Vous êtes sur la page 1sur 49

O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS

REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA

Paulo Ferraz

business man
make as many business
as you can
you will never know
who I am
(Paulo Leminski)

A mais singular das mercadorias


Desperta alguma desconfiança pensar o poema como um produto comercial,
seja qual for a perspectiva pela qual se olhe – de dentro ou fora do mercado –,
uma vez que entre os bens culturais a poesia é aquela que menos se rende aos
princípios de compra e venda. É bem verdade que a própria associação entre arte
e consumo é recente, mais ainda a concepção de uma indústria que movimenta
esses produtos em função do capital. A poesia, sabe-se, inicia sua lenta e vacilante
caminhada moderna em meados do século XIX, concomitante às transformações
sociais, econômicas e urbanas que inseriram na vida cotidiana as artes entre ou-
tros bens imateriais, cuja posse ou fruição atendiam a novas demandas de ilus-
tração, lazer ou entretenimento, primeiro da burguesia e depois, paulatinamente,
das demais classes, quando mais que beleza passou a vender ideias e imagens
pré-concebidas com as mais diversas finalidades. Desde então, a poesia vem ora
se opondo aos mecanismos de apropriação, ora aderindo às ondas de consumo.
280 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

O processo de mudança talvez tenha sido ainda mais lento no Brasil, país
periférico e de elite tacanha, onde as ínfimas tiragens de livros de poesia e o
insignificante público leitor jamais justificariam conceber um mercado próprio,
o que não impediu, porém, que houvesse desde os anos 1920 uma profunda re-
flexão sobre o lugar do poema na cidade moderna, o que implicava repensar sua
natureza, tornando-se tema crucial a partir da segunda metade do século, com
a eclosão do movimento da poesia concreta e seus desdobramentos estéticos e
teóricos. Entre estes se situa a obra do poeta paranaense Paulo Leminski que,
além de campeão de vendas,1 foi “faixa preta” da linguagem midiática e suas
inter-relações com a poesia. “Um livro de literatura” – disse Leminski em uma
crônica intitulada justamente “Poesia: vende-se” – “é a mais singular das merca-
dorias” (LEMINSKI, 1985i, p. 16).
Começando pelo modernismo, já no editorial do número inaugural da re-
vista Klaxon, infere-se que o lugar da literatura e da poesia deixava de ser o
salão, que até então funcionara como redoma aristocrática em meio à barbárie
tropical, e passava a ser as ruas recém-redesenhadas pelas casas de comércio e
suas vitrines anunciando o progresso em forma de mercadorias. A eletricidade
movia bondes, iluminava letreiros e conferia existência a uma nova arte, o cine-
ma, principal produto cultural de então, nascido há poucas décadas e símbolo
de um mundo novo que se insinuava, além das jazz bands e d’Os Oito Batutas.
A estética modernista desses primeiros anos refletia as transformações dessa
sociedade que se industrializava, mimetizando algo dos mecanismos produtivos
– ainda que pouco se opusesse a eles, salvo algumas bofetadas líricas no burguês
– e inserindo um novo léxico na literatura. Da última moda parisiense passava-
-se à identidade nacional que aflorava nos sertões de um país que estreitava as
distâncias com um mundo em transformação ainda mais acelerada, como encon-
tramos, por exemplo, em “Drogaria de éter e de sombra”, de Luís Aranha, Song
of myself paulistana pela qual desfilam a química moderna, “a alta do dólar, bai-
xa do café […] O porto de Santos atravancado de mercadorias/ americanas que
os compradores recusam […] eu/ recebo livros de versos da França e da Itália/
porque sou poeta…” (ARANHA, 1984, p. 25).

1 O mercado editorial brasileiro não prima pela precisão quanto a números de exemplares
vendidos, porém é certo que Caprichos & relaxos, primeira coleção de poemas de Leminski
publicada em edição comercial, logo após o lançamento, em 1983 pela Brasiliense, teve três
edições esgotadas que somariam cerca de 15 mil exemplares, e a reimpressão em 1987, pelo
Círculo do Livro, outros 10 mil. Quanto à reunião de seus poemas no volume Toda poesia,
lançado em 2013, já teria ultrapassado 100 mil exemplares.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 281

Ainda mais significativo, contudo, é o emprego de um viés também comer-


cial por Oswald de Andrade, ao propor uma nova estética para a poesia brasileira
no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, expondo nosso atraso e nossa dependên-
cia, qual seja “a nunca exportação de poesia” (ANDRADE, 1959, p. 187). Nesse
momento, com São Paulo especialmente favorecida por uma balança comercial
positiva decorrente de um forte ingresso de capital vindo da exportação de café,
o cosmopolita Oswald é um dos que mais radicalmente se contrapõem à tradição
beletrista nacional e à verborragia vazia de uma poesia bacharelesca. Atento às
novidades, zomba que só não foi inventada ainda uma máquina de fazer versos,
pois já havia o poeta parnasiano. Era preciso inserir-se no mundo e no seu tem-
po, afinal a poesia existiria nos fatos, daí propor “o trabalho contra o detalhe
naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geôme-
tra e pelo acabamento técnico; contra a cópia – pela invenção e pela surpresa.”
Acrescentando

O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo


digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem
reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa
etimológica. Sem ontologia (ANDRADE, p. 190).

Eram os primeiros passos de uma mudança de mentalidade em torno da


criação e da própria natureza do poema, visto cada vez mais como objeto e não
com a expressão lírica do indivíduo, a despeito de que pouca transformação te-
nha sido percebida na circulação do livro. Assim como no século XIX, o livro
continuava a ser um produto para poucos, e não chega a ser novidade o fato de
os principais poetas brasileiros do modernismo terem custeado suas edições,
mesmo quando já tinham reconhecimento nos meios literário, acadêmico ou
jornalístico, como no caso de Manuel Bandeira que, aos cinquenta anos, só veio
a publicar Estrela da Manhã por meio da ajuda de amigos, e, ainda assim, em
tiragem de 47 exemplares (BANDEIRA, 1991, p. XXVI).
Para termos uma ideia, ainda que vaga, do grau de desenvolvimento do
mercado editorial contemporâneo ao modernismo, que sirva de exemplo a
correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond. Em carta de 1º
de agosto de 1926, após a leitura de um primeiro conjunto de poemas que futu-
ramente iriam resultar em Alguma poesia, escreve Mário:
282 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

Você não tem o direito de ficar com ele guardado aí só porque nesta merda
de país não tem editor para livros de versos. Carece um esforço e mesmo
se preciso um sacrifício. […] O livro será pouco vendido, os ataques serão
muitos, as casas de revendedores não se amolam com ele… É um inferno.
Porém é dever da gente (ANDRADE, 1982, p. 80).

O “dever da gente” explicita que editar um livro de poemas, mais que uma
atividade industrial e comercial, era ainda uma necessidade interna, uma obri-
gação do poeta em relação aos seus compromissos estéticos e sociais. Mais de
três anos depois, tendo Drummond finalmente decidido publicar, volta Mário de
Andrade a tratar do tema em cartas, agora auxiliando na própria impressão do
livro, pesquisando preços, indicando papéis, sugerindo gráficas, fazendo orça-
mento e se prontificando a distribuir Alguma poesia nas quatro livrarias de São
Paulo que vendiam obras do gênero.
Um passo adiante no processo de “mercantilização” da poesia se deu com
a eclosão do movimento de poesia concreta, cujos princípios negavam quase
por completo todo um conjunto de valores e conceitos que compunham, em seu
entendimento, a fase artesanal e subjetivista da poesia, manifestações, portanto,
de um anacrônico pensamento lógico-discursivo que reduzia os limites da poesia
a uma manifestação lírica da língua, e não da linguagem. Essa fase teria chegado
ao fim, e com ela o verso, instaurando-se em seu lugar, em suma, a fase industrial
na qual o poema é produto racional, inserido nas relações de troca e no consumo
de mercadorias, tanto que, em mais de um momento, o poema é explicitamente
– sua estrutura, no caso – comparado à linguagem publicitária, ou seja, o poema
deveria ser consumido em sua forma de informação estrutural, portanto, deveria
ser um objeto útil. O esquema a seguir, preparado pelos próprios poetas concre-
tos em sua fase “ortodoxa”, destaca os pontos cruciais que enfrentavam:

a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente criativa


contemporânea permite a comunicação em seu grau + rápido prefigura para
o poema uma reintegração na vida cotidiana semelhante à q o BAUHAUS
proporcionou às artes visuais: quer como veículo de propaganda comercial
(jornais, cartazes, TV, cinema etc.), quer como objeto de pura fruição
(funcionando na arquitetura, p. ex.,), com campo de possibilidades análogo
ao do objeto plástico substitui o mágico, o místico e o “maudit” pelo ÚTIL
(CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 1975, p. 48).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 283

Concomitante ao aggiornamento da vanguarda – que, assim como políticos


e economistas brasileiros, apregoava a substituição de importações, pois nosso
nível de desenvolvimento cultural já não mais se satisfazia “com a importação de
objetos culturais acabados” (CAMPOS, 1975, p. 153) –, havia outra atualização,
a dos meios de comunicação em massa, cujas implicações políticas e econômicas
talvez não tenham sido devidamente exploradas pelos intelectuais brasileiros
dos anos 1950 e 1960, salvo no auge dos festivais musicais televisionados, quan-
do o Estado já detinha o controle total das informações veiculadas pelos meios.
O rádio e o cinema durante as primeiras décadas do século XX reinaram abso-
lutos, porém com alcance restrito a nichos específicos e, portanto, com limitado
impacto na mobilização social.2 Contudo, a chegada da televisão, sua contínua
expansão e aprimoramento tecnológico representaram uma mudança não só na
estética – especialmente com a teledramaturgia nacional –, mas sobretudo nos
valores sociais, no comportamento, nos costumes e no consumo, rompendo com
a cultura popular de um país rural que paulatinamente se apequenava diante do
Brasil urbano. A partir de então, experimentávamos as consequências de uma
efetiva indústria cultural, a qual rapidamente fez vir à luz o viés negativo da mo-
dernização, que pouco tinha a ver com a emancipação das massas pelo consumo.
O modo de produção capitalista se materializa na produção e circulação de
mercadorias, que obviamente não são um fim em si, mas um meio que permite a
contínua acumulação de renda por aqueles que controlam as etapas de produção
e comercialização. Quando pensamos em bens materiais não há muita dúvida
sobre quem é quem nesse sistema, mas quando passamos para o mercado de
bens imateriais, como a arte, as relações e os papéis parecem mais fluidos. Nesse
sistema, artistas e público muitas vezes mal se dão conta – e é exatamente isso
que quem domina os meios de produção e circulação almeja – que o que está
em jogo não é a experiência estética, lúdica ou uma veiculação de notícias, mas
o inverso disso, o direcionamento do gosto, a padronização da sensibilidade e o
controle da informação.

2 A bem da verdade, a importância política dos meios de comunicação e difusão cultural já


era objeto de interesse do executivo nacional desde a década de 1930, quando Getúlio Vargas
criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável não só por supervisionar
a produção intelectual de então, o que implicava em conceder ou não autorização para a
publicidade de uma obra, mas também por promover a imagem do presidente, tanto divulgando
os desfiles de 1º de maio, quanto cooptando todo aquele que pudesse promover a imagem de
Getúlio, de músicos a jornalistas.
284 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

O consumo de bens culturais é um consumo de valores, especialmente os


valores que importam à própria indústria e que sejam, portanto, capazes de ali-
mentar a demanda por novos bens materiais e imateriais; é uma importante
ferramenta ideológica que ocupa a vida das pessoas, sobretudo nas horas de des-
canso e lazer, daí suas manifestações escamoteadas e diluídas, nas quais o consu-
midor passivamente é conduzido, embora acredite que esteja desfrutando de um
prazer ou mesmo se instruindo. Realidade e história aqui não são entendidas,
mas falseadas por um duplo que passa a existir nos meios de comunicação, e esse
simulacro será mecanicamente aceito e reproduzido; qualquer informação gera-
da a partir dele nada mais será que a continuidade do equívoco. “O sistema da
indústria cultural” – dizia Theodor Adorno que, com Max Horkheimer, primeiro
formulou a crítica à indústria cultural – “reorienta as massas, não permite quase
a evasão e impõe sem cessar os esquemas de seu comportamento” (ADORNO,
1978, p. 294).
Em 1963, quando o jovem Paulo Leminski Filho, aos dezenove anos, entra
em contato com os poetas concretos durante a Semana Nacional de Poesia de
Vanguarda em Belo Horizonte,3 a indústria cultural já é a principal responsável
pela mobilização cultural e política dos jovens, servindo, além do mais, de arena

3 É difícil assegurar as leituras de Leminski anteriores a esse momento. Sabe-se que nos anos
1958 e 1959 estudou no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde teria se dedicado à literatura
clássica e ao estudo de idiomas. Após seu retorno à Curitiba é provável que tenha se atualizado
quanto à produção contemporânea, a despeito da pouca circulação comercial da poesia
concreta. Numa nota do jornal Última Hora, de 12 de agosto de 1963, intitulada “Poesia de
vanguarda: Paraná comparece a debate em Minas”, informa-se que Leminski, com patrocínio
da União Paranaense dos Estudantes, iria ao referido encontro como delegado de seu Estado.
O que dele sabemos pela nota é que o então estudante de Direito e Letras já era conhecido por
ser poliglota, vinha se dedicando à poesia concreta há cerca de um ano, tendo um conjunto de
quarenta poemas escritos, era admirador de Carlos Drummond, “o pai de todos” e de Affonso
Romano de Sant’Anna, por propor uma conciliação “entre a poesia concreta e a tradicional,
não rompendo com a sintaxe” e era leitor de Maiakovski, Pound e Cummings (os dois últimos
publicados em 1960 com traduções de Haroldo e Augusto de Campos). Quanto à poesia
concreta, segundo a nota, ele a via como “um programa que procura dar uma certa lucidez à
poesia”. Em relação a Affonso Romano, uma curiosidade: em 13 de outubro de 1963 foi publicado
um artigo no Correio do Paraná dedicado àquele que, para o pós-adolescente Leminski, seria
o sucessor de Drummond e João Cabral (LEMINSKI, 1963b, p. 7). Os elogios fazem supor que
o artigo tenha sido escrito antes do encontro com os poetas concretos, inclusive porque alguns
anos depois Leminski e Sant’Anna trocariam algumas farpas em decorrência da publicação
do Catatau. Daquela época, um poema um tanto cepecista, também publicado no Correio
do Paraná, em 8 dezembro de 1963, ilustra a dicção do jovem Leminski: “a mãe levou o dia/
alimentando os canários,/ outras aves as galinhas,/ o cachorrinho e o gato,/ o papagaio o jaboti,/
os coelhos e os leitões, /quando voltou para casa/ sobre os pratos vazios/ encontrou os quatro
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 285

para dividi-los não só pelas escolhas partidárias, mas sobretudo pelas estéticas.
Assim, ouvir certo ritmo, frequentar tal ou qual teatro, publicar poemas para um
leitor específico ou para a classe operária etc. eram justificativas dos mais varia-
dos rótulos, como engajado, alienado, elitista. As indústrias de bens de consumo
ou de produção4 já não despertavam a mesma ilusão nacional-desenvolvimen-
tista dos anos 1950, pois, uma década depois, mais que produtos com tecnologia
nacional, o que havia era uma grande sujeição – material, intelectual e cultural
– ao capital internacional, perpetuando nossa relação de dependência. O foco se
voltava para produtores de espetáculos, gravadoras e editores, pois eram per-
sonagens centrais no controle da informação. Consciente desse novo contexto,
às vésperas do golpe militar de 1964, a União Nacional dos Estudantes assumia
protagonismo ao submeter um programa artístico à doutrina política e fazer da
arte um instrumento de conscientização e mobilização. Era um momento no
qual convinha a todos discutir as funções sociais da poesia, incluindo os poetas
de vanguarda, razão do encontro promovido em Belo Horizonte, que levou ao
estreitamento de laços entre os editores das revistas Invenção e Tendência.
Após seu retorno a Curitiba, Leminski torna-se conhecido no meio literá-
rio paranaense como poeta concreto e de vanguarda, ministrando palestras e
defendendo publicamente os princípios teóricos dos poetas paulistas. No artigo
publicado no Diário da Tarde em 11 de julho de 1964,5 intitulado “Poética de
vanguarda”, ponto a ponto, com direito a poema ilustrativo, Leminski esquema-
tiza os mecanismos de apreensão e representação do debate político pela poesia
concreta, incorporando as diretrizes do encontro de 1963, que revisava a di-
mensão utilitária do poema, o que necessariamente passava pela maior ênfase a

filhos/ os quatro mortos de fome” (LEMINSKI, 1963a, p. 8). Em novembro do ano seguinte
apareceu outro poema seu que ainda mantinha algo desse estilo (LEMINSKI, 1964b).
4 “A poesia concreta é poesia de poesia, arte de arte, signo de signo. Arte para produtores.
Maquinaria pesada, pesquisa de tecnologias: indústria de base. Trabalha nos fundamentos.
[…] E uma poderosa afirmação da capacidade do 3º mundo em produzir know-how (em tomar
a iniciativa). Vejam o caso de Santos Dumont. Como diz Pignatari, tivemos avião antes de ter
automóvel” (LEMINSKI, 1976c, p. 1).
5 Há outros documentos do período que permitem vislumbrar a formação intelectual de Paulo
Leminski, que rapidamente assume papel central na divulgação da poesia concreta em Curitiba.
Podemos citar os artigos “Maiakovski vai chegar”, de 18 de julho de 1964, “Era uma vez alguns
intelectuais de porta de café…”, de 1º de agosto de 1964, “Realismo de sete mil réis”, de 31 de
outubro de 1964, e “Poesia concreta, Sosséla e a crítica dela” de 2 de fevereiro de 1965, todos
publicados no Diário da Tarde, na página Vanguarda, durante o período em que o autor, ao
lado de outros entusiastas da vanguarda, compõe o grupo Áporo.
286 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

ser dada à “participação”; esta, por sua vez, só viria com uma maior abertura à
comunicação, sem transigir as experiências formais:

• não se trata de que todos leiam poesia concreta – operários e pa-


trões, padres e mulheres, comerciantes e artistas, querê-lo seria meca-
nicista; de um modo ou outro todos sofrerão seus efeitos. Seu projeto
é coletivo.
• uma só palavra que seja (ver o mundo da propaganda), colocada
no meio da folha irradia uma carga de significados que vão repercutir
no mundo das palavras que cada qual carrega consigo: o impacto é a
mensagem.
• uma palavra só pode ser pouco: é preciso então um conjunto de pa-
lavras tão intimamente ligadas que acabem por construir uma “palavra
total” (Mallarmé): o poema.
• o poema é tanto mais concreto quanto mais denso e coerente seja
consigo, vale dizer quanto mais estrutura (ou melhor) tenha.
• é só assim que ele será uma coisa, um objeto novo no mundo e po-
derá ser usado para o consumo intelectual como usamos um pente, um
jornal ou uma radiola.
• é uma palavra (total) nova.
• mais próximo do mundo da propaganda que dum soneto por exemplo
o poema concreto visa fazer presente uma situação ao invés de falar em
torno dela ou dar opiniões menos ou mais subjetivas em torno do mundo.
(…)
• o poema concreto é um objeto em vibração agredindo o olho e des-
carregando eletricamente seus inúmeros significados.

náusea
no auge a
náusea
no olho a
náusea:
nojo

verificar:
ver e ficar
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 287

verifincar-se

carcaça
carne de caça:

carcome
carne de fome:

caridade
carne de homem
(LEMINSKI, 1964c, p. 5).

Já no artigo datado de abril de 1965, intitulado “Anti-projeto à poesia no


Brasil”, logo após virem a público suas primeiras colaborações com a revista
Invenção, Leminski avança em sua formulação ensaística, fazendo curiosa leitu-
ra poética da face visível da industrialização: a proliferação crescente e contínua
do signo, o qual estaria por toda a sociedade nessa etapa de desenvolvimento,
pois mais que a mercadoria em si, produto ou serviço, é a ideia que primeiro
chega ao consumidor, não importando tanto o conteúdo, mas tudo o que repre-
senta em termos de satisfação íntima ou social. A demanda (desejo, vontade,
interesse, curiosidade) é alimentada por um mundo de imagens, figuras, perso-
nagens, slogans, marcas. Portanto, uma sociedade que produz, consome e se-
creta linguagem todo o tempo exige um contínuo aprimoramento das estruturas
pelas quais suas mensagens são veiculadas. A cultura – erudita ou popular – é
uma forma organizada dessa linguagem, bem como a publicidade e o jornalismo,
devendo o poema ser uma experiência ainda mais apurada, capaz de gerar infor-
mação nova sem reproduzir os signos que já se encontram em circulação – uma
vez que, dentro da indústria cultural, eles apontam para um fim que, longe de
libertador, é limitador, pois assim como o operário se alienava no trabalho, a
massa se aliena no consumo.

Hoje, é preciso criar o texto como organismo novo, de cabo a rabo. Dos
signos à representação gráfica. O poeta é ou não é um especialista?
Encarregado de um departamento da realidade? Maiakovski: há algo na
sociedade que só através da poesia se resolve. Que o poeta resolva esse algo
com profunda consciência profissional (LEMINSKI, 1965a, p. 111).
288 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

O jovem Leminski do “Anti-projeto…” não esconde o crítico tributário dos


poetas concretos; ali estão alguns dos elogios e detrações reiteradas pelo trio
paulista desde dez anos antes, classificando e categorizando poetas e poemas
poundianamente, porém é um texto que atualiza algumas das proposições em
torno da sociedade industrial, do consumo de bens culturais e dos meios de co-
municação, cujo modelo parece se aproximar dos textos de Décio Pignatari, que
dos três poetas concretos foi aquele que esteve envolvido intelectualmente (e
profissionalmente) com o mercado e a linguagem simbólica, sendo o primeiro a
defender o “salto participante” do grupo a partir de 1961 e, posteriormente, a in-
corporação de signos não verbais em favor da comunicação. Por essa época dizia:

Poesia, para mim hoje, está nos fundamentos da linguagem em relação aos
meios de comunicação de massa e à compressão da informação (informação
sintética, digestos, enlatados). O jornal, o semanário, o anúncio –
linguagens novas, poesia, para as massas. Televisão, cinema, rádio. E o
livro, ainda. […] A poesia concreta está voltada para o consumo, agora.
Consumo de massa. Eu, pelo menos, não faço poesia – ou lá que nome
tenha – que não possa ser reproduzida (PIGNATARI, 1971, pp. 16-20).

Leminski compreende essa mensagem desde o início, reconhecendo, por um


lado, que não se tratava mais de estabelecer uma poética industrial como mera
produtora de formas ou estruturas, já que a própria poesia concreta posterior
ao encontro de Belo Horizonte não caberia mais no Plano-Piloto, e, por outro,
a necessidade de os poetas buscarem “não o belo para a contemplação, fruição
estética”, mas a beleza da máquina em ação, aquela que nasce de seu funciona-
mento, do processo de transformação,6 portanto uma “beleza de performance.
Não forma, mas performance” (LEMINSKI, 1965a, p. 110). De modo ainda que
incipiente, Leminski parece antecipar como proposta teórica a poética tropicalis-
ta que se avizinha, uma poética que se mostraria adequada para expressar, a um

6 Leminski faz um esclarecimento sobre essa passagem em entrevista dada ao Correio Brasiliense:
“O que pensa e faz um jovem poeta (cibernético)”, quando diz que ‘uma máquina existe – e
seu existir é um operar – na medida em que dê de si o que dela se espera.’ E ela dá. […] À luz
da existência a máquina abre o viver humano sobre o mais vasto, o mais largo, o mais rico, o
mais numeroso. Executando uma abertura e não uma restrição, ele se atualiza na rampa do
imprevisível. Através da máquina, o homem se põe no inumerável” (LEMINSKI, 1966, p. 9).
Em certo sentido, nesse momento, sua visão é a de que o poema faz o papel dessa máquina pela
qual nosso mundo sensível se amplia.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 289

só tempo, construção intelectual e experiência vital e, portanto, incluiria no fazer


poético o corpo, o comportamento, a ação. Essa conjunção “deve ser a própria
participação. O engajamento feito carne e palavra” (LEMINSKI, 1965a, p. 112).
É a perspectiva poética de um mundo completamente orientado pela merca-
doria e sua representação simbólica que norteia pelo menos um de seus poemas,
presente no quarto número da revista Invenção, de dezembro de 1964 e incluído
posteriormente em Caprichos & relaxos de 1983. Trata-se de um quadro forma-
do pela pura disposição espacial – e sem qualquer tessitura verbal – de marcas
industriais variadas, empresas multinacionais ou nomes de produtos, grafados
em tipologia convencional, mas em caixa alta. Essas marcas são organizadas em
pares ou trios, numa aparente desconexão de ordem material, em torno do termo
plurivalente GENERAL e sobrepostas à única referência ao contexto nacional, as
Casas Pernambucanas, rede de comércio nacional, no plano inferior do poema,
em caixa baixa7.

(LEMINSKI, 1983, p. 150).

7 Em entrevista a José Louzeiro, Augusto de Campos classifica o poema como concreto


participante, portanto em sintonia com as mudanças programáticas do grupo estabelecidas a
partir de 1961 (LOUZEIRO, 1965, p. 1).
290 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

Se ampliarmos o campo semântico do termo “casas” para além da marca


comercial e o tomarmos em seu sentido corriqueiro, evidencia-se a presença das
“casas pernambucanas” como metonímia das demais casas brasileiras, agora
inseridas na linha de produção da indústria internacional, destino final dos bens
de consumo. Uma casa já não se configura por ser um agrupamento estático de
pessoas aparentadas, pois sua efetiva existência se dá na prática dos hábitos
cotidianos que só se realizam na contemporaneidade em termos de consumo.
Uma casa é o conjunto de carros (Ford, General Motors), de derivados de petró-
leo (Texaco, Esso, Mobiloil), de materiais de limpeza e higiene (Adams, Gessy
Lever, Colgate, Kolynos, Rinso), de medicamentos (Sonrisal, Melhoral), bem
com a música e a própria escrita (Parker, Faber e RCE, eventual mescla de RCA
e RGE). Tudo está no mesmo plano, todos são mercadorias, marcas publicitá-
rias, mas também marcas de identidade. Por dependermos delas, de certo modo
elas nos padronizam, subordinam e comandam, o que nos permite supor que o
“GENERAL” em questão tanto pode se referir aos militares responsáveis pela
modernização autoritária que se iniciava, quanto às próprias marcas que estão
acima das “casas”, formando uma imensa generalidade de costumes.
Uma vez que o mercado é um difusor de ideias pré-concebidas e se estabe-
lece entre os consumidores moldando seu comportamento, é inegável que toda a
cadeia produtiva e de consumo, incluindo a publicidade, exista para se fixar em
cada indivíduo. A ideologia que no passado necessitava ser veiculada por jornais,
num processo mais lento de transmissão, a partir das novas tecnologias da co-
municação é praticamente imediata e onipresente, pois tudo num centro urbano
comunica, o próprio ato de consumir é em si uma atitude de comunicação, na
medida em que configura um padrão a ser seguido. “Uma agência é um labo-
ratório de mensagens”, dizia Leminski em carta de 1976 para Régis Bonvicino,
ao discorrer sobre ser a publicidade seu meio de vida, o que lhe dava inclusive
alguma satisfação, pois “todo layout man é um pouco poeta concreto” e conclui
o assunto se deixando levar pelo lirismo: “servo-mecânico para um senhor-me-
canismo/ conduzo com alguma elegância/ meu destino de médico & monstro”
(LEMINSKI, 1999, p. 34). Viver nas entranhas do “senhor-mecanismo” permitiu
a ele ter uma boa noção da força da indústria cultural, e talvez por praticar artes
marciais tenha se utilizado da técnica de não enfrentar o adversário diretamente,
mas se aproveitar do potencial do oponente para derrubá-lo, chegando inclusive
a dizer que “gosto de me sentir na corrente sanguínea/ do mercado e dos meios
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 291

de massa/ talvez seja um prazer de escriba […] trabalhar nos meios de massa/ é
a coisa mais parecida com ação que já vi” (LEMINSKI, 1999, p. 47).
A mensagem publicitária se constrói de rapidez e eficiência, sem deixar mui-
ta margem para dúvidas, interpretações ou críticas. As paronomásias, alitera-
ções, rimas e outros efeitos sonoros ou visuais são pensados em função de sua
memorização e do efeito lúdico que as ambiguidades desencadeiam, daí talvez
não ser de todo errado dizer que a publicidade, em sua evolução a partir dos anos
1950, especialmente com o desenvolvimento do design e de toda teoria e tecno-
logia que o cerca, abandonou a função exclusivamente conativa, que descrevia
qualidades, propriedades e benefícios das mercadorias exaustivamente, para
incorporar algo das funções poética e metalinguística, desde que orientadas para
o consumo; ou seja, mesmo a beleza ali não é senão uma estratégia em favor de
sua utilidade. Leminski trilha muitas vezes o mesmo caminho, porém com sinais
invertidos,8 que podem ser vislumbrados em inúmeros pastiches de publicidade
presentes em sua correspondência com Bonvicino ou naqueles que, superando
a pura blague, chegaram aos livros, como a recriação debochada – e, portanto,
irreverente – do slogan ufanista e intimidador do ditador Garrastazu Médici,
convertido no inofensivo haicai “ameixas/ ame-as/ ou deixe-as” (LEMINSKI,
1983, p. 91), ou o sarcástico “Manchete”, que em poucas palavras expõe, incor-
porando o estilo sensacionalista dos jornais, a tensão entre a criação/intuição
poética (“chute”) e a produção industrial (“meta”, tradução da palavra inglesa
goal), o que no fundo é a tensão de toda poesia política, na maior parte das vezes
insignificante diante das condições históricas:

CHUTES DE POETA
NÃO LEVAM PERIGO À META
(LEMINSKI, p. 72).

8 Nesse sentido, em entrevista ao jornal Nicolau, diz: “Tenho certas exigências que repasso como
criador de publicidade e criador de poesia que são as mesmas. Sou incapaz de usar uma palavra
a mais. A busca de síntese para mim é fundamental. Primeiro eu era poeta, depois descobri a
publicidade. É como saber atirar em pombinhas e rolinhas e alguém chegar e dizer que você
pode ser guerrilheiro. Daí você vai matar gente. Publicidade é para matar gente. Mas eu já tinha
pontaria, sabia usar armas” (LEMINSKI, 1989, p. 9).
292 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

Essa apropriação crítica da linguagem jornalística9 e publicitária aparece em


diversos poemas, mas um em especial merece atenção. Trata-se de “Verdura”,
escrito por volta de 1978,10 e que viria a ser gravado por Caetano Veloso em 1981.
O poema explora os clichês das propagandas televisivas com suas sequências
contínuas de satisfação, sucesso e individualismo. Nada mais exemplar do bem-
-estar na sociedade de consumo que a “típica” família de classe média, cuja ima-
gem pode ser oferecida à venda como sonho, mas nem sempre comprada no
mundo concreto, especialmente numa economia subdesenvolvida, de terceiro-
-mundo, conforme a terminologia que se usava até o colapso do bloco socialista
e muitas vezes repetida por Leminski, dependente e desigual. Como paródia,
sua expectativa é a de produzir informação não necessariamente nova, mas sim
corrosiva, que pudesse revelar, mesmo que de modo caricatural, algo do sujeito
histórico:

de repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que eu te vi
o dia em que me viste

9 Ao comparar a poesia ao jornalismo, Leminski diz – quase parafraseando Aristóteles, ao


comparar poesia e história – que o jornal “diz coisas previsíveis, e, portanto, possíveis. […] Já a
poesia fala de coisas que ninguém previa, impossíveis, nadas” (LEMINSKI, 1999, p. 178). Assim
como no caso da publicidade, ele dominava os códigos a ponto de subvertê-los, fazendo com
que uma notícia não trouxesse o possível, mas o inusitado, o novo, a experiência estética.
10 Numa carta datada de 13 de abril de 1978, Leminski revela a Régis Bonvicino que a censura vetou
o poema para o show do músico Ivo Rodrigues, sem, contudo, esclarecer as razões do veto, que
seguramente deve ter levado em consideração algum fundo moralista e não necessariamente
político, situação bastante comum no período, já que o autoritarismo não poupava obras
que “atentassem” contra os bons costumes da tradicional família brasileira, seja lá o que isso
significasse. A gravação feita por Caetano, no LP Outras palavras, é posterior ao lançamento de
suas primeiras tiragens em poesia, restritas aos leitores mais próximos, tendo sido responsável
por dar ao nome de Leminski visibilidade nacional.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 293

de repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em Copacabana
(LEMINSKI, 1983, p. 84).

Como qualquer verdura, no mercado tudo está à venda, inclusive relações


pessoais e seus liames emocionais, que, obviamente, têm seu preço. A ideolo-
gia do consumo implica lançar modas, eleger modelos de sucesso, criar ilusões
de satisfação e prazer, como essa de “pegar um sol em Copacabana”, destino
mais para estrangeiros que para brasileiros, idealizado desde os anos 195011
pela Bossa Nova e depois reelaborado tantas vezes, como na canção tropicalista
“Superbacana”, de 1968, de Caetano, com a qual “Verdura” aparenta dialogar
mais de perto. Porém o que se constrói na composição de Caetano em torno de
uma cena colorida, juvenil e caricata de super-heróis e superpoderes, embora
às vésperas do AI-5, em Leminski se reduz a um olhar melancólico e autocom-
placente que busca convencer-se de que a felicidade passa pelo consumo, ainda
que só esteja colhendo os frutos do malogro econômico financiado pela ditadura
civil-militar, cuja receita orçamentária era alimentada por arrochos salariais e
tributação na base da pirâmide social. Em “Verdura” o efeito de ironia era sutil,
em parte porque fora escrito ainda durante tempos de repressão. Alguns anos
depois, já no primeiro ano do governo Sarney, quando o fracasso do modelo já
estava escancarado, Leminski retoma o tema ao escrever a crônica “Você traba-
lhou, e o Brasil se mudou para os Estados Unidos”, na qual parodia certo tom
ufanista da imprensa nacional em sua vã tentativa de vestir a milagrosa roupa
dos avanços da tecnologia a serviço do mercado:

11 O samba-canção “Copacabana”, de autoria de João de Barro e Alberto Ribeiro, foi composto em


1944 – eco da política de boa vizinhança – sob encomenda de um empresário norte-americano
que iria inaugurar uma boate em Nova York, batizada com o nome da praia carioca. A canção
só veio a público dois anos depois, com a gravação de Dick Farney (MELLO; SEVERIANO,
1998, p. 246).
294 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

A rede de telefones centuplicou em 20 anos. Como saber o que as pessoas


pensam, se elas não telefonarem? A TV atingiu todos os lares. Como
vender shampoo e otimismo, com a inflação à velocidade de 300% ao ano?
O número de estações de FM decuplicou. Não fosse isso, que seria dos
principais sucessos do “hit-parade” norte-americano” (LEMINSKI, 1985k,
p. 16).

Já virtualmente derrotados no âmbito social, os militares e os civis que lhes


davam sustentação puderam pacificamente ensaiar sua retirada do poder e sus-
pender gradativamente o controle estatal sobre as consciências, porém as trans-
formações nos hábitos sociais, no cotidiano das casas e no consumo de bens
culturais foram profundas o suficiente para que não houvesse, a partir do final
da década de 1970, críticas mais enfáticas ao modelo de dependência a que o país
autoritariamente aderira. Parecia natural, embora a concentração da renda te-
nha se acentuado na ditadura, que toda a sociedade fosse reflexo de seu consumo
e se deixasse guiar pela suposta liberdade nascida da concorrência.
Agente das construções ideológicas, o mercado legitima seus interesses a
partir do suposto estímulo que oferece aos concorrentes do mesmo segmento,
sugerindo um natural e benéfico embate entre ideias que desestabilizaria o sis-
tema em favor do consumidor, excluindo o velho, o antiquado, o ultrapassado,
para pôr em seu lugar o mais adequado, o melhor, o novo. A função dessa busca
desenfreada pela novidade – o que põe a publicidade num ponto central – é
mascarar o fato de que o progresso é limitado e não avança tecnologicamente de
um verão para o outro, como o mercado faz crer e os consumidores insistem que
assim seja. Tudo deve mudar, porém as mudanças não passam de cosméticas,
apenas o suficiente para que o estoque se renove e que “novas” formas tomem o
lugar das velhas. Uma poética que aderisse a esse critério de buscar o novo pelo
novo correria o risco de simplesmente mimetizar um aspecto da indústria cultu-
ral, atendendo a uma expectativa já programada.

O novo não me choca mais


Na condição de poeta e intelectual de vanguarda, como desde cedo se re-
conheceu, a reflexão sobre categorias como invenção, originalidade, novidade,
rigor seria uma constante fonte de inquietação criativa e teórica para Leminski.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 295

Seu mais audacioso projeto após aderir à poesia concreta foi a publicação, em
dezembro de 1975, de Catatau: um romance-ideia, prosa experimental quase
intransponível, à qual se dedicou por cerca de oito anos, desde 1968, quando sua
primeira redação, então chamada Descartes com lentes, ganhou um concurso
literário. A verdadeira narrativa não era necessariamente a hipotética presença
de Descartes no Pernambuco holandês, mas o trabalho com a linguagem, levada
ao seu limite, esgarçando o código verbal, indiferente aos mecanismos da nar-
rativa convencional, à coesão ou coerência, indiferente mesmo a uma eventual
compreensão, já que ao tempo de seu lançamento dizia não ter sido feita para
agradar ninguém12, que por “não ser um romance nem novela”, mas sim uma
“coisa nova”, contava “com a incompreensão de todos os críticos, que estão acos-
tumados com livros fáceis e manjados” (LEMINSKI, 1975b, p. 6).
A partir de Catatau, cuja edição ficou a cargo de amigos publicitários,13
Leminski tornou-se um nome percebido nacionalmente, ainda que restrito ao
círculo de escritores. E foi nesse contexto, com resenhas que se contradiziam
quanto à apreciação de seu romance-ideia, que Leminski estabeleceu um im-
portante diálogo com poetas um pouco mais jovens que ele, empenhados em
projetos coletivos de pesquisa de linguagem, cujos trabalhos eram recolhidos
em revistas como Código, Poesia em Greve, Qorpo Estranho e Muda. O frenesi
intelectual de Leminski encontra em Antonio Risério e Régis Bonvicino, princi-
palmente, os interlocutores ideais para formular uma poética pós-concreta (por-
tanto, pós-industrial), a qual mais de uma vez foi definida como “intersemiótica”.
Coube a Leminski, no “MinifestoIII”, publicado em 25 de janeiro de 1977
no Diário do Paraná, traçar os contornos teóricos dessa poética que deveria
se libertar da escrita, tendo como fundamentos a linguagem racional, ideogrâ-
mica, comprimida, pluricodificada, dinâmica, sintética e dialética, em razão da
vivência de tempo acelerado e simultâneo decorrente da ampliação dos meios de

12 “O ‘Catatau’ não foi feito para agradar. Não fiz para uma média – a média, digamos, que lê Jorge
Amado ou João Antonio. Quem procura o difícil tem o difícil, a radicalidade tem seu preço.
Mas um público qualitativo, cada vez maior, interessou-se pela experiência: Caetano Veloso,
Jorge Mautner, Gil, Décio Pignatari, Risério etc. O ‘Catatau’ chegará a números maiores.
Quanto mais leem, mais fácil ele fica. Um dia, finalmente, será facílimo” (LEMINSKI, 1977a,
p. 2).
13 A despeito da edição independente e da árdua leitura, Catatau permaneceu algumas semanas
nas listas dos livros mais vendidos no Paraná em 1976, tamanha sua repercussão no cenário
cultural da capital paranaense.
296 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

comunicação e do avanço da computação, que permitiam novas manifestações


da linguagem poética (LEMINSKI, 1977b, p. 1). O princípio do qual partiam era
de que os códigos deveriam se fundir, e Leminski, dentro das agências de publi-
cidade, das redações de jornais, na experiência de letrista, explorava essa inter-
secção de texto, foto, cartum, pintura, grafite, música, performance, happening,
ao lado de nomes de expressões variadas, como a poeta Alice Ruiz, o cartunista
Solda, o artista plástico Luiz Rettamozo, o músico Ivo Rodrigues e o poeta e edi-
tor Reynaldo Jardim, que havia se fixado em Curitiba em 1976.
De certo modo, ele vivera ao longo da década de 1970 os estertores de uma
corrente que havia transferido o juízo de apreciação das obras da experiência
sensível para a mediação intelectual. Em lugar do belo, o critério de aferição
passara a ser o novo. Dicotomia aparentemente admitida por Leminski, já que
em algumas ocasiões se referiu à pesquisa, à invenção e, sobretudo, à busca in-
cessante do novo como marcas da sociedade urbana e industrial, em oposição ao
belo, categoria quase etérea, um tanto indiferente à história, que pertenceria ao
mundo rural e artesanal:

O que não for novo, hoje, nem sequer existe. Em contrapartida, o novo é,
hoje, o óbvio. A vanguarda é classicismo do século. Estamos condenados a
inovar. A inventar. Thomas Alva Edison, o santo padroeiro dessa civilização
que aí está. Poeticamente, inclusive, sobretudo. Não que o bom e velho
belo não tenha mais serventia: ao que tudo indica, a civilização é processo
inclusivo, não excludente (LEMINSKI, 2011, p. 75).

Ainda que na década de 1970 já não houvesse um projeto coletivo de amplo


espectro, as experiências com as linguagens dos três principais poetas concre-
tos, por exemplo, seguiam desestabilizando a poética tradicional, porém já não
pareciam suficientes como modelo único quando pensadas num contexto de
cultura pop, contracultura, imprensa alternativa, liberdade sexual e outras que-
bras de paradigmas artísticos e comportamentais. A valorização da invenção, as
experiências com a linguagem verbal e simbólica, a revisão da historiografia, a
metalinguagem, a abertura para outros suportes para além do livro, o rigor for-
mal e o manejo de um amplo arsenal teórico compunham o modo de pensar de
Leminski, porém os resultados que perseguia eram outros.
No gênio indócil de Leminski conviviam divergências e dicotomias da men-
talidade posterior às transformações culturais de 1968, alguém que abandonou
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 297

a oficialidade do discurso acadêmico sem desaparecer no completo drop out de


sua geração, não tendo ficado à margem, mas numa confluência, num ponto
de convergência, simbolizado pela pororoca, imagem que empregava para se
referir ao encontro da tropicália com a poesia concreta,14 mas que no fundo era
um modo de referir-se a si próprio, como se depreende desse perfil exposto por
Antonio Risério no número 25, de julho de 1989, do jornal Nicolau, que circulou
após a morte do poeta curitibano:

Leminski foi criado entre a estética concretista e os alucinógenos, entre


o uivo de Ginsberg e a semiótica matemática de Max Bense, entre o
rigor de Pierce e os delírios contraculturais. Esta é a sua marca: fascínio
simultâneo pelo neopositivismo, pela cibernética ou pela semiótica e pelas
manifestações extremas da subjetividade, do existencialismo sartreano à
contracultura (RISÉRIO, 1989, p. 27).

Sua produção epistolar, ao menos aquela publicada, revela que essa con-
vivência não se deu sem atropelos, tampouco sem esforço, pois a influência da
poesia concreta transcendia questões meramente formais e se estendia a outros
pontos de sua atividade, especialmente aqueles que envolviam o alcance comu-
nicativo de sua poesia. Entre as cartas enviadas a Bonvicino, uma em especial,
datada de 6 de novembro de 1978, é uma espécie de acerto de contas com os poe-
tas concretos, dos quais Leminski procura se diferenciar estética e politicamente.
No tocante à busca pelo novo, diz:

a novidade a todo custo como um absoluto (uma obra vale pela invenção)
não é a única coisa que se procura em arte. essa é a miragem dos concretistas.
[…] não resta dúvida q esse culto do novo em poesia de vanguarda está
ligado ao “novo” que a publicidade usa… novo Omo, novo Rinso… novo…
novo… mas novo… novo para que? ou novo não precisa se justificar? novo
é novo, e tá acabado? claro que existe uma preocupação com novidade em
qualquer artista de verdade, com novidade, com originalidade, com voz

14 Leminski publicou o artigo “Pororoca” em 19 de junho de 1977 no Diário do Paraná, porém o


texto já estava pronto desde 1974, pois traz a referência “Áries, 74”, o que confirma uma nota
no jornal Diário da Tarde de 15 de abril de 1974, na qual o jornalista Martin Vaz, ao comentar o
LP Araçá azul, diz que Leminski preparava um artigo-ensaio sobre o encontro dos dois grupos
(VAZ, 1974, p. 6). Em setembro de 1975 o próprio Leminski já havia feito menção a uma “cultura
de pororoca” numa entrevista dada ao Diário do Paraná (LEMINSKI, 1975a, p. 24).
298 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

própria. mas o novo a todo custe o que custar me parece um mito, uma
alienação. alienação é uma coisa que subsiste depois que perdeu seu uso,
sua finalidade, seu emprego social./ novo, para que? eis a questão.// essa
perseguição ao novo é meritocrática, competitiva, gera intrigas palacianas
pelo poder, exclui, segrega, expurga.// a poesia concreta já proclamou-se
a única boa e certa. A Nova! “dando encerrado…” / e se o povo todo gostar
de verso, o que é que a gente faz? / expulsa o povo?/ ou faz como avestruz,
enfia a cabeça num ideograma da dinastia ming e faz de conta que ele não
existe? […] precisamos tirar a poesia da vertigem/miragem do novo, novo,
mais novo, mais, mais…/ quero fazer uma poesia que as pessoas entendam
(LEMINSKI, 1999, pp. 110-111).

De certo modo, após a publicação de Catatau, Leminski passa a viver o


conflito de que os ciclos experimentais da modernidade vinham se fechando. É
herdeiro do pensamento que aposta na construção do futuro, domina seu instru-
mental, porém já não se sente confortável com o mesmo receituário, expressando
a angústia de se ver “condenado a ser exato”, embora seu anseio fosse “poder ser
vago” (LEMINSKI, 2004, p. 23), uma vez que a indústria cultural era muito mais
eficiente em produzir informações com a aparência de novidade,15 além de achar
que a vanguarda para sua geração estava na música, especialmente no rock.16

15 O divisor de águas em sua produção poética em relação à vanguarda foi traçado pelo próprio
Leminski: “com Catatau, passei a limpo, essa coisa de informação fechada, intratável. quero ser
agora um útil operário do signo. falar de coisas que interessem às pessoas” (LEMINSKI, 1999,
p. 143).
16 Em depoimento ao jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, de 14 de agosto de 1976, ainda
sob o impacto da divulgação de Catatau, já apontava outras formas de expressão para além do
livro: “A vanguarda hoje está em muitos lugares, até no rock. Eu sou letrista de rock, trabalho
com o grupo A Chave, em Curitiba. Apesar de ter posturas políticas que me incompatibilizariam
com o gênero, como uma forma colonizada de cultura, acabei me interessando pelo rock como
veículo novo e aprendi bastante. Tenho buscado várias experiências e vários caminhos. Já
trabalhei com fotografia, faço letra de rock e vamos filmar agora o Catatau em Super 8. Quer
dizer, estou me abrindo e gostaria de ter uma abertura muito maior, de transar 2, 15, 50, sei lá,
mil códigos, entende? São mil outras possibilidades e o cara se fecha dentro daquele gueto,
campo de concentração que é o código verbal” (LEMINSKI, 1976a, p. 7). Quanto mais estreitava
sua relação com a música, com mais ênfase defendia que a poesia escrita teria chegado ao fim
com a poesia concreta, que depois dela os melhores poetas faziam canções, como nos artigos
“Poesia: morreu a literatura, viva a música popular” de 1977 e “Maxifesto” de 1987. Outras
vezes, porém, defendeu a convivência entre as duas expressões, como em “Escrever, ler, cantar,
ouvir poesia”, de 30 de julho de 1986, no qual reitera a proximidade entre a poesia concreta e a
tropicália e chama atenção para a obra de Arnaldo Antunes que criava para os dois suportes,
além de fazer considerações sobre a natureza essencialmente comercial da canção, criada como
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 299

O país estava razoavelmente integrado pelos meios de comunicação; gran-


des centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, sedes dos principais veí-
culos e empresas, atuavam como centros catalisadores, pois filtravam o que lhes
interessava em meio a produções regionais para, em seguida, convertê-los em
produtos nacionais. Ainda que possa parecer paradoxal, uma vez que o controle
estatal sobre a informação e a cultura era severo, conforme a perspectiva em
que se olhe, a indústria cultural foi um dos setores que mais se beneficiou com
a perda de importantes segmentos da intelectualidade brasileira, especialmente
após o AI-5, já que preencheu o “vazio cultural” com uma produção medíocre e
pasteurizada em todos os segmentos, o que já era percebido por Zuenir Ventura
ainda em 1971, antes de os setores alternativos reivindicarem seu próprio espaço:

O quadro atual, ao contrário, oferece uma perspectiva sombria: a quantidade


suplantando a qualidade, o desaparecimento da temática polêmica e da
controvérsia na cultura, a evasão dos nossos melhores cérebros, o êxodo de
artistas, o expurgo nas universidades, a queda na venda de jornais, livros
e revistas, a mediocrização da televisão, a emergência de falsos valores
estéticos, a hegemonia de uma cultura de massas buscando apenas o
consumo fácil (VENTURA, 2000, p. 41).

Músicas, filmes e livros estrangeiros passaram a ter acesso irrestrito às casas


brasileiras, onde eram absorvidos sem a menor mediação crítica e incorporados
à rotina doméstica, ao passo que na medíocre produção nacional, em colabora-
ção com os “enlatados” para desbancar a melhor MPB ou o cinema novo, foi a
telenovela o principal produto da indústria cultural brasileira, aquele que unia
quase todo o país a despeito de classe, que influenciava a linguagem cotidiana, o
vocabulário, lançava modas e vendia discos, criava ídolos, elegia temas de inte-
resse público, ainda que esses temas fossem superficiais ou mesmo adulterados,
e que em dias decisivos de suas tramas era capaz de parar o país. A encruzilhada
em que Leminski se encontrava era justamente a de seguir um projeto expe-
rimental, que seleciona o público, uma vez que é acessível a poucos, portanto
exclui – pelo menos num primeiro momento, como ele defendeu algumas vezes

produto da indústria cultural, mesmo as mais rebuscadas, recuperando a noção de produssumo,


de Décio Pignatari, a obra projetada como arte de produção, porém destinada a ser um produto
para consumo (LEMINSKI, 1986c, p. 9).
300 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

na linha de poemas para produtores17 –, ou explorar uma linguagem mais poro-


sa, com potencial comunicativo mais amplo e assim atingir mais leitores, sem
cair, entretanto, na mediocridade da linguagem convencional. Seu anseio era o
de comunicar, evitar o solipsismo que rondava a poesia de invenção, como ele
mesmo alerta:

um poema
que não se entende
é digno de nota

a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota
(LEMINSKI, 1983, p. 51).

Uma transformação futura só viria com maior amplitude da comunicação


poética e produção de novos signos, novas imagens etc. Mais uma vez, as cartas
são uma fonte preciosa desse seu projeto que implicava não só incorporar a lin-
guagem e os recursos da poesia concreta, mas também ampliar o alcance de seus
poemas sem abrir mão da comunicação, como na citada carta de 6 de novembro
de 1978:

precisamos aprender a falar com desconhecidos.// os concretos (décio,


fora) nunca tiveram muitas coisas para dizer […] uma poesia q já quer
nascer universal, geral, genérica, nasceu morta…// escrever os signos

17 No artigo “Poesia progride”, de 21 de janeiro de 1977, ao tratar da poesia de invenção, diz: “é


uma poesia, infelizmente, para produtores. seu público é por definição restrito, conforme a
lei férrea dos repertórios segundo a qual a informação nova, realmente nova (a estrutural,
aquela que envolve a linguagem e a materialidade dos processos de comunicação) por sua
própria natureza, só atinge pequenos números. E portanto, uma poesia para produtores. Poesia
para poetas certamente. Para mudar poetas. Criar para alterar produtores. Sua taxa muito
alta de informação não permite que atinja grandes públicos. Seu ‘elitismo’ não é político nem
ideológico. É semiótico. e da natureza do processo de signos e sinais” (LEMINSKI, 1977g,
p. 2). Ideia que repete no “Minifesto” de 1º de abril de 1987, publicado no Correio de Notícias:
“Correto, portanto, produzir para uma faixa especial (ou muito especial) de público. Fazer
poesia, por exemplo, para uma faixa altamente especializada de consumidores. Para poetas, por
exemplo”. (LEMINSKI, 1987d, p. 10).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 301

explícitos deste momento: programar clarezas. (LEMINSKI, 1999,


pp. 116-117).

Ao final dessa longa reflexão sobre poesia concreta e seu projeto particular,
traz um dado que nos permite vislumbrar o quanto sua poesia procura ser reflexo
aprimorado da linguagem da indústria cultural:

lido o dia inteiro c/ mensagens verdadeiras, quer dizer,


[mensagens q funcionam.
funcionam porq são maximalização de linguagens industriais,
[veiculadas certo, no lugar certo…
o capitalismo é detentor, hoje, na publicidade, de um potencial
tremendo de possível comunicação social.
esse potencial pertence a todos, ao povo. um dia será de
[todos.
mas eu aprendo. como décio aprendeu…
(LEMINSKI, 1999, p. 120).

A comunicação que busca atingir por meio da poética é sempre “comunica-


ção nova”, aquela que acrescenta novos conceitos ao contexto social, que produz
novos significados, daí a necessidade de reflexão em torno do signo e não a pura
e simples reprodução da linguagem corrente e instrumentalizada dos meios de
comunicação, que, como já dito, destitui o sujeito de uma reflexão profunda em
seu papel como agente histórico, muito próximo do que Pignatari defendia: “é
preciso distinguir entre conteúdo e significado para não parafrasear conteúdos
já catalogados & sim criar SIGNIficados novos função do poeta” (PIGNATARI,
1971, p. 25).
É nesse sentido que é preciso ler seu distanciamento em relação à poesia
marginal, ainda que haja pontos em comum entre sua poesia e a dos poetas que,
vindos a público após 1972, reivindicavam um retorno ao coloquial e a distensão
formal em torno da poesia, reafirmando justamente o diálogo sem mediações
com o leitor, numa linguagem que muitas vezes se confundia com a anotação do
prosaico. Frutos da mesma época, talvez o que mais aproximasse Leminski de
alguns marginais não fosse necessariamente a poética do texto, mas sim mudan-
ças comportamentais mais amplas que sua geração experimentava, englobadas
no amplo rótulo de contracultura.
302 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

Quando instado a se posicionar sobre o boom da poesia dos anos 1970, não
poupava adjetivos para desqualificar em bloco toda a produção de então, desde
o título do artigo “O boom da poesia fácil” (que também foi publicado como
“Poesia, o lixo das artes”), já deixava explícito que para ele o “poemão” seria “di-
retamente influenciado pela publicidade e pelos grandes meios de massa e sua
linguagem sintética e despersonificada, TV, pôster, cartas, letra de música, pala-
vra de camiseta, o impacto da sociedade de consumo” E segue: “uma poesia de
‘baixa definição’, televisiva, descartável, de pronto impacto e mínimo oco”, que
se constituía em oposição às poéticas de “alta definição”, como foram a poesia
concreta e a poesia do CPC, orientadas pela mudança.

O alternativo poetar dos anos 70 não queria nada. Só queria ser. A palavra
para isso era ‘curtição’, a pura fruição da experiência imediata, sem maiores
pretensões. Essa foi a pequena grande contribuição da poesia dos anos 70
(LEMINSKI, 1987e, p. 20).

Já em resposta dada ao jornal GAM, de 1976, é ainda mais contundente,


tratando aquela poesia como subliteratura:

O boom literário brasileiro é um fenômeno, até agora, quantitativo.


Há milhares de brasileiros escrevendo contos e poemas, editando
revistas regionais, suplementos literários e
[até mesmo livros.
Mas nada de novo. Todos estão indo no caminho da velha
[literatura.
O boom é um subproduto da elevação dos índices de alfabetização e
universalização que o Brasil vem conhecendo. É natural que gente
que aprende a escrever comece a escrever. E entre pela porta da
subliteratura. O boom tinha que ser de pensamento. O brasileiro
tinha que começar a pensar. Em vez disso, ele se põe a escrever
(LEMINSKI, 1999, p. 209).

A despeito da desconfiança de uma suposta fragilidade da poesia escrita por


boa parte de seus contemporâneos, na passagem da década de 1970 para 1980,
concomitante ao processo de distensão política, que começa então a afrouxar
os aparelhos de repressão, e à presença da indústria cultural na vida diária das
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 303

pessoas, com ênfase na contracultura e na cultura pop entre os jovens, Leminski,


em dissonância com os primeiros textos teóricos da poesia concreta, passou a
não demonstrar adesão incondicional às experiências formais que se voltassem
exclusivamente para a linguagem ou que exigissem do leitor domínio prévio de
referências culturais necessárias para decifrar o texto, uma vez que eram práti-
cas que se conformavam com uma plateia de poucos. A partir de então, pensar
os mecanismos que o levassem a ser compreendido pelas massas torna-se parte
integrante de sua poética.18

Já fui erudito
Ainda que seguisse fiel ao princípio de produzir uma poesia inventiva e de
alta definição, evitando repetição e diluição, ainda dentro de uma poética inter-
semiótica, passou a defender em artigos e cartas seu interesse por uma poesia
que tivesse circulação e importância cultural equivalentes à MPB, o que só seria
possível se ela se estabelecesse dentro de padrões de linguagem operados pelo
leitor, o que incluía explorar outros suportes que não o livro: “tenho um horror
pop a qualquer palavra que obrigue o leitor normal a ir ao dicionário. Tem um
difícil que é fácil. E um fácil que é dificílimo. Prefiro estes” (LEMINSKI, 1999,
p. 194). Sua preferência pelo “fácil” é, portanto, programática e não casual, uma
escolha consciente da necessidade de se evitar os extremos da estética ou da
comunicação. O caminho a ser trilhado deveria ser o dos meios – meio termo
entre as dicotomias da poesia dos anos 1970, pensada no contexto dos meios de
comunicação. É o que encontramos em “Carta”, escrita com Alice Ruiz, endere-
çada a Risério e publicada no caderno de cultura Anexo, do Diário do Paraná,
em 23 de julho de 1977:

excesso de rigor mata


excesso de liberdade mata
o extremo é minha média
(LEMINSKI; RUIZ, 1977, p. 5).

18 “Incompreensível para as massas. Essa acusação ajudou a levar Maiakovski (talvez o maior
poeta do século) ao suicídio. A melhor arte do século XX, a mais radical, a mais rica, não está
ao alcance da massa. Picasso. Joyce. Mondrian. Webern. Duchamp. Pound. Coltrane. Hendrix.
Rosa. Oswald. A poesia concreta. Como romper com a barreira do consumo? Qual o estalo de
dedos que vai acordar o hipnotizado de seu transe?” (LEMINSKI, 1977d, p. 2).
304 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

Um mês depois, em 28 de agosto, em uma carta destinada a Bonvicino, na


qual discorre sobre seus muitos projetos na imprensa paranaense, pergunta em
tom obviamente irônico se não estaria se perdendo

na “mediocridade” das massmedias, já que “a cultura pop beira a bobagem/


quem sabe em vez de estar fazendo letrinhas; para uns roquinhos fuleiros/
eu deveria estar preparando ensaios/ pesados com a responsabilidade de
criar 10 filhos.

A resposta que se segue é um “não”, em caixa alta, seguido de uma frase


assertiva: “já fui erudito”. A frase no passado se explica por seu trabalho no jor-
nalismo cultural, que o teria livrado de “um monte de vícios letrados”. No estágio
em que a poesia brasileira se encontrava, não havia mais tempo para teorias,
nem “gestos inaugurais”, pois não havia mais certeza de nada. O fim da carta é
uma surpreendente prece para “que a estátua da liberdade/ e a estátua do rigor/
velem por todos nós” (LEMINSKI, 1999, p. 46-50).
Fica claro que não bastava atender às expectativas do presente, não basta-
va transmitir uma mensagem ou atualizar o repertório poético, pois o rigor e a
reflexão crítica teriam que ser necessariamente mantidos. Em 1979, ao tratar,
também em cartas, do projeto Minha classe gosta, logo é uma bosta (publicado
em 1981 no Paraná e não mais reeditado), pelo qual pretendia “sair dos circuitos
abafados udigrudi-kamikaze-samizdat para plateias mais amplas” (LEMINSKI,
1999, p. 141), Leminski faz uma série de ponderações que talvez nos permitam
compreender seu limite no tocante ao ponto de comunicação com o leitor, sem
cair no que ele próprio criticava nos marginais:

nós – intelectuais do 3º mundo – vivemos desesperados por


comunicação. o abismo entre as classes nos repugna e revolta. temos
que cuidar para q esse desespero não dê pontos à mediocridade. […]
talvez meu material (contracultura &/x marxismo) dê ótimos
ensaios, dê impulso à minha poesia. e me dê motivos para viver.
mas não dá um romance.[…]
quero ser claro. quero ser comunicação. banal – NUNCA! óbvio –
JAMAIS! (LEMINSKI, 1999, p. 149).

Aliás, nessa mudança das décadas, fica mais evidente que Leminski também
não valorizava o trabalho individual como essencial em sua produção poética.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 305

Desprovido de projeto tipicamente burguês, considerava inclusive sua atividade


na publicidade como secundária, pois vivia para fazer poesia, e afirmava não ter
pretensões de enriquecer ou mesmo consumir, o que não espanta a presença de
poemas de cunho autorreferente, como “essa sopa rala/ que mal vai dar para
dois” (LEMINSKI, 1983, p. 72), o que talvez explicasse ter abandonado qual-
quer formação universitária e algo do estilo de vida contracultural que adotara.19
Trata-se de um dado biográfico, por certo, porém é um dado que deixa marcas
perceptíveis em sua poesia, que em muitas ocasiões exalta a espontaneidade e
a naturalidade com que o poema acontecia – cabendo a ele o discernimento de
identificar e conferir o status de poesia que o destino lhe apresentava. É preciso
ver tal postura como um ato de recusa a um modelo de produção intelectual que,
de certo modo, reproduziria a divisão social do trabalho:

Pensar: função da poesia de invenção numa sociedade aberta, democrática,


quer dizer, popular, quer dizer de massas, quer dizer socialista. NADA MAIS
ME INTERESSA EM TERMOS DE TRABALHO./ o esteticismo dos campos
compromete todo o projeto. eles veem slogans e “tolices esquerdistas”,
onde se trata de problemas de verdade perante os quais nenhum intelectual
do 3º mundo (viva otávio paz!) pode ficar fazendo palavras cruzadas…
como se a revolução brasileira se resumisse em dar ou não razão a ferreira
gullar!… / vou ter que salvar essa merda. eu, discípulo dileto do osasquense
operário, bárbaro bizantino, décio pignatari, o nó da questão! (LEMINSKI,
1999, p. 101).

Onde ficariam os poetas? Para ele, fora desse sistema. Nesse ponto de seu
percurso poético, Leminski parece querer – em oposição ao que defendera du-
rante grande parte de sua trajetória – resgatar a aura que os poetas perderam
na segunda metade do século XIX (pelo menos em Paris), devolvendo-lhes à eta-
pa pré-industrial. A vida urbana, a indústria e o capital haviam exaurido seus

19 Professor nos anos 1960, publicitário nos 1970, Leminski passou a se dedicar quase que
integralmente à literatura nos anos 1980, publicando artigos em diversos veículos e traduzindo
obras encomendadas pela editora Brasiliense. Em depoimento ao jornal Nicolau, ano III, nº
19, aponta a incompatibilidade que havia entre seu comportamento meio hippie e o trabalho
regular: “Acordar às 8 horas, em plena segunda-feira, para dar aula é incompatível comigo.
Peguei toda uma bandidice meio boêmia, dos anos 70, que é um dado fundamental meu. Sou
um bandido que sabe latim.” Na mesma entrevista ainda reforça: “Eu sei praticar algumas
profissões, mas minha profissão mesmo é o desemprego. Em todos os lugares que começo a
trabalhar eu me empenho durante uns quatro ou cinco meses, apenas” (LEMINSKI, 1989, p. 7).
306 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

recursos; o final da década de 1970 e o início da de 1980 são marcados por crises
sistêmicas, a principal delas é decorrente do aumento do preço do petróleo, o que
coincide com o amadurecimento de uma consciência ecológica que se torna anta-
gonista do processo de produção industrial. Havia pouco o que enaltecer na cida-
de contemporânea, cada dia mais fraturada e cindida, mais agredida e agressiva,
mais um ambiente inóspito à vida coletiva. É a essa constatação que chega em
27 de setembro de 1987, no artigo “A arte já morreu viva o artesanato”, quando
desfaz completamente a dicotomia industrial/artesanal ao concluir que não havia
qualquer perspectiva de produzir formas novas, informações novas, códigos no-
vos. “Só a vida tribal, rural, tem verticalidade infinita” (LEMINSKI, 1987a, p. 16).
A poesia como reflexo da sociedade urbana teria chegado ao fim e com ela
também sua reação mais imediata, manifestada pela incompetência dos poetas
da década de 1970, uma geração despreparada e desamparada formal e cultural-
mente (CANÇADO, 1986, p. 17). Mas com o colapso da cidade, a poética indus-
trial, ou seja, a invenção, também perdia sua razão de existir, o que a levaria a ser
assimilada pelos poetas que estariam por vir, inserida entre seus repertórios. Daí
a perspectiva de voltar a esse mítico mundo rural onde o homem tira de si tudo o
que necessita e cada gesto é transformador em sua essência, já que não domina
a natureza, mas colabora com ela. Sua aposta para os poetas dos anos 1990 era
justamente a recuperação do artesanato, que tanto negara.
Uma inflexão como essa em seu juízo crítico, já que sempre entendeu a per-
manência do verso como reflexo da baixa inventividade e da pouca inquietação
decorrente de uma mentalidade agrária do poeta brasileiro20, foi o que lhe per-
mitiu superar restrições que cultivava há décadas, ampliando o espectro de suas
leituras, como se vê ao comentar os cinquenta anos da morte de García Lorca,
quando reconhece que por muito tempo evitou a leitura de sua poesia, já que
“parecia provinciana e regressiva”, representante de um mundo que acabava e
não de um que começava: “por puro preconceito, me escapou entre os dedos o

20 Dez anos antes, no artigo “Poesia: boom à vista”, de 19 de janeiro de 1977, lê-se uma opinião
diametralmente oposta: a literatura, por ser uma arte relativamente barata e “fácil”, especialmente
aquela que se “agarra às formas anteriores ao dilúvio dos meios de massa. […] A fidelidade do
poeta brasileiro ao verso é reflexo (sociologicamente explicável) do seu pavor em jogar fora seu
tempo rural em troca de um tempo industrial. Azar do poeta brasileiro. O tempo industrial
veio para ficar […] Mas a crítica à sociedade industrial seja lá qual for ela, só pode ser eficaz se
for feita através de recursos industriais. A menos que me provem que depois dessa sociedade
industrial teremos uma idade de Ouro agrária e campestre, na qual todos os valores dos bons e
velhos tempos voltarão a vigência. Os valores literários, inclusive” (LEMINSKI, 1977e, p. 2).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 307

ouro de um dos poetas mais puros que este século produziu” (LEMINSKI, 1986d,
p. 9).
Essa revisão da poesia de Lorca é sintomática da mudança estética pela qual
passa Leminski, pois é manifestação de sua proposta de retorno de nossa men-
talidade a um tempo anterior ao predomínio da máquina, quando prevalecia,
segundo ele próprio, o artesanato da palavra e, sobretudo, o belo como fruto de
um grau de transcendência que só se atingia pela arte ou pela religião, o que se
vislumbra mesmo em passagens de poemas da década de 1970, quando empres-
tava ao poeta as vestes de profeta: “parem/ eu confesso/ sou poeta// só meu
amor é meu deus// eu sou o seu profeta” (LEMINSKI, 1983, p. 91). Ou de modo
mais evidente, num tratamento autobiográfico, como no poema “Sacro lavoro”,
no qual a poesia é uma espécie de transubstanciação:

as mãos que escrevem isto


um dia iam ser de sacerdote
transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo

hoje transformam palavras


num misto entre o óbvio e o nunca visto
(LEMINSKI, 1996, p. 46).

Ao ressaltar o par “óbvio/nunca visto” está reiterando sua crença na re-


novação da linguagem que haveria de partir do conhecido e ir além. De monge
beneditino a monge zen, a persona lírica desse retorno ao rural já convivia com
o poeta cibernético, pois sempre explorou em seus poemas a busca por certa
leveza na criação e na sua própria existência, o que não espanta sua dedicação
desde a década de 1960 à cultura tradicional japonesa – o Japão dos quimonos
e não o dos eletrônicos –, especialmente ao haicai, esse caminho da elevação por
meio da poesia. Daí a presença constante da natureza, cujas forças são a própria
manifestação de um poder transformador, em constante renovação (o que talvez
explique até mesmo a imagem da pororoca, encontro que cria enquanto destrói),
e sua inserção harmônica nela, em oposição à pouca presença em sua poesia da
máquina, da ordem social e da paisagem urbana, enfim, dessas forças humana-
mente agressivas, que longe de integrá-lo ao todo, acabariam por alijar-se dele,
deixando-o à mercê da prosa, “essa deusa que só diz besteiras, como se fossem
308 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

coisas novas” (LEMINSKI, 1983, p. 60). A máquina, tão idealizada em sua ju-
ventude, passava a não fazer mais qualquer sentido, muito menos a se relacionar
com a criação:

a máquina
engole página
cospe poema
engole página
cospe propaganda

MAIÚSCULAS
minúsculas

a máquina
engole carbono
cospe cópia
cospe cópia
engole poeta
cospe prosa

MINÚSCULAS
maiúsculas
(LEMINSKI, 1983, p. 73).

Essa imagem brutalizada de um tempo sem conforto, comprimido entre o


autoritarismo político e a onipresença do consumo, expõe a experiência de uma
época excessiva – qualificação que ele próprio atribuiu ao seu tempo em home-
nagem a Torquato Neto,21 o poeta-vidente que antecipara a necessidade de resis-
tir e dar voz a demandas reprimidas de toda uma geração, ignorando fórmulas

21 Leminski e Torquato nasceram no mesmo ano (1944), porém não há nenhum registro conhecido
de um encontro entre ambos, ainda que Leminski tenha vivido por alguns meses no Rio de
Janeiro, em 1969, e trabalhado em redações da cidade, período no qual Torquato possivelmente
estava na Europa. Ainda que esse encontro não tenha se dado, Leminski sempre demonstrou
admiração pela poesia e prosa de Torquato, tanto em cartas como em artigos, dedicando a ele o
poema “Coroas para Torquato”, publicado no caderno Folhetim, da Folha de S.Paulo, por ocasião
do décimo aniversário de sua morte: “um dia as fórmulas fracassam/ a atração dos corpos cessou/
as almas não combinam/ esferas se rebelam contra a lei das superfícies/ quadrados se abrem/ dos
eixos/ sai a perfeição das coisas feitas nas coxas/ abaixo o senso das proporções/ pertenço ao
número/ dos que viveram uma época excessiva” (LEMINSKI, 1982a, p. 16).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 309

pré-estabelecidas ou gêneros literários – e nos permite considerar relevante um


aspecto de sua poesia que contrasta com seu tom quase sempre espirituoso: cer-
ta melancolia (já mencionada ao tratarmos do poema “Verdura”), nem sempre
tematizada, mas deixada em meio às imagens como sentimento um tanto difuso,
que abalava sua autoconfiança como poeta e suas certezas quanto à apreciação
de seu trabalho e, por conseguinte, de seu futuro.
Nesse sentido, se por um lado há o resgate de um lirismo inspirado que es-
taria plenamente realizado quando o poeta tivesse o domínio total da linguagem
que lhe permitisse produzir com mínimo esforço mecânico, desejo que deixou
expresso em versos como “vai vir o dia/ quando tudo o que eu diga/ seja poesia”
(LEMINSKI, 1983, p. 58), ou “versos que não/ nem quero fazer/ se fazem por si/
como se em vão” (LEMINSKI, 1983, p. 39), por outro, talvez por suspeitar que
não haja satisfação completa na vida burguesa, Leminski se sentisse acossado
pela sombra de um fracasso iminente e inevitável. Na hierarquia da sociedade
de massas, orientada ideologicamente pelo consumo, ninguém está abaixo do
derrotado, que basicamente se resume àquele que não conquistou status social
para adquirir bens e acumular um patrimônio. Por consequência, a ideologia
do consumo confunde-se com a ideologia da competição, da ascensão social, da
propriedade privada e, sobretudo, da vitória, o que em literatura deveria resultar
em listas de mais vendidos, prêmios, fortuna crítica, discípulos, direitos autorais
e toda sorte de sinais de reconhecimento público. Render-se ao mercado para
atingir o sucesso pelo sucesso, implicaria fazer de si próprio uma marca, um
nome a ser oferecido como produto, signo de si mesmo, porém só chegaria a esse
patamar se abdicasse de sua liberdade:

já fui coisa
escrita na lousa
hoje sem musa
apenas meu nome
escrito na blusa
LEMINSKI, 1983, p. 75).

A vez da várzea
No Brasil, éramos quase todos candidatos ao fracasso, salvo os que con-
seguiram se salvaguardar da recessão e da hiperinflação ou aqueles que se
310 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

beneficiaram com as concessões da Nova República. Ainda assim, nos primeiros


anos da década de 1980, a euforia com a abertura política mascarava a falência
da economia brasileira e camuflava as negociatas dos bastidores do poder, já que
no ar havia aquela esperança contagiante e quase ingênua dos que apostavam
na força do povo unido etc. Depois de vinte anos de repressão às liberdades,
depois da ausência arbitrária de intelectuais e artistas, a cultura e o pensamento
crítico davam sinais de que voltariam a florescer e muito do que circulara no
underground parecia encontrar acolhida em um mercado que se modernizara à
sombra do poder e se mostrava atento às experiências já testadas marginalmente
e, por isso, potencialmente capazes de atender à demanda reprimida em escala
muito maior.
A ditadura civil-militar brasileira, visando integrar o país por meio das te-
lecomunicações e controlar a produção artística nacional, criou um conjunto
de condições técnicas e sociais – desde empresas públicas, como Embratel e
Embrafilme, à lei de imprensa – permitindo-nos concluir que ao longo do regime
foi aberto um novo capítulo da indústria cultural brasileira, com repercussões
imediatas no mercado editorial, cujas empresas paulatinamente se profissio-
nalizavam. O tempo de editores como José Olympio e Ênio Silveira começa-
va a ceder espaço para empresários e gerentes de marketing que expandiam
os catálogos de editoras como Ática, Nova Fronteira, Record, Abril Cultural,
L&PM e Brasiliense, cujas estratégias incluíam contratar escritores consagrados
ou com apelo popular, traduzir bestsellers e criar coleções das mais variadas
para disputar um mercado que oferecia de livros didáticos à melhor literatura,
além de enciclopédias, manuais etc. Ao investir no público jovem com coleções
como Primeiros Passos, O que é…, Tudo é história, Circo de Letras, Cantadas
Literárias, a Brasiliense se convertia numa espécie de Woodstock do mercado
para onde confluíam jovens autores como Marcelo Rubens Paiva, Caio Fernando
Abreu, Chacal, Glauco Mattoso, Chico Alvim, Ana Cristina Cesar e, claro, Paulo
Leminski.
Praticamente toda a produção poética e intelectual de Leminski publicada
na década de 1970 teve como veículos de divulgação revistas e impressos que, em
sua quase totalidade, pertenciam a um circuito – dito alternativo – muito restri-
to de leitores, em especial aqueles vinculados à poesia concreta ou aos desdo-
bramentos do tropicalismo, que constituía um público ainda mais exíguo que os
leitores da poesia distribuída em cópias mimeografadas, salvo no Paraná onde
publicava em jornais diários. Como bom polemista que era, diante da percepção
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 311

de que a poesia escrita perdia visibilidade, proclamou que naquela década o me-
lhor que se fizera em matéria de poesia tinha sido o conjunto de revistas literárias
e não um poeta ou uma poética em particular (LEMINSKI, 2011, p. 74). A revista
era o veículo adequado para se introduzir no cenário literário algo do espírito
das comunidades hippies, daquela vida coletiva em que a individualidade é fatal-
mente deixada do lado de fora em favor de um projeto comum, mesmo quando
não há projeto algum, aliviando um pouco a sobriedade das revistas programá-
ticas ou acadêmicas que marcaram gerações inteiras. A gravação de “Verdura”
em 1981 talvez tenha sido o ponto exato em que se iniciou a transição do poeta
de revistas e edições artesanais para o poeta comercial e nacional. Depois desse
ano, talvez nenhum outro tenha transitado com tanta facilidade entre os supor-
tes e os media como Leminski (antes dele, talvez Torquato Neto, poeta, letrista,
jornalista, ator e cineasta), que passara a se dedicar quase integralmente à poesia
em sua ampla apresentação.
Depois da publicação de Caprichos & relaxos em 1983, vieram os livros
Distraídos venceremos e Agora é que são elas, traduções de James Joyce, John
Fante, Lawrence Ferlinghetti, John Lennon, Yukio Mishima, Petrônio, Samuel
Beckett e Alfred Jarry, biografias de Cruz e Sousa, Bashō, Jesus e Trotsky, re-
unidas no volume Vida, além de ter suas letras cantadas por Ney Matogrosso,
Moraes Moreira, Itamar Assumpção e Guilherme Arantes, com quem compôs
uma trilha sonora para a TV Globo. Já suas intervenções jornalísticas podiam
ser lidas na Folha de S. Paulo, no Correio de Notícias, na revista Veja e mesmo
na televisão, ao integrar o grupo de apresentadores do Jornal de Vanguarda na
TV Bandeirantes. Cada uma dessas atuações pode ser catalogada como indício
de êxito comercial raro na carreira de qualquer poeta ou intelectual. A indústria
cultural, especialmente sua manifestação computadorizada, que inicia seu pro-
cesso de expansão na década de 1980, tem natureza complexa e onívora, com ca-
pacidade ímpar de produzir conteúdos para todos os nichos e públicos, daí suas
muitas faces. E Leminski parecia ter os predicados para circular por todas, pois
conhecia as manifestações de sua linguagem e sabia como não sucumbir a elas.
Entrou pela porta do mercado, mas não deixou toda a esperança do lado de
fora, já que mantinha a consciência de que sua poética seria modificada a partir
do momento em que passasse a escrever para milhares de leitores de jornal. Em
“Jornal para embrulhar peixe”, Leminski reflete sobre a influência do jornalismo
em sua poesia, dada uma evidente diferença de natureza entre os dois modos
de expressão escrita, “essa anomalia me cria problemas específicos e especiais”,
312 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

dizia, “liberdade e servidão: isso me abre determinados espaços de liberdade e


me fecha outros. Aposto na diferença” (LEMINSKI, 1987b, p. 15). Seja na publi-
cidade, no jornal ou na televisão, a percepção do efêmero é intrínseca à própria
transmissão do conteúdo, que praticamente se consome ao chegar ao destina-
tário; não há tempo de reflexão nem condições para permanência. Ao aproxi-
mar em excesso seu trabalho criativo dessas outras manifestações da linguagem,
escrevendo em meio a crônicas, inclusive em datas comemorativas, Leminski
também acabava por expor o poema ao risco de extinguir-se com a leitura, ris-
co que não o impediu de, ao estilo dos folhetins, publicar grande parte do livro
Distraídos venceremos, de 1987, inicialmente em sua coluna para o Correio de
Notícias do Paraná. Alguns, porém, só circularam essa única vez e cumpriram ali
sua função de verdadeiros poemas de circunstância.22 A vaidade da permanência
não lhe parecia tão atrativa.
Embora tenha concretizado seu projeto de ampliar a comunicação poética
a um público mais amplo, talvez não tenha conseguido superar a angústia que o
acompanhava desde o princípio – suas marcas da província.23 Um poeta que es-
crevia numa língua periférica em uma periferia regional dentro de uma periferia
do capitalismo, o que, somado aos ideais da contracultura, conferia a seu projeto
intersemiótico um aspecto um tanto brancaleônico, uma cruzada fadada a não
dar certo. Em alguma medida, percebe-se em sua poesia sinais de que se via como
um vitorioso ocasional, que se equilibrava “entre um triunfo e um Waterloo”
(LEMINSKI, 1983, p. 56), pois jogava num time sem estratégia, movido pelo
ímpeto primitivo dos xavantes, vindo de uma várzea subdesenvolvida – sincera,
verdadeira, mas subdesenvolvida –, incapaz de impor derrota definitiva ao time
dos verdadeiros craques, os poetas concretos (LEMINSKI, 1999, p. 208), o time

22 Exemplos de poemas de circunstância são: uma homenagem a Carlos Drummond de Andrade


logo após sua morte, intitulado “Vai pela sombra, pai”, e o pitoresco “Voto Secreto”. Há ainda
o “Para alguém lá longe” (1986e), publicado em 24 de agosto de 1986 (seu aniversário), cuja
qualidade espanta por não ter sido recolhido em livro: “passam-se meses/ sem que a gente se
veja/ nesses meses/ muita cerveja/ vai correr sobre as mesas/ muita coisa/ vai ser pensada e
não dita/ muito/ muito de nós/ vida e vida/ vai ser vista e não vista/ ouvida e não ouvida/ eu/
de novo/ no mato sem cachorro/ elo perdido/ de novo/ nada// você/ de novo/ inventando o
começo/ de novo/ depois de ter achado/ de novo/ procurando/ de novo/ novo”.
23 Em entrevista a Martins Vaz em 1971, após regressar de uma temporada vivendo no Rio de
Janeiro, onde morou no mítico Solar da Fossa, Leminski diz: “Bem, no Rio eu tive as aventuras
e desventuras de um caipira tentando a cidade grande. Foi um fenômeno típico de êxodo rural
e eu me sinto feliz de ter voltado aqui para a minha aldeia” (LEMINSKI, 1971, p. 5).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 313

dos savantes. Para ficarmos em um único exemplo, ao comentar as Galáxias,


de Haroldo de Campos, Leminski diz: “para meu gosto vulgar, plebeu, pedestre,
grosseiro, caipira, ‘funk’, o Livro das Galáxias é um projeto sofisticado demais.
Defeito meu. De resto a melhor prosa é feita pelos poetas” (LEMINSKI, 1999,
p. 207). Uma fala como esta, todavia, não o impedia de, em seguida, reforçar
sua imagem de cosmopolita, poliglota, alguém maior que Curitiba ou indiferente
ao Brasil, “um país falido, um vice-país, vice-governado, vice-feliz, vice-versa”
(LEMINSKI, 2005, p. 101), ou, em tom um tanto mais depreciativo: “O Brasil,
nossa cultura, nossa literatura, é tudo uma merda. Civicamente, politicamente,
culturalmente, os nossos valores são de médio para baixo” (LEMINSKI, 1989,
p. 8).
Por não haver uma verdadeira conciliação entre sua obra e a natureza do
capitalismo, restava-lhe fatalmente continuar a pensá-la inserida na indústria
cultural e na tradição literária nacional, ainda que as perspectivas de êxito fos-
sem quase sempre vistas como inviáveis, daí afirmar “nadei nadei e não dei em
nada// sempre o mesmo poeta de bosta/ perdendo tempo com a humanidade”
(LEMINSKI, 1983, p. 31). O recurso de expor-se em situações por vezes vexató-
rias é seguramente mais cáustico que o de se lamuriar, pois enquanto este espera
conforto alheio – daí a caricatura do poeta romântico que deseja sumir num
naufrágio clandestino –, aquele não pede nada, apenas cria embaraços públicos
que ressaltam sua inaptidão: “agora com licença/ mais um abismo vem vindo”
(LEMINSKI, 1983, p. 39). O que pede a seus leitores é que não haja indulgência
em razão de seu destino:

quem me dera um abutre


para devorar meu coração!
naco de carne crua
comida de pé no balcão!

quem me dera um apache


pra colher meu escalpo!
que desta vez não escape
nenhum disfarce!

tomara que um furacão


caia sobre meu navio!
314 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

que nenhum deus nem dragão


possa ser meu alívio!
(LEMINSKI, 1983, p. 40).

Mesmo o Catatau, seu projeto mais ambicioso, passou a ser interpretado por
ele como “o fracasso da lógica cartesiana branca, o fracasso do leitor em entendê-
-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico” (LEMINSKI,
2014, p. 212). De algum modo, fazer poesia, em seu sentido mais radical, seria
paradoxalmente empenhar-se numa atividade que inviabilizasse o poema como
mercadoria, impedindo-o de existir nas mesmas condições que qualquer outro
bem gerado pela indústria, sendo a figura do kamikaze24 a alegoria que melhor
caracteriza sua postura diante do mercado. Em La vie en close, último livro pre-
parado por ele, mas que só veio a público após sua morte, há uma espécie de
revisão crítica de seus vinte anos de produção poética, cujo título “Motim de
mim (1968-1988)” já é o prenúncio dessa guerra dentro de si que travara desde
sempre:

XX anos de xis,
XX anos de xerox,
XX anos de xadrez,
não busquei o sucesso,
não busquei o fracasso,
busquei o acaso,
esse deus que eu desfaço
(LEMINSKI, 2004, p. 30).
Um motim é sempre uma revolta interna (militar a priori) numa instituição
contra um poder constituído, é um ato de recusa ou negação, mas também um
ato que visa a reconstrução das relações de hierarquia, de comportamento etc.
Um motim algumas vezes depõe a autoridade, outras, apenas reivindica me-
lhorias, mas em não raras ocasiões os amotinados não têm sorte alguma. Nesse

24 Além da conhecida fotomontagem na qual é retratado como um calígrafo japonês que traz na
porção inferior o portmanteau KAMIQUASE, reproduzida em Caprichos & relaxos (LEMINSKI,
1983, p. 137), há um poema seu publicado no jornal Tribuna da Imprensa de 23-24 de julho de
1977, que incorpora o termo à poesia brasileira, termo que pode ser associado, guardadas as
devidas particularidades, ao mesmo campo semântico de outros contextos, como marginal ou
maldito: “naquela base/ quem?/ o kamikaze” (LEMINSKI, 1977c, p. 3).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 315

poema, após vinte anos imitando (“xerox”), vinte anos planejando (“xadrez” que
também pode ser vinte anos de prisão), é importante frisar que a ele não esca-
pava a dicotomia sucesso/fracasso, um par que faz parte da vida burguesa, e
mais ainda da indústria cultural, revelando que sempre esteve atrás do acaso, o
dado imponderável que é aproximado da imagem criadora de deus, porém um
deus que procurou para se opor a ele. Amotinar-se contra o acaso equivaleria a
amotinar-se contra o projeto de vanguarda que sempre o perseguiu desde pelo
menos Mallarmé.

Entre a pressa e a preguiça


Há algo de idealista ou utópico em suas formulações, talvez um resquício
participante que o levara a traduzir Maiakovski25 e biografar Leon Trotsky, ainda
que sempre tenha se insurgido contra o poema como plataforma estritamente
política, o que não o impediu de militar politicamente, como assinar manifesto
em favor da anistia e escrever crônicas a respeito do processo de redemocrati-
zação na década de 1980.26 Numa dessas crônicas narra que teria sido abordado
em São Paulo por uma militante do Partido dos Trabalhadores chamada Marisa,
integrante da Libelu e trotskista, “o tipo da gente que admiro pela pureza e fer-
vor da sua fé e por uma entrega que qualquer stalinista tem todo o direito de

25 Entre os primeiros trabalhos de Leminski, constam traduções de Maiakovski, duas pelo menos,
que chegaram a ser divulgadas na imprensa paranaense em 1964: “Noite de lua”, publicada
no Correio do Paraná em 19 de janeiro de 1964, e “Recordação de Baku, cidade do petróleo”,
publicada no Diário da Tarde em 26 de julho de 1964. Maiakovski é uma rara constante na obra
e no pensamento de Leminski, como se entre ambos houvesse uma espécie de ancestralidade,
especialmente no tocante a ser um poeta radicalmente dedicado à invenção e ter buscado
a compreensão das massas. Em mais de um momento, como em “Leminski minimanifesta
informado por Maiakovski”, defendeu pressupostos teóricos extraídos do poeta georgiano,
como a “teoria da central elétrica”, pela qual pressupunha que o poema que produzisse um novo
conhecimento, mesmo quando de difícil compreensão, pode ser transmitido em uma cadeia
entre leitores, do mais ao menos experiente, ou seja, de outros poetas até as massas, opinião
compartilhada com os poetas concretos quando se referiam a uma poesia para produtores.
(LEMINSKI, 1976b, p. 4)
26 Algumas das crônicas de viés político publicadas em 1985 no Correio de Notícias foram:
“Introdução a um ano muito difícil”, 6 de janeiro, “Os três poderes da praça”, 13 de janeiro de
1985, “Tancredorock”, 23 de janeiro, “Mas que nordeste é esse?”, 3 de fevereiro, “Tratado de paz
USA e URSS”, 15 de fevereiro, “A nova semântica”, 1º de março, “Você trabalhou, e o Brasil se
mudou para os Estados Unidos”, 15 de março, “Calma, calma, tudo vai piorar”, 3 de maio, entre
outras.
316 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

chamar de ingenuidade” (LEMINSKI, 1985g, p. 16), para que ele se associasse a


uma campanha em favor de lideranças do Solidariedade perseguidas pelo regime
comunista polonês, passagem que parece materializar num poema escrito alguns
anos antes para Polonaise:

para a liberdade e luta

me enterrem com os trotskistas


na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu

me enterrem com meu coração


na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão
(LEMINSKI, 1983, p. 54).

O processo de redemocratização foi contemporâneo à maior presença de


Leminski nos meios de comunicação em massa, que fizera dele uma espécie de
elo entre o público da poesia e o da música, posição que o levou ao centro das
ações dos artistas e intelectuais no início da década de 1980, incluindo sua parti-
cipação ativa na campanha das Diretas Já, o que deixaria o jovem intersemiótico,
que dizia não levar perigo à meta, um tanto confuso em face de seu engajamento
político, que incluiu ainda uma letra a ser cantada por Moraes Moreira, o “Frevo
das Diretas”:

Se a meta é a democracia
Se a democracia é a meta
Eleição é direta
Eleição é direta
Eleição é direta
É o eleitorado novo
E o povo já canta o que sente
Eu quero votar
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 317

Eu quero votar
Pra presidente
No próximo pleito
Eu quero o direito de participar
De ser cidadão feliz
Que tem opinião desde menino
Sobre o destino do seu país
(ARAGÃO, 1984, p. 5).

Sem entrar no mérito da qualidade poética da letra, pois a forma como foi
escrita era adequada às necessidades do fato histórico, há um ponto que merece
destaque nessa transição política que levou milhões aos comícios por todo o país,
e que a letra identifica: a alegria, o prazer que todos tinham em perceber que a ci-
dadania era capaz de trazer esperança. Não era tanto por militância partidária,27
mas por um festivo sentimento catártico que Leminski embarcava nessa ação
coletiva, uma vez que sua orientação política era outra, a que lhe permitia “as-
sociar novamente prazer e política”, pois na ditadura “o prazer estava em outro
lugar, sempre longe da política que era sinônimo de baixo astral, de perigo, de
medo” (CURITIBA…, 1984, p. 3). Nas ocasiões em que o prazer é o centro, todo
discurso racional, toda construção teórica, todo argumento mediado acaba por
ser prescindível, pois tudo se move em torno da paixão.
Talvez fosse um eco revolucionário de um poeta que mergulhara na con-
tracultura, fazendo com que tivesse sempre firme a posição de que seu projeto
era em favor da absoluta liberdade coletiva, sem qualquer cerceamento moral,
político ou estético tendente a impor padrões de convivência. Essa orientação
libertária particularmente se voltava contra um modelo de sociedade que con-
vertia trabalho em virtude social, e sua ausência em vício de caráter, e mais: o
trabalho nas condições em que é oferecido não passa de cruel mecanismo de
controle e alienação. “Nenhuma monstruosidade se compara à de ser um vaga-
bundo, isto é, alguém refratário às delícias da ordem e da disciplina necessárias

27 Embora tenha frequentado os círculos marxistas de Curitiba, a militância política de Leminski


sempre se deu via poesia; é sempre pela perspectiva de poeta que entende seu papel político:
“Quem lê ou escreve no país do MOBRAL, é maldito. Viver de signos, no 3º mundo é uma
coragem e uma covardia; daí a extrema responsabilidade. Poeta argelino. Romancista indiano.
Filósofo vietnamita. Ensaísta venezuelano. Pintor panamenho. Jornalista nigeriano. É preciso
reinventar tudo” (LEMINSKI, 1975b, p. 6).
318 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

para o trabalho.” (LEMINSKI, 2011, p. 112). A importância dada ao trabalho, à


reprodução mecânica da rotina, à eficiência, aos índices de produtividade teria
por fundo a rejeição da sociedade burguesa – não necessariamente daquela que
estivera submetida a um regime autoritário – ao prazer e, por consequência, a
rejeição a qualquer atividade que o desperte:

O prazer é um valor em si. […] Uma coisa sem preço é um não ser. O que
está fora do mercado não tem existência, propriamente falando. Cores,
prazeres gratuitos, obras de arte, produtos culturais, são coisas, no fundo,
sem preço, lúdicas, insusceptíveis de marketing, gestos livres… Nossa
tendência é ver a produção artística como uma coisa séria. Isso é uma
estupidez. A produção artística tem mais que ver com brincadeira do que
com as coisas sérias. Sério é chato. E todo artista chato é medíocre. Artista
tem que ser emocionante (LEMINSKI, pp. 114-115).

Acontece, porém, que devido à quase irrefreável capacidade do capitalismo


em neutralizar qualquer movimento que lhe seja contrário, mesmo o prazer tem
seu preço e se confunde justamente com a fruição dos produtos da indústria
cultural, já que as agruras da alienação do trabalho são aliviadas com o consumo
do prazer, quando alienamos o pouco tempo que nos sobraria fora do ambiente
de trabalho. O tempo do capital é o tempo da produção, é o tempo da circulação
da mercadoria, é o tempo do lucro, portanto o capital não permitiria o descanso
se este também não se convertesse em produto. Seria preciso paralisar a linha
de produção intelectual que os poetas trazem dentro de si, pois somente um
poema que suspendesse o tempo e ignorasse qualquer juízo de valor em torno
do vivido ou do porvir poderia ser voltado exclusivamente ao prazer. Assim, sem
pressa, sem quantificar ou qualificar o tempo, seria possível passar a vida inteira
“olhando a lua/ a boca cheia de luz/ e na cabeça nem sombra/ da palavra glória”
(LEMINSKI, 2004, p. 89):

Em lugar das velocidades lúdicas do esporte, conhecemos sua modalidade


pragmática, contábil, mercatória: a pressa. Nossa pressa é a maior
quantidade de trabalho concentrada na menor fração de tempo. O modelo,
evidentemente, são as máquinas e sua fria eficácia, oticamente neutra,
biologicamente irresponsável.
[…]
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 319

Quem está com pressa, não tem tempo para ver a paisagem. Nem para
refletir sobre o trajeto e o percurso. A pressa é a face visível do tempo
maquinal e despótico, criado pelo trabalho industrial e pela burguesia
europeia, com a Revolução Industrial. Como tal, é inimiga mortal das
liberdades do homem, entre as quais está a de produzir essas liberdades,
que são os produtos culturais, poemas, visões, músicas… A preguiça é que
é de vanguarda (LEMINSKI, 2011, p. 118).

Como dito anteriormente, Leminski em alguns momentos, já na década de


1980, se põe como defensor de um mundo pré-industrial, o que não se pode con-
fundir com anticapitalista, proposta que um marxista de qual orientação fosse
jamais defenderia,28 já que se insurge contra a própria mentalidade ocidental,
centrada no controle técnico da vida por meio da instrumentalidade da razão,
para a qual o conhecimento só tem sentido quando aplicável ao mundo. O capital
ou os detentores dos meios de produção são apenas manifestações dessa menta-
lidade; o dirigismo estatal tutelando os trabalhadores pode ser outra.
A solução para esse impasse é desenvolvida em meados da década, quando
esboça um modelo teórico que lhe permite pensar a poesia no mercado, compe-
tindo com os demais bens de consumo, mas não reduzida à condição de merca-
doria, uma vez que configurada como produto de pura fruição, reunindo valores
que foram se constituindo e consolidando em sua poética ao longo das décadas:
a liberdade, o prazer e mesmo a preguiça em oposição ao trabalho. Trata-se da
teoria do inutensílio, espécie de recuperação dos princípios da “arte pela arte”,
que a priori se contrapunham à essência de praticamente toda a poesia moderna
brasileira, dos modernistas aos concretos, incluindo-se os poetas associados aos
CPC, todos marcados por algum grau de utilidade (LEMINSKI, 1986b, p. 9). Em
sua concepção, opor-se ao mundo capitalista deveria ser a principal razão da
poesia de invenção, na medida em que o poema deve se recusar a reproduzir a
estética industrial, pois “a obra de arte burguesa referenda e coonesta, concre-
tamente, o mundo da mercadoria”, daí a importância dos que criam e circulam

28 Justamente num dos primeiros artigos nos quais defende o inutensílio, “O direito à poesia” de
8 de maio de 1985, diz: “Existe uma coisa mais burguesa que o Estado soviético, que herdou,
passivamente, o desenvolvimento industrial da burguesia, sem propor no fundo, nenhuma
realidade nova? O Estado soviético é a hipertrofia (a caricatura) do Estado burguês, acentuados
seus traços mais brutais” (LEMINSKI, 1985d, p. 16).
320 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

à margem em “pequenos gestos kamikazes, nas insignificâncias, nas inovações


formais realmente radicais e negadoras”. (LEMINSKI, 2011, p. 54).
Sua definição de poesia ao longo da década de 1970, reproduzida em diver-
sas entrevistas e artigos e depois inscrita por ele no rol de citações que compõem
o poema “Limites ao léu”, era “a liberdade da minha linguagem” (LEMINSKI,
2004, p. 10). Entretanto, na década de 1980, ao tratar do poema como inutensí-
lio, arte in-útil, que não esteja a serviço de nenhuma causa nem credo, faz uma
pequena porém significativa modificação nessa definição, ao dizer que “a poesia
é o princípio do prazer no uso da linguagem” (LEMINSKI, 1986a, p. 9). É bem
verdade que para ele a liberdade era a gênese do prazer. E segue nesse raciocínio
ao se contrapor às sociedades modernas, capitalista e socialista, como adver-
sárias do prazer, ambas voltadas para o trabalho mecânico, para a produção
sem sentido do homem subjugado pela máquina. A poesia como fonte de prazer
seria, portanto, uma estranha nesse mundo de mercadorias, já que não teria
serventia, não geraria lucro econômico, “o lucro da poesia, quando verdadeira, é
o surgimento de novos objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade
da gente de produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da utilidade”
(LEMINSKI, 2011, p. 87). É fato que durante a maior parte de sua militância
teórica defendeu que o papel da poesia seria o de criar informação nova, inserir
novos signos no mundo, como dito ao longo deste artigo. Entretanto, em alguns
momentos de sua poesia a contemplação descompromissada se insinuava desde
o princípio, como na imagem desse entretempo improdutivo de ouvir a chuva:

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça
(LEMINSKI, 1983, p. 59).

Um poeta sem síntese: centauro


As preocupações de Paulo Leminski, especialmente sua apologia ao pra-
zer e sua devoção quase transcendente à poesia, têm fortes ingredientes
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 321

idiossincráticos, frutos de uma personalidade efusiva que não aceitava pacifi-


camente qualquer orientação dogmática, qualquer militância ou obrigação re-
gular, deixando-se influenciar por correntes artísticas e políticas dicotômicas, e
vivendo-as como um conflito interno de ideias sem preocupação evidente de sín-
tese, que de certo modo implicaria alguma perda em favor da conciliação. Duas
poéticas compondo uma só obra, portando duas naturezas que se preservam,
como a alegoria que ele próprio encontrou para si, o centauro, “somos os últimos
concretistas e os primeiros não sei o que/ somos centauros” (LEMINSKI, 1999,
p. 45).
Seu experimentalismo lírico, que acabaria batizando de “parnasianismo
chique”, seja por sua particular releitura da “arte pela arte”, seja pelo resgate
do verso melódico, nascia dessa contradição e trazia as marcas desse processo,
apontando para soluções até então pouco percebidas dentro de qualquer arca-
bouço teórico. Logo, não há que se falar em algo como “sensibilidade dos não
especializados” ou em marginalidade em seu trabalho, pois do quase intranspo-
nível Catatau à canção infanto-juvenil “Xixi nas estrelas” Leminski estabelece
um longo arco que ignora se tenso ou não. Ainda que tenha defendido que o pa-
pel das vanguardas era o de produzir poemas para produtores – o que continuou
a defender, mas não para si, pois com alguma dose de exagero chegou a insinuar
que sua crença nas vanguardas ficara no passado29 –, durante a década de 1980
encontrou na indústria cultural os instrumentos para ampliar seu público leitor
e o mercado que o permitisse ser um escritor profissional, que o permitisse viver
de poesia.

Estou correndo em direção ao perigo, cada vez maior, em todos os sentidos.


Não estou procurando o sucesso e sim o prazer das pessoas que gostam de

29 Trata-se de um artigo jocoso, desde o título que remete a uma piada, qual seja “Deus morreu, a
arte está fraca e eu não estou me sentindo muito bem”, no qual pondera sobre a ausência de um
movimento artístico brasileiro ou internacional em meados da década de 1980, inserindo-se
no contexto: “Sim, senhores, eu já me acreditei um artista de vanguarda. Alguém nascido para
receber no rosto ‘os ventos do futuro’, de que falava o poeta russo Khliébnikov, na época quando
a Rússia já era um campo de concentração, mas ainda não era uma fazenda-modelo.
Artista de vanguarda, acreditei na revolução permanente da arte. Cada dia, um motim. Cada
intuição, uma explosão de dinamite. Cada texto, a promessa de uma nova era para a arte.
Hoje descubro que o que eu pensei ser eterno era apenas uma fase, uma época, um pedaço de
memória lá atrás na longa estrada. […] Será que a humanidade cansou? Será que a perspectiva
da hecatombe nuclear limitou o infinito dos nossos desejos em direção a futuros longínquos?
Ou será que a arte está fraca por que a vida está se transformando em arte?” (LEMINSKI, 1985c,
p. 14).
322 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

mim. O sucesso é um mero subproduto disso. Se as pessoas me gostam,


me amam, me curtem e tal, o que faço é para as pessoas. Se eu faço um
poema, por exemplo, é para meus amigos, para aquelas pessoas que estão
olhando para mim, dentro, atrás, em cima, do lado. Não estou preocupado
com a humanidade. Não nasci para escrever, nasci para viver, pura e
simplesmente (LEMINSKI, 1989, p. 10).

Seus anos de atividade coincidem quase que integralmente com o período


da história brasileira em que se convencionou chamar de “modernização autori-
tária”, um amplo conjunto de reformas legais e sociais implementado pelos go-
vernos militares e em grande parte continuado pelo governo civil imediatamente
posterior, cujos compromissos, embora ecoassem demandas sociais sufocadas
por vinte anos, eram os de desestabilizar o mínimo possível o edifício burocrá-
tico herdado e aprofundar a transição do país para uma sociedade baseada na
propriedade privada, no livre mercado e no consumo. O país que se preparava
para entrar na década de 1990 não havia superado o atraso em muitos setores da
economia, mas já se faziam sentir as influências de um modelo no qual a tecnolo-
gia e o domínio sobre a circulação do conhecimento e da informação passavam a
ocupar uma centralidade na geração de riquezas. De certo modo, embora avesso
aos papéis burgueses, Leminski não acompanhou esse processo como espec-
tador, ao contrário, foi parte integrante dos agentes que trabalharam por essa
evolução, como profissional e como poeta. Justamente por isso tinha à sua dis-
posição todas as ferramentas práticas e ideológicas necessárias para criar uma
poesia que almejava não ter serventia alguma e que fosse precisa nesse objetivo.
A inutilidade da poesia, último estágio de suas propostas teóricas, pos-
suía em Leminski um fim libertário e hedonista, além de sua sutil atmosfe-
ra anticapitalista, e assim foi lida e cantada por uma geração embalada pelo
rock brasileiro de classe média e que chegava à maturidade ao mesmo tem-
po em que o país saía de duas décadas de um estado de exceção que fingia
não o ser. Era uma poética que arriscava propor leveza num país fraturado
em todas as esferas e que por sua mediocridade política frustrava os proje-
tos de reconstrução e integração nacional. Talvez por essa razão, por sua con-
fiança no poder libertador da palavra poética, Leminski tenha tido tantos
admiradores contemporâneos, mas curiosamente não tenha deixado quem
continuasse seu trabalho nos anos que se seguiram, ao menos não com alguma
competência.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 323

Seu prognóstico de que a poesia viria a recuperar o artesanato é quase cer-


teiro, embora o lirismo que pregava não tenha de todo se consolidado ou pelo
menos não nos termos como formulara. A poesia que lhe era coetânea ou que
dava seus primeiros passos na década de 1990 recuperou rapidamente a eru-
dição e o apuro formal, inclusive o verso medido, assimilando certo domínio
das propostas da poesia concreta e seus desdobramentos, sem abrir mão de um
maior contato com as experiências do cotidiano. Dentro de um aspecto genera-
lista, foi uma geração que soube fazer a síntese – ainda que siga sem respostas,
questionando seu lugar e papel na sociedade contemporânea – que em Leminski
era puro conflito, as duas metades do centauro. Hoje, quase três décadas depois
da partida do poeta curitibano, a poesia segue em recíproca indiferença ao mer-
cado, mais por seu aspecto obsoleto e anacrônico que por uma opção estética,
teórica ou comercial. O último fenômeno editorial na poesia brasileira foi mesmo
Leminski em 1983 e 2013.

Referências
ADORNO, T. A indústria cultural. In: COHN, G. (Org.). Comunicação e indústria
cultural. 4. ed. São Paulo: Nacional, 1978.

ANDRADE, M. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond


de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

ANDRADE, O. Manifesto da poesia Pau-Brasil. In: Revista do Livro, Rio de Janeiro,


IV(16), pp. 187-190, dez. 1959.

ARAGÃO, D. A música popular na campanha pró-diretas. In: Jornal do Brasil, Rio


de Janeiro. 3 mar. 1984. Caderno B, p. 5.

ARANHA, L. Cocktails: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1984.

BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira: poesias reunidas. 19. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1991.

CAMPOS, A.; CAMPOS, H.; PIGNATARI, D. Teoria da poesia concreta: textos


críticos e manifestos 1950-1960. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1975.

CANÇADO, J. M. Perhappiness. In: Leia, [S.l.], IX(98), pp. 16-17, dez. 1986.

CURITIBA chama de indireto quem for contra emenda. In: O Fluminense, Niterói,
21 abr. 1984. p. 3.
324 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

GASPARI, E.; HOLLANDA, H. B.; VENTURA, Z. 70/80 Cultura em Trânsito: da


Repressão à Abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

LEMINSKI, P. Poema. In: Correio do Paraná, Curitiba, 8 dez. 1963a. p. 8.

______. Um poeta mineiro. In: Correio do Paraná, Curitiba, 13 out. 1963b, p. 7.

______. Maiakovski vai chegar! In: Diário da Tarde, Curitiba, 18 jul. 1964a.
Vanguarda, p. 5.

______. Outro poema. In: Correio do Paraná, Curitiba, 15 nov. 1964b, p. 8.

______. Poética de vanguarda. In: Diário da Tarde, Curitiba, 11 jul. 1964c.


Vanguarda, p. 5.

______. Realismo de sete mil réis. In: Diário da Tarde, Curitiba, 31 out. 1964d.
Vanguarda, p. 5.

______. Anti-projeto à poesia no Brasil. In: Convivium, São Paulo, 7(5-6), jul./ago./
set. 1965a .

______. Poesia concreta, Sosséla e a crítica dela. In: Diário da Tarde, Curitiba,
2 fev. 1965b. Vanguarda, p. 5.

______. O que pensa e faz um jovem poeta (cibernético). In: Correio Brasiliense,
Brasília, DF, 5 nov. 1966.

______. Paulo Leminski dá a alteração. Entrevistador: A. C. Martins Vaz. In:


Diário do Paraná, Curitiba, 23 maio 1971. Terceiro Caderno, p. 5.

______. Paulo Leminski. In: Diário do Paraná, Curitiba, 28 set. 1975a. Cultura, DP
Debates, p 24.

______. Paulo Leminski: ‘conto com a incompreensão de todos os críticos’. In:


Diário do Paraná, Curitiba, 19 dez. 1975b. Segundo Caderno, p. 6.

______. “LEMINSKI. Entrevista”. In: Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 14 ago.


1976a, p. 7.

______. Leminski minimanifesta informado por Maiakovski. In: Diário do Paraná,


Curitiba, 7 out. 1976b. Anexo, p. 4.

______. O conto é o soneto de hoje (e a universidade é seu profeta). In: Diário do


Paraná, Curitiba, 21 dez. 1976c. Anexo, p. 1.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 325

______. Concrevista: o nariz foi feito para usar óculos? Entrevistador: Almir Feijó
Junior. In: Diário do Paraná, Curitiba, 22 mar. 1977a. Anexo, pp. 2-3.

______. MinifestoIII. In: Diário do Paraná, Curitiba, 25 jan. 1977b. Anexo, p. 1.

______. Naquela base. In: Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 23-24 jul. 1977c.
Suplemento da Tribuna, p. 3.

______. O fácil é fraco. In: Diário do Paraná, 18 ago. 1977d. Anexo, p. 2.

______. Poesia: boom à vista! In: Diário do Paraná, Curitiba, 19 jan. 1977e. Anexo,
p. 2.

______. Poesia: morreu a literatura, viva a música popular! In: Diário do Paraná,
Curitiba, 14 maio 1977f. Anexo, p. 2.

______. Poesia progride? In: Diário do Paraná, Curitiba, 21 jan. 1977g. Anexo, p. 2.

______. Pororoca. In: Diário do Paraná, Curitiba, 19 de junho de 1977h. Anexo, p. 5.

______. Os últimos dias de um romântico. In: Folha de S.Paulo, São Paulo, 7 nov.
1982a. Folhetim, pp. 6-7.

______. Caprichos e relaxos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

______. A nova semântica (1). In: Correio de Notícias, Curitiba, 1º mar. 1985a,
p. 16.

______. Calma, calma, tudo vai piorar. In: Correio de Notícias, Curitiba, 3 maio
1985b, p. 16.

______. Deus morreu, a arte está fraca e eu não estou me sentindo muito bem. In:
Correio de Notícias, Curitiba, 26 maio 1985c, p. 14.

______. Direito à poesia. In: Correio de Notícias, Curitiba, 8 maio 1985d, p. 16.

______. Introdução a um ano muito difícil. In: Correio de Notícias, Curitiba, 6 jan.
1985e, p. 20.

______. Mas que nordeste é esse? In: Correio de Notícias, Curitiba, 3 fev. 1985f,
p. 24.

______. Meio polaco. In: Correio de Notícias, Curitiba, 5 jan. 1985g, p. 16.

______. Os três poderes da praça. In: Correio de Notícias, Curitiba, 13 jan. 1985h,
p. 20.
326 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970

______. Poesia: vende-se. In: Correio de Notícias, Curitiba, 29 maio 1985i, p. 16.

______. Tratado de paz USA e URSS. In: Correio de Notícias, Curitiba, 15 fev.
1985j, p. 16.

______. Você trabalhou, e o Brasil se mudou para os Estados Unidos. In: Correio
de Notícias, Curitiba, 15 mar. 1985k, p. 16.

______. A ciência do inutensílio. In: Correio de Notícias, Curitiba, 28 jul. 1986a.


Segundo Caderno, p. 9.

______. Arte in-útil, arte livre? In: Correio de Notícias, Curitiba, 3 out. 1986b.
Segundo Caderno, p. 9.

______. Escrever, ler, cantar, ouvir poesia. In: Correio de Notícias, Curitiba, 30
jul. 1986c. Segundo Caderno, p. 9.

______. Lorca (1899-1936) 50 anos de morte. In: Correio de Notícias, Curitiba, 13


ago. 1986d. Segundo Caderno, p. 9.

______. Para alguém lá longe. In: Correio de Notícias, Curitiba, 24 ago. 1986e.
Segundo Caderno, p. 9.

______. Voto secreto. In: Correio de Notícias, Curitiba, 9 jun. 1986f, Segundo
Caderno, p. 9.

______. A arte já morreu. Viva o artesanato. In: Correio de Notícias, Curitiba, 27


set. 1987a. Programe-se, p. 16.

______. Jornal para embrulhar peixe. Correio de Notícias, Curitiba, 17 jul. 1987b.
Programe-se, p. 15.

______. Maxifesto. Correio de Notícias, Curitiba, 6 mar. 1987c, Programe-se, p. 9.

______. Minifesto. Correio de Notícias, Curitiba, 1º abr. 1987d. Programe-se, p. 10.

______. Poesia, o lixo das artes. Correio de Notícias, Curitiba, 13 maio 1987e.
Programe-se, p. 20.

______. Vai pela sombra, pai. In: Correio de Notícias, Curitiba, 19 ago. 1987f.
Programe-se, p. 15.

______. Leminski. Entrevistadora: Denise Guimarães. In: Nicolau, Curitiba, 3(19),


jan. 1989, pp. 6-10.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 327

______. Distraídos venceremos. 5. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 1995.

______. O ex-estranho. 1. ed. São Paulo: Iluminuras, 1996p.

______. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. 2. ed. São Paulo: Editora
34, 1999.

______. La vie en close. 5. ed. 4. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2004.

______. Release para o disco Cabeça Dinossauro. In: DAPIEVE, A. Brock, o rock
brasileiro dos anos 80. 5. ed. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Unicamp, 2011.

______. Catatau: um romance-ideia. 3. ed. 4. reimpr. São Paulo: Iluminuras, 2014.

______. Toda poesia. 1. ed. 4. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

LEMINSKI, P.; RUIZ, A. Carta. In: Diário do Paraná, Curitiba, 23 jul. 1977. Anexo,
p. 5.

LEMINSKI, P.; SANCHES, C. A.; MAIOR JUNIOR, L. S. Era uma vez alguns
intelectuais de porta de café… In: Diário da Tarde, Curitiba, 1º ago. 1964. Vanguarda,
p. 5.

LOUZEIRO, J. Poetas de vanguarda tomam posição. In: Correio da Manhã, Rio de


Janeiro, 13 mar. 1965. 2º Caderno, p. 1.

MELLO, Z. H.; SEVERIANO, J. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras,


vol. 1 (1901-1957). 3. ed. São Paulo: Editora 34, 1998.

PIGNATARI, D. Contracomunição. São Paulo: Perspectiva, 1971.

RISÉRIO, A. Agora é que são elas: a volta do Catatau. In: Nicolau, Curitiba, III(19),
p. 27, 1989.

POESIA de vanguarda: Paraná comparece a debate em Minas. In: Última Hora, 12


ago. 1963.

VAZ, M. Nostalgia e pororoca. In: Diário da Tarde, 15 abr. 1974.

Vous aimerez peut-être aussi