essa é uma afirmação que ouço até hoje.
Faz um ano que saí de casa” (LÍSIAS, 2013a, p. 165).
116
Lísias fala da necessidade em escrever sobre o trauma e fazer um romance sobre
ele, ordenando a dor e dando ordem ao caos
Meu corpo ferido, por mais que ainda perca energia, precisa portanto
virar literatura. De um jeito ou de outro, a assombração inicial era
verdadeira. Dois contos não são suficientes para o tamanho do meu
trauma (ou da pele do meu corpo). Preciso fazer um romance. (LÍSIAS,
2013a, p. 172).
Pensar a autoficção como “prática da cura” não é consenso entre os estudiosos de
literatura. Para Luciene Azevedo, a ideia da terapia pela escrita não lhe agrada, entretanto,
reconhece que há um desnudamento do sujeito na autoficção que desperta o interesse do
leitor:
15
LÍSIAS, 2013, p. 226.
16
LÍSIAS, 2013, p. 234
17
LÍSIAS, 2013, p. 203.
117
discreta, de sair organizadamente da confusão que tantas vezes me
assalta por dentro (LÍSIAS, 2013a, p. 36-37)
Para Altair Martins, o que leva um escritor a escrever sobre si mesmo é o “impulso
vivido” e “escrever sobre isso, constitui, de certo modo, um conjunto de atividades que
nos revisam”. Adriana Lisboa afirma que a própria vida do escritor “é apenas mais um
entre os virtualmente infinitos temas à sua disposição”. Para Lisboa, o que leva um
escritor a escrever sobre si mesmo vai desde a “elaboração quase que psicanalítica das
próprias experiências até o exibicionismo passando pela ‘normalidade’ de considerar sua
própria vida apenas um tema entre tantos outros, e tão válido quanto”. Já Cristovão Tezza
diz que não sabe, e escreveu sobre a sua experiência porque ela não era mais “traumática”,
“era apenas uma memória a ser trabalhada literariamente” (MARTINS, 2014, p. 214).
Tezza acredita que foi um desafio mais literário do que existencial. Para Michel Laub,
todo escritor escreve sobre si mesmo, a matéria da escrita é a memória: “O texto é uma
tentativa de expressar o que pensamos, ou um pensamento que estamos imitando ou a que
estamos nos opondo (no caso de um narrador diverso de nós). Ou seja, a matriz somos
nós, o que pensamos, que é o que somos” (MARTINS, 2014, p. 237).
118
temos aí uma grande obra: “O texto, porém, ensinou-me muito sobre mim” (LÍSIAS,
2013a, p. 214).
REFERÊNCIAS
ACADÊMICOS divulgam carta a favor das biografias não autorizadas; leia íntegra. Folha de
São Paulo. Ilustrada. 12 nov. 2013. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1370016-academicos-divulgam-carta-a-favor-
das-biografias-nao-autorizadas-leia-integra.shtml>. Acesso em 12 nov. 2013.
AZEVEDO, Luciene. Ricardo Lísias: versões de autor. In: CHIARELLI, Stefania; DEALTRY,
Giovanna; VIDAL, Paloma (Orgs.). O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira
contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
BRITTO, Carlos Ayres. “Biografia não é invasão de privacidade”. O Globo. Opinião. 13 nov.
2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/biografia-nao-invasao-de-privacidade-
10762406>. Acesso em 13 nov. 2013.
BUARQUE, Chico. Penso eu. O Globo. Cultura. 16 out. 2013. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/cultura/penso-eu-10376274#ixzz2ipnYZe00>. Acesso em: 26 out.
2013.
HIDALGO, Luciana. A autoficção nos tribunais. Época. [18 ago. 2013]. [S.l.], Ruth de Aquino.
Disponível em: <http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ruth-de-
aquino/noticia/2013/08/autoficcao-nos-tribunais.html>. Acesso em: 26 ago. 2013.
PIBAROT, Annie. Table ronde. Annie Pibarot s’entretient avec Philippe Lejeune et Philippe
Vilain. Cahier de l’APA, Écrire le moi aujourd’hui, nº 38 – novembre 2007. p.7-14.
PROCURE SABER. “Glossário - Discussões PLS 129”. 27 jun. 2013. Post do Facebook.
Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/procure-saber/gloss%C3%A1rio-
discuss%C3%B5es-pls-129/434470673318219>. Acesso em: 26 out 2013.
VICTOR, Fábio. ‘Roberto Carlos é censor nato e hereditário’, diz Ruy Castro em festival de
biografias. Folha de São Paulo. Ilustrada. 15 nov. 2013. Disponível em:
119
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1372166-tese-da-biografia-independente-ja-
esta-ganha-diz-ruy-castro-em-fortaleza.shtml>. Acesso em 15/11/2013.
120
BLOGS: NOVOS MEIOS DE CIRCULAÇÃO E PUBLICAÇÃO
LITERÁRIAS E DE CONSTRUÇÃO DA PERSONA AUTORAL1
Resumo: A literatura brasileira deste início de século não é mais orientada por uma leitura
formalista e estruturalista, haja vista a figura autoral estar presente em feiras literárias,
lançamentos de livros, programas de televisão, congressos e palestras, redes sociais, blogs
e, também e principalmente, textualmente, nas autoficções. O autor retorna, portanto,
extra e literariamente. As várias aparições do escritor contemporâneo, em veículos
midiáticos diversos, performam uma identidade não necessariamente biográfica, mas
capaz de tornar indecidíveis as fronteiras entre realidade e ficção. É possível afirmarmos
que os diversificados discursos e aparições autorais, em mais de um canal midiático,
indiciam subjetividades múltiplas, de modo a torná-lo fragmentário, híbrido,
autoficcional – problematizando, assim, não apenas os conceitos de ficção e realidade,
mas a noção de sujeito. Muitos dos escritores ativos no cenário literário hoje iniciaram
suas carreiras em blogs, espaço virtual propício para a divulgação de sua literatura e,
principalmente, para a invenção de si, para a construção de subjetividades. Mesmo após
o sucesso editorial, é comum a prática blogueira persistir em vários desses autores,
aproximando-os do público e, cada vez mais, confundindo autobiografia e ficção. Por já
serem hoje, mediante a aparição midiática em nossa sociedade do espetáculo,
“celebridades”, com uma persona já constituída publicamente, descarto a averiguação dos
modos de construção identitária de “escritores profissionais”, preferindo analisar de que
modo diletantes amadores perfazem o mesmo percurso nos blogs, problematizando a
noção de cânone. As autoficções, a meu ver, não são comuns hoje nos blogs porque são
um nicho editorial importante e lucrativo, mas justo o inverso: só chegaram às livrarias
porque sua gênese esteve e ainda está na internet. Minha pesquisa incidirá, pois, em blogs
de “pessoas comuns”, aspirantes a adentrar no circuito literário e a atingir a publicação
impressa, e quais são as estratégias de subjetivação empregadas para conquistar seu
público e as editoras. Cada vez mais a estética do comum vem sendo estudada e essa
discussão é, sob minha ótica, bastante salutar. Benjamin já alertara que, ao escreverem na
seção “Cartas de leitores”, estes também passavam a ser igualmente autores. Hoje, nomes
como os de Denilson Lopes e Silviano Santiago também vêm trabalhando com a estética
do comum. Escolhi, aqui, analisar o blog Resultado Desastroso, da blogueira Mariana
Bernardes, que explicita, em vários posts, o desejo de se tornar escritora e viver de
literatura. Comparativamente a nomes já consagrados, pretendo analisar quais as
estratégias de ficcionalização de si empregadas por esta blogueira para atingir seu
objetivo.
1
Mesa-redonda A exposição do sujeito nos meios de comunicação I.
2
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
121
Palavras-chaves: blog; subjetividade; circuito literário; autoficção.
Abstract: The brazilian literature beginning of this century is no longer guided by a
formalist and structuralist reading, given that the authorial figure is present in literary
exhibitions, autograph's night, programs of television, conferences and lectures, social
networks, blogs, and also and mainly in autofiction. The author returns, so extra and
literarily. The various appearances of the contemporary writer in various media vehicles,
performam an identity not necessarily biographical, but undecidable able to make the
boundaries between reality and fiction. It is possible to assert that the varied speeches and
appearances copyright, in more than one media channel, indicate multiple subjectivities
in order to make them fragmented, hybrid, autofictional - questioning not only the
concepts of fiction and reality, but the notion of subject. Many writers active in the literary
scene today began their careers on blogs, virtual space conducive to the dissemination of
their literature, and especially for the invention of the self, for the construction of
subjectivities. Even after publishing success, they practices in the blog, approaching the
public and confusing autobiography and fiction. By the appearance in our media society
of the spectacle, they are “celebrities”, with a persona already made publicly dismiss the
investigation of the modes of identity construction of “professional writers”, preferring
to examine how dilettantes amateurs make up the same route blogs, questioning the notion
of canon. The autofiction, in my view, is not common today in the blogs because it is a
niche publishing important and lucrative, but just the opposite: just reached the bookshops
because its genesis was and still is on the internet. My research will focus therefore on
blogs of the “ordinary people”, aspiring to enter the literary circuit and reach the print
publication, and what are the strategies employed subjectivity to win your audience and
publishers. Increasingly the aesthetics of the ordinary has been studied and this discussion
is very beneficial. Benjamin has warned that, who writer in the “Letters from readers” too
to be writer. Today, names such as Denilson Lopes and Silviano Santiago also been
working with the aesthetics of the ordinary. I chosen, here, to analyze the blog Resultado
Desastroso (Disastrous results), of the Mariana Bernardes, which explains, in several
posts, the desire to become a writer and live literature. Compared to already established
names, I analyze the strategies of fictionalization employed by this blog to achieve your
goal.
Keywords: blog, subjectivity, literary circuit, autofiction.
3
As citações serão transcritas ipsis litteris. Disponível em
<https://www.facebook.com/santiagonazarian?fref=ts>. Acesso em 30 jul. de 2013.
122
escritor “vivo e ativo”. Ainda no Facebook, descobrimos que Nazarian possui, em sua
rede de relacionamentos, 3.239 amigos, entre amizades virtuais e presenciais, mas o que
importa, sobretudo, é que as palavras do escritor atingem um público para além dos
leitores de seus livros, isto é, sua persona é formada com o auxílio de discursos alheios
ao literário. Não é possível fazer um levantamento do número exato de seu público leitor,
salvo uma aproximação estimada baseada na quantidade de exemplares vendidos pela
editora etc. No entanto, o que chama a atenção nesse comentário queixoso do autor é a
lembrança de que ele está disponível, e é o próprio Nazarian quem faz questão de dar o
recado, pois avisa que é “atuante e operante”.
A resposta foi dada por outro escritor com seu lugar ao sol já devidamente
alcançado – João Paulo Cuenca. Em 2010, no evento Café Literário: Literatura na web,
com Juliana Krapp, Manoela Sawit e o próprio Cuenca, realizado na Biblioteca Popular
de Botafogo, o autor de Corpo presente, ao dizer que desde criança nutria o desejo de ser
escritor, afirmava que, para tanto, era necessário participar de eventos, ir a universidades,
dar entrevistas (sic). Dizia ele que ser escritor não se limitava a escrever e que, para poder
realizar seu ofício, essas demais atividades se faziam importantes. O que ele pretendia
dizer, a meu ver, equivale a afirmar que o escritor contemporâneo precisa criar uma
imagem de si próprio para se tornar conhecido; necessita, principalmente, se
autopromover, de maneira a performar uma identidade pública – não necessariamente
autobiográfica – para, então, ingressar no circuito literário e conquistar o “espaço
biográfico”, termo cunhado por Leonor Arfuch (2010), sem o qual, dificilmente,
despertaria o interesse de uma editora e consequentes leitores. Em uma palavra, o escritor
123
contemporâneo é performático e se constitui como personagem de si mesmo. Bem como
Nazarian, Cuenca também possui uma página no Facebook, com 1.929 seguidores, e é
blogueiro, embora seus vários blogs estejam todos desatualizados.
Percebe-se, nesse rápido introito, uma das razões para a crítica literária abandonar
a morte do autor postulada pelos formalistas e estruturalistas e olhar com mais atenção
para a figura do escritor, não de forma a buscar um biografismo que explicaria a obra,
mas porque é cada vez mais comum uma performance autoral que se mistura à ficção,
mesclando relatos autobiográficos e empíricos à fabulação – a autoficção. Atualmente,
em um mundo cada vez mais midiático e imagético, o escritor excede o ato de escrever
como seu ofício, como bem apontou João Paulo Cuenca. Ao participar de feiras literárias,
programas de televisão, lançamentos de livros, congressos, palestras etc., o escritor dá-se
a conhecer, assume uma voz e um corpo, torna-se uma pessoa pública – não está mais
morto, em síntese. É comum, inclusive, como já indicou Philippe Lejeune (2008), que o
leitor conheça o autor sem nada dele ter lido, isto é, sua literatura tem se mostrado menos
importante, em certo sentido, do que sua própria persona.
Também foi Lejeune (2008) quem disse que, antigamente, a leitura da obra
suscitava o desejo do leitor de conhecer o autor, ao passo que, agora, devido ao grande
número de entrevistas e à exposição midiática, isso se inverte, é a figura pública do autor
que desperta o interesse em sua literatura. Portanto, hoje, o autor assume a função
primordial de se valorizar, de ser seu próprio promoter, por assim dizer. Nada mais
natural, nesse sentido, que Nazarian, ao saber da leitura de seu romance para o vestibular
da Paraíba, faça questão de lembrar que está disponível para um bate-papo com alunos-
leitores. É claro que este interesse não diz respeito apenas ao aspecto mercadológico,
como pode parecer indicar, mas é comum autores variados afirmarem que é importante e
prazeroso o diálogo com jovens leitores, pois estes não teriam o cacoete do público mais
experiente, nem tampouco se censurariam em perguntar questões jamais levantadas em
eventos do porte da Flip4, como mencionou Daniel Galera recentemente no evento
“Encontros Literários”, mediado por Guilherme Freitas, também na Biblioteca Popular
de Botafogo, no dia 31 de julho deste ano. A participação dos escritores contemporâneos
em eventos de e sobre literatura é tão intensa, atualmente, que dois exemplos, até aqui, já
foram utilizados e mais ainda podem surgir ao longo do ensaio. Destarte, o fetiche em
4
Festa Literária Internacional de Paraty (Paraty/ RJ).
124
torno do autor – sempre presente, mesmo quando da leitura imanente da obra literária –
ganha força, como já bem apontou Ana Cláudia Viegas (2007).
125
te darei o céu e outras promessas dos anos 60 diz que só não abandona completamente
os diários virtuais porque lá estão contidos todos os seus contos, inclusive os de livros já
esgotados. Complementa seu desânimo ao afirmar que os blogs já estão ultrapassados,
que o Facebook é muito mais dinâmico e, portanto, cativa mais os leitores; apesar disso,
no entanto, não abandona o seu Doidivanas, cujo endereço é
http://doidivana.wordpress.com/, embora ele não seja um blog estritamente literário, o
que, em certo sentido, ajuda na construção da identidade autoral, uma vez que os leitores
mais e mais fetichizam sua figura. Questionada se ela é também leitora de blogs,
respondeu que lê apenas os blogs de amigos (sic), o que denota uma espécie de maior
dificuldade de acesso ao circuito literário àqueles blogueiros diletantes, ainda alheios ao
universo mercantil da literatura e à legitimação editorial. Como um blogueiro poderia
obter a intervenção de um autor já conhecido, como foi o caso da própria Ivana, se a
atenção reside apenas ao já formado e seleto grupo de amigos?
126
blog haveria de ser diferente? E não foi. Seus dois primeiros livros foram resultado de
uma bricolagem de textos escritos originalmente na internet e textos produzidos com a
finalidade da edição impressa. A meu ver, o que boa parte dos blogueiros almeja, como
parece ter sido o caso de Averbuck, é o reconhecimento editorial, o lançamento de seus
textos em livro, como se essa fosse a única forma de alcançar o status de literatura. Cada
vez mais os blogs são corpus de pesquisas acadêmicas e alvo de “caçadores de talentos”,
mas ainda são, de certa forma, estigmatizados como escrita descartável e pouco ou nada
estetizada.
Santiago Nazarian, João Paulo Cuenca, Ivana Arruda Leite e Clarah Averbuck são
escritores devidamente editados e adicionados ao cânone em formação da literatura
brasileira contemporânea. Aqui, não está em questão se os quatro são adeptos da
autoficção, se praticam uma prosa híbrida composta por realidade e ficção de modo a
tornar indecidíveis seus limites. O propósito deste ensaio é aproximá-los por outro viés –
o de personalidades públicas. Como tais, são reconhecidos no meio literário, nas
127
faculdades de Letras, em programas de televisão, em feiras literárias e em redes sociais,
mesmo que aqueles que os reconheçam não sejam seus leitores – e jamais venham a ser.
Os quatro, enfim, assumem para si a condição pública de escritores, formada em cada
uma das suas aparições, presenciais ou virtuais. Consciente ou inconscientemente, estes
autores criam uma identidade que, de alguma maneira, os identifica a um público, leitor
ou não – não nos esqueçamos de que Roland Barthes (1988, p. 66), apesar de defender a
morte do autor, admitia-o “nos manuais de história literária, nas biografias de escritores,
nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar,
graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra”. Atualmente, o diário íntimo ao qual se
referia Barthes é substituído pelos blogs e pelas redes sociais, capazes de “devassar” a
“intimidade” dos autores e suscitar o desejo do leitor voyeurista pela vida empírica da
“personalidade” literária. Quando a primeira pessoa assume relevância em sua prosa de
ficção, seja nos blogs, seja na literatura impressa, o cotejo entre vida e obra torna-se mais
interessante para o leitor, iludido por um narrador performático, autoficcional.
Ana Cláudia Viegas (2007, p.18, grifo do original) é muito precisa ao situar o
autor em nosso cenário midiático e rediscutir o estruturalismo. Para a pesquisadora, “ao
lermos um texto, não temos apenas o nome do autor como referência, mas sua voz, seu
corpo, sua imagem veiculada nos jornais, na televisão, na internet. A obsessão
contemporânea pela presença nos afasta da concepção barthesiana desse autor como ‘um
ser de papel’”. Eu acrescentaria que essa “presença” restrita à internet nos aproxima do
autor sem necessariamente nos colocar em contato com sua literatura, como ocorre nas
redes sociais. Nestas, lemos fragmentos de discursos e curiosidades da “vida privada” do
autor; “vemos” seleção de fotografias e demais particularidades “íntimas” e ainda temos
a possibilidade de interação dialógica. Por outro lado, porém, os blogs nos aproximam de
maneira mais estreita, posto que a familiaridade se dá textual e (auto)ficcionalmente, ou
seja, é possível esmiuçar o texto de maneira a encontrar ali semelhanças com a persona
fragmentada que se constrói em momentos estanques e isolados: entrevistas, redes
sociais, aparições públicas, conferindo ao fato episódico o status de narrativa acabada,
sem falar que a ficção, como reza o senso comum, revela mais sobre a vida do escritor do
que uma autobiografia, por exemplo. É nesse sentido que os blogs nos vinculariam mais
à persona construída discursivamente pelo escritor – persona esta deveras fomentada nas
redes sociais, numa espécie de construção identitária ininterrupta e en âbime.
128
É possível que a individuação autoral seja, além de uma maneira inicial de se
tornar conhecido e angariar leitores, uma forma de crítica justamente à necessidade
narcísica e voyeurística da nossa sociedade, uma vez que não é mais possível pensarmos
o sujeito de forma una, inteira, coesa, como o “eu” das Confissões de Rousseau, mas sim
de maneira fragmentária, híbrida, indefinível, autoficcional. Há outras hipóteses que
buscam embasar teoricamente a presença de narradores em primeira pessoa
autoficcionalmente, mas não me ocuparei delas aqui.
129
por uma poeta muito jovem, com aproximadamente 17 anos. Passei a acompanhar com
bastante regularidade seus poemas e resolvi lhe perguntar como surgiu o interesse pela
poesia. A resposta que obtive foi a de que seu pai sempre foi um amante dos versos e a
incentivava a escrever desde pequena.
Demasias
Cresci assim:
Exagerada.
Por vezes me sentia demais
Até quando queria sentir nada.
Vivi mais do que deveria
Em um tempo desarranjado.
Me criei desarranjada.
Tentei me encontrar fazendo de tudo
Fui o mais fundo que poderia chegar,
Ceguei.
Em um repentino despertar,
vi-me desesperada.
Mudei, mudei e continuarei mudando
Mas no meio disso encontrei um lar:
As palavras, a poesia.
Desde então vivo
E dou vida à tudo em
Demasia.
O poema desnuda um sujeito perdido, angustiado, cego, desesperado até o encontro
com as palavras, com a poesia. E esta encontra abrigo, num primeiro momento, no blog,
ou melhor, ela nasce na internet, tem sua primeira publicação no diário virtual, que não
vem a ser um resultado desastroso por dois motivos iniciais: o primeiro porque foi lida,
ou seja, o blog cumpriu seu papel de espaço para publicação, como diria Averbuck; o
segundo porque redundou em livro, recebendo, ainda que de forma insatisfatória, haja
vista a nenhuma publicidade e a tiragem diminuta da primeira edição, a legitimação da
130
impressão. Do mesmo modo que a poesia nasce na internet, é no espaço virtual que a
persona da blogueira encontra fertilidade para surgir e se autoficcionalizar, performando
uma identidade autoral e plural.
Estas, porém, não foram as únicas modificações com o intuito de ampliar seu
público leitor. Ela passou a, eventualmente, publicar entrevistas feitas com algumas
pessoas ligadas à literatura e às artes em geral, como o poeta e também blogueiro Flávio
131
Corrêa de Mello, o artista plástico Solano Guedes e a escritora e blogueira Thereza
Christina Rocque da Motta. Mariana Bernardes, em texto intitulado Escritores sem
vergonha, postado no dia 3 de abril, reflete sobre o que necessita um escritor:
132
sem vergonha”. Mas se ela já é uma escritora, o livro serviria apenas como um
legitimador? Por que o blog não se basta? Haveria algum prejuízo canônico para a
admissão dos textos publicados em blogs serem considerados literatura? Lembremo-nos
de que os modernistas, que questionaram o cânone vigente à época, dele fazem parte hoje.
Para ela, a realidade é complicada, motivo suficiente para seguir a lição aprendida
quando criança e, paradoxalmente, falar de si, já que se autoficcionaliza. As “notas
completamente biográficas” compõem uma personagem de si própria, reconfigurando e
reambientando sua vida empírica no universo ficcional, afinal, de acordo com Diana
Klinger (2007, p.50), “o que interessa na autoficção não é a relação do texto com a vida
do autor, e sim a do texto como forma de criação de um mito, o mito de escritor”.
Reinventando-se, Mariana Bernardes oferece a seus leitores uma imagem construída
discursivamente, suficiente para desvinculá-la de sua vida empírica, mas, apesar de
possuir Facebook, como Nazarian, Cuenca, Ivana e Averbuck, ainda está longe do
reconhecimento público de ser uma escritora, pois falta-lhe a circulação na grande mídia,
uma das grandes fontes de legitimação autoral. Isso não a impede, porém, de prosseguir
134
investindo em sua performance: inicia explicando-se melhor e finaliza fingindo ser o que
não é.
Para quem acredita que o escritor deve ser sem-vergonha, ou seja, não deve recear
a exposição textual, a autora, em post intitulado Débil catarse, publicado no dia 2 de
maio, revela seu desconforto mediante uma crítica sofrida. O texto, todos sabemos, uma
vez publicado, ganha autonomia e foge do controle de seu autor; cada leitor terá uma
interpretação e o recepcionará de formas diversas; críticas positivas e negativas fazem
parte do universo do escritor e, para dele fazer parte, é mister saber recebê-las. Neste post,
Mariana comenta como se frustrou com um comentário pejorativo de um leitor. Da
euforia advinda com a notícia da publicação, rapidamente passou à decepção das duas
únicas palavras que seu crítico escreveu – e que intitularam o post: “débil catarse”. Se por
um lado a blogueira, inicialmente, reagiu mal à crítica, por outro, na segunda parte do
post, demonstrou amadurecimento:
135
impressa, para um autor inédito, são incertas. Além disso, considerando a legitimidade
conferida ao livro, seu insucesso seria muito mais severo, implacável.
REFERÊNCIAS
______. Importa o que está escrito. Entrevista concedida a Fabíola Hauch e Rodrigo de
Andrade, 22 de outubro de 2007. Disponível em:
<http://www.osarmenios.com.br/2007/10/%E2%80%9Cimporta-o-que-esta-
escrito%E2%80%9D-entrevista-com-clarah-averbuck/>. Acesso em: 10 de jan. de 2010.
136
______. Personagem de si mesma. Entrevista concedida a Ramon Mello, 4 de outubro de 2007.
Disponível em:
<http://wwwb.click21.mypage.com.br/MyBlog/visualiza_blog.asp?site=clickinversos.myblog.c
om.br&primpost=m52Tk87Jje4go30em8IT7104172728IRYHH3H0PF&inframe=T>. Acesso
em: 10 de jan. de 2010.
AZEVEDO, Luciene. Blogs: a escrita de si na rede dos textos. In: Matraga, Rio de Janeiro, ano
14, n.21, p. 44-55, jul./dez. 2007.
BARTHES, Roland. A morte do autor e da obra ao texto In: O rumor da língua. São Paulo/
Campinas: Brasiliense/ Ed. da Unicamp, 1988 (p. 65-78).
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas;
vol. I).
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada
etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
137
SÁ, Sérgio de. O escritor entrevistado: mass media e figurações. In: SÁ, Sérgio de. A
reinvenção do escritor: literatura e mass media. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010 (p. 145-169).
VIEGAS, Ana Cláudia. O “retorno do autor”: relatos de e sobre escritores contemporâneos. In:
VALLADARES, Henriqueta do Coutto Prado (Org.). Paisagens ficcionais: perspectivas entre o
eu e o outro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
138
A PERFORMANCE (AUTO)BIOGRÁFICA NA CONSTRUÇÃO
DA MEMÓRIA EM OS DIAS COM ELE1
Bruno Saphira2
Resumo: O presente artigo é composto por uma analise do filme Os dias com ele com
foco na construção da memória íntima e coletiva que, na obra em questão, é feita através
dos elos entre biografia e autobiografia. Uma espécie de autobiografia criada a partir da
personagem biografada. A diretora, Maria Clara Escobar, traça uma imbricada relação
entre esquecimento e memória, afetiva e histórica, ao filmar o encontro com o pai, com
quem não conviveu, Carlos Henrique Escobar, um dramaturgo e intelectual que foi preso
e torturado pela ditadura militar. As relações se complexificam pela consciência
performativa do pai que tensiona a condução do filme e questiona sua validade quando
avalia o que pode e deve ser dito e mostrado. Esse artigo parte das discussões sobre as
indistinções entre a obra biográfica e autobiográfica e traz como elemento complicador
dessa relação, pensadas no campo do cinema, as noções de performance e mise en scène
na obra documental, que acentuam o debate sobre a materialidade expressiva do filme e
seus elos de representação da realidade que compõe e ultrapassa o filme.
Palavras-chave: performance; autobiografia; documentário.
Abstract: The present article consists of an analysis of the film The days with him,
focusing on building the intimate and collective memory that in this film is made through
the links between biography and autobiography. A kind of autobiography created from
biography character. The director, Maria Clara Escobar , provides an intertwined
relationship between forgetfulness and memory, affective and historical , to film the
meeting with her father , with whom they do not lived , Carlos Henrique Escobar ,
playwright and intellectual who was imprisoned and tortured by the military dictatorship
. The relationships become complex by performative awareness that strains father driving
the film and questions its validity when assessing what can and should be said and shown.
This article begins by discussions about the lack of distinction between the biographical
and autobiographical work and brings a complicating this relationship, thought in the field
of cinema element, the notions of performance and mise en scène in documentary work,
which accentuate the debate on the expressive materiality the film and its links
representation of reality that makes up the movie and beyond.
Keywords: performance; autobiography; documentary.
1
Mesa-redonda Memória e Resistência II.
2
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Vinculado ao Laboratório de Análise Fílmica (LAF).
139
INTRODUÇÃO
Maria Clara Escobar, diretora e personagem do filme Os dias com ele (2013), nos
diz ao tentar dizer a seu pai, Carlos Henrique Escobar, personagem principal, as
motivações que a fizeram propor o encontro entre eles para a feitura da obra: é sobre dois
silêncios que me compõem. Um enquanto filha, que não teve a presença e não conhece a
história do pai, e o outro enquanto cidadã, que busca se engajar na reescrita de um fato
histórico caro ao país que teve seu pai como atuante e sobre quem recaiu as mais duras
penas. Ele foi preso político nos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil e torturado
pelas forças repressoras do regime.
141
das obras que não se enquadrariam em sua definição stricto sensu de autobiografia. Obras
em que “o esforço da memória e o esforço da escrita seriam asseguradas por pessoas
diferentes” (FREIRE, 2003, p. 21). No caso de Os dias com eles, guardados os lugares de
autor e personagens, pode-se atribuir parte dessa escrita também à personagem principal
justamente por ter cenas sugeridas incorporadas ao filme e que significativamente
compõem a memória que ela quer transmitir da forma como acha adequado.
É interessante notar em Os dias com ele esse duplo convite à sua fruição a partir
das formulações do teórico Roger Odin (2005) em torno de seu método semiopragmático
de compreensão de como os textos são construídos e os efeitos dessa construção que
seriam uma (auto)biografia documental e um filme de família.
No plano da memória íntima, Maria Clara não nos relata acontecimentos de sua
vida que remetam a fatos externos – o que possibilitaria uma aferição de sua veracidade.
Ela nos fala em construir uma memória a partir da falta de vivência junto a seu pai,
metaforizada como um silêncio pessoal. Há algo que falta para ela, algo que ela busca
para a elaboração de si. E tal propósito não pode ser pautado por uma busca de verdade,
já que se trata de uma não vivencia. Aliado a isso temos a construção no filme desse
propósito, e do fazer o encontro entre pai e filha falar, suprindo os silêncios da diretora,
142
absolutamente exposta através de sobras de plano onde vemos e ouvimos o que seriam a
preparação e a avaliação posterior da cena pró-fílmica, digamos.
Esse aspecto é marcante no filme, e faz com que seu aspecto documentarizante, no
dizer de Odin (2005), seja inequívoco. Não há uma sequencia sequer, dos diálogos entre
diretora e protagonista, em que não acompanhemos a preparação e o desfecho da cena.
Porem essas cenas que nos remetem aos bastidores da produção do filme o constituem de
forma central. Essa cumplicidade é reveladora dos embates na construção das memórias
e na exposição de nosso teor performático, principalmente quando nos tornamos
duplamente personagens. Performatividade que se volta para a possibilidade do filme
enquanto realidade em si, para além ou aquém do aspecto de representação que também
o atravessa.
Quanto ao segundo convite apontado acima, Os dias com ele curiosamente nos traz,
em meio a tantas questões, embates e imbricações, um aspecto formal muito fortemente
de filme de família, e principalmente por dois aspectos. O primeiro está relacionado a
duas características da exposição do filme. Do quê e de como são compostos seus planos.
Inicialmente, a de extrema abertura de exposição do processo de produção do filme, mas
não apenas isso. Essa mostração traz características de quase amadorismo técnico. Em
muitos momentos vemos que a cineasta, que segundo os créditos do filme conduziu
sozinha as filmagens, abdica de tentar estabelecer um enquadramento, ou ajustes da
exposição fotográfica, para não perder o que o instante da circunstância
vivenciada/registrada poderia trazer para o filme. E, em segundo lugar, as muitas
sequências que dialogam com esses momentos de entrevistas e que nos mostram o dia a
dia do que fora esse encontro entre pai e filha, seriam momentos de respiro entre as
tensões geradas pelos embates, mas que ganham maior relevância por nos ambientar uma
vivência que parece ser o propósito maior da cineasta. Ao menos do que lhe é
afetivamente caro, a ausência de seu pai.
143
ENTRE PERFORMANCES
Proponho trazer para essa abordagem uma outra noção que tem sido trabalhada no
cinema documentário e que pode enriquecer o olhar analítico sobre os filmes
autobiográficos. Trata-se, pois, da noção de performance na composição da cena
documental. O termo, assim como conceituado pelo sociólogo Erving Goffman (2009)
diz respeito a um dado constitutivo das relações intersubjetivas e que não se vinculam às
noções de verdade e mentira. Seria a expressão das estratégias de projeção de uma
imagem de si em nosso meio social, forjada pela trama entre a maneira como nos
concebemos e como gostaríamos que nos concebessem.
144
propõe como a cena onde atuará deve transcorrer. A personagem tensiona e desestabiliza,
ao menos no momento da filmagem, o lugar da direção. Que por fim, assumindo
novamente o desenho do filme na montagem, expõe as proposições e atuações da
personagem – às vezes dentro de um mesmo plano sequência – e evidencia o caráter
constitutivo da performance na cena.
As escolhas da personagem não apontam para o que ela não viveu, elas revelam
suas escolhas de como gostaria de ser lembrada, do que lhe parece importante registrar e
sobre tudo da forma de compor esse registro. Não há e nem poderia haver inverdades em
suas investidas, em suas performances. Há busca de memória, imaginação, fábula,
provenientes do que para ele é expressão de uma autenticidade. Pode-se pensar os
embates do filme a partir do prisma da performance, de uma disputa que se estabelece
por conta do caráter propositivo da personagem em querer dirigir sua biografia. De saber
exatamente qual dentre as suas possíveis performances gostaria de mostrar.
Através de análise de Os dias com ele, ao menos, pode-se dizer que não. Os regimes
de performance parecem evidenciar as diversas possibilidades de expressão de uma
pessoa/personagem no encontro proporcionado pelo filme, ao passo que estimula um
olhar sobre o filme documentário, qualquer um deles, enquanto superfície de expressão
própria, que não traz necessariamente enquanto efeito ou questão o que estaria para além
da própria experiência de fruição.
145
EMBATES DE MEMÓRIA
Os dias com ele é especialmente estimulante para o debate por trazer um contexto
em que as categorias trazidas para a análise são fortemente interligadas. São expressas
através dos embates entre pai e filha na construção do filme que tem como finalidade
inicial, anunciada pela diretora, suprir dois silêncios que a compõem enquanto filha e
cidadã. Os elos entre uma memória particular e uma memória pública atravessam a obra,
que traz na performance do pai e na mise en scène possível aspectos emblemáticos das
146
possibilidades e formas de construção dessas memórias. Forma essa que se torna
emblemática nas recusas e proposições de Carlos Escobar no encontro conflituoso com
sua filha para a realização do filme. Como criar um discurso, como criar uma imagem a
partir de silêncios tão caros?
Em uma das sequências mais fortes ouvimos a recusa do dramaturgo em ler a ordem
de sua prisão emitida pelos militares. A discussão entre pai e filha se dá de forma
contundente e atrás das câmeras. Na imagem apenas uma cadeira vazia à espera da
personagem. Ele se nega a participar da cena imaginada por ela que, depois de sua saída,
ocupa o lugar previsto para ele e, bastante constrangida, lê o documento. E é assim que
em Os dias com ele se dá corpo a uma memória.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A autobiografia e a biografia. In: Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
FREIRE. Marcius. Jean Rouch ou o filme documentário como autobiografia. Uma introdução.
In: CATANI, Afrânio Mendes (et al.).(Orgs.). SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de
Cinema, ano V, São Paulo: Panorama Ed., 2003. Disponível em:
<http://www.socine.org.br/livro/V_Estudos_Socine.pdf>. Acesso em: 04 de nov. de 2016.
ODIN, Roger. A questão do público: uma abordagem semiopragmática. In: RAMOS, Fernão
(Org.). Teoria Contemporânea do Cinema (vol. II). São Paulo: Senac, 2005 (p. 27-45)
147
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15 Disponível em:
<http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acesso em: 04 de
nov. de 2016.
148
A PRIMEIRA PESSOA DENTRO E FORA DAS NARRATIVAS
CONTEMPORÂNEAS: O AUTOR ALÉM DA OBRA1
Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar as interações entre autor-leitor-obra
como uma ação integrante do espaço biográfico do autor, hoje ampliado pelo advento das
novidades tecnológicas e do massivo uso do meio virtual. Trata do apagamento dos
limites entre realidade e ficção que permeiam a obra literária em função da constante
presença do autor no dia a dia do leitor, através das redes sociais e outros elementos
também relacionados ao mercado literário. Usa como exemplo dessas novas formas de
interação e desmitificação da entidade “escritor” um episódio envolvendo a escritora
Elvira Vigna e o seu romance Nada a dizer.
1
Mesa-redonda Desafios da (auto)ficção.
2
Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
149
e as teorias de criação literária estão nos currículos das graduações de Letras. Ainda, a
profusão de novas tecnologias e mídias proporciona novas áreas de contato – muito além
da obra – entre o leitor e o escritor, tornando cada vez mais complexa a tarefa do primeiro
de consumir/absorver a arte por ela mesma, independentemente da vida privada do artista;
e a do segundo de vender/transmitir a arte por ela mesma, sem precisar se agarrar ao
desenvolvimento de uma verdadeira marca pessoal.
O ser de carne e osso que escreve e o ser de carne e osso que lê se configuram em
autor e leitor, tradicionalmente, através da obra; e quase somente através dela é que o
leitor, até pouco tempo, tinha acesso ao autor. Para Phillipe Lejeune (2008, p.23),
O autor é, por definição, alguém que está ausente. Assinou o texto que
estou lendo – não está presente. Mas se o texto me lança perguntas,
sinto-me tentado a transformar em curiosidade por ele e desejo de
conhecê-lo a inquietação, a incerteza ou o interesse engendrados pela
leitura. É o que denominarei ilusão biográfica: o autor surge como
“resposta” à pergunta feita por seu texto.
Se o leitor há muito conta com alguns dos instrumentos citados acima para
interpelar o autor a respeito de sua criação e, mais especificamente, a respeito da
intertextualidade entre sua vida e obra, contemporaneamente o espaço autobiográfico que
circunda a existência do ser que escreve é amplo, transbordante, surpreendente, e em
grande parte alimentado pelo próprio autor. É cada vez menos comum a imagem do
escritor recluso e/ou excêntrico; assistimos nossos ficcionistas preferidos participarem da
vida política e social do país através dos jornais e programas televisivos; eles fazem
questão de estar em todos os lugares, dispondo do arcabouço descrito por Leonor Arfuch
(2009, p. 114):
150
Neste espaço, densamente povoado, desdobram-se
contemporaneamente tanto os gêneros tradicionais, sempre na lista dos
best-sellers – biografias, autobiografias, memórias, diários íntimos,
correspondências, testemunhos, histórias de vida – quanto as escritas
das margens, que vivem uma espécie de primavera editorial –
rascunhos, cadernos de anotações, de viagens, anotações de cursos,
lembranças de infância –, junto com uma multidão de registros
midiáticos; a entrevista, em primeiro lugar, mas também conversações,
retratos, perfis, anedotários, indiscrições, confissões próprias e alheias,
narrativas de auto-ajuda, velhas e novas variantes do show – talk show,
reality show – sem deixar de fora por certo o da política.
Tal pretensa intimidade poderia desmistificar uma profissão que se firmou
culturalmente sobre uma aura de mistério e elitismo? Para Lejeune, a exposição da
imagem do autor alimenta o seu caráter de “resposta” a questões irrespondíveis pelo seu
texto e se torna plausível e aceitável a sua aproximação:
151
A relação entre seres humanos e personagens não é privilégio da atualidade; sobre
esse par se construiu a literatura. Os personagens, para Antonio Candido (1995, p. 45),
“como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem
cognoscitiva, religiosa, moral político-social e tomam determinadas atitudes em face
desses valores”. A tendência é que o escritor, dessa forma, crie personagens que se
identifiquem com a época à qual ele é contemporâneo; personagens que reflitam a
condição da subjetividade do próprio escritor no tempo e no espaço em que ele se insere.
Uma das maneiras é a escolha pelo foco narrativo em primeira pessoa. Normam
Friedman (2002, p. 180) afirma que “a escolha de um ponto de vista ao se escrever ficção
é, no mínimo, tão crucial quanto a escolha da forma do verso ao se compor um poema”.
David Lodge (2009, p. 36) também confere suma importância à escolha do ponto de vista
sob o qual uma história é contada, “pois tem um impacto profundo no modo como os
leitores vão reagir, na esfera emotiva e moral, aos personagens e às suas ações”. No
entanto, num momento em que a tendência é desconstruir as estruturas pré-concebidas do
narrar, talvez seja mais válido o conselho de John Gardner (1997, p. 208), “na literatura
contemporânea, o escritor pode fazer o que quiser com o ponto de vista, desde que o que
152
fizer funcione”. Em concordância com Gardner, Stephen Koch (2008, p. 113) não hesita:
“a história é a personagem. A personagem é a história. Você vai ouvir muitas vozes
tentando persuadi-lo de que essa antiga verdade não é mais válida. Recomendo com
veemência que as ignore”.
A ideia de um ser humano suficiente em sua própria essência foi sendo substituída
por uma nova ideologia sociológica, em acordo com “a crescente complexidade do
mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo
e autossuficiente, mas era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele’”
(HALL, 2011, p. 11). De acordo com Hall (2011, p. 11), essa visão mantinha a ideia de
núcleo interior do sujeito, mas se tratava de uma essência que se ia construindo na
interação com o outro: “O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu
real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”.
153
Hoje, a estrutura que sempre amparou o sujeito, seja em relação a si mesma ou em
relação ao outro, está desfeita: “[...] à medida que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos
nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2011, p. 13).
Elvira Vigna é uma escritora emblemática da nova geração a que me refiro aqui,
uma nova geração não formada exclusivamente por jovens, mas por aqueles que aderem
e adaptam-se ao movimento tecnológico. Vigna mantém muito ativos seus perfis em redes
sociais, falando sobre seus trabalhos atuais e antigos, suas perdas e conquistas no meio
editorial, a situação da literatura no país e no mundo, tecendo críticas ao mercado e a
outros escritores, compartilhando textos, matérias, artigos, dialogando, comentando a
vida em geral.
Nada a dizer (ND), de Elvira Vigna, trata-se de uma narrativa em primeira pessoa,
em que a personagem protagonista é uma mulher de mais ou menos sessenta anos que
rememora (enquanto reelabora) o episódio em que seu marido, também sexagenário,
relacionou-se com uma mulher vinte anos mais jovem, o que a obriga a encontrar novos
significados para a relação e para si mesma. Embora a protagonista de ND tenha a mesma
faixa etária da autora Elvira Vigna, as duas compartilhem meio social e cultural próximos
154
e a linguagem do livro seja construída num tom confessional, o romance serve a este
estudo como ilustração de uma forma específica da relação entre autor-obra-leitor,
mediada pela tecnologia promovida pela contemporaneidade.
“Aline” é uma blogueira que mantém a página Godot não virá como um espaço
destinado a, entre outras coisas referentes à área da literatura, resenhas de livros de ficção
produzidas por ela mesma. Em setembro de 2011, a autora da página publicou uma
resenha3 sobre ND. “Aline” identifica-se apenas por este nome, não revela ao público
qual sua formação ou nível de contato com a Teoria e a Crítica Literária; ao que indica, é
uma leitora que escreve resenhas por prazer. Até este ponto, tudo normal para o ano de
2011 e sua intensa produção autoral através da internet. Obras são lançadas o tempo todo
no mercado e cria-se em torno delas uma metaprodução que escapa ao controle do autor
e aos limites da autoria. A curiosidade, neste caso, é a interferência da própria Elvira
Vigna no que seria uma metanarrativa de sua obra.
3
Resenha e comentários citados a seguir estão disponíveis em:
http://godotnaovira.wordpress.com/2011/09/07/nada-a-dizer/
155
“posição prévia”. Mas em faltando o anexo explicativo, é de muita
eficiência esse serviço de Interpretare Letteratura Personalité que vc
oferece àqueles que se propõem a escrever “errado” sobre seu livro.
Elvira Vigna contra-argumenta: “bem, aline, aqui me despeço. sua agressividade
me confirma um medo, a de que você estivesse desde o começo defendendo uma posição
pessoal em vez de ler um texto – o que supõe uma abertura. ciau.”
São muitas as inferências que podem ser realizadas a partir deste evento. Algumas
podem advir da discussão que se seguiu nesse mesmo espaço do blog destinado aos
comentários, após a interferência de Vigna. Entre outras, o não menos significativo, para
o contexto, comentário de “Antonio”: “será q é um romance autobiográfico?” Ou, ainda,
de “Manoel Galdino”, que exemplificou: “Já pensou o Machado falando, ó, a Capitu não
traiu não, isso é leitura machista. Quem lê assim tá errado. Ou então, é claro que traiu, os
sinais tão todos lá, lê direito…” E, por fim, o comentário de “lu”, que aborda o ponto que
pretendemos demonstrar com esse exemplo:
Os dias atuais são dias de superexposição, da qual não escapam nem mesmo os
tradicionalmente reclusos intelectuais. Dificilmente uma obra publicada por uma grande
editora atinge larga abrangência e determinado sucesso sem que seu autor tenha sua
imagem estampada na orelha da publicação ou gravada em vídeos de divulgação, suas
opiniões registradas em entrevistas de suplementos culturais de jornais, suas
idiossincrasias transformadas em propaganda. A literatura contemporânea se estabelece
num mercado, que, como não poderia deixar de ser, possui regras para gerar o retorno
156
almejado, e a presença do escritor – um ser humano com rosto, voz e opinião – como o
responsável por sua criação é uma delas. Lejeune (2008, p. 202-3), a respeito da
intervenção do mercado, afirma:
157
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Ditos e escritos III - Estética: Literatura e Pintura,
Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 264-298.
GARDNER, John. A arte da ficção: orientação para futuros escritores. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
KOCH, Stephen. Oficina de escritores: um manual para a arte da ficção. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2008.
VIGNA, Elvira. Nada a dizer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
158
AUTRAN DOURADO: MEMÓRIA E FICÇÃO NA TRILOGIA DO
ALTER EGO1
Resumo: Este texto apresenta uma reflexão acerca das relações entre espaço e memória
afetarem as diferentes modulações escolhidas na escritura das seguintes obras
autoficcionais de Autran Dourado: O risco do bordado, Um artista aprendiz e A serviço
del-Rei. A proposta é fazer um estudo tendo em mente a possibilidade da autoficção
protagonizada por João da Fonseca Nogueira – um dos alter egos do escritor mineiro –
ser uma maneira encontrada por Dourado de deixar seu rastro na literatura brasileira.
Palavras-chave: Autran Dourado, autoficção, memória, espaço, narrativa.
Abstract: This text presents a reflection on the connections between space and memory
affecting the different writing styles of these following Autran Dourado’s novels: O risco
do bordado, Um artista aprendiz and A serviço del-Rei. The intention is to do this study
keeping in mind the possibility of this self-fictional role played by João da Fonseca
Nogueira – one of the writer’s alter egos – is a way found by Dourado of leaving his
tracks in the Brazilian Literature.
Key-words: Autran Dourado, self-fiction, memory, space, narrative.
1
Mesa-redonda Memória e ficção em narrativas literárias.
2
Mestre em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG).
159
ao fato de o protagonista, nas três obras, ser o alter ego do escritor mineiro mostrado em
composições literárias intrinsecamente distintas, assim como são distintas as fases da vida
do alter ego, do autor e dos tipos de espaços por eles transitados nesses diferentes
períodos.
3
Na trama da escrita autoficcional há a afirmação de haver polêmicas quanto à criação do neologismo,
também, atribuído ao escritor, nascido na Polônia e naturalizado americano, Jerzi Kosinnski em sua obra
L’Oiseau Bariolé. (Cf. OLIVEIRA, 2013, p. 35)
160
personagens fossem um desdobramento ficcional do autor em narrativas imaginárias.
Enquanto que para Philippe Vilain (2005, p.119) a autoficcionalização é a “capacidade
de desdobramento narcísico” presente na imaginação autobiográfica que possibilita ao
autor criar um duplo para si mesmo.
4
As datas em parênteses referem-se às primeiras publicações em língua francesa.
161
Vale lembrar que a expressão alter ego5 tem origem no latim: alter, que significa
“outro” e, ego cujo significado é “eu”, isto é, o outro eu – a outra personalidade de uma
mesma pessoa. A expressão é usada na literatura para designar a identidade oculta de uma
personagem ou uma estratégia de um autor para se revelar indiretamente aos seus leitores.
O trabalho de Autran Dourado como carapina de histórias começou cedo. Seu ideal,
desde criança, era se tornar um grande escritor. O autor relata que mesmo antes de
concluir o curso primário, já inventava histórias para Antônia, uma empregada analfabeta
“muito interessada nos misteriosos livros da biblioteca de seu pai”. Como sua capacidade
de leitura fosse ainda incompatível com o acervo disponível, não se intimidava diante dos
pedidos de leitura feitos por Antônia: “criava mil e uma peripécias” fingindo ler (SOUZA,
1996, p.27). Dourado conta, também, em “O primeiro livro” – um dos capítulos de Breve
manual de estilo e romance (2003) – que aos dez anos comprou um caderno grosso, de
capa dura, com a finalidade de escrever um livro. Entretanto, rapidamente, aprendeu não
ser a escrita o produto de uma inspiração ou de um simples impulso. Cometeu diversos
erros, mas não fez quaisquer modificações no que havia escrito para não rabiscar o
caderno-livro, mas após essa experiência, adquiriu outros dois cadernos mais simples para
fazer os rascunhos das futuras histórias. Havia aprendido sua primeira lição: “as histórias
têm que ser escritas e reescritas” (DOURADO, 2003, p. 40).
Aos dezesseis anos, Autran Dourado recebeu seu primeiro prêmio literário em um
concurso de contos promovido pela revista Alterosa, com “O canivete de cabo de
madrepérola”. Aos dezessete, já havia escrito um livro de contos que levou para o escritor
e tradutor mineiro Godofredo Rangel dar seu parecer. Rangel, após ler o original e
felicitar o jovem candidato a escritor por não ser precoce, incentivou-o a fazer um
aperfeiçoamento através da leitura de grandes escritores, para que tivesse uma boa
formação literária antes de se enveredar pelos caminhos da escrita. Assim iniciou-se uma
amizade entre os dois baseada em um relacionamento mestre e aprendiz, vindo a gerar
muitos bons frutos à literatura brasileira. Em 1947, quatro anos após o encontro com
Godofredo Rangel, Autran Dourado estrearia na literatura com o livro Teia – escrito aos
19 anos e editado aos 21.
5
Informação obtida em: http://www.significados.com.br/alter-ego/. Acesso em 02/01/2014.
162
mesmo, percebendo a escrita como “uma aventura” e “o sustentáculo de sua solidão”,
Dourado em entrevista à Ângela Senra (1983, p. 7) confessa: “[...] não tenho o menor
prazer em escrever. Escrevo porque me sinto frustrado quando não escrevo”. Deleuze,
em seu texto O ato de criação (1999) explica esse tipo de sentimento sofrido por artistas
ao afirmar: “Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo
de que tem absoluta necessidade” (DELEUZE, 1999). Da mesma forma, em O prazer do
texto (1973), Barthes ao explanar a diferença entre o prazer e a fruição da leitura, associa
essa diferença à escritura, além de asseverar – como Deleuze – a existência de uma
necessidade da escrita: “A tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se
forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura” (BARTHES, 1993, p. 9).
Mesmo já tendo escrito dezoito dos trinta e um livros que compõem a sua obra,
Dourado declarou à Ângela Senra (1993, p. 8) não ser um escritor profissional, pois seu
sustento provinha do trabalho público, que lhe permitia algum tempo para se dedicar ao
trabalho literário. Esse arranjo foi uma forma de lhe garantir o sustento e de lhe propiciar
o “ócio necessário para a realização nas letras”. Conforme atesta Dourado (2003, p. 53),
apesar de seu pai fazer muito gosto a sua tendência literária, deu-lhe um “conselho-
ultimatum” de se formar bacharel em Direito, mas aconselhou-o, também, a “não ser um
grande advogado”, para assim ter como se dedicar às letras. Dourado seguiu os conselhos
dados, contudo associou-os a uma tendência de sua época para atingir seus objetivos
literários: antes de concluir o Bacharelado em Direito, ingressou-se no funcionalismo
público. Essa solução é comum no Brasil. Vários escritores e poetas brasileiros usaram
desse artifício para escrever e sobreviver materialmente.
De fato, essa foi uma tendência no Brasil, como observado por Sérgio Micelli
(1979) em Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945): “[...] quase toda a
literatura, no passado como no presente, é uma literatura de funcionários públicos”. O
serviço no funcionalismo público foi iniciado por Dourado na função de taquígrafo na
Câmara Municipal de Belo Horizonte e, depois, teve continuidade na Assembleia
Legislativa do Estado de Minas Gerais. Entretanto, quando Juscelino Kubitschek foi
eleito governador de Minas Gerais, Dourado foi convidado a trabalhar em seu gabinete,
pois preenchia um difícil requisito solicitado para o cargo: um taquígrafo que fosse
também escritor. Autran Dourado trabalhou no governo de JK durante nove anos,
distribuídos nas funções de Oficial de Gabinete, no Governo mineiro e de Secretário de
Imprensa, na Presidência da República. Nesse período, o trabalho de carapina de histórias
163
ficou comprometido devido ao tumultuado exercício de funções que se via compelido a
executar, mesmo não sendo sua atribuição segundo Dourado (SENRA, 1983, p. 6).
6
Toda vez que um romancista decide destilar inconfidências em surdina, ele recorre a uma forma literária
chamada roman à clef (romance com chave, em francês). No fundo, trata-se apenas de ocultar sob
pseudônimo pessoas de carne e osso e modificar alguns detalhes ou cenários reais, para despistar. Quem
tem a "chave" decifra a charada com facilidade. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/270803/p_130.html>. Acesso em 07 set. de 2013.
164
identificar praticamente todos os intelectuais presentes em Um artista aprendiz por meio
da leitura de O desatino da rapaziada (2012), em que Humberto Werneck faz um
apanhado do jornalismo e da literatura em Minas, no período de 1920 a 1970, por meio
do envolvente relato da história de seus protagonistas.
165
Dessa forma compósita, também, são trabalhados os personagens que compõem os
romances da trilogia do alter ego. João da Fonseca Nogueira, como narrador protagonista,
corporifica a alma de um escritor, mostrando três fases distintas de sua vida: a infância e
a adolescência, a juventude e a vida adulta. A infância e a adolescência são narradas em
O risco do bordado; a juventude em Um artista aprendiz; e a vida adulta, em A serviço
del-Rei. Apesar de não constar nos romances qualquer data e de seus personagens serem
ficcionais, é impossível não identificar três fases distintas da história nacional
transcorrendo em paralelo à vida do autor, na pele do alter ego.
Por isso, Dourado (2003, p. 8) afirma categoricamente: “Você precisa viver muito,
cheirar muito, ouvir muito, ver e apalpar muito, ouvir o batimento de seu coração, para
fazer uma bela e contundente metáfora; já o símile é mais fácil”. Portanto, a comparação
dos termos João e escritor não constituiria um simples símile: a vida de João como
escritor, mas uma “contundente metáfora”: a vida de João escritor, já que João não tem
outra vida a não ser a vida de escritor. Primeiramente em O risco do bordado, livro que
mostra a idealização, o planejamento, os primeiros passos para a conquista do sonho
insinuado já na metáfora do título. Ou seja, o caminho traçado para ser seguido por João
para se tornar um futuro escritor. Outra metáfora ligada ao termo risco, explicada por
Dourado (SANTOS, 2008, p. 199), estaria ligada também à estrutura da narrativa: “o
risco serve para a gente não se perder. [...] A gente tem que ir deixando rastro, senão não
se acha mais o fio da meada”. Portanto, em O risco do bordado, as metáforas construídas
caprichosamente por Dourado desdobram-se para preparação da metáfora maior: a vida
de João escritor.
166
Embora a leitura de O risco do bordado evoque no leitor a imagem do autor Autran
Dourado – seja em função da tentativa de prover corpo ao personagem, ou ainda, por
saber se tratar de uma autoficção – há que se enfatizar que João nada mais é do que uma
transposição de figuras e não o agente de uma autobiografia. Quanto a essa questão, vale
lembrar a análise feita por Jeanne Marie Gagnebin (2011, p. 89), em História e narração
em Walter Benjamin, sobre a perspectiva política de Benjamin relacionada ao passado em
“Infância berlinense”. A autora afirma que apesar do caráter autobiográfico assumido por
Benjamin, “qualquer narração de si também [é] uma ficção de si mesmo”. Essa dedução
da autora advém da premissa que a voz da criança resgatada pela lembrança do adulto,
em qualquer narração, traz à tona “dimensões mais amplas do inconsciente e do político”.
Dessa forma, as peculiaridades dessas dimensões não poderiam ser atribuídas a uma
criança. Assim, Gagnebin conclui seu pensamento:
7
Gagnebin (2011, p. 84) explica que os conceitos de mesmidade e de ipseidade são conceitos analíticos de
Ricoeur e referem-se à identidade. Assim, a identidade correspondente à questão que seria a “identidade-
mesmidade (idem), que afirma a permanência e a continuidade dos objetos”.
8
A identidade-ipseidade (ipse) “corresponde à questão quem [...] e caracteriza o sujeito da linguagem e da
ação” e possibilita refletir acerca do “tempo da enunciação” e do “tempo da ação ética e política”.
167
suas funções na cúpula do governo, é possível apreciar a rápida mudança por que passa o
escritor-personagem que “protagoniza o conflito entre vocação literária e o concubinato
do poder”, em uma construção autoficcional criada por Dourado a partir do
entrelaçamento de história e ficção, romance e tragédias clássicas tecidas em uma trama
que potencializa a universalização do escritor na reconstrução de si mesmo (SOUZA,
1996, p.18).
168
A potência implícita na imagem do rastro pode tanto levar ao entendimento de
perpetuação quanto de efemeridade, qualidade que, por sua vez, pode ser atribuída tanto
à memória quanto à escrita. Gagnebin (2009, p. 44) explica que essa mesma qualidade da
memória e da escrita pode ser observada no campo metafórico e semântico. Isso porque
“as ‘palavras’ só remetem às ‘coisas’ na medida em que assinalam igualmente sua
ausência, tanto mais os signos escritos, essas cópias de cópias [...] da palavra pronunciada
(fonema) e da presença do ‘objeto real’ que ele significa”.
169
mundo está relacionada ao espaço, então poder-se-ia afirmar que o espaço é uma espécie
de definidor de relações?
Para o geógrafo Milton Santos (2005, p. 22), o conceito de espaço abrange muito
mais do que uma definição de relações: “a história não se escreve fora do espaço e não
há sociedade a-espacial”, sendo “o espaço, ele mesmo social”. Santos questiona “se é
possível falar de Formação Econômica e Social sem incluir a categoria espaço” e se não
seria mais apropriado referir-se a essa categoria como uma “Formação Econômica, Social
e Espacial”. Além disso, Santos distingue o espaço como o local da vida em comum, mas
onde a vida social se individualiza em função das ações individuais:
170
vital” é habitado. Pois segundo ele, esse espaço contém “todas as dialéticas da vida”.
Bachelard explica que a imaginação, ao encontrar “o menor abrigo”, tende a “reconfortar-
se com ilusões de proteção – ou inversamente, [...] duvidar das mais sólidas muralhas.”
Seguindo esse raciocínio, o autor parte de uma imagem lírica dos espaços de proteção,
para desenvolver concatenações com outras imagens espaciais experienciadas pelo ser
humano, nos diferentes percursos de sua vida. Com base nessa ideia associada ao conceito
de Bachelard, a mobilidade geográfica do protagonista João da Fonseca Nogueira parece
influenciar a percepção dos aspectos físicos e subjetivos relacionados ao espaço por ele
vivenciado, refletindo na escritura de Dourado.
Em A serviço del-Rei, mais uma vez, a escritura de Autran Dourado se torna outra.
Talvez reflita as influências do serviço público, quer seja consciente ou
inconscientemente, na escrita burocratizada escolhida pelo autor. Essa escrita tão diversa
da prosa lírica de O risco do bordado e das estratégias psicológicas utilizadas em Um
artista aprendiz é um indício da memória dos diferentes aspectos espaciais influenciando
os aspectos subjetivos do personagem e, consequentemente, afetando a composição
ficcional adotada pelo autor. Entretanto, essa afirmativa é apenas um vislumbre e requerer
mais pesquisas para sua confirmação.
REFERÊNCIAS
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11 de julho de 1998. Disponível em http://virtualbib.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061.
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172
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Disponível em : <http://www.lemonde.fr/livre/article/2010/03/25/inventer-un-language-de-
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MICELI, Serge. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1929-1945). Rio de Janeiro: DIFEL –
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RICOUER, Paul. Memória, história, esquecimento. Trad. Alain Français et al. Campinas:
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SANTOS, Luis Alberto Brandão e OLIVEIRA, Silvana Pessôa. Sujeito, tempo e espaço
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2004. 385 p.
SENRA, Ângela Maria de Freitas. Autran Dourado – literatura comentada. Belo Horizonte:
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SOUZA, Eneida Maria. Autran Dourado – encontro com escritores mineiros. Belo Horizonte:
CEL– Centro de Estudos Literários da UFMG, Curso de Pós-Graduação em Letras – Estudos
literários, 1996. 114 p.
173
VILAIN, Philippe. Défense de Narcisse, suivi d'un entretien avec Serge Doubrovsky, Grasset,
2005. 234 p.
WALTY, Vera L. Camargos. O que é ficção. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 82 p.
174
POÉTICAS DO COTIDIANO E WEBDOCUMENTÁRIOS: DIÁRIOS
DA VIDA DO HOMEM ORDINÁRIO1
INTRODUÇÃO
1
Mesa-redonda No compasso do homem comum.
2
Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e professora das
Faculdades Metrocamp, Campinas (SP).
175
Trata-se de uma série de filmes curtos, de dois minutos cada, produzidos em 20083,
com a proposta de documentar a vida de pessoas comuns em Gaza (território palestino) e
Sderot (território israelense). Durante 10 semanas, equipes israelenses e palestinas
filmaram moradores de cada região, cinco dias por semana.
WEBDOCUMENTÁRIOS
Não há uma única definição para webdocumentários. Esse formato audiovisual faz
parte de um conceito relativamente novo, que se desenvolve a partir de um contexto
específico de comunicação interativa, de acesso livre, possível somente através da
navegação pela web.
Segundo Tatiana Levin (2013), o termo foi utilizado pela primeira vez no ano de
2002, no festival de documentários Cinema du Réel, para identificar uma nova forma de
organização narrativa audiovisual. Em busca de uma definição adequada ao termo, Levin
organiza algumas definições propostas por diferentes pesquisadores da área, desde um
documentário feito para web (definição literal do termo), até pensamentos mais
elaborados, como o da pesquisadora Sandra Gaudenzi, que estabelece parâmetros
específicos relacionados à interatividade.
O fato é que ainda não há um consenso quando se trata de analisar esse novo
formato. Os próprios autores de propostas audiovisuais interativas divergem sobre incluir
3
O ano de 2008 é significativo: marcou o aniversário de 60 anos da criação do Estado de Israel, data
conhecida pelos palestinos como "Nakba", a catástrofe.
176
seus trabalhos como uma extensão do gênero documentário. Gaudenzi também discorda
da leitura de que documentários interativos são uma continuação dos documentários
lineares. Para a pesquisadora, apesar de ambas categorias terem como proposta a
documentação da realidade, são utilizadas lógicas diferentes para isso. Dentro desse
contexto, a pesquisadora propõe uma análise a partir de diferentes “modos de interação”
para tipos de interatividade distintos. A autora chama a atenção para a complexidade –
em lugar da especificidade do gênero – e sugere usar outros atributos para analisar
documentários interativos: como um sistema em relação constante com o seu ambiente,
um sistema que tem as características de um sistema autopoiético.
Partindo dessa lógica, Gaudenzi cria quatro categorias para classificar obras
documentais interativas, de acordo com as possibilidades de participação do usuário.
Essas obras documentais são denominadas pela autora como I-Docs:
177
“criar” narrativas próprias a partir de escolhas possíveis do painel. A realidade, nesse
projeto, deveria ser entendida como um conjunto de possibilidades.
GAZA-SDEROT
178
acesso aos vídeos através de links: timeline, que organiza os episódios em pontos
marcados por data de produção na cor laranja; faces, que apresenta uma brevíssima
biografia de cada participante ao clicar em cima de cada retrato; maps, que permite
acessar os vídeos pelo espaço geográfico e, por último, o acesso através dos topics (amor,
dinheiro, esporte, trabalho etc.). Ou seja, em qualquer uma das opções descritas acima, a
ordem de exibição dos vídeos, bem como tempo de duração de cada um deles na tela do
computador, é definida pelo usuário. Há ainda, na parte inferior da tela, uma barra com 5
links: quick tour, que explica em oito passos como funciona a navegação para o usuário;
about this program, que oferece informações sobre o projeto e equipe técnica; The blog;
New videos, que leva o usuário a novos vídeos publicados depois de finalizado o projeto;
Partner, com informações sobre os parceiros que possibilitaram o desenvolvimento do
trabalho e as opções para as legendas, em alemão, inglês, francês, árabe e hebreu. O
trabalho não permite que o usuário envie material expandindo o projeto (participativo) ou
mesmo experimentando fisicamente a realidade daquela zona de conflito (experiencial).
É um hipertexto com possibilidades de organização do material, mas ainda assim limitado
e fechado.
Em Gaza-Sderot, a página de acesso aos filmes se abre com as imagens dos dois
territórios dividindo a tela e um texto explicativo entre elas. Essa tela dividida já posiciona
4
É importante lembrar que a navegação em um webdocumentário permite que o usuário explore um
ambiente completo: já não se trata de acessar vídeos através de sites de compartilhamento de vídeos como
o Youtube ou Vimeo, por exemplo. A proposta é integrar todos os elementos adequando da melhor maneira
possível o design gráfico ao conteúdo.
179
o usuário no contexto do trabalho: remete aos conflitos na fronteira5 entre as duas cidades,
que não é – a princípio – definida por limites físicos.
Separado por uma linha, também representada no projeto na tela seguinte, o layout
assumido na navegação de Gaza-Sderot permite que o usuário, ao clicar em Watch the
Program, acesse os filmes organizados por datas, através de uma “linha do tempo”
vertical. De cada lado da linha aparecem imagens de dois participantes do projeto: Abu
Khalil, em Gaza, na Palestina, e Yafa Malka, em Sderot, Israel.
O acesso aos vídeos é livre, ou seja, tanto se pode optar por assistir o primeiro
trabalho postado, em 26/10/2008, quanto ao último, em 23/12/2008, em ordem de
postagem ou aleatoriamente.
5
A palavra fronteira, etimologicamente, deriva do francês frontière – que é a vanguarda das tropas
militares. São as fronteiras que estabelecem as bases sobre os quais as culturas vão se desenvolver.
180
O CONCEITO DO HOMEM ORDINÁRIO EM MICHEL DE CERTEAU
Michel de Certeau propõe em suas reflexões que o homem, ao inventar novos usos
para os espaços organizados pelas técnicas de produção sociocultural, age através de um
comportamento de resistência, que se atualiza na sua produção – uma poética (do grego
poiein: “criar, inventar, gerar”), que se insinua silenciosa e quase invisível na fala que se
forma oralmente a partir dos códigos linguísticos impostos; nas maneiras de usar produtos
disponibilizados por uma ordem econômica dominante e ao ocupar espaços públicos de
forma diversa da que se estabeleceu quando foram projetados.
Nas novas maneiras de usar coisas é que se estabelecem outras relações. “[...] que
procedimentos populares (também minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos
da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que maneiras
de fazer formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou 'dominados'?), dos
processos mudos que organizam a ordenação sociopolítica.” (CERTEAU, 1990, p. 30).
181
de lugares e do rompimento de fronteiras que demarcam socioespacialmente a vida
urbana.
➢ Ahmed Quffah, 20 anos, professor de kung fu. Está no Guinness Book por
fazer flexões com dois dedos. 3 vídeos;
182
primeira música. 7 vídeos;
CONCLUSÃO
Na sua introdução à segunda edição do livro A Obra Aberta, Umberto Eco defende
que toda obra de arte é aberta: além de possibilitar várias interpretações, a obra aberta
apresenta-se de várias formas e cada uma delas é submetida ao julgamento do público.
No webdocumentário, essa característica é potencializada: ao permitir que o acesso à obra
se dê a partir de diferentes possibilidades (a escolha de uma sequência possível de
capítulos, imagens ou sons, por exemplo), a fruição se transforma também em um ato de
criação.
183
Enquanto espaço de resistência frente à fragilidade da existência humana – breve,
imprevisível, perigosa – a web se mostra um território possível para desvios, rupturas e
novas elaborações para que a história da vida ordinária seja escrita, registrada e
compartilhada.
REFERÊNCIAS
CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano – artes do fazer. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
1990.
LEVIN, Tatiana. Do documentário ao Webdoc: questões em jogo num cenário interativo. Doc
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So Crazy! Productions, 2011.
MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo:
Edusp, 1996.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac,
2008.
184
LOUIS-FERDINAND CÉLINE: ESPAÇO BIOGRÁFICO E
ESPAÇO PÚBLICO NAS ENTREVISTAS1
Resumo: Tendo como pano de fundo um estudo mais amplo sobre a Trilogia Alemã, de
Louis-Ferdinand Céline, composta pelos romances D’un château l’autre (1957), Nord
(1960) e Rigodon (1969 - póstumo), com relação aos grandes eixos temáticos da viagem,
da memória, do niilismo e da invectiva e seus possíveis desdobramentos, o presente
trabalho tem por objetivo discutir os momentos biográficos e a construção de um espaço
autobiográfico através de entrevistas concedidas por Céline. A partir dessa reflexão, será
proposta uma discussão sobre o uso que o autor faz do espaço público das entrevistas e
da entrevista ficcional Entretiens avec le professeur Y, indo desde a construção de um
mito pessoal e de um personagem público até a promoção publicitária de seus romances.
Para tanto, seguiremos as considerações de Eleonor Arfuch para quem as entrevistas
representam um gênero no limiar entre o público e o privado e contribui para a
constituição de uma subjetividade, com a particularidade de se dar no espaço público.
Serão aproveitadas também as considerações de Henri Gordard e Jean Dauphin sobre a
comparação entre a função do prefácio e das entrevistas. Segundo eles, as entrevistas
substituem, a partir do século XIX, as funções do prefácio, por exemplo, de explicação
das condições de escrita da obra, indicação de chaves de leitura ou a preocupação em
dirimir equívocos de leitura, com a vantagem de atingir um público maior do que aquele
que já possui o livro em mãos. Além disso, procurar-se-á, através das entrevistas, dar
destaque também à questão do estilo céliniano com foco na discussão sobre a invectiva e
sua relação tanto com o antissemitismo quanto com o riso. Por fim, destacar-se-á que, em
Céline, tem-se na guerra o elemento de sutura entre memória, viagem e escrita, de modo
a se apresentar como o motor que desencadeia uma relação de conflito para com
instituições literárias e políticas. A obra de Céline, pela intrincada relação entre política
e literatura, exige, assim, uma abordagem que não dissocie esses campos.
1
Mesa-redonda A exposição do sujeito nos meios de comunicação II.
2
Doutor em Letras Neolatinas – Literaturas em Língua Francesa pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
185
proposed about the use the author makes of the public space of the interviews and of the
fictional interview Entretiens avec le professeur Y, ranging from the construction of a
personal myth and of a public character to advertising promotion of his novels. To do so,
Eleanor Arfuch’s considerations will be followed, for whom interviews represent a genre
on the threshold between public and private and contributes to the constitution of
subjectivity, with the particularity of taking place in the public space. It will also be taken
advantage of the Gordard Henri and Jean Dauphin's considerations on the comparison
between the function of the preface and the interviews. According to them, the interviews
replace, from the nineteenth century on, the functions of the preface, for example, the
explanation of the conditions of writing a work, the indication of key readings and the
preoccupation with solving misconceptions of reading, with the advantage of achieving
a wider audience than that one that already has the book in their hands. In addition, efforts
will be made, through the interviews, to highlight célinian style with focus on discussion
of invective and its relationship with both anti-Semitism and laughter. Eventually, the
war as the element of suture between memory, travel and writing is going to be also
emphasized, so it will stand out from the present as the engine that triggers a conflict
relationship towards literary and political institutions. In this sense, the study of Céline’s
work requires an approach that does not dissociate these fields, due to the intricate
relationship between politics and literature.
3
“Não é minha área, as ideias, as mensagens. Eu não sou um homem de mensagem. Eu não sou um
homem de ideias. Eu sou um homem de estilo” (tradução nossa).
186
CÉLINE E O USO DO ESPAÇO PÚBLICO
187
Desse modo, segundo Dauphin e Godard, a particularidade das entrevistas estaria
em acompanhar a obra publicada, seja em tomadas de posição ou, por exemplo, em
filosofias da vida, do homem ou da história, ecoando a obra, entretanto sem o trabalho
próprio da escrita, fornecendo a esta, contudo, um termo de comparação. Além disso,
quanto à personalidade pública, ou mais propriamente quanto à imagem do escritor, o que
as entrevistas em rádio fazem em parte e, aquelas em televisão o fazem explicitamente,
as entrevistas escritas, na forma do retrato (portrait), dão ao escritor uma presença física,
emprestando a ele um corpo, uma voz, um olhar, numa espécie de evocação de sua figura
(DAUPHIN; GODARD apud CÉLINE, 2006). Por ora, a título de exemplo e curiosidade,
destaca-se a atenção dada aos olhos de Céline em algumas de suas primeiras entrevistas,
cuja descrição ultrapassa a mera aparência e parece buscar alguma proximidade com a
literatura do autor:
Et je ne vois plus maintenant que les yeux de M. Céline, qui parle
très vite, d’un ton saccadé. Des yeux dont le regard est comme
crispé, des yeux douloureux intensément, des yeux à faire pleurer4
(BROMBERGER apud CÉLINE, 2006, p. 30);
Alors je vois deux yeux gris sous des sourcils blonds et jolis.
Tantôt ces yeux sont lents et comme épuisés d’éclats, tantôt ils
sont follement vifs6 (MOLITOR apud CÉLINE, 2006,p. 40);
[...] des yeux clairs, très bleus, petits et pleins de méditation, des
yeux ‘sérieux’ d’hommes qui a couru beaucoup de dangers, pris
des responsabilités, etc., des yeux de marin (il est breton) ou de
psychiatre (il est docteur)7 (SAINT-JEAN apud CÉLINE, 2006,
p.49).
4
“E agora eu vejo apenas os olhos do Sr. Céline, que fala muito rápido, com um tom irregular. Olhos cujo
olhar é tão tenso, olhos intensamente dolorosos, olhos de fazer chorar” (tradução nossa).
5
“[...] eu vi um homem, um sujeito, grande, sem nada de muito notável, a não ser, única luz desse rosto,
dois olhos admiráveis, às vezes crueis, às vezes ternos” (tradução nossa).
6
Então vejo dois olhos cinzas sob sobrancelhas loiras e belas. Às vezes esses olhos são lentos e parecem
exaustos de brilhar, às vezes eles são loucamente vivos” (tradução nossa).
7
“Olhos claros, muito azuis, pequenos e cheios de meditação, olhos ‘sérios’ de homem que correu muitos
perigos, que assumiu responsabilidades, etc., olhos de marinheiro (ele é bretão) ou de psiquiatra (ele é
médico)” (tradução nossa).
188
identificatório, o que faria com que pessoas investidas desse valor passassem a adquirir
categoria de símbolo (ARFUCH, 2010). E Céline, para bem ou para mal, se via como
símbolo, atravessado, porém, pelo seu pendor à vitimização: “Eux aussi d’ailleurs
rêvaient d’avoir ma peau. Je suis un symbole, je vous dis. Ils m’auraient livré avec plaisir
si ça avait pu les sauver”8 (CÉLINE, 2008, p. 39). Contudo, a transformação do escritor
em personalidade engendrada pela imprensa o força a expressar sua opinião sobre os mais
diversos assuntos da atualidade. Esses movimentos acontecem muitas vezes naturalmente
pela dominação da palavra que Céline costuma exercer nas entrevistas, tendendo
comumente ao monólogo e, muitas vezes, ao seu fluxo discursivo, não abordando
diretamente a pergunta feita.
Victor Molitor, sobre a entrevista que fez com Céline para os Cahiers
luxembourgeois, em 1933, comentaria:
Notre conversation est une espèce de sauterie verbale. Autant
Céline est prolixe en écrivant, autant il est laconique en parlant.
De même, il ne veut pas préciser, et je dois faire quelques efforts
pour avoir des réponses assez conformes à certaines de mes
questions9 (CÉLINE, 2006, p. 41).
8
“Além disso, eles também sonhavam arrancar a minha pele. Eu sou um símbolo, estou te dizendo. Eles
teriam me entregado com prazer, se isso os pudesse ter salvo” (tradução nossa).
9
“Nossa conversa é uma espécie de dança verbal. Céline é tão prolixo ao escrever quanto lacônico ao falar.
Do mesmo modo, ele não quer ser preciso e eu tenho que fazer esforços para ter respostas mais
conformes a certas perguntas minhas” (tradução nossa).
10
“[...] o importante para ele é se embriagar, o interlocutor é um espectador e ainda assim com dificuldade
– ele não procura me convencer, ele faz seu número, simplesmente, ele se embriaga” (tradução nossa).
189
se servir da imprensa, recorrendo a ela poucas vezes através de cartas ou respondendo a
enquetes, praticamente desconhecendo o formato do artigo de imprensa, ainda que às
vezes tome a iniciativa de escrever a alguns jornalistas.
Essa relação segue normal desde a publicação de Voyage au bout de la nuit, vindo
a se modificar apenas com a publicação dos panfletos a partir de 1936 e com as posições
políticas tomadas durante a Segunda Guerra. Dauphin e Godard destacam o
distanciamento da imprensa surgida da Liberação face à Céline após seu retorno do exílio,
momento marcado por um tom de hostilidade – também da parte de Céline – que se altera
pouco a pouco com o reconhecimento de qualidades do escritor e com a admiração
pessoal por parte certos jornalistas. Sobre essas demonstrações de hostilidade, talvez seja
interessante lembrar que é justamente um pequeno ato de hostilidade que desencadeia o
início da entrevista das Entretiens, neste caso em um claro gesto de que é Céline quem
deseja que a entrevista aconteça:
Je lui [au Professeur Y] dis tout ce que je trouve de méchant!...
qu’il ressaute!... hostile pour hostile, qu’il se foutre en boule!...
que je le claque!... qu’on se boxe si on s’interviouwe pas!... je
raconterai le tout à Gaston! il se marrera!... il m’avancera une
brique de mieux!... dettes pour dettes!...11 (CÉLINE, 2010, p.
497).
Godard e Dauphin assinalam um certo rito ou mise en scène presente nas entrevistas
do período pós 1957 quanto à atenção dada pelos jornalistas à decoração da casa de Céline
e às suas roupas, assim como com relação à preocupação do próprio Céline em compor
um personagem, podendo variar a depender de quem for o entrevistador. Dauphin e
Godard indicam, no entanto, o mês de junho de 1957 como marco de uma mudança
radical da relação de Céline com a imprensa. A razão disso é a publicação de D’un
château l’autre, responsável por retirar Céline de uma espécie de interdito que vigorou
mais fortemente a partir 1944.
Céline teria aproveitado desse bom momento para provar àqueles que o davam por
um escritor em fim de carreira que estava em pleno domínio de sua arte literária. Além
disso, Céline usa de D’un château l’autre para mostrar o nascimento de um Céline
cronista, que havia sido anteriormente romancista e panfletário. Como observam Dauphin
11
“Eu lhe disse [ao Professor Y] tudo o que eu considero desagradável!... que ele proteste!... hostil por
hostil, ele que se foda!... que eu o esbofeteie!... que a gente saia no boxe se a gente não se entrevistar!...
eu contarei tudo a Gaston! ele vai rir muito!... ele me fará um adiantamento melhor!... dívida por
dívida!... (tradução nossa).
190
e Godard, o conjunto de entrevistas e textos de Céline na imprensa entre 1957 e 1961
ultrapassa aquele de 1932 a 1957, o que demonstra que Céline aproveitou desse momento
de celebridade da atualidade literária para recolocar à sua disposição esse meio que lhe
conferiria a possibilidade de expor explicações e comentários impossíveis em amplitude
no período precedente, valendo lembrar que, nesse período, tanto a obra romanesca
quanto as entrevistas são marcadas por um forte balanço da vida do autor. Ainda segundo
Dauphin e Godard, Céline imprimirá nesses últimos anos uma marca ao mesmo tempo de
acusador e vítima, pontuada pelo pitoresco de seu tom e vocabulário (DAUPHIN;
GODARD. Apud CÉLINE, 2008).
O MITO PESSOAL
12
“Quer dizer que eu comecei a escrita do livro sem querer obter qualquer notoriedade. Eu pensava
simplesmente tirar disso um benefício honesto para comprar um pequeno apartamento do qual eu
realmente precisava na época. Em seguida, as coisas caminharam de tal modo que a vida do médico,
de médico humilde... se tornou impossível e complicou minha vida cada vez mais” (tradução nossa).
191
francs de dactylographie... Le reste, mon brave monsieur, boniment!”13 (CÉLINE, 2006,
p. 22). Não deixa de ser curioso que, além de sua força de trabalho e do custo material
empregados na escrita do romance, Céline acrescente o boniment, palavra proveniente do
mundo dos espetáculos, carregando sentidos que vão desde o anúncio feito à entrada de
espetáculos para atrair o público até a propaganda feita por vendedores de rua para vender
suas mercadorias, podendo significar ainda um propósito insignificante. Isso deixa inferir,
de um lado, ironicamente a inutilidade e a inocuidade da literatura, e de outro, a
necessidade de publicidade, o que coloca a literatura, para Céline, claramente em posição
de produto, visto seu desejo de tirar dela algum proveito financeiro, e ao mesmo tempo
parte de um mercado sujeito à exploração capitalista.
Vale lembrar os embates de Céline com seus editores, acusados por ele, no caso de
Robert Denoël, de tê-lo obrigado a cortar boa parte do Voyage, e, no de Gallimard, de
esconder cópias de seus livros esperando uma valorização do preço com a morte do autor
e de não pagar corretamente o que, de acordo com Céline, lhe seria de direito. Cabe notar
que, a despeito do que Céline tentar às vezes fazer transparecer, a literatura para ele não
tem nada de inócua, principalmente quando se tem em mente sua declaração a Madeleine
Chapsal, em 1957, de que havia escrito Bagatelles para evitar a Segunda Guerra Mundial,
ou o efeito reverso que os panfletos tiveram sobre sua vida.
C’est peut-être le seul livre que j’aie écrit pour les Français, où
je suis sorti de ma réserve personelle. [...] L’Europe, c’était déjà
mon calcul à moi, et je me disais: “Je vais le dire, et ça va faire
une grosse impression”. Qu’est-ce que j’ai déclenché!... Je me
suis foutu dans une histoire effroyable! que je regrette, ô
combien! Si j’avais su...14 (CÉLINE, 2008, p. 26-27).
A literatura estará, assim, para Céline sempre do lado do trabalho, e não da vocação,
o que, a Merry Bromberger, Céline creditará a seu temperamento operário (tempérament
ouvrier) (CÉLINE, 2006, p.30), e esse dispêndio de energia e esforço será comum ao
falar dos outros romances e da construção de seu estilo, o que permite afirmar que Céline
não tinha na literatura, não obstante seu discurso, uma tarefa circunstancial, mas sim uma
13
“Isso me representa seis anos de trabalho, na razão de quatro horas por dia. Cinquenta mil páginas
manuscritas, dez mil francos de datilografia... O resto, meu bom senhor, lábia!” (tradução nossa).
14
“É talvez o único livro que eu tenha escrito para os franceses, em que eu saí da minha reserva pessoal.
[...] A Europa já era meu cálculo e eu me dizia: ‘Eu vou dizer e isso vai causar uma grande impressão’.
O que eu desencadeei!... Eu me meti numa história assustadora! eu lamento, ó o quanto! Se eu
soubesse...” (tradução nossa).
192
dedicação laboral, lembrando que a questão da inspiração não está presente no discurso
céliniano.
Ainda sobre esse esforço de escrita dos romances, Godard e Dauphin lembram que
Céline teria anunciado, segundo artigo de Robert Dieudonné, de 8 de dezembro de 1932
para o Le Petit Journal, que já havia começado a escrever um segundo romance e que
este não estaria terminado antes de cinco ou seis anos, o que se confirmaria com a
publicação de Mort, em 1936. Nesse sentido, Élisabeth Porquerol dirá que Céline não
seria, por recusa própria, o homem que escreve, mas pretensamente o médico, pois essa
seria a única maneira de preservar sua independência de pensamento (indépendence
d’esprit), e que Céline não teria ambições literárias, mas sim ambições tout court, o que
seria para ela a razão da força de seus escritos (CÉLINE, 2006, p. 47).
Apenas a título de exemplo, convém lembrar a espirituosa declaração de Céline
sobre produzir literatura, trazida por Porquerol, no mesmo comentário, para dar uma
amostra do desdém e do bom humor com que Céline procura tratar a literatura, o que para
Porquerol estaria mais para o receio de Céline em parecer pedante como tantos outros
homens de letras: “De la littérature, j’en ai mâché... Et moi aussi j’en fais, je rédige des
prospectus pour des produits pharmaceutiques dans un laboratoire”15 (CÉLINE, 2006,
p. 47).
Não foi necessário muito tempo entre a publicação de Voyage, em 5 de outubro de
1932, e o primeiro comentário público de Céline sobre sua obra, em entrevista concedida
a Pierre-Jean Launay e publicada em 10 de novembro de 1932, no Paris-soir, sob o título
de L-F. Céline le révolté. Embora tenha pedido para ser deixado à sombra, afirmando
divertidamente “Ma mère même ne sait pas que j’ai écrit ce livre, ça ne se fait pas dans
la famille”16 (CÉLINE, 2006, p. 22), já antecipando o estigma que a literatura teria em
sua vida, a literatura será colocada reiteradas vezes por Céline, desde então, como algo
que só lhe trouxe problemas e que lhe impediu o exercício da medicina. Entretanto, nesse
primeiro comentário, Céline lança três pontos que comporão sua imagem pública, os
quais se aprofundarão ao longo do tempo, sem, contudo, deixarem de ser fundamentos
sintomáticos do uso que o autor fará do espaço público: sua aversão ao contato público;
sua obra não se tratar de literatura, mas sim da vida; e a linguagem falada transposta para
a escrita. Launay diz que, nessa ocasião, Céline teria aceitado a conversa com a condição
15
“Literatura, eu mastiguei... E eu também faço, eu redijo folhetos de produtos farmacêuticos num
laboratório” (tradução nossa).
16
“Minha mãe nem sabe que eu escrevi esse livro, isso não se faz na família” (tradução nossa).
193
de que não seria revelado nada sobre sua personalidade, embora Launay tenha deixado
escapar que o contato com Céline mostrou que este seria sim o homem de seu livro, aquele
que mostra as piores misérias da sociedade.
Vale ressaltar desde já que, assim como sua explicação sobre porque começou a
escrever, essa aversão ao contato público é bastante irônica e participa da construção de
um mito pessoal, pois, por exemplo, Céline teria dito a Launay: “Puisque vous m’avez
déniché, je n’ai pas la cruauté de vous renvoyer, tant pis. Mais vous êtes le premier
journaliste qui me surprenne et vous serez le dernier, demain je pars”17 (CÉLINE, 2006,
p. 21). Contudo, o que se verá, desde então, será um Céline cuidando de compor um
personagem público que faz sua autopromoção e se preocupa em aumentar as vendas de
seus livros.
Com relação ao, digamos, estatuto ficcional de Voyage, Céline diz a Launay: “Ce
n’est pas de la littérature. Alors? C’est de la vie, la vie telle qu’elle se présente. La misère
humaine me bouleverse, qu’elle soit physique ou morale”18 (CÉLINE, 2006, p. 21),
afirmação que fará eco – a bem dizer a contrapelo – com a declaração dada a Georges
Altman, em entrevista do 10 de dezembro de 1932, em que Céline dirá “C’est un roman,
mais ce n’est pas une histoire, de vrais ‘personnages’. C’est plutôt des fantômes”19
(CÉLINE, 2006, p. 38). Tem-se, nesse deslocamento, lançado o problema do limite entre
o ficcional e o autobiográfico em Céline, ainda que o autor tenha problematizado isso na
entrevista a Merry Blomberger, de 8 de dezembro de 1932, trazendo a questão do delírio,
ao afirmar que Voyage não se tratava de autobiografia por ter sido escrito em terceira
pessoa, como se esse fosse o único requisito a definir o gênero:
Une autobiographie mon livre? C’est un récit à la troisième
puissance. Qu’on y voie pas des tranches de vie, mais un délire.
Et surtout pas de logique. Bardamu n’est pas plus vrai que
Pantagruel et Robinson que Picrochole. Ils ne sont pas à la
mesure de la réalité. Un délire!20 (CÉLINE, 2006, p. 30-31).
17
“Já que você me encontrou, eu não tenho a crueldade de te mandar embora, paciência. Mas você é o
primeiro jornalista que me surpreende e você será o último, amanhã eu me mando” (tradução nossa).
18
“Não é literatura. Então? É a vida, a vida tal como ela se apresenta. A miséria humana me perturba, seja
ela física ou moral” (tradução nossa).
19
“É um romance, mas não é uma história, personagens reais. São antes fantasmas” (tradução nossa).
20
“Uma autobiografia meu livro? É uma narrativa em terceira pessoa. Que não se veja nela porções de vida,
mas um delírio. E sobretudo sem lógica. Bardamu não é mais verdadeiro que Pantagruel e Robinson
que Picrochole. Eles não estão na medida da realidade. Um delírio!” (tradução nossa).
194
na Trilogia Alemã, é com relação ao Voyage, em 1933, em entrevista a Victor Molitor,
que Céline delimita, pelo menos no que concerne à crítica, a separação entre vida e obra,
respondendo assim ao pedido de indicação de traços notáveis de sua vida: “Monsieur, ce
n’est pas nécessaire. Je ne crois pas qu’on puisse expliquer une oeuvre par la
connaissance de son auteur”21 (CÉLINE, 2006, p. 41). Entretanto, essa postura de 1933
é perfeitamente condizente com o romance e com o cuidado de Céline em tentar
resguardar sua vida privada, ainda que haja espelhamentos entre sua vida e o romance,
como reconhece o próprio Molitor – para quem Céline era um jongleur de paradoxes –
ao afirmar que nada é mais característico do Voyage que a biografia lapidar que o precede.
No que tange à colocação de Céline quanto à linguagem utilizada em Voyage, da
qual se pode tirar mais um espelhamento entre vida e obra, ao ser questionado por Launay
sobre porque havia escrito o romance em uma língua voluntariamente faubourienne,
Céline responde que não há voluntarismo em seu trabalho,
[...] j’ai écrit comme je parle. Cette langue est mon instrument.
[...] Et puis je suis du peuple, du vrai... J’ai fait toutes mes études
secondaires, et les deux premières années de mes études
supérieures en étant livreur chez un épicier22 (CÉLINE, 2006, p.
22).
21
“Senhor, não é necessário. Não acho que se possa explicar uma obra através do conhecimento de seu
autor” (tradução nossa).
22
“[...] eu escrevi como eu falo. Essa linguagem é meu instrumento. [...] Além disso, eu sou do povo, do
verdadeiro... Fiz todos os meus estudos secundários e os dois primeiros anos de meus estudos
superiores trabalhando como entregador em uma mercearia” (tradução nossa).
23
Esse comentário foi publicado primeiramente em janeiro de 1934, em Allô-Paris, e, em formato
expandido, em 1961, na Nouvelle Revue Française, quando da morte do autor. Foi a essa segunda
versão que se teve acesso para este trabalho.
24
“Céline... Céline, quando vejo esse nome escrito nos jornais, esse nome que me designa, isso me
incomoda, eu me sinto tomado por uma espécie de pudor...” (tradução nossa).
195
nome tão cara aos estudos da autobiografia, trazendo à tona um importante momento
autobiográfico revelado pela entrevista. Porquerol ensaia uma instigante explicação do
porquê dessa recusa feroz do contato público da parte de Céline, dizendo que ele não
confiaria em si mesmo, pois se saberia incapaz de se dominar a ponto de, com uma
fraqueza extrema, vider son sac na frente de qualquer um, daí Porquerol designá-lo como
um sale parleur.
Porquerol acrescenta que os excessos de Céline estariam antes no plano da
encenação, de modo que o mal-estar que ele espalha viria de um jogo contínuo, de um
artifício mesmo, que transformaria tudo em bouffonnerie. Longe de parecer ingênua, essa
visão de Porquerol poderia indicar uma estimulante chave de leitura para a agressividade
de Céline, segundo a qual o efeito dessa linguagem vulgar e insolente tenderia ao riso.
Robert de Saint-Jean, em seu comentário, também levanta a questão do humor em
Céline após reproduzir falas de Céline dizendo que seria necessário esperar alguns anos
para saber se seu estilo sairia de moda e que era provável que no futuro haveria escritores
reproduzindo seu estilo melhor do que ele mesmo: “Il a dit cela sans broncher mais ses
yeux rient. Il y a en lui beaucoup d’humour”25 (SAINT-JEAN apud CÉLINE, 2006, p.
51). Não deixa de ser interessante notar que esse desprendimento ao falar da apropriação
de seu estilo por outros escritores não será o mesmo ao acusar, por exemplo, Sartre de tê-
lo roubado.
SOBRE O STYLE
25
“Ele disse isso sem pestanejar, mas seus olhos riem. Há nele humor” (tradução nossa).
26
“Meu estilo, quando eu o abaixo à familiaridade e à grosseiria é porque eu o quero assim” (tradução
nossa).
196
2006, p. 33). O interessante dessa passagem é trazer, quando da publicação do primeiro
romance, elementos fundamentais da elaboração do autor sobre seu estilo, o qual será
lapidado, sem perder, porém, a coerência com esses princípios apresentados
precocemente.
Pouco mais de dois meses após essa primeira menção, Céline, em entrevista a
Robert de Saint-Jean, acrescenta uma outra camada de sentido ao incorporar a ideia de
uma língua antiburguesa e a necessidade de recorrer a ela para conseguir provocar
sentimentos os quais seria impossível alcançar de outro modo:
- J’ai inventé une langue antibourgeoise qui rentrait ainsi dans
mon dessein. Et aussi parce qu’il y a des sentiments que je
n’aurais pas trouvés sans elle.
Il reconnaît que cela se démodera peut-être très vite...
- On verra dans dix ans27 (CÉLINE, 2006, p. 51)
Embora já admita nesse momento – e sem pesares – que seu estilo, talvez pelo
caráter inovador e inusual ou pela proximidade com a língua falada e sua constante
transformação, poderia sair rapidamente de moda, Céline o faz não sem lançar o desafio
de esperar dez anos para saber o que acontecerá e ironiza dizendo que outros escritores
poderiam vir a fazer du Céline melhor que ele mesmo: “Quand la frénésie du public se
sera calmée, il y aura des types très bien qui feront peut-être du Céline en beaucoup
mieux”28 (CÉLINE, 2006, p. 51). Posteriormente, Céline desenvolverá essa efemeridade
de sua língua como algo natural e desejável à linguagem literária, afirmando que se a
língua morre é porque viveu, do contrário ela recairia nos modismos e maneirismos que
o autor tanto atacará, como por exemplo ao criar o verbo proustiser para se referir ao
estilo de Proust e como ele foi reproduzido por outros escritores, ou ainda com o
neologismo lamanièredeux, referindo-se ao estilo de Sartre no texto Portrait d’un
Antisémite.
Como destacam Dauphin e Godard, Céline, a depender do jornalista, apresenta
variações habituais tanto com relação ao interesse das respostas dadas quanto à atitude e
vocabulário utilizados. Isso se mostra interessante na entrevista a Louis Gerin, em 14 de
agosto de 1937, cujo tema era onde o escritor escreve. Em tom de enfado, Céline começa
respondendo que não vê nada de extraordinário a ser assinalado quanto à sua maneira de
27
“- Eu inventei uma linguagem antiburguesa que entrava assim no meu intuito. E também porque há
sentimentos que eu não teria encontrado sem ela./ Ele reconhece que isso sairá de moda muito
rápido.../- Vamos ver daqui a dez anos” (tradução nossa).
28
“Quando o frenesie do público tiver acalmado, haverá tipos muito bons que talvez farão Céline bem
melhor” (tradução nossa).
197
escrever e desmistifica o ato de escrita. Céline diz escrever como, quando e onde pode e
acrescenta que trabalha desde seus 12 anos para ganhar a vida e, desse modo, sempre
roubou horas de seus empregadores para realizar seus projetos pessoais. Entretanto,
Céline compara seu modo de escrita a seu modo de vida, ambos feitos às escondidas, na
surdina, e credita a isso seu tom apressado e ofegante:
J’écris à la sauvette, comme j’ai toujours vécu: à la sauvette. Ainsi j’ai fait mes
études, toujours en arranchant des heures au trimard quotidien; ainsi j’ai rédigé
mes gros livres, d’où sans doute leur ton hâtif, haletant, qu’on me reproche,
qu’on estime fabriqué. C’est pourtant ainsi que je parle, tout simplement. Je ne
fais pas de “style”29 (CÉLINE, 2006, p.119-120)
REFERÊNCIAS
DAUPHIN, Jean-Pierre; GODARD, Henri. Céline et l’actualité littéraire 1932 – 1957. Paris:
Gallimard, 2006.
DAUPHIN, Jean-Pierre; GODARD, Henri. Céline et l’actualité littéraire 1957 – 1961. Paris:
Gallimard, 2008.
29
“Eu escrevo às escondidas, como eu sempre vivi, às escondidas. Assim eu fiz meus estudos, sempre
arrancando horas do cotidiano; assim eu escrevi meus grossos livros, daí sem dúvida seu tom apressado,
ofegante, que me reprovam, que supõem fabricado. Entretanto, é assim que eu falo, simplesmente, eu
não faço ‘estilo’” (tradução nossa).
198
O ESCRITOR RECLUSO E A ÂNSIA POR INFORMAÇÃO:
IDENTIDADE MIDIÁTICA EM SALINGER E PYNCHON1
Davi Boaventura2
Abstract: Under the apparently infinite space of internet, we find ourselves into a
shuffled image creation of the I, opposing the Other, sometimes resulting into noises and
grey zones, sometimes into a mystery aura. This identity uncertainty is particularly
notorious on situations when the I restrains or refuses to expose, allowing its image to be
created, nourished and expanded through speculations, as it happens for J.D. Salinger and
Thomas Pynchon, so called reclusive authors, subjects of this analysis. Therefore,
considering life and work discussions about these authors, this communication intend to
examine the relationship game and concerns, the informative interstices implicated on the
Author’s image setting, trying to comprehend in what level this confabulation around the
artist influences access, esteem and propagation of the literary work.
Keywords: literary business, media identity, reclusive authors.
1.
Claro, embora seja válido para a discussão, não é preciso aqui repetir os
mecanismos pelos quais se dá a criação da identidade, seja ela pessoal ou midiática, a
1
Mesa-redonda A Exposição do Sujeito nos Meios de Comunicação II.
2
Mestre em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
199
construção de um Eu a partir da relação com o Outro, tendo um Nós enquanto horizonte
e a Sociedade enquanto substrato – ou, antes, não é preciso reincidir no debate sobre o
que pode ser chamado, em tom pueril, de indecisão pronominal do sujeito –, assim como
tampouco é necessário destrinchar os agentes e forças concorrentes dentro do campo da
Comunicação, conflitantes ou associados, amalgamados, espalhados desigualmente, nos
termos de Bourdieu (2006), entre os diversos suportes existentes hoje, com suas
ressonâncias, hibridizações e limites flexíveis a ponto de liquidificação de fronteiras, que
assistem e atuam de tal modo que o informacional, o entretenimento e o artístico chegam
a se imbricar em uma unidade por vezes disforme, por vezes incongruente, sempre em
movimentação constante e dinâmica. Como lastro inicial deste diálogo, no entanto,
embora, diante de novas experiências narrativas, estejamos mesmo nos perguntando a
validade deste conceito, talvez seja interessante retomar o pensamento de Foucault (2001,
p. 18) sobre a autoria, tendo em mente como, para o intelectual francês, o autor é essa
instância unitária abstrata, “certo foco de expressão que, sob formas mais ou menos
acabadas, manifesta-se da mesma maneira, e com o mesmo valor, em obras, rascunhos,
cartas, fragmentos, etc.”, e que permite ainda “superar as contradições que podem se
desencadear em uma série de textos: ali deve haver [...] um ponto a partir do qual as
contradições se resolvem, os elementos incompatíveis se encadeando finalmente uns nos
outros ou se organizando em torno de uma contradição fundamental ou originária”. Não
obstante, o autor, continua Foucault (2001, p. 17), não se daria por mera operação
semiótica, nem tampouco seria função natural, ele “é o resultado de uma operação
complexa que constrói certo ser de razão”, configurando-se, no limite, como a “projeção,
em termos sempre mais ou menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos,
das aproximações que se operam, dos traços que se estabelecem como pertinentes, das
continuidades que se admitem ou das exclusões que se praticam”. Ademais, o autor seria
um constructo histórico, cuja origem, como se sabe, adveio da necessidade tanto da
punição dos transgressores quanto da lógica monetária e de propriedade, e que, por força
de sua constante atualização pela individuação, se tornou um referencial crucial no acesso
a obra de arte. “A qualquer texto de poesia ou de ficção se perguntará de onde ele vem,
quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido
que lhe é dado, o status ou o valor que nele se reconhece dependem da maneira com que
se responde a essas questões”, falará Foucault (2001, p. 16), para quem, “o anonimato
literário não é suportável”, só o aceitaríamos “na qualidade de enigma”.
200
Sabemos, em termos de autoria, quem são Salinger e Pynchon. Sabemos que, de
Salinger, a partir de seus contos sobre os infortúnios da família Glass e do seu único
romance, O Apanhador no Campo de Centeio (1951), vamos esperar uma linguagem
absolutamente trabalhada para soar simples, próxima do cotidiano, conflitos entre o Eu e
a Sociedade, resistências entre o mundo adulto e o mundo infantil, conteúdo em certa
medida filosófico, ritmo narrativo modulado através de uma elaboração dinâmica,
diálogos perspicazes. Sabemos que, de Pynchon, a partir de seus oito romances e seu
único livro de contos, vamos esperar um universo verdadeiramente enciclopédico,
citações obscuras, paranoia, maquinações fabuladas no interior de sociedade secretas,
humor absolutamente fino, em uma tênue relação entre a galhofa e a sátira, centenas de
personagens, alguns até históricos, no que poderíamos chamar de participações especiais.
Mas nada sabemos, ou sabemos pouquíssimo, sobre Jerome David Salinger (1919 – 2010)
e sobre Thomas Ruggles Pynchon (1937 –), pois os dois autores não só se transmudaram
na qualidade de enigma máximo do sistema literário no século XX, impregnando a
própria obra sob esta aura de mistério, cuja incorporação se dá enquanto chave de leitura
– às vezes reducionista, às vezes atordoante –, como, em última instância, ao
deliberadamente se esconderem do convívio midiático no auge da carreira, ao negarem
acesso ao ente real por trás de textos materiais largamente difundidos, e por esta negação
aceitarem ser objeto passivo de especulações intermináveis, alcançaram um enorme
estatuto extraliterário, tornaram-se elementos fulgurantes clichês de uma cultura pop
capitalista ávida por novidades e escândalos, ícones inflados por um polinômio composto
por vendas altíssimas, revistas sensacionalistas, vinganças pessoais e crescimento
desordenado de boatos em uma espécie de brincadeira infinita de telefone sem fio ao
longo dos anos, uma idolatria onde o altar está vazio porque as estátuas foram roubadas
pelos próprios ídolos.
Três momentos para ilustrar o assunto, antes de tentar aprofundar o olhar sobre.
O primeiro, uma nota trágica: quando, em 1980, Mark David Chapman alegou ter se
inspirado em Holden Caulfield para assassinar John Lennon, transformando o romance
de Salinger em item de discussão obrigatório na agenda pública dos mais diferentes
estratos sociais, ainda mais por se tratar da morte de uma figura quase tão famosa quanto
Jesus Cristo. O segundo, uma curiosidade: em 1976, quando o jornal Soho Weekly News
publicou um artigo de John Calvin Batchelor, tão ruim quanto um esquete do Zorra Total,
fantasioso ao ponto de afirmar que Pynchon não existia e era, na verdade, o pseudônimo
201
sob o qual Salinger vinha secretamente publicando suas histórias, ao que Pynchon
respondeu, através de cartas, algo como um irônico “nada mal, continuem tentando”. E o
terceiro momento, já no século XXI, e portanto já com o mistério ao redor dos dois autores
absolutamente estabelecido, um ótimo exemplo de retroalimentação midiática, quando
Pynchon foi retratado em um episódio dos Simpsons chamado “Diatribe de uma Louca
Dona de Casa” (tradução nossa), em que sua contraparte amarelada aparece com um saco
de papel a lhe esconder a cabeça, em frente a um letreiro luminoso onde se lê: “casa de
Thomas Pynchon, entre”, respondendo, aos berros, ao pedido de Marge Simpson, a
matriarca da família, por uma recomendação na capa do livro dela. “Aqui está sua
citação”, ele diz, “Thomas Pynchon amou este livro, quase tanto quanto ele ama câmeras”
(tradução nossa)3. E então, vestido com uma placa com seu nome e uma seta enorme
apontando para si, ele grita para os carros da rua: “Ei, aqui, tirem uma foto com um autor
recluso! Apenas hoje, nós vamos distribuir autógrafos gratuitos! Mas espere! Tem mais!”,
sendo que este mais nunca é mostrado e a piada é justamente essa: dublado pelo próprio
autor para atender a um pedido de seu filho, fã do programa, em um forte sotaque de Long
Island, região onde Pynchon nasceu, esta é uma situação evidente em que o interesse por
sua reclusão gera ele mesmo mais interesse sobre si, quase como uma espiral do silêncio
às avessas, quanto mais se fala sobre, mais se quer se falar sobre, que é o justamente o
mecanismo mais interessante a ser observado aqui.
2.
Uma estratégia retórica recorrente nos ensaios e textos jornalísticos sobre os dois
autores é se apegar ao que se sabe, aos fatos biográficos mais ou menos estáveis,
comprovados em certo sentido, ainda que as informações sejam elas também alvo de
suspeitas, como se a vida inteira do autor se supusesse uma enorme ficção contada por
um narrador não-confiável. O biógrafo, neste contexto, para além do trabalho de se coletar
fatos, entrevistas e documentos, que já trazem por si a exigência de serem comprovados
para publicação, torna-se também uma espécie de advogado do diabo incontornável da
sua própria investigação, uma interrogação incessante. French (1963, p. 21), por exemplo,
em um dos primeiros trabalhos sobre Salinger, questiona até mesmo a data de nascimento
3
O trecho do episódio onde Pynchon aparece, exibido originalmente na 15ª temporada dos Simpsons, no
dia 25 de janeiro de 2004, pode ser visto em: http://www.youtube.com/watch?v=jR0588DtHJA.
202
do autor ao dizer que: “Salinger’s birth is always given as January 1, 1919 – although it
seems curious that a man reluctant to divulge information about himself was born on
such a seemingly arbitrary day as New Year’s”4. Para os interessados, esses dados podem
ser obtidos, com relativa segurança, em uma fonte simples como a Wikipédia. Daí temos
que Salinger nasceu na segunda década do século XX em Manhattan, estudou em colégios
públicos, na escola McBurney, na Academia Militar de Valey Forge, serviu na Segunda
Guerra Mundial chegando à Europa logo após o desembarque das forças aliadas na
Normandia, supostamente se casou e se divorciou neste período em terras estrangeiras,
começou a publicar contos em 1940, alcançou fama mundial na década de 1950 com a
publicação de The catcher in the rye, mudou-se em 1955 para Cornish, no estado norte-
americano de New Hampshire, casou-se duas vezes, seu último conto publicado foi
“Hapworth 16, 1924”, na revista New Yorker em 1965, e sua última entrevista data de
1980, abruptamente encerrada quando um desconhecido tentou apertar a mão de Salinger
– a própria entrevista já foi uma tentativa de manipulação de uma jornalista para
ultrapassar o bloqueio da reclusão. E que Pynchon nasceu em 1937 em Long Island, filho
de uma família de longa linhagem, cujas origens se estabelecem séculos antes, estudou
Engenharia Física por pouco mais de um ano na universidade de Cornell, serviu a
Marinha, trabalhou na Boeing, onde escreveu para o jornal técnico interno, morou em
Seattle, na Califórnia, no México e em Nova Iorque, supostamente teve aulas de literatura
com Vladimir Nabokov, ganhou o National Book Award em 1974 por O arco-íris da
gravidade, também escolhido para o Pulitzer de ficção, mas rejeitado pela comissão geral
do prêmio, casou-se com Melanie Jackson, sua agente literária, é pai de um filho e
publicou oito romances, incluindo Bleeding edge, lançado em 2013.
4
“O nascimento de Salinger é sempre dado como 1º de janeiro de 1919 – embora pareça curioso que um
homem relutante em divulgar informações sobre si tenha nascido em um dia aparentemente arbitrário como
o Ano Novo” (tradução nossa).
203
diabos é ele?” –, o mundo ao redor dos dois autores se agigantou em diversas direções,
ou através de especulações, invencionices, ou de biografias não autorizadas ou de relatos
altamente questionáveis contados por terceiros, em geral pessoas que sofreram algum tipo
de desilusão com os autores – ex-mulheres, amigos traídos, filhos – ou de fofocas
irrelevantes, como a de que Salinger teria somente um testículo e beberia a própria urina,
ou de catálogos on-line enciclopédicos, como o que enumera página por página todas as
supostas citações e relações inter ou intratextuais existentes na obra de Pynchon5, ou
mesmo, em uma exercício de metalinguagem, na busca pelos dois em si.
5
www.pynchonwiki.com
204
3.
A pergunta óbvia é: por que deveríamos nos interessar em conhecer ou ouvir o que
Salinger e Pynchon têm a dizer, se já não temos o que eles nos dizem através de seus
livros? Ou por que deveríamos nos interessar em saber o que eles falariam, por exemplo,
sobre a própria obra? Ou por que deveríamos nos interessar em destrinchar o processo de
trabalho dos dois? A resposta, claro, envolve uma discussão epistemológica ampla,
elementos cujas bases, dentro do campo da literatura e da autoria, podem ser consideradas
até como bases calcadas na fé, e, portanto, esses elementos devem ser debatidos com
parcimônia, sem a necessidade de ataques. No entanto, se o argumento para obliterar o
autor é consistente, o argumento contrário também, é até uma argumentação simples, e a
simplicidade atua em seu favor na contenda: porque eles – e no “eles” está incluso, em
especial, todos os rastros materiais, documentais, que os dois podem ter deixado pelo
caminho – podem nos dar grandes respostas, elucidando pontos obscuros de seus textos,
ampliando o entendimento, contribuindo tanto para a pesquisa acadêmica, a crítica em
geral, quanto para o desenvolvimento do processo criativo de outros escritores, obliterar
o autor é simplesmente um desperdício.
De Salinger, hoje falecido, infelizmente ainda nada se sabe, exceto que o acesso
aos seus manuscritos já revelou a existência de três novos contos, vazados na internet
contra a vontade do espólio do autor. Pynchon, por outro lado, no que é talvez o seu único
205
esforço em refletir de alguma forma sobre a sua própria obra, no prefácio para o seu livro
de contos Slow Learner (1984), mostra em pouco mais de 35 mil caracteres como é
proveitosa essa abertura – ainda que motivada por questões comerciais, como pode ter
sido o caso aqui, se, tal se especula, a publicação do livro de contos se decidiu apenas por
uma necessidade de consolidação de espaço profissional para sua nova agente à época,
hoje sua esposa –, em um constructo não só espantoso pela personalidade de sua voz,
distante da voz narrativa implícita nos romances – reflexiva em sua encarnação real,
profundamente narrativa na encarnação ficcional –, como também espantoso pela
sinceridade revelada, com Pynchon ao ponto de se desculpar por impingir a determinado
personagem um cacoete racista, machista e proto-facista que ele, admite, em um momento
quiçá expiatório, era também muito do seu pensamento da época. Nunca publicado no
Brasil, o documento é realmente vasto. Para o propósito deste artigo, no entanto, ao invés
de citá-lo nominalmente, é suficiente mencionar como o texto envolve reflexões,
comentários e explicações tanto sobre os meandros da própria obra, com foco maior no
que o Pynchon mais velho considera erros de sua contraparte mais jovem, em especial
sobre como é ingênuo e infrutífero se concentrar de início em questões conceituais, e não
na construção firme da personagem, quanto sobre contexto literário de momento, cenário
político ou até mesmo sobre possíveis respostas para entender o processo de identificação
entre leitor e obra em gêneros díspares como a ficção científica e a fantasia, que
supostamente tratariam da morte, tema literário sério por excelência, como ameaça
inconsequente. Para o pesquisador em Pynchon, um verdadeiro tesouro.
4.
206
negação midiática dos dois seria absolutamente irrelevante para o contexto geral, pois há
uma tênue distinção a ser feita aí entre a reclusão e o anonimato, o primeiro é privilégio
de poucos, o segundo é condição de início para quase todos que se arriscam no campo
literário, se já não possuem capital simbólico prévio ou não são oriundos de outras áreas.
Em uma rara intervenção na imprensa, uma mensagem lida pela CNN norte-americana,
Pynchon ironizou ao afirmar que “‘recluso’ é um código usado por jornalistas que
significa: ‘não gosta de falar com repórteres’”. Ele não está errado, mas subverte o
discurso em seu proveito, pois seu conforto sob a égide de recluso só é possível em função
de um sistema literário, no qual, se por um lado, o interesse da publicidade e do jornalismo
são agentes catalisadores, por outro ele possui poder de barganha suficiente para se
desvencilhar desse interesse, como aconteceu, por exemplo, em 1998, quando Pynchon
conseguiu proibir a exibição de cartas trocadas com sua antiga agente ou quando Salinger
conseguiu proibir a publicação nos Estados Unidos de uma suposta continuação do seu
livro mais famoso, escrita por um desconhecido autor sueco6.
É de se notar, sob este viés, que “o recluso tende a ser cada vez mais uma figura de
exceção com a incorporação da literatura no circuito das celebridades, com os festivais
literários e demais nexos com o mundo do entretenimento massivo”, segundo diz Luís
Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
em matéria publicada pela Folha de São Paulo no dia 03 de novembro de 2013, abordando
justamente a reclusão de Pynchon e Salinger. Vivemos, de fato, como se sabe, em uma
sociedade espetacularizada, em constante atualização sob as luzes de holofotes e flashes,
cujo escrutínio da vida alheia é prerrogativa central, seja via Facebook, seja via revistas
de fofoca, seja através de canais televisivos exclusivos para as ditas celebridades, como
o E! Entertainement Television, seja através dos reality shows, símbolo máximo de uma
cultura vetorizada para a superexposição de um Eu aparente. Isso, pode-se também dizer,
apesar de desvirtuar o contexto original de fala, é o desfecho limítrofe de um processo
secular classificado por Eagleton, citado por Andacht (2005) como “uma das grandes
concepções revolucionárias da história moderna”, que é “a ideia de que a vida cotidiana
é dramaticamente cativante, que ela é fascinante simplesmente nos seus ilimitados
detalhes rotineiros”, em um amálgama capaz de misturar no mesmo balaio James Joyce,
6
COLTING, Frederik. 60 anos depois – do outro lado do campo de centeio. Campinas: Verus, 2010.
Proibido nos Estados Unidos, o livro é comercializado em outros países.
207
cujas cartas eróticas a esposa foram recentemente publicadas com estardalhaço, e os
desvarios do Big Brother, já com mais de uma dúzia de edições no Brasil e contando.
REFERÊNCIAS
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2014.
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‘Yupper West Side’ of his new novel. Disponível em: <http://vult.re/1fwqpMa>. Acesso em 29
jan. 2014.
FRENCH, Warren. J.D. Salinger. New Haven: College and University Press, 1963.
FOUCAULT, Michel. O que é um Autor? In: Ditos e Escritos: Estética - literatura e pintura,
música e cinema (vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. Disponível em:
<http://bit.ly/9RwPZr>. Acesso em 25 de junho de 2013.
RODRIGUES, Alexandre. Salinger, Pynchon e outros eremitas literários. Folha de São Paulo.
São Paulo, nov. 2013. Ilustríssima. Disponível em: <http://bit.ly/1loCie4>. Acesso em: 03 nov.
2013.
ROLLS, Albert. Thomas Pynchon and the Vacuum Salesman in Guadalajara. Orbit: Writing
Around Pynchon, v. 01, n. 02, 2013. Disponível em: <http://bit.ly/1dbExr1>. Acesso em: 30 jan.
2014.
208
DANÇA AUTOBIOGRÁFICA: ESBOÇANDO UMA TEORIZAÇÃO
DO SELF ENCENADO1
1
Mesa-Redonda Autoficção/Autobiografia em cena.
2
Mestre em Dança pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
209
Abstract: Autobiographical dances seem to be developing at least since the first phase
of the modernist movement on dance, the beginning of the XXth century, with a relevant
production from the years 1960 and 1970, widening virulently from 1990s, nevertheless
academic research in the area are fairly recent and scarce. In this study, autobiographical
dance is conceived as the dance staging self, dealing with the notion of Self and Staging
on Dance. Self was treated as a dialogical, multivocal and embodied self, from the theory
of the Dialogical Self, by Hubert Hermans et al. Moreover, the theory of Corpomídia,
Helena Katz and Christine Greiner, were important for the recognition of negotiation and
ongoing interaction between body and culture. Finally, the notion of multiple unit of
human identity, proposed by Edgar Morin, mobilizing an ontologically recursive
continuity of differentiation and integration of subjective dynamics. Staging on Dance
was addressed on a dramaturgical analyses directly on a study methodology case.
Dramaturgy in dance was understood as an aspect of qualifying the movement as well as
the interconnected relationships between this and the other components of a choreography
(costumes, lighting, soundtrack, etc.), considering a whole load of sense. The selected
case was the choreographic work Samba do Crioulo Doido (Samba of the mad black man,
2004), by Luiz de Abreu. The collection and analysis of data was composed mainly by
watching video-record of the work, crisscrossed with non-structured interview with the
creator and documental analysis about the work. The results outline a theorizing on self
staged in which: a) is structured with multiple voices, operating in a potentially ongoing
dialogue between the creator, the danced staging and broad cultural context in which its
creator choreographs , b) such dialogy confirms perspective self as shareable, rather than
a radical subjectivism, so that c) the autobiographical dance performs human identity,
making use of constituent features of the staging from the onslaught of the creator
proposition to trademarks of their personal embodied experience, returned the own
culture by way of artistic symbolization danced .
Keywords: contemporary dance; autobiographical dance; self; dialogical self.
210
Nesse estudo, abordei essa temática considerando que dança autobiográfica é a
dança que encena o self, numa réplica da pesquisa de Albright (1997). Para tal, mantive
a hipótese da autora, que foi confirmada: as estratégias dramatúrgicas na condição de
autorreferencialidade evidenciam uma dança do si mesmo inteiramente inter-relacionada
em extensão a experiências culturais que o extrapola e envolve outros. Confirmação essa
guiada pela seguinte pergunta-problema de pesquisa: De que maneira uma dança
autobiográfica extrapola as particularidades estritamente pessoais do seu criador? No
percurso de desenvolvimento teórico, dois aspectos tornaram-se delineadores: a noção de
self e a de encenação em dança.
211
revisada sobre esta perspectiva, engloba esses resíduos, mas os ultrapassa, sendo uma
possibilidade de passagem de um âmbito – o fluxo – a outro – o resíduo configurado – da
relação corpo-ambiente.
213
poucos, a sinuosidade instala-se no corpo como um todo, com uma sutileza de onde
eclodem os passos de um samba ao mesmo tempo sensual e sóbrio.
216
potenciais, que podem surgir, ou mesmo desaparecer e reaparecer, de acordo com os
processos evolutivos da obra, cujas transformações podem gerar novas soluções cênicas
trazendo sentidos de posições-de-eu inéditas ao processo da obra, no caso o Samba do
crioulo doido. A introdução, por exemplo, de algum elemento dramatúrgico, numa cena
já existente, ou mesmo a criação de uma nova cena, a qual traga um sentido de infância,
gerará no espaço do self encenado uma nova posição-de-eu vocalizada: Eu-criança, a
qual ainda não existe nessa obra.
REFERÊNCIAS
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217
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categoria tradicional de “corpo brasileiro”. In: NORA, Sigrid. (Org.). Humus 2. Caxias do Sul,
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HERCOLES, Rosa Maria. Formas de comunicação do corpo: novas cartas sobre a dança. Tese
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Janeiro de 2002.
219
RIBEIRO, António Pinto. Dança temporariamente contemporânea. Lisboa: Abreu, 1994.
220
A MEMÓRIA NARRATIVA NA CONSTRUÇÃO DO EU DENTRO
DAS PÁGINAS E FORA DA HISTÓRIA1
Eduardo Cabeda2
Resumo: A tomada da não linearidade. A exploração do Eu. O lugar onde o tempo é uma
ilusão. Imagens que mergulham no vazio como um ioiô preso no dedo duma criança,
capaz de tanto encolher quanto esticar a projeção da existência dentro e fora do corpo. A
história é o próprio pensamento. Os olhos percorrem e participam das profundezas de
alguém. Alguém como Graciliano que, deliberadamente, vai retirar o coração da terra
para colocá-lo dentro do peito. O solilóquio, o redemoinho mental sofrido pelo escritor
doente e emparedado no quarto de hospital, obrigado a interromper a escrita de São
Bernardo, vai lhe trazer as imagens, a conversa, as ligações, a luz para a construção de
um novo Eu, literário, narrativo. O conto “Relógio de Hospital”, moldado por anestésicos,
dor, vertigem, medo e o desejo de estreitar o caminho entre a mente e a história, remonta
os primeiros passos da chegada do fluxo de consciência – como “técnica narrativa” – ao
Brasil, em meados dos anos 1930. Objeto deste estudo, aberto e apresentado na forma de
fragmentos mentais e imagéticos, intrinsecamente ligados às vozes de Edouard Dujardin,
Willian Faulkner, Virginia Woolf, James Joyce, Robert Humphrey, assim como dos
parâmetros e preceitos teóricos do livro Transparent minds.
Palavras-chave: memória; narrativa; construção do eu; fluxo de consciência; Graciliano
Ramos.
Abstract: The taking of nonlinearity. Exploration of the Self. The place where time is an
illusion. Images that plunge into the void like a yo-yo stuck in a child finger, able to either
shrink stretch as the projection of existence within and outside the body. The story is
thought itself. The eyes go and participate in the depths of someone. Graciliano will
remove the heart of the earth to put it inside the chest. The soliloquy, mental swirl suffered
by the patient and writer immured in the Relógio de hospital (Hospital watch), compelled
to stop writing San Bernardo will bring you the images, the conversation, the links, the
light for the construction of a new narrative of the Self. The short story Hospital watch,
molded anesthetics, pain, vertigo, fear and the desire to strengthen the way between the
mind and the history dates back to the first steps of the arrival of stream of consciousness-
as "narrative technique" - to Brazil in mid 30s. Object of this study, opened and displayed
in the form of mental imagery and fragments, intrinsically linked to the voices of Edouard
Dujardin, William Faulkner, Virginia Woolf, James Joyce, Robert Humphrey, as well as
the parameters and theoretical precepts of the book Transparent minds.
1
Mesa-redonda Memória e ficção em narrativas literárias.
2
Mestre em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
221
Keywords: memory; narrative; construction of the self; stream of consciousness;
Graciliano Ramos.
O conto “Relógio de Hospital”, escrito em meado dos anos 1930, foi na verdade
moldado por anestésicos, dor, vertigem, medo e o desejo de estreitar o caminho entre a
mente e a história. O sentimento e a percepção. Mas é justamente esse percurso labiríntico
que ilude a instantaneidade. O passado quase passa despercebido do ato de escrever (vai
ser tratado mais tarde quando o assunto for a autobiografia, por exemplo), derrubando
assim muros entrepostos no caminho do sentir. São paredes solidificadas por anos de
tendência literária em conformidade com a lenta transformação de uma organização
social repleta de regras duras e, até então, inquebráveis. A oportunidade de retirar esse
passado das sombras, perfeitamente adaptado ao escuro depois de tanto tempo, retumba
como a chance de falar livremente sobre si mesmo com base na memória e nas curvas do
pensamento contínuo. Parece uma escritura mais livre, mais perto de quem escreve.
222
“A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrado, cheio de
pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi [...]”, (RAMOS,
1978, p. 9). Assim começa Infância, livro de memórias de Graciliano Ramos, assim
começa a infância de Graciliano, um retalho de memória. A incerteza é, na verdade, a
certeza de que uma cena antes de transformar-se em outra coisa foi capaz de preservar a
sua origem. O vaso foi visto em Quebrangulo – cidade onde nasceu –, em 27 de outubro
de 1892. Registros históricos documentados do vaso são, no entanto, migalhas sopradas
para longe das palavras do escritor alagoano, essencialmente nordestino. A comprovação
da verdade está no esforço da lembrança, preso a um sentimento que soa indesmentível.
Essa imagem inacabada ilustra como a memória ajudou não só na construção de um novo
Eu literário, mas também no deslocamento de uma voz interior que deixou de estar acima
da história para se tornar a própria história. O fluxo de consciência talvez tenha
desempenhado o papel da mais iluminada das portas para se chegar à palavra íntima,
inteiriça – ensaiada por tantos escritores na beirada do século XX – (décadas depois, como
sabemos, modificaria sensivelmente a escrita de ficção e a figura encarnada do escritor,
assim como a vontade de se contar a própria vida), capturando a existência de quem
escreve. Uma vez içada do escuro, a luz dessa “nova palavra” projeta uma imagem que
tem a mesma intensidade ao brilhar e refletir.
Graciliano surge em Infância como alguém que poderia cantar o sertão e a sua
miséria, até lutar por ele pegando em armas se houvesse a chance de fazê-lo ao largo de
sua trajetória. É uma plausibilidade escrita em camadas, está lá em algum lugar, um
engajamento entranhado no texto, mas antes de nos aventuramos a desenrolar um novelo
grosso e pesado de possibilidades por debaixo dos parágrafos, nos é apresentado outro
caminho mais tentador e menos desgastante. Um fio narrativo de sua própria história,
suave e posto delicadamente em volta do punho do leitor, página atrás de página,
conduzindo-o ao seu generoso espaço interno. Um sertão igualmente largo, belo,
assustador e, principalmente, particular. Uma espécie de vida, cuja vida lá fora, sem
grandes mistérios, foi parar dentro de seus livros. O compartilhamento de uma alma sem
tantos tolhimentos estéticos, mas recheada de grandes medos humanos e fluídos que, de
tão próximos, arranham as páginas como se os conhecêssemos desde o nascimento. Esse
diálogo está mais próximo do homem que da literatura. Fazendo dela, ao mesmo tempo,
um instrumento de comunicação poderoso; que em nada diminui, ao dizer para o outro,
aquilo que o escritor só descobre dizendo para si mesmo.
223
A ORIGEM DA MEMÓRIA
224
existe mais, será uma verdade inventada. Não é possível estarmos de novo e nem sermos
outra vez.
225
Entre aquilo que vivemos e aquilo que no presente reproduzimos, está,
invariavelmente, o que Barthes gostaria de ter encontrado nos livros de fotografia e não
encontrou. A imagem mergulhada em emoção, moldada pelo prazer capaz de sobrepujar
a técnica. Para chegar lá seria preciso transportar essa imagem ao lugar de onde ela saiu.
Fazer o movimento contrário, condicionando o fotógrafo (para literatura: o escritor) a
recuperar todos os cheiros, a batida do vento ou o brilho da tarde pelo caminho.
ESTRUTURA DESMONTÁVEL
A memória, como já foi dito, nasce na desordem do pensamento. Não é reta e nem
fácil de montar. Está em nós em pedaços, em fragmentos que se perdem ou se encontram
no caos do tempo passado em choque com o tempo vivo. Como se surgisse a partir de
uma de lágrima que ficou pendida em alguma ponta de verdade, equilibrada por uma
sensação sentida, mas no fundo perdida e que apenas atirou-se na ilusão de ter sido
derramada. Uma sensação ou um sentimento que houve, mas foi deslocado de lugar por
ter sido vivo no coração de um ser que não existe mais. Assim não está em sequência,
não é reta e nem encaixada, mas uma estrutura de pontas diversas que arranham
extremidades que deveriam se encontrar com facilidade. Não estão presas a uma linha,
mas a um vai e volta, um vai e vem de fluxo pensado e emotivo, uma troca entre a
lembrança e o que dela foi possível restaurar no presente. A sensação é a de que uma
“autopista temporal” chumbou e poliu as emendas entre e os anos e fatos passados,
deixando que a mente passe por cima dela em alta velocidade tanto para frente quanto
para trás (o comportamento das autobiografias, não à toa, apresenta uma estrutura
fragmentada de idas e vindas, mesmo quando se pensa em distribuir os acontecimentos
cronologicamente). No máximo existirá o encadeamento dos fatos, um chamará o outro,
tal qual um estalo, mas sem impacto algum na transição de uma coisa e outra. Nenhum
solavanco que nos desacomode da leitura ou tampouco das imagens macias criadas por
nós internamente todos os dias.
O que surge como uma técnica versada em voz narrativa que olha sem medo para
dentro do narrador, a fim de ampliar a forma de narrar, se transforma rapidamente numa
espécie de tendência literária que, uma vez inserida na sociedade globalizada, puxa
intencionalmente para a história o rosto e a vida do escritor. Não é à toa que a narrativa
longa da metade do século XX às primeiras décadas do século XXI tem abandonado o
narrador em terceira pessoa para “vivê-lo” em primeira do começo ao fim da história.
227
Não posso provar que sou um ser de desejo, um ser de escolha, um ser
de iniciativa. Não posso provar que é na minha relação de alteridade
que eu conquisto a minha identidade, não posso provar que é inserindo-
me como cidadão no trabalho político que vou elaborar instituições
justas, mas creio nisso à medida que o faço, e é por este ato fundamental
de crença e de confiança que me torno naquilo que creio ser
(RICOEUR, 1991, p. 7).
A conquista da ideia fundada de “pessoa” na literatura, no centro e em evidência
dentro das páginas, depois desta peregrinar por um universo simbológico bastante
complexo e difuso, representa uma espécie de recomeço social, baseado na valoração
humana do indivíduo, sem a necessidade de se cortar as raízes culturais e teológicas que
o movimentaram até o presente e podem positivamente projetá-lo no futuro. Por sinal,
um pensamento defendido e sustentado pelo filósofo francês Paul Ricoeur.
REFERÊNCIAS
COHN, Dorrit. Transparent Minds: narrative modes for presenting consciousness in fiction.
Princeton: Universtity of Princeton, 1983.
WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur e o caminho para o si. Bulletin Du Centre Protestant D´etudes,
Genéve, v. 7, n. 43, p.7-9, 1991. Entrevista concedida a P.M. De Saint-Charon. Disponível em:
<http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/O_caminho_para_o_si_19
91.pdf> Acesso em: 30 maio 2018
228
JODHAA AKBAR, ESCOLHAS DE UMA REPRESENTAÇÃO DO
PASSADO1
Abstract: This paper analyzes a 2008 Indian film about the XVI century Mughal emperor
Akbar. Although Akbar was a notable emperor in many ways, the movie Jodhaa Akbar
focuses on his relationship with a Rajput princess. The work aims at showing that to
portray the romantic involvement of the Muslim emperor with his Hindu queen is a choice
with political overtones. In our analysis, we present three other biographies of the
emperor, two of the sixteenth century and one written in 1917, seeking similarities and
differences in the representation of the marriage and the princess.
Keywords: Jodhaa Akbar, Bollywood, biography, Akbar
INTRODUÇÃO
Achei necessário reduzir o tamanho do hospital de Don
Juan Tavera, não só porque ele cobria o portão de Bisagra,
mas também porque a sua cúpula era muito alta, passando
o horizonte da cidade. E assim, já que eu o fiz menor e
mudei sua posição, eu acho melhor mostrar a sua fachada,
em vez de seus outros lados. Quanto à sua posição real na
cidade, você pode ver no mapa (EL GRECO3 apud
DOXIADIS, 2009, tradução nossa).
The Enchantress of Florence é uma obra de ficção.
Algumas liberdades foram tomadas com o registro
histórico, no interesse da verdade (RUSHDALE, 2008,
tradução nossa).
1
Mesa-redonda Memória e resistência II.
2
Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
3
O pintor explica as liberdades que tomou no seu quadro Tempestade sobre Toledo.
229
[…] eu fiz o filme para entretenimento geral e há pouca
teoria histórica em comparação com os pensamentos
criativos. Meu foco principal é mostrar a proximidade
entre duas sociedades diferentes de pessoas que se
reuniram centenas de anos atrás, por causa de um
casamento. [...] . Faço um apelo a todas as pessoas a tomar
Jodhaa Akbar só como um filme (GOWARIKER, 2008,
tradução nossa).
O filme abre com um texto que explica que, embora o casamento entre Akbar e a
princesa seja um fato histórico, não há um consenso a respeito do nome da princesa,
“Jodhaa Bai” – este seria o nome pelo qual o povo, atualmente, a conheceria. O texto
acrescenta que o filme é apenas uma versão para os fatos históricos – “poderia haver
outras versões e pontos de vista”. O objetivo deste artigo é recuperar essas outras versões
e pontos de vista, buscando mostrar que as escolhas que cada versão faz são políticas.
Para tanto, recorreremos à biografia de Akbar feita sob sua encomenda pelo historiador
de sua corte6, a biografia “não autorizada” de outro historiador da corte de Akbar7, além
de uma da época colonial, escrita por Smith (1917). Também compararemos o casamento
4
Cujo nome aparece sobre várias grafias: Raja Bihari Mal, Raja Pahárah Mall, Raja Bharmal.
5
O filme é uma superprodução, com cenários requintados, batalhas, milhares de figurantes e vários
elefantes. As joias do filme seriam oficialmente usadas numa linha da joalheria Tanishq. Talvez não seja à
toa que a famosa atriz que faz o papel de Jodhaa, Aishwarya Rai, tenha começado a vida como modelo da
Pepsi.
6
O Akbarnama, de Abul Fazl.
7
Esta segunda biografia se chama Muntakhabu-T-Tawarikh. Ela foi escrita em segredo por al Badaoni (ou
Badauni), que era tradutor na corte de Akbar, e foi encontrada entre seus papéis após a morte do imperador.
230
entre Akbar e Jodhaa tal como aparece no filme com sua representação no livro The
Enchantress of Florence, de Salman Rushdie. Uma referência fundamental, para este
artigo, foi o texto de Shahnaz Khan, “Recovering the past in Jodhaa Akbar: Masculinities,
femininities and cultural politics in Bombay cinema”.
Em seu texto A Ilusão Biográfica, Pierre Bourdieu escreve (a respeito dos relatos
biográficos) que uma vida pode ser apreendida como expressão de uma “intenção”
subjetiva e objetiva, de um projeto. Nos relatos, a vida é organizada como uma história,
segundo uma ordem cronológica, mas também lógica, “desde um começo […], no duplo
sentido de ponto de partida, de início, mas também de princípio, de razão de ser, de causa
primeira, até seu término, que também é um objetivo” (2006, p.184). Segundo Bourdieu
(2006), o relato autobiográfico se baseia, pelo menos em parte, na preocupação de se
extrair um sentido, uma lógica retrospectiva e prospectiva, de uma vida. No relato,
estabelecem-se relações inteligíveis entre os estados sucessivos (como a de causa e
efeito), percebidos como etapas de um desenvolvimento necessário. São selecionados
certos acontecimentos considerados significativos, e conexões são estabelecidas entre
eles para lhes dar coerência, em uma criação artificial de sentido.
Em todas essas biografias, sentidos para a vida de Akbar são construídos, e certos
acontecimentos ganham uma relevância maior ou menor no texto, ou são de todo
omitidos. Todas contém, em maior ou menor grau, portanto, silêncios constitutivos.
Orlandi (1997) vai definir o silêncio constitutivo como o que “nos indica que para dizer
é preciso não-dizer” – a palavra dita apaga necessariamente as outras palavras possíveis.
“Há pois uma declinação política de significação que resulta no silenciamento como
forma não de calar mas de dizer ‘uma’ coisa, para não deixar dizer ‘outras’. Ou seja, o
silêncio recorta o dizer. Esta é sua dimensão política”(ORLANDI, 1997, p. 54). Por
exemplo, ainda que, como Gowariker tenha afirmado, Jodhaa Akbar seja só um filme,
ele se atém a determinados fatos históricos e ignora outros. Essa seleção de quais fatos
manter e quais inventar, quais conexões estabelecer, está ligada a esta construção de um
sentido para a vida de Akbar, que é também um sentido para o passado da Índia (sentido
231
este, por sua vez, que altera o sentido do presente). Ao enfocar o casamento, muitos outros
sentidos possíveis para Akbar são negados.
Khan (2011) escreve que filmes históricos dizem muito a respeito do período em
que são feitos: frequentemente, esses filmes moldariam outra vez o passado para
expressar preocupações contemporâneas. Além disso, ela afirma que filmes históricos
ajudariam a produzir as comunidades imaginadas, em que tradições seriam inventadas e
valorizadas por narrativas nacionalistas, conforme apontou Benedict Anderson. Em
Jodhaa Akbar, podemos ver esses processos: a criação de uma comunidade imaginada e
a preocupação contemporânea em relação à tolerância religiosa e a unidade nacional, que
estão interligadas, dado que a Índia é um país marcado e – em certa medida – ameaçado
por uma profunda diversidade religiosa, linguística e cultural. Ao mesmo tempo, o filme
atualiza um momento da história indiana em que o país era bastante próspero, sob um
imperador extremamente poderoso, talvez refletindo o nacionalismo forte que tem
aparecido em diversos filmes indianos recentes (alguns, de uma forma mais óbvia – por
exemplo, filmes de guerra como Lakshya). Nestes filmes, a Índia não passa mais a
imagem da pobreza, mas de um país extremamente poderoso, fortemente armado, e
próspero. Mesmo em filmes de bandido como Don, a prosperidade e tecnologia da nação
e da polícia são bastante evidentes.
Sua coragem e ousadia eram tais que ele podia montar elefantes
furiosos e no cio, e sujeitar à obediência elefantes assassinos que não
permitiriam que suas próprias fêmeas chegassem perto deles [...]. Ele
se colocava em uma parede ou árvore perto de um elefante, que
estivesse passando, e que houvesse matado seu treinador e se soltado,
e, pondo sua confiança em Deus, lançava-se em suas costas e,
simplesmente por montá-lo, punha-o sob controle [...]. Isto foi visto
repetidamente (JAHANGIR, 1968, p. 38, tradução nossa).
8
A cena no filme em que Akbar luta de espada e vence Adham Khan é uma encenação quase literal da
cena descrita por Abul Fazl em Akbarnama.
9
O texto original é do século XVII.
232
Esse processo de glorificação de Akbar já era evidente em sua época. Podemos
imaginar o quanto era importante para o império a construção de relatos favoráveis sobre
o imperador, inclusive para legitimar um poder de origem estrangeira (mogol10).
10
Em Jodhaa Akbar, o narrador toma o cuidado de distinguir os mogóis dos outros povos invasores:
“Desde 1011 d.C., inúmeros invasores têm saqueado e devastado esta terra. E então vieram os mogóis.
Eles fizeram da Índia seu lar, dando-lhe amor e respeito. Fundada por Babur, a Dinastia Mogol passou de
Humayun para seu filho, Akbar. Dentre todos os imperadores mogóis, Akbar alcançou os seus maiores
apogeus. Jalaluddin Mohammad Akbar! O primeiro imperador mogol a nascer em solo indiano Akbar
nasceu em uma casa hindu Rajput.”
11
Abul Fazl também fala do vestuário de Akbar.
12
Dado que o imperador acompanhava a execução do texto à medida em que este era escrito, talvez Fazl
tivesse uma motivação adicional para falar bem dele.
233
nele” (JAHANGIR, 1968, p. 33-34, tradução nossa); “[...] As boas qualidades de meu pai
reverenciado estão além do limite de aprovação e de louvor” (JAHANGIR, 1968, p. 37,
tradução nossa).
Mas Akbar realmente parece ter sido uma pessoa cativante. Mesmo seus
opositores, que não teriam nada a ganhar por elogiá-lo, como al Badaoni, falam de suas
qualidades: “[...] tinha uma excelente disposição […] e buscava sinceramente a verdade”.
Padre Monserrate, o padre jesuíta que viveu na corte de Akbar e foi, por um tempo, tutor
de seu filho Murad, escreveu em seu relato (feito quando ele já não estava na Índia):
234
A maioria das pessoas pensam em sua nação como uma entidade
natural, despertada pela história, opressão, ou revolução. Mas esta visão
ignora a maneira em que as nações procuram estabelecer sua
identidade, definindo-se contra outros estados-nação. Uma das
principais ferramentas de construção de uma nação é o vasculhar
seletivo da história para eventos que podem fornecer histórias
encorajadoras ou mitos (LUCE, 2008, p. 149-150, tradução nossa).
É interessante que, de acordo com o ponto de vista, Akbar não é retratado sob uma
luz favorável. O Coronel Tod, escrevendo no início do século XIX uma história dos
Rajput (portanto, tendo fontes Rajput), descreve Akbar como um homem propenso a
desonrar as esposas alheias. Ele conta a seguinte anedota, que teria acontecido com a
esposa de um nobre Rajput chamado Prithiraj: o “monarca dos Mogois” teria visto a moça
e, devido a sentimentos “não-generosos” e “impuros”, tentado “desonrar” a família do
marido dela. Voltando da feira, ela teria se deparado com Akbar. Retirando um punhal
escondido em suas roupas, ela teria se defendido, forçando-o a prometer não difamar mais
o povo dela (TOD, 1920, p. 401-402)13. Aqui, portanto, os heróis são os Rajputs, e o
imperador é representado como uma ameaça (Fazl provavelmente negaria a história, uma
vez que ele afirmou que o imperador “considera uma grande bênção ter a boa vontade do
povo, e não permite que os prazeres intoxicantes do mundo se sobreponham ao seu juízo
calmo”14).
AKBARNAMA
13
O volume original foi publicado em duas partes, entre 1829 e 1832. Esta história parece improvável.
Nenhum outro historiador menciona este lado da personalidade de Akbar.
14
Akbarnama (Ain I Akbari, volume 1, capítulo 15).
15
Akbar pediu ao historiador oficial de sua corte, Abul Fazl, que escrevesse sobre sua vida, registrando
os acontecimentos de seu longo reinado, de sua infância e ascensão ao trono. Akbar seguiu o exemplo de
seu avô, o imperador Babur, que escreveu suas memórias. A biografia de seu pai, Humayan, seria escrita
por sua tia Gulbadan Begam, a pedido de Akbar. Segundo Sowards (1995), Fazl lia os capítulos, à
235
os acordos, as traições que ele sofreu, suas visões sobre a religião. A biografia também
aborda amplamente aspectos administrativos do reino. Muitos capítulos são dedicados
aos dados astrológicos do imperador. De sua vida pessoal, o Akbarnama não fala muito;
de fato, nenhuma dessas biografias não ficcionais enfatiza sua vida privada, a não ser no
que diz respeito à sua religiosidade ou seu amor à caça. Isso em si mostra a importância
e visibilidade maior que se dá à vida privada atualmente, em comparação ao século XVII:
assim como Jodhaa Akbar, o livro de Rushdie também traça um retrato da intimidade do
imperador. O harém do palácio, que aparece extensamente tanto no filme quanto no livro,
aparece no Akbarnama brevemente, quando sua administração é explicada16. O amor
parece ter menos importância neste espaço, cuja principal virtude parece ser a ordem:
Este é outro ponto em que Akbar se assemelha aos outros monarcas: os reinados se
fortalecem através dos laços matrimoniais, que são sobretudo laços políticos, mas no caso
de Pedro II, também uma afirmação do 'corpo do rei', de status. O imperador brasileiro
medida em que eles eram escritos, para o imperador, que os corrigia e comentava. Os dois se tornaram
amigos próximos. Fazl seria assassinado em 1602, a mando do filho do imperador, Jahangir.
16
Essencialmente, ele relata que cada uma das esposas recebe uma quantia de dinheiro mensal, de acordo
com seu status, que cada uma possui seu próprio quarto, que todos os gastos são devidamente registrados,
que há mulheres especialmente encarregadas como escribas, que o harém é protegido por guardas e
eunucos e que é possível para mulheres de fora visitarem o harém sob solicitação.
17
Akbarnama (Ain I Akbari, volume 1, capítulo 15).Tradução nossa.
18
Akbarnama, volume 3, capítulo 94, tradução nossa.
236
também só conheceu sua esposa (escolhida por ser da realeza europeia, o que era
importante para um império nos trópicos) no dia do casamento.
Até este momento da pesquisa, as mulheres que mais aparecem nestas biografias
não-fictícias de Akbar são sua mãe, sua tia e sua ama-de-leite, Maham Anaga, que viria
a exercer uma grande influência política. Sua esposa Salima também aparece no momento
da reconciliação entre Akbar e seu filho Salim. Quanto à filha do Rei Bharmal, ela é
apenas brevemente citada no Akbarnama em relação ao seu casamento:
No dia seguinte, [ ...] Caghatai Khān introduziu Rajah Bihari Mal junto com
muitos de seus parentes e os principais homens de seu clã. [ ...] . O Rajah de
pensar correto e elevada fortuna considerou que ele deveria pôr-se fora da ralé
de proprietários de terras e tornar-se um dos mais ilustres da Corte. A fim de
efetuar essa finalidade ele pensou em uma aliança especial, a saber que ele
deveria [...] introduzir sua filha mais velha , em cuja testa brilhava as luzes da
castidade e do intelecto , entre os atendentes sobre o glorioso pavilhão. Na
medida em que graciosidade é natural a Sua Majestade o Shāhinshāh seu
pedido foi aceito e Sua Majestade mandou-o partir, juntamente com Caghatai
Khān, a fim de que ele pudesse providenciar esta aliança , que é o material da
glória eterna da família , e rapidamente trazer a filha dele. [ ...] Rajah Bihari
Mal da sinceridade de sua disposição fez os arranjos para o casamento da
maneira mais admirável e trouxe sua filha feliz por esta estação e colocou-a
entre as mulheres do harém. Com a finalidade de manter o banquete de
casamento a cavalgada imperial parou por um dia em Sambhar. [...]19.
Este trecho que fala diretamente sobre o casamento é precedido de uma longa
explicação a respeito do Rei Bharmal – sua situação e as razões que o levaram a oferecer
sua filha ao imperador. Novamente, portanto, o mais importante para Fazl não é a moça
em si, mas sua família e as alianças políticas que podem ser obtidas com a união.
MUNTAKHABU-T-TAWARIKH
A biografia que al Badaoni escreve sobre o imperador é muito mais crítica que a de
Abul Fazl. As principais divergências entre al Badaoni e Akbar eram religiosas. O
historiador era um muçulmano muito mais ortodoxo, e criticou a tolerância religiosa do
imperador. Mais ainda, o fato de Akbar ter tomado para si a autoridade religiosa máxima
sob a interpretação do Alcorão, recebido pessoas de todas as seitas, questionado todos os
dogmas, se afastado do Islã e fundado sua própria religião era inaceitável para ele. Al
Badaoni também tinha problemas com Fazl: ao confrontá-lo a respeito de suas heresias,
ele teria ficado furioso quando Fazl respondeu que “I wish to wonder for a few days in
the vale of infidelity for sport” ( cf. GASCOIGNE apud SOWARDS, 1995, p. 59).
19
Akbarnama, capítulo 39, tradução nossa.
237
A biografia é dividida em três partes: o primeiro volume contém breves biografias
dos principais membros das dinastias que antecederam a de Akbar e dos antepassados do
imperador. O segundo volume traz, ano a ano, os acontecimentos da vida do imperador e
os principais eventos do império. O terceiro traz breves biografias de súditos importantes,
incluindo médicos, poetas, etc. Isto é, tanto no relato de Abul Fazl quanto no de al
Badaoni, a vida de Akbar é absolutamente ligada aos seus súditos, ao império e seus
acontecimentos, suas lutas, suas disputas. Quando Fazl descreve a administração do reino,
ele não deixa de estar escrevendo sobre o imperador.
20
A biografia escrita no século XVI por al Badaoni, Muntakhabu-T-Tawarikh, à qual já fizemos referência.
21
Muntakhabu-T-Tawarikh, ano 969 (1562).
238
o homem público do homem privado22, como se a privacidade fosse uma questão pública.
A rejeição de uma parte da comunidade Rajput ao filme parece indicar precisamente isso.
22
Na verdade, essa dicotomia seria questionável em qualquer pessoa, mas, sobretudo no caso de um
imperador, questões pessoais podem virar questões de Estado.
23
Cujo nome, já mencionamos, aparece sob várias grafias. Por uma questão de uniformidade, ao longo do
texto, nos referimos a ele sempre como Bharmal.
239
Nisso, ele diverge bastante de Jodhaa Akbar, na medida em que, no filme, a
princesa faz questão de se manter hindu, inclusive fazendo disso uma condição para o
casamento. A respeito do efeito desse casamento sobre a vida pública e privada do
imperador, Smith afirma que o casamento com a princesa teve um efeito político imediato
(além de possivelmente ter exercido uma influência sobre sua religiosidade).
JODHAA
O nome da princesa, como ele aparece na autobiografia de seu filho, Jahangir, era
Mariam uz-Zamani24 (conforme já vimos com Smith). Mariam é o nome muçulmano pelo
qual ela seria chamada após o casamento, aponta Khan (2011), que acrescenta que seu
nome original provavelmente seria “Hira Kunwari” ou “Manmati”. Até este momento da
pesquisa, o nome dela não foi encontrado nem no Akbarnama nem no Muntakhabu-T-
Tawarikh (nestes, ela é mencionada como a filha do rei Bihari Mal e, mais tarde, como
“uma das esposas”: filha, esposa, sem nome). O fato do nome dela não ser dado, sendo
citada apenas como filha de seu pai, na ocasião de seu casamento, não é incomum: no
Akbarnama, Fazl relata os casamentos dos filhos de Akbar, Salim e Murad, sem
mencionar os nomes das noivas. Apenas seus pais são nomeados.
O fato de nem o nome da princesa nem o suposto romance entre o casal serem
mencionados nas biografias contemporâneas do imperador não significa que na época o
amor não fosse valorizado pela sociedade (e pelos biógrafos). O exemplo mais
interessante pode ser encontrado na autobiografia do avô de Akbar, o imperador Babur,
que escreveu suas memórias no início do século XVI. A respeito de sua esposa, um
casamento arranjado com a filha de seu tio, ele escreve que, por timidez, a via muito
pouco. Ele acrescenta que, nessa época, se apaixonou por um rapaz chamado Baburi:
Até então eu não tinha tido inclinação para qualquer um, na verdade, de
amor e desejo, seja por ouvir dizer ou experiência, eu não tinha ouvido
falar, eu não tinha falado. Naquela época eu compus dísticos persas, um
ou dois de cada vez, este é um deles:
“Que nenhum ser como eu, humilhado e miserável e doente de amor;
Nenhum amado como tu és para mim, cruel e descuidado”.
24
É importante ressaltar que quem aponta “Mariam uz Zamani” como o nome da mãe de Jahangir são os
editores da obra, em notas de rodapé, não o próprio Jahangir, que se refere ora a Mariam uz Zamani, ora a
“minha mãe”, sem que estas referências estejam próximas. Aqui, obviamente nos faltam outros elementos,
como inscrições em tumbas, outros relatos contemporâneos que desconhecemos, etc.
240
De tempos em tempos Baburi costumava vir à minha presença, mas,
por modéstia e timidez, eu nunca conseguia olhar diretamente para ele,
então como eu poderia conversar? Na minha alegria e agitação eu não
poderia agradecer-lhe (por vir); como seria possível para mim reprová-
lo por ir embora? Que poder tinha eu para exigir o dever de serviço a
mim? [...] Naquele espumar de desejo e paixão, e sob o estresse da
insensatez da juventude, eu costumava passear, cabeça nua, descalço,
através de rua e ruela, pomar e vinhedo [...]2526
Em suas memórias, o filho de Akbar, Jahangir (1968, p. 56), fala do quanto ele sofreu
quando sua esposa Shah Begam (também uma Rajput) se suicidou, afirmando seu profundo
apego a ela. Ele relata ter ficado quatro dias sem comer nem beber depois que ela morreu. A
respeito do terceiro filho de Akbar, Daniel, que morreu jovem, Abul Fazl escreve:
25
Baburnama, p. 120-121, tradução nossa.
26
Esse relato do imperador Babur nos faz crer que o amor entre homens não parecia trazer nenhuma
desonra aos mogois. Talvez o conceito de homossexualidade sequer existisse entre eles.
27
Akbarnama, volume 2, capítulo 156, tradução nossa
28
Segundo o calendário da época. No nosso calendário, isso seria o equivalente a 1569.
29
Al Badaoni também relata outro caso de amor proibido que resultou em morte que tinha ocorrido antes
deste.
30
Os haréns não eram exclusivamente de esposas: havia filhas, parentes, crianças, agregadas, escravas...
241
nossa) afirma: “é notável que não encontramos nenhum vestígio de uma amada ou uma
esposa favorita associada a Akbar, em lendas ou na literatura contemporânea”31.
Voltando à questão do nome de Jodhaa, não há, portanto, menção ao nome “Jodhaa
Bhai” nas biografias contemporâneas, o que, a princípio, provavelmente não seria uma
questão digna de nota, a não ser pelo fato de que, ao chamá-la de “Jodhaa”, o filme não usa
o nome muçulmano “Mariam” (ao longo deste artigo, nos referiremos a ela como “Jodhaa”
quando falarmos da personagem do filme e como “Mariam” quando nos referirmos à pessoa
histórica). Segundo Khan (2011), há inclusive indícios de que Mariam teria se convertido ao
islamismo, dado que ela teria fundado uma mesquita e não teria sido cremada, ao contrário
do que requer a tradição hindu. O nome “Jodhaa” ressalta o hinduísmo da princesa, e sua
vitória, no final do filme, é também uma vitória do hinduísmo. Esse hinduísmo é ressaltado
na cena em que Jodhaa exige, como condição para o casamento, que ela não seja forçada à
conversão e que ela possa ter um templo construído no palácio para seu uso. Outra cena que
ressalta a religião hindu é o casamento, uma cerimônia religiosa hindu (não há indícios nas
biografias de como teria sido a cerimônia, mas dado que o imperador era muito mais poderoso
do que o pai de Mariam, e era muçulmano, é mais provável que a cerimônia histórica tenha
sido muçulmana).
JODHAA AKBAR
Conforme Khan (2011) aponta, quando Akbar se casou com Mariam, ele já tinha
duas outras esposas: Ruqayya Sultan Begum e Salima Sultan Begum323334; esta última,
segundo Erely (2000, p. 225) era sua esposa preferida. Nenhuma das duas aparece no
filme – Jodhaa Akbar é a história de um casamento monogâmico. Há duas razões
possíveis para esta omissão. A primeira, óbvia, é que é difícil fazer um filme romântico
31
Erely (2000, p.225), porém, afirma que Salima Sultan Begum era a esposa preferida do imperador, mas
não fica claro com base em qual registro histórico essa afirmação é feita.
32
A precedência das duas também pode ser vista em Gulbadan (1902, p. 274 e 279), e em Eraly (2000, p.
123). O mesmo é afirmado nas memórias de Jahangir (1968, p. 48). Em todas estas referências, os trechos
em que a precedência delas é afirmada não foram escritos por Gulbadan nem por Jahangir, mas pelos
editores e tradutores, séculos depois, em notas de rodapé. Até este momento da pesquisa, não foram
encontradas referências à ordem das esposas nem no texto original de Gulbadan, nem no de Jahangir.
33
Segundo o Akbarnama (p. 449), Akbar teria dito que “Buscar mais de uma esposa é incentivar a própria
ruína. Caso ela [a esposa] fosse estéril ou não tivesse qualquer filho, poderia, então, ser conveniente. Se eu
tivesse sido sábio antes, eu não teria tomado nenhuma mulher do meu próprio reino em meu harém, pois
os meus súditos são para mim como crianças” (tradução nossa).
34
É importante ressaltar que, até o momento desta pesquisa, não foi possível encontrar referência aos
casamentos com Salima e Ruqaiya no Akbarnama.
242
protagonizado por um homem que já tem duas esposas (e que viria a se casar com quase
trezentas outras). O amor romântico pressupõe a exclusividade amorosa, sem a qual ele
deixa de ser romântico. A outra é que a omissão das outras esposas aumenta a importância
desta princesa hindu. Entre as outras, ela seria apenas mais uma. O silêncio em relação às
outras esposas é, portanto, essencial para a construção de um discurso de uma Índia
unificada, fundada pelo amor de um imperador muçulmano e uma imperatriz hindu.
35
O império mogol não apenas foi um momento na história prévia à Índia em que o território foi unificado,
como também um momento em que essa região era extremamente poderosa e próspera.
243
adotado. Jodhaa Akbar apresenta essas três tendências. A tolerância demonstrada pelo
imperador (mas não por Jodhaa); a hinduização, representada pela importância
desproporcional dada a Jodhaa; a expulsão, pelo fato de todos os vilões serem
muçulmanos.
CONCLUSÃO
Ao longo do tempo, pelo que podemos ver nas biografias que analisamos, a primeira
esposa hindu de Akbar parece ter ganhado importância e visibilidade. O casamento,
entretanto, nunca deixou de ser tratado como um fato político. Mesmo o amor que Jodhaa
sente por Akbar no filme literalmente só surge quando ele conquista o apoio da população
hindu. Ela só começa a amá-lo porque ele passa a ter políticas públicas as quais ela
aprova.
36
Cf. RICHARDS, 2000. Jahangir também era alcóolatra (e usava ópio), mas relata em suas memórias
como conseguiu superar o vício que já fazia suas mãos tremerem. Aparentemente, na juventude ele era
bastante dissoluto. Smith (1917, p. 314) relata que Akbar ficou chocado ao saber que Jahangir (na época,
chamado Salim) tinha assistido à tortura prolongada de um opositor.
37
Salim mudou de nome para “Jahangir” ao assumir o trono após a morte do pai.
38
Ver CANETTI, 1978, p.244, e SMITH, 1917, p. 301.
39
Ver, por exemplo, o livro de Smith (1917).
40
Ver SMITH, 1917, p. 301.
244
Assim, tanto o Akbarnama, que glorificava o império mogol enquanto este ainda existia,
quanto Jodhaa Akbar, que glorifica a Índia atual ao construir um passado grandioso,
apresentam uma visão idealizada de Akbar. Vincent Smith, al Badaoni e Salman Rushdie,
que não têm essa agenda, retratam o imperador de uma forma mais crítica.
O fato é que haveria muitos recortes possíveis para a vida de Akbar, e a escolha de
um ou de outro teria uma dimensão política. Por exemplo, ao escolher um período
posterior da vida do imperador (em que ele já está um pouco gordo, em que seus filhos já
levam uma vida devassa, em que ele pensa em fundar uma nova religião, etc.), Rushdie
faz um retrato pouco lisonjeiro do imperador. O filme, ao contrário, ao optar por mostrar
o início da vida de Akbar, o mostra em uma luz extremamente favorável. Ainda que
ambas as biografias reforcem o papel da primeira esposa hindu de Akbar (eliminando as
duas primeiras), e ambas o tornem mais próximo dos hindus, e o estabeleçam mais como
indiano do que como mogol (ele foi, de fato, o primeiro imperador mogol a nascer na
Índia), cada biografia lança, a partir do imperador, uma luz sobre a Índia histórica. O
filme, bastante patriótico, traça um retrato glorioso do passado indiano. O livro, ao
contrário, ressalta os aspectos menos lisonjeiros desse passado.
REFERÊNCIAS
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245
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SMITH, Vincent. Akbar: The Great Mogul 1542-1605. Londres: Oxford University Press, 1917.
SOWARDS, J. Kelley. Makers of World History (Vol. 2). St. Martins´s Press, 1995
TOD, James. Annals and antiquities of Rajasthan. Londres: Oxford University Press, 1920. 3
vols.
246
SILVIANO SANTIAGO E A ESCRITA FICCIONAL DE SI1
Resumo: Este trabalho pretende apresentar uma leitura do romance O falso mentiroso:
memórias (2004), do professor e escritor mineiro Silviano Santiago, em interlocução com
os seus textos teórico-críticos Epílogo em 1a pessoa: eu & as galinhas-d'angola (2004) e
Meditação sobre o ofício de criar (2008). A sua atuação em diversos locais de enunciação
compõe um projeto intelectual coeso, elucidado pelas migrações discursivas entre as
diversas instâncias de sua produção. Assim, pretendemos refletir sobre as fronteiras e os
trânsitos entre o discurso literário e o discurso biográfico, o texto de ficção e o texto
ensaístico neste corpus de análise, tendo em vista os seguintes aspectos: a contiguidade
entre a autoficção e a bioficção no romance, com a ficcionalização de dados biográficos
do escritor, identificados na construção da personagem literária Samuel Caneiro de Souza
Aguiar; a configuração deste sujeito-narrador-protagonista a partir da representação
autobiográfica empreendida através da sua memória, cujas recordações se efetuam a partir
de vivências reais e vivências ficcionais; as relações de interdiscursividade entre a
produção teórico-crítica, o texto literário e o discurso autobiográfico, considerando-se
estas migrações discursivas como uma das características da produção deste escritor
múltiplo.
Palavras-chave: Silviano Santiago; bioficção; memória.
Abstract: This essay aims to discuss the novel O falso mentiroso: memórias, written by
Silviano Santiago, dialoguing with his essays Epílogo em 1a pessoa: eu & as galinhas-
d'angola (2004) and Meditação sobre o ofício de criar (2008). By reading his texts, the
dialogues between the fictional and theorical production are analyzed, considering the
fictionalization of Silviano Santiago's biographical experiences, identified at the speech
of the character Samuel Carneiro de Souza Aguiar; the autobiographical representation
through his memories, which registers historical moments lived fictionally.
Keywords: Silviano Santiago; biofiction; memory.
Eu sou trezentos...
“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
1
Mesa-redonda Potências da Autoficção.
2
Graduado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia. Contato: hjvieira2@gmail.com
247
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo”
Mário de Andrade
3
Projeto de pesquisa desenvolvido no Instituto de Letras da UFBA, desde o ano 2000, e que tem por
objetivo o estudo da produção de escritores contemporâneos que conjugam, ou conjugaram a criação
literária com a produção teórico-crítica e a atuação acadêmica em instituições de ensino superior.
Pesquisadores responsáveis: Antônia Herrera, Evelina Hoisel e Lígia Telles.
248
especialização em Literatura Francesa no Rio de Janeiro (1960-1961), tendo,
posteriormente, a oportunidade de lecionar em diversas universidades norte-americanas,
ainda durante o doutorado na Universidade de Paris – Sorbonne (1961-1968),
vivenciando o efervescente momento cultural em que se encontravam os Estados Unidos
na década de 1960. Sobre a influência destes movimentos migratórios em sua escrita,
Evelina Hoisel (2008) destaca a insistente elisão das fronteiras discursivas sustentada em
sua produção:
Nesta relação mútua entre vida e literatura, o prólogo do romance evoca o poema
Eu sou trezentos, Mário de Andrade – escritor com o qual Silviano demonstra grande
afinidade intelectual –, como prelúdio da “grande mascarada” onde serão encenados o
249
resgate, a criação e o recalque dos estilhaços da memória. Além da introdução, outros
signos são incorporados ao tecido textual: Mário é um amigo-mentor de Samuel,
incentivador de sua carreira como artista plástico e Eucanaã Ferraz – nome de um poeta
e professor carioca – é ressemantizado como o nome de seu pai. Para Samuel-Silviano,
ser trezentos-e-cincoenta é se erigir sob o signo do múltiplo, propor, pela criação literária,
uma leitura indecidível dos fragmentos de um sujeito, em que só “o esquecimento é que
condensa”, resgatando-os e, assim, nos levando à indagação: literatura, pois, vida, ou
vida, pois, literatura? Contudo, não nos interessa o levantamento exaustivo do que é
estritamente literário e o que é estritamente biográfico, mas o estudo destas questões como
características da literatura contemporânea e do projeto literário de Silviano Santiago.
Esta escrita ficcional de si, ao integrar um projeto mais amplo, no qual o escritor
se inscreve na sua produção ensaística, literária, pedagógica e, desta forma, biográfica,
aproxima-se do conceito de performance, relação esta já estabelecida por Diana Klinger
(2008), em alusão aos estudos da filósofa norte-americana Judith Butler sobre gêneros
sexuais na contemporaneidade. Butler (KLINGER, 2008) atualiza o conceito de
performance delineado a partir da década de 1950 nas ciências humanas como a fusão
entre arte e vida, emancipando-a de seu pacto com o real, o verdadeiro, propondo-a como
um símile, uma encenação/dramatização de si: “A performance dramatiza o mecanismo
cultural de sua unidade fabricada.” (BUTLER apud KLINGER, 2008, p. 19). Desta
forma, a partir de textos híbridos são problematizadas questões teóricas e biográficas
discutidas por Silviano Santiago, como a noção de representação literária enquanto
espelho do “real”, o cânone, literatura e sociedade, literatura e biografia.
250
cópia que encontra no ato de narrar a possibilidade de reorganizar as suas memórias e
atravessar os seus fantasmas. Recompondo estas versões embaralhadas, a “enfermeira-
cegonha” revela que Eucanã Ferraz, seu pai adotivo, o falso, era na verdade o seu pai
verdadeiro, cuja ausência ressoara por tanto tempo em sua mente. Este mantivera relações
extra-conjugais e ofertava os bebês nascidos – não abortados – destas traições à Donana,
a mãe falsa e estéril, que os recusava resignadamente até que viesse um filho homem. Por
sua vez, a provável mãe biológica, a verdadeira, a Senhora X, também estaria no jogo da
ambivalência, pois era uma distinta católica fluminense, porém adúltera. Tendo que lidar
com duas datas de nascimento e suas múltiplas versões, o dia 10 de setembro é atribuído
ao bebê “original” que teria sido recolhido pelo casal e o 29 de setembro é relembrado
como referente ao filho adotivo, a “cópia”, que é também, astuciosamente, a data de
nascimento do escritor Silviano Santiago:
251
interpretação, uma vez que estamos a ler uma narrativa que se apresenta como as
memórias registradas em livro pela personagem, mas que são publicadas e vendidas sob
a assinatura do escritor Silviano Santiago.
252
propostos por Jacques Derrida (1995), podemos perceber que a crítica literária tradicional
buscou atribuir um centro de organização, coerência e equilíbrio à sua interpretação nas
influências do seu contexto sócio-histórico, na biografia do seu autor ou nas formas
literárias em voga.
Tendo em vista a segunda epígrafe de nosso texto, a frase de João Adolfo Hansen
que também introduz a ficção O inominável (2009)4, de Samuel Beckett, é poeticamente
esclarecedora da falta de um centro irradiador/origem que irá nos constituir ou deflagrar
os sentidos de um texto literário autoficcional, gerando-se assim um “suplemento”, neste
caso, biográfico, em seu vir-a-ser. A partir da leitura do ensaio de Eurídice Figueiredo
(2007), é possível pensar que este embaralhamento entre autor, narrador, motivo literário
e experiência biográfica no romance em estudo – já destacado por Silviano como
“autoficção”, em sua Meditação sobre o ofício de criar (2008) – também pode ser
compreendido pelo que a escritora e ensaísta francesa Régine Robin denominou
“bioficção”, uma vez que os signos de toda a experiência de vida do escritor podem ser
incorporados, ou até mesmo recalcados, na construção da personagem de ficção Samuel
e de seu testemunho autobiográfico.
4
Do escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989), o livro publicado em 1949 compõe a “trilogia do pós-
guerra” (Molloy, 1947 e Malone morre, 1948) é uma experiência nos limites da narratividade, cuja ausência
de um sujeito-narrador corporificado em um tempo e espaço demonstra o mais profundo silêncio deixado
pela II Guerra Mundial, a falência da linguagem em representar a realidade e a pergunta que pairava sobre
os artistas e intelectuais: “Há algo mais a dizer?”.
253
compactuado com a narração de Samuel, o seu primeiro alerta: “Posso estar mentindo.
Posso estar dizendo a verdade” (SANTIAGO, 2004b, p. 9). Sobre a sua produção, o
escritor apresenta, com a máscara do professor e crítico, os estágios do seu processo de
criação no palco do ensaio Epílogo em 1a pessoa:
REFERÊNCIAS
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254
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críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Editora Fundação
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SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. Crítica Cult. Belo Horizonte:
UFMG, 2002. p. 111-120.
255
PERSONAGENS REAIS DA FICÇÃO CINEMATOGRÁFICA1
Abstract: The paper discusses techniques and particularities involved on the complex
process of directors private's life representation in fiction movies. From the inquiry of the
novel and autobiography, further the concept of autofiction, the cinema of Woody Allen
and Nanni Moretti are analysed. The debate focuses on the most relevant aspects for the
reading of autobiographic narratives on cinema.
Keywords: novel, autobiography, autofiction, Woody Allen, Nanni Moretti.
INTRODUÇÃO
1
Mesa-redonda Experimentos bioficcionais no cinema e na literatura.
2
Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB).
256
confabular a respeito do próximo aplicativo de celular que mudará o cotidiano de seus
usuários.
Por outro lado, se a vida enquanto matéria deixasse de interessar, algo de estranho
estaria decerto acontecendo. Afinal, como conceber a existência se a própria vida não
fosse digna de atenção? Escapar à vida é morrer ou dedicar-se ao espírito descarnado;
assuntos de outro artigo, não deste.
As maneiras de se contar uma vida são tão variadas quanto as bocas, mãos ou
lentes que dela queiram apropriar-se; não se fala do mesmo modo de um herói grego, do
personagem de romance, da vizinha, de si mesmo. Faz-se mister, portanto, fixar um
primeiro marco: diferenciar narrativas de vidas fictícias (inventadas, fabuladas) das
narrativas de vidas reais (factuais, verificáveis), ou simplesmente separar narrativas
ficcionais de narrativas biográficas. Para tanto, recorro aos gêneros literários modernos
que melhor dialogam com os filmes analisados no artigo: romance e autobiografia.
MODERNIDADE
257
Na penúltima década do século XVIII, vem a público o molde da autobiografia
moderna, as Confissões de Jean-Jacques Rousseau, que, apesar de levar o nome do
famoso livro de Santo Agostinho, em muito difere do modelo sagrado dirigindo a
existência. Na autobiografia de Rousseau, que foi recebida como obra literária, é
inaugurada a exposição da vida íntima contada com promessa de fidelidade e confiança
na intuição do eu: estão em jogo palavras como cumplicidade (autor x leitor), sinceridade
e segredo. Leonor Arfuch explora a virada representada por esse caso:
3
Em O Pacto autobiográfico, Philippe Lejeune traz a ideia dos pactos de leitura estabelecidos na recepção
dos discursos literários. A confrontação de romance – aqui podemos inserir também os contos – e
autobiografia o leva à conclusão de que se estabelecem contratos de leitura distintos. Enquanto o romance
se constitui como tal através de um atestado de ficcionalidade garantido pelo pacto romanesco – que exclui
a possibilidade de coincidência entre personagem e autor –, a autobiografia é definida pela assinatura do
autor, que, no caso, será também narrador e personagem, assegurando a veracidade de situações e fatos
narrados através de um contrato totalmente distinto, o pacto biográfico.
258
Essa última frase parece bastante grosseira, quase ingênua, ao leitor contemporâneo
acostumado a estratégias de alguns artistas que, nos últimos dois séculos, minaram certas
convicções (lembremos de Proust, Gide, Silviano Santiago...), mas a interpenetração dos
dois gêneros literários em questão é um processo em andamento. Nesse contexto de
hibridismos, o termo autoficção surge nos idos de 1977 com o livro Fils, do escritor e
crítico francês Serge Doubrovsky. Aproveitando-se de uma lacuna deixada pelo esquema
de Lejeune, o personagem, o narrador e o autor que assinará Fils, publicado como
romance, será o próprio Doubrovsky. Sobre o procedimento, ele declara:
PARÊNTESIS
259
Esse pensamento poderia muito bem referir-se à obra de Flaubert. E quanto à
seguinte consideração de Saul Bellow?
O que é preciso para se fazer uma boa piada? O que a torna realmente engraçada?
Ela deve ser leve – mas também se pode rir mexendo em tabus profundos –, surpreendente
e ferina, embora haja aquelas bem morosas cujo desfecho já se sabe desde o início. Na
verdade, não há receita infalível para a boa piada: mesmo uma com todas as qualidades
pode resultar em rostos impassíveis. Coloque uma história hilária, com timing perfeito,
contada pelo melhor comediante numa noite ruim, a de um grande desastre, por exemplo,
e nada feito.
No final dos anos 1970 a filmografia de Woody Allen começa a trazer títulos
diferentes. Ficam para trás os papeis de “What's New Pussycat” (1965) e O Dorminhoco
(1973), comédias pastelão. Em 1977, Annie Hall é lançado e, com ele, surge Woody Allen
interpretando protagonistas menos caricatos, quase profundos. Suas comédias se tornam
mais sérias. Em Manhatan (1979) e Interiores (1978), a cor sai de cena para dar lugar a
uma fotografia estudada e a gags menos histriônicas.
260
Uma cena sugestiva: o cineasta pergunta a alienígenas superinteligentes que estão
de passagem pela terra o que fazer para dar sentido a sua vida: “mas eu não deveria parar
de fazer filmes e fazer algo importante, como ajudar os cegos ou me tornar missionário?”
ao que o alien responde: “você não é o tipo do missionário. Você não aguentaria. E você
não é Superman, você é um comediante. Quer fazer um serviço à humanidade? Conte
piadas mais engraçadas”. Até os extraterrestres preferem os primeiros filmes, os mais
engraçados.
Bem, parece-me bastante difícil definir a série em que se inserem esses títulos de
Woody Allen. Uma coisa, porém, é certa: nesse contexto, as noções de duplo, filme
autobiográfico, e autoficção não funcionam. Os pactos do primeiro Lejeune (ficcional e
autobiográfico) também estariam fora do lugar.
262
E Nanni é muito engraçado, por isso acho injusto partir para a análise mais séria
de seu trabalho sem antes citar algumas gags. Em caro diário, quando tenta descobrir a
causa de sua coceira, depois de ir a vários médicos, consulta um que lhe diz ser uma
coceira causada por estresse. Em seu carro Nanni diz para si mesmo: “Tudo depende de
mim. O médico disse que tenho que colaborar, devo me esforçar para não me coçar. Devo
me concentrar. Eu não posso me coçar. Tudo depende de mim. E se depende de mim,
tenho certeza que... não vou conseguir”. Em Aprile, logo após a primeira vitória de
Berlusconi, Nanni dispara: “Na noite de 28 de março de 1994, quando a direita venceu,
pela primeira vez na vida fumei um baseado”. É uma piada visual: um enorme baseado
enrolado em papel inapropriado e a cara séria de Nanni, que não leva o menor jeito para
a coisa.
Mas repito a pergunta feita ainda há pouco: como fazer um filme sensível, poético,
profundo, complexo, questionador e, ao mesmo tempo, engraçado? Nanni responde com
Caro diario e Aprile: fazendo a mise-en-scène de mim mesmo, aparecendo em situações
cotidianas, dando naturalidade e autenticidade ao todo, enfim, quebrando os grilhões de
uma ficção asséptica que se coloca distante da vida pessoal do realizador. Mas essa não
seria uma estratégia furada? Para quê dar efeito de realidade através da encenação de
eventos verdadeiros da sua própria vida se, ao fim e ao cabo, tem-se um filme de ficção
que funcionaria igualmente bem com personagens inventados? Não parece um tanto
ridículo voltar em casa, reproduzir um episódio já vivido com sua mulher (ou simulá-lo),
por exemplo, diante de uma câmera e de uma equipe de técnicos, só para reviver uma
cena que só será real no universo da ficção?
263
mulher durante a gravidez, ela é quem o acalma. Adiante – o filme acompanha vários
anos da vida deles –, nas cenas em que aparece cuidando do filho enquanto recorta
revistas para o documentário, a atmosfera é de uma ternura muito bem trabalhada.
A oscilação de tom também pode ser percebida em Caro diário quando, depois
de fazer uma série de sequências divertidas, Nanni em sua Vespa, como se passeasse, dá
uma volta no bairro onde Pasolini foi brutalmente assassinado. As experimentações em
jogo requerem um percurso de sensações atravessadas por um personagem real, como se
o cinema estivesse exaurido da ficção pura. Assim como o gênero da autobiografia
também estivesse perdendo o vigor; não haveria mais lugar para totens sagrados como
Rousseau, Benjamin Franklin, Akira Kurosawa ou Ingmar Bergman4 (todos escreveram
suas autobiografias clássicas), os tempos pedem uma nova forma. Moretti e Woody Allen
responderam a esse pedido.
Até esse momento, Nanni tinha dirigido filmes pouco inovadores do ponto de vista
formal. Nos anos 1990, ele aposta alto com esses filmes calcados em uma referencialidade
arriscada no que diz respeito à representação. Mas no momento certo: o júri de Cannes
reconhece, aprecia e premia o que estamos chamando de autoficção. Nessa época, o
número de indicações de Woody Allen ao Oscar era quase três vezes maior que a
filmografia de Nanni.
4
Como diria Doubrovsky, em seu estilo irônico, “um privilégio reservado aos importantes deste mundo,
ao final da sua vida e em belo estilo”.
264
dia é descrito na rede como se ela mesma tivesse escrito. A partir daí Mima começa a
viver num estado de profunda ansiedade e confusão mental.
É o bastante. Não é necessário descrever todo o enredo do filme. Mas acho que já
se pode perceber um pouco da tensão suscitada pela trama. Imagine entrar na internet e
descobrir um diário público em que a sua rotina é descrita com detalhes, como se você o
escrevesse. Assustador. O fato de se precisar manter uma coerência na narrativa da
própria vida, a ponto de não se poder trocar de profissão se a imagem cândida e doce da
cantora de J-pop estiver em jogo, é coerção discursiva forte. O público decide os rumos
da vida da artista e a hostiliza se ela sai da linha.
O filme pauta a relação violenta entre leitor e artista. Há algo de errado quando as
coisas se desenrolam como em Perfect Blue. Porém trago a imagem do stalker e do
escritor fantasma, espectadores que interagem violentamente, não para salvaguardar os
artistas da leitura biográfica, para ficar ao lado de um Woody Allen irritadiço5 se dizem
que Memórias é um filme autobiográfico. Pelo contrário, invoco os stalkers justamente
para apontar a violência que o leitor faz consigo mesmo quando tenta achar a verdade, o
sujeito real por detrás do personagem, o verdadeiro Woody Allen ou o verdadeiro Nanni
Moretti. Erro que os próprios autores (às vezes stalkers de si mesmos) cometem quando
renegam a hibridez de um discurso nitidamente vestido de vida vivida em nome da
verdade e da nobreza de uma ficção pura; a menos que tudo não passe de uma grande
piada. Se a literatura contaminou o cinema, assim como hoje a literatura é contaminada
pelo cinema, as vidas desses diretores está tão amalgamada a seus filmes quanto é
possível; quer eles queiram, quer não.
REFERÊNCIAS
ANNIE Hall. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1977. (93 min).
AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo:
Papirus, 2004.
5
Ver entrevistas concedidas ao jornalista Eric Lax.
265
BELLOW, Saul. Tudo faz sentido: do passado obscuro ao futuro incerto. Tradução de Rubens
Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
CARO DIÁRIO. Direção de Nanni Moretti. Roteiro: Nanni Moretti. 1993. (100 min).
INTERIORES. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1978. (93 min).
MANHATAN. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1979. (96 min).
MEMÓRIAS. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1989. (89 min).
O DORMINHOCO. Direção de Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. 1973. (89 min).
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
WHAT'S NEW PUSSYCAT. Direção de Clive Donner, Richard Talmadge. Roteiro: Woody
Allen. 1965. (108 min).
266
REVERBERAÇÕES DA CRISE DA CIÊNCIA MODERNA NO
JORNALISMO E A EMERGÊNCIA DO “REPÓRTER-
PERSONAGEM”1
Resumo: Partindo dos diagnósticos traçados por Boaventura de Souza Santos (1988) e
Bruno Latour (2006) sobre uma crise na ciência moderna, este artigo busca estabelecer
conexões entre novas propostas metodológicas para a investigação científica e alguns
questionamentos direcionados a valores que sustentam um modo específico de fazer
jornalismo, tido como “de referência”. Nesse movimento, voltamos nossa atenção a
narrativas jornalísticas em primeira pessoa que, por meio de relatos de experiência e
subjetividade, rompem com princípios como objetividade, imparcialidade e
distanciamento, aparecendo, portanto, como importantes elementos tensionadores de um
suposto paradigma jornalístico dominante.
Palavras-chave: crise da ciência, narrativa jornalística, narrativa em primeira pessoa,
subjetividade
Abstract: Starting from prospects traced by Boaventura de Souza Santos (1988) and
Bruno Latour (2006) about a crisis in modern Science, this article seeks to establish
connections between new methodological proposals for scientific research and some
inquirings focused at ideals that sustain a specific method of practicing journalism,
considered to be "referential". While in this movement, we turn our attention to
journalistic narratives in first-person that, using subjectivity and experience reports, break
with ideals like objectivity, impartiality and detachment, thus appearing as important
elements for thinking about a supposedly dominant paradigma in Journalism.
Keywords: crisis in Science, journalistic narrative, first-person narrative, subjectivity
1
Mesa-redonda O espaço biográfico e a construção da alteridade.
2
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).
267
ou, pelo menos, a grande maioria – convergem em um ponto: o modo de fazer ciência
está em crise. As razões dessa crise, sua dimensão total e as melhores alternativas para a
reestabilização ainda não são tópicos de comum acordo. Porém, a complexidade dos
objetos que nos intrigam atualmente parece exigir um novo olhar metodológico, que dê
conta de suas muitas camadas, interações e possibilidades.
Boaventura de Sousa Santos descreve esse período em que vivemos como “um
tempo de transição, síncrone com muita coisa que está além ou aquém dele, mas
descompassado em relação a tudo o que o habita” (SANTOS, 1988, p. 46). Seria um
tempo no qual o homem encontra dificuldades para entender seu estar no mundo, e é
constantemente invadido por uma sensação de desconforto causada por um misto de
perplexidade e perda de confiança epistemológica. Essas incertezas originam-se de um
descompasso entre as práticas que regem nosso fazer científico e as reflexões
epistemológicas que o investigam, sendo estas mais avançadas que as primeiras.
Bruno Latour (2008) denomina esses objetos de “híbridos”, pois abarcam, em toda
sua complexidade, elementos humanos e não-humanos sem distinção, dificultando
análises que separam os aspectos que seriam da ordem do social daqueles que seriam do
domínio da natureza. Para ele, o principal fator da crise da ciência moderna seria a
polarização entre natureza e sujeito/sociedade, de modo que o estudo de um objeto deve
se encaixar em um desses compartimentos não-dialógicos. Os híbridos seriam, portanto,
tensionadores dessa configuração, pois não se sentem confortáveis nem de um lado, nem
do outro. Para descrevê-los, é preciso considerar suas características naturais, políticas,
econômicas, culturais, técnicas, jurídicas, etc. Ou seja, considerá-los como redes nas
quais há diversos atores envolvidos, e não simplesmente categorizá-los como de
competência de determinada disciplina, numa tentativa cega de isolar algum aspecto
particular em detrimento da totalidade.
Os contornos dessas duas supostas crises, porém, são muito diferentes. Ainda
assim, acreditamos que seja plausível estabelecer conexões entre elas, de modo a salientar
pontos comuns e divergentes na tentativa de entender melhor as críticas a ambos os
paradigmas. Não fazer isso seria, talvez, ignorar uma rede complexa, nos termos
latourianos, repetindo o vício metodológico de purificação dos objetos e limitando a
multiplicidade de abordagens possíveis.
269
século XVI, com a emergência de um modelo de racionalidade que presidiria, em caráter
totalitário, os procedimentos de investigação nos anos seguintes.
Esse primeiro embasamento pressupõe, conforme apontado por Santos (1988), que
o único modelo racional de conhecimento é o científico, invalidando outras modalidades
como o senso comum e as humanidades. De fato, a postura científica deve ser, inclusive,
combativa em relação ao senso comum, desconfiando de seus dizeres (por isso suas
“descobertas” possuem um tom revelatório e inesperado).
as leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como
funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas.
É por esta via que o conhecimento científico rompe com o conhecimento do
senso comum. É que, enquanto no senso comum, e portanto no conhecimento
prático em que ele se traduz, a causa e a intenção convivem sem problemas, na
ciência a determinação da causa formal obtém-se com a expulsão da intenção.
(1988, p. 51)
Mesmo nessa breve caracterização, já podemos perceber fundamentos
compartilhados entre o paradigma da ciência moderna e alguns manuais de princípios
editoriais de grandes conglomerados midiáticos, como o da Folha de S. Paulo e o das
Organizações Globo3. A observação orientada por técnicas rigorosas, a fim de explicar a
natureza de modo detalhado, preciso e isento, nos parece bastante similar às noções de
apuração jornalística, por exemplo.
3
Princípios editoriais das Organizações Globo. Disponível em: http://g1.globo.com/principios-editoriais-
das-organizacoes-globo.html. Acesso em: 30 jul. de 2013.
270
que reconheça as dificuldades de transposição e adaptação dos recursos metodológicos
preteridos para as perguntas e objetos de seu interesse. Já a segunda defende que essas
dificuldades não são superáveis, por isso se faz necessária a elaboração de uma
metodologia própria, haja vista a alegação de que as ciências sociais seriam subjetivas, e
não objetivas.
Considerações levantadas pelo próprio Sousa (1988) e também por Latour (2008)
nos levam a crer que o caminho não é tão simples. Ainda que defenda um conhecimento
intersubjetivo e descritivo ao invés de um objetivo e explicativo, essa concepção de
ciências sociais também opera dentro das segregações entre natureza/cultura e
humanos/não-humanos, fundadoras do paradigma da ciência moderna. Ou seja, apesar de
não aparentar à primeira vista, a concepção mais “subjetiva” das ciências sociais é tão
devedora do modelo racionalista-mecanicista quanto à vertente de matriz positivista.
271
Para Latour (2008), precisamos superar essa configuração diacrônica, que
caracteriza aquilo que ele chama de constituição da modernidade: um conjunto de
garantias que legitimam e orientam o método científico que tentamos aqui descrever de
modo sucinto, sendo a principal delas a distinção absoluta entre natureza e sociedade. Só
assim nossas pesquisas passariam a dar conta dos objetos híbridos (aos quais ele também
se refere como “quase-objetos”) em toda sua complexidade transdisciplinar.
272
ontológicas opostas, segregando parte de seus atores em um mundo natural (ou não-
humano), e outra parte em um canto oposto, o do mundo social (ou dos humanos)
(LATOUR, 2008, p. 9).
273
legítimo como atores no sistema, é apagar as possibilidades de compreensão das redes
em suas complexas nuances. Tanto os objetos como os sujeitos são instâncias dotadas de
historicidade, uma assinatura particular inscrita ao longo de uma trajetória de vida que
lhe confere sentido dentro de uma rede, e que rejeita a aceitação do passado como algo
petrificado, um instante vencido e irrevisitável na passagem regular do tempo. Dessa
forma, entendemos um ponto de determinada rede como possuidor de características
globais e locais, mas nunca universais.
Portanto, ainda que as discussões sobre os rumos do fazer científico não nos
direcionem para um caminho consensual e seguro (e é bom que não o façam), a
manutenção dos fundamentos que estabeleceram o paradigma dominante até o início do
século XX nos parece profundamente improvável. Consequentemente, os
questionamentos sobre a prática jornalista que se edificou sobre esse terreno da ciência
moderna vêem suas vigas estremecerem com o surgimento de rachaduras em todo o seu
pavimento.
O “REPÓRTER-PERSONAGEM”
Nesse processo, dentre vários fenômenos emergentes, o que mais nos chama a
atenção é a hipótese do crescimento das narrativas jornalísticas em primeira pessoa, que,
por meio de relatos de experiência e subjetividade, rompem com princípios caros ao
jornalismo “tradicional”, como a objetividade, a imparcialidade e o distanciamento. São
narrativas em que o repórter não se coloca como um observador afastado, livre de
emoções, mas sim como uma espécie de narrador-personagem, que constrói o seu relato
em proximidade com o objeto, embebendo-se da cena, projetando no relato suas
impressões, opiniões e afetos, sem se deixar ser obstruído pelo método de redação
convencional da área.
274
Nos últimos anos, a primeira pessoa multiplicou-se tanto em narrativas sobre
o passado como em relatos de circunstância, sejam eles, por exemplo,
reportagens jornalísticas ou textos das mídias sociais, em que a vivência já vem
à tona narrada – daí a menção ao caráter epidérmico da subjetividade na
atualidade, à diferença daquela cultivada na interioridade, como a plasmada
pelo romance burguês. (SERELLE, 2012, p. 84)
Nessa recuperação do eu, o efeito de verdade – ainda caro para o jornalismo – seria
garantido pela subjetividade e pela afetividade demonstradas nas narrativas. Ao tomar
como expoente desse processo a obra Gomorra, do escritor e jornalista Roberto Saviano,
Serelle (2009) destaca que, desde o início do relato, o narrador deixa claro que aquela é
a sua visão sobre os fatos narrados, reivindicando a verdade como algo parcial, e até
particular. Natural da cidade de Nápoles, Saviano afirma ter crescido envolto a esse
ambiente controlado pela máfia local, conhecida como Camorra, cujas ligações
criminosas e dominadoras são delatadas durante a narrativa. O “olhar autóctone” de
Saviano, repórter infiltrado que não é um completo forasteiro, assume, então, funções
autobiográficas, à medida que o narrador em primeira pessoa por ele projetado não se
restringe à observação da experiência alheia, mas também incorpora à trama suas próprias
subjetividades e até procedimentos típicos da apuração jornalística, como a inclusão de
matérias veiculadas na imprensa e transcrições de conversas telefônicas.
275
sentido de encontrar a sua essência, mas de entendê-lo dentro da complexidade de suas
redes. Por isso, o trabalho de cientistas e jornalistas, guardadas as devidas peculiaridades
de cada um, não seria explicar os objetos, privando-os de toda sua historicidade, mas
descrevê-los da maneira mais detalhada possível, acrescentando novas camadas à rede,
ao invés de tentar fechá-la.
276
publicação desses textos é rarefeita e irregular, ainda que sua curva de crescimento seja,
a nosso ver, bastante promissora.
277
REFERÊNCIAS
LATOUR, Bruno. Como terminar uma tese de sociologia: pequeno diálogo entre um aluno e
seu professor (um tanto socrático). Cadernos de campo. São Paulo, n. 14/15, 2006. p. 339-352.
LEAL, Bruno; JÁCOME, Phellipy; MANNA, Nuno. A "crise" do jornalismo: o que ela afirma,
o que ela esquece. No prelo. 2013
MEDINA, Cremilda. Ciência e jornalismo: da herança positivista ao diálogo dos afetos. São
Paulo: Summus, 2008.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência
pós-moderna. Estudos avançados. São Paulo, v. 2, n. 2, mai/ago 1988. p. 46-71.
SERELLE, Márcio. Jogos cubanos: a ilha, hoje, em reportagens em primeira pessoa. Revista
Famecos. Porto Alegre, v. 19, n. 1, jan/abr 2012. p.83-98.
278
BIOGRAFEMAS DE UM CORP’A’SCREVER1
Janaina de Paula2
Abstract: From the diary Finita, we looked for “biographèmes” of a written life in Maria
Gabriela Llansol. The writing displacement follows the trajectory of a body that writes
love, a body which seeks and is sought by the lover, making room for an encounter which
remains as pure life that is not subject to the rules of power and classification.
Keywords: love, biographèmes, body.
Parto dela, Maria Gabriela Llansol, parto do movimento das suas mãos para tecer,
à distância, os biografemas desse “corp’a’screver”. Nele, as mãos desenham com as
palavras, bordam, no exercício dos dias, a escrita, a sua composição. Bordam os corpos
que hospedam o amor, a falta, a solidão, (re)trançando-os, aproximando-os e diferindo-
os, numa espécie de costura invisível, e dando a ver, no tecido do bordado, as densidades
e as cores de uma marca sem lembrança de sinal, desenhada ali como imagem sem
sentido. Eis, então, o amor que escreve um corpo, o corpo a escrever o amor.
1
Mesa-redonda O biografema como método: Maria Gabriela Llansol.
2
Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
279
partir de uma leitura que desloca o texto de suas moções de garantia, é um autor sem
unidade,
Essa noção aproxima-se daquela desenvolvida por Maria Gabriela Llansol na figura
do corp’a’screver. Nessa fórmula temos a aproximação do corpo e da escrita, que se
juntam como um ambo, fazendo do corpo pura escrita e da escrita movimento de corpo.
Para Llansol o corpo é “corpo integralmente feito de linguagem”, e a escrita implica num
corpo que a suporte. Nesse percurso, o amor torna-se biografema de uma vida que se
escreve cotidianamente nos diários, cadernos e infinitos papéis avulsos.
280
No texto que acompanha o diário Finita, Augusto Joaquim – aquele que escreve,
também num posfácio: “[...] este texto tornou a minha vida improvável” – realiza uma
leitura dos fragmentos que compõem esse diário escrito nos anos vividos em Bélgica. Ele
percorre os indícios do “[...] trajeto de uma mulher que está escrevendo um livro e
testemunha o inconforto e o deslumbramento de um se cuja existência desconhecia, de
um se a escrever” (JOAQUIM apud LLANSOL, 2005, p. 237). Na dobra dessa escrita,
lemos, pelos traços desse legente, os biografemas de um corpo que atravessa os dias na
companhia dos animais e das plantas, que vai ao café, envia cartas à mãe, faz passeios
com o seu cão Jade, por vezes se deprime e lê, sem quase nunca chegar ao final de um
livro.
Lemos os biografemas de um corpo que escreve, mas “não é parte de nenhum facto
histórico-social marcante”, e por isso “tudo se pode explicar sem ela ou, melhor dito, sem
o seu eu”. Afinal, ela mesma dirá, um pouco mais tarde, no livro que coloca como causa
a pergunta: Onde vais drama-poesia?, que um eu é pouco para o que está em causa. E,
no entanto, continua Augusto Joaquim, quem lê as suas linhas, “retém a imagem de um
ser firme e nítido dos seus contornos, inexplicavelmente insubstituível, que prossegue um
percurso invulgar, tão-só porque é o seu, [...] uma extra-ordinária beleza tornando-se
conhecimento, alargando o âmbito do que se pode pensar” (JOAQUIM apud LLANSOL,
2005, p. 238). No trajeto dessa escrita, Finita torna-se o testemunho acordado, dos traços
in(finitos) de um corpo feminino que procura e é procurado pelo amante. No seu fio, o
amor arrasta o humano, para além do gosto e do prazer, para além da sombra espessa do
poder e das classificações, desfazendo qualquer hipótese de totalização e de fechamento
de uma realidade sobre si mesma.
Testemunho de uma escrita que encontra as mãos que bordariam tecidos de outras
épocas, para traduzir e esperar. Mãos que bordariam, ela diz, sabendo que outras
bordaram, num tempo anterior: Penélope, Ariadne, tecedeiras do amor e do destino. Mas
Penélope e Ariadne não apenas tecem seus fios, elas também os cortam, descosendo-os,
no interior do tecido, enodando e desnodando, num movimento contínuo – à medida que
o corpo desfaz, à medida que o corpo se faz – para que o tecido do texto ganhe densidade
e leveza, sem o nó da dor.
281
contrastes, concentração no presente em que todos os tempos
imagináveis já estão a desenrolar-se para sempre. (LLANSOL, 2005, p.
24)
A escrita desses cadernos, que compõe o diário Finita, é acompanhada pela escrita
de A restante vida. Finita parece ser o suporte para acolher isso que não estando no livro,
resta caído dele, depurado nele, a partir dessa vida que resta escrita. Afastando-se da
narrativa diarística e histórica, sem perder a linha dos contrastes obtidos pela experiência
atravessada pelo corpo, o único desejo dessa escrita é o de alinhavar as passagens do “ser
sutil”, seguindo as “bermas dessas passagens”, para que a vida possa, talvez, alcançar as
fontes da alegria.
282
escreve uma vida no instante em que essa exala o rosto do amante “aspirado”. Pelo dom
do texto, esse mesmo que dá o desastre (il donne le desastre), pelo dom do amor:
caminhante, nômade, aquele que rompe com a ideia de possessão mútua dos afetos,
oferecendo aquilo que não se pode oferecer. Esse movimento conjuga-se com aquilo que
Llansol definirá como sendo a melhor forma de amor: “aquela que se abre para fora de
si”.
A escrita diária se faz com a experiência do amor. Ex-periência, palavra que guarda
o perigo em sua raiz etimológica, nos lembrando que o amor é também travessia de risco
pelo aberto das coisas. Assim, nessa escrita, o amor, ao contrário de tentar fazer um com
o corpo de dois, abre-se para além de si e busca o terceiro: “o amor não se dirige a
ninguém em particular, mas à reconstituição” (LLANSOL, 2004, p. 27). Para Llansol
“escrever é o mais próximo da sensação de amar” (LLANSOL, 2004, p. 203), experiência
poemática que do corpo vem dar ao texto.
Ontem, que foi Domingo à tarde, falava com o Augusto e ele dizia que
tinha a impressão de que a existência se dividia em três grandes
continentes: o do poder, o da procura do segredo das coisas, e o do amor
– e de que não havia entre eles formas unificadoras possíveis. Nos meus
283
textos recusei, desde logo, o primeiro continente, abandonando todo o
poder nas mãos do príncipe, a que opus o rebelde e o pobre. Ainda me
senti tentada a descobrir um dos segredos do universo. Foi tentação
breve porque me horrorizava o esquematismo das construções, e o
etéreo das explicações. Se há um segredo, desconheço-o, e imagino que,
se vier ter comigo, não serei capaz de o identificar sob essa forma. Não
me segredará nada. Foi no outro continente que eu tenho,
provavelmente, mais vivido; mas como não é doce, nem feito de boa-
vontade, como não faz bem, apesar de não desejar o mal, na estranheza
que definitivamente o define. As figuras que, comigo, percorrem este
texto, não procuram outro continente, a todos os títulos desconhecido.
Antes de lá se chegar, quando se lá está, quando dele se é expulso pela
morte (LLANSOL, 1994, p. 46-47).
O amor que atravessa a morte não é “nem doce, nem feito de boa-vontade, não faz
bem, apesar de não desejar o mal” e, apesar do discurso que se fixou em nossa cultura,
esse amor não se define por uma dicotomia3. Trata-se de um amor que se manifesta, na
escrita, como um sustentador do todo: “um amor do movimento em movimento”
(LLANSOL, 2004, p.91), que guarda a estranheza que o define, sem buscar no
esquematismo das formas estruturadas o caminho para descobrir os segredos do universo.
Mantido o segredo e a ausência do poder como forma de conhecimento, a escrita faz do
amor um espaço não residual e, por um efeito de rarefação, torna-se Causa Amante.
Ainda esta manhã, quando eu ficara a coser na sala bi-solar das duas
janelas, que dá para a rua principal de Herbais, um pássaro pousou no
galho morto do pinheiro, e eu vi-o nitidamente entrar pelo texto da
Comunidade, que se une num só corpo fulcral, e se divide em vários
rostos; o pássaro voava de rosto em rosto, com uma intenção de desenho
que me acompanhava. Subitamente, desapareceu, e a sua ausência
apresentou-me uma visão física do amor que aniquilou definitivamente
esta palavra, e me fez esquecer do papel, e do meu próprio pensamento
no outro lugar; a este pássaro chamei Causa Amante. (LLANSOL,
1994, p. 26)
É na ausência que o amor produz a visão física que aniquila, definitivamente, a
palavra. Na ausência surge o vazio da palavra que escreve os nomes de amor. Esvaziada
dos seus sentidos, a escrita do amor torna-se causa, amante, jardim possível onde o texto,
destituindo o amor do lugar canônico dado a ele por nossa cultura, torna-se caminho para
o desconhecido. Nesse sentido, o amor, em Llansol, ao desenhar a borda do vazio da
palavra que o escreve, coloca os amantes em constante estado de perda, de
“despossessão”. Nesse estado escreve-se a ausência, escreve-se porque os lugares
assumidos pelo discurso do poder estão em ruína, escreve-se para fazer do amor o lugar
do que perdura de pura perda.
3
Sobre isso ver ABREU, 2012, p. 27-28.
284
A fixação de um objeto de amor aparece como limite das modificações
do amor: é-se capturado pela superfície do espelho e o mesmo perpetua-
se circularmente na reprodutibilidade sem renovação. É o que acontece
no modelo conjugal ou no modelo místico. O que se passa de
fundamental na fuga ao poder, a que se dá o nome de Amor, é que este
é o lugar de uma afirmação plena da subjetividade dos amantes. O único
lugar da relação entre sujeitos, que é uma relação de perda, apelo que
atira os amantes para o vazio de si, hipótese de renovação. Do lugar de
uma possessão mútua a uma despossessão. (LOPES, 1988, p. 109)
Produzindo uma dicção que se fragmenta e se prolonga dentro do espaço contínuo
da textualidade, nessa escrita nada é fixo nem definido, a sua composição testemunha um
movimento descentrado para o qual não há medida exata, em que os elementos que
constituem o seu traçado não são apenas as palavras libertas dos seus constrangimentos
sintáticos, os objetos lançados às novas explorações, “mas também os nomes próprios” –
inclusive o de Llansol –, “enquanto pontos aglutinadores”, conjugados a partir de uma
lógica que os remete para o “inaceitável de todo discurso” que não os submete aos
princípios de uma identidade e da não contradição. Com efeito, essa composição textual
reúne o sensível e o inteligível na potência das formas vivas, produzindo efeitos de real.
Às margens de uma língua, a escrita risca o seu céu e toma os estilhaços da palavra,
os fragmentos soltos, as ideias sonhadas, para compor com eles uma infinidade de
constelações e, com todas elas, um corpo para outros corpos: “corpo-poesia”, “corpo-
amante”, como os chama Silvina Rodrigues Lopes. Compondo a textualidade, o diário
Finita define um lugar, sem negar-lhe o seu avesso, sua face oculta, seus segredos. Traça
um movimento, uma passagem, lançando-se para além dele mesmo, no que resta de uma
vida que se conjuga como “corpo-paisagem”.
REFERÊNCIAS
ABREU, Fernanda Gontijo de Araújo. O devir poético do amor: margens de silêncio e escrita em
Maria Gabriela Llansol. 2012. 170 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Teoria da Literatura,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/1843/ECAP-8UXJJZ>. Acesso em: 02 jun. 2018.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Amigo e amiga – curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
285
______. Causa amante. Lisboa: Relógio D’Água, 1996.
286
AS PERSONAGENS ANÔNIMAS DE ELIANE BRUM: AS
NARRATIVAS PROTAGONIZADAS PELO HOMEM COMUM1
Abstract: The present work analyzes how the sources of the report book A vida que
ninguém vê (2006), written by journalist Eliane Brum, become characters. This work
through Brum's texts occurred because of her stories about ordinary people, taking the
opposite way of journalism, the nontraditional way, in which the sources are not public
or famous people. And it also occurred because Eliane Brum's text presents a narrative
with subjective marks, using observation and writing resources from (or inspired by)
literature.
Keywords: journalism; literature; Eliane Brum; humanized journalism
1
Mesa-redonda No compasso do homem comum.
2
Mestre em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul - RS.
287
observados os indivíduos descritos nas narrativas jornalísticas. Para tanto, o presente
trabalho analisa reportagens do livro A vida que ninguém vê (2006), da jornalista Eliane
Brum, como exemplos de narrativas que, assim como na literatura, são capazes de
desvendar o humano.
288
Como afirma Medina (1986), já estão à disposição do editor, chefe de reportagem,
repórter ou pauteiro aqueles nomes, endereços e telefones dos entrevistados habituais.
“Outras possíveis fontes são descartadas ou porque não servem (não se explica o motivo),
[...] ou por desconhecimento total” (MEDINA, 1986, p. 35).
289
somente pelas fontes oficiais, recorrentes, a realidade não poderá
ser vista de maneira mais rica, diversificada.
No entanto, o diálogo não é uma prática recorrente no jornalismo. O repórter recorre
à entrevista com as fontes oficiais – muitas vezes aquelas que detêm o poder político,
econômico, científico ou cultural – para obtenção de informações. “Enfatiza-se, com isso,
a unilateralidade da informação: só os poderosos falam através das entrevistas”
(MEDINA, 1986, p. 18). Por meio do diálogo proposto por Medina, a fonte ganha outras
feições, em que afloram traços de sua personalidade para revelar comportamentos e
valores. Algo que geralmente é encontrado na narrativa literária e não é comum no texto
objetivo jornalístico.
Como afirma Ijuim (2012, p.133) “[t]ratar a pessoa mais do que como uma fonte,
mas como personagem de uma história, sim, é uma das possibilidades de humanizar o
relato jornalístico”. Para isso, muitas vezes, são utilizadas pessoas anônimas porque elas
ampliam a identificação com o leitor. Sai-se, assim, do paradigma da fonte reconhecida
em busca da fonte anônima.
290
coletiva da grande reportagem ganha em sedução quando quem a
protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do cotidiano.
Porém, a representação da figura humana no jornalismo é traduzida, muitas vezes,
apenas pelas aspas das fontes habituais. Ou seja, o que é buscado durante a execução da
matéria são as falas de fontes que já são conhecidas pelo público. O foco em pessoas
anônimas possibilitaria a quebra da homogeneidade na construção da notícia, citada por
Wolf (2001), quando afirma que o jornalista produz notícias semelhantes aos seus colegas
de profissão ao utilizar as mesmas fontes. Para fugir da convencionalidade, o jornalista
precisa romper com os modelos hegemônicos. “Para oxigenar a pauta viciada, nada
melhor do que ir à rua. Dos convivas do cotidiano podem surgir vetores de renovação na
atmosfera claustrofóbica de uma redação” (MEDINA, 2003, p.79).
Assim, quando possível, e necessário que o jornalista busque novas fontes e fugir
daquelas oficiais para a produção da notícia do dia a dia ou de grandes reportagens. A
inspiração na literatura é um caminho para “superar a superficialidade das situações
sociais e o predomínio dos protagonistas oficiais. Há uma demanda reprimida pela
democratização das vozes que se fazem representar na mídia. Torna-se necessário
mergulhar no protagonismo anônimo” (MEDINA, 2003, p. 93).
291
As reportagens do livro A vida que ninguém vê foram, inicialmente, publicadas por
Eliane aos sábados durante o ano de 1999 na coluna A vida que ninguém vê do jornal Zero
Hora, de Porto Alegre. Todas as histórias foram ambientadas no estado do Rio Grande
do Sul. O objetivo do espaço era apresentar textos de pessoas comuns e situações
ordinárias. Após a coluna, as reportagens foram publicadas no formato livro em 2006. A
obra venceu o Prêmio Jabuti de 2007 como melhor livro-reportagem.
A jornalista trabalhou durante 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, em Porto
Alegre, e dez como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Atualmente, é
colunista na versão brasileira do site do jornal espanhol El País. Publicou três livros-
reportagens: Coluna Prestes: o avesso da lenda (1994); A vida que ninguém vê (2006) e
O olho da rua (2008), além do primeiro romance, Uma duas (2011).
No caso da obra em análise, A vida que ninguém vê, o olhar da autora foi
direcionado para figuras anônimas, algo que é observado na literatura e, com menos
frequência, no jornalismo. A reportagem, segundo Sodré e Ferrari (1986), assumiria esta
perspectiva de representação da figura humana, pois possui o foco no “quem”, entre as
perguntas clássicas do jornalismo: quem, o quê, como, quando, onde e por quê. Assim, o
essencial da reportagem está no interesse humano. Como representou Brum, ao relatar
mais do que acontecimentos, e sim singularidades de histórias de vida de pessoas
desconhecidas em suas reportagens:
293
Isso também ocorre na literatura, quando o enredo é a representação de uma
situação vivida por uma personagem que também passa por situações singulares. Como
afirma Candido (1998, p. 35), as personagens em conflito e situações-limites servem para
revelar aspectos da vida humana, sejam eles trágicos, grotescos, sublimes etc.
Jorge Luiz Santos de Oliveira tinha o sonho de ganhar a vida comendo vidro e, para
isso, fazia a sua arte para os transeuntes no centro de Porto Alegre, à espera de
colaborações espontâneas. A reportagem relata o momento em que o homem que comia
vidro para sobreviver passa por um dilema existencial ao perceber que a sua arte de comer
vidro estava ameaçada pela invisibilidade. Os passantes do centro, o seu público, não
mais se importavam com a sua habilidade de comer vidro.
294
Outro ponto identificável na reportagem que também dialoga com a literatura é o
uso da primeira pessoa do plural, em que o narrador vira personagem. Em toda a narrativa,
há o predomínio do narrador observador em terceira pessoa, porém no trecho “Ficamos
ali, olhando feio para o lagarto” (BRUM, 2006, p. 151), o narrador utiliza o nós (narrador
e o homem que comia vidro). Ou seja, o narrador torna-se participante da história ao
também observar o lagarto e ao sofrer junto com a fonte.
Além de ser uma marca literária, o uso da primeira pessoa do plural é um indicativo
de que a jornalista participou da cena e que é um agente ativo na construção da notícia.
Como afirma Resende (2009, p. 39), o jornalista é personagem do texto e participa da
cena sem que haja qualquer interferência no fato propriamente dito. Assim, Brum deixou
de ocupar o lugar de dono da lei para tornar-se uma participante e, consequentemente,
deixou uma marca impressionista em seu texto. As impressões do narrador – marcadas
pelo uso da terceira pessoa do plural – são mais um indicativo da humanização da
reportagem:
295
Então, ao longo da reportagem, o narrador compõe o perfil de Geppe sempre
deixando em aberto algumas possibilidades para, ao final, o leitor decidir em qual irá
acreditar. Em um trecho, o narrador afirma: “Geppe é um mendigo, dizem. [...] Geppe
Coppini é uma incógnita porque nunca pediu nada. [...] O que seria Geppe então? [...]
Vocês acham que Geppe Coppini é louco? – Pois eu digo. Geppe Coppini é o maior
vivaldino que Anta Gorda já criou” (BRUM, 2006, p. 42).
296
parecer verdadeira – ser verossímil. Isso exige certa técnica na dosagem da seleção e
combinação de elementos”.
Nos textos de Eliane Brum, as fontes são humanizadas e, por isso, as suas histórias
de vida aproximam ainda mais o leitor pelo mecanismo de identificação. É o que acontece
com as reportagens de “Frida...” e “Dona Maria tem olhos brilhantes”. Como afirma
Medina (2003, p. 52), pesa para o leitor de uma narrativa o grau de identificação com os
anônimos e suas histórias de vida. De certa forma, a ação coletiva da grande reportagem
ganha em sedução quando quem a protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do
cotidiano.
Fontes como Frida e Dona Maria – como será visto mais adiante – são mais
comuns no jornalismo diversional, gênero que oportuniza este tipo de construção. No
jornalismo informativo, este tipo de fonte, provavelmente, não se tornaria alvo do
jornalista porque não está ligada a nenhum acontecimento jornalístico. No texto de Brum,
Frida é apresentada como um exemplo de cidadã que participa com assiduidade às sessões
da Câmara e que acompanha as ações dos vereadores. No caso de Frida de uma forma
bem particular: “Frida entendeu que o Legislativo é a sua casa. Interpretou o conceito de
cidadania de uma forma tão radical que mais de uma vez foram avistadas suas calcinhas
recém-lavadas estendidas sobre as folhagens do jardim” (BRUM, 2006, p. 91).
Você já reparou nos olhos das pessoas na rua? Muitas têm pupilas
opacas [...] esculpem a imagem de uma infelicidade crônica,
venenosa e que mata devagar. Têm olhos de seca, olhos
assassinos. [...] Quando aparece alguém de olhos brilhantes, dá
vontade de parar, pedir licença e intimar: o que você está
escondendo atrás dessas pestanas? [...] Dona Maria tem olhos
brilhantes porque corre atrás do seu [sonho]. E desde então, deu
para ficar com os olhos em facho por aí, alumiando o caminho
(BRUM, 2006, p. 132).
O sonho de Maria Alícia Freitas, a dona Maria, seria, aos 55 anos de idade, aprender
a ler e escrever. Durante a infância, ela teve a primeira dificuldade: “Letras distantes como
a lua, porque a mãe garantiu que Maria era burra demais para alcançá-la. Aos nove anos,
com o peito estourando, Maria jurou: meus filhos vão estudar” (BRUM, 2006, p. 132).
Dona Maria teve nove filhos e garantiu para eles o estudo antes mesmo de realizar o seu
298
desejo de estudar. Quando eles estavam criados, dona Maria abandonou o segundo marido
para ir atrás do seu objetivo:
OS PROTAGONISTAS DE BRUM
299
perderam sua classificação de fonte porque foram entrevistados por uma jornalista que
construiu um texto a partir de seus relatos, comportando-se como personagem da
literatura ao serem humanizadas na narrativa jornalística.
REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes,
1974.
BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2006.
______. O olhar insubordinado. In BRUM. Eliane. A vida que ninguém vê. Porto
Alegre: Arquipélago, 2006.
KOTSCHO, Ricardo. A vida que ninguém vê como eu vi. In: BRUM, Eliane. A vida
que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2006. p. 177-184.
300
KUNCZIK, Michael. Conceitos de jornalismo: Norte e Sul. São Paulo: Edusp, 1998.
301
GEORGES BATAILLE: ESCREVENDO PARA APAGAR SEU
NOME?1
Lívia Drummond2
Resumo: Analisar uma obra artística pensando-a a partir do ponto de vista daquele que a
produziu, identificando traços que criam um perfil autoral a partir de redes discursivas
legadas por um determinado autor, implica em uma tomada de posição que recoloca, em
certa medida, a figura autoral, como chave de entendimento para sua produção artística.
No entanto, como proceder se o próprio Bataille afirma: “escrevo para esquecer o meu
nome”? Que nome ele gostaria de esquecer? Como ele procede para tanto? Para pensar
tais questões, entraremos em um dos aspectos dessa grande discussão que interroga o que
é o autor?, mais especificamente, a “íntima” relação entre um determinado autor
moderno, cuja escrita, temas e reflexões, suscitam ainda hoje tanto interesse entre os
contemporâneos, e sua vasta produção teórico-ficcional. Falamos de Georges Bataille.
Concentraremos nosso estudo em algumas passagens da obra que marca a sua entrada nas
letras francesas: a História do olho. Esse texto, tratado por grande parte da crítica como
uma produção autobiográfica, aqui será tratado como um texto estritamente ficcional,
demonstrando como alguns traços deixados nessa obra criam e definem uma assinatura,
construindo para ele uma figura autoral que não corresponde necessariamente a uma
pessoa real, mas que o define enquanto autor de uma rede discursiva sobre o erotismo.
Palavras-chaves: autoria; assinatura; erotismo; morte.
Abstract: To analyze an artistic work considering it from the point of view of its
producer, identifying in discursive networks left by a given author the features that create
an authorial profile, implies taking a position which relocates, to a certain degree, the
authorial figure, as a key to understanding his artistic production. Nevertheless, how do
we proceed if Bataille himself asserts: “I write to forget my name”? What name does he
wish to forget? And how would he go about doing so? To consider such questions, we
will enter into two aspects of the great debate that asks what is the author? more
specifically, that of the “intimate” relationship between a determined modern author,
whose writing, themes, and reflections solicit to this day so much interest among
contemporaries, and his vast theoretical production. We speak of George Bataille. We
will concentrate our study on a few passages of the work that marks his entrance into
French letters: the Story of the Eye. This text treated by and large by criticism as a
1
Mesa-redonda Desafios da (auto)ficção.
2
Mestre em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
302
autobiographical production will here be treated strictly as a fictional text, demonstrating
how some traces left in this work create and define a signature, constructing an authorial
figure which does not necessarily correspond to a real person, but which defines him as
an author of a discursive web on the subject of eroticism.
Keywords: authorship; signature; eroticism; death.
Assim como a noção de obra de arte veio se modificando ao longo dos séculos, a
noção do autor/criador dessas obras, e é esse o ponto que nos interessa abordar nas
reflexões aqui desenvolvidas, vem acompanhando essas modificações. Observamos que
ao longo da história dos estudos literários esse personagem foi marcado por momentos
bem diferentes que vão de uma total indiferença a uma total execração à sua “pessoa”.
Nesse ínterim, vale lembrar que o autor teve o seu grande apogeu entre os século
XVIII e início do século XX, quando ele foi tratado pela crítica literária como categoria
explicativa suficiente e incontestável de uma obra literária. Vimos, no entanto, o império
do autor começar a desmoronar no final do século XIX, com escritores como Mallarmé,
3
“Escrevo para esquecer meu nome” (tradução nossa).
303
que “viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de colocar a própria linguagem
no lugar daquele que era até então considerado seu proprietário” (BARTHES, 2004, p.
59) e quando, no início do século XX, viu-se nascer uma nova disciplina – a Teoria
Literária –, que, ancorada nos estudos do linguista suíço Ferdinand Saussure – para quem
o signo é arbitrário, não tendo, assim, nenhuma relação direta com a coisa nomeada no
mundo exterior –, propôs pensar a obra literária como jogo de linguagem autorreferencial,
sem nenhuma relação direta com um referencial exterior a ela.
Tentaremos apontar, brevemente, de que maneira o ponto de vista do autor pode ser
retomado como categoria de análise do texto literário. Concentraremos nosso estudo de
algumas passagens da novela História do olho de Georges Bataille, assim como, em
passagens de outros textos da vasta produção desse escritor, demonstrando como alguns
traços deixados em sua obra criam e definem uma voz autoral, uma assinatura,
construindo para ele uma figura autoral que não corresponde necessariamente a uma
pessoa real, mas que o define enquanto autor de uma rede discursiva sobre o erotismo.
Pensar o conjunto de uma obra retomando categorias teóricas que foram execradas
pela teoria como fez Sandra Contreras afirmando que:
[...] me parece claro que quando hoje nos ocupamos de “autores” não
estamos voltando – ao menos não queremos voltar- ao Autor-Indivíduo-
Pessoa que Barthes declarou morto, mas ao autor como “invenção de
estilo”, “criação de sintaxe”, “singularização do ponto de vista” que
aprendemos a ler [...] (CONTRERAS, 2003, tradução nossa).
e como fizeram outros estudiosos da literatura e como tentaremos fazer nesse
trabalho, é uma tarefa um tanto quanto complexa, mas que nem por isso pode deixar de
ser realizada. Pois desde que Roland Barthes, em 1968, proclamou A morte do Autor-
Indivíduo-Pessoa – declarando que a identidade civil, a subjetividade de um escritor não
servia mais enquanto explicação do texto, pois esse modo de pensar teria por finalidade
fechar o sentido de um texto por natureza polissêmico como o texto literário “[...] um
espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das
quais nenhuma é original” (BARTHES, 2004, p. 62) – e Michel Foucault no ano seguinte
questionou O que é um autor?, a sorte do autor foi lançada e uma grande confusão
interpretativa não cessa de acontecer.
305
proposições de Barthes e Foucault reinterpretando-as a favor da importância da reinserção
da figura autoral para análise de uma obra. Façamos nossas as palavras de Foucault (2009,
p. 87): “Gostaria no momento de examinar unicamente a relação do texto com o autor, a
maneira com que o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos
aparentemente”.
Analisar uma obra artística pensando-a a partir do ponto de vista daquele que a
produziu, identificando traços que criam um perfil autoral a partir de redes discursivas
legadas por um determinado autor, implica em uma tomada de posição que recoloca, em
certa medida, a figura autoral como chave de entendimento para sua produção artística.
Vale ressaltar aqui que, assim como Barthes ou Foucault, a figura autor não será tratada
enquanto subjetividade, enquanto pessoa individual e civil que apresentaria as mais
íntimas e verdadeiras confissões em seu discurso, e sim como uma personagem que se
produz no e pelo discurso. Podemos ilustrar nossa tomada de posição partindo de uma
fala do próprio Bataille e que nos serve de epígrafe “escrevo para esquecer o meu nome”.
Que nome ele gostaria de esquecer? Como ele procede para tanto?
Entraremos agora em um dos aspectos dessa grande discussão que interroga o que
é o autor?, mais especificamente, a “íntima” relação entre um determinado autor moderno
cuja escrita, temas e reflexões, suscitam ainda hoje tanto interesse entre os
contemporâneos e sua vasta produção teórico-ficcional, falamos de Georges Bataille. Sua
empresa desde o início se mostra fadada ao insucesso, pois seu nome próprio ecoará e
marcará as análises de sua obra identificando-a na maioria das vezes a traços
autobiográficos. A nossa empresa, no entanto, busca pensar traços deixados na sua obra
que o identificam enquanto autor e não com o sujeito “de carne e osso”. Georges Bataille
(1897-1962) escritor que se insere na tradição moderna, não deixa, contudo, de contestá-
la. Próximo dos grupos de vanguarda do início do século XX, especialmente dos
surrealistas, não deixou de confrontar a literatura moderna francesa, mais propriamente
surrealista, trazendo temas abjetos para o centro de sua obra (sendo esse um dos principais
pontos de tensão entre ele e André Breton). Utilizando-se de uma linguagem crua,
brincando e ridicularizando, na sua literatura, a bela retórica e exaurindo palavras como
cu, pau, punheta, sangue, porra... Veremos proliferar em sua obra, sobretudo na sua
produção artística/literária, emblemáticas passagens como as dos versos seguintes
encontrados no livro Poèmes et nouvelles érotiques:
306
dans ta gorge d’amour rose.
Ma vulve est ma boucherie
Le sang rouge lavé de foutre
Le foutre nage dans le sang.4
Como diria Meizoz (2007): “A postura de um autor se exerce relacionalmente a
outras posturas”. A de Bataille confronta violentamente a de Breton e de parte do
movimento surrealista (do qual fez parte por um breve momento). Segundo Eliane R.
Moraes (2010, p. 155) “À aspiração etérea dos idealista – leia-se: surrealistas – em direção
à pureza, o autor da Histoire de l’oeil preconiza uma ‘cólera negra e até mesmo uma
indiscutível bestialidade’, ameaçadora e repugnante, que se constituiria como a grande
contrapartida das visões sublimadas da realidade.”
A leitura da sua obra pode ser, sim, mediatizada pela sua “postura autoral”, no
entanto, ela não deve ser entendida e identificada imediatamente com a sua biografia,
com o sujeito Bataille. É emblemático observar que a sua primeira obra, História do olho,
publicada originalmente em 1928, foi escrita sob o pseudônimo de Lord Auch (e esse não
foi o único pseudônimo utilizado por ele). A escrita assinada por um pseudônimo não
significa apenas esconder-se atrás de uma personagem para proteger a identidade civil do
sujeito Georges Bataille, então funcionário da Biblioteca Nacional francesa, nem
tampouco serve, apenas, para dissimular aspectos que podem passar por autobiográficos
na obra em questão.
“Algumas semanas após o acesso de loucura de meu pai, minha mãe acabou
perdendo igualmente a razão” (BATAILLE, 2003, p. 90). Tomar tal confissão encontrada
na História do olho, no capítulo intitulado Reminiscências – no qual aparece outro
personagem narrador, muitas vezes identificado à voz do indivíduo Georges Bataille e
não mais ao garoto narrador de quase 16 anos e herói da narrativa – como sendo a
expressão mais íntima do sujeito Bataille, pode incorrer em um grande equívoco, já que
o próprio irmão do escritor nega essa afirmativa dizendo, em cartas citadas na biografia
Georges Bataille, la mort à l’oeuvre escrita por Michel Surya, “Tu sais très bien que
notre père n’est pas mort fou, que notre mère, avant de mourir, n’a pas perdu la raison”5,
mas significa talvez a criação de uma persona que se dramatiza em temas espalhados por
toda a sua obra literária, basta observar a construção do próprio pseudônimo: Lord que
4
“Inchada como uma pica minha língua/em tua garganta rosa de amor/ Minha vulva é meu abatedouro/ o
sangue vermelho lavado de porra/a porra nada no sangue” (tradução nossa).
5
“Você sabe muito bem que nosso pai não morreu louco, que nossa mãe, antes de morrer, não perdeu a
razão” (tradução nossa).
307
em inglês significa Deus/Senhor e Auch a abreviação da expressão francesa aux chiottes
que significa à latrina, podemos concluir da elaboração desse pseudônimo que o nome
que assina a obra funciona como um Deus na latrina evacuando na narrativa excrementos,
abjeções, baixezas de toda sorte.
Os textos escritos por Bataille giram em torno de temas que evidenciam no nível
discursivo traços que o definem enquanto autor como, por exemplo, reflexões sobre
experiência interior/mística, sacrifício, transgressão, interdito, excesso, entre outros.
Pretendemos tratar um dos temas que mais se sobressai desse conjunto, sobretudo no
que concerne a sua produção literária/artística/criativa: a obsessão pelas práticas eróticas
e a sua associação com a morte.
Suas reflexões a respeito do erotismo perpassam parte da sua obra teórica e toda a
sua obra literária, constituindo, assim, um importante conjunto de textos que tentam
delinear, a partir de um intercâmbio conceitual teórico/ficcional, o erotismo como uma
experiência singular de sujeito falido. “Na passagem da atitude normal ao desejo existe
uma fascinação fundamental pela morte. O que está em jogo no erotismo é sempre uma
dissolução das formas constituídas. Repito: dessas formas da vida social, regular, que
fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos” (BATAILLE,
2004, p. 31).
As reflexões de Bataille sobre o erotismo, seja na sua obra teórica, seja na sua obra
literária confundem-se com suas reflexões sobre o próprio ato de escrever, ressaltando
309
“a consciência dos limites e das possibilidades da linguagem” (HOISEL, 1991, p. 79).
Observemos os próximos versos:
O filósofo italiano Franco Rella (2010) afirma que existe certa dificuldade em dar
conta do conjunto da obra batailliana devido ao seu caráter essencialmente fragmentário,
descontínuo, caráter este que constitui uma das principais características do escritor
moderno. Sua produção teórica e sua produção literária fragmentárias, articuladas em
uma operação de tráfico de conceitos, abrem perspectivas para a análise da própria
produção da escrita contemporânea, ou mesmo dos intricados processos de erotização
do cotidiano.
6
Bebo em tua fenda/Estendo tuas pernas nuas/Abro-as como um livro/em que leio o que me mata (tradução
nossa).
310
Não há como não pensar em um projeto literário batailliano, mesmo sabendo que
há muito tempo afirma-se: “não existe uma equação lógica necessária entre o sentido de
uma obra e a intenção do autor” (COMPAGNON, 2001, p. 80). Mesmo depois de ter
refletido sobre a morte do autor, sobre a falácia intencional de Beardsley e Wimsatt para
os quais “a experiência do autor e sua intenção [...] eram indiferentes para a compreensão
do sentido da obra” (COMPAGNON, 2001, p. 80) não é possível, no nosso caso, deixar
de observar e analisar a obra de Georges Bataille como um projeto no qual é construída
uma determinada figura autoral. “Talvez uma vantagem da leitura de autor seja a de
permitir não tanto voltar a falar de, mas de insistir na questão do valor de uma obra –
valor entendido aqui como aquilo que cada mundo imaginário nos comunica como único
e singularíssimo” (CONTRERAS, 2003, tradução nossa).
Talvez seja seu ponto de vista singular sobre as práticas eróticas o que faz dos textos
bataillianos serem tratados diferentemente em momentos distintos: inicialmente seus
textos foram tratados como pornográficos e hoje fazem parte da literatura erótica, e, por
conseguinte, talvez seja essa mirada sobre o erotismo que faça com que o autor Bataille
seja ora considerado um pornógrafo libertino não muito sério, ora tratado como um
311
escritor sério cujas reflexões e estilo o exercem uma determinada função-autor, ao criar
uma rede discursiva a respeito do erotismo e da morte. Saber qual dessas figuras autorais,
entre muitas outras criadas pelo escritor, corresponde ao indivíduo Bataille é uma tarefa
que não nos compete, a nós é dada apenas a possibilidade de apontar para esses Batailles
a partir do que nos é oferecido pela linguagem.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. História do Olho. Tradução de Eliane Robert Moaraes. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
COMPAGNON, Antoine. O autor. In: O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo
Horizonte: UFMG, 2001.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor ? In : Ditos e escritos III : Estética, e pintura, música e
cinema. Trad. Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2009.
HOISEL, Evelina de Carvalho Sá. Confrontos T. S. Elliot e Paul Valéry. Estudos Linguísticos e
Literários, Salvador, v. 12, n. 3, p. 79-96, jul. 1991.
LERIS, Michel. Nos tempos de Lord Auch. In: BATAILLE, George. História do Olho.
Tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
MEIZOZ, Jérome. Postures Littéraires. Mises em scène modernes de l'auteur. Essai. Genéve:
Slaktine Érudtion, 2007.
RELLA, Franco. Georges Bataille, filósofo. Trad. Davi Pessoa Carneiro. Florianópolis:UFSC,
2010.
312
A RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA
COLETIVA NA ANIMAÇÃO PERSÉPOLIS1
Abstract: This study aims to analyze the animation Persepolis (2007), by Marjane
Satrapi, film in which the author narrates her childhood and youth in Iran during the
Islamic revolution that brought Khomeini to power. We intend, therefore, to understand
how the work builds and establishes a pact of autobiographical reading with its audience
as well as the autobiographical practice relates to a present recollection of past events and
is, thus, impossible for an author to dissociate his personal view on the narrated facts and,
therefore, the author builds her narrative according to their interpretations of experience
in socio-cultural contexts.
Keywords: autobiography; memory; film analysis.
INTRODUÇÃO
1
Mesa-redonda Memória e Resistência II.
2
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Póscom), da
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
313
naquela época levava uma vida tranqüila e sem problemas...”. É assim que começa o filme
Persépolis (2007).
Esta poderia ser apenas mais uma narrativa narrada por um personagem em
primeira pessoa se não chamasse atenção o fato de que a personagem Marjane Satrapi
possui o mesmo nome da co-diretora e roteirista do filme, em parceria com Vincent
Parronaud. A obra é baseada na graphic novel homônima, também escrita por Marjane e
Parronaud.
Não é apenas em Persépolis que Marjane traz relatos sobre a sua família ou a
situação do Irã. As histórias de suas vivências e as de seus parentes também são tema dos
seus trabalhos posteriores com graphic novels. Em Frango com ameixas (2008) ela narra
a história de um tio e em Bordados (2010) ela conta das conversas que aconteciam entre
as mulheres durante os almoços de sua família e que revelam não somente partes da
intimidade da vida da autora, mas também sobre a cultura, os costumes e os problemas
da sociedade iraniana. É importante ressaltar, entretanto, que está análise irá se ater ao
filme Persépolis. Antes de tratarmos diretamente do filme, falaremos um pouco sobre a
perspectiva teórico-analítica da poética do filme, que irá nortear nosso trabalho analítico.
314
A POÉTICA DO FILME
Em seu tratado, Aristóteles (2011) compreende que toda obra de arte possui uma
finalidade ou destinação3, ou seja, cada peça artística é produzida de modo a cumprir um
intento específico, de realizar algo que lhe é próprio e que está convocado em sua natureza
intrínseca.
Gomes (1996) afirma que a poética, portanto, deveria ser capaz de indicar aquilo
que é convocado por natureza em cada tipo de obra de arte. O autor entende que se uma
obra se realiza somente durante a sua apreciação, então aquilo que é próprio a cada obra
seria identificado como resultado ou efeito desta realização. Assim sendo, pode-se
considerar que todas as obras de arte existem para provocar efeitos específicos em seus
apreciadores.
Sob esta perspectiva, portanto, Gomes considera que o ideal da poética seria
entender “a produção – nas obras de narrativa ficcional e na representação dramática –
dos efeitos específicos de cada gênero de poesia sobre os seus fruidores” (GOMES, 1996,
p.109). Por produção o autor quer dizer que a poética se ocupa com os efeitos “da poesia
sobre os fruidores, mas tais efeitos tais efeitos devem ser considerados do ponto de vista
das estratégias de que lança a mão o poeta na realização da sua obra poética” (p. 109).
3
Possíveis traduções do termo grego dynamis.
315
Assim sendo, a poética visa estudar as estratégias de organização dos elementos da
composição artística que preveem e solicitam determinados efeitos, específicos para cada
gênero, que são construídos pelos realizadores. Deste modo, a obra de arte para o autor é
“um mecanismo de acionamento de efeitos através das tentativas, eliminações e escolhas
de que ela resulta” (GOMES, 1996, p.109). Enquanto programa teórico-metodológico, a
poética buscaria, portanto, entender o que o filme faz com seus espectadores a partir
daquilo que emerge da cooperação entre texto e apreciador. Deste modo, Gomes (2004)
entende que essa máquina de produção de efeitos funciona com três modos de
composição de efeitos que são convocados ao espectador: sensação, sentido e sentimento.
É justamente sobre essa produção de efeitos, em especial a de sentidos, que o trabalho irá
se debruçar, tentando demonstrar como o filme Persépolis utiliza os meios e modos da
linguagem do cinema para construir seu relato autobiográfico.
O PACTO AUTOBIOGRÁFICO
De acordo com Lejeune (2008, p. 15) “para que haja uma autobiografia (e, numa
perspectiva mais geral, literatura intima), é preciso que haja uma relação de identidade
entre o autor, o narrador e o personagem”. Na animação é o nome próprio de Marjane
Satrapi que estabelece essa relação entre as três instâncias citadas por Lejeune e para ele
o uso do nome próprio é uma das condições para a identificação de uma obra
autobiográfica “O que define a autobiografia para quem lê é, antes de tudo, um contrato
de identidade que é selado pelo nome próprio” (LEJEUNE, 2008, p.33). A afirmação
dessa identidade é o que, para Lejeune, constitui o que ele denomina como pacto
autobiográfico. De acordo com o autor os três elementos interagem da seguinte forma:
narrador e personagem são as figuras às quais remetem, no texto, o sujeito da enunciação
e o sujeito do enunciado. Neste ponto, a obra levanta uma importante questão por não se
tratar de um trabalho de autoria única e sim uma colaboração entre Marjane Satrapi e
Vincent Parronaud, seria possível classificá-lo como uma autobiografia, uma vez que a
visão de Vincent estaria também impregnada na obra.
316
Em uma entrevista ao site Twitchfilm4, publicada em dezembro de 2007, Vincent
comenta sobre como se dava a relação de trabalho entre ele e Marjane no processo de
produção do filme:
É meu papel não aparecer mais que ela – a história é dela (grifo do autor
da matéria) – mas eu me faço presente. [...] De um ponto de vista
técnico meu trabalho envolveu a decoração e os cenários do filme e
também os storyboards e os cortes.
Assim, pode-se perceber que, no caso específico de Persépolis, a presença de dois
autores parece não anular o caráter íntimo e pessoal da obra já que o co-autor indica não
interferir nos relatos de Marjane, permitindo que seja a história da autora, contada sob
seu ponto de vista, permaneça em foco.
Para Lejeune isso não chega a ser um problema na firmação do pacto, na verdade o
autor afirma que “quanto mais o cineasta tende a se aproximar da realidade, mais sensível
fica, por vezes, o aspecto ficcional” (2008, p.228). Para Lejeune a presença em cena do
autor da obra fílmica contracenando com outros atores soaria falsa ao invés de mais
realista.
Após a narração inicial de Marjane a animação passa a exibir sua infância utilizando
uma paleta de cores diferente da sequência transcorrida no momento presente da
narrativa. As sequências no passado, que ocupam a maior parte da narrativa, são todas
em preto e branco enquanto que o presente diegético é mostrado em cores. A utilização
do preto e branco e das sombras no passado em contraste com o colorido do presente
contribui para imprimir um tom de reconstrução de um passado, que é impossível ser
lembrado na totalidade de seus detalhes, e, portanto, apresenta-se como uma memória
4
Disponível em: <http://twitchfilm.com/2007/12/persepolisinterview-with-vincent-paronnaud.html>.
Acesso em 13 jan. de 2014.
5
Coincidentemente, a mãe de Marjane é interpretada no filme por Catherine Deneuve, mãe da atriz na
vida real.
317
desgastada. Além disso, a presença do preto e branco nos cenários é utilizada para indicar
o estado de espírito da protagonista, mergulhando-a em ambientes sombrios e escuros nos
momentos de tristeza e tensão ou bastante claros nos momentos de felicidade.
O EU EM PERSÉPOLIS
Sendo assim, o filme trabalha para deixar o público imerso no universo emocional
da personagem/autora, através do modo como são construídas as imagens. Ao se dizer
apaixonada os carros e seus próprios passos começam a flutuar, a base de um corrimão
de escada remete a vários corações e quando seu namorado traga um cigarro é Marjane
quem expele a fumaça, representando a união do casal.
318
A visão distanciada e ingênua dos problemas de seu país que ela tem enquanto
criança vão aos poucos se tornando mais presentes no cotidiano de Marjane como a prisão
de parentes e pessoas próximas, a falta de produtos nos mercados e até mesmo o acesso
à musica torna-se difícil diante das mudanças pelas quais o Irã passa, o que é mostrado
pela autora/personagem sob um viés de humor na cena em que ela vai comprar uma fita
de vendedores de rua que se comportam como traficantes ou quando ela é recriminada
por duas mulheres devido ao broche e a jaqueta que está usando.
319
Apesar de todos os problemas e dramas vividos por Marjane, é possível notar que
a narrativa é permeada pelo humor e pela ironia crítica presente em seu discurso. Esses
momentos de humor podem ser identificados quando ela se vê maravilhada pela
quantidade de produtos nos supermercados de Viena ou a bem-humorada montagem que
mostra sua saída da depressão. Ao retratar a terapia da protagonista, vemos o seu
psicólogo simplesmente balançando a cabeça enquanto rabisca em um bloco de papel,
nos mostrando, de maneira irônica, que a personagem acredita que o tratamento não a
ajudou a melhorar. O humor, portanto, serve para contrapor e atenuar o peso do drama
que envolve a autora/personagem e também se revela como parte de sua personalidade e
de seu olhar sobre o mundo.
É possível, pois, perceber que toda a narrativa se constrói a partir das reflexões e
sentimentos da autora personagem enquanto ela lida com o seu sentimento de
inadequação, primeiramente em relação a sua própria terra natal e depois em relação a
um país estrangeiro, e com os acontecimentos que contribuíram para a formação de sua
identidade até o momento final da narrativa em que ela finalmente assume “venho do
Irã”, encerrando e explicando o questionamento de “como me tornei assim?” que Lejeune
afirma ser um componente do texto autobiográfico. Ao mesmo tempo, enquanto a
narrativa se encerra com o táxi de Marjane se distanciando, o filme sugere que a história
dela, uma vez que se trata de uma pessoa real, segue em frente.
MEMÓRIA COLETIVA
320
passado e do eu presente para mostrar os eventos sobre a ótica que ela os via na época em
que aconteceram e como ela os vê no presente, avaliando as mudanças que lhe ocorreram.
A convivência com sua família é mostrada como uma vivência crucial para a
formação de seus valores, em especial sua avó, que lhe fala constantemente sobre
dignidade e integridade e como não se pode abandonar esses valores mesmo sob um
regime de repressão e medo como o do Irã. Seu tio Anouche também se mostra importante
no desenvolvimento de Marjane, ele lhe narra o sofrimento que passou enquanto preso
político. Além disso, trata das próprias experiências de contestação de Marjane, como as
discussões dela com professores na escola ainda em Teerã ou com o a falta de importância
que seus amigos em Viena dão aos conflitos em seu país, retratando-o como meros “jogos
de poder”.
Brian Roberts (2006) afirma que nenhum sujeito existe descolado de uma vivência
social e ao construir um relato sobre sua vida, deixa transparecer, consciente ou
inconscientemente, não apenas suas próprias memórias e experiências, mas elementos
que fazem parte e se inserem em um determinado contexto sócio-cultural. Assim sendo,
memórias individuais retratariam também partes da memória coletiva de um determinado
povo ou grupo social.
321
sendo, o relato de Marjane, embora pessoal e individual, contribui também para a
percepção de um contexto social mais amplo, que afetou uma ampla gama de pessoas e
que, de algum modo, reside na memória de seu país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
______. La Poética Del Cine y la Cuestión Del Método En El Análisis Fílmico. Significação,
Curitiba, v. 21, n. 1, p. 85-106. 2004.
322
SATRAPI, Marjane. Frango com Ameixas. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
323
SUJEITOS EM RETORNO EM SERGIO KOKIS E DANY
LAFERRIÈRE1
1
Mesa-redonda Desafios da (auto)ficção.
2
Doutor em Estudos da Literatura/Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
324
Abstract: To these days, a great number of literary works have focused on the
fragmentation of the contemporary subject, specially through the voyage, errance and
exile, movements that denounce the problem of identity and alterity; in the context of
“migrant literatures” in the Americas, these aspects are recurrent. This research aims at
analyzing two novels in which the focus is directed towards the return to the homeland
of the exiled subject, in the context of migrant literatures in Quebec: Errances, by Sergio
Kokis, and L’énigme du retour, by Dany Laferrière. Even though they have Canada as
the production context, the fictional space explored in each novel is the country of origin
of the characters, Brazil and Haiti. The autobiographical aspect is also in question, which
weakens the borders between fiction and truth: both present as main characters migrant
subjects (both writers, by the way), each following their ways towards the homeland
during important historical moments. The first, exiled during the military dictatorship,
returns to Brazil right after amnesty is announced and finds a country still disturbed by
the atrocities of the totalitarian regime and a society trying to learn how live in freedom.
The second finds Haiti ruined by Duvalier’s dictatorship, after which the democracy
remains a faraway dream, where misery is everywhere. Both Kokis and Laferrière affirm
in autobiographical texts that they take real-life experiences as literary material for their
fictional novels, especially in the thematic field (the dictatorships that led them to exile
are mentioned in several novels, and migrant subjects are also frequent). Through the
analysis of these two novels, some questions come inevitably, especially one: how does
the migrant subject (re)construct himself when returning to the origins and what are the
impacts of this journey in his identities? With this in mind, we intend to observe the
trajectory of these characters also considering the blurred images they have of their
idealized homelands, verifying that they present several intersectional points.
Keywords: migration, identity, exile, return
325
exilados são de ordem íntima e contundente, fundando novas formas de imaginário e,
consequentemente, configuram novos espaços para a emergência das escritas migrantes.
Para Pierre Ouellet (2013, p. 146), o exílio é “a nova condição de nosso imaginário, [...]
espaço aberto dos olhares e das palavras para onde convergem as verdadeiras
comunidades em sua mais profunda e mais íntima movência ou transumância”3.
3
A tradução das citações em língua estrangeira são de minha responsabilidade, salvo quando indicado
nas referências.
326
colonizador, imigram e se instalam introduzindo ao local de chegada “a maneira de ser
de seus mundos respectivos, suas histórias e sua sensualidade”. No plano temático, Kokis
(1999, p. 135) pondera que a reescrita de mitos é empreendida no lugar de mera nostalgia:
“o tema constante dessas novas literaturas é o mundo estilhaçado e a ruptura dos mitos
tal como os vivem de forma cotidiana esses escritores vindos de longe”.
No primeiro caso, trata-se de um escritor de origem haitiana que deixa seu país em
1976 para viver em Montreal, na província do Quebec, onde se consolida como ficcionista
em 1985. A época da partida é marcada pelo regime do ditador Jean-Claude Duvalier, e
as consequências da ditadura já eram conhecidas de Laferrière, uma vez que desde sua
infância seu próprio pai vivia em exílio. A condição de exilado, a partida de Dany para o
Canadá e as relações entre o novo mundo lá encontrado e seu país de origem oferecem
matéria para diversas de suas obras.
Todo ser humano normal é estrangeiro até em sua família, quiçá em seu
país, e não se para de aprender, de desaprender, para se adaptar, de
reaprender, porque se retornou ao ponto de partida: a viagem e o retorno
são os dois movimentos que os humanos fazem incessantemente em
suas vidas. E aqueles que não os fazem tornam-se pessoas de caracteres
um pouco limitados às vezes, eles têm medo de tudo o que é estrangeiro,
de tudo o que é novo, mas mover-se pelo planeta, não aceitar as regras
327
do jogo, não reconhecê-las, ou tentar se adaptar, é uma condição de fato
humana (2009b).
Sergio Kokis, escritor e pintor nascido no Rio de Janeiro e estabelecido em
Montreal em 1969, revela-se no meio literário em 1994. O contexto de saída de Sergio
Kokis não é muito diferente do de Laferrière: o Brasil acabara de viver um golpe militar
que instaurou uma ditadura que duraria até 1974. O processo de migração serviu de
matéria para a ficção de Kokis, que abordou em vários de seus romances os anos de
chumbo, além de ter concebido inúmeras personagens viajantes (sob diversas nuances,
como o exilado, o vagabundo, o marginal, a prostituta, por exemplo), seres errantes que
enfrentam processos de fragilização e recomposição de suas identidades.
As aproximações possíveis entre as duas obras vão além da questão do retorno. São
pontos comuns entre as narrativas o recurso à figura do pai e à da família como ligações
importantes das personagens com suas origens. Além disso, a arte literária é aludida sob
diversos enfoques: a profissão de escritor, a relação com a língua de escrita, a leitura
enquanto parte integrante da constituição identitária das personagens e a construção de
subtextos que remetem a obras fundadoras dos questionamentos acerca das identidades.
328
movimento permeiam a narrativa, a partir de diálogos com outras personagens que o
desafiam a se redescobrir. Em L’énigme du retour, embora a narrativa seja mais poética
e concisa, tais reflexões também se fazem presentes por meio do contato com o Outro,
que representa sua origem, seu passado e, portanto, sua identidade referencial. Esse Outro
apresenta-se fragmentado e se projeta a partir de diversas máscaras, seja nos membros da
família ou em simples desconhecidos que são lidos e interpretados por ele de modo a
revelar sua face oculta através da memória e do imaginário com relação ao lugar de
origem.
O recurso à literatura é estratégia para que a tensão entre “eu” e “o Outro” tenha
lugar. O componente metaliterário presente cria espaço para essas reflexões, por vezes
através de subtextos que fazem eco de maneira mais ou menos evidente. Em Dany
Laferrière, este processo vem por meio de uma fluidez poética nos relatos, sobretudo pela
evocação da obra fundadora Diário de um retorno ao país natal, de Aimé Césaire,
publicado pela primeira vez em Paris em 1939. A epígrafe de L’énigme du retour já
anuncia o pensamento do poeta da Martinica que se fará presente nos relatos: é o primeiro
verso “No fim da madrugada...” (CÉSAIRE, 2012, p. 9) que assinala sua presença junto
ao narrador, que carrega consigo o livro de Césaire e o relê constantemente, fazendo ecoar
alguns de seus versos na visão que constrói ao longo da viagem ao Haiti. Texto
emblemático dos escritos sobre a negritude, o poema de Césaire ressurge na narrativa
poética de Laferrière com a acentuação de outros de seus pontos de reflexão, para além
da questão étnica. O narrador aproxima a experiência sentimental expressa no texto de
Césaire às sensações vividas no retorno, principalmente como forma de denunciar e tentar
compreender a devastação deixada como legado pela ditadura de Duvalier.
329
“E sobretudo meu corpo assim como minha alma, livrai-vos de cruzar
os braços na atitude estéril do espectador, porque a vida não é um
espetáculo, um mar de dores não é um proscênio e um homem que grita
não é um urso que dança...” (2012, p. 29, grifo nosso).
Esta passagem denuncia o caráter ambíguo do retorno: de um lado, a memória
evoca o sentimento negativo mantido por aquele que parte em um contexto conturbado,
de outro, outra face da memória acessa, ao mesmo tempo, certa ternura em direção às
origens que se intensifica após a partida, como o corpo abraçado por esse “país meu”. É
importante levar em consideração que, neste ponto do poema, o retorno é ainda hipotético,
marcado pelo uso do modo condicional (no original), aqui traduzido com o emprego do
futuro do pretérito.
330
passagens – algumas das quais são narradas ironicamente com vistas a ressignificar o
lugar do escritor e as questões de autoria, sem deixar de reavaliar os valores que permeiam
a história literária nos lugares por onde passa.
Também há o recurso a outros textos que dialogam com a narrativa principal, como
a alusão à obra do escritor inglês de origem ucraniana Joseph Conrad. Além disso, um
elemento recorrente em diversas obras de Kokis é o debate em torno da filosofia e da
crítica literária. Em Errances, particularmente, há diversas cenas narradas com ironia, em
que Boris discute com seus companheiros sobre política, trabalho intelectual, literatura.
Nessa empreitada, cabe destacar as reflexões sobre o exílio, posição “entre” que permite
ao herói fazer explodirem discussões de uma “agressividade juvenil”, como em “Desde
todos esses anos, ele estava habituado ao exterior indiferente que ele tinha tão
penosamente construído para não se fundir nessa Europa estrangeira” (KOKIS, 1996, p.
151). Há muitos outros momentos aparentemente banais, cotidianos, mas nos quais subjaz
a migrância como tema, ou como razão para explicar este ou aquele comportamento das
personagens.
331
identidade é um produto de ficção, e cada um constrói sua narrativa segundo os
acontecimentos”.
Tanto Kokis quanto Laferrière põem em xeque algumas bases das teorias acerca
das escritas confessionais, sobretudo o segundo, que emprega a palavra “romance” junto
aos títulos de suas obras mas traz como narrador e personagem principal um escritor com
traços idênticos à história de vida do autor. Para além das condições estabelecidas por
Philippe Lejeune para se considerar uma obra como autobiográfica, esses autores
embaralham as instâncias narrador, personagem e autor a partir de novas definições de
uma identidade de exilado.
Ambos evocam o sentimento existencial de todo aquele que escreve sobre si, o
impulso que o conduz ao ato de repassar pelos pontos principais nos quais se constrói a
identidade do sujeito. Trata-se, portanto, de mais do que mera rememoração, o processo
de reelaboração passa inevitavelmente pela memória, é claro, mas em se tratando de
literatura, com a inclusão do componente ficcional, abre-se espaço para que se pense o
uso poético do vivido, fazendo coexistir o factual e o inventado, para além de estratégias
de categorização.
332
leitores em situação de tomar conta da herança que ele lhes confia” (JEANNELLE,
2012)4.
Fica clara, segundo essa perspectiva, uma dupla articulação de fatores: de um lado,
o individualismo é aparentemente o fator que impulsiona tais narrativas, já que o escritor
empreende uma autoanálise profunda da qual resultam relatos centrados no eu (sua
experiência, suas influências, seus caminhos muito pessoais, mesmo que por vezes ele se
esconda sob diversas máscaras); de outro, ao focalizar obras associadas à migrância,
verifica-se com frequência a abordagem de experiências coletivas, sobretudo na
constituição de comunidades culturais que compartilham alguns dos componentes
inicialmente tidos como individuais.
4
Texto de conferência apresentada na Universidade Federal Fluminense em 4 de junho de 2012,
intitulada “Posturas de si e nomes de gênero”.
333
Os limites da verdade, já postos em dúvida na reavaliação da história (e da
literatura) a partir da emergência das pequenas narrativas, estão também em xeque
quando se entra no campo das escritas de si, sobretudo no âmbito das literaturas
migrantes. Ouellette-Michalska aproxima as duas fragilizações da noção de verdade, a
histórica e a literária, situando a autoficção em um espaço intermediário:
REFERÊNCIAS
CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal = Diário de um retorno ao país natal.
Tradução de Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: EdUSP, 2012.
HAREL, Simon. L’étranger en personne. In: _____ (Org.). L’étranger dans tous ses états:
enjeux culturels et littéraires. Montreal: XYZ, 1992. p. 9-26.
KOKIS, Sergio. L’amour du lointain: récit en marge des textes (Collection Prise Deux).
Montreal: Lévesque éditeur, 2012.
______. Solitude entre deux rives. Tangences, n. 59. Rimouski: UQAR, 1999. p. 133-137.
Disponível em: <http://www.erudit.org/revue/tce/1999/v/n59/025998ar.html>. Acesso: em 24
set. 2013.
334
______. Depoimento ao canal Hachette Vidéos. 2009b. Disponível em:
<http://www.youtube.com/ watch?v=iu1SNYvDMQk>. Acesso em: 15 ago. 2013.
______. J’écris comme je vis: entretien avec Bernard Magnier. Outremont: Lanctôt, 2000.
LAPOINTE, Josée. Sergio Kokis: l’année Kokis. LaPresse.ca. 2010. Disponível em:
<http://www.lapresse.ca/arts/livres/201010/15/01-4332682-sergio-kokis-lannee-kokis.php>.
Acesso em: 9 out. 2013.
LAROCHE, Maximilien. Du bon usage des écrivains qui viennent de loin. Tangences n. 59.
Rimouski: UQAR, 1999. p. 20-25. Disponível em:
<http://www.erudit.org/revue/tce/1999/v/n59/025998ar.html>. Acesso em: 24 set. 2013.
NEPVEU, Pierre. Dire la compléxité du réel: entretien avec Julien-Bernard Chabot. Chameaux
n. 3. Québec, 2010, p. 15-20. Disponível em: <http://revuechameaux.wordpress.com/
numeros/n%C2%BA-3-automne-2010/>. Acesso em: 8 ago. 2013.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus,
1997.
335
O ARQUIVO PESSOAL DE ARIOVALDO MATOS: “LUGAR DE
MEMÓRIA” E RESISTÊNCIA1
1
Mesa-redonda Arquivo: lugar de memória.
2
Doutora em Literatura e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
3
Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora associada do
Instituto de Letras da UFBA.
336
Key-words: personnel archive; memory; autobiography; Ariovaldo Matos.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
337
documentos de processo, bem como a documentação extratextual que os cerca. O espaço
escolhido para armazenar e salvaguardar materiais tão diversos é o arquivo pessoal4.
O APAM foi o espaço selecionado pelo escritor baiano Ariovaldo Matos para a
(re)construção da narrativa de sua vida a partir de sua própria perspectiva. Os documentos
que o compõe foram convenientemente reunidos no seu gabinete particular, lugar onde
poucos foram autorizados a entrar. Conforme Fred Matos (2010), em entrevista concedida
a esta pesquisadora:
Depois que meu pai morreu tivemos que vender a casa, na qual
moravam, na época, além do Ari, minha mãe e Zé. Compramos
então um apartamento porque não tínhamos como manter a casa,
e no apartamento não cabia todas as coisas (MATOS, 2010).
Após a referida mudança, parte desta documentação foi entregue aos cuidados do
amigo Guido Guerra, a quem Ariovaldo Matos muito estimava e costumava compartilhar
suas ideias e discutir seus textos. Com a morte de Guido Guerra, em 2006, o material
reunido por Celi Guerra, sua viúva, foi entregue aos cuidados de José Ricardo Malaquias
4
Partindo do que afirma Bellotto (1991, p.171), que “a conceituação de arquivos pessoais está embutida na
própria definição geral de arquivos privados, quando se afirma tratar-se de papéis produzidos por
entidades ou pessoas físicas de direito privado [...]”, decidiu-se utilizar a nomeação arquivo pessoal,
para o conjunto de documentos legados por Ariovaldo Matos, uma vez que esta melhor lhes representa.
338
Matos, filho de Ariovaldo Matos. Este, por sua vez, deixou tal documentação aos
cuidados de Sérgio Costa5, que os armazenou em seu escritório. No início de 2011, após
o contato com os demais filhos do autor, esse material foi cedido para a pesquisa da
ETTC, aos cuidados desta pesquisadora que preparou a documentação para as
intervenções arquivísticas.
Além de lugar privilegiado para apreender memórias pessoais, dando ênfase à vida
social e a condição de intelectual de um indivíduo, o arquivo não se dissocia de uma
coletividade, que surge perpassada pela subjetividade do indivíduo que se arquiva. No
APAM acredita-se que a compulsão por guardar papéis aponta para uma dupla
funcionalidade: a de suplementar, uma memória daquilo que foi vivido por Ariovaldo
Matos, tendo em vista a demarcação do seu lugar na história; ao mesmo tempo, em que
suplementa a memória cultural e intelectual da sociedade baiana. Por esse motivo, seu
arquivo pessoal é a expressão direta do cotidiano e do contexto em que foi instituído,
funcionando como via de acesso à mentalidade de uma época.
5
De acordo com Fred Matos [informação verbal], Sérgio Costa é um amigo da família.
339
Reinaldo Marques, em O arquivamento do escritor (2003), afirma que o
estabelecimento de relações literárias e afinidades intelectuais, em alguns casos, pode
mobilizar uma ação compartilhada na criação e na manutenção de arquivos. Acredita-se
que o APAM não tenha sido uma exceção quanto a este aspecto, pois se percebem casos
em que é possível entrever uma “alimentação” do arquivo por terceiros. Consta neste
arquivo, um envelope pardo, contendo a anotação manuscrita em tinta azul: “Papai
/Gazeta do Povo/ A Notícia/ Jornal de Notícias”, indicativo da manutenção do arquivo
por parte dos seus filhos, que enviavam a ele alguns excetos de jornais. Outro caso que
chama atenção, diz respeito a um envelope contendo apenas recortes de jornais que
circularam após a morte do escritor Ariovaldo Matos, dentre os quais se destacam aqueles
referentes a depoimentos de amigos, políticos e familiares; e homenagens póstumas.
De acordo com André Porto Âncona Lopez (2003), o ato de arquivar ocorre com a
finalidade de provar atividades realizadas. Assim, os documentos arquivísticos não
podem ser analisados no vazio, mas contextualizados, pois “as atividades do produtor são
expressas por documentos [que] mantêm com [estas] uma relação de indicialidade”
(LOPEZ, 2003, p.73). Por esse motivo, no que tange aos arquivos pessoais, é
imprescindível o respeito à individualidade do conjunto [documental], sem misturá-los à
documentos de outras origens6, no sentido de manter a singularidade orgânica, ao refletir
atividades, dinâmica e critérios da instância responsável pela acumulação” (HEYMANN,
2005, p.47).
6
Considerando que os arquivos pessoais, permanentes por natureza, devem ter seu fechamento com a morte
do titular, pressupõe-se que os acréscimos posteriores tendem a desvirtuar a lógica do arquivo quando
não inseridos de maneira criteriosa. O acréscimo de novos documentos recolhidos das mais diversas
origens é possível, mas somente após as devidas etapas de classificação e descrição tomando como
base o produtor dos documentos e a finalidade do arquivamento. Esses acréscimos devem ser inseridos
como complementos da organização primária, uma vez que seu conteúdo informativo preenchem
lacunas, ao mesmo tempo em que mantém viva parte da memória do titular, suplementando-a.
340
No sentido de identificar as estratégias e operações utilizadas por Ariovaldo Matos
para dar a ler sua história de vida, toma-se o APAM como um depositário de rastros no
sentido que lhes atribui Paul Ricoeur “a significância de um passado findo que, no
entanto, permanece preservado em seus vestígios” (RICOUER, 1997, p. 320-321). Dessa
forma, entende-se que o arquivo apresenta-se como ponto de emergência do qual emanam
diversas escolhas possibilitadas pelo comportamento ético e político do escritor que deixa
nele seus vestígios.
342
Dentre as práticas de arquivamento utilizadas por Ariovaldo Matos, no que tange a
ordenação e classificação dos materiais, destaca-se o tratamento dado aos recortes de
jornais pelo cuidado com sua disponibilização e conservação. As informações sobre suas
produções ou sobre temas e pessoas que lhe interessavam foram selecionadas, recortadas
e coladas, em geral, em papel ofício, no qual constava, em sua maioria: nome do jornal,
data completa, indicação de seção, autor e página7. Em alguns casos, quando se tratava
de publicações sobre uma mesma obra, estas eram reunidas e coladas num mesmo papel.
Diferentemente do tratamento dado estes materiais, os manuscritos de Ariovaldo Matos
encontravam-se armazenados em uma única caixa, sem ordenamento aparente.
Apresentam-se, em geral, fragmentários e não identificados.
7
Em alguns casos, utilizou-se carimbo com nomes dos jornais e contendo apenas as entradas data e assunto.
8
Benjamin (1985, p. 228) afirma que a criação de uma coleção está sujeita a uma relação do colecionador
com suas coisas que muitas vezes “não põem em destaque o seu valor funcional ou utilitário, a sua
serventia”. Por esse motivo há a necessidade de relacionar os objetos colecionados com informações
sobre a vida do colecionador para se tentar perceber o valor de uso dado a estes elementos.
9
Foram encontrados nos números do jornal O Momento, além de artigos de Ariovaldo Matos, artigos
assinados por Jorge Amado, Guido Guerra e Levi Vasconcelos.
343
Chamam à atenção também no APAM alguns documentos que mostram a rede de
relações estabelecidas entre Ariovaldo Matos e escritores que viveram sob as mesmas
condições políticas, econômicas, culturais e artísticas que ele. Das relações estabelecidas
pelo escritor baiano, cita-se sua amizade com o escritor Jorge Amado, com quem
comungara, ainda, a militância política. Consta no arquivo do autor uma carta enviada
por Jorge Amado – escritor já consagrado pela crítica nacional –, quando da censura à
peça O ringue, em 1975. Nesta, o já reconhecido escritor baiano se mostra solidário aos
protestos de Ariovaldo Matos, pela liberdade de expressão e direito de criação, contra o
abuso imposto pelos órgãos de censura ao escritor “cuja obra, nascida da realidade de
vida baiana, aumenta de importância a cada dia” (AMADO, 1975).
A percepção desse indivíduo, construído também a partir das redes sociais em que
esteve envolvido encontram eco em Pierre Bordieu (2006, P. 185)
344
economia, temas estes ligados as atividades desenvolvidas pela ADEMI, da qual o
escritor foi membro.
É possível, então, pensar o APAM enquanto narrativa auto/biográfica, uma vez que
muitos dos registros armazenados permitem reconstruir parte da história de vida de
Ariovaldo Matos. Estes documentos, por sua vez, não permitem encerrar uma cronologia
harmônica dos fatos que compõem a trajetória de vida do escritor baiano, nem
determinam uma sucessão linear de eventos ou manifestam uma coerência entre estes. O
arquivo, enquanto narrativa de (re)construção de si, expressa o tempo e a vida em que foi
erigido, atendendo às regras fixadas pelas circunstâncias do momento e do contexto em
que o sujeito arquivante se encontra inserido. Como a narração, o arquivo é um construto
social10.
Leonor Arfuch (2009) ainda esclarece que a demarcação dos eventos que compõem
uma narrativa, tanto num relato autobiográfico como num arquivo pessoal literário, é
entrecortada pelo esquecimento e por silêncios, denunciando que “os rastros são
frequentemente fragmentários e a parte somente adquirem sentido frente a uma totalidade
hipotética, ainda que inalcançável” (ARFUCH, 2009, p. 374). Acerca do APAM, mesmo
10
De acordo com Marques (2000, p. 35) faz-se necessário desnaturalizar e desconstruir “a intenção que
totalizou um arquivo, e desvelando seu caráter de universo fragmentário, de artifício, de construção
social, numa atitude típica da pós-modernidade, que desconfia do que se presume natural, da verdade
absoluta”.
345
contendo informações de eventos variados, ainda assim, não se consegue abarcar a vida
de Ariovaldo Matos em sua totalidade. Tal fato pode ser comprovado pela lacuna
existente acerca de sua produção dramatúrgica, representada no arquivo por apenas dois
fragmentos de textos.
346
A forma como o documento é disposto no arquivo não é aleatória, casual, expõe o
comportamento ético e político de quem o organiza (MOREIRA, 2008, p. 3). Ao tratar
da “experiência biográfica”, Jacques Ravel salienta que uma biografia, assim como um
arquivo pessoal, “pode ser relida [o] como um conjunto de tentativas, de escolhas, de
tomadas de posição diante da incerteza. Ela não é mais pensável apenas sob a forma da
necessidade [...], mas como um campo de possibilidades entre as quais o ator histórico
teve que escolher” (RAVEL, 1998, p.38).
A obra vive a sua vida. Aliás, a significação total de uma obra não
pode ser definida simplesmente nos termos de sua significação
para o autor e seus contemporâneos (a primeira recepção), mas
deve, de preferência, ser descrita como o produto de uma
acumulação, isto é, a história de suas interpretações pelos leitores,
até o presente.
Pensando no APAM e nas possibilidades de interpretações do mesmo, percebe-se
que o sentido dado à narrativa de vida proposta por Ariovaldo Matos, ali representada,
supera os limites temporais e espaciais. A cada leitura, a cada descoberta de relações entre
os documentos, a construção do arquivo pode ser ressignificada e atualizada permitindo
347
uma “fusão de horizontes [...] que preserva o passado no presente” (COMPAGNON,
2010, p. 63).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seguindo os vestígios deixados por Ariovaldo Matos, tem-se buscado ler o seu
arquivo, tomando como base o que propõe Fausto Colombo (1991): o arquivo como
itinerário. Desse modo, o estudo do arquivo privado do escritor baiano parte,
primeiramente, do itinerário criado pelo escritor na organização do arquivo, passando ao
traçado de um novo percurso de leitura, criado a partir da inserção de outras narrativas,
de outros vestígios arqueológicos buscados em outros arquivos.
REFERÊNCIAS
ARFUCH, Leonor. A auto/biografia como (mal de) Arquivo. In: SOUZA, Eneida Maria
de; MARQUES, Reinaldo (Orgs). Modernidades tardias na América Latina. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2009.
348
ARTIÉRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11,
n. 21, p. 09-32, 1998.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão e Irene Ferreira. 4. ed.
Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2003.
MATOS, Fred. Sobre meu pai. Salvador, 11 nov. 2010. Informação verbal enviada por e-
mail à Mabel Mota.
MIRANDA, Wander M. (Org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
p.141-156.
349
Multidisciplinares em Cultura. Anais... Salvador: 2008. Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14358.pdf. Acesso em: 10 ago. 2010.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto
História. São Paulo: Departamento de História de Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo / PUC-SP, n.10, 1993, p. 07-28. Disponível em<
http://www.pucsp.br/projetohistoria/downloads/revista/PHistoria10.pdf> Acessado em:
02 maio 2011.
RICOUER, Paul. Tempo e narrativa – Tomo III. Tradução Roberto Leal Ferreira. São
Paulo: Papirus, 1997.
350
LITERATURA E MUSEOLOGIA: UM ENFOQUE
INTERDISCIPLINAR1
Nos últimos tempos a consulta aos fundos documentais nos museus literários
motivou pesquisadores das áreas de Literatura e História a estabelecerem hábito frequente
de coleta de dados. Os papéis do arquivista, bibliotecário e museólogo estão sendo mais
exigidos nas instituições afins, consequentemente, a produção intelectual vem crescendo
cada vez mais no país e os acervos literários vêm se transformando em verdadeiros
laboratórios de pesquisa documental, não só no campo literário como também no campo
histórico.
352
Andrade, em 1936, quando este último foi designado diretor da instituição durante a
gestão de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde no governo Vargas (1930-
1945). O SPHAN conceituou como patrimônio a ser preservado “o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país cuja conservação seja de interesse público, quer por
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (LEMOS, 2004, p. 42-43). Nesse
mesmo sentido, em Minas, na década de 1960, figuras como o poeta Affonso Ávila,
Francisco Iglesias, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Berenice Menegale e outros,
também se empenharam na captação de recursos para as primeiras providências a serem
tomadas para realização do tombamento dos monumentos/ documentos e igrejas do
Barroco Mineiro já em condições bastante precárias.
353
configuram uma ‘disciplina’, mas uma área onde diferentes disciplinas interagem,
visando o estudo de aspectos culturais da sociedade” (HALL apud ESCOSTEGUY, 1998,
p. 88). Já a crítica biográfica se propõe a considerar uma articulação cada vez mais ampla
entre obra e vida, considerando a produção documental do escritor como uma
possibilidade de discurso, na qual se observa uma instigante ficcionalização do sujeito
por si próprio através de seu arquivo.
354
fotografias, obras de arte, mobiliário e objetos pessoais dos escritores Henriqueta Lisboa,
Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior, Abgar Renault e Cyro dos Anjos, além das
Coleções: Ana Haterly, Aníbal Machado, Alexandre Eulalio, José Osvaldo de Araújo,
Valmiki Villela e Genevieve Naylor.
O Acervo é motivo de orgulho para a Universidade por pelo menos dois motivos:
o pioneirismo na criação de um espaço com a configuração de uma área museográfica e,
obviamente, o fato de evitar a evasão de arquivos mineiros para outros estados, a exemplo
355
dos fundos de Guimarães Rosa, Pedro Nava, Lúcio Cardoso e Carlos Drummond de
Andrade. É importante salientar que o Acervo não se limita a contemplar a guarda de
fundos apenas de escritores canonizados. Na verdade, há um objetivo mais amplo, que é
a constituição de um espaço aberto para a memória literária e cultural, componentes
indispensáveis do constante processo de modernização cultural do país, independente do
que convencionalmente se entende por notoriedade pública.
Nota-se que nas últimas décadas está se dando a devida ênfase à captação,
organização e catalogação de documentos diversos de bibliotecas expressivas, de
pertences representativos de gerações passadas, com o intuito de adequá-los a um novo
conceito de existência física e cultural; ou seja, de um arquivo/ museu/ biblioteca. Esse
novo conceito físico-cultural, destinado à alocação dos acervos literários, coloca em voga
uma nova concepção de museu, que deixa de ser um simples espaço de contemplação,
estático e distante do observador; e passa a ter uma estrutura que lhe confere dinamismo.
Transformado em espaço de interação, possibilita a revitalização do antigo na
contemporaneidade, à medida que convida o pesquisador a perpassar a dimensão de uma
outra existência, que neste determinado momento – o do encontro, o do contato – interage
consigo e assim cria novas possibilidades de discursos. Essa nova concepção veio projetar
a imagem vinculada a um novo tipo formal de laboratório, um laboratório consolidado e
comprometido com o debate, o intercâmbio, a interarte e a interlocução de várias linhas
de pesquisa, afinal, embora saibamos que
356
No Brasil, os historiadores brigam pelos conceitos e não pela
documentação. Os conceitos dão retorno até certo ponto. Só recorro a
eles pragmaticamente. Leio e releio os documentos. Aprendi a nunca
desistir deles. (RIGUEIRA JR., 2008)
Isso motiva cada vez mais a apropriação dos arquivos para o enriquecimento da
memória cultural, sem negar suas características subjetivas, mas, antes, e as toma como
formas cada vez mais democráticas de se reinventar o passado, abrangendo novas áreas
do conhecimento no sentido de produzir novos enunciados e operações do nosso
imaginário cultural. Derrida, em seu ensaio Mal de arquivo, coloca a seguinte questão:
“Não se renuncia jamais ao poder sobre um documento, sobre sua detenção, retenção ou
interpretação.” (2001, p. 32).
357
Almeida, em seu espaço arquivístico podemos deduzir seu envolvimento especial com
algumas artes, como por exemplo, com a música, conforme sinaliza seu piano francês
Pleyel, fabricado no início do século passado, peça formidável de seu acervo. Outro
objeto atraente de seu ambiente caseiro é um painel, cuja peculiaridade está na grande
diversidade de sua composição: fotografias de familiares e amigos (Carlos Drummond de
Andrade, Pedro Nava, Cecília Meireles, entre outros), cartões postais, recortes de revistas
nos quais destacam-se lugares como Veneza, figuras da cultura antiga como as rainhas
Cleópatra e Nefertiti, imagens de vasos e estátuas da cultura greco-romana,
personalidades modernas como Nietsche, Ghandi, Sabin etc. Sua vivência, inclusive,
aparece permeada pela presença de elementos museológicos, bem como, do ato de
colecionar, influência da própria família, que esteve envolvida com o barroco mineiro e,
mais especialmente, do marido, o museólogo paulista Antônio Joaquim de Almeida, na
criação e direção do Museu do Ouro de Sabará, local que lhe foi bastante íntimo. Outros
exemplos performáticos que costumam se destacar diante dos visitantes são: as coleções
de miniaturas eróticas da Índia e da Guatemala, de Oswaldo França Júnior; o busto e a
máscara mortuária de Murilo Rubião; o fardão e a espada, respectivamente, de Cyro dos
Anjos e de Abgar Renault, os quais usaram na ocasião da solenidade de posse como
membros da Academia Brasileira de Letras.
358
A partir da observação dos fundos do Acervo de Escritores Mineiros da UFMG é
possível suspeitarmos prováveis manias, impulsos de vaidade, excesso de zelo,
compulsão por colecionar desde livros até miniaturas, canetas, suvenires, selos, cartões
postais, cachimbos e cinzeiros, flâmulas etc., pois bibliotecas e arquivos pessoais
guardam em si memórias de vida. Segundo Artières, “o arquivamento do eu não é uma
prática neutra, é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele
se vê e tal como ele desejaria ser visto” (2000, p. 11). Podemos dizer, então, que os
arquivos literários, por um lado, permitem entrever imagens e representações do escritor,
num exercício de construção do sujeito por si mesmo, por meio de, como afirmava
Benjamin (1987, p. 227-235), um impulso lúdico próprio da infância.
Por outro lado, na interface entre os Estudos Literários e Culturais, sobretudo, nas
perspectivas da crítica biográfica, como cada ambiente construído por cada um desses
escritores, hoje recriados, numa perspectiva museográfica no Acervo de Escritores
Mineiros da UFMG, propicia a articulação de discursos em prol da construção de uma
memória social? Que diálogos esse recinto íntimo de criação e reflexão propõem em sua
passagem de privado a público? Ora,
Pois o que seria uma coleção senão uma ‘forma de rememoração prática’?
Formada por objetos destacados de seu uso cotidiano, a coleção consiste
na escrita de uma autobiografia paralela, num suplemento de sentido
359
produzido por um trabalho inconsciente, no qual o sujeito deborda das
margens do livro para escrever-se em bilhetes esparsos... (LIMA, 2000, p.
82)
O ambiente museológico literário se inscreve, pois, como uma obra poética e
performática, cujas possibilidades podem ser tão infinitas quanto a da escrita ficcional:
Aliás, “escrever, talvez tenha sido o primeiro ato performático consciente desde os
tempos em que os homens lançavam seus desenhos nas cavernas, até o encontro coma as
formas idiomáticas e discursivas de representação.” (BEIGUI , 2011, p. 29). A prática de
gerar arquivos possibilita ao indivíduo a construção de si para si, e, por vezes, para outros.
E, sendo assim, há que se considerar que:
Dessa maneira, a análise de um arquivo literário pode resultar numa ampla rede de
discursos e informações que, consequentemente, levarão à formação de uma memória,
que poderá interagir em diversos níveis da produção dos estudos literários e culturais,
sobretudo por seu caráter polivalente, que se desdobra e multiplica-se infinita e
indefinidamente a cada novo acesso. Sendo importante salientar que a análise do arquivo
literário não assume um compromisso, necessariamente, com a biografia do escritor, um
compromisso de confirmá-la ou não através deste ou daquele objeto, documento, carta
etc. A relação que há entre biografias e esses arquivos incide na especificidade narrativa
comum a ambas as realizações. Arfuch (2009) trata de elucidar esse traço característico
no sentido de corroborar para a compreensão das possibilidades do trabalho com os
arquivos literários:
361
acontecimento”. (ARFUCH, 2009, p. 370-373)
O trabalho com os acervos literários aspira um novo olhar sobre a área de literatura,
artes e mídias na rede de relações intelectuais dos escritores, de sua formação e construção
como indivíduos culturalmente ativos, capazes de articular o próprio passado e suas
possíveis representações. No Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, como nos demais
museus, muitas vezes, objetos banais, adquirem nova aura sob a égide das vanguardas do
século XX, as quais deram impulso para a crise da representação, o fim das posturas e
valores estéticos legados pelo Renascimento. Houve em contraponto uma emergência,
assim, de atuações, ou, melhor dizendo, performances, consideradas marginais na
composição de novos espaços institucionalizados, os museus modernos, que, contudo,
ainda trazem consigo enorme herança de uma tradição imperativa. Todavia, novas
possibilidades passaram, efetivamente, a existir. Por outro lado, certas tradições talvez
tenham sido positivamente resgatadas com a iminência dos espaços museológicos
performáticos. Melot (2012, p. 130-131) ressente-se do abandono às casas dos escritores.
Ora, o que é o Acervo de Escritores Mineiros senão, também, uma “casa de escritores”?
Um espaço no qual o visitante poderá ter contato com a escrivaninha de escritores como
se estivesse diante do “altar [...] em que um mistério foi consumado”? A explicação para
o envolvimento nessa atmosfera é simples: por nos configurar uma sociedade da escrita,
há um fascínio natural em relação às ferramentas e aos lugares da escrita.
REFERÊNCIAS
ARFUCH, Leonor. A auto/biografia como (mal) de arquivo. Tradução de Rômulo Monte Alto e
Mayla Santos Pereira. In: SOUZA, Eneida Maria de; MARQUES, Reinaldo (Org.).
Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: UFMG: 2009. p. 370-382.
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos históricos – Arquivos Pessoais, Fundação
Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 2000. p. 9-34.
BEIGUI, Alex. Performances da escrita. In: Aletria, Performance, Belo Horizonte, v. 7, n.15, p.
27-36, jan./abr 2011.
CLÜVER, Claus. Inter textus/ inter artes/ inter media. In: Aletria, Intermidialidade, Belo
Horizonte, v. 6, n.14, p. 11-41, jul./dez 2006.
362
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem-malícia. In: Diante do tempo. Trad. Vera Casa Nova e
Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG. (No prelo).
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Uma introdução aos Estudos Culturais, Revista FAMECOS, Porto
Alegre, nº 9, dezembro 1998, semestral. p. 87-97
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.
LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. O que é patrimônio histórico? São Paulo: Brasiliense, 2004.
LIMA, Rachel. Inventários críticos. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 4, n. 3, p. 79-85, jul./dez. 2000.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro. Perdida entre signos: literatura, artes e mídias, hoje. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras, 2012.
RIGUEIRA JR., Itamar. Conversa com três intelectuais "setentões", Boletim da UFMG, n. 1603,
ano 34, 31/03/2008. Disponível em: <https://www.ufmg.br/boletim/bol1603/5.shtml>. Acesso
em: 26 mai. 2018.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
363
O DESVIO DO OLHAR EM DOULEUR EXQUISE, DE SOPHIE
CALLE1
Marcio Freitas2
Resumo: O artigo investiga imagens da artista francesa Sophie Calle para a instalação
fotográfica Douleur exquise, de 2003. Nessa obra, Calle reconstitui seu processo de luto
por um rompimento amoroso, pareando seus textos autobiográficos com relatos de dor
cedidos por sujeitos anônimos. Nas fotografias que acompanham os depoimentos alheios,
Calle parece apagar as marcas da articulação histórica, distanciando-se em escolhas
similares a de imagens de publicidade. Neste gesto de esvaziamento, a artista equipara
suas imagens a superfícies opacas, instigando o olhar do espectador.
Palavras-chave: Sophie Calle; fotografia; autobiografia.
Abstract: This article investigates images presented by French artist Sophie Calle in her
photographic installation Exquisite pain (2003). In the work, Calle rebuilds her process
of grieving after a love breakup, pairing her autobiographical texts with narrations of pain
given by anonymous subjects. On the images that accompany the testimony of others,
Calle seems to erase the marks of historical articulation, distancing herself in choices
similar to those of advertisements. With this gesture of emptying, the artist transforms
her photos into opaque surfaces, prompting the viewer's gaze.
Keywords: Sophie Calle; photography; autobiography.
1
Mesa-redonda Potências da autoficção.
2
Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
364
como uma latência, e apenas aos poucos certas percepções ganharam consistência, com
repetidas visualizações de pedaços dispersos da obra.
Na segunda seção, há a ampliação de uma única foto.3 Nela, vê-se uma cama de
solteiro com cabeceira de madeira escura; uma mesinha também de madeira à direita;
sobre a mesinha há um cinzeiro, um abajur de haste longa dourada e pedaços de papel; a
3
Cf. reprodução digital das páginas 198 e 199 de CALLE, Sophie. Douleur exquise. Paris: Actes Sud,
2003. Disponível em: <http://24.media.tumblr.com/tumblr_ma7cio0Vbe1qaihw2o1_1280.jpg>. Acesso
em: dez. 2013.
365
cama está forrada por um lençol branco, levemente amassado, como se houvesse sido
recentemente usada; sobre ela há um travesseiro branco, à esquerda, e um telefone
vermelho, à direita, um modelo antigo de telefone com roda para discagem, seu receptor
está colocado no gancho, o fio preto estendido desde a mesinha. Vê-se apenas a metade
superior da cama. O telefone está mais ou menos centralizado na horizontal e ocupa a
parte inferior da figura. O abajur está desligado. Há uma luz cuja fonte não é possível
identificar, ela ilumina o ambiente uniformemente, aparecendo refletida na madeira da
cama e na haste do abajur. Vê-se, ainda, um pedaço do papel de parede, sobre a parede
bege atrás da cama, com um padrão floral na cor verde, no topo da figura.
Esta imagem ilustraria o momento pontual da inflição da dor, a dor para a qual as
variadas fotos de viagem apontam. A centralidade dessa dor no sistema sígnico da obra
está indicada tanto pela contagem regressiva como pelo tamanho comparativamente
avantajado dessa reprodução fotográfica nas paredes do museu. A foto, contudo, não
revela em si a dor mencionada, nada explicita causa ou contexto.
4
“Em 1984, o Ministério dos Negócios Estrangeiros me concedeu uma bolsa de estudos de três meses no
Japão. Eu parti no dia 25 de outubro sem saber que essa data marcaria o início de uma contagem regressiva
de noventa e dois dias que culminariam em um rompimento, banal, mas que eu vivi como o momento mais
doloroso da minha vida. Eu culpo essa viagem por isso”.
“De volta à França, em 28 de janeiro de 1985, eu escolhi contar meu sofrimento ao invés de meu périplo.
Em contrapartida, eu perguntei a meus interlocutores, amigos ou encontros casuais: ‘Quando na sua vida
você mais sofreu?’ Essa troca terminaria quando eu tivesse esgotado minha própria história de tanto tê-la
contado, ou mesmo relativizado minha dor diante da dor dos outros. O método foi radical: em três meses
eu estava curada. Concluído o exorcismo, temendo uma recaída, abandonei meu projeto. Para exumá-lo
quinze anos mais tarde” (tradução nossa).
366
Consonante com tal proposta, a terceira seção apresenta relatos escritos, tanto da
artista quanto de seus conhecidos, em uma sequência de painéis. Os painéis estão
dispostos em uma série de duplos: na esquerda, em painéis de fundo preto com letras
brancas, a artista conta detalhes do término, consumado no dia 24 de janeiro de 1985, por
telefone, no quarto 261 do Hotel Imperial em Nova Déli, esmiuçando também os
precedentes do relacionamento com o então namorado; na direita, em painéis de fundo
branco com letras pretas, sujeitos anônimos contam experiências autobiográficas de
sofrimento e dor, não necessariamente relacionadas a rompimentos amorosos. Cada
painel de fundo preto tem, acima do texto, a reprodução de uma mesma foto, a foto da
segunda seção, da cama com o telefone vermelho. Cada painel branco tem, acima do
texto, uma foto diferente relacionada ao relato nele contido. Esses painéis duplos
encontram-se espalhados pelo espaço da galeria, e há a indicação de uma ordem correta
para percorrê-los5. Cada painel de fundo preto relata uma versão ligeiramente diferente
da história autobiográfica de Sophie Calle, com a mesma foto, e cada painel de fundo
branco contém uma nova história com uma nova foto. Não há incoerências nos múltiplos
relatos de Calle à esquerda, a mesma história se repete com adições de alguns detalhes e
sínteses de outros. Os relatos anônimos, por sua vez, não estão diretamente ligados uns
aos outros, em momento algum são evidenciadas conexões narrativas entre os indivíduos
e situações apresentados.
5
Frequentemente, a obra é exposta com um conjunto reduzido de painéis. Cf. reprodução no site do
Centre Georges Pompidou, Paris. Disponível em:
<http://mediation.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-beaute/images/xl/13_calle.jpg>. Acesso
em: dezembro/2013.
6
“Há XX dias, o homem que eu amo me deixou” (tradução nossa).
367
com a cor do fundo, variando, em escalas de cinza, do branco do 5º dia ao preto ilegível
do 99º dia.
C’est une image de bonheur qui m’a fait le plus souffrir. Cela se passait
en 1964. Au printemps. Sur le boulevard Montparnasse. Un dimanche
matin ensoleillé. Je possédais un voiture américaine bleu pâle, avec un
intérieur en cuir bleu. La femme que j'aimais et notre fils, en
imperméable jaune citron, m'accompagnaient. En conduisant, j'ai
réalisé la rareté d'un tel moment de félicité. Ce bonheur, je l'ai perdu, et
cette image m'est revenue, tel un couteau […] (CALLE, 2003, p. 207).8
7
“Ele se chamava Jean. Eu tinha vinte e sete anos, ele, quarenta e sete. Nós vivíamos juntos. Era a paixão,
a paixão verdadeira. Naquela manhã, eu acordei, eu fui ao banheiro. Havia uma carta pousada sobre a pia.
Algumas palavras complicadas, não me lembro mais quais, que diziam que precisávamos nos separar. [...]
Como uma sonâmbula, por meses eu me retirei do mundo, sofri noite e dia. [...] E aquela pia me assombrava.
A brutalidade feroz da carta branca sobre a pia. Talvez seja essa a razão pela qual, depois de doze anos, eu
moro em um apartamento sem banheiro” (tradução nossa).
8
“É uma imagem de felicidade que mais me fez sofrer. Isso aconteceu em 1964. Na primavera. No
Boulevard Montparnasse. Uma manhã ensolarada de domingo. Eu tinha um carro americano azul claro,
com o interior de couro azul. A mulher que eu amava e nosso filho, vestindo uma capa amarelo-limão,
estavam comigo. Dirigindo, percebi a raridade de tal momento de felicidade. Essa felicidade, eu a perdi, e
essa imagem voltou a mim, tal como uma faca” (tradução nossa).
368
Nesse caso, a imagem ilustra o reverso da dor, ela é como a memória de algo valioso
que foi perdido, e a dor associa-se à perda – e, descobrimos mais adiante em seu relato,
trata-se também de uma perda amorosa, ainda que não se tenha dados precisos sobre causa
ou contexto da separação.
É particular a esta fotografia o fato de que apenas o carro está colorido de azul, e o
resto da imagem está em preto e branco. Há, na terceira seção de Douleur exquise, tanto
fotos coloridas como em preto e branco, não há nessa escolha uma significação
identificável pelo espectador da obra. O efeito de coloração sobre esta foto específica
ressalta o azul claro, citado no relato. Mas não se encontra a reiteração desse tipo de efeito
9
Cf. registro fotográfico da instalação de Douleur exquise, contendo a foto citada. Disponível em:
<http://www.thewowa.com/upload/rss_download/20130428/600_600/201304280806064655.jpg>.
Acesso em: dez. 2013.
10
Cf. registro fotográfico da instalação de Douleur exquise, contendo a foto citada. Disponível em:
<http://www.portlandart.net/archives/images/calle_exquisite_pain.jpg>. Acesso em: dez. 2013.
369
(comum, por exemplo, em fotos de casamento) em outras fotos da série. Intuo que não
estou apenas diante de uma tentativa de produção de beleza a partir do jogo de cores.
Parece haver aí uma espécie de falsificação, retenho essa impressão.
11
“Foi durante o inverno de 1976. Em novembro. Eu tinha vinte e cinco anos. Eu ensaiava uma peça no
teatro de Nanterre. À tarde, durante o ensaio, eu senti subitamente uma sensação de angústia, uma
inquietude estranha. Eu saí do palco para falar, ao telefone, com o homem que eu amava. No foyer deserto,
havia um carpete vermelho e eu estava vestindo, naquele dia, um traje vermelho-vivo. [...] eu pedi para
falar com ele. A voz ao telefone respondeu que sentia muito, que não era possível. ‘Por quê?’ eu questionei.
Ela disse: ‘M. R. Faleceu’. Meu francês naquela época era aproximativo, eu insisti […]. Primeiramente
acreditei tratar-se de um mal-entendido, depois todo aquele vermelho desabou sobre mim. […] Hoje me
lembro da voz minúscula da moça que eu obriguei a me explicar a palavra falecido. A cabine telefônica
não existe mais. O vermelho também não, agora tudo é branco” (tradução nossa).
12
Cf. registro fotográfico da instalação de Douleur exquise, contendo a foto citada. Disponível em:
<http://4.bp.blogspot.com/_dKQZ3F2Seho/TSvgGJAWv5I/AAAAAAAABdU/tCQtcsRcKDc/s1600/Dou
leur+exquise.JPG>. Acesso em: dez. 2013.
370
a ver o pedaço de outro prédio, sombreado, que estaria atrás do fotógrafo, sem detalhes
específicos a notar. Abaixo do letreiro estão quatro grandes portas de entrada para o
teatro, fechadas. Abaixo delas, ocupando o terço inferior da fotografia, vê-se o piso do
pátio que leva ao teatro, com ladrilhos brancos retangulares. Não há áreas de sombras
sobre o piso do pátio, tampouco há objetos ou pessoas ocupando-o. Não é possível avistar
o contorno do prédio do teatro, o recorte da foto enquadra apenas o pedaço da fachada
que contém o letreiro com seu nome. A composição de cores da fotografia ressalta o
vermelho da pintura do prédio do teatro – cor tematizada na narrativa, na qual o depoente
cita a percepção metafórica de que “todo aquele vermelho desabou sobre mim”.
Assumo como hipótese que a concepção das fotos da terceira seção faz parte do
processo de exumação, em 2000, e não do processo de compartilhamento, de 1985. Ou
seja, no presente da criação da obra, Calle retoma os relatos, e, a partir desses registros
(orais ou escritos, não se sabe), ela cria imagens fotográficas para as situações narradas.
Minha hipótese é que, em vez de tomar um caminho biográfico talvez mais usual – que
seria o de pesquisar entre registros pessoais dos sujeitos biografados, seus objetos e
fotografias, como ela mesma fez na primeira seção do trabalho, com seus próprios
registros – ela se basta com os relatos e a partir deles propõe recriações fotográficas.
Há qualidades nas fotos que corroboram minha hipótese. Há um estilo que se repete
em todo o conjunto: a nitidez e ausência de borrados; a iluminação, que produz sombras
sutis sem chamar atenção demasiada para si nem deixar de mostrar claramente os objetos
centrais; a escolha de ângulos ligeiramente ousados – como a rua vista de cima, parecendo
bidimensional (CALLE, 2003, p. 235), ou a igreja vista de baixo, ressaltando sua
monumentalidade (CALLE, 2003, p. 239); e, ainda, os recortes fechados, que excluem
possíveis ruídos sígnicos, promovendo a centralidade da exposição. Tais escolhas, entre
371
outras, parecem supor a mão de um diretor de arte, que dispõe os elementos na cena com
precisão e apresenta um belo quadro-síntese. Essa uniformização informa da intervenção
de um profissional específico, dá a ver a presença de um estilo (um conjunto de operações
artísticas que reaparecem em diferentes instâncias).
Não há detalhe que contextualize a imagem da pia do primeiro relato: não sei se é
um modelo de pia recente ou antigo (percebo-a como modelo genérico), se a foto foi
tirada recentemente ou há 20 anos, se o objeto está novo ou desgastado pelo tempo. Não
sei onde ela está, se em uma casa ou em um banheiro público: é como se estivesse em
lugar nenhum e em tempo nenhum. Assim como a sacralização do relato, a pia foi
transformada em objeto ideal. Similar a ela é a cadeira que acompanha o relato de um
indivíduo que convalesceu durante três meses, sentado em uma cadeira (CALLE, 2003,
p. 241). A imagem mostra um modelo genérico de cadeira de madeira, banhada por uma
luz lateral que não facilita a visualização de detalhes específicos de sua superfície, e sem
nada informar sobre o espaço em volta, como se nada houvesse para além dela.
Walter Benjamin, em seu ensaio sobre o conceito de história, afirma que “articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”
(BENJAMIN, 1996, p. 224). O que é problemático nas fotos da terceira seção de Douleur
exquise é o apagamento das marcas dessa articulação histórica. A escolha de
reapropriação a partir dos relatos, em vez de afirmar o presente daquele que reinterpreta
(pois a criação artística que lida com a memória deve, inevitavelmente, reconhecer-se
como um ato de interpretação), parece eximir-se de tal responsabilidade, distanciando-se
em escolhas similares àquelas de certas fotos de publicidade (nas quais os objetos
retratados aparecem descontextualizados, pois interessam acima de tudo por seu potencial
de criar quadros sedutores).
Poder-se-ia considerar que Calle não viveu as dores anônimas, e que a distância
com a qual se apropria dos objetos seria uma distância intransponível, por não ter sido ela
sujeito das narrativas biográficas. Contudo, o mesmo gesto descontextualizador marca a
foto central do trabalho, do quarto de hotel em Nova Déli, supostamente sua própria
imagem-trauma. Nela, como descrevi anteriormente, os elementos (cama, travesseiro,
telefone, abajur) parecem idealmente equilibrados. Mesmo ali, não há qualquer elemento
mais pessoal, ou que cause estranheza. A foto se integra, em termos de luz, angulação,
recorte e disposição dos objetos, no conjunto de fotos dos relatos anônimos. Em
contrapartida, contrasta radicalmente com as fotos de viagem da primeira seção de
Douleur exquise, produzindo sentido com essa diferença e mesmo provendo uma chave
de leitura para esta análise.
373
a um silêncio “heroico” que recuse a figuração.13 Se, por um lado, suas fotos podem ser
descritas como claras, pertinentes, nunca tão falsas a ponto de deixar de invocar seu
estatuto documental, e informativas em uma justa medida, é inevitável desconfiar
precisamente dessa “justa medida”, do pareamento de confissões que tematizam o que há
de mais doloroso na experiência dos indivíduos (rupturas, perdas, mortes) com uma
fotografia algo ausente, algo distante.
Como espectador, ao me deparar com histórias reais sendo contadas a mim, espero
que uma imagem fotográfica adicione detalhes, que mostre ainda mais do que posso ler
ou ouvir. Essa expectativa vem em parte do costume com o fotojornalismo, que lida
diariamente com a evidenciação de relatos da realidade. Defronto-me, aqui, porém, com
uma redundância. Enquanto superfície legível, as fotos de Calle são dispensáveis: não
põem em questão o que é dito, não confirmam a veracidade do relato, e praticamente não
acrescentam detalhes. Em vez disso, são como planos de fundo: mal se olha para elas; são
como fotos de um álbum de casamento, não há surpresa; parecem propor uma prolixidade
tranquila. Mas não há nada de tranquilo nos relatos.
Julgo que tal pareamento, em Douleur exquise, opera uma espécie de jogo de
opacidade, passível de ser comparado àquele que Georges Didi-Huberman identifica na
obra de Tony Smith. Diferenciando a visibilidade – a evidência visual, aquilo que vemos
– da visualidade – o que pode ser produzido no jogo com o que vemos –, Didi-Huberman
cita os cubos de Smith como exemplos de uma volumetria evidente associada à potência
de produzir desvio: “Por mais que representem uma ordem de evidência visível, a saber,
uma certa clareza geométrica, elas rapidamente se tornam objetos de inevidência, objetos
capazes de apresentar sua convexidade como a suspeita de um vazio e de uma
concavidade em obra” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 105-6).
Há, nas escolhas de Sophie Calle para Douleur exquise, um esforço análogo de criar
visibilidades belas e ironicamente precisas, que possam também tornar-se inevidentes.
Suas fotos parecem almejar ser, em seu esvaziamento, em sua pretensão a certa
13
A respeito de tal silêncio “heroico”, Roland Barthes (2003, p. 58.) adverte, em sua reflexão a respeito do
Neutro: “o que é produzido contra os signos, fora dos signos, o que é produzido expressamente para não
ser signo é bem depressa recuperado como signo. [...] o próprio silêncio assume a forma de imagem, de
postura mais ou menos estoica, ‘sábia’, heroica ou sibilina”.
374
neutralidade, superfícies de desvio, opacas, nem via de acesso a um conteúdo fixo nem
espelho, mas lugar de jogo para o espectador.
A figuração pode ganhar, assim, outro status, sugerir outras operações receptivas –
pode tornar-se superfície de jogo. Em certa medida, a obra oferece ao espectador uma
ficção: não importa se o telefone esteve sobre a cama do modo que está sendo mostrado
na foto – suponha um telefone vermelho e suponha uma cama. Tal oferta é, sem dúvida,
problemática, pois a obra informa no início que tudo é realidade, ao expor detalhes
precisos sobre o procedimento de coleta dos relatos. A realidade de origem, porém, não
só é inacessível, mas deve aos poucos tornar-se irrelevante: percorrendo a obra, os relatos
anônimos passam um após o outro sem que haja a preocupação de identificar os relatores
ou de ligar as narrativas; cada novo relato é apenas mais uma iteração, que pode servir a
alguma coisa ou a nada, não há nada de relevante a se comprovar, ou mesmo a se ver.
Implícita nessa despreocupação pode estar uma liberação dos compromissos usuais do
espectador: não preciso me compadecer da dor do outro, não preciso investigar a verdade
dos fatos, não preciso de mais detalhes, posso acessar outra dor, minha dor, posso divagar.
Não é importante a revelação do próximo relato, não estou sendo guiado por um caminho
de revelações – a opacidade equipara, problematicamente, a figuração fotográfica a uma
superfície que facilita um jogo de desvios, e o desvio é do espectador.
375
reforçam mensagem alguma; ao contrário, lançam o outro no vazio da sua experiência
individual, na dificuldade, comum aos homens, de lidar com a dor.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Editora 34, 1998.
376
SOU UM NOME E UM SOBRENOME E QUANDO CASO ‘RECEBO’
OUTRO?!: RELATOS SOBRE A ALTERAÇÃO DO SOBRENOME
COM O CASAMENTO1
1
Mesa-redonda Família e Identidade.
2
Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
3
Doutora em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
377
experiências matrimoniais relacionadas à alteração dos sobrenomes das autoras, com o
advento do casamento, sob olhares lançados aos aspectos objetivos e subjetivos que este
ato pode estar representando, já que o sobrenome faz parte de um patrimônio simbólico
familiar que legitima o pertencer àquela família. Enquanto a tendência das autobiografias
é serem convencionais, nesse estudo valorizou-se o modo como as experiências informam
a autocompreensão.
Palavras-chave autobiografia; sobrenome; casamento.
Abstract: This study was based on the experiences of two researchers of the Research
Group "Family, (auto) biography and poetic" - UCSal / CNPq about the constitution of
the surname in marriage and invites us to reflect on some underlying themes, among them,
aspects of subjective character, involving the effects of name change, more objective
aspects, dealing with its legal character. From the autobiographical narrative, the
discussion moves the dimensions of the individual and the law, with theoretical support
of the systemic approach. A name, a surname, carry with them more than a word or
record, they are a milestone that puts us into and through a timeline that reflects our
lineage, our origins. The expression name has a generic meaning and comprises both the
first name and surname. As the name, so a form of individualized human being even after
death, is the person's name, along with other attributes of personality that distinguishes it
from the others within the society. To Venosa (2005), it is the most significant
manifestation of personality. When we are born, our parents received a name, we carry
throughout life, and their family surnames. After we grow and discover the condition
status of these surnames. And later, we noticed their reference also in our professional
life, in which we are associated to a curriculum, the training. But if, in the meantime, still
we got married, that's when we realize that "received" a family and that is typical of a
civil marriage, we use the same surname for socially demonstrate that we are now part of
it. Before this concern fit only for women, but after the new Civil Code, shall be either
the point of allowing her husband also add his wife's surname to his, if he wishes, or that
any one of the spouses take own surname and assume the entire partner. When two people
choose to form a couple, also form a new system, structured experiences stemming from
their families of origin and other marital and family experiences. In this perspective, this
study is linked to the movement from biographical narratives on matrimonial experiences
related to the change of surnames of the authors, with the advent of marriage under looks
thrown to the objective and subjective aspects that this act may be representing, as that
the name is part of a family heritage that legitimizes the symbol belonging to that family.
While the trend is being conventional autobiographies, this study appreciated the way the
experiences that inform self understanding.
Keywords: Autobiography; Conjugality; Childhood; Poetics
INTRODUÇÃO
378
objetivos, que tratam do seu caráter legal. A partir da narrativa autobiográfica, a discussão
transita as dimensões do indivíduo e da legislação, com aporte teórico da abordagem
sistêmica. Sabemos a importancia que o nome exerce na vida dos indivíduos e que um
nome e um sobrenome carregam em si mais do que uma palavra ou registro, eles são um
marco que nos posiciona dentro e através de uma linha do tempo que traduz nossa
linhagem, nossas origens. A expressão nome tem um significado genérico e compreende
tanto o prenome como o sobrenome. Sendo o nome, portanto, uma forma de
individualização do ser humano mesmo após a morte, é o nome da pessoa, juntamente
com outros atributos da personalidade, que a distingue das demais dentro da sociedade.
Para Venosa (2005), trata-se da manifestação mais expressiva da personalidade. Ao
nascermos, recebemos dos nossos pais um nome, que carregamos por toda a vida, e seus
sobrenomes de família. Depois crescemos e descobrimos a condição de status desses
sobrenomes. E, mais tarde, percebemos a referência deles também na nossa vida
profissional, em que somos associados a um currículo; a uma formação. Mas se, nesse
ínterim, ainda nos casamos, aí é que nos damos conta de que “recebemos” uma família e
que é comum, num casamento civil, utilizarmos o sobrenome dela para socialmente
demonstrar que agora fazemos parte dessa família. Antes, essa preocupação cabia
somente à mulher, mas, após o novo Código Civil, passa a ser de ambos, a ponto de
permitir que o marido também acrescente o sobrenome da esposa ao dele, caso deseje, ou
que qualquer um dos cônjuges tire o próprio sobrenome e assuma por inteiro o do
parceiro. Quando duas pessoas escolhem formar um casal, formam também um novo
sistema, estruturado a partir das experiências advindas de suas famílias de origem e de
outras experiências matrimoniais e de casal. Nessa perspectiva, o presente estudo vincula-
se ao movimento biográfico a partir de narrativas sobre as experiências matrimoniais
relacionadas à alteração dos sobrenomes das autoras, com o advento do casamento, sob
olhares lançados aos aspectos objetivos e subjetivos que este ato pode estar
representando, já que o sobrenome faz parte de um patrimônio simbólico familiar que
legitima o pertencer àquela família. Enquanto a tendência das autobiografias é serem
convencionais, nesse estudo valorizou-se o modo como as experiências informam a
autocompreensão.
379
efeitos da mudança de nome4, entre outros que se encontram relacionados à subjetividade
e aspectos mais objetivos, quando se trata do caráter legal a ele relacionado. Portanto, a
presente discussão transitará entre estas duas dimensões: a do indivíduo e a da legislação.
Para tanto, buscamos o aporte teórico da abordagem sistêmica.
4
Nome aqui se refere ao nome de registro civil do indivíduo composto de nome e sobrenome.
380
consequência do casamento, ocorre a relação matrimonial que se estabelece entre os
cônjuges. A união de fato não é casamento, mas assume algumas das suas características.
Não é regulada de modo semelhante ao casamento, embora produza alguns efeitos de
Direito.
Neste sentido observa-se que o Direito comunga na definição de família com idéias
da Antropologia de Lévi-Strauss (1982), para quem parentesco e família dizem respeito
a fatos básicos da vida (nascimento, acasalamento e morte), sendo a família, no entanto,
um grupo social concreto resultante da combinação de três tipos de relações consideradas
básicas: a relação de descendência (entre pais e filhos); a relação de consanguinidade
(entre irmãos) e a relação de afinidade, que se dá através do casamento, pela aliança.
A afinidade é o vínculo que liga um dos cônjuges aos parentes do outro cônjuge
(art. 1584 CC). A fonte da afinidade é o casamento, não cessando, porém, com a
dissolução deste (art. 1585 § 2º do CC): não se pode falar em extinção do parentesco em
linha reta, mesmo quando a relação que lhe deu origem inexista.
381
parentes (pais, filhos, sogros) está destituída de caráter moral, tendo por certo, o caráter
mais funcional socialmente que é o da exogamia.
Como criação legal, o parentesco por afinidade surge da relação familiar decorrente
do vínculo do casamento ou das relações entre companheiros em razão da união estável.
É um vínculo derivado exclusivamente de norma legal, não havendo qualquer ligação de
sangue. Aqueles que estabelecem uma relação por afinidade, na maioria das vezes, não
possuem parentes consanguíneos, sendo um estranho ao outro. O art. 1595 § 1º limita o
parentesco por afinidade apenas aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do
cônjuge, o que implica em dizer que são parentes por afinidade o sogro, a sogra, nora,
genros e cunhados. Cônjuge não é parente; cônjuge é cônjuge!
382
O atual Código Civil (Lei nº 10.406, de 2002) não confere ao homem a chefia da
sociedade matrimonial. O art. 1.511 determina que o casamento estabelece comunhão
plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Assim, a mulher
assume, ao lado do seu consorte, a direção da sociedade conjugal e ambos são
responsáveis pela criação e pela educação dos filhos, submetendo os cônjuges ao dever
de apoio material e moral mútuo.
Se, por um lado, estas modificações brindam a homens e mulheres com um dos
princípios básicos dos direitos humanos, por outro, exigem dos nubentes o exercício do
diálogo, da compreensão das reais motivações para a tomada de decisão, em momento
tão significativo na vida de ambos e de suas famílias de origem, por extensão.
383
acréscimo do sobrenome do cônjuge e aqueles que facultam aos nubentes o acréscimo
recíproco do sobrenome do outro cônjuge.
Porém, o que não está definido é como irão se desenvolver os vínculos afetivos
entre os parentes por afinidade, que passam muitas vezes a comungar de um mesmo
sobrenome, mas nem sempre compartilham coisas mais importantes. Não é o sobrenome
comum que garante o grau de afinidade com o novo membro da família. Isso varia de
acordo com a personalidade do novo membro e a eventual assimilação pelos outros
membros da família.
O vínculo de parentesco por afinidade vai além de uma mera relação de amizade,
que é subjetiva. Ele passa a ser uma relação formal, objetiva, e, por isso mesmo, mais
fácil de ser identificada, bastando algumas certidões públicas para provar a relação. A
família por afinidade tem como base de formação uma relação de parentesco obrigatória
e necessária entre pessoas oriundas de famílias diferentes, que possuem hábitos, valores
e crenças muitas vezes incompatíveis. A princípio, elas só possuem uma coisa em
comum: o marido/filho ou a esposa/filha, mas, com o tempo, passam a estabelecer algum
tipo de relação que pode ser prazerosa, gratificante, competitiva e até hostil.
384
Considerando que a faculdade legal decorre do surgimento de uma nova família,
caso ambos queiram alterar o sobrenome, nada mais razoável que esse sobrenome seja,
no todo ou em parte, comum. Alguns casais contemporâneos defendem a ideia de que a
mudança de sobrenome é desnecessária, já que cada um tem sua própria identidade, e
permanecer com os nomes termina servindo, para eles, como uma estratégia de
manutenção da sua própria individualidade. Porém, ainda existem muitos casais que
preferem manter a tradição, por uma questão cultural, garantindo que as mulheres ainda
acrescentem o sobrenome do marido, mesmo cientes de que seja necessária a modificação
de todos os documentos pessoais, haja vista os que têm o nome de solteira, que perdem
imediatamente a validade após o registro civil do matrimônio.
Ou seja, se o interesse for livrar-se de alguns padrões, já que não existem garantias
de que serão estabelecidos novos padrões familiares nesse novo sistema, do qual se
tenham motivos de orgulho em sustentar esse novo sobrenome, em detrimento de outro,
mais preventivo seria se cada nubente pensasse primeiro em acrescentar, do que em
suprimir ou substituir sobrenomes.
385
Vale destacar que não é possível pré-estabelecer que o procedimento preventivo,
no que se refere a suprimir ou substituir sobrenomes, seja instituído como correto e que
este deva extinguir o desejo de efetivar a mudança que o cônjuge acredite ser significativa
para ele(a), pois os resultados da substituição do sobrenome somente poderão ser sentidos
no processo, isto é, nas consequências que irão implicar esta ação de mudança.
Cabe a cada cônjuge desenvolver uma postura que possa auxiliar o seu parceiro,
recém-chegado à sua família, a contribuir favoravelmente para o desenvolvimento das
relações afins, já que possuem maior intimidade com esta família, sua, de origem, que, a
partir do matrimônio, também fará parte dos parentes do seu parceiro, com os quais deve
desenvolver relações afetivas para melhor convivência entre as partes.
De acordo com Rossi (1994), é importante que cada um identifique seu novo papel
nessa nova família, oriunda do matrimônio, conscientizando-se de que não é preciso
competir, já que cada um exerce um papel diferente. Essa construção de papéis e regras
de relação é um processo circular de influência recíproca ao longo do tempo.
386
surgem de acordo com as situações, e assim vão ficando definidos os direitos das partes,
em que cada um recebe alguma coisa em troca de algo que dá. Isso muitas vezes ocorre
de forma subliminar ou implícita, e não formalmente contratada.
A forma repetitiva que o casal usa para responder e reagir às situações da vida e às
situações relacionais, englobando tudo o que é dito e não dito, a forma como dizem e
fazem as coisas e as nuances do comportamento do casal compõem o que é chamado de
padrão de funcionamento do casal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo que temos observado e fomos discorrendo ao longo deste nosso breve estudo,
depreendemos que, além dos aspectos objetivos referentes à alteração do sobrenome com
o advento do casamento, gravitam motivações subjacentes que podem fazer emergir, nos
indivíduos e famílias, questões subjetivas que este ato pode estar representando, já que o
sobrenome faz parte de um patrimônio simbólico familiar que legitima o pertencer àquela
família.
REFERÊNCIAS
CERVENY, Ceneide Maria Oliveira. Família e... comunicação, divórcio, mudança, resiliência,
deficiência, lei, bioética, doença, religião e drogadição. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
387
COUTO, Maria Clara; PRATI, Laissa; FALCAO, Deusivania; KOLLER, Silvia. Terapia
familiar sistêmica e idosos: contribuições e desafios. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, 2008.
v.20, n.1, p. 135-152. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652008000100009>. Acesso
em: 02 jun. 2018
KAHN, Fritz. Amor e felicidade no casamento. São Paulo: Boa Leitura, 1963.
REED, Evelyn. Sexo contra sexo ou classe contra classe. São Paulo: Sundermann, 2008.
ROSSET, Maria Solange. O casal nosso de cada dia. Curitiba: Sol, 2004.
SANTOS, Bruna Francinetti dos. Legado familiar: uma história com nome e sobrenome. In:
CERVENY, Ceneide Maria Oliveira. Intergeracionalidade: heranças na produção do
conhecimento. Cap. 2. São Paulo: Roca, 2011.
388
ARQUIVOS LITERÁRIOS COMO SUPLEMENTO PARA A
CRÍTICA BIOGRÁFICA: A ATUAÇÃO DE MURILO RUBIÃO NO
SUPLEMENTO LITERÁRIO DO MINAS GERAIS (1966-1969)1
Mariana Novaes2
Abstract: From the second half of the 20th century up to the present, the documentary
universe has expanded and has begun to be studied not only in its relation to history and
memory, but also identity. It then arises, in public and private institutions, private and
personal archives,followed by multidisciplinary research that makes use of the primary
sources for the collation of the narrated story with the story that is told to be lived and,in
the case ofwriters’ files, the study of vita and work, without exclusive interdependence
betweenone the other. The document adds, expands, and works as a supplement to what
is intended to be studied. This work aims to present the Personal Archive – specifically,
“the literary archives” – as a methodological and theoretical alternative for the study of
1
Mesa-redonda Arquivo: lugar de memória.
2
Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
389
biographical criticism, in order to analyze and compare the writer’s personal and literary
world. Furthermore, a case study will be done onwriter Murilo Rubião’s archive and the
newspaper Suplemento Literário do Minas Gerais (SLMG ), which he was the founder
and director during the years 1966–1969. The case study will highlight and demonstrate
how Murilo Rubião’s archive and the documents contained therein (letters , journals and
photographs) can help to interweave the bio-bibliographical study of the writer.
Keywords : personal archives, biographical criticism, Murilo Rubião, Suplemento
Literário do Minas Gerais.
Por que sentimos tanto a necessidade de arquivar nossa própria vida? Por que a
arquivamos? Por que vivemos o presente já pensando no passado? A necessidade de
registrar e documentar aumentou nos dias hoje? Ou será que sempre nos apegamos ao
passado e sempre tivemos uma urgência pela aprovação, nem que esta venha após a
morte? Estamos desde sempre na recherche de um tempo perdido e a madeleine
experimentada tem outro sabor quando ativada na nossa memória, não é mais a mesma e
toda lembrança passa a ser ficção.
Qual é o seu sonho? “Ser imortal e depois morrer”, já dizia Godard. A necessidade
de arquivar e documentar a própria vida e de dar tanta importância ao passado nasce nas
pinturas rupestres feitas nas cavernas e hoje ela passa pela arte – como arquivo, como
memória e processo criativo – chegando até a moda retrô, aos hipsters, aos fotologs, blogs
e afins. Se não somos importantes, queremos sê-lo, queremos pertencer: a uma época, a
um grupo, a uma classe.
3
Segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, arranjo é a “sequência de operações
intelectuais e físicas que visam à organização dos documentos de um arquivo ou coleção, de acordo com
um plano ou quadro previamente estabelecido” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 37).
4
Segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, o inventário é o “instrumento de pesquisa
que descreve, sumária ou analiticamente, as unidades de arquivamento de um fundo ou parte dele, cuja
apresentação obedece a uma ordenação lógica que poderá refletir ou não a disposição física dos
documentos.” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 109).
390
que ocorra algum tipo de identificação, nem que esta aproximação seja feita somente pelo
lado parental, pelos álbuns de família.
Por isso, o feitiço pelo arquivo, o “mal de arquivo”, pois, de alguma forma a nossa
vida e a vida do outro é repleta de significados para nós. No final das contas,
independentemente das nossas escolhas profissionais e pessoais, somos todos da mesma
espécie e a nossa felicidade está também ligada a nossa necessidade de reconhecimento,
seja ele profissional ou pessoal, e balizada pela nossa carência e insegurança. O escritor,
não diferente de qualquer ser humano e de qualquer artista, quer que sua obra seja pública,
quer revelar-se, ser reconhecido. O que muda é o objeto que, no caso, é a literatura.
Muitos querem arquivar não só a obra, como também a própria vida. Quando
reconhecido, o objeto que se cria (a obra) deixa de ser o centro e passa a ser o meio, a sua
arte é eventualmente canonizada e, posteriormente, surge a curiosidade de saber onde e
como foi deixada aquela assinatura: em saber sobre o autor, dos detalhes de sua vida
íntima, do seu processo criativo e de todo o percurso de vida (profissional, acadêmico,
familiar, de classe e gênero, sucesso e dificuldades) que o levou a se tornar aquele artista:
canonizado, pertencente a um grupo literário e à história da literatura. Por isso, já
prevendo, um escritor guarda o seu arquivo, documenta, cataloga e manuscreve; por isso
os seus familiares, após a morte do autor, doam ou vendem os seus arquivos, bibliotecas
e mobiliários: para serem imortais e depois morrerem.
Primeiramente, foi preciso saber quem foi Murilo Rubião, conhecer e ler sua obra:
seus contos e o Suplemento. Para que isso acontecesse passei por todo um percurso
acadêmico e profissional. Quando adolescente e criança tive contato em minha própria
casa com escritores que fizeram parte da “geração Suplemento” (Jaime Prado Gouvêa,
Libério Neves, Luiz Vilela, Humberto Werneck e Sérgio Sant’Anna). Entrei para a
Faculdade de Letras; em 2008, comecei como bolsista e pesquisadora do CNPq no Acervo
391
de Escritores Mineiros onde comecei estudando a escritora Lúcia Machado de Almeida e
as correspondências de Cecília Meireles (que oferecem um rico estudo sobre os bastidores
do seu livro Romanceiro da Inconfidência); cheguei à poesia de Adão Ventura; aos 40
anos de amizade epistolar entre Drummond e Abgar Renault e acabei caindo no arquivo
de Murilo Rubião. Junta-se à minha experiência no Acervo de Escritores Mineiros o
tempo em que estagiei no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 2009 e 2010, o
mesmo jornal dirigido por Murilo Rubião, que após mais de 40 anos ainda se configura
como um dos principais jornais culturais e literários do Brasil. Assim, houve todo um
percurso de minha vida: intelectual, acadêmico, pessoal e profissional, que me levou a
chegar em minha pesquisa, em tornar Murilo Rubião e o Suplemento Literário objetos de
minha dissertação de mestrado.
De uma maneira ou de outra, aconteceu comigo e com qualquer outro ser humano,
o mesmo que com Murilo Rubião: a minha vida e trajetória, minhas escolhas
influenciaram no meu sentimento e na minha sensibilidade, ou seja, moldaram as minhas
escolhas pessoais e profissionais.
O estudo da relação entre a obra e a vida dos escritores está associado à crítica
biográfica, e o estudo dos seus bastidores, do seu processo criativo, liga-se também à
crítica genética. Nestas adjacências da crítica literária, há ainda a crítica textual, que
pretende aproximar o texto da sua forma originária, do texto desejado pelo autor. O
arquivo de um escritor, seus documentos, conhecidos também como fonte primária, é um
meio, uma bibliografia e uma metodologia que o pesquisador utiliza para trabalhar nestes
três ramos da crítica literária.
Segundo Eneida Maria de Souza (2011, p. 21), a crítica biográfica não é um retorno
ao pensamento positivista do século 19 e início do século 20, “ela não pretende reduzir a
obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a ficção produto de sua vivência pessoal
392
e intransferível”, ela “amplia o polo literário para o biográfico e daí para o alegórico”.
Também, segundo Eneida, “o próprio acontecimento vivido pelo autor – ou lembrado,
imaginado – é incapaz de atingir o nível de escrita se não são processados o mínimo
distanciamento e o máximo de invenção” (SOUZA, 2011, p. 21). Assim, a obra de Murilo
Rubião é mais importante do que qualquer estudo sobre ela, mesmo que os documentos
contidos no seu arquivo sirvam como “suplemento”, como ampliação do universo do
pesquisador e para a construção do cânone literário.
393
Murilo Rubião foi um dos primeiros escritores a se aventurar no gênero do realismo
fantástico, causando, por isso, estranhamento por parte de críticos literários e muitas
dificuldades para a publicação de sua obra. Antes da publicação de seu primeiro livro, O
ex-mágico, em 1947,Murilo ainda escreveu quase três livros, num total de cinquenta
contos. Por cerca de quatro anos, seus originais circularam nas editoras do Rio de Janeiro
e de Porto Alegre. Sua primeira coletânea de contos, Elvira e outros mistérios, foi
recusada por sete editoras. Depois dela, escreveu O dono do arco íris, que também não
conseguiu publicar.
Somente no final dos anos 1960, com o sucesso de escritores como Júlio Cortázar,
Gabriel Garcia Marquez e Jorge Luís Borges, que sua obra passaria a ser reconhecida e
inserida no boom do gênero fantástico na literatura latino-americana. Em 1974, com a
publicação dos livros O pirotécnico Zacarias (que venderia mais de cem mil exemplares)
e O convidado, a literatura de Murilo Rubião passaria de fato a ser reconhecida. A partir
de então, novas edições de seus livros foram lançadas e traduzidas e sua obra passou a
ser estudada nas escolas e nas academias. Em 1978, publica A casa do girassol vermelho
e, em 1990, o seu último livro em vida, O homem do boné cinzento.
5
Também segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística o fundo é o “conjunto de
documentos de uma mesma proveniência. Termo que equivale a arquivo.” (ARQUIVO NACIONAL, 2007,
p. 97).
394
família, encontramos os originais de suas obras, textos e contos inéditos, a
correspondência trocada com vários escritores, como João Cabral de Melo Neto, Mário
de Andrade, Autran Dourado, Fernando Sabino, sua documentação de ordem pessoal e
profissional, fotografias que tratam de sua vida pública e privada, periódicos que
colecionava e, também, os documentos que tratam sobre o jornal Suplemento Literário
do Minas Gerais, do qual foi diretor e fundador.
395
Observe-se, ainda que, na correspondência acima, lê-se o fato importante da
literatura brasileira da época – a publicação em 1967 do romance Ópera dos mortos, de
Autran Dourado e frise-se referência às constantes reescritas e correções que Murilo
Rubião fazia nos seus contos, como se confirma através das sucessivas reedições de seus
livros.
O arquivo de Murilo Rubião merece estudos à parte quanto à maneira com que o
escritor organizou, tratou e catalogou o seu arquivo. Quando doado ao Acervo de
Escritores Mineiros (AEM), o arquivo do escritor apresentava uma organização e uma
sistematização feitas pelo próprio Murilo Rubião, que em parte foram preservadas, como,
por exemplo, o arranjo de suas correspondências em que o titular separa suas cartas em
subséries, em pastas intituladas “Mário de Andrade, Otto Lara Rezende, Jair Rebêlo Horta
e Paulo Mendes Campos”, “Fernando Sabino”, “colegas”, “amigos e conhecidas”,
“correspondência feminina (amigas, etc.)”. Outro aspecto importante no acervo de
correspondências de Murilo Rubião são as anotações, grifos e correções que fazia em
cada carta recebida. Com um lápis colorido, Murilo corrigia os erros de português, grifava
os estrangeirismos e títulos de obras, escrevia “responder” em algumas cartas e também
a profissão e nome de cada remetente. Nos periódicos evidenciamos a mesma
característica: em jornais recortados e colados em papel A4, além de sublinhados alguns
trechos, encontramos datilografados a fonte, a data e o local de publicação da matéria
publicada.
6
Um exemplo da “traição” dos arquivos se mostra na carta de João Cabral de Melo Neto a Murilo Rubião.
Datada (legivelmente) de janeiro de 1966, antes da criação do Suplemento, a carta causou certo
estranhamento da minha parte, levando-me a pensar que poderia ser uma espécie de brincadeira de João
Cabral de Melo Neto ao escritor fantástico Murilo Rubião ou, então, que o Suplemento já existisse antes.
Com a ajuda de Jaime Prado Gouvêa, descobri que era apenas um erro de data “Pode ser que, como acontece
muito com meus cheques de início do ano, os missivistas tenham se esquecido que já estavam em 1967, o
que explicaria isso (GOUVÊA, 2013).
396
uma gênese e faz-se a narração da história do jornal e da história e crítica literária da
época, não somente a partir do arquivo do escritor e diretor Murilo, mas também a partir
do arquivo do SLMG – dos textos, ensaios e ilustrações publicados no jornal nesta época,
nas 172 edições que o escritor assinou como diretor e secretário.
7
Todas as edições do Suplemento Literário de Minas Gerais encontram-se digitalizadas e disponíveis nos
sites: www.letras.ufmg.br/websuplit e http://www.cultura.mg.gov.br/imprensa/publicacoes/suplemento-
literario.
397
A primeira comissão de redação do SLMG contou com Affonso Ávila, Laís Corrêa
de Araújo e Aires da Mata Machado Filho e pelos redatores Márcio Sampaio e José
Márcio Penido e pelo diagramador Lucas Raposo. Mais tarde, se juntariam Valdimir
Diniz, João Paulo Gonçalves da Costa, Carlos Roberto Pellegrino, Jaime Prado Gouvêa,
Adão Ventura, Humberto Werneck, Paulinho Assunção, dentre outros.
Graças a Laís, o semanário foi pioneiro na tradução de autores como Julio Cortázar,
Gabriel Garcia Márquez e Javier Villafañe. Além de revelar novos nomes, o Suplemento
publicou autores consagrados da literatura brasileira da época, como Carlos Drummond
de Andrade, Murilo Mendes, Antonio Candido, Osman Lins, Luís Costa Lima, Lygia
Fagundes Telles, Silviano Santiago, entre outros – além de mineiros, como Emílio Moura,
Eduardo Frieiro, Bueno de Rivera e Francisco Iglésias.
398
Horizonte, e na redação do Suplemento produziram-se várias colaborações, matérias e
entrevistas.
Criado em plena ditadura militar, não tardou muito para que o jornal passasse por
algumas dificuldades. O provincianismo mineiro, a descrença da parte mais conservadora
de escritores (a maioria da Academia Mineira de Letras) e a ditadura fizeram com que se
instalasse uma crise no jornal, culminando com a saída de Murilo Rubião. “Um pequeno
grupo de acadêmicos movia ardilosa campanha contra o ‘vanguardismo’ do Suplemento
e a blindagem estabelecida por Rubião contra a subliteratura que costuma assaltar
publicações do gênero”. (OSWALDO, 2011, p. 9). Denunciado como subversivo, Murilo
se afasta do jornal, sendo substituído por Rui Mourão, que também seria vítima do regime
autoritário, permanecendo pouco tempo no SLMG, assim como os diretores seguintes,
Libério Neves e Ildeu Brandão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
399
E não há nenhuma dúvida de que a vida de qualquer pessoa é muito
mais relevante, intensa, inesperada e original do qualquer literatura
(BRACHER, 2012, p. 267).
Por que sentimos essa necessidade de arquivar a própria vida? Por que a
arquivamos? Arquivamos para ficar na memória como documento e monumento. Cada
ser tem sua urgência, seu desejo, suas lembranças que são muitas vezes comuns a todo
indivíduo, mas o que o torna arquivável e imortal é a sua originalidade.
No caso de Murilo Rubião, o escritor deixou uma obra singular: foi precursor do
gênero realismo fantástico, elaborando com minúcia e concisão o seu texto e sua
linguagem. Foi ainda responsável pela criação e idealização do Suplemento Literário do
Minas Gerais, um jornal reconhecido nacionalmente e internacionalmente e que, se
sobrevive até hoje, é porque ainda resta muito do mágico Murilo.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Carta a Murilo Rubião. Rio de Janeiro, 1967. Acervo de
Escritores Mineiros, Universidade Federal de Minas Gerais.
BRACHER, Beatriz. Notas para o depoimento sobre “literatura e vida, experiência e gesto
criador”. In: SOUZA, Eneida Marida de; TOLENTINO, Eliana da Conceição; MARTINS,
Anderson Bastos (org.). O futuro do presente: arquivo, gênero e discurso. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2012. p. 263-276.
DOURADO, Autran. Carta a Murilo Rubião. Rio de Janeiro, 19 de março de 1967. Acervo de
Escritores Mineiros, Universidade Federal de Minas Gerais.
______. Entrevista com Jaime Prado Gouvêa. Nos rastros dos novos: o fazer crítico e literário
do Suplemento Literário do Minas Gerais (1966-1975). Dissertação de Mestrado. Belo
Horizonte: UFMG, 2009, p. 126-129. Entrevista concedida a Viviane Monteiro Maroca.
NETO, João Cabral de Melo. Carta a Murilo Rubião.Berna, 4 de janeiro de 1967. Acervo de
Escritores Mineiros, Universidade Federal de Minas Gerais.
OSWALDO, Ângelo. Uma luz em tempo de sombra. Suplemento Literário de Minas Gerais.
Belo Horizonte. Edição nº1337, p. 9-10. Julho/agosto 2011.
400
SANT’ANNA, Sérgio. Entrevista com Sérgio Sant’Anna. Nos rastros dos novos: o fazer crítico
e literário do Suplemento Literário do Minas Gerais (1966-1975). Dissertação de Mestrado.
Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 137-153. Entrevista concedida a Viviane Monteiro Maroca.
SOUZA, Eneida Maria de. A crítica biográfica. In: Janelas Indiscretas. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011. p. 17-25.
401
A ESCRITURA BIOFICCIONAL COMO MONTAGEM
CINEMATOGRÁFICA EM O AMANTE DA CHINA DO NORTE, DE
MARGUERITTE DURAS1
Ao apresentar as suas Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino (1990)
inclui, entre estas, a visibilidade como um conceito estratégico para pensar a
1
Mesa-redonda Experimentos bioficcionais no cinema e na literatura.
2
Doutora em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professora Adjunta A-I de Teoria da Literatura na
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB).
402
representação de imagens na literatura. Para o autor a relação entre imagem e palavra está
imbricada pelos processos imaginativos que constroem narrativas numa espécie de “tela
interior”, na qual podemos visualizar as cenas descritas, antes mesmo de elas tornarem-
se texto. Segundo Calvino,
Mas eis que o olhar desse homem pousa sobre as coisas com uma
inquebrantável insistência: ele as vê, mas recusa apropriar-se delas,
recusa-se a manter com elas um entendimento suspeito, não quer ter
com elas nenhuma conivência; não lhes pede nada; em relação a elas
não sente nem concordância nem dissentimento de espécie alguma.
Pode, talvez, fazer delas o suporte para suas paixões, bem como de seu
olhar. Mas seu olhar contenta-se em tomar as medidas dessas coisas; e
sua paixão, da mesma forma coloca-se à superfície delas, sem desejar
penetrá-las, uma vez que nada há em seu interior, sem ousar fazer o
menor apelo, pois elas não responderiam (ROBBE-GRILLET, 1969, p.
38).
404
É a predominância do olhar, que desnuda os objetos e se desnuda em face deles, a
presença marcante em diversas obras bioficcionais de Marguerite Duras. Projeto do
Nouveau Roman apropriado nos seus romances, a narrativa do olhar é emblemática para
a compreensão da escrita e reescrita dos enredos, na maioria das vezes baseados em
experiências autobiográficas desdobradas em ficção. É o que ocorre, por exemplo, em O
amante da China do Norte, publicado em 1991. A narrativa retoma a história de amor
entre a menina francesa e pobre da Indochina e o chinês do norte, homem rico e mais
velho que a inicia sexualmente. É talvez a última das várias reescrituras de um momento
biográfico marcante da vida da escritora, enquanto ainda vivia em Saigon, ainda jovem,
no começo do século XX, contado e recontado sob diversas perspectivas ao longo da sua
obra literária.
O livro começa com uma apresentação, assinada pela autora, que pretensamente
explica as razões que a motivaram a escrever a história: a notícia da morte, em maio de
1990 do homem que fora seu primeiro amante (amor?), quase sessenta anos depois de
ocorridos os fatos narrados em seus livros, e o desejo de resgatar essa memória (DURAS,
2006, p. 5): “Escrevi a história do amante da China do Norte e da criança: ela ainda não
existia em O amante, não havia tempo. Escrevi este livro em meio à louca felicidade de
escrever. Demorei um ano com ele, fechada naquele ano do amor entre o chinês e a
criança”. E conclui, num aviso, ao leitor: “Voltei a ser uma escritora de romances”
(DURAS, 2006, p. 6).
Ao fazer esse anúncio, Duras põe em destaque um novo pacto, que já não é o
autobiográfico, como proposto por Philippe Lejeune (2008), embora talvez possa ser lido
como um dos projetos propostos pelo autor, para quem a estrutura autobiográfica pode
seguir dois sistemas:
Quando afirma que voltou a ser uma escritora de romances, Duras apresenta
também a teoria do romance que escreve em seu livro: ela assina a obra, mas abre mão
405
da primeira pessoa para relatar suas memórias; ela assume tratar-se de memórias, mas
assume também a ficção que mobiliza a escrita dessas memórias. O caráter biográfico
inerente à obra desdobra-se nos meandros da linguagem, mas não se impõe como chave
única de leitura, numa obra que, inclusive, subverte a linguagem convencional do
romance e apresenta-se nos moldes de roteiro cinematográfico: “Um livro. Um filme. A
noite” (DURAS, 2006, p.9).
A frase inicial soa como uma rubrica de diretor cinematográfico num cenário de um
roteiro: “Uma casa no centro de um pátio escolar. Está completamente aberta. Dir-se-ia
uma festa. É possível ouvir valsas de Strauss e de Franz Lehar, e também Ramona e Noites
da China saindo pelas portas e janelas. Jorra água em toda parte, dentro e fora” (DURAS,
2006, p. 7). Estão apresentados aí cenário, música (que inclui as valsas e os barulhos da
água que jorra), o tom da cena – “uma festa”, mas que já anuncia, nas canções escolhidas,
o desfecho dessa história de amor.
Os amantes sabem, desde o princípio da sua história, que a realidade tem um peso
muito maior do que o desejo. E a realidade, neste caso, inclui o vaticínio proferido pelo
chinês que diz, logo no primeiro momento, que a criança jamais será de um homem só,
bem como, a impossibilidade de uma menina branca, mesmo pobre, casar-se com um
chinês, mesmo milionário. Neste caso, a impossibilidade é justamente a alteridade do
exótico que os estimula, porque os induz a uma transgressão, mesmo que breve, daquilo
que foi determinado pelas tradições familiares envolvidas em relações coloniais. O irmão
mais velho venderia por um valor irrisório a Criança a um médico francês de passagem
por Saigon, mas não aceita que ela se “prostitua” com um colonizado, mesmo rico. O
chinês não pode deixar de casar com a mulher escolhida pela sua família desde que ele
era criança, não pode trocar a chinesa coberta de ouro, jade e diamantes que traz consigo
o peso de uma tradição milenar pela “pequena prostituta branca”. Em O amante da China
406
do Norte, como nas outras histórias desse amor, não há final feliz de amor romântico,
nem idílio para além do permitido pelo desejo – pulsão de vida e de morte nos enlaces de
Eros.
Assim, no romance, a autora não precisa ser panfletária para delinear um projeto
ideológico e de escrita que se insinua na tessitura narrativa da memória. Apresentando-se
como uma “memória sem lembrança”, como afirma Foucault (2009, p. 357), as histórias
já contadas do amor entre a criança branca e o chinês vão se justapondo na montagem
desta nova narrativa, desde a apresentação dos personagens: “Ela é a que não tem nome
no primeiro livro, nem no precedente, nem neste aqui. Ele é Paulo, o irmãozinho adorado
por esta jovem irmã, a que não tem nome” (DURAS, 2006, p.7).
407
do narrado. Em O amante da China do Norte, a história dos amantes é reposicionada,
assume o protagonismo do enredo e a figura do chinês apresenta mais força moral e
estética, desdobradas na crise causada pelas interdições e separações do amor, e as
memórias se mostram a partir do olhar cinematográfico que conduz ao desvelamento das
subjetividades.
408
“Deve ter acabado”, “Deve estar no interior” são possibilidades de leitura das cenas
apresentadas. Pode ter acontecido isso como não, apenas deduz-se. O olhar da objetiva
não consegue avançar para além do tempo e do espaço na cena e assume, deste modo, sua
falibilidade, como na primeira apresentação do rosto da jovem:
Está diante de nós. Vê-se mal o seu rosto na luz amarela da rua. No
entanto, parece que sim, é muito jovem. Talvez uma criança. De raça
branca.
[...].
Logo depois que a pista se apagou começou a chegar da Residência,
tocada ao piano, aquela canção da valsa morta. A de um livro, não se
sabe mais qual.
A jovem para. E escuta. Pode-se vê-la escutando.
Virou a cabeça na direção da música e fechou os olhos. O olhar cego
está fixo.
Pode-se vê-la melhor. Sim, é muito jovem. Ainda uma criança. E está
chorando.
[...].
A criança sai da imagem. Ela deixa o campo da câmera e o da festa.
A câmera varre lentamente o que acabamos de ver, depois vira e parte
na direção que a criança tomou (DURAS, 2006, p. 11, grifos meus).
A imagem – primeiro mental, depois cinematográfica – proposta pelo narrador-
cineasta indica as nuances de enquadramento, aumentando em nitidez até revelar o rosto
da criança, depois perdendo-o de vista, transferindo a desolação expressa pelas lágrimas
da criança para o cenário de desolamento geral, o fim da festa, o calor, a valsa triste.
3
A informação sobre o “desentendimento” entre Annaud, Brach e Duras foi retirada de um trecho do livro
Os melhores filmes de todos os tempos (1995), de Alan Smithee, disponível na internet em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Amante>. Acesso em 04 ago. 2011.
409
No caso de um filme pode-se escolher: permanece-se sobre o rosto da
mãe que fala sem ver, ou vê-se a mesa e as crianças a quem a mãe se
refere. A autora prefere a segunda opção (DURAS, 2006, p. 17, grifos
meus).
No caso de um filme baseado neste livro, a criança não deverá ser de
uma beleza apenas bela. Talvez fosse perigoso para o filme. É outra
coisa que acontece com ela, a criança, “difícil de evitar”, uma
curiosidade selvagem, uma falta de educação, uma falta, sim, de
timidez. A beleza pura e simples estragaria completamente o filme.
Mais ainda: faria com que desaparecesse. A beleza não faz nada. Ela
não olha. É olhada. (DURAS, 2006, p. 49).
No caso de um filme tudo seria percebido através do olhar. O
encadeamento seria o olhar. Os que estão olhando, por sua vez são
olhados pelos outros. A câmera anula a reciprocidade: ela filma apenas
as pessoas, isto é, a solidão de cada um (aqui cada um dança de uma
vez). Os planos de conjunto não cabem neste caso já que o conjunto,
aqui, não existe. São pessoas sozinhas, “solidões” do acaso. A paixão é
o encadeamento do filme (DURAS, 2006, p. 120).
Nessas notas – rubricas de uma diretora de cinema – o projeto do livro-filme ganha
simetria: é o olhar quem direciona a narrativa, porque é através dele que o humano pode
se revelar no relato, sem tipificação ou reificação, sem engajamento a uma causa que não
seja o relato das memórias de uma paixão, direcionando a leitura.
As notas são os lugares reservados na narrativa para explicitar que as memórias não
se confundem na temporalidade da escrita, mas são montadas também como cenas do
romance. Em algumas delas a autora explica memórias que se desdobraram em outros
fatos, alheios ao enredo central do romance, mas também marcantes em sua vida, unindo
mais uma vez, assim, os laços entre o ficcional e o biográfico, como quando ela esclarece
detalhes da vida “real” da grande amiga da infância:
410
momento, os sentimentos preservados mesmo sob camadas de outras experiências e
memórias, como os causados pela dor da separação inevitável e iminente e a sensação de
liberdade dos corpos que a chuva proporciona, aliviando o peso dessa dor.
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2: a experiência limite. Trad.: João Moura Jr.
São Paulo: Escuta, 2007.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo
Barroso. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DURAS, Marguerite. O amante. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
______. Barragem contra o Pacífico. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Arx, 2003.
______. O amante da China do Norte. Trad. Denise Rangé Barreto. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
411
EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Apresentação, notas e revisão técnica: José
Carlos Avelar. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
412
RETRATOS EM CÁRCERE1
PORTRAITS ON JAIL
Rodrigo Jorge2
1
Mesa-redonda Memória e resistência I.
2
Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
413
Contudo, a experiência narrada, em Memórias do cárcere, refaz, por meio de
instrumentos que Graciliano domina como ficcionista, o caminho coberto de escombros.
Estaria garantida e efetivada novamente a comunicação entre os homens que se perderam,
ou ficaram soterrados? Bem, acreditamos que não seja exatamente isso. Não há a intenção
de Graciliano em restaurar nada nem a ilusão da busca por uma totalidade. Justamente o
contrário, é a admissão de fraturas e fissuras, de absurdos e incongruências, que aponta
para uma outra possibilidade: “Certeza de que não estamos certos, aptidão para
enxergarmos pedaços de verdades nos absurdos mais claros. Necessidade de
compreender, e se isto é impossível, a pura aceitação do pensamento alheio.” (RAMOS,
2008, p. 73; I, XI3)
Tarefa difícil e arriscada esta, tão quanto a rememoração dos casos passados no
“ano terrível”. Esquivando-se sempre, revelando não ter biografia, Graciliano decide
fazer, de sua experiência com aquelas “estranhas figuras”, algumas histórias para contar.
Evita o “pronomezinho” e lança-se na narração difícil e lenta de suas memórias.
Entretanto, não podemos perder de vista um pequeno e expressivo detalhe: Graciliano
não dá voz ao Outro, mas apresenta-o por meio da reconstituição. Cabe relembrar-nos do
último parágrafo do capítulo-prefácio: “Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei
às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se.”
(RAMOS, 2008, p. 16; I, I). O memorialista, ao esconder-se, deixa o Outro à mostra,
manifesto-o, ou seja, patenteia-o. Não arroga a si a posição alheia, mas não prescinde da
sua: “Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não
recusem as minhas [...]” (RAMOS, 2008, p. 15). A narrativa arrisca-se a cair na ficção, o
que compromete a fidelidade de apresentar aquela gente “em cuecas”. Um risco que
Graciliano estava ciente de que podia correr, tanto que apresenta-o como um dos motivos
que o fizeram postergar ao máximo a escrita do livro.
3
Para facilitar a consulta a edições diferentes, além da página, serão indicados também a parte e o
capítulo de onde foram extraídas as citações de Memórias do cárcere.
414
das consequências do “pronomezinho”. O filósofo romeno Emil Cioran (2011, p. 72),
sobre isto, observa: “Quanto mais procuramos nos afastar de nosso eu, mais nos
absorvemos nele.”. A galeria de tipos, em Memórias do cárcere, revela ainda mais duas
galerias, a do próprio Graciliano, que se revê e se reescreve a partir do Outro, e a da
palavra escrita, que se amplia e se reconfigura. Não quer dizer que a insuficiência da
literatura em expressar a realidade seja superada, muito menos que permanece como
obstáculo ao fluxo narrativo. Graciliano não nega as margens nem os seixos que
compõem seu pequeno rio. A escrita de Memórias do cárcere, ao ser produzida pela
experiência com o Outro, redescobre outras formas de narrar o inenarrável.
O REVOLUCIONÁRIO E O DILETANTE
O capitão José de Figueiredo Lobo era o encarregado dos presos políticos no Forte
das Cinco Pontas. O primeiro encontro com o escritor ocorre no capítulo VIII, em que o
oficial, “moço grave, de olhos ligeiramente estrábicos”, repassa secamente instruções
para os recém-chegados. No capítulo seguinte, temos o segundo encontro, quando a figura
do capitão começa a chamar a atenção do escritor ao declarar: “Respeito as suas ideias.
Não concordo com elas, mas respeito-as.” (RAMOS, 2008, p. 59; I, XI). Graciliano fica
415
desconfiado com o respeito assumido pelo outro por ideias não expressas. No entanto, o
temor de uma possível armadilha arrefece: “A sinceridade transparecia no rosto claro, no
olhar um tanto vesgo, que se cravava na gente como um prego, no gesto amplo. A piteira
movia-se continuamente, parecia um martelo a fazer pontas em sílabas duras. Nenhuma
razão para desconfiança.” (RAMOS, 2008, p. 59-60)
Em outro encontro, capitão Lobo repreende furiosamente Graciliano por este ter
usado o banheiro dos sargentos, em vez do reservado aos oficiais, onde o escritor estava
sob custódia. Pensando que a reprimenda do oficial não era tão séria quanto parecia,
Graciliano explica que usou aquele banheiro porque o outro estava ocupado, acendendo
ainda mais a irritação do oficial: “O senhor não podia fazer isso.” (RAMOS, 2008, p. 70;
I, XI). Concluindo que a admoestação era por ofender as normas, o memorialista relembra
a dificuldade que teve de compreender a reação do militar: “Esforcei-me por manifestar
que, no meu parecer, culpa seria utilizar um banheiro de categoria superior ao permitido
a mim, um banheiro de generais, por exemplo; contentando-me com um de sargentos, não
praticava nenhum ato censurável.” (ibid.). O uso do pretérito perfeito indica que o
raciocínio não é mais adotado pelo memorialista, que começa, a partir de então, a
reconstituir o Outro por meio das regras, e a si mesmo, pela incompreensão das mesmas.
A lógica seguida pelo escritor é a mesma que, para ele, orienta o mundo: a dominação e
exploração do mais fraco pelo mais forte. Por isso, espanta-se com a atitude justamente
da instituição, representada por um de seus comandantes, que, para ele, sempre se impôs
pela força. Capitão Lobo, ainda aborrecido, insiste em saber se o escritor estaria
insatisfeito, porque, em caso positivo, poderia transferi-lo para uma prisão de sargentos.
Graciliano agradece, pedindo que o outro não se incomodasse. Diante do diálogo peculiar,
o memorialista analisa o próprio comportamento na ocasião e surpreende-se por não ter
se melindrado. Por quê? A desconfiança e o constrangimento por qualquer coisa sempre
o torturaram. Retoma os castigos e a brutalidade da infância para explicar a origem desses
sentimentos. No entanto, a reprimenda do oficial não o incomoda.
416
Pesando cuidadosamente os sentimentos experimentados por meio de “talvez”, o
memorialista primeiro indica o fato de ter achado “estapafúrdio”, pelo escritor-
personagem, depois deixa assomar o entendimento no instante da recordação e da escrita:
“franqueza nua”. Um pouco depois, num dos malabarismos anunciados no capítulo-
prefácio, ocorre a mudança da primeira pessoa do singular para a do plural. É apenas
recurso para fugir do “pronomezinho”? Há o recurso, mas como meio. A partir das
reflexões provocadas pelo evento singular, Graciliano ultrapassa as grades do que está
sendo narrado e procura aplicar na vida comum. A experiência com o Outro produz, no
empenho recordativo e crítico, condições que não podem ser comportadas no mesmo
registro, o que obriga o memorialista a adotar outra via. Assim, observamos a ampliação
da experiência da memória para uma experiência da narração, que necessita integrar
outros recursos para ser construída. A repreensão de capitão Lobo, a fala e a atitude
incisiva, passa a integrar o fluxo da narrativa por meio do que impeliu no discurso do
memorialista, como a influência, na velocidade de um rio, das margens e dos obstáculos
que se apresentam ao longo de seu percurso. Mesmo que não estejam presentes em
determinado ponto observado, o fluxo das águas não seria o mesmo. Um rio não é apenas
a água correndo, mas também o conjunto de fatores que a faz correr, do contrário, seria
apenas uma poça de água parada.
417
que capitão Lobo, de fato, queria ajudá-lo4. A certeza faz com que a terceira pessoa do
singular introduza as suspeitas do benefício. No outro caso, quando aventa a possibilidade
do tratamento diferenciado fazer parte do processo de despersonalização infligido, passa
o discurso para a terceira pessoa do plural, retirando capitão Lobo que já havia sido
destacado na situação anterior. A afirmação de que depois esta hipótese “pareceu
confirmar-se” antecede as situações experienciadas no porão do Manaus, no Pavilhão dos
Primários e, principalmente, na Colônia Correcional. O hesitante desígnio, talvez o mais
importante, é a própria obra sobre os acontecimentos e a experiência proporcionada pela
sua escrita.
4
Segundo Dênis de Moraes (2012), capitão Lobo, amante da literatura, conhecia Graciliano por meio de
seus romances Caetés e São Bernardo, que tinha lido e gostado. Diante da situação, o oficial não podia
fugir à discrição e à disciplina militar, apesar de suas atitudes deixarem à mostra a admiração secreta pelo
escritor.
418
emprestar “histórias dissolventes” a Mariana. O personagem de Seu Rodrigues, que
repete algumas vezes a fala “Respeito as suas ideias”, indica os livros sem os ler, fiando-
se apenas na opinião de literatos e críticos. Na delegacia, capitão Lobo e seu subordinado,
cabo Feliciano, cuidam das prisões. Em determinado momento, o capitão declara:
“Brandura no começo, amabilidade, tapeação. Agora o meliante incha o papo e se faz de
besta, porrada nele.” (SALLA, 2012, p. 200). O dramaturgo Graciliano Ramos combina
as qualidades do oficial do exército que conheceu com as práticas da política de Vargas,
que não chegou a sofrer literalmente na pele, mas conviveu meses com indivíduos
barbaramente torturados. Na última cena da peça, o capitão interpõe-se entre a esposa e a
filha, a primeira exigindo um posicionamento do marido, a fim de proibir as leituras de
Mariana, e esta defendendo o progresso e criticando o atraso da mãe. A cada uma, capitão
Lobo tenta dar razão, fazendo referência às “ideias modernas”. Para dona Aurora: “Oh!
Oh! Exagero. Ela tem bom coração. É meio esquentada, o sangue dos Lobos, mas tem
ótimo coração. E quanto às ideias modernas, potocas, não valem nada.” (SALLA, 2012,
p. 205). Voltando-se para Mariana, também faz concessões: “Calma, calma. Sua mãe fala
demais e se desconchava, mas é uma boa alma. Infelizmente não compreende as ideias
modernas. Mulher atrasada” (SALLA, 2012, p. 205). Apesar do esforço de conciliação,
as coisas só pioram e cada uma tenta obter para si a razão. O delegado não suporta a
pressão toda e irrompe furiosamente: “Com os diabos! Eu sei lá quem é que tem razão!
Um inferno. No princípio do século não havia disso” (SALLA, 2012, p. 205). Escrito
alguns anos antes de iniciar Memórias do cárcere, o texto dramático expõe, especialmente
na cena final, a postura condescendente demonstrada pelo capitão no quartel. O espanto
diante dessa postura serve de elemento jocoso na peça, mas depois, no livro de memórias,
contribui para mergulhos bem mais profundos.
5
“Ajudante-de-ordens do general Euclides Figueiredo na Revolução Constitucionalista de 1932, Lobo
tivera que se exilar, sendo depois anistiado.” (MORAES, 2012, p. 118)
420
“É o que me atormenta. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu em
sistema.” (RAMOS, 2008, p. 92). Quanto a ser doloroso, deve-se ao mergulho no interior
de si mesmo, descobrir faces desagradáveis, arrancar certezas empoeiradas e revolver
uma terra há muito estéril de sua concepção de mundo: “Isto me causava dolorosa
surpresa: chocava-me exames anteriores, contradizia opiniões firmes – e experimentei
uma sensação molesta [...]” (RAMOS, 2008, p. 90).
Era possível então alguém proceder de tal maneira? Por quê? Não
conseguia orientar-me, agarrar um móvel qualquer, justificar o
disparate. Sem dúvida um homem que resolvia prejudicar-se em
benefício de um estranho não estava no seu juízo perfeito. Razoável,
normal, não me comportaria nunca de tal modo. Não me comportaria?
Nem sequer imaginava que alguém pudesse ter aquele procedimento. E
chocava-me em demasia ver a insensatez realizada por um cavalheiro
grave afeito à regra, de aspereza firme e autoritária. (RAMOS, 2008, p.
90-91)
Justamente por estarem em polos opostos é que o caso adquire feições absurdas e
inexplicáveis. Se o escritor também usasse farda, haveria algum sentido, não menos
absurdo, mas seria possível esboçar alguma explicação razoável. No entanto, o que se via
era “uma espécie de deserção”, a desobediência à ordem e ao preceito militar. O risco
assumido pelo capitão, a abdicação de bens para custear um outro que, além de não
conhecer, é considerado inimigo do Estado, constitui um sacrifício que nada tem de
estratégico ou coletivo, mas estritamente individual.
Afinal capitão Lobo devia ser muito mais revolucionário que eu. Tinha-
me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do
fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na
superfície, nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um
diletante. (RAMOS, 2008, p. 94)
A experiência iniciada no quartel tornou possível a lição do que é ser
verdadeiramente um revolucionário. Não são os grandes feitos e conquistas, mas o gesto
421
entre grades ou quatro paredes, sem que ninguém precise saber: “[...] ali me surgia uma
sensibilidade curiosa, diferente das outras, pelo menos uma nova aplicação do egoísmo,
vista na fábula, mas nunca percebida na realidade.” (RAMOS, 2008, p. 94).
HISTÓRIAS DE UM ESCRUNCHANTE
No entanto, vindo justamente da galeria dos marginais comuns, surgem duas figuras
humanas que mais tocaram o escritor alagoano: Gaúcho e Cubano. Na despedida da
Colônia, o memorialista não esconde o sentimento de respeito e amizade por eles:
“Abracei-os ao separar-nos, afirmei que sentiria muito prazer se nos encontrássemos na
rua. Parecia-me entretanto difícil rever-nos, e isto me afligia.” (RAMOS, 2008, p. 519;
III, XXXI). Entre os dois, destacaremos Gaúcho, não apenas por conta do necessário
recorte da pesquisa, mas porque os episódios em que aparece sofrem, de certa forma,
tensões no discurso do memorialista diferentes das apontadas nas situações dos
personagens anteriores.
422
me demais, até então me haviam aparecido em tratados ou de longe.” (RAMOS, 2008 p.
51; I, VII). Retornando à apresentação de Gaúcho, há mais um trecho que não deixa
dúvida a respeito da interferência do memorialista: “[...] confessei a mim mesmo que
poderia tornar-me sem esforço amigo do ladrão” (RAMOS, 2008, p. 425; III, XI).
423
— Quer que mude seu nome?
— Mudar? Por quê? Eu queria que saísse o meu retrato.
Logo se esquivava, humilde, engrandecia os talentos de alguns
companheiros:
— Mas vosse mercê está perdendo seu tempo comigo. Eu sou um vira-
lata. O pouquinho que faço, aprendi com minha mulher, que é uma rata
de valor: trinta e duas entradas na Casa de Detenção. Aqui vossa mercê
encontra muitos homens sabidos. (RAMOS, 2008, p. 452)
Talvez Gaúcho fosse o primeiro companheiro de cadeia que tinha autorizado a sua
referência no livro pretendido por Graciliano. Na ocasião, o escritor alagoano não estava
certo se faria um livro de memórias, tanto que, após a soltura, lemos suas cartas fazendo
menção a um romance. Era certo que, de alguma forma, faria literatura dos casos. E fez.
No conto “Um ladrão”, de Insônia, o escritor narra uma das histórias contadas por
Gaúcho. Além do nome, a tatuagem na perna do ladrão também é descrita no conto,
cumprindo com o pedido do outro de que fosse feito o seu retrato, pois uma tatuagem, na
cadeia, exerce função de identidade:
— Ó Gaúcho, inquiri, você não acha um horror essa tatuagem? Por que
não mandou pintar coisa menos indecente?
— Isto é meu cartão de visita, respondeu o escrunchante. Quando entro
na cadeia, os veteranos vão-se chegando, e sei perfeitamente as
intenções deles. Se não tivesse a marca do ofício, estava perdido, era
uma pessoa enrabada. Os tipos se assanham e eu tiro a roupa devagar.
Eles veem a tatuagem e baixam o fogo: compreendem que sou lunfa e
mereço respeito. (RAMOS, 2008, p. 505; III, XXVIII)
No conto, apesar de ser uma produção ficcional, a tatuagem, ou seja, a identidade
do ladrão não é modificada: “A tatuagem da perna de Gaúcho era medonha, uma tatuagem
indecente [...]” (RAMOS, 2003, p. 26). O conto, segundo consta em seu manuscrito
autógrafo, foi escrito no Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 1938, e publicado pela
primeira vez no periódico Brasil Novo, em 1º de junho de 1939. Como dissemos,
Graciliano ainda estava, neste período, alimentando a ideia do romance. A história
contada na narrativa curta descreve uma das incursões de Gaúcho numa casa, juntamente
com um cúmplice. A diferença da história real é que Gaúcho não está presente na invasão,
apenas o outro, o que se justifica por um motivo simples: o fato principal da peripécia
narrada por Gaúcho fora protagonizada pelo cúmplice. Depois de terem recolhido o que
pretendiam, avistam uma jovem de seios desnudos em seu quarto. O outro ladrão não se
contém e dá um beijo na boca da moça. O final, tanto na ficção quanto na realidade, é a
prisão do inconsequente. Gaúcho aparece no conto pelo pensamento do ladrão, que
lembra de seus conselhos e imagina seus comentários: “Entrara na casa, fingindo-se de
424
consertador de fogões, e atentara na disposição das peças no andar térreo. Arrependeu-se
de não ter estudado melhor o local: devia ter-se empregado lá como criado uma semana.
Era o conselho de Gaúcho, que tinha prática.” (RAMOS, 2003, p. 18). Em Memórias do
cárcere, o escrunchante explica o procedimento, que é utilizado pelo escritor e narrado
no conto: “É preciso estudar o terreno, bancar vendedor ambulante, consertador de
fogões, caixeiro de venda. Eu às vezes me emprego, faço o papel de criado uma semana,
saio com as peças de cor, o lugar dos móveis, posso trabalhar no escuro” (RAMOS, 2008,
p. 454; III, XXVIII). Há coincidências, ou semelhanças, evidentes entre palavras e
expressões como: “estudar melhor o local” e “estudar o terreno”; “consertador de fogões”;
“faço o papel de criado uma semana” e “como criado uma semana”; e “disposição das
peças” e “lugar dos móveis”. Como a narrativa curta foi escrita bem antes da versão
publicada de Memórias do cárcere, é possível que o memorialista tenha recorrido à sua
produção ficcional que faça alguma referência aos meses de cadeia.
Outro dado interessante observado nos capítulos que narram os encontros com
Gaúcho, em relação aos dos personagens vistos anteriormente, é a frequência maior do
discurso direto. Além, claro, da preocupação do memorialista em cumprir com os
princípios de fidelidade, há ainda o exercício literário de composição de diálogos e
personagens, como se estivesse escrevendo um romance. Pelas respostas concisas,
diretas, quase sem adjetivos, de Gaúcho, não é difícil identificar a interferência do
escritor, melhor dizendo, do ficcionista no trabalho do memorialista.
REFERÊNCIAS
CIORAN, E. M. História e utopia. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo,
2012.
LESSA, Orígenes. Ilha Grande: do jornal de um prisioneiro de guerra. Rio de Janeiro: Companhia
Editora Nacional, 1933.
425
A ORIGEM DO SOBRENOME: A ÁRVORE GENEALÓGICA1
Abstract: The genealogy is known as the science of family history and aims to unravel
the origins of individuals and families through the systematic survey of their ancestors or
descendants, the places where they were born and lived and inter - family relationships
through the power of naming. In principle, oneself does not choose the surname itself: it
is a name that already exists in a group of people to whom it belongs. The surname
inscribed the person in a line of a story and of a community that nominates the person. In
the ascending line, it brings the memory of previous generations, in descending line, is
directed to the future. Family history, touching landmarks of surnames, necessarily
encompasses the scenarios and circumstances in which the characters lived, facing their
challenges and assuming his adventures. The historical reconstruction of family
formation leads to interpretations able to establish a bridge between the past and the
present, between the ancestors and their descendants. The present study aims to analyze
the genealogy of the surname identifying the origin of the surname through the
metaphorical image of the tree. It intends, this way, to provide insight to clarify some
1
Mesa-redonda Família e identidade.
2
Doutora em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSal).
3
Pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Católica do Salvador
(UCSal).
426
dynamics found in the relationship between the nominee and his surname on a journey of
recognition of a self that is also an “other”: the belongingness to a family.
Keywords: names; family; genealogical tree.
INTRODUÇÃO
427
espaço, no tempo, segundo o eixo vertical temporal da genealogia e do eixo espacial da
comunicação familiar.
428
A história da família, percorrendo os marcos dos sobrenomes, abrange
necessariamente os cenários e as circunstâncias nos quais viveram os personagens,
enfrentando os seus desafios e assumindo suas aventuras. A reconstrução histórica da
formação familiar conduz a interpretações capazes de estabelecer uma ponte entre o
passado e o presente, entre os ancestrais e seus descendentes, revelando-se como maior
homenagem que se pode prestar aos antepassados.
429
Como muitos habitantes do Brasil vieram fugidos da Inquisição, ou seja, foram
judeus obrigados a adotar a religião católica, desapareceram os Isaac, Jacob, Judas,
Salomão, Levi, Abeacar, entre outros. Ficaram somente os sobrenomes cristãos.
Tomaram nomes vulgares, sem nada que os diferenciasse da maioria dos cristãos velhos,
a não ser, por vezes, a manutenção de algum sobrenome antigo judaico pelo qual o
indivíduo era vulgarmente conhecido.
Os dados apresentados a seguir foram obtidos por uma pesquisa realizada pelo
grupo “Família, (auto)biografia e poética”, da Universidade Católica do Salvador, em que
seus membros analisaram suas histórias familiares a partir de seus sobrenomes. Os
resultados detalhados foram publicados em Nomes de famílias: subjetividade,
genealogia, juridicidade e historicidade (RABINOVICH; AZAMBUJA; SOUZA;
NEVES, 2013).
430
O sobrenome inscreve a pessoa em uma linhagem, em uma história e em uma
comunidade que o nomeia. Em linha ascendente, traz a memória das gerações
precedentes; em linha descendente, está dirigido ao futuro. Assim, a leitura analítica das
histórias dos sobrenomes encaminha diretamente à imagem da árvore genealógica. Esta
imagem define níveis de análise na forma de núcleos de significação: em um nível mais
amplo e geral, a raiz e o tronco; em um nível mais social, os ramos das famílias materna
e paterna; em um nível mais individual, os níveis de análise referentes à pessoa.
Localidade de origem:
a) Países estrangeiros: Portugal (13), Rússia (3), Espanha (2), Líbano
(1), Uruguai;
b) Brasil: Bahia (9), Paraíba (1), Minas Gerais (1), Rio Grande do
Norte (1), Ceará (1), Rio Grande do Sul (1).
Deste modo, referente ao local de origem, dezenove autores apontam para raízes
europeias, enquanto catorze indicam origens em solo brasileiro. No entanto, todas as
autoras nasceram no Brasil, assim como a maioria de seus pais.
431
relato evidencia claramente a origem africana, provavelmente escrava, e nenhum a
origem indígena, certamente presente em vários dos sobrenomes elencados.
Esta recuperação da memória parece ter algo a ver com a possibilidade de cura que
Massimi (2011) atribui à autobiografia: é uma história que é escrita ou reescrita, como,
por exemplo, por aqueles que recuperam o sobrenome do seu avô: “Meu nome, Cinthia
Barreto SANTOS Souza. Agora sou mais Santos do que nunca”, havendo ainda quem
confirme não querer assumir uma carga deixada pelo pai: “Na minha infância – até os
nove anos, assinava Ariadne Pereira de Araújo, nome de solteira da minha mãe, pois não
sabia como ficaria o meu nome completo com a inclusão do sobrenome do meu pai, que
até então, não registrara a mim e nem os meus dois irmãos”.
Ou quem supera o traumatismo causado pela figura paterna pelo perdão: “Não tive
amor de pai e ainda tinha que carregar o sobrenome Livramento, um constrangimento
para uma adolescente, um estorvo em minha vida” (Teresa Ferreira). Teresa narra que,
depois de casada, na quarta gestação teve complicações no parto e suplicou com fé para
que Nossa Senhora intercedesse pelo seu “Livramento” e comenta: “Nesse momento de
oração, lembrei do meu pai, do nome que ele me deu e pedi perdão... percebi a
importância do nome Livramento em minha vida e senti orgulho desse sobrenome”
(Teresa Ferreira). Ou ainda quem se define pelo lado materno e adquire a identidade
almejada “Já do sobrenome Pereira (sobrenome materno) me identifico, apesar de
conhecê-lo tão pouco, ainda” (Elisângela).
432
Os sobrenomes, assim, aparecem como o citado acima a respeito do sobrenome
Livramento, como uma carga, mas também como semente, ou até uma carga que pode
ser também uma semente. Uma participante enfatiza o poder germinador do sobrenome
em sua trajetória como pesquisadora: “Com isto, quero apenas apontar para a força de um
impulso ‘germinador’, como uma semente que desembocou e se desenvolveu numa
carreira acadêmica. Dentro desta mesma dinâmica coordeno um grupo de pesquisa
denominado ‘Família, (auto)biografia e poética’” (Elaine).
Consideramos como galhos o lado materno e o lado paterno. Entre eles, ou após
eles, temos de colocar o sobrenome oriundo do casamento. Os “lados” podem não se dar
bem, e nem coexistir ocorrendo uma “guerra de sobrenomes”: “Nesse momento, há exatos
20 anos, pude constatar as consequências de quanto essa ‘guerra dos sobrenomes’ teria
tido seu efeito. Naquela época mantinha-se a lei de se retirar o nome materno para colocar
o nome da nova família, ou apenas acrescentá-lo ao nome de batismo” (Sinara).
Lado paterno
O sobrenome paterno, socialmente, pode ser visto como ligado à proteção “Ser filha
do meu pai é para mim e para as minhas irmãs algo divino, nós fomos escolhidas pelo
universo e lhes dadas como suas filhas” (Luciene). Para outras autoras, simboliza a marca
da rejeição ou da inadequação nas relações: “Apenas aos 17 anos, meu pai me reconheceu
como filha. Entretanto, por questões práticas, preferi não mudar meu sobrenome, que
também é meu nome artístico” (Hannah).
Lado materno
433
mais linda de todas as letras” (Teresa Ferreira), “Algumas figuras familiares femininas
foram ‘desbravadoras’ de um caminho no qual a geração seguinte, na sua maioria
mulheres, iria trilhar... Minha mãe cursou contabilidade, trabalhou fora e buscou a sua
independência financeira e só se casou aos 30 anos” (Eliana).
As mulheres são descritas ora como submissas, ora desbravadoras, ora os dois
concomitantemente. Quanto às filhas, as autoras, orgulham-se de estar podendo realizar
um projeto educacional – mestrado e doutorado – que muitas alcançam, pela primeira
vez, dentre os membros femininos familiares.
Uma categoria de análise que surgiu foi a dos sobrenomes diferentes: “Eu sou a
única que tem o sobrenome Cardoso com S. Será um presságio?” (Lorena); “No entanto,
eu sou a única a portar o sobrenome Pedreira na família. [...] A partir de certo momento
de minha vida, comecei a gostar dele por me sentir ‘única’” (Elaine); “Acho meu nome
harmonioso, diferente, sempre me orgulhei dele!” (Eliana); “O meu nome sempre teve
um significado mágico para mim, pois desde criança que sei a responsabilidade da escolha
e por isso sempre me senti ‘dona’ do meu nome” (Lúcia).
Uma autora tem um sobrenome familiar único, inventado pelo avô, e gosta demais
desta história. “Ao ouvirem meu sobrenome, as pessoas costumam perguntar: ‘Rosier, é
francês?’ Eu muitas vezes para encurtar a história dizia que sim, afinal como explicar que
meu sobrenome foi ‘inventado’?”(Mirna).
Outra categoria é a pessoa que é conhecida por nome e sobrenome, e que tem
orgulho disto “Quando me chamam pelo meu nome não me sinto devidamente
reconhecida. A sensação que tenho é que meu sobrenome Amorim me empodera e
autoriza que eu siga meu caminho sem titubear” (Rita).
434
Uma autora opta por seu sobrenome materno, de origem libanesa, por nele
identificar uma forma de estar no mundo:
Sumaia, este é meu nome. Sumaia de quê? Midlej. É assim que hoje me
identifico, mesmo tendo também acoplado ao meu nome no registro
civil, o Pimentel e o Sá (o primeiro do meu pai e o segundo adquirido
do marido) [...] A partir dele, me sinto pertencente a uma família, a uma
cidade, a uma história: sinto-me ligada a uma genealogia (Sumaia).
Se sobrenomes diferentes podem causar reações positivas, os muitos comuns, como
diz Cinthia “Silva, Souza, Santos [...] ‘queria ser diferente’!” acabam por não diferenciar
e também causam dilemas em suas possuidoras, que optam, sem dúvida, por um
sobrenome que as diferencie.
Outra, por ter se casado ainda adolescente, tem sua vida de adulta associada ao
sobrenome do marido, do que gosta por estar totalmente inserido em sua própria
identidade:
435
dos fatores altera o produto. A mudança de estado civil inscreve novos
elementos à subjetividade do indivíduo (Angélica).
Algumas lutaram para conservar seus sobrenomes originais, como Angélica, citada
acima, e ficaram felizes por recuperá-lo, quando puderam. Uma autora justifica a retirada
do sobrenome paterno pela real ausência de sua vida: “A incorporação do sobrenome Leal
não implicou apenas em mudanças/ameaças na posição que ocupava na família materna,
mas também em mudanças no padrão familiar da família de meu marido, o que promoveu
a construção de um novo núcleo familiar” (Teresa Leal).
Duas autoras descrevem relações difíceis com a figura paterna, mas escolhendo, ao
escrever suas histórias sobre seus sobrenomes, pelo perdão. “Nesse momento de oração,
lembrei do meu pai, do nome que ele me deu e pedi perdão” (Teresa Ferreira). Já Teresa
Leal descreve em seu relato a ausência da figura paterna em sua vida e o não uso do
sobrenome paterno, conjuntamente com a força do sobrenome Leal de seu marido,
manifestando, contudo in memoriam, a gratidão ao pai por ter lhe dado a vida.
436
isso acontece, tenho a certeza que foi por falta de atenção ou para obedecer às normas de
uma sociedade que cobra cada vez mais o nome paterno” (Ariadne);
CONSIDERAÇÕES FINAIS
437
REFERÊNCIAS
BARATA, Carlos; BUENO, Antonio. Dicionário das famílias brasileiras: um livro sem fim. Rio
de Janeiro: [s.n.], 1999. 2 v.
BEAUCARNOT, Jean-Louis. Laissez parler les noms. Paris: Eds. Jean-Claude Lattès, 2004.
CUNHA, Juliana. Qual a origem dos sobrenomes? Revista Superinteressante, São Paulo, n. 271,
out. 2009. Disponível em: <https://super.abril.com.br/comportamento/qual-a-origem-dos-
sobrenomes/>. Acesso em 18 abr. 2013.
MANTESSO NETO, Virgínio. Entrevista: origens dos sobrenomes. 2011. Disponível em:
<www.imigracaoitaliana.com.br>. Acesso em: 27 mar. 2013.
RABINOVICH, Elaine Pedreira, AZAMBUJA, Rosa Maria da Motta, SOUZA, Cinthia Barreto
Santos, NEVES, Sinara Dantas. Nomes de famílias. Subjetividade, genealogia, juridicidade e
historicidade. Salvador: Quarteto Editora, 2013.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
PIERRON, Jean-Philippe. Le climat familial, Une poétique de la famille. Paris: Cerf, 2009.
POLANAH, Luis. O estudo antropológico das alcunhas. Revista Lusitana (nova Série), Braga, n.
7, p. 125-145, 1986. Disponível em:
<http://ww3.fl.ul.pt/unidades/centros/ctp/lusitana/rlus_ns/rlns07/rlns07_p125.pdf>. Acesso em:
27 mar. 2013.
SOMER, Anne de. Psychogénéalogie: Rompre le sortilège des prénoms qui prédestinent. Paris:
Chiron, 2008.
438
SOBRE A NOÇÃO DE CONJUGALIDADE NA MINHA VIDA, A
PARTIR DA INFÂNCIA: EXCERTOS POÉTICOS
AUTOBIOGRÁFICOS1
1
Mesa-redonda Família e identidade.
2
Doutora em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
439
formação dos sujeitos, em que fui elegendo marcadores da vida para literalizar
experiências de conjugalidade vividas no meu cotidiano familiar: “Que família é essa?”;
“Já nasci casada...”; “Como cresci...”; “Menina-Mulher e Profissional...”; “E tantos
outros Casamentos...”; “O Casamento com o Doutorado...”. Acredita-se que, ao se
submergir as lembranças da infância, torna-se possível vislumbrar, na perspectiva do
adulto, os caminhos percorridos que implicam nas escolhas que os tornaram quem são
hoje, o que de outra maneira estaria perdido devido a nossa própria tendência ao
esquecimento.
Palavras-chave: autobiografia; conjugalidade; infância; poética.
Abstract: This study was based on experiences from research group “Family, (auto)
biography and poetic” – UCSal/CNPq, upon proposal of the final work discipline "Family
and subjectivity", the Doctoral Program in Family, where each student developed a look
on children and perception of its intrinsic poetry, the position of the adult in you, in order
to investigate the relationship of the object of study for doctoral her childhood, from the
reunion between the child and the researcher today. Cerveny (2011) says speech
researcher Servulo Figueira, regarding the consideration of the whole thesis is a
reckoning, therefore, the intention of this study is to investigate the concept of conjugal,
object of my doctoral research, from of my childhood. Thus, as a researcher, sensitive to
my personal biography, conduct research as an invitation to a dip in my memories, in an
autobiographical poetic narrative. From this perspective, it is believed that the
autobiographical account can be a methodological way to explore the human condition
through narrative anchored in a subjective depth of a childish look and a possible re-
creation, as a new self is shaped. This revival can bring elements that transcend narratives
generally prepared consciously and rationally. Freeman (2007) suggests that this issue
may be associated with its poetic dimension to the extent that such reporting approaches
of imaginative literature and can pave the way to a fuller understanding of the narrative
and its promise of understanding the human condition and the condition of science itself.
The retold life takes an inaccessible to common perception and perspective marks a poetic
extrapolation remodeling our relations toward the world. Thus, there is a double poiesis
in this process: the synthesis of heterogeneous elements of a life and reconstruction of
self in your image (Freeman, 2007, p 32.). Paz (1973 cited in Freeman, 2007) says that
the poetic experience must be understood as a revelation of our original condition, which
always emerges as the creation of ourselves. It is in this direction that reports immersed
in a depth of subjective re-creation of a childish look can look for a moment and notice
dated their lives enabling retrospectively sort the choices that led to professional / theme
of person option. From stories about childhood, not childhood, this study is linked to the
biographical motion under retrospective and prospective glances cast upon the family,
society and the formation of the subject, in which I was elected to literalize markers of
life experiences conjugal family lived in my daily life: "What family is this?" "I was born
married ..." "Growing up ..." "girl-woman and Professional ..." "And many others
Weddings …," "The Marrying the Doctor... " . It is believed that by submerging the
memories of childhood, it is possible to discern, in the perspective of the adult, the paths
taken to imply the choices that made them who they are today, which would otherwise be
lost due to our own tendency oblivion.
Keywords: autobiography; conjugality; childhood; poetics.
440
INTRODUÇÃO
Antes mesmo de se casar, meu pai precisou passar por uma cirurgia para poder ter
filhos e, assim, realizar os sonhos de duas pessoas: minha mãe, que sempre pensou na
maternidade como condição para o casório; e meu avô paterno, que já tinha 70 anos e
nenhum neto, já que todos os quatro irmãos casados do meu pai tinham problemas de
fertilidade e medo de enfrentar o centro cirúrgico, como ele fez. Assim, já vim ao mundo
441
com uma proposta: ser a primeira filha; primeira neta (por parte de pai) e primeira
sobrinha! E que peso isso sempre teve na minha vida! Era como se fosse um troféu dos
meus pais! Durante quatro anos, era o centro das atenções na família, mas, vira e mexe,
pedia à minha mãe para comprar uma irmã no supermercado. Até que, com quatro
aninhos, ganhei uma irmã e, exatamente aos oito anos de idade, mais uma, fruto de um
investimento frustrado dos meus pais num filho homem! Ilana e Manuela: minhas
bonecas vivas, minhas alunas, que se tornaram parceiras e confidentes, das quais às vezes
me sinto mãe, e outras vezes, filha. Quando meus pais se casaram, meu pai tinha uma loja
de materiais de construção e era técnico em Contabilidade, e minha mãe era orientadora
educacional de um colégio particular e funcionária pública de um colégio estadual. Eles
trabalhavam muito! Na minha casa os papéis e responsabilidades da
maternidade/paternidade sempre foram invertidos, devido ao fato de meu pai ser
autônomo (empresário) e minha mãe empregada! De origem simples, meus pais se
esforçavam para poder oferecer os melhores colégios como opção de educação para as
três filhas. Minha mãe trabalhava em três turnos e, com isso, levava uma vida corrida!
Meu pai, que perdeu a mãe no momento do parto de meu tio caçula, teve três filhas, e
convivia numa casa em que era o único homem! Ele sempre se desdobrou levando e
pegando na escola e, por ter que encaixar esse transporte na sua agenda de trabalho, por
muitas vezes me esqueceu no colégio, chegando correndo, desesperado, tentando
justificar para os diretores: uma cena inesquecível! Na minha família, os estudos sempre
foram a base de tudo; por isso, mesmo depois de casado, meu pai resolveu voltar à sala
de aula, fazer faculdade, e se formou em Licenciatura em História e depois frequentou
aulas do curso de Engenharia Civil: seu grande sonho! Minha mãe também nunca parou
de estudar, e isso tenho bem registrado na minha memória, por isso tanta exigência com
suas filhas! Só que nunca teve muito tempo para contato físico conosco, atividade que
confiava à minha vó... O que, pelo menos para mim, gerou uma dificuldade imensa em
tomar a iniciativa de abraçar e beijar minha mãe. Apesar de não ter dúvidas do quanto ela
me ama, as trocas de carinho sempre foram diferentes do que assistia entre as minhas
amigas e suas mães! Na casa em que morávamos, desde que me entendo por gente,
sempre existiu um conflito instaurado, mas muitas vezes velado, entre meu pai e minha
vó materna. Eu não entendia direito, mas sabia manipular o afeto dos dois direitinho:
tinha os dois, ao mesmo tempo, em torno de mim! Era um conflito entre duas pessoas que
dependiam uma da outra, mas que entravam numa disputa entre o amor de minha mãe e
a preferência afetiva deles por mim, que, mesmo com a chegada das minhas irmãs, ainda
442
era o centro das atenções! Eu sou louca por minha vó, até que se compare ela com meu
pai... Aí não sei quem prefiro: se é que tenho que preferir alguém, como eles fazem
comigo em relação às minhas irmãs. Minha vó, além de vó, é também minha madrinha e
sempre esteve entre meus pais, acompanhando a gente em viagens e passeios de qualquer
distância. Não me recordo de ter momentos entre meus pais e minhas irmãs sem a
presença da minha vó! Apesar do amor que sinto por ela, sempre achei um absurdo o
controle que ela exercia sobre a minha família, sobretudo com a minha mãe que, coitada,
para ir num shopping fazer compras após o trabalho, tinha que esconder da minha vó,
porque, se não, ela “jogava na cara” o fato de “estar tomando conta das crianças para
minha mãe passear”. Nessa vida de corre-corre para oferecer do bom e do melhor para as
filhas, eu e minhas irmãs fomos criadas numa família de três adultos que girava em torno
da gente! Três meninas que nasceram num bairro humilde (morávamos num prédio, de
escadas, próximo a um cemitério, visto da janela do meu quarto) e se mudaram para um
bairro nobre e essencialmente residencial (próximo do primeiro shopping da cidade, ainda
em construção, visto também pela janela da nova casa, uma mansão com piscina e área
de lazer), o que influenciou nas relações de amizade e de novos hábitos. Nunca tive muita
intimidade com a minha família paterna, apesar de esta ter um número bem maior de
membros do que a materna, que só tinha uma tia e duas primas, que, apesar de morarem
em Feira de Santana-BA, eram como irmãs em relação ao convívio. Meu pai era noivo
de uma prima carnal (um padrão que se repetia na família dele) quando foi apresentado à
minha mãe num Carnaval, por um amigo em comum, e se encantou por ela, terminando
o noivado para assumir a relação. Algo que ela só descobriu tempos depois, mas que
marcou as dificuldades de a inserirem na família, da qual também sempre se sentiu
diferenciada: era a única mulher com nível superior e postura independente, o que
provavelmente despertou a atenção do meu pai, acostumado a conviver com mulheres, na
maioria, submissas e sem muita cultura. Meus pais eram muito rígidos com a educação
das filhas, tinham muito medo de errar e de serem julgados pelos outros membros da
família de origem, por isso, qualquer pedido era primeiramente proibido para depois ser
satisfeito! Um ficava passando pro outro a decisão final de cada pedido das filhas, apesar
de ficar claro que quem decidia mesmo era minha mãe! Nunca podia descer para brincar
no playground nem ir para casa dos amiguinhos do prédio, quase todos inquilinos do meu
pai... Assim, vivíamos nós cinco: eu, minhas duas irmãs, meus pais e minha vó materna!
Cada vez mais donos da razão: de uma razão somente nossa!
443
“JÁ NASCI CASADA...”
Desde muito cedo lembro que morria de medo de não casar. Isso era muito forte!
Muito forte meeeeesmo! Desde que tomei consciência do quanto meu nome era incomum:
SINARA. “Como pode alguém se chamar Sinara? Não tem ninguém na minha sala, na
minha escola, no meu bairro, com um nome desse! Onde minha mãe estava com a cabeça
quando resolveu colocar em mim esse nome tão estranho?! Meu nome não poderia ser
como o da minha irmã, Manuela, ou até o da outra, Ilana?!” Pensava que nunca iria casar
porque ninguém ia ter coragem de me apresentar a alguém, por causa do meu nome!
Pensei em trocar de nome, e até o fiz, na escola, numa tarde inteirinha, em que consegui
convencer meus amiguinhos de que minha mãe mudou meu nome para Patrícia... mas
isso só durou realmente uma tarde, até que minha mãe chegasse para me buscar na escola
e acabar com a brincadeira: “Oxente, o que é isso, Sinaaaarrrraaaaaa? Seu coleguinha está
aqui me dizendo que você mudou de nome? Que mentira é essa?! Você sabe que não
gosto de mentiras!” Acabou com meus sonhos... Era tão melhor escutar me chamarem de
Patrícia, um nome comum, fácil de falar, de gravar, de se apaixonar... “É agora que não
vou casar mesmo!”, pensei, em silêncio! Aos sete anos de idade, a menina que nasceu no
dia 21 de abril de 1977, em Salvador-BA, já anunciava em alto e bom tom: “Antes do ano
2000 estarei casada e com filho”. Lembrando dessa filosofia de vida e das inúmeras vezes
que escutei minha mãe falar: “Você nasceu exatamente aos 9 meses e 13 dias de casada
com seu pai; gerada na lua de mel, para quem quiser fazer as contas”, posso agora
imaginar o quanto que a conjugalidade sempre fez parte da minha vida. Nunca entendi
direito o significado dessa fala da minha mãe, mas, mesmo sem entender, tinha uma ideia
do peso que era ter sido gerada na lua de mel e, vira e mexe, queria saber sobre isso:
“Mãe, você e meu pai só viveram sozinhos até o dia que eu nasci?!”, porque quando nasci
minha avó materna veio morar com eles para ajudá-los a cuidar de mim e ficou, já que,
nessa mesma época, a minha bisavó materna havia falecido e minha vó, que era viúva,
não tinha mais companhia para morar. E eu vim preencher o vazio que se formara no
mundo da minha vó, que sempre teve os cuidados maternais essenciais comigo. Passou
na televisão a previsão do fim do mundo no ano 2000 e isso nunca mais havia saído da
minha mente. Tenho lembranças nítidas desse processo na minha memória infantil.
Contava para todo mundo o meu planejamento de vida; era engraçada a reação das
pessoas, e, por conta disso, me sentia estimulada a repetir, como um mantra, e perceber
como cada um iria reagir. Não demorou muito para eu descobrir o quanto isso deixava
444
minha mãe desconfortável, e eu adorava vê-la assim... Era engraçado, porque minha mãe
é muito exagerada e transformava tudo num campo de batalha! Nessa família que vivia
para si, e numa casa em que um conflito era latente: o do meu pai com a minha vó, cresci
pensando muitas coisas acerca do casamento: 1. Nas brincadeiras de casinha, era quase
sempre a mãe. E como naquela época fui educada pensando que só podia ter filhos quem
fosse casado, logo cedo o casamento passou a ser prioridade dentre os meus planos de
futuro. Mas como casar com esse nome que me deram? 2. Como minha mãe trabalhava
muito e os cuidados maternos eram da minha vó, sonhava em ter filhos para poder fazer
o que minha mãe não fazia: passar o dia inteirinho com os filhos! Perguntavam-me: “O
que você vai ser quando crescer?” e eu respondia: “Não quero trabalhar! Quero ficar em
casa cuidando dos meus filhos, ou então quero ser professora!”. 3. Morria de medo dos
meus pais se separarem. Tinha pesadelos constantes e fazia xixi na cama todas as noites.
Essa história de viver com meus amores tão perto e tão distantes de mim me transformou
numa criança insegura e sensível demais! Minha mãe nas atividades profissionais; meu
pai e minha vó convivendo o dia inteiro sem se falar, comigo no meio... Até dói lembrar...
Dava um medo danado de tudo desmoronar! A cada briga em que minha mãe tentava
mediar sentia que tudo poderia ruir: “Quero meu pai com a minha mãe, mas também
quero minha vó!” Era essa a sensação, como se não desse para ter os três ao mesmo
tempo; como se a qualquer momento alguém fosse propor uma escolha: “Ou ela/ele ou
eu!”. Todo esse convívio familiar me levou a tentar resolver a situação. Por muitos anos
acreditei que isso fosse possível: que eu poderia promover a paz, forçar a paz, na
verdade... até que fui crescendo e transferi a responsabi- lidade por salvar em culpa, muita
culpa. Me sentia culpada por todo aquele contexto: na minha cabeça eu era a culpada pelo
não entendimento da minha família; afinal, era por mim, pelo meu amor, que eles
brigavam! A vida da minha mãe também era um inferno por tudo isso. E, mais uma vez,
muitas culpas... Pensava assim: “Minha vó veio morar com meus pais porque eu nasci e
ela veio cuidar de mim. Só que ela pensa muito diferente do meu pai e, por isso, eles
sempre discutem por causa da melhor forma de me educar. Minha mãe tenta controlar a
situação, mas não sabe de qual lado fica, sendo cobrada por meu pai e minha vó. E tudo
isso por minha causa!”.
445
de Salvador, no qual minha mãe trabalhava. Adivinhem em qual setor? No SOE: Serviço
de Orientação Educacional! Minha mãe era orientadora e eu agora tinha mais culpas para
administrar! Desse momento em diante, a impressão que dava era que toda a minha vida
de adulto teria que ser definida. Fui emancipada para poder casar; adquiri uma coragem
imensa para enfrentar a vida e não deixar que os outros me atropelassem e, em um mês,
toda a minha vida estava modificada! De solteira insegura para casada e... desesperada!
Muita coisa ao mesmo tempo! Lembro até do artifício que passei a utilizar para me
proteger dos questionamentos que o povo fazia nas ruas quando descobriam que eu era
casada (uma menina casada! Algo tão comum no passado, na época dos meus avós, mas
tão raro após a descoberta da pílula anticoncepcional). Eu respondia aos olhares de
surpresa dizendo assim: “Não ligue não; eu já nasci casada!”. Descobri que isso
intimidava as pessoas de qualquer outra indagação! Que sorte!
“COMO CRESCI...”
A gravidez não planejada resultou num feto natimorto por prematuridade, mas o
casamento continuou. Por isso era tão estranho dizer que era casada, se, seguidamente,
faziam a pergunta: “E tem filhos?”. Ninguém entendia nada e não era toda hora que estava
a fim de explicar. Mas uma coisa foi certa: não posso dizer que foi um casamento por
obrigação. Já namorava há quase dois anos e meus pais me deram a opção de escolher:
“Você só casa se você quiser”. Mas, como não casar, se meu pai não iria nunca deixar eu
“morar junto” e meu sonho de família estaria ameaçado, mesmo tão antes do ano 2000?!
Duro foi perceber a reação das minhas irmãs com a notícia da gravidez... tão novas,
sentindo-se traídas por mim! Sentia que elas expressavam sentimentos perdidos de amor
e de ódio, tudo junto... Entendi como se não me perdoassem, como se eu as tivesse
abandonado. Não sabiam elas que tudo isso seria um marco na postura dos meus pais
quanto à criação delas duas, que teriam uma vida mais saudável a partir dali. Nunca quis
decepcionar meus pais quanto aos estudos, por isso nunca perdi ano, fiz poucas provas de
recuperação e entrei na faculdade no tempo certo. Tornei-me administradora de empresas
e logo me apaixonei pela área de Recursos Humanos. Mas eu queria saber além das
práticas de R.H., queria entender o que estava por trás do candidato num processo
seletivo; enxergá-lo como ser humano! Interessante que esse viés humano é o traço mais
marcante da minha mãe e o interesse pela gestão surgiu do convívio com a veia comercial
do meu pai. A partir de leituras, pude constatar que precisava encontrar respostas para
446
minhas indagações em outras fontes. Assim, me apaixonei pela Psicologia
Organizacional e pude dar continuidade à minha formação, especializando-me e
satisfazendo as minhas curiosidades pela gestão de pessoas a partir do viés do ser humano.
Tão apegada à família de origem, “a menina que casou adolescente” precisava cuidar da
família que constituiu, sua família nuclear...
“MENINA-MULHER E PROFISSIONAL...”
Prorrogado o plano da maternidade, por obra do destino, cinco anos depois, nascia
Felipe, o filho tão esperado e, dessa vez, planejado! E toda a vontade de fazer diferente
da minha mãe iria por “água abaixo”. Nunca pude ficar em casa somente cuidando da
cria, como minha vó fazia, afinal, precisava contribuir com as despesas do meu casamento
pré-maturo. Quando Felipe tinha dois anos, eu e o pai dele decidimos morar em Ribeirão
Preto-SP, devido a minha aprovação no Mestrado em Psicologia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), do Departamento de Psicologia
e Educação da Universidade de São Paulo (USP), que me levou à decisão de colocá-lo
numa creche, tempo integral, para viabilizar meus estudos. Empolgada, lá também investi
numa Formação de Coordenador de Grupos Operativos no Instituto Pichon-Rivière de
Ribeirão Preto. A psicologia social entrou, então, na minha vida. Com a proposta de
trabalhar a questão da identidade e a análise de instituições e grupos a partir das
representações sociais, defendi a dissertação do Mestrado, curiosamente, exatamente na
data em que havia me casado, só que 12 anos antes: 28 de julho. Uma data escolhida pelo
meu avô paterno para evitar casar em agosto, segundo ele, o mês do desgosto. Um ano
antes da defesa, porém, chegou o momento de uma nova decisão familiar: o divórcio.
Tantos planos, tantos sonhos, tanto investimento! Mas como dizer que não deu certo?
Deu certo sim, por 11 anos, não fossem os inúmeros episódios de infidelidade!
Pesquisadora das representações sociais, eu já sabia que nesse momento tínhamos uma
representação distorcida um do outro e da nossa relação. Antes de me separar, participei
de algumas seleções para docente de nível superior em Salvador e fui chamada para
lecionar. Isso modificou a minha vida, por completo. Era a realização de um sonho de
infância, de carreira e de vida! Minha mãe sempre exerceu este ofício, e eu amava “ser
professora”, seja das bonecas, dos vizinhos, ou das minhas irmãs! Na graduação, me
inspirava nas professoras das disciplinas de que mais gostava e sempre tive a certeza de
que trabalhar com isso me daria muito prazer.
447
“E TANTOS OUTROS CASAMENTOS...”
REFERÊNCIAS
449
O EU E A CIDADE: AUTORRETRATO E MULTIDÃO EM DOIS
ENSAIOS FÍLMICOS1
THE SELF AND THE CITY: THE SELF PORTRAIT AND THE
CROWD IN TWO ESSAYISTIC FILMS
Resumo: Como o cinema de ensaio apresenta intersecções entre o personagem que narra
a experiência na metrópole e a multidão que cruza os seus caminhos? Dois ensaios
fílmicos, Lost book found (1996), de Jem Cohen, e News from home (1977), de Chantal
Akerman, nos apresentam distintas temporalidades e espaços que dão a ver experiências
que intercalam o indivíduo e a coletividade tendo como palco uma mesma cidade, Nova
Iorque. Ao narrar a experiência, esses filmes aderem à subjetiva indireta livre: ou seja,
trazem o olhar do personagem impregnado no estilo de modo a romper com os limites
entre o objetivo e o subjetivo. A ruptura da dicotomia entre as imagens que a câmera vê
(objetivas) e as imagens que a personagem vê (subjetivas), conduz a uma quebra na
identidade Eu=Eu da câmera, em que o cineasta tem certeza de quem é (sujeito) e sobre
quem filma (objeto) e conduz à identidade Eu=Outro, em que ambos se encontram num
devir, em constante transformação. Deste modo, investigamos nesses dois ensaios o modo
como eles formulam agenciamentos coletivos de enunciação, apresentando formas em
que existe uma engrenagem entre o eu e a coletividade incrustada na própria forma do
filme.
Palavras-chave: autorretrato; multidão; ensaio; agenciamentos coletivos de enunciação.
Abstract: How does the essayistic films have intersections among the narrator who tells
his/her experience in a big town and the crowd crossing paths? Two essayistic films- Lost
Book Found (1996), by Jem Cohen and News from home (1977), by Chantal Akerman –
show us distinct temporalities e and spaces which promote experiences related to
individual and the collectivity. The space where ocurrs these stories is New York city.
So, this free indirect subjectivity shows a character’s point of view aimed at breaking
limits among the objectivity and subjectivity The hypothesis is based on the rupture of
duality among the images the camera captures (objective ones) and the images the
character sees (subjective ones). It leads to the self rupture=camera self identity, in which
the filmmaker is aware of who is (subject) and who makes a film. Consequently, the self
leads towards other = Self identity. Thus, both films find themselves in a constant
mutation becoming. We carry out a research which demonstrates how the presentation
collective agencies of enunciation are elaborated. They present forms in which there is a
machine among the self and the collectivity inherent in this type of film.
Keywords: self portrait; crowd; essay; collective agency of enunciation
1
Mesa-redonda Derivas do sujeito no espaço urbano.
2
Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
450
Ruas percorridas por automóveis e transeuntes, enquadradas por planos
geométricos3, que valorizam o equilíbrio das linhas e formas da arquitetura da cidade. Em
News from home (1977), Chantal Akerman4 constrói um olhar entre a objetividade da
arquitetura de Nova Iorque e a subjetividade da experiência da estrangeira que nela reside
temporariamente. A voz over da cineasta Chantal Akerman lê as cartas escritas por sua
mãe perguntando por notícias de sua estadia em Nova Iorque, e tudo o que vemos é o
exterior: a ensaísta escreve sobre si com imagens através do espaço da rua, como se
houvesse uma intersecção entre o seu eu e aquela cidade, de modo que até mesmo os
ruídos de carros e metrôs se sobrepõem à sua voz em certas partes do ensaio; um eu que
é uma condição passageira, como vemos ao final do filme, num plano feito do ponto de
vista de um navio que vai embora de Nova Iorque. Diversos personagens percorrem o
espaço sem sabermos de onde eles vêm, muito menos para onde vão, não nos deixando
nenhuma história, nem sequer um rastro além de suas aparições furtivas. No entanto, é
através do relativo apagamento da cineasta nas marcas de enunciação que esses anônimos
adquirem uma maior força dentro do filme, não se submetendo à sua biografia, e
assumindo uma presença própria que nos remete a outras experiências vividas naquele
espaço.
Lost book found (1996), de Jem Cohen, traz planos do ponto de vista do alto de um
arranha-céu, e ouvimos o narrador-personagem comentar sobre a paisagem que vê e
também sobre aquilo que não pode enxergar, enquanto perscruta as janelas do edifício
em frente, mostrando pessoas percorrendo seus apartamentos na forma de vultos. Em Lost
book found a montagem justapõe os planos do ponto de vista do arranha-céu a imagens
ao rés do chão5 de carrinhos de ambulantes, e o narrador-personagem conta: “eu descobri
3
Segundo Deleuze (1983), o quadro geométrico é aquele onde o espaço é composto por linhas paralelas e
diagonais de acordo com o equilíbrio das formas, apresentando um movimento invariável. Se, de acordo
com o autor, o enquadramento é limitação, os limites do quadro geométrico são definidos por ele como
matemáticos, ou seja, são os limites do quadro que impõem as condições sobre os corpos que o percorrem.
4
Segundo Ivone Marguiles (1996), durante sua estadia em Nova Iorque de 1971 a 1972, a cineasta Chantal
Akerman entrou em contato com o cinema experimental de Andy Warhol e os filmes-diários de Jonas
Mekas. Lembremos que Warhol realizou obras como Empire State Building (1964), um plano-sequência de
pouco mais de oito horas do edifício homônimo em Nova Iorque da noite até o amanhecer, e Sleep (1963),
que mostra mais de seis horas de sono de um rapaz, filmes que apresentam um aniquilamento da
subjetividade e uma pretensão de capturar o cotidiano no seu transcorrer pela reprodução técnica. Já Jonas
Mekas, num ensaio como Lost, lost, lost (1976), apresenta um diário íntimo com imagens fragmentárias da
sua experiência enquanto exilado da Lituânia residente em Nova Iorque. Entre Warhol e Mekas, Chantal
parece herdar o apagamento da subjetividade de Warhol e as inflexões ensaístas com tom autobiográfico
de Mekas.
5
Expressão cunhada por Cláudia Mesquita (2006) no artigo Lost book found: uma cidade ao rés do chão,
451
que, por ficar atrás do carrinho, vendendo, eu havia construído uma parede e uma janela,
de onde podia observar o que acontecia na rua, naquele longo corredor de empresários e
passantes”. Jem Cohen elabora um ensaio que cria ficções a partir de imagens do
cotidiano de Nova Iorque, chegando a confundir não só os limites entre o objetivo e o
subjetivo, promovendo também uma dialética entre o real e o imaginário ao elaborar a
atmosfera onírica sobre a iminência de uma chuva de moedas em Nova Iorque a partir de
flagrantes documentais. As múltiplas narrativas possíveis que habitam as ruas interessam
ao narrador-personagem de tal modo, que chegam a ter autonomia e desestabilizam a
instância narrativa, e assim o filme parte de uma experiência que se conecta a infinitas
outras experiências possíveis na cidade.
ENSAIO E AUTORRETRATO
Os ensaios News from home e Lost book found apresentam subjetividades instáveis,
multifacetadas, proteiformes. Lembremos que, no ensaio, “o sujeito está em movimento,
em metamorfose, em explosões, ele pode tomar diversas faces, elas também
contraditórias”6 (NEYRAT, 2004, p.159, tradução nossa).
Em News from home, a leitora das cartas, Chantal, fala de si convivendo com a voz
da autora das cartas, sua mãe, e se oculta sob a austeridade de planos aparentemente
impessoais. Já em Lost book found, a narração do ex-vendedor ambulante convive com a
instabilidade da memória empreendida pela voz do livro. Os narradores personagens se
esboçam na relação com os outros personagens com os quais se deparam nas andanças
por Nova Iorque: sejam os ambulantes de Lost book found, ou os anônimos no metrô
encarando a câmera em News from home. Esses filmes seguem a lição de Montaigne, que,
segundo Starobinski, elaborava ensaios como registros da sua vida, “mas os ensaios de
sua vida, excedendo sua existência individual, concernem à vida dos outros, que ele não
pode separar da sua” (STAROBINSKI, 2011, p.8).
referindo-se aos enquadramentos do ensaio, que privilegiam um olhar sobre as ruínas de Nova Iorque.
6
No original : “Le sujet y est en mouvement, en métamorphose, éclate, il peut prendre plusiers visages,
eux aussi contradictoires”.
452
Segundo Cyril Neyrat (2004), se o ensaísta é a matéria da sua obra, o ensaísmo está
mais para os autorretratos do que para as autobiografias. Mas, antes de chegar à noção de
autorretrato, vamos primeiramente apresentar o conceito de autobiografia segundo a
concepção pragmática de Phillipe Lejeune (2008), noção problematizada por Paul de Man
(1979) no ensaio Autobiografia como desfiguração.
Primeiramente, saber se os ensaios News from home e Lost book found são
autobiografias envolve parâmetros complexos. Phillipe Lejeune (2008) parte da definição
da autobiografia como um texto onde há identidade entre autor, narrador e personagem,
para depois, a partir de narrativas que tensionam essa relação e deslocam o problema da
primeira pessoa como aspecto central (na autobiografia nem sempre o narrador diz eu),
chegar ao conceito de pacto autobiográfico. Lejeune (2008) conceitua a autobiografia
com base no contrato estabelecido entre escritor e leitor, ou, como no nosso caso, entre
cineasta e espectador. Para o autor, a essência do pacto autobiográfico está na
coincidência de nome entre o autor, o narrador e a pessoa de quem se fala.
News from home, por exemplo, apresenta a leitura de cartas em voz over dirigidas
a Chantal, mesmo nome da diretora Chantal Akerman, o que nos levaria a concluir, tendo
como norte o conceito de Lejeune (2008), que se trata de uma autobiografia. No entanto,
a cineasta jamais fala de si nem da sua relação com a cidade de Nova Iorque, todavia a
sua subjetividade e a experiência da cidade encontram expressão através de planos com
uma duração dilatada, que acolhem a banalidade cotidiana. Como afirma Bergstrom
(2004), “neste filme como em todos os outros, Chantal Akerman não utiliza os elementos
autobiográficos cuidadosamente delineados. Sua vida não é um livro aberto e estamos
bem longe do cinema verdade” 7.
Já em Lost book found nós não conhecemos o nome do narrador que trabalhou como
vendedor ambulante nas ruas de Nova Iorque, embora saibamos por informações
exteriores ao filme que o cineasta Jem Cohen exerceu essa atividade na metrópole, o que
nos leva a suspeitar que a obra apresente elementos autobiográficos. Segundo Philippe
Lejeune (2008), alguns textos ficcionais narram eventos que são conhecidos como
7
No original :“L’oeuvre de Chantal Akerman a toujours une dimension autobiographique. Dans ce cas
précis, on en est proche car, bien que cela ne soit à aucun moment énoncé dans le film, c’est la voix de
Chantal Akerman lisant les letters que sa mere lui a écrites au cours de son premier voyage à New York,
lorsqu’elle avait vingt ans, que nous entendons. Néanmoins, dans ce film comme dans tous les autres,
Chantal Akerman n’utilise que des elements autobiographiques soigneusement délimités. Sa vie n’est pas
un livre ouvert et l’on est bien loin du cinema-vérité”.
453
integrantes da trajetória de vida do autor, mas isso não leva a caracterizar tais textos como
autobiografias, e sim como romances autobiográficos, posto que o autor não assume a
identidade entre autor e personagem, não conformando o pacto autobiográfico. Lost book
found está circunscrito ao grau zero do pacto, ou à ausência de contrato, como afirma
Lejeune acerca de obras literárias em que “não apenas o personagem não tem nome, mas
o autor não firma nenhum pacto - nem autobiográfico, nem romanesco. A indeterminação
é total” (LEJEUNE, 2008 p.29).
Como podemos perceber, os ensaios News from home e Lost book found estão bem
longe de compor autobiografias no sentido clássico do termo, ou seja, não apresentam
uma identidade plena entre autor, narrador e protagonista, nem trazem à tona confissões
acerca de suas biografias que poderiam aludir a uma continuidade coerente de suas
trajetórias de vida.
Segundo Paul De Man (1979), a autobiografia não é um gênero, mas sim uma figura
de leitura que, de certo modo, é encontrável em todos os textos, pois o momento
autobiográfico consistiria na substituição reflexiva mútua entre os dois sujeitos
envolvidos no processo de leitura, o autor e o leitor. Ainda de acordo com De Man (1979),
se todo texto é autobiográfico, ao mesmo tempo nenhum pode ser, pois não é possível o
autoconhecimento pleno, nem a totalização do eu.
EU É OUTRO
Os ensaios News from home e Lost book found vão muito além do falar sobre si em
seus autorretratos elaborados no espaço da cidade, não apenas porque se afastam de uma
narrativa autobiográfica confessional, mas também e, principalmente, porque empregam
recursos estilísticos que dão a ver uma ruptura com uma identidade estável para a câmera.
Não se trata de um eu que explora a sua trajetória de vida, nem de um eu que encara o
outro como objeto. News from home e Lost book found produzem, cada um ao seu modo,
um pacto com a experiência coletiva urbana.
8
No original: “Se vuelve fragmentaria, limitada, disociada, incierta – obsesionada con esta forma superior
de disociación que nace de los disfraces de la ficción”.
455
Ao abordar a narração clássica, Deleuze (2005) a define sob o conceito de “regime
orgânico”, e afirma que “por convenção, chama-se objetivo o que a câmera ‘vê’, e
subjetivo o que a personagem ‘vê’” (DELEUZE, 2005, p. 179-180); isso resulta numa
dicotomia entre imagens objetivas e subjetivas no cinema, como também numa
identidade constante do tipo Eu=Eu. Tal convenção da narrativa clássica é definida por
Pasolini como cinema de prosa, que o cineasta italiano opõe ao cinema de poesia, ou ao
cinema moderno por excelência. Segundo Pasolini (1982), enquanto o cinema clássico
traça uma clara distinção entre o mundo objetivo e a subjetividade dos personagens,
oferecendo pistas bastante didáticas de que “trata-se de uma subjetividade” e não do
“real”, o cinema de poesia confunde os limites entre objetividade e subjetividade ao aderir
à subjetiva indireta livre. No cinema de poesia defendido por Pasolini, o autor não fala
sobre uma personagem, mas segundo sua língua, isto é, incorpora na escritura da obra a
percepção de mundo da personagem através de princípios formais e estilísticos.
Ao tratar dos filmes de Jean Rouch e de Pierre Perrault, Deleuze (2005) alega que
o cinema direto9 que envereda pelas potências do falso apresenta personagens que vivem
o antes e o depois na encenação, que se transformam e fabulam a si mesmas para além do
real e do fictício, cuja verdade é essa mudança e essa interpretação que transcorre diante
da câmera. Deste modo, a subjetividade, não mais centrada, não mais fixa, não mais
constante, migra para a coletividade, transmuta do Eu=Eu para o Eu=Outro, e, portanto,
“a personagem está sempre se tornando outra, e não é mais separável desse devir que se
confunde com um povo” (DELEUZE, 2005, p.185). Assim sendo, as personagens fazem
o discurso da África enquanto Jean Rouch realiza o seu discurso indireto livre em Moi,
9
O cinema direto nasce por volta do final dos anos 50, com a criação dos novos aparelhos portáteis de
gravação de som e imagem, e, em seu primeiro momento, “acredita-se numa posição ética centrada no
recuo do cineasta em seu corpo-a-corpo com o mundo” (RAMOS, 2008 p.269), sendo exemplar o filme
Primary (1960), de Robert Drew. Num segundo momento, um filme como Crônica de um verão (1960), de
Jean Rouch e Edgar Morin, revela uma modalidade do cinema direto que prefere explicitar a intervenção
do cineasta no mundo e a encenação dos personagens no documentário, sendo chamado também de cinema
verdade.
456
un noir, enquanto as personagens de Perrault elaboram o discurso do Quebec em Pour la
suite du monde.
Nos ensaios Lost book found e News from home o coletivo não é apenas o objeto
que está fora e que encanta o ensaísta, mas se incrusta na própria forma fílmica de modo
a desestabilizar a identidade da câmera Eu=eu e convertê-la em Eu=outro. Lembremos
da literatura menor de Kafka, tal como lida por Deleuze e Guattari (1977): uma forma
literária que, diferente da grande literatura, que apresenta o individual tendo como pano
de fundo o contexto político, vincula imediatamente o individual ao político. Da relação
intrínseca entre o individual e o político presente na literatura menor resultam enunciados
completamente contaminados pelo político, de modo que não há enunciações individuais,
mas sim enunciações coletivas. Assim, na literatura menor não há sujeito, mas sim
agenciamentos coletivos de enunciação. Para Deleuze e Guattari (1977), não há um
sujeito por trás do enunciado, assim como não há um sujeito que emana do enunciado10.
Haveria, antes, uma função geral que promove um agenciamento polívoco, de múltiplas
vozes e sentidos, da qual o indivíduo é uma parte e a coletividade outra parte, formando
partes que se relacionam numa engrenagem. Segundo Deleuze e Guattari, a letra K não
designa nem um narrador nem um personagem, mas sim um agenciamento maquínico,
um agente coletivo.
Assim como não se trata de Kafka, nos filmes que estudamos não é Chantal, a quem
se dirigem as cartas de News from home, nem o personagem sem nome de Lost book
found que estão por detrás do enunciado. Em termos de montagem, voz e enquadramento
executados nestes filmes, é possível perceber a instabilidade da subjetividade frente aos
agenciamentos coletivos de enunciação.
10
Ao falar em “enunciado”, é preciso enfatizar que estamos num âmbito diferente da literatura, pois estamos
abordando o cinema. Diferente de Metz, que assimilava a imagem cinematográfica a um enunciado,
Deleuze (2005) se desfaz das amarras do paradigma linguístico, e afirma que a imagem não é um enunciado,
mas sim enunciável. Segundo Deleuze (2005, p.43), a língua existe em relação a uma matéria não-
linguística, e “é por isso que os enunciados e as narrações não são um dado das imagens aparentes, mas
uma consequência que resulta dessa reação. A narração está fundada na própria imagem, mas não é dada”.
457
a leitora das cartas submerge na multidão e nos olhares. Ou em Lost book found, em que
o ex-ambulante, do ponto de vista “de baixo”, vive o corpo-a-corpo na deriva pela cidade.
O agenciamento como co-funcionamento: “nem identificação nem distância, nem
proximidade nem afastamento, pois, em todos estes casos, se é levado a falar por, ou no
lugar de... Ao contrário, é preciso falar com, escrever com. Com o mundo, com uma
porção de mundo, com pessoas” (DELEUZE e PERNET, 1998, p.43).
Lost book found e News from home recorrem à subjetiva indireta livre e dão a ver,
portanto, realidades e subjetividades instáveis e narradores proteiformes, multifacetados.
São narradores mutantes, que narram a experiência em constante transformação. Se o
devir é um infinito tornar-se que nunca chega a uma identidade acabada, que não cabe na
forma do modelo, e implica um encontro, ou núpcias, entre solidões, trata-se de “achar,
encontrar, roubar, ao invés de regular, reconhecer e julgar. Pois reconhecer é o contrário
do encontro” (DELEUZE e PERNET, 1998, p. 8). Segundo Deleuze, o devir pode ser
expresso no estilo, sendo o estilo considerado como um agenciamento de enunciação, ou,
conforme sua síntese trata-se de “conseguir gaguejar em sua própria língua [...]”
(DELEUZE, 1998, p. 4). O autor cita como exemplos de “gagos usando sua linguagem”
o cineasta Godard e o escritor Kafka, entre outros.
Mas não é disso mesmo que é feito o ensaio, desse gaguejar em sua própria
linguagem? Experimentar a linguagem cinematográfica, testar as fronteiras entre os
domínios da ficção e do documentário, através do ensaísta que ensaia a si mesmo nos
encontros que promove com os personagens e o mundo. Numa sequência de Lost book
found, o narrador-personagem parece nos confessar a sua forma inacabada e a incerteza
do assunto do filme. O narrador afirma que as listas do livro perdido permaneceram sendo
ecoadas pela sua memória, com “certos lugares, coisas, e incidentes que parecem se
encaixar como palavras cruzadas”. Um plano em câmera baixa faz travellings e atenta
para uma sacola rodopiando ao sabor do vento numa calçada, enquanto ouvimos a voz do
narrador afirmar: “Com uma forma que sempre muda, cujo assunto eu nunca tive certeza
em primeiro lugar”.
Numa passagem de Lost book found, vemos um cartão onde está escrito “A lifetime
income opportunity”11 – em seguida, um pequeno bilhete com letras escritas à mão
dizendo “To Mom, may you get lots of Money/ Love, Kisha”12; então um travelling segue
11
Uma oportunidade de renda vitalícia (tradução nossa).
12
Para a mamãe, você pode conseguir muito dinheiro. Com amor, Kisha (tradução nossa).
458
um homem adentrando uma passagem subterrânea numa calçada, até que ele fecha as
portas; uma superposição de imagens nos leva a um travelling que avança na direção da
escada que conduz a uma estação no subsolo, por onde desce um casal; em contra-
plongée, a imagem apresenta um outdoor com o rosto de uma mulher sob a penumbra da
noite; ouvimos uma voz dizer: “Eu lhe contarei tudo, tenho uma cidade subterrânea aqui”,
e vemos um misterioso homem de chapéu, de costas, descendo uma escada rolante que
leva a uma estação de trens. Bilhetes que remetem a histórias que não conhecemos,
passagens enigmáticas no espaço da cidade, imagens da metrópole desconhecidas por
nós. Lost book found não atenta apenas para o que antes era invisível aos olhos do
narrador, mas também aponta para o que ainda não é visível no ensaio, para os espaços
da cidade que o filme não consegue alcançar, o que está no fora de campo, e faz alusão a
tantas narrativas que não foram contadas e que nos deixam apenas pistas, rastros, pegadas.
É por isso que o narrador-personagem nos pergunta quem escreveu o livro perdido,
e em seguida apresenta uma série de retratos de anônimos. O ex-ambulante conta suas
histórias mostrando imagens de outros ambulantes como se o narrador se agenciasse com
eles; e o ensaio mostra imagens de pessoas dormindo num trem como se o narrador
também fosse um deles, quando conta que pegava o trem para ir ao trabalho, e por
trabalhar num escritório aos poucos foi perdendo contato com a cidade.
Youssef Ishaghpour, a partir de uma metáfora, nos fornece uma pista sobre News
from home. Em seu ensaio O fluxo e o quadro, o autor defende que há uma relação
intrínseca na obra de Akerman entre a reprodução técnica e a busca pelo apagamento da
subjetividade. No entanto, ao referir-se a News from home, o autor nos indica (com um
460
questionamento) uma relação entre procedimentos estéticos áridos (especialmente no que
diz respeito ao enquadramento), na transmissão da experiência, e uma forma que vincula
o pessoal e o coletivo.
13
Godard define o ensaio como “uma forma que pensa” em Histoire(s) du cinéma.
461
Na literatura menor, tal como definida por Deleuze e Guattari (1977), em que o
universo individual é perpassado pelo político: é o flâneur de Lost book found que tem
“um olhar para baixo”, um interesse pelas coisas ínfimas e pelos personagens menores,
marginalizados na sociedade capitalista. Já News from home se situa entre a
impessoalidade da rigidez do quadro e a subjetividade da leitora das cartas, no cruzamento
dos olhares entre a câmera e os personagens: quadros em que a negação da perspectiva
central e a mobilidade do olhar estimulada pela profundidade de campo se afastam do
ponto de vista do “sujeito que vê o mundo”, desestabilizando a identidade Eu=eu da
câmera através de uma narradora-personagem que se agencia com a multidão que
atravessa a cidade. Eu e outro não são essências, e conhecemos a narradora-personagem
através da relação que ela estabelece com a cidade e os seus personagens.
REFERÊNCIAS
______. O olho interminável: cinema e pintura. Cosac e Naify: São Paulo, 2004.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira
Alves. 3° edição. Editora Vozes: Petrópolis, 1998.
462
______. e GUATTARI, Félix. Kafka – por uma literatura menor. Rio de Janeiro –
Imago editora, 1977.
MESQUITA, Cláudia. Lost book found: uma cidade ao rés do chão. Devires – Cinema e
Humanidades. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Comunicação/Mestrado
em Antropologia da UFMG, 2008.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? – São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2008.
463
A CONSTRUÇÃO DE UM SUJEITO DE OPOSIÇÃO NO
WEBDOCUMENTÁRIO THIS LAND1
Tatiana Levin2
Resumo: Este artigo traz uma análise de This land, um webdocumentário em formato de
diário de viagem realizado pela primeira mulher a ser membro de uma expedição militar
de patrulhamento das fronteiras canadenses do extremo Ártico. This land é ainda um
documentário autobiográfico que narra a experiência de uma cineasta acompanhando
uma expedição militar por 16 dias em mais de 2000 km de paisagens gélidas e baixas
temperaturas. Queremos olhar primeiramente para esse webdocumentário do ponto de
vista do conteúdo narrativo, visando contemplar a especificidade de um documentário
feito para a web e as possibilidades narrativas que derivam desse formato. Em segundo
lugar, vamos posicionar This Land como um produto autobiográfico. Pensaremos ainda
em como a escolha pela autobiografia atendeu às demandas de um suposto interesse
público diante das possibilidades derivadas da situação em foco. Finalmente, vamos
perceber como é construído o eu personagem e o outro e de que modo essas vozes estão
organizadas nesse produto documental.
Palavras-chave: Autobiografia, webdocumentário, análise fílmica, narrativa
Abstract: The aim of this article is to analyse This Land, a webdocumentary in the form
of a travel diary of the first woman to be a member of a military expedition patrolling the
Canadian border in the Arctic Circle. This Land is also an autobiographical documentary
which narrates the experience of the filmmaker accompanying the expedition for 16 days
covering more than 2000km of frozen territories in freezing conditions. We examine this
webdocumentary first of all from the viewpoint of the narrative content and its specificity
as a documentary made for the web and the narrative possibilities which come with this
format. Secondly, we examine This Land as an autobiographical work. We are going to
consider if the choice for an autobiographic approach satisfies the supposed demands of
the public interest, given the possibilities that arise from this theme. Finally, we go on to
see how the first person and the other are constructed and the way in which these voices
are organized in this work.
Keywords: Autobiography, webdocumentary, film analysis, narrative
1
Mesa-redonda Experimentos bioficcionais no cinema e na literatura.
2
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
464
INTRODUÇÃO
Embora esse eu narrador seja fartamente ouvido, não há sua imagem visual, mas
daquilo que ele registrou com sua câmera. O espectador pode apenas construí-lo por meio
dessa mulher que fala em tom confessional desfilando verdades privadas num espaço que
poderia ser o de um relato objetivo, de algo de caráter público, se pensarmos que uma
missão oficial governamental tem relação com uma nação e com seus cidadãos. E se o
relato autobiográfico pode mesmo que subjetivamente desenhar o outro, há nesse caso,
pouco espaço para a percepção desse outro, pelo menos o outro que é humano, pois aqui
o outro é tudo aquilo que a cineasta tem que enfrentar para completar a jornada a que se
propõe. O outro é tanto a realidade adversa do Ártico que traz enormes dificuldades para
ela quanto a equipe que cria obstáculos por ser um grupo militar com um esquema rígido,
o que é característico da própria instituição.
Mas quem é esse eu criado em This land? E por que ele se torna algo tão
frontalmente oposto ao outro humano relatado? Existe uma construção do eu enquanto
um sujeito de oposição. Interessa ainda pensar o uso que faz a autora do espaço
documental para falar do outro. Começamos destacando a organização do conteúdo
narrativo a contemplar a especificidade de um documentário feito para a web nas
possibilidades que derivam desse formato. Um webdocumentário é um tipo de
documentário não linear e interativo que permite diversas linhas paralelas de apresentação
do conteúdo narrativo e que é feito para ser experienciado on-line.
This land organiza-se numa ordem cronológica onde a voz off da narradora liga os
diversos dias de expedição. Um dos recursos interativos permite que se navegue em cada
465
dia separadamente determinando-se a velocidade do conteúdo imagético a ser acessado,
sendo ele composto de fotos, filmes, textos na tela e da localização em mapas. Pode-se
baixar o off separadamente e acompanhar o texto escrito na tela por dia enquanto se escuta
o relato na banda sonora. A duração do off de cada dia determina o tempo que o
espectador-usuário tem para interagir com o conteúdo visual disponível, sendo a sua
velocidade de cliques o que lhe permitirá ver mais ou menos conteúdo imagético.
No seu formato de diário de viagem, cada dia tem um número e um título particular.
A primeira fala da autora é, no entanto geral, sendo enquadrada como o dia zero, e é lá
que ela fala de sua motivação para a viagem, introduz os outros (paisagem e grupo militar)
e desenha o seu eu como um sujeito diferente do grupo. De título Sonhos de uma
paisagem congelada. Preparações para um Everest horizontal3, o dia zero começa com
a seguinte fala: “Eu queria desesperadamente ir para o Norte e não apenas para ver por
mim mesma, mas para fotografar e capturar aquilo de alguma maneira antes que sumisse”.
E então ela explica que negociou sua entrada na missão militar por meio da promessa de
contar com suas câmeras a história de como esse grupo realiza essa missão e porque o
faz.
3
Todas as traduções contidas neste artigo são de responsabilidade nossa.
4
Algumas falas polêmicas: “Eu não sou exatamente um exemplo para o exército. Sou gay, apreciadora de
whisky, usuária de maconha, fotógrafa cineasta”; “Nunca havia tido uma mulher nessa patrulha e havia
muito ceticismo quanto a mim, eu era a garota da mídia”; “Eu preferiria ir para a cama com suas esposas”;
“Os rapazes estavam tendo bastantes problemas com o fato de eu ser mulher. Seria provavelmente melhor
que eles não soubessem que eu também era lésbica” (Quando o comandante soube que ela era gay – “Você
não pode dizer que é gay aos Inuítes do nosso grupo. Eu não me importo, mas os Inuítes não aceitam a
homossexualidade. Para mim, é importante que todos trabalhem como um time na nossa patrulha. Eles
podem te deixar morrer lá fora se souberem que você é gay”.
466
patrulha militar, obedecendo regras militares. Sua dificuldade e provavelmente sucesso
na missão deriva daí, daquilo que primeiramente lhe pareceu uma restrição5.
Nesse jogo entre som, imagem e como ambos estão relacionados há uma estrutura
disjuntiva em This land, onde imagem e som estão desvinculados independentemente da
velocidade de cliques do espectador-usuário. Há um excesso de informação escrita na tela
que tende a desconcentrar, já que é o áudio em off que traz o conteúdo principal e que,
supostamente, organiza toda a narrativa. Recursos como baixar o áudio separadamente
em mp3 ou ler o texto na tela remetem a um aproveitamento restrito dos recursos do
webdocumentário.
5
Algumas falas nesse sentido: “Para ir na missão eu tinha que ser parte da patrulha”; “De repente, eu não
me senti como uma fotojornalista. Me senti mais como um soldado desertor, relutante em ir para a guerra”.
6
“Para que haja autobiografia […], é preciso que haja relação de identidade entre o ‘autor’, o ‘narrador’ e
o ‘personagem’” (LEJEUNE apud COELHO; ESTEVES, 2010, p. 25).
467
Podemos, dessa forma, retomar o primeiro problema colocado aqui, o de verificar
que estamos lidando com um produto autobiográfico. This land trabalharia a coincidência
entre autor e personagem a partir dessa intenção autobiográfica já que há uma autoria
compartilhada no texto. Um segundo problema seria o uso de uma voz outra a narrar os
acontecimentos, portanto de uma intérprete, sendo a voz off o recurso que nos faz
reconhecer Dianne e não sua imagem, já que esta não se faz presente. Novamente,
podemos pensar num uso estilístico dessa outra voz. A discussão assim já seria deslocada
para o que pode ou não ser feito no documentário e, nesse sentido, o próprio campo já
incorporou a encenação como recurso de mise en scéne que não descaracteriza o gênero.
Outra tese defendida por Renov nesse texto é a de que o autobiográfico envolve e
é contagiado pelo político (2008, p. 47). Essa tese é trazida pelo autor na função de
mostrar que a autobiografia não é incapaz de fazer referência ao campo social. Dialoga
ainda com a ideia de documentário como lugar para o discurso político defendida na
cultura institucionalizada do gênero. A auto-construção para o autor é realizada através e
com o político, do lugar de uma reconciliação de múltiplas identidades que com sucesso
podem despreender-se de relações sociais. Citando Michel Foucault, Renov (2008, p. 47)
relembra que pensar “quem somos nós” é a questão mais importante do nosso tempo, pois
reafirma uma atitude política de sobrevivência. É a negação do sujeito em submeter-se às
pressões massivas tanto no plano da representação - trazida para ele na publicidade, nas
notícias e na indústria de entretenimento -, quanto nas pressões sociais exercidas pelas
instituições governamentais. “Não somos apenas o que fazemos num mundo de imagens;
somos também aquilo que mostramos de nós mesmos” (RENOV, 2008, p. 48). A
autobiografia fílmica é, portanto, para o autor um movimento que se insere numa ação de
política identitária.
Tomando-se como base a visão de Renov e as questões colocadas por ele, podemos
dizer que em This land Dianne faz um movimento de afirmação política. Uma afirmação
que se dá na revelação do seu homossexualismo e a implicação disso no contexto de uma
missão militar, de caráter governamental, na qual ela é pioneira como mulher presente.
Manter segredo de sua opção sexual naquela situação passa a ser uma questão de
sobrevivência em meio ao grupo, como lhe alertou o comandante da missão7. Por
questões talvez ideológicas e certamente estratégicas na construção da personagem,
Dianne faz questão de revelar-se lésbica para o espectador, compartilhando assim uma
dificuldade a mais a superar na viagem. Poderíamos supor que um outro relato que não
passasse por esse filtro subjetivo pudesse ser feito por qualquer um. É a exposição de um
7
Rever falas transcritas citadas anteriormente na nota 4 deste mesmo texto.
469
conteúdo de ordem privada que agrega autenticidade ao relato, afirmando uma identidade
e trajetória particulares de Dianne na jornada pelo Ártico.
PÚBLICO X PRIVADO
8
Ator social é um conceito trazido por Bill Nichols (2001, p. 31) que remete a noção de que em um
documentário as pessoas filmadas representam a si mesmas, sendo uma definição em si que dialoga
com a de ator de ficção, aquele que representa um papel que não é relacionado diretamente a sua vida
real.
470
acessado, dando uma visão geral do percurso e do que foi percorrido naquele dia. Existe
ainda um quadro com fotos de alguns membros da missão apresentando com textos
personalizados em tom informal e afetivo9, do ponto de vista da importância deles na
equipe segundo o olhar de Dianne. No entanto, embora This land contenha alguns dados
que trazem um viés objetivo ao relato, a narrativa principal que é guiada pelo off
representando Dianne é dominada pelo tom subjetivo e confessional. Os dados objetivos
servem para construir o Ártico como esse outro quase intransponível, o que eleva o status
de Dianne ao cumprir a missão. Embora a dificuldade e adversidades climáticas atinjam
a todos, é relatada a dificuldade de Dianne. As informações assim apresentam como foco
a jornada de dificuldades enfrentada para que o eu-personagem conseguisse cumprir a
missão. O viés subjetivo predominante pode não contemplar a riqueza da situação
retratada, bem como a ausência de depoimentos de outros membros da missão tende a dar
a impressão de que faltou algo10.
Bill Nichols (2001) teorizou sobre o documentário a partir da organização das vozes
numa narrativa feita de escolhas. Ele falou do lugar para a expressão da voz desse outro
que não representa necessariamente a opinião do cineasta e lembra que o ângulo de
narração proposto e de representação do outro mostra uma determinada interação entre
cineasta, tema ou atores sociais, e público. O autor formulou verbalmente algumas
possibilidades dessa interação a depender de como esse eu (autor) fala do outro (ator
social/tema) para um outro (espectador), sendo “eu falo deles para vocês” a forma que
considera clássica (NICHOLS, 2001, p. 40).
9
A descrição de um dos membros segue assim: “Paul dirigiu na segunda posição atrás de Allen. Ele é
bisneto de Roald Amundsen, o primeiro homem a navegar a Passagem do Noroeste. Ele é um guerreiro;
o tipo de cara que você quer por perto se estiver com problemas”.
10
Há um outro documentário This land d a mesma Dianne Whelan disponível na internet, mas sem as
características de um webdocumentário, pois se apresenta com duração fixada em cerca de 35 minutos
e sem opções interativas com conteúdos diversos a serem acessados. Esse outro produto apresenta
depoimentos dos outros membros, trazendo um outro olhar para a missão. É a missão que está em foco
e não os pensamentos de Dianne. Disponível em: < https://www.nfb.ca/film/this_land>. Acesso em: 20
fev. 2014.
471
claramente subjetiva do tipo onde aquele que fala, o “eu”, fala não apenas deles, mas
também de si. E se há um tema retratado, ou atores sociais dentro da situação filmada, é
preciso perceber de que forma essa história é contada, se além do eu autor falante há um
outro que tem voz a construir o ponto de vista do filme.
Se em This land não existe um nós em grande parte da narrativa, já que a cineasta
se constrói como o “estranho no ninho”, interessa falar das dificuldades pessoais, como
fazer xixi e ter alguma privacidade dentro do grupo. Isso muda um pouco no 15º dia da
missão quando há uma transformação desse eu-autor-personagem quanto ao seu
entendimento da função da missão. Ao fim da jornada ela se descobre emocionada: “Eu
sou o sangue do Canadá”. A emoção de desempenhar um papel patriótico iguala todos
nesse momento e faz a cineasta desenvolver uma digressão em busca da raiz de seus
antepassados.
CONCLUSÃO
472
apoiada no off. Uma das grandes novidades desse formato está no oferecimento de
diversos modos de se organizar o conteúdo da narrativa desafiando-se a linearidade,
quebrando-se a sensação de que há uma única história fixada. Sendo esse um formato
novo, explorá-lo narrativamente com criatividade para contar uma história parece ainda
ser o grande desafio.
Portanto, o uso do relato autobiográfico não é um problema, mas sim o recorte que
implica numa perda de oportunidade de falar da missão e do seu caráter patriótico de mais
de um ponto de vista. Até a verdade final de Dianne quando da descoberta de uma veia
patriótica é uma verdade privada. E se algo pode ser entrevisto do outro é apenas sua
imagem fotográfica, uma pose ao fim da jornada.
REFERÊNCIAS
473
COELHO, Sandra; ESTEVES, Ana Camila. A narrativa autobiográfica no filme documentário:
uma análise de Tarnation (2003), de Jonathan Caouette. Doc on-line: Revista digital de cinema
documentário, Covilhã, PT; Campinas, BR, n. 9, dez, 2010. Semestral. ISSN 1646-477X.
Disponível em: < http://www.doc.ubi.pt/index09.html>. Acesso em: 20 fev. 2014.
NICHOLS, Bill, (2001). Introdução ao Documentário. 2 ed., Campinas, SP: Papirus, (Coleção
Campo Imagético), 2007.
THIS LAND. Disponível em: < thisland.nfb.ca/#/thisland >. Acesso em: 20 fev. 2014.
WINSTON, Brian. Claiming the real II: documentary: Grierson and beyond. 2 ed., London,
UK: British film institute, 2008, p. 253-260.
474
IMAGENS EM AMBIENTES DIGITAIS E SUA RELAÇÃO COM O
PRESENTE1
Vitor Braga2
Abstract: Mobile devices, social networking sites and digital photography have an
important role within contemporary sociability. These shared images create narratives of
itself in a context of constant display. The work reflects on the ability of images to build
an individual or collective memory, which was based on the ability to return to a past that
with the new interactional dynamics increasingly has a bearing on the present.
Keywords: photography; social networks; memory, mobility.
1. INTRODUÇÃO
1
Mesa- redonda As múltiplas narrativas de si presentes nas plataformas das redes sociais digitais.
2
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e Contemporâneas, da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e professor do curso de comunicação da Universidade Federal de Sergipe
(UFS).
475
resultante dessa grande demanda pela exibição de si característico da contemporaneidade,
como sugere Fernanda Bruno (2005).
2. FOTOGRAFIA E COMPARTILHAMENTO
A argumentação desse trabalho está voltada para uma prática fotográfica que,
conforme Batchen (2002), costumou aparecer de maneira periférica, supostamente sem
476
profundidade e densidade. Seria o que o autor chama de lado vernacular da fotografia; ou
seja, trata-se de um tipo de imagem produzida domesticamente, e que costuma não ter
espaço na grande história da fotografia. Porém é onde a indústria do setor, com as câmeras
ditas amadoras, vai obter a maior parte dos seus lucros – com aproximadamente 95%.
São os retratos fotográficos, que comumente recebe a expressão snapshot (em inglês) e
que, em 2013, passou a ter grande repercussão principalmente nos autorretratos nas redes
sociais na internet, tendo a expressão selfie recebido bastante destaque no vocabulário
comum dessas redes3.
De acordo com Silva Junior (2013) para a grande maioria das pessoas, a fotografia
vernacular seria a prática cultural de imagens mais acessível, direta e vinculada ao
percurso de cada um – como o de uma família indo às férias, ocasiões sociais como
reuniões com amigos, ou mesmo eventos solenes como casamentos e batismos, dentre
outras possibilidades. Por ter temáticas e enquadramentos aparentemente parecidos em
todo o mundo (BOURDIEU, 1990), esse grande volume de imagens produzidas tende a
ter sua menor importância no círculo acadêmico; isto porque se compreende que nessa
sua “repetição” reside justamente uma fraqueza.
Ainda, Batchen (2002) vai tratá-la como algo ordinário, com menor pretensão
estética, produzido para um consumo doméstico e que habita álbuns de família e,
atualmente, podemos constatar a sua existência nas páginas dos sites de redes sociais.
Tais imagens condensam valores preciosos para seus praticantes, como as nossas noções
de identidade, de relação com os outros, de unidade familiar. Nesse sentido, trabalhos
irão concluir que o nível de interação e disseminação de cada imagem está ligado à
amplitude rede de contatos dos usuários que as postam, e não a valores normalmente
atribuídos por um determinado grupo às fotografias.
3
Abreviatura de self portrait, o termo ganhou um registro na versão eletrônica do dicionário Oxford, que
ainda o consagrou com o título de “palavra do ano” no início de novembro de 2013. Segundo Ruic (2013)
a decisão do dicionário aconteceu depois que foi detectado um aumento de mais de 17.000% no uso da
palavra selfie entre 2012 e 2013.
477
o período da juventude é a fase da vida na qual dois terços de todas as imagens de um
indivíduo são produzidas.
Variáveis Propriedades
Mediação dos cenários de interação. Desenvolvimento de dispositivos
1. Condições materiais
e ambientes que estimulam o processo.
Mecanismo para compartilhar o agora. Fotografia que promove
2. Fotografias
relações afetivas.
Apropriações dos ambientes e dos dispositivos. Demanda social;
3. Usuários
exposição de si.
Tabela 1: Variáveis para a análise das imagens compartilhadas
4
Tradução livre para: “it functions to fix a being-that-has been (a presence in the present that is always
past). Paradoxically, as it objectifies and preserves in its acts of possession, the photographic has
something to do with loss, with pastness, and with death, its meanings and value intimately bound within
the structure and investments of nostalgia.”
478
Conforme observamos na Tabela 1, as variáveis buscariam dar conta de
componentes que ao longo do tempo se alterariam e, com isto, transformariam o papel
que as fotografias exerceriam nas trocas sociais. Dessa forma, a primeira variável
considera de que forma o próprio ambiente no qual as redes sociais se articulam poderia
prescrever ações, ao passo que por um lado permitiria determinados engajamentos e
restringiria outros. Na segunda, cabe observar o modo como os dispositivos técnicos
produtores de imagens seriam capazes de prover imagens que os indivíduos demandam;
nesse caso, se observaria como as câmeras estão presentes no cotidiano – sua
disponibilidade. Já a terceira variável pretende se voltar para os usuários, e de que maneira
eles se apropriariam das duas primeiras variáveis a fim de satisfazer necessidades como
o gerenciamento de sua impressão ou a exposição de si nos mais diversos cenários de
interação.
479
reboque um tipo de fotografia que começava a surgir como recurso de construção de
narrativas pessoais, familiares, amadoras (FABRIS, 1998).
5
<www.instagram.com>.
6
Responsável pela popularização das câmeras analógicas, tendo seu formato de filme analógico
considerado importante até a contemporaneidade.
7
O primeiro modelo comercial, a Kodak nº 1, também conhecida como Brownie, só vinha com o botão de
disparo do obturador e todo o processo de troca do filme e revelação era feito nos laboratórios, facilitando
o manuseio da câmera (GUSTAVSON, 2005).
480
como uma das principais capacidades da fotografia: a de “congelar” e preservar a
dinâmica homogênea e irreversível deste fluxo temporal para o espaço abstrato,
atomizado e protegido de um momento.
Nesse sentido, Rouillé (2009) aponta que o processo conhecido por analógico, ao
ser facilmente reproduzido e guardado, adquire um valor documental – mesmo que esta
concepção possa ter seguido por um caminho que foi passível de críticas8. Sendo uma
das funções do documento justamente arquivar, Ruillé (2009) acredita que tal valor
documental seja característico da modernidade, em decorrência do processo de
industrialização no qual esse momento histórico está inserido. A fotografia surgiria em
substituição às máquinas manuais; ou seja, do setor primário ao setor secundário,
surgindo assim a função do operador. Essas fotografias seriam, nessa perspectiva,
resultantes dessa passagem da ferramenta para a máquina e da oficina para o laboratório;
o que, no campo das imagens, teríamos a substituição da pintura (figurativa) para a
fotografia, em função da crença em sua exatidão e em sua verdade. As imagens
fotográficas seriam assim a representação moderna das cidades que passavam por um
rápido crescimento populacional, principalmente no continente europeu. O mundo
tornava-se familiar, pela multiplicidade de retratos e temáticas (FABRIS, 2008).
8
Dentre as abordagens que vão de encontro ao seu valor primeiramente documental, Rouillé (2009) vai
apontar que essa capacidade de ser rastro – de ser o “isso foi” como considera Barthes (1984) – não atenta
para o seu valor de produzir também imagens, de fabricar mundos. O importante não seria posicionar a
fotografia enquanto mero registro de algo no qual o fotógrafo apenas opera em sua fixação no tempo, mas
sim explorar como a imagem produz o real.
481
entre a produção e a apreciação. A única forma de se desvencilhar desse tipo de situação
seria o envio dessas imagens, o que também obedeceria a um tempo ainda maior entre
produzir imagens e a rede social do indivíduo ter acesso às mesmas.
Mais do que facilitar e garantir o acesso, a questão que se colocava para a Kodak
era como a fotografia poderia passar a ser um produto que despertasse o interesse das
pessoas em registrar os momentos cotidianos e posteriormente compartilhar, através de
diversos meios – álbuns, correspondências, reuniões –, para uma rede social que, por
conseguinte, teria o interesse por essas imagens. Como aponta Sontag (2004), a proposta
de Eastman de transformar a imagem fotográfica numa prática cultural foi bem-sucedida,
a ponto dos indivíduos estarem inseridos num contexto no qual são impelidos a registrar
suas vivências cotidianas, tendo em vista uma demanda social por esse compartilhamento
de experiências das pessoas nos lugares e nos diferentes contextos.
482
Com relação ao segundo uso proposto por Van House (2009), citamos aqui o
trabalho de Sibilia (2005), ao entender que o motivo do engajamento dos usuários, bem
como as possibilidades fornecidas pela ambiência, auxiliaria na construção de narrativas
de si, visando sempre à compreensão de (1) qual a sua rede social, (2) quais os seus gostos
e (3) as suas afinidades. Já em seu livro, a autora parte de uma mesma perspectiva de
análise para tentar defender como essa construção de narrativas do “eu” estariam
operando para uma reconfiguração do que estaria restrito apenas a determinados grupos,
mas que atualmente é compartilhado com uma rede muito mais ampla, e com menor
restrição (SIBILIA, 2008).
Por fim, no que tange à memória, seria possível compreender como o conhecimento
das pessoas acerca dos lugares é influenciado por uma rede social que opera na orientação
daquilo que é cabível de ser visitado e, por conseguinte, fotografado. Assim como
defendeu Sontag (2004), o conhecimento que os indivíduos possuem das grandes cidades
é fruto de uma promoção feita pela experiência mediada das imagens – que pode ser
obtido através de campanhas de turismo, ensaios fotográficos, álbuns de amigos e
parentes, dentre outras formas de acesso através das imagens; tal conhecimento, de certa
maneira, agenciaria na atividade de visitação e ação perante algum lugar, que nos faz
eleger aquilo que é “digno de conhecer e ser fotografado” na nossa experiência direta com
este. Ainda, como aponta Bourdieu (1990), tal memória estaria também em processo a
partir de certos cânones – ainda que implícitos – do modo como se devem ocorrer as
representações nas imagens: a forma como as pessoas deveriam estar posicionadas para
a câmera, o modo como certos lugares deveriam compor um pano de fundo para retratar
a presença da pessoa em determinada localidade, dentre outros códigos possíveis de
serem identificados.
Não por acaso, os usuários, nesse contexto de grande exposição de si, buscam essa
rápida circulação de suas imagens por essa demanda social que se criou nesses ambientes.
O resultado desse investimento dos usuários no ato de fotografar e compartilhar nas redes
483
sociais na internet pode ser percebido no número de imagens produzidas: dados do site
10.000 memories vão indicar que, a cada dois minutos, tiramos mais fotos que toda a
humanidade tirou no século XIX. Tomando como exemplo o Facebook9, o site com maior
número de usuários ativos10, os álbuns são as páginas mais acessadas.
Nesse montante, o blog do Facebook publicou que no último ano seus usuários
fizeram o upload de 70 bilhões de fotos. E, como estratégia de reserva de mercado, se
antecipou a outras grandes empresas do setor ao anunciar em 2012 a compra do aplicativo
Instagram – um investimento buscando ampliar a utilização de redes sociais mediadas
por tecnologias de comunicação nos aparelhos móveis, como veremos a seguir.
Nesse terceiro ponto refletimos sobre como essas narrativas visuais estão cada vez
mais próximas de uma expressão do “agora”. Isto porque, ao revelar narrativas cotidianas
de si, o uso social das imagens estaria mais localizado na representação dos fatos diários,
ao invés dos momentos solenes. Em acréscimo à velocidade da informação que precisa
ser transmitida, questionamos se essas imagens teriam o mesmo valor documental. De
que memória estamos falando aqui? Esta se trata de uma questão importante para o
presente trabalho.
9
<www.facebook.com>.
10
De acordo com os últimos relatórios disponíveis no blog oficial, o Facebook chegou em 2014 à marca
de 1,23 bilhão de usuários ativos – ou seja, que acessaram a conta nos últimos 30 dias. Fonte:
<https://blog.facebook.com/>.
484
Nesse sentido, o referido aplicativo se apresenta como um exemplo contumaz, pois o ato
de compartilhar as imagens não está descolado do próprio ato de fotografar. Ou seja,
fotografar através do aplicativo requer o estabelecimento de uma interlocução imediata
com sua rede social, pois para seu efetivo uso é necessário estar conectado; do contrário,
o usuário se depara com uma mensagem de erro.
A inexistência dos álbuns nos leva a crer que, no ponto de vista das condições
materiais, aplicativos como o Instagram operam com a finalidade de não arquivar
necessariamente, mas sim de servir como um canal de interação. A própria lógica da
timeline não ajuda no resgate das imagens mais antigas, pois para tanto o usuário teria
que acessar individualmente cada conta e teria que buscar as imagens mais antigas,
conforme a Figura 1; o que parece ser uma limitação técnica no ambiente pode ser
486
entendido também como um mecanismo para que as “curtidas” e os comentários11
ocorram sempre nas postagens mais recentes de cada um.
Como argumenta Afonso Silva Junior (2012), olhar para uma linha do tempo do
Instagram seria estabelecer uma conversa que fala, simultaneamente, através do olho, e
da percepção de um regime de visão autobiográfico que perpassa a produção fotográfica
contemporânea. Pequenas imagens, pequenas narrativas, outras histórias.
11
Recursos possíveis para o estabelecimento de trocas sociais no aplicativo Instagram.
12
Resultado de uma cultura do excesso, as imagens se apresentam na timeline de um indivíduo em uma
sequência muito rápida, quase fugaz, na qual ele é tomado a endossar algo (curtir, comentar,
compartilhar) em uma frequência muito mais rápida do que antes.
13
Abreviação para Digital Single Lens Reflex.
487
a essa parcela da população essas demonstrações de amizade apresentadas por meio das
fotos no Instagram.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos nesse trabalho discutir o atual papel da fotografia, tendo em vista o modo
como ocorrem as interações nos ambientes digitais – especificamente nos sites de redes
sociais (SRS). Procuramos argumentar de que maneira as câmeras ganharam ainda mais
força como um mecanismo para a performatividade dos indivíduos, para além de uma
memória autobiográfica. Nesse sentido, a fotografia perde o valor enquanto artefato de
memória, ao passo que amplia suas formas de compartilhar nas redes sociais na internet.
Não por acaso, essa experiência, quase em tempo real, inerente ao Instagram é
importante para a conversação em rede e principalmente no processo de negociação social
travado entre os atores em um contexto de grande exposição de si. Assim, é importante
ressaltar que essa exibição do dia a dia pode, em uma primeira análise, conferir às
imagens um valor mais efêmero, porém não menos importante para os usuários. Esse
trabalho, assim, esteve tratando de uma forma de narrativa visual, contínua e
interdependente, que estaria se complementando em pequenas partes, a cada dia, sem um
projeto definido.
5. REFERÊNCIAS
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1984.
BATCHEN, Geofrrey. Each wild idea: writing photography history. Cambridge: MIT Press,
2001.
488
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fotologs e reality shows. Contemporânea, Vol. 3. Salvador, Julho/Dezembro de 2005.
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International Journal of Human-Computer Studies, 67 (1), 1073-1086. New York: Science
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the present. Los Angeles: Taschen, 2005.
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em <http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/palavra-do-ano-selfie-se-consolida-como-
mania-na-internet>. Acesso 10 em fev. de 2014.
SARVAS, Risto; FROHLICH, David. From snapshots to social media: the changing picture of
domestic photography. Londres: Springer, 2011.
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In: Lucera, v. 10, p. 4-11, 2005.
______. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
______. Imagens feitas para usufruto doméstico. Continente Multicultural (revista), p. 80-85, v.
149. Recife, maio de 2013.
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“presence”. In: GUMBRECHT, Hans Ulrich; PFEIFFER, Karl Ludwig. Materialities of
communication. Stanford: Stanford University Press, 1994.
SOLOMUN, Sonja. A mobile army of metaphors: archiving, sharing, and distributing the social
in digital photography. Tese. Department of Sociology of Queen’s University. Ontaria (CAN),
2011.
489
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2004.
TURKLE, Sherry. Alone together: why we expect more from technology and less from each
other. Nova York: Basic Books, 2011.
490
A COLONIZAÇÃO DO COTIDIANO NA FICÇÃO DE JEAN RHYS1
Viviane de Freitas2
Resumo: A escritora Jean Rhys (1890 – 1979) deixou a ilha caribenha da Dominica, onde
nasceu, aos dezesseis anos para viver na Inglaterra. A situação de não pertencimento,
desterritorialização e deslocamento experimentada pelas heroínas dos seus romances
modernistas reflete a própria experiência da escritora, que desde muito jovem teve que
lutar sozinha pela sobrevivência nos centros metropolitanos europeus. Essas narrativas
ficcionais, publicadas entre 1928 e 1939, têm em comum o cenário das cidades modernas
no período entre guerras e a figura da protagonista, uma mulher jovem, de origem
caribenha ou de origem não identificada, sem família e deslocada, que vive nas margens
destes centros metropolitanos. Os romances modernistas de Jean Rhys são marcados pelo
senso de sobrevivência e pela repetição, traduzindo perfeitamente a ideia de Maurice
Blanchot de que “nada acontece, isso é o cotidiano”3 (BLANCHOT apud
SHERINGHAM, 2006, p. 19, tradução nossa). Bom dia, Meia-noite em particular, com
o seu enredo mínimo no qual nada parece acontecer, concentra-se em atividades comuns
do dia-a-dia, como andar, comer, beber, fazer compras, olhar vitrines de lojas, observar
o movimento da vida da cidade parisiense. O romance evoca de diferentes formas a ideia
de estagnação, repetição, passividade e falta de perspectiva explorada por Blanchot. A
imagem de uma mulher presa num labirinto, andando em círculos, sem conseguir
encontrar uma saída é dominante neste e nos outros romances metropolitanos da escritora.
Em seu livro Everyday Life, o teórico Michael Sheringham observa que a modernização
resultou naquilo que o filósofo e sociólogo Henri Lefebvre e os Situacionistas nomearam
"a colonização da vida cotidiana"4 (SHERINGHAM, 2006, p. 10, tradução nossa).
Centrando-se nas respectivas análises de Lefebvre em Critique of Everyday Life e do
situacionista Guy Debord sobre a alienação do cotidiano, Sheringham indica como a
ascensão e a predominância da industrialização trouxe a privatização e o empobrecimento
da vida cotidiana, desconectando a vida da história e de acontecimentos reais, e tornando-
se uma construção essencialmente imaginária, o mundo do consumo puro. Este trabalho
tem por objetivo fazer uma leitura do romance Bom dia, Meia-noite, a partir do diálogo
com teóricos do cotidiano.
Palavras-Chave: Jean Rhys; cotidiano; cidade moderna; consumo.
1
Mesa-redonda Memória e resistência.
2
Doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
3
No original: “rien ne se passe, voilà le quotidien” (BLANCHOT apud SHERINGHAM, 2006, p. 19).
4
No original: “the colonization of everyday life” (LEFEBVRE apud SHERINGHAM, 2006, p. 10).
491
Abstract: The writer Jean Rhys (1890 - 1979) left the Caribbean island of Dominica,
where she was born, at the age of sixteen to live in England. The situation of not
belonging, displacement and dispossession, experienced by the heroines of Rhys’s
modernist novels reflects the writer’s own experience, who had to struggle for survival
alone in London and Paris since she was young. These fictional narratives published
between 1928 and 1939 have in common the setting of the modern cities in the interwar
period, and also the figure of the protagonist, a young woman of Caribbean origin, or of
unidentified origin, familyless and displaced, who lives on the margins of these
metropolitan centers. Jean Rhys’s modernist novels are marked by a sense of survival and
repetition, perfectly translating Maurice Blanchot’s idea that "nothing happens, this is the
everyday". The novel Good Morning, Midnight, in particular, with its minimal plot in
which nothing seems to happen, focuses on ordinary everyday activities, such as walking,
eating, drinking, shopping, looking at shop windows, watching the movement of the
Parisian city life. In different ways, the novel evokes the idea of stagnation, repetition,
passivity and lack of perspective explored by Blanchot. The image of a woman trapped
in a maze, walking in circles, unable to find a way out, is dominant in this and other
metropolitan novels by the writer. In Everyday Life, Michael Sheringham notes that
modernization resulted in what the philosopher and sociologist Henri Lefebvre and the
Situationists named "the colonization of everyday life". Focusing on his analysis of
Lefebvre’s Critique of Everyday Life and the Situationist Guy Debord on the alienation
of everyday life, Sheringham indicates how the rise and dominance of industrialization
brought about the privatization and impoverishment of everyday life by removing life
from history and real events, and becoming an essentially imaginary construction, the
world of pure consumption. This work aims to read the novel Good Morning, Midnight
in dialogue with the theorists of everyday life.
Keywords: Jean Rhys; everyday life; modern city; consumption.
5
A Dominica (não confundir com a República Dominicana) torna-se colônia da coroa quando o Reino
Unido reassume o controle direto da ilha em 1896 (Rhys tinha 6 anos), e apesar de ter se constituído como
um Estado livre associado ao Reino Unido desde 1967, somente em 1978 (um ano antes da morte da
escritora), torna-se independente do Reino Unido, .
492
entre 1928–1939, e a fase pós-colonial, com a publicação de Vasto mar de sargaços em
1966)6
Rhys demanda dos seus leitores que abandonem a tradicional filiação do romance
aos valores e preconceitos da classe média, convidando-os a habitar um mundo ficcional
muito menos confortável. Elaine Savory (2009, p. 18) destaca a importância da ligação
de Rhys com o teatro (music hall), um espaço marginal e transgressor, que dava às atrizes
apenas um pouco mais de posição social que as prostitutas. Segundo Savory, esta
experiência ofereceu uma liberdade, desconhecida para a grande maioria das mulheres da
época, de expressão sexual e de aventura, e a aproximou do submundo explorado nos
seus romances. Esta experiência também serviu de base para as realizações artísticas não
convencionais de Rhys.
6
Fazem parte da fase modernista os romances Quartet (publicado em 1929), After Leaving Mr Mackenzie
(publicado em 1931), Voyage in the Dark (publicado em 1934), Good Morning, Midnight (publicado em
1939), e da fase pós-colonialista o romance Wide Sargasso Sea (publicado em 1966), traduzido no Brasil
como Vasto Mar de Sargaços (RHYS, 2012).
No original: “I have no pride, no name, no face, no country. I don’t belong anywhere” (RHYS, 2000a, p.
38).
493
A COLONIZAÇÃO DO COTIDIANO
A ficção de Rhys capta com precisão a noção de que a modernização trouxe consigo
a “colonização da vida cotidiana” (SHERINGHAM, 2006, p. 10). Segundo os teóricos
Henri Lefebvre e Guy Debord, se o processo de colonização produz o
subdesenvolvimento dos lugares colonizados, então, similarmente, a manipulação e o
policiamento que atuam na vida cotidiana tendem a gerar o seu esgotamento e alienação.
Eles defendem que a sociedade moderna envolve formas especializadas de conhecimento,
entretanto, ao nível geral do cotidiano o que existe é ignorância, o vazio e a passividade.
Para esses críticos do cotidiano, as inovações tecnológicas modificam a vida cotidiana,
mas não a transformam porque operam aleatoriamente e tendem a reduzir a autonomia e
a criatividade individual (cf. SHERINGHAM, 2006, p. 171).
Em seu livro Vida cotidiana [Everyday Life] Michael Sheringham investiga uma
variedade de modos de pensar e questionar a dimensão da experiência denominada “vida
cotidiana”, através de uma abordagem interdisciplinar das obras de pensadores e artistas.
Ele mostra que, explorando o tecido complexo da experiência vivida, estas obras reagem
contra "a forma como a vida cotidiana estava sendo subordinada ao estreito
funcionalismo”7 (SHERINGHAM, 2006, p. 14, tradução nossa). Sheringham investiga
como a lógica do capitalismo avançado, que se baseia nos princípios de aceleração e
acumulação, resulta na deterioração inevitável e constante da vida cotidiana. A existência
precária das heroínas de Rhys nos centros metropolitanos de Paris e Londres põem em
evidência o empobrecimento da experiência forjada pelo processo de modernização e pela
lógica do capitalismo tardio.
7
No original: “the way everyday life was being subordinated to narrow functionalism” (SHERINGHAM,
2006p. 14).
494
é estreita, de pedra, uma ladeira acentuada que termina num lance de degraus. O que eles
chamam um impasse”8 (RHYS, 2000, p. 9, tradução nossa).
O impasse refere-se tanto ao fato da rua não ter saída quanto à impossibilidade da
protagonista, Sasha Jansen, mudar e sair da estagnação que caracteriza sua vida. A
situação da heroína é configurada em uma série de outras imagens espaciais, como becos
sem saída, paredes e muros sufocantes que bloqueiam o caminho ou a vista, tetos que
parecem pressionar a cabeça, e diversas representações opressivas e claustrofóbicas de
quartos que serviram como alojamentos temporários para a protagonista. Essas imagens
exemplificam a ligação frequente entre características psíquicas e espaciais nos romances
da escritora, em que a fronteira entre espaço interior e exterior é rasurada. Desta forma,
assim como representações espaciais espelham o estado psicológico das heroínas, o
espaço íntimo das protagonistas muitas vezes assume qualidades do ambiente urbano.
Minha linda vida pela frente, abrindo como um leque na minha mão...
*
O que aconteceu então?... Bem, o que acontece?
O quarto do hotel em Bruxelas - muito quente. O sino do cinema ao
lado tocando. Um quarto longo e estreito, com uma janela longa e
estreita e o sino do cinema ao lado, agudo e sem sentido9 (RHYS,
2000, p. 99, tradução nossa).
8
No original: “The street outside is narrow, cobble-stoned, going sharply uphill and ending in a flight of
steps. What they call an impasse” (RHYS, 2000, p. 9).
9
No original: “My beautiful life in front of me, opening out like a fan in my hand…
*
What happened then? … Well, what happens?
495
Neste trecho, a mudança do tempo verbal do passado simples “O que aconteceu,
então?” para o presente simples “Bem, o que acontece?” endossa a ideia de que nunca
nada de significativo acontece em sua vida, apenas uma sucessão de quartos. É
interessante notar que a justaposição da expectativa de um acontecimento à recorrência
de outro quarto de hotel acontece em diversos momentos na narrativa de Bom dia meia-
noite.
A situação marginal da heroína de Bom dia, Meia-noite, definida por sua identidade
nacional provisória, sua experiência como uma mulher sozinha nas cidades de Londres e
Paris, e a situação de quem vive nas margens da pobreza, oferece uma posição estratégica
para a elaboração de contranarrativas em relação às ficções da modernidade. A voz
irônica da heroína de Rhys denuncia os ideais de ordem e progresso engendrados pelo
processo de modernização. É interessante destacar que estes ideais aparecem associados
aos projetos de felicidade material que remontam ao século XVIII, quando a fé nas
potencialidades do ser humano e na razão iluminista fez com que o homem acreditasse
ser possível trazer o paraíso do Céu para a Terra.
The room in the Brussels hotel – very hot. The bell of the cinema next door ringing. A long, narrow room
with a long narrow window and the bell of the cinema next door, sharp and meaningless” (RHYS, 2000,
p. 99).
10
No original: “if modernity is the brilliant, even gaudy, side of the new, the everyday is its insignificant
side” (LEFEBVRE apud SHERINGHAM, 2006, p. xxvi).
496
galerias, lojas de departamentos e monumentos nacionais. A novidade deslumbrava a
multidão que assistia ao desfile de bens de consumo corrente, o luxo urbano e as luzes
que iluminavam a cidade. Entretanto, ao circular pelas áreas marginais destes centros
metropolitanos, e ao incorporar na sua narrativa imagens do submundo parisiense e
londrino, bem como as vozes de outros sujeitos subalternos, a heroína Sasha revela o
outro lado da história, ou, para usar uma imagem do romance, ela dá voz àquela história
que representa os destroços de uma história espetacular, o lixo varrido para debaixo do
tapete (cf. RHYS, 2000, p. 13).
Rhys parece dar uma resposta não só a qualquer ideia de progresso proclamada pelo
processo de modernização, como também à expectativa de emancipação feminina. De
diversas maneiras, a narrativa denuncia a falta de espaço para a mulher, principalmente
para uma mulher sem família que vive nas margens dos centros urbanos modernos. Os
primeiros romances de Rhys aparecem no mesmo período entre guerras das publicações
da escritora inglesa Virginia Woolf (1882 – 1941). É interessante notar que a promessa
de emancipação feminina vislumbrada no ensaio Um teto todo seu (A room of one’s own)
(publicado em 1929), assim como a experiência urbana positiva das flâneuses de Woolf,
especialmente Mrs Dalloway, parecem contos de fadas se comparados à experiência
urbana vertiginosa vivida pelas heroínas de Rhys. Em Bom dia meia-noite, Rhys parece
zombar da famosa declaração de Woolf em Um teto todo seu de que a mulher precisa ter
quinhentas libras por ano e um quarto todo seu como base para sua independência. A
coincidência entre a situação vivida pela protagonista Sasha e aquela experimentada em
Um teto todo seu por Mary Carmichael abre caminho para a crítica de Rhys à crença de
Woolf. Da mesma forma inesperada, Sasha passa a receber uma renda mensal como
herança de uma parente. :
Bem, isso foi o meu fim, meu verdadeiro fim. Duas libras e dez toda
terça-feira e um quarto na Rua Gray Inn. Salva, resgatada e com o meu
lugar para me esconder - o que mais eu queria? Eu rastejei para dentro
e me escondi. A tampa do caixão fechou com um estrondo. Agora eu já
não desejo ser amada, linda, feliz e bem-sucedida. Eu quero só uma
coisa e apenas isso - ser deixada em paz11 (RHYS, 2000, p. 37, tradução
nossa).
11
No original: “Well, that was the end of me, the real end. Two-pound-ten every Tuesday and a room off
the Gray's Inn Road. Saved, rescued and with my place to hide in - what more did I want? I crept in and
hid. The lid of the coffin shut down with a bang. Now I no longer wish to be loved, beautiful, happy or
successful. I want one thing and one thing only - to be left alone” (RHYS, 2000, p. 37).
497
Ironicamente, no lugar de fornecer a base material para uma vida mais plena, a
posse da renda e do próprio teto representou para Sasha a oportunidade de se isolar. O
mundo excluído pela protagonista de Rhys, assim como o caixão do quarto, está associado
a uma espécie de morte, como indica a repetição de uma série de clichés: “Amada, linda,
feliz e bem-sucedida”.
12
No original: “What language, what language! What would Debenham & Freebody say, and what Harvey
Nichols?” (RHYS, 2000, p. 44).
498
as leitoras, na qual as mulheres são aconselhadas sobre como devem viver e sobre o que
devem saber. No excerto que segue, é interessante notar que “esperança” aparece
associada à compra de um produto ou serviço que promete mudar a aparência da mulher
e transformar a sua vida: “Não, mademoiselle, não, madame, a vida não é fácil. Não se
iludam. Nada é fácil. Mas há esperança (vá para a página 5), e ainda mais esperança (vá
para a página 9)13” (RHYS, 2000, p. 53, tradução nossa).
No seu livro A vida cotidiana no mundo moderno (Everyday life in the modern
world) Lefebvre discute como as revistas femininas misturam experiência e faz-de conta,
ao incluírem instruções práticas e informações precisas ao lado de uma forma de retórica
que investe roupas e outros objetos com uma aura de irrealidade (cf. LEFEBVRE, 1971,
p. 86). A crítica aguda de Lefebvre revela como a experiência corporal, a experiência
vivida do nosso cotidiano, aparece mesclada à fantasia. O teórico examina as maneiras
pelas quais os métodos de publicidade exploram a função metafórica dos produtos a fim
de levar as pessoas a consumirem não só o produto, mas também o valor abstrato e
simbólico agregado a ele. Neste sentido, Lefebvre chama a atenção para a forma como a
substância material da nossa vida cotidiana é distorcida pela dimensão de irrealidade
criada pela retórica da propaganda e as estratégias de mercado, que projetam o impossível
naquilo que é comum, tornando fascinante aquilo que é insignificante (cf. LEFEBVRE,
1971, p. 86).
De várias maneiras, a ficção de Rhys expõe as formas com que a vida cotidiana é
reduzida "através de uma política de exploração e repressão”14 (SHERINGHAM, 2006,
p. 171, tradução nossa). As heroínas de Rhys são exemplos perfeitos do sujeito passivo
do cotidiano, conforme caracterizado por Maurice Blanchot, ou, do sujeito privado,
conforme a leitura de Guy Debord, que traduz a expressão vida privada como “privada
de”, na medida em que os sujeitos cotidianos são sujeitos “privados da possibilidade de
fazer sua própria história, pessoalmente”15 (SHERINGHAM, 2006, p. 172, tradução
nossa). A partir da sua leitura desses teóricos do cotidiano, Sheringham indica como a
ascensão e predomínio da industrialização trouxe a privatização da vida cotidiana, ao
remover a vida da história e dos acontecimentos reais, tornando-se "uma construção
13
No original: “No mademoiselle, no madame, life is not easy. Do not delude yourselves. Nothing is easy.
But there is hope (turn to page 5), and yet more hope (turn to page 9)...” (RHYS, 2000, p. 53).
14
No original: “by a politics of exploitation and repression” (SHERINGHAM, 2006, p. 171).
15
No original: “deprived of the possibility of making their own history, personally” (SHERINGHAM,
2006, p. 172).
499
essencialmente imaginária, um espaço sem corpo – o mundo do consumo puro”16.
(SHERINGHAM, 2006, p. 10, tradução nossa).
16
No original: “an essentially imaginary construct, a disembodied space – the world of pure consumption”
(SHERINGHAM, 2006, p. 10).
17
No original: “Exhibition Internationale des Arts et des Techniques Appliqués à la Vie Moderne” (cf.
EMERY, 1990, p. 144).
500
vivido que deixamos de reconhecer ao nosso redor, fabricando um cotidiano como
espetáculo, segundo o qual o cotidiano “já não é o que é vivido, mas o que é visto ou
mostrado, espetáculo ou descrição, sem interação”18 (BLANCHOT apud SHRINGHAM,
2006, p. 18, tradução nossa).
Bem, às vezes é um bom dia, não é? Às vezes, o céu está azul. Por
vezes, o ar é leve, fácil de respirar. E há sempre um amanhã...
Amanhã eu vou para as Galeries Lafayette, escolher um vestido, vou à
18
No original: “the quotidien is no longer what is lived, but what is looked at or shown, spectacle or
description, without interaction” (SHERINGHAM, 2006, p. 18).
19
No original: I am in the passage of a tube station in London. Many people are in front of me; many
people are behind me. Everywhere there are placards printed in red letters: This Way to the Exhibition,
This Way to the Exhibition. But I don’t want the way to the exhibition – I want the way out. There are
passages to the right and passages to the left, but no exit sign. Everywhere the fingers point and the placards
read: This Way to the Exhibition. …I touch the shoulder of the man walking in front of me. I say: “I want
the way out.” But he points to the placards and his hand is made of steel. I walk along with my head bent,
very ashamed, thinking: “Just like me – always wanting to be different from other people.” The steel finger
points along a long stone passage. This Way – This Way – This Way to the Exhibition… (RHYS, 2000, p.
12).
501
Printemps, comprar luvas, comprar perfume, comprar batom, comprar
coisas que custam 6,25 francos, 19,50 francos, comprar qualquer coisa
barata. Apenas a sensação de gastar, esse é o ponto. Eu vou olhar
pulseiras cravejadas com jóias artificiais, vermelhas, verdes e azúis,
colares de imitação de pérolas, cigarreiras, tartarugas cravejadas com
jóias. E ... quando eu tiver tomado um par de copos não vou saber se é
ontem, hoje ou amanhã20 (RHYS, 2000, p. 121, tradução nossa).
No caso da heroína de Bom dia, meia-noite, apenas o consumo de mercadorias e
modas parece endossar a possibilidade de imaginar o futuro: “Amanhã eu vou ser bonita
de novo, eu vou ser feliz novamente, amanhã, amanhã, amanhã ....”21 (RHYS, 2000, p.
48, tradução nossa). A sensação de gastar tem um efeito confortador também pelo fato de
que o tráfego no mercado parece prover um lugar legítimo, ainda que ilusório, para essas
heroínas deslocadas. Ao assumirem, ainda que precária e temporariamente, o papel de
consumidoras, o mercado configura-se como uma espécie de refúgio dentro do ambiente
urbano alienante. A visita “reconfortante”22 (RHYS, 2000, p.57, tradução nossa) de Sasha
ao cabeleireiro (RHYS, 2000, p. 52-53), e o processo de compra de um chapéu, descrito
por ela como “a celebração de um ritual extraordinário”23 (RHYS, 2000, p. 59, tradução
nossa), são exemplos de consumismo como um meio de inclusão na vida metropolitana
para a personagem de Rhys. Em última análise, o movimento de Sasha como consumidora
parece suspender momentaneamente o seu impasse, a ideia de que “nada acontece” e
oferecer a ilusão de que tudo pode acontecer.
REFERÊNCIAS
EMERY, Mary Lou. Jean Rhys at “World’s End”: novels of colonial and sexual exile. Austin:
University of Texas Press, 1990.
20
No original: Well, sometimes it’s a fine day, isn’t it? Sometimes the skies are blue. Sometimes the air is
light, easy to breathe. And there is always tomorrow… Tomorrow I’ll go to the Galeries Lafayette, choose
a dress, go along to the Printemps, buy gloves, buy scent, buy lipstick, buy things costing fcs. 6.25 and fcs.
19.50, buy anything cheap. Just the sensation of spending, that’s the point. I’ll look at bracelets studded
with artificial jewels, red, green and blue, necklaces of imitation pearls, cigarette-cases, jewelled tortoises.
… And when I have had a couple of drinks I shan’t know whether it’s yesterday, today or tomorrow (RHYS,
2000, p. 121).
21
No original: “Tomorrow I’ll be pretty again, tomorrow I’ll be happy again, tomorrow, tomorrow….”
(RHYS, 2000, p. 48).
22
No original: “comforting” (RHYS, 2000, p. 57).
23
No original: “celebrating this extraordinary ritual” (RHYS, 2000, p. 59).
502
LEFEBVRE, Henri. Everyday life in the modern world. Tradução de Sacha Rabinovitch. London:
Allen Lane, 1971.
SAVORY, Elaine. The Cambridge introduction to Jean Rhys. Cambridge: Cambridge University
Press, 2009.
SHERINGHAM, Michael. Everyday life: theories and practices from surrealism to the present.
Oxford: Oxford University Press, 2006.
503
OS CAMPOS DE EXTERMÍNIO E A MEMÓRIA DA INFÂNCIA
EM W DE GEORGES PEREC1
1. O ESPELHO OBLIQUO
1
Mesa-redonda Memória e Resistência II.
2
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
3
“Busco ao mesmo tempo o eterno e o efêmero” (PEREC apud BERTELLI, RIBIÈRE. 2003, p. 187,
tradução nossa).
504
Em seu projeto inicial de escrita de W ou le souvenir d’enfance, Georges Perec
pensara em lançá-lo em folhetins na revista La quinzaine littéraire, empreitada que se
prolongou entre setembro 1969 e agosto de 1970. Abandonado o projeto em função de
sua entrada no OuLiPo e da confecção de suas grandes obras oulipianas, este só será
retomado, definitivamente, em 1974 e publicado em abril de 1975.
W se apresenta como uma mescla de ficção e autobiografia. O livro porta duas
histórias distintas, ainda que unidas pela busca da identidade daqueles que as contam. Os
capítulos são apresentados sempre na ordem de um ficcional para um biográfico. A
narrativa ficcional traz duas histórias distintas que dizem respeito às biografias, ainda que
inexatas, de dois personagens homônimos, ou dois personagens que se desdobram, tanto
em sua fragilidade (a saúde de um e a situação do outro) quanto em seu mutismo (real no
primeiro e a identidade secreta do segundo).
Em W, a ficção é construída em torno do nome do protagonista, Gaspard Winckler.
Façamos a divisão para esclarecer a história dentro da história: o primeiro Gaspard fora
o filho adolescente de uma cantora de ópera austríaca, portador de uma saúde frágil, surdo
e mudo, embora sem nenhuma deficiência física comprovada por médicos e de
temperamento melancólico e solitário. Numa tentativa desesperada de fazer algo pelo
filho autista, que se isolava a maior parte do tempo, Caecilia, sua mãe resolve viajar o
mundo num barco durante o tempo que for preciso para que ele se recuperasse,
acreditando irracionalmente que até mesmo sua mudez seria sanada. Seu barco naufraga
na Terra do Fogo, os corpos de todos os tripulantes, exceto o de Gaspard são encontrados
e todos os indícios levam a crer que ele ainda poderia estar vivo quinze meses após o
desastre, momento em que entra em cena o segundo Gaspard.
O segundo Gaspard é um soldado desertor, que, para poder prosseguir com sua vida
recebe uma nova identidade de um instituto financiado por Caecilia. Levando uma vida
pacata numa cidade alemã, próxima à fronteira com o grão-ducado de Luxemburgo,
Winckler vê sua paz perturbada por um homem chamado Otto Apfelstahl, que conhece
toda a biografia do primeiro Gaspard e por sua vez acredita na possibilidade de que ele
esteja vivo. O segundo Gaspard recebe e aceita, de Otto, a proposta de iniciar uma busca
pelo pouco provável sobrevivente do naufrágio. É nessa busca, que Gaspard tomará
conhecimento da ilha de W, uma das milhares de ilhas da Terra do Fogo, que possui um
modo de vida bastante curioso.
Toda a segunda parte da narrativa fictícia de W é dedicada à chegada do segundo
Gaspard na ilha, à descrição das tradições da população local e de sua inexorável ligação
505
com o esporte. Existem, na ilha de W, quatro cidadelas e seus habitantes são,
exclusivamente, esportistas: saltadores, corredores ou lutadores que são governados por
equipes sempre escolhidas entre não atletas, no caso, árbitros, diretores esportivos e
organizadores. As cidadelas são apenas para atletas. Mulheres, velhos e crianças ficam
separados num pavilhão central, o mesmo ocupado pelo governo. Seguindo regras
rigorosas e disputas incessantes entre as quatro vilas, os esportistas levam sua vida inteira,
sem esperar nada, nem das vitórias, nem do futuro. O texto ficcional de W, sempre com
mudanças súbitas, abre espaço, a cada capítulo para os souvenirs d’enfance de Georges
Perec.
“Eu não tenho recordações da infância”4. Com esta afirmação categórica Georges
Perec nos introduz em suas memórias de infância. Sua apresentação inicial se dá por fatos
que não são necessariamente lembrados, as poucas linhas da história de sua vida antes
dos 12 anos: “eu perdi meu pai aos quatro anos, minha mãe aos seis: passei a guerra em
diversos pensionatos de Villard-de-Lans. Em 1945, a irmã de meu pai e seu marido me
adotaram.”5 Essa pequena série de informações inscreve, de imediato, a história de vida
do autor ao grande evento do século, a Segunda Guerra Mundial, responsável por
modificar radicalmente o pensamento global e também por aproximar histórias,
generalizá-las em seu contexto de desaparecimento, exílio, diáspora e morte.
4
“Je n’ai pas des souvenirs d’enfance”. (PEREC, 1975, p. 17, tradução nossa).
5
“ ...j’ai perdu mon père à quatre ans, ma mère à six ; j’ai passé la guerre dans diverses pensions de
Villard-de-Lans. En 1945, la sœur de mon père e son mari m’adoptèrent”. (PEREC, 1975, p. 17, tradução
nossa).
6
“ ...L’Histoire avec as grande hache... ” (PEREC, 1975, p. 17, tradução nossa)
506
compromisso autobiográfico é um compromisso de reinvenção do indivíduo onde a
verdade é relativizada, embora não se perca por completo. “A autobiografia se inscreve
no campo do conhecimento histórico (desejo de saber e compreender) e no campo da ação
(promessa de oferecer essa verdade aos outros) tanto quanto no campo a criação artística”
(LEJEUNE, 2008, p. 104). É nesse campo da criação que a memória do campo se pode
fazer viva, que a recordação da tipóia no braço se pode apresentar sem maiores problemas,
mesmo que haja a mais perene dúvida sobre sua real existência. É nesse lampejo que o
objeto entregue pelo pai pode ser uma chave de ouro, uma moeda ou apenas uma chave
comum e que a própria cena se pareça mais com um sonho do que com uma memória
sólida. Ambos os exemplos fazem parte das lembranças elencadas em W e são colocados
em dúvida, devido a uma bruma de esquecimento que paira sobre eles.
3. A HISTÓRIA NA HISTÓRIA
7
“Tout le monde s’extasie devant le fait que j’ai désigné une lettre hébraïque en l’identifiant : le signe
aurait eu la forme d’un carré ouvert à son angle inférieur gauche e son nom aurait été gammeth ou
gammel”. (PEREC, 1975, p. 26-27, tradução nossa).
507
“O projeto de escrever minha história se formou quase ao mesmo tempo que meu
projeto de escrever,”8 nos aponta Perec, embora a escrita de sua história propriamente
dita tenha demorado bastante a ser realizado. O silêncio do pós-guerra, a dificuldade da
realização do poema ou da narrativa, embora não viesse a ser eterna, trazia consigo,
sempre, a dúvida sobre a possibilidade da narração, a questão “de saber se ainda é possível
viver depois de Auschwitz, se aquele que por acaso escapou quando deveria ter sido
assassinado tem plenamente o direito à vida” (ADORNO, 2009, p. 300) e o pleno direito
de expor suas memórias, que não são mais apenas suas. É nesse vácuo da memória
coletiva que Perec cria o espaço para inserir sua própria história, seu testemunho. Se, para
Agambem, bem como para Primo Levi, o verdadeiro testemunho seria o daquele que
viveu plenamente a experiência do campo e viver plenamente culmina, necessariamente
na morte, abre-se a dúvida para a legitimidade de todos os outros testemunhos. Para Levi
o testemunho dos sobreviventes é delegado a estes pelos que não sobreviveram, sendo os
primeiros apenas porta-vozes dos segundos.
Perec não foi prisioneiro nos campos, jamais foi deportado e, também não conviveu
com seus pais após a guerra (ambos morreram nela). Seu testemunho não é primário
(sobrevivente de algum campo) nem secundário (filho de pais sobreviventes que ouviu
deles as narrativas do campo). Os horrores passados nos campos não o tocaram
diretamente, mas toda sua vida infantil (e também a adulta) foi marcada pelo perigo
iminente e pela sensação de perda. A validade de seu testemunho é inegável, justamente
por se concentrar numa outra faceta da guerra, a dos órfãos que acabaram se tornando
fugitivos desde muito jovens. Embora não tivesse conhecimento direto da rotina dos
Campos, e talvez justamente por isso, Perec cria sua visão do evento a partir daquilo que
se torna conhecimento público. Em um texto sobre Robert Antelme, no qual Perec fala
sobre a dificuldade, ou a quase impossibilidade, de se ‘exprimir o inexprimível’ através
da linguagem, ele nos aponta também a dificuldade de conciliar o que conhecemos:
8
“Le projet d’écrire mon histoire s’est formé presque en même temps que mon projet d’écrire”. (PEREC,
1975, p. 45, tradução nossa).
9
“Nous croyons connaître ce qui est terrible. C’est un événement ‘terrible’; une histoire ‘terrible’. Il ya a
un début, un point culminant, une fin. Mais nous ne comprenons rien. Nous ne comprenons pas l’éternité
de la faim. Le vide. L’absence. Le corps qui se mange. Le mot ‘rien’. Nous ne conaissons pas les
508
A ficção da ilha de W soa como uma tentativa de adentrar a compreensão do
incompreensível, uma busca pelo vazio e pela ausência, que também figuram nas histórias
pessoais, nos relatos de sobreviventes, dos fugitivos e das crianças, que, tal como Perec,
guardam consigo a marca de um gesto inexistente de adeus ao embarcarem num trem da
cruz vermelha, rumo a um destino incerto. O jogo no qual a memória se inscreve não é
apenas o de espelhamento da realidade, mas é, sobretudo, um jogo narrativo que,
conforme Benjamin (1985), é um processo começado na guerra e que continua até hoje,
essa observação que “os combatentes voltavam mudos do campo de batalha, não mais
ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos
depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com a experiência
transmitida de boca em boca.” (BENJAMIN, 1985, p. 198). Este embate entre o narrado
e o acontecido fora problematizado por Antelme e citado por Perec que assume para si as
mesmas preocupações: “desde os primeiros dias, nos parecia impossível de preencher a
lacuna que descobrimos existir entre a linguagem da qual dispúnhamos e esta experiência
que, em grande parte, ainda sentíamos em nosso corpo”10. Em suma, como exprimir o
inexprimível? Como conseguir que o horror não seja anestesiado pela linguagem?
A ficção, essa linguagem que nos obriga a dizer, toma, assumidamente, o papel de
detentora do terrível em W, além de fazer a ligação direta entre a memória do vivido e a
memória apreendida através dos fatos da grande história. Contar é essencial, pois “dizer
que Auschwitz é “indizível” ou “incompreensível” equivale a euphemein, a adorá-lo em
silêncio como se faz com um deus” (AGAMBEN, 2008, p. 42), e, para muitos, a única
razão de sobrevivência é o testemunho. Assim Perec narra, testemunha duas histórias,
uma fictícia, similar à história oficial, com seu H maiúsculo, a outra, a sua própria história,
cheia de lacunas, repleta de vazios, reticente e suficientemente inventada, para garantir,
entre outras coisas, a única sobrevivência possível para seus fantasmas. “Escrever é antes
de tudo, testemunhar. Dizer o que sabemos ter acontecido”11, contar, falar, descrever,
inscrever-se e também sobreviver. A memória está em ação, mas “não há nenhum tempo
perdido a se redescobrir e é inútil se interrogar sobre os poderes salvadores da arte. Aqui,
4. O ENCAIXE EM X, A PEÇA EM W
“ARBEIT MACHT FREI (O trabalho liberta)” (LEVI, 1988, p. 20), a divisa vista
por Primo Levi em sua chegada em Auchwitz e que o acompanhará em seus pesadelos
pelo resto de sua vida é o espelho direto da divisa da ilha de W: FORTIUS ALTIUS
CITIUS – mais forte, mais longe, mais rápido. Esse espelhamento de uma rotina de campo
de extermínio ao de uma ilha na qual as regras do esporte predominam sobre a vida da
população se mostra um tanto quanto oblíquo. O reflexo indireto da ficção sobre uma
realidade ‘indizível’ acaba por torná-la (a ficção) depositária de valor testemunhal. O
biógrafo Perec constrói, no campo da ficção, toda a sua história que é, para si mesmo,
absolutamente desconhecida, exceto através de relatos ou de pesquisa histórica. Sua
tentativa de escrever sobre si mesmo esbarra nessa história de W, conforme conta em
entrevista: “são duas histórias que são como... espelhos que se esclarecem, quer dizer,
elas praticamente não têm relação entre si, exceto por pequenas, poucas palavras em uma
e na outra que lhes agregam”13. Para Claude Burgelin há um jogo de esconde-esconde,
um segredo visível, responsável pelo encadeamento das duas narrativas; Perec “cria um
espaço onde o entrecruzamento designa e oculta um alhures secreto e visível”14. O que é
mostrado nesse jogo é a própria ligação entre o testemunho e a narrativa que ele se propõe
executar, um texto que aponta sua própria máscara.
A infância, repleta de brechas e falhas, une-se ao testemunho dos campos que por
si, é já bastante lacunar. “A Shoá é um acontecimento sem testemunhas no duplo sentido
de que, sobre ela é impossível testemunhar a partir de dentro – pois não se pode
testemunhar de dentro da morte, não há voz para a extinção da voz – quanto a partir de
12
“Il n’y a nul temps perdu à retrouver et il est inutile de s’interroger sur les pouvoirs salvateurs de l’art.
Ici, l’écriture s’origine à quelque chose d’abruptement vital”. (BURGELIN, 1990, p. 145, tradução nossa).
13
“Et les deux histoires sont comme des… miroirs qui s’éclaireraient, c’est-à-dire qu’elles n’ont
pratiquement pas de rapport, sauf des petits, de petits mots dan l’une e l’autre que les… rejoignent…”
(BERTELLI; RIBIÈRE, 2003, p. 199, tradução nossa).
14
“...crée un espace ou l’enchevêtrement désigne et occulte un ailleurs secret et visible”. (BURGELIN,
1990, p. 141, tradução nossa).
510
fora, pois o outsider é excluído do acontecimento”, conforme Agamben (2008, p. 44).
Também Primo Levi aponta a testemunha ideal como aquele que cumpriu todo o ciclo do
campo, culminando com sua morte, enquanto os sobreviventes falam em seu lugar, por
delegação. É uma lacuna do testemunho dos campos que só se pode tentar preencher com
a linguagem, com a escrita que por si, gera outras tantas lacunas. Claramente, para o
escritor, afeito às contraintes oulipianas, o que se lhe apresenta é mais uma grande regra:
partir do falso para tentar aproximar-se, ou ao menos tocar, ainda que obliquamente, a
verdade dos campos. Para o biógrafo surgem as reticências! A divisão entre as duas partes
do livro é feita por uma página quase em branco, exceto pelo sinal de reticências entre
parênteses. Claude Burgelin observa que “essas reticências indicam o não dito (omitido,
censurado, guardado para si, impossível de delimitar). Elas significam a ruptura e também
o engate (dos fios rompidos da infância, da trama da escrita)”15. O biógrafo Perec tem a
seu favor (ou contra si) as reticências, reiteradas a todo tempo pela bruma da lembrança,
pelo teor de sonho que envolve os momentos, pela afirmação do apagamento da memória,
pela tentativa de precisão de detalhes, que quase sempre o levam a uma revisão da
recordação e tem, ainda, toda uma obra anterior que aponta, em alguns escritos, para sua
própria vida.
15
“Ces points de suspension indiquent le non-dit (omis, censuré, gardé par-devers soi, impossible à cerner).
Ils signifient la rupture, mais aussi l’accrochage (des fils rompus de l’enfance, de la trame de l’écriture)”
(BURGELIN, 1990, p. 139, tradução nossa).
16
“Oui, toutes mes œuvres sont autobiographiques. Les unes constituent mon autobiographie d’écrivain,
d’autres sont autobiographiques. […] Tout consiste à parcourir un chemin ou à remplir un espace”.
(BERTELLI; RIBIÈRE, 2003, p. 186, tradução nossa).
511
A imagem do puzzle, definidora mais precisa da literatura e do ato de escrever
segundo Perec, pode também definir a forma como este pensa e procede em relação à
autobiografia, esse emaranhado de peças cuja função do (auto) biógrafo é unir, sem,
entretanto, conhecer a imagem final. O melhor que se pode esperar de tal procedimento é
não encontrar, no fim da montagem, um vão em forma de X e ter apenas uma peça no
formato de W nas mãos.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2008.
BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos: O grau zero da escritura. Trad. de Heloysa de Lima
Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Ed. Cultrix. 1974.
______. Georges Perec Entretiens et conférences II. Mayenne: Ed. Joseph K, 2003.
JOLY, Jean Luc (Org). Perec et l’art contemporain. Bordeaux Cedex : Ed. Le castor astral,
2010.
______. Autobiografia e ficção. In: NORONHA, Jovita Maria Gerhein (Org.). O pacto
autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2008.
LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. de RE, Luigi Del. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998.
512
______. L. G. Une aventure des années soixante. Mesnil-sur-l’estrée: Ed. Seuil, 1992.
VICO, Giambattista. Ciência nova. Trad. Vilma de Katinszky. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010.
513