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Paulo Ferraz
business man
make as many business
as you can
you will never know
who I am
(Paulo Leminski)
O processo de mudança talvez tenha sido ainda mais lento no Brasil, país
periférico e de elite tacanha, onde as ínfimas tiragens de livros de poesia e o
insignificante público leitor jamais justificariam conceber um mercado próprio,
o que não impediu, porém, que houvesse desde os anos 1920 uma profunda re-
flexão sobre o lugar do poema na cidade moderna, o que implicava repensar sua
natureza, tornando-se tema crucial a partir da segunda metade do século, com
a eclosão do movimento da poesia concreta e seus desdobramentos estéticos e
teóricos. Entre estes se situa a obra do poeta paranaense Paulo Leminski que,
além de campeão de vendas,1 foi “faixa preta” da linguagem midiática e suas
inter-relações com a poesia. “Um livro de literatura” – disse Leminski em uma
crônica intitulada justamente “Poesia: vende-se” – “é a mais singular das merca-
dorias” (LEMINSKI, 1985i, p. 16).
Começando pelo modernismo, já no editorial do número inaugural da re-
vista Klaxon, infere-se que o lugar da literatura e da poesia deixava de ser o
salão, que até então funcionara como redoma aristocrática em meio à barbárie
tropical, e passava a ser as ruas recém-redesenhadas pelas casas de comércio e
suas vitrines anunciando o progresso em forma de mercadorias. A eletricidade
movia bondes, iluminava letreiros e conferia existência a uma nova arte, o cine-
ma, principal produto cultural de então, nascido há poucas décadas e símbolo
de um mundo novo que se insinuava, além das jazz bands e d’Os Oito Batutas.
A estética modernista desses primeiros anos refletia as transformações dessa
sociedade que se industrializava, mimetizando algo dos mecanismos produtivos
– ainda que pouco se opusesse a eles, salvo algumas bofetadas líricas no burguês
– e inserindo um novo léxico na literatura. Da última moda parisiense passava-
-se à identidade nacional que aflorava nos sertões de um país que estreitava as
distâncias com um mundo em transformação ainda mais acelerada, como encon-
tramos, por exemplo, em “Drogaria de éter e de sombra”, de Luís Aranha, Song
of myself paulistana pela qual desfilam a química moderna, “a alta do dólar, bai-
xa do café […] O porto de Santos atravancado de mercadorias/ americanas que
os compradores recusam […] eu/ recebo livros de versos da França e da Itália/
porque sou poeta…” (ARANHA, 1984, p. 25).
1 O mercado editorial brasileiro não prima pela precisão quanto a números de exemplares
vendidos, porém é certo que Caprichos & relaxos, primeira coleção de poemas de Leminski
publicada em edição comercial, logo após o lançamento, em 1983 pela Brasiliense, teve três
edições esgotadas que somariam cerca de 15 mil exemplares, e a reimpressão em 1987, pelo
Círculo do Livro, outros 10 mil. Quanto à reunião de seus poemas no volume Toda poesia,
lançado em 2013, já teria ultrapassado 100 mil exemplares.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 281
Você não tem o direito de ficar com ele guardado aí só porque nesta merda
de país não tem editor para livros de versos. Carece um esforço e mesmo
se preciso um sacrifício. […] O livro será pouco vendido, os ataques serão
muitos, as casas de revendedores não se amolam com ele… É um inferno.
Porém é dever da gente (ANDRADE, 1982, p. 80).
O “dever da gente” explicita que editar um livro de poemas, mais que uma
atividade industrial e comercial, era ainda uma necessidade interna, uma obri-
gação do poeta em relação aos seus compromissos estéticos e sociais. Mais de
três anos depois, tendo Drummond finalmente decidido publicar, volta Mário de
Andrade a tratar do tema em cartas, agora auxiliando na própria impressão do
livro, pesquisando preços, indicando papéis, sugerindo gráficas, fazendo orça-
mento e se prontificando a distribuir Alguma poesia nas quatro livrarias de São
Paulo que vendiam obras do gênero.
Um passo adiante no processo de “mercantilização” da poesia se deu com
a eclosão do movimento de poesia concreta, cujos princípios negavam quase
por completo todo um conjunto de valores e conceitos que compunham, em seu
entendimento, a fase artesanal e subjetivista da poesia, manifestações, portanto,
de um anacrônico pensamento lógico-discursivo que reduzia os limites da poesia
a uma manifestação lírica da língua, e não da linguagem. Essa fase teria chegado
ao fim, e com ela o verso, instaurando-se em seu lugar, em suma, a fase industrial
na qual o poema é produto racional, inserido nas relações de troca e no consumo
de mercadorias, tanto que, em mais de um momento, o poema é explicitamente
– sua estrutura, no caso – comparado à linguagem publicitária, ou seja, o poema
deveria ser consumido em sua forma de informação estrutural, portanto, deveria
ser um objeto útil. O esquema a seguir, preparado pelos próprios poetas concre-
tos em sua fase “ortodoxa”, destaca os pontos cruciais que enfrentavam:
3 É difícil assegurar as leituras de Leminski anteriores a esse momento. Sabe-se que nos anos
1958 e 1959 estudou no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde teria se dedicado à literatura
clássica e ao estudo de idiomas. Após seu retorno à Curitiba é provável que tenha se atualizado
quanto à produção contemporânea, a despeito da pouca circulação comercial da poesia
concreta. Numa nota do jornal Última Hora, de 12 de agosto de 1963, intitulada “Poesia de
vanguarda: Paraná comparece a debate em Minas”, informa-se que Leminski, com patrocínio
da União Paranaense dos Estudantes, iria ao referido encontro como delegado de seu Estado.
O que dele sabemos pela nota é que o então estudante de Direito e Letras já era conhecido por
ser poliglota, vinha se dedicando à poesia concreta há cerca de um ano, tendo um conjunto de
quarenta poemas escritos, era admirador de Carlos Drummond, “o pai de todos” e de Affonso
Romano de Sant’Anna, por propor uma conciliação “entre a poesia concreta e a tradicional,
não rompendo com a sintaxe” e era leitor de Maiakovski, Pound e Cummings (os dois últimos
publicados em 1960 com traduções de Haroldo e Augusto de Campos). Quanto à poesia
concreta, segundo a nota, ele a via como “um programa que procura dar uma certa lucidez à
poesia”. Em relação a Affonso Romano, uma curiosidade: em 13 de outubro de 1963 foi publicado
um artigo no Correio do Paraná dedicado àquele que, para o pós-adolescente Leminski, seria
o sucessor de Drummond e João Cabral (LEMINSKI, 1963b, p. 7). Os elogios fazem supor que
o artigo tenha sido escrito antes do encontro com os poetas concretos, inclusive porque alguns
anos depois Leminski e Sant’Anna trocariam algumas farpas em decorrência da publicação
do Catatau. Daquela época, um poema um tanto cepecista, também publicado no Correio
do Paraná, em 8 dezembro de 1963, ilustra a dicção do jovem Leminski: “a mãe levou o dia/
alimentando os canários,/ outras aves as galinhas,/ o cachorrinho e o gato,/ o papagaio o jaboti,/
os coelhos e os leitões, /quando voltou para casa/ sobre os pratos vazios/ encontrou os quatro
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 285
para dividi-los não só pelas escolhas partidárias, mas sobretudo pelas estéticas.
Assim, ouvir certo ritmo, frequentar tal ou qual teatro, publicar poemas para um
leitor específico ou para a classe operária etc. eram justificativas dos mais varia-
dos rótulos, como engajado, alienado, elitista. As indústrias de bens de consumo
ou de produção4 já não despertavam a mesma ilusão nacional-desenvolvimen-
tista dos anos 1950, pois, uma década depois, mais que produtos com tecnologia
nacional, o que havia era uma grande sujeição – material, intelectual e cultural
– ao capital internacional, perpetuando nossa relação de dependência. O foco se
voltava para produtores de espetáculos, gravadoras e editores, pois eram per-
sonagens centrais no controle da informação. Consciente desse novo contexto,
às vésperas do golpe militar de 1964, a União Nacional dos Estudantes assumia
protagonismo ao submeter um programa artístico à doutrina política e fazer da
arte um instrumento de conscientização e mobilização. Era um momento no
qual convinha a todos discutir as funções sociais da poesia, incluindo os poetas
de vanguarda, razão do encontro promovido em Belo Horizonte, que levou ao
estreitamento de laços entre os editores das revistas Invenção e Tendência.
Após seu retorno a Curitiba, Leminski torna-se conhecido no meio literá-
rio paranaense como poeta concreto e de vanguarda, ministrando palestras e
defendendo publicamente os princípios teóricos dos poetas paulistas. No artigo
publicado no Diário da Tarde em 11 de julho de 1964,5 intitulado “Poética de
vanguarda”, ponto a ponto, com direito a poema ilustrativo, Leminski esquema-
tiza os mecanismos de apreensão e representação do debate político pela poesia
concreta, incorporando as diretrizes do encontro de 1963, que revisava a di-
mensão utilitária do poema, o que necessariamente passava pela maior ênfase a
filhos/ os quatro mortos de fome” (LEMINSKI, 1963a, p. 8). Em novembro do ano seguinte
apareceu outro poema seu que ainda mantinha algo desse estilo (LEMINSKI, 1964b).
4 “A poesia concreta é poesia de poesia, arte de arte, signo de signo. Arte para produtores.
Maquinaria pesada, pesquisa de tecnologias: indústria de base. Trabalha nos fundamentos.
[…] E uma poderosa afirmação da capacidade do 3º mundo em produzir know-how (em tomar
a iniciativa). Vejam o caso de Santos Dumont. Como diz Pignatari, tivemos avião antes de ter
automóvel” (LEMINSKI, 1976c, p. 1).
5 Há outros documentos do período que permitem vislumbrar a formação intelectual de Paulo
Leminski, que rapidamente assume papel central na divulgação da poesia concreta em Curitiba.
Podemos citar os artigos “Maiakovski vai chegar”, de 18 de julho de 1964, “Era uma vez alguns
intelectuais de porta de café…”, de 1º de agosto de 1964, “Realismo de sete mil réis”, de 31 de
outubro de 1964, e “Poesia concreta, Sosséla e a crítica dela” de 2 de fevereiro de 1965, todos
publicados no Diário da Tarde, na página Vanguarda, durante o período em que o autor, ao
lado de outros entusiastas da vanguarda, compõe o grupo Áporo.
286 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
ser dada à “participação”; esta, por sua vez, só viria com uma maior abertura à
comunicação, sem transigir as experiências formais:
náusea
no auge a
náusea
no olho a
náusea:
nojo
verificar:
ver e ficar
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verifincar-se
carcaça
carne de caça:
carcome
carne de fome:
caridade
carne de homem
(LEMINSKI, 1964c, p. 5).
Hoje, é preciso criar o texto como organismo novo, de cabo a rabo. Dos
signos à representação gráfica. O poeta é ou não é um especialista?
Encarregado de um departamento da realidade? Maiakovski: há algo na
sociedade que só através da poesia se resolve. Que o poeta resolva esse algo
com profunda consciência profissional (LEMINSKI, 1965a, p. 111).
288 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
Poesia, para mim hoje, está nos fundamentos da linguagem em relação aos
meios de comunicação de massa e à compressão da informação (informação
sintética, digestos, enlatados). O jornal, o semanário, o anúncio –
linguagens novas, poesia, para as massas. Televisão, cinema, rádio. E o
livro, ainda. […] A poesia concreta está voltada para o consumo, agora.
Consumo de massa. Eu, pelo menos, não faço poesia – ou lá que nome
tenha – que não possa ser reproduzida (PIGNATARI, 1971, pp. 16-20).
6 Leminski faz um esclarecimento sobre essa passagem em entrevista dada ao Correio Brasiliense:
“O que pensa e faz um jovem poeta (cibernético)”, quando diz que ‘uma máquina existe – e
seu existir é um operar – na medida em que dê de si o que dela se espera.’ E ela dá. […] À luz
da existência a máquina abre o viver humano sobre o mais vasto, o mais largo, o mais rico, o
mais numeroso. Executando uma abertura e não uma restrição, ele se atualiza na rampa do
imprevisível. Através da máquina, o homem se põe no inumerável” (LEMINSKI, 1966, p. 9).
Em certo sentido, nesse momento, sua visão é a de que o poema faz o papel dessa máquina pela
qual nosso mundo sensível se amplia.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 289
de massa/ talvez seja um prazer de escriba […] trabalhar nos meios de massa/ é
a coisa mais parecida com ação que já vi” (LEMINSKI, 1999, p. 47).
A mensagem publicitária se constrói de rapidez e eficiência, sem deixar mui-
ta margem para dúvidas, interpretações ou críticas. As paronomásias, alitera-
ções, rimas e outros efeitos sonoros ou visuais são pensados em função de sua
memorização e do efeito lúdico que as ambiguidades desencadeiam, daí talvez
não ser de todo errado dizer que a publicidade, em sua evolução a partir dos anos
1950, especialmente com o desenvolvimento do design e de toda teoria e tecno-
logia que o cerca, abandonou a função exclusivamente conativa, que descrevia
qualidades, propriedades e benefícios das mercadorias exaustivamente, para
incorporar algo das funções poética e metalinguística, desde que orientadas para
o consumo; ou seja, mesmo a beleza ali não é senão uma estratégia em favor de
sua utilidade. Leminski trilha muitas vezes o mesmo caminho, porém com sinais
invertidos,8 que podem ser vislumbrados em inúmeros pastiches de publicidade
presentes em sua correspondência com Bonvicino ou naqueles que, superando
a pura blague, chegaram aos livros, como a recriação debochada – e, portanto,
irreverente – do slogan ufanista e intimidador do ditador Garrastazu Médici,
convertido no inofensivo haicai “ameixas/ ame-as/ ou deixe-as” (LEMINSKI,
1983, p. 91), ou o sarcástico “Manchete”, que em poucas palavras expõe, incor-
porando o estilo sensacionalista dos jornais, a tensão entre a criação/intuição
poética (“chute”) e a produção industrial (“meta”, tradução da palavra inglesa
goal), o que no fundo é a tensão de toda poesia política, na maior parte das vezes
insignificante diante das condições históricas:
CHUTES DE POETA
NÃO LEVAM PERIGO À META
(LEMINSKI, p. 72).
8 Nesse sentido, em entrevista ao jornal Nicolau, diz: “Tenho certas exigências que repasso como
criador de publicidade e criador de poesia que são as mesmas. Sou incapaz de usar uma palavra
a mais. A busca de síntese para mim é fundamental. Primeiro eu era poeta, depois descobri a
publicidade. É como saber atirar em pombinhas e rolinhas e alguém chegar e dizer que você
pode ser guerrilheiro. Daí você vai matar gente. Publicidade é para matar gente. Mas eu já tinha
pontaria, sabia usar armas” (LEMINSKI, 1989, p. 9).
292 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
de repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que eu te vi
o dia em que me viste
de repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em Copacabana
(LEMINSKI, 1983, p. 84).
Seu mais audacioso projeto após aderir à poesia concreta foi a publicação, em
dezembro de 1975, de Catatau: um romance-ideia, prosa experimental quase
intransponível, à qual se dedicou por cerca de oito anos, desde 1968, quando sua
primeira redação, então chamada Descartes com lentes, ganhou um concurso
literário. A verdadeira narrativa não era necessariamente a hipotética presença
de Descartes no Pernambuco holandês, mas o trabalho com a linguagem, levada
ao seu limite, esgarçando o código verbal, indiferente aos mecanismos da nar-
rativa convencional, à coesão ou coerência, indiferente mesmo a uma eventual
compreensão, já que ao tempo de seu lançamento dizia não ter sido feita para
agradar ninguém12, que por “não ser um romance nem novela”, mas sim uma
“coisa nova”, contava “com a incompreensão de todos os críticos, que estão acos-
tumados com livros fáceis e manjados” (LEMINSKI, 1975b, p. 6).
A partir de Catatau, cuja edição ficou a cargo de amigos publicitários,13
Leminski tornou-se um nome percebido nacionalmente, ainda que restrito ao
círculo de escritores. E foi nesse contexto, com resenhas que se contradiziam
quanto à apreciação de seu romance-ideia, que Leminski estabeleceu um im-
portante diálogo com poetas um pouco mais jovens que ele, empenhados em
projetos coletivos de pesquisa de linguagem, cujos trabalhos eram recolhidos
em revistas como Código, Poesia em Greve, Qorpo Estranho e Muda. O frenesi
intelectual de Leminski encontra em Antonio Risério e Régis Bonvicino, princi-
palmente, os interlocutores ideais para formular uma poética pós-concreta (por-
tanto, pós-industrial), a qual mais de uma vez foi definida como “intersemiótica”.
Coube a Leminski, no “MinifestoIII”, publicado em 25 de janeiro de 1977
no Diário do Paraná, traçar os contornos teóricos dessa poética que deveria
se libertar da escrita, tendo como fundamentos a linguagem racional, ideogrâ-
mica, comprimida, pluricodificada, dinâmica, sintética e dialética, em razão da
vivência de tempo acelerado e simultâneo decorrente da ampliação dos meios de
12 “O ‘Catatau’ não foi feito para agradar. Não fiz para uma média – a média, digamos, que lê Jorge
Amado ou João Antonio. Quem procura o difícil tem o difícil, a radicalidade tem seu preço.
Mas um público qualitativo, cada vez maior, interessou-se pela experiência: Caetano Veloso,
Jorge Mautner, Gil, Décio Pignatari, Risério etc. O ‘Catatau’ chegará a números maiores.
Quanto mais leem, mais fácil ele fica. Um dia, finalmente, será facílimo” (LEMINSKI, 1977a,
p. 2).
13 A despeito da edição independente e da árdua leitura, Catatau permaneceu algumas semanas
nas listas dos livros mais vendidos no Paraná em 1976, tamanha sua repercussão no cenário
cultural da capital paranaense.
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O que não for novo, hoje, nem sequer existe. Em contrapartida, o novo é,
hoje, o óbvio. A vanguarda é classicismo do século. Estamos condenados a
inovar. A inventar. Thomas Alva Edison, o santo padroeiro dessa civilização
que aí está. Poeticamente, inclusive, sobretudo. Não que o bom e velho
belo não tenha mais serventia: ao que tudo indica, a civilização é processo
inclusivo, não excludente (LEMINSKI, 2011, p. 75).
Sua produção epistolar, ao menos aquela publicada, revela que essa con-
vivência não se deu sem atropelos, tampouco sem esforço, pois a influência da
poesia concreta transcendia questões meramente formais e se estendia a outros
pontos de sua atividade, especialmente aqueles que envolviam o alcance comu-
nicativo de sua poesia. Entre as cartas enviadas a Bonvicino, uma em especial,
datada de 6 de novembro de 1978, é uma espécie de acerto de contas com os poe-
tas concretos, dos quais Leminski procura se diferenciar estética e politicamente.
No tocante à busca pelo novo, diz:
a novidade a todo custo como um absoluto (uma obra vale pela invenção)
não é a única coisa que se procura em arte. essa é a miragem dos concretistas.
[…] não resta dúvida q esse culto do novo em poesia de vanguarda está
ligado ao “novo” que a publicidade usa… novo Omo, novo Rinso… novo…
novo… mas novo… novo para que? ou novo não precisa se justificar? novo
é novo, e tá acabado? claro que existe uma preocupação com novidade em
qualquer artista de verdade, com novidade, com originalidade, com voz
própria. mas o novo a todo custe o que custar me parece um mito, uma
alienação. alienação é uma coisa que subsiste depois que perdeu seu uso,
sua finalidade, seu emprego social./ novo, para que? eis a questão.// essa
perseguição ao novo é meritocrática, competitiva, gera intrigas palacianas
pelo poder, exclui, segrega, expurga.// a poesia concreta já proclamou-se
a única boa e certa. A Nova! “dando encerrado…” / e se o povo todo gostar
de verso, o que é que a gente faz? / expulsa o povo?/ ou faz como avestruz,
enfia a cabeça num ideograma da dinastia ming e faz de conta que ele não
existe? […] precisamos tirar a poesia da vertigem/miragem do novo, novo,
mais novo, mais, mais…/ quero fazer uma poesia que as pessoas entendam
(LEMINSKI, 1999, pp. 110-111).
15 O divisor de águas em sua produção poética em relação à vanguarda foi traçado pelo próprio
Leminski: “com Catatau, passei a limpo, essa coisa de informação fechada, intratável. quero ser
agora um útil operário do signo. falar de coisas que interessem às pessoas” (LEMINSKI, 1999,
p. 143).
16 Em depoimento ao jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, de 14 de agosto de 1976, ainda
sob o impacto da divulgação de Catatau, já apontava outras formas de expressão para além do
livro: “A vanguarda hoje está em muitos lugares, até no rock. Eu sou letrista de rock, trabalho
com o grupo A Chave, em Curitiba. Apesar de ter posturas políticas que me incompatibilizariam
com o gênero, como uma forma colonizada de cultura, acabei me interessando pelo rock como
veículo novo e aprendi bastante. Tenho buscado várias experiências e vários caminhos. Já
trabalhei com fotografia, faço letra de rock e vamos filmar agora o Catatau em Super 8. Quer
dizer, estou me abrindo e gostaria de ter uma abertura muito maior, de transar 2, 15, 50, sei lá,
mil códigos, entende? São mil outras possibilidades e o cara se fecha dentro daquele gueto,
campo de concentração que é o código verbal” (LEMINSKI, 1976a, p. 7). Quanto mais estreitava
sua relação com a música, com mais ênfase defendia que a poesia escrita teria chegado ao fim
com a poesia concreta, que depois dela os melhores poetas faziam canções, como nos artigos
“Poesia: morreu a literatura, viva a música popular” de 1977 e “Maxifesto” de 1987. Outras
vezes, porém, defendeu a convivência entre as duas expressões, como em “Escrever, ler, cantar,
ouvir poesia”, de 30 de julho de 1986, no qual reitera a proximidade entre a poesia concreta e a
tropicália e chama atenção para a obra de Arnaldo Antunes que criava para os dois suportes,
além de fazer considerações sobre a natureza essencialmente comercial da canção, criada como
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 299
um poema
que não se entende
é digno de nota
a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota
(LEMINSKI, 1983, p. 51).
Ao final dessa longa reflexão sobre poesia concreta e seu projeto particular,
traz um dado que nos permite vislumbrar o quanto sua poesia procura ser reflexo
aprimorado da linguagem da indústria cultural:
Quando instado a se posicionar sobre o boom da poesia dos anos 1970, não
poupava adjetivos para desqualificar em bloco toda a produção de então, desde
o título do artigo “O boom da poesia fácil” (que também foi publicado como
“Poesia, o lixo das artes”), já deixava explícito que para ele o “poemão” seria “di-
retamente influenciado pela publicidade e pelos grandes meios de massa e sua
linguagem sintética e despersonificada, TV, pôster, cartas, letra de música, pala-
vra de camiseta, o impacto da sociedade de consumo” E segue: “uma poesia de
‘baixa definição’, televisiva, descartável, de pronto impacto e mínimo oco”, que
se constituía em oposição às poéticas de “alta definição”, como foram a poesia
concreta e a poesia do CPC, orientadas pela mudança.
O alternativo poetar dos anos 70 não queria nada. Só queria ser. A palavra
para isso era ‘curtição’, a pura fruição da experiência imediata, sem maiores
pretensões. Essa foi a pequena grande contribuição da poesia dos anos 70
(LEMINSKI, 1987e, p. 20).
Já fui erudito
Ainda que seguisse fiel ao princípio de produzir uma poesia inventiva e de
alta definição, evitando repetição e diluição, ainda dentro de uma poética inter-
semiótica, passou a defender em artigos e cartas seu interesse por uma poesia
que tivesse circulação e importância cultural equivalentes à MPB, o que só seria
possível se ela se estabelecesse dentro de padrões de linguagem operados pelo
leitor, o que incluía explorar outros suportes que não o livro: “tenho um horror
pop a qualquer palavra que obrigue o leitor normal a ir ao dicionário. Tem um
difícil que é fácil. E um fácil que é dificílimo. Prefiro estes” (LEMINSKI, 1999,
p. 194). Sua preferência pelo “fácil” é, portanto, programática e não casual, uma
escolha consciente da necessidade de se evitar os extremos da estética ou da
comunicação. O caminho a ser trilhado deveria ser o dos meios – meio termo
entre as dicotomias da poesia dos anos 1970, pensada no contexto dos meios de
comunicação. É o que encontramos em “Carta”, escrita com Alice Ruiz, endere-
çada a Risério e publicada no caderno de cultura Anexo, do Diário do Paraná,
em 23 de julho de 1977:
18 “Incompreensível para as massas. Essa acusação ajudou a levar Maiakovski (talvez o maior
poeta do século) ao suicídio. A melhor arte do século XX, a mais radical, a mais rica, não está
ao alcance da massa. Picasso. Joyce. Mondrian. Webern. Duchamp. Pound. Coltrane. Hendrix.
Rosa. Oswald. A poesia concreta. Como romper com a barreira do consumo? Qual o estalo de
dedos que vai acordar o hipnotizado de seu transe?” (LEMINSKI, 1977d, p. 2).
304 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
Aliás, nessa mudança das décadas, fica mais evidente que Leminski também
não valorizava o trabalho individual como essencial em sua produção poética.
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 305
Onde ficariam os poetas? Para ele, fora desse sistema. Nesse ponto de seu
percurso poético, Leminski parece querer – em oposição ao que defendera du-
rante grande parte de sua trajetória – resgatar a aura que os poetas perderam
na segunda metade do século XIX (pelo menos em Paris), devolvendo-lhes à eta-
pa pré-industrial. A vida urbana, a indústria e o capital haviam exaurido seus
19 Professor nos anos 1960, publicitário nos 1970, Leminski passou a se dedicar quase que
integralmente à literatura nos anos 1980, publicando artigos em diversos veículos e traduzindo
obras encomendadas pela editora Brasiliense. Em depoimento ao jornal Nicolau, ano III, nº
19, aponta a incompatibilidade que havia entre seu comportamento meio hippie e o trabalho
regular: “Acordar às 8 horas, em plena segunda-feira, para dar aula é incompatível comigo.
Peguei toda uma bandidice meio boêmia, dos anos 70, que é um dado fundamental meu. Sou
um bandido que sabe latim.” Na mesma entrevista ainda reforça: “Eu sei praticar algumas
profissões, mas minha profissão mesmo é o desemprego. Em todos os lugares que começo a
trabalhar eu me empenho durante uns quatro ou cinco meses, apenas” (LEMINSKI, 1989, p. 7).
306 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
recursos; o final da década de 1970 e o início da de 1980 são marcados por crises
sistêmicas, a principal delas é decorrente do aumento do preço do petróleo, o que
coincide com o amadurecimento de uma consciência ecológica que se torna anta-
gonista do processo de produção industrial. Havia pouco o que enaltecer na cida-
de contemporânea, cada dia mais fraturada e cindida, mais agredida e agressiva,
mais um ambiente inóspito à vida coletiva. É a essa constatação que chega em
27 de setembro de 1987, no artigo “A arte já morreu viva o artesanato”, quando
desfaz completamente a dicotomia industrial/artesanal ao concluir que não havia
qualquer perspectiva de produzir formas novas, informações novas, códigos no-
vos. “Só a vida tribal, rural, tem verticalidade infinita” (LEMINSKI, 1987a, p. 16).
A poesia como reflexo da sociedade urbana teria chegado ao fim e com ela
também sua reação mais imediata, manifestada pela incompetência dos poetas
da década de 1970, uma geração despreparada e desamparada formal e cultural-
mente (CANÇADO, 1986, p. 17). Mas com o colapso da cidade, a poética indus-
trial, ou seja, a invenção, também perdia sua razão de existir, o que a levaria a ser
assimilada pelos poetas que estariam por vir, inserida entre seus repertórios. Daí
a perspectiva de voltar a esse mítico mundo rural onde o homem tira de si tudo o
que necessita e cada gesto é transformador em sua essência, já que não domina
a natureza, mas colabora com ela. Sua aposta para os poetas dos anos 1990 era
justamente a recuperação do artesanato, que tanto negara.
Uma inflexão como essa em seu juízo crítico, já que sempre entendeu a per-
manência do verso como reflexo da baixa inventividade e da pouca inquietação
decorrente de uma mentalidade agrária do poeta brasileiro20, foi o que lhe per-
mitiu superar restrições que cultivava há décadas, ampliando o espectro de suas
leituras, como se vê ao comentar os cinquenta anos da morte de García Lorca,
quando reconhece que por muito tempo evitou a leitura de sua poesia, já que
“parecia provinciana e regressiva”, representante de um mundo que acabava e
não de um que começava: “por puro preconceito, me escapou entre os dedos o
20 Dez anos antes, no artigo “Poesia: boom à vista”, de 19 de janeiro de 1977, lê-se uma opinião
diametralmente oposta: a literatura, por ser uma arte relativamente barata e “fácil”, especialmente
aquela que se “agarra às formas anteriores ao dilúvio dos meios de massa. […] A fidelidade do
poeta brasileiro ao verso é reflexo (sociologicamente explicável) do seu pavor em jogar fora seu
tempo rural em troca de um tempo industrial. Azar do poeta brasileiro. O tempo industrial
veio para ficar […] Mas a crítica à sociedade industrial seja lá qual for ela, só pode ser eficaz se
for feita através de recursos industriais. A menos que me provem que depois dessa sociedade
industrial teremos uma idade de Ouro agrária e campestre, na qual todos os valores dos bons e
velhos tempos voltarão a vigência. Os valores literários, inclusive” (LEMINSKI, 1977e, p. 2).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 307
ouro de um dos poetas mais puros que este século produziu” (LEMINSKI, 1986d,
p. 9).
Essa revisão da poesia de Lorca é sintomática da mudança estética pela qual
passa Leminski, pois é manifestação de sua proposta de retorno de nossa men-
talidade a um tempo anterior ao predomínio da máquina, quando prevalecia,
segundo ele próprio, o artesanato da palavra e, sobretudo, o belo como fruto de
um grau de transcendência que só se atingia pela arte ou pela religião, o que se
vislumbra mesmo em passagens de poemas da década de 1970, quando empres-
tava ao poeta as vestes de profeta: “parem/ eu confesso/ sou poeta// só meu
amor é meu deus// eu sou o seu profeta” (LEMINSKI, 1983, p. 91). Ou de modo
mais evidente, num tratamento autobiográfico, como no poema “Sacro lavoro”,
no qual a poesia é uma espécie de transubstanciação:
coisas novas” (LEMINSKI, 1983, p. 60). A máquina, tão idealizada em sua ju-
ventude, passava a não fazer mais qualquer sentido, muito menos a se relacionar
com a criação:
a máquina
engole página
cospe poema
engole página
cospe propaganda
MAIÚSCULAS
minúsculas
a máquina
engole carbono
cospe cópia
cospe cópia
engole poeta
cospe prosa
MINÚSCULAS
maiúsculas
(LEMINSKI, 1983, p. 73).
21 Leminski e Torquato nasceram no mesmo ano (1944), porém não há nenhum registro conhecido
de um encontro entre ambos, ainda que Leminski tenha vivido por alguns meses no Rio de
Janeiro, em 1969, e trabalhado em redações da cidade, período no qual Torquato possivelmente
estava na Europa. Ainda que esse encontro não tenha se dado, Leminski sempre demonstrou
admiração pela poesia e prosa de Torquato, tanto em cartas como em artigos, dedicando a ele o
poema “Coroas para Torquato”, publicado no caderno Folhetim, da Folha de S.Paulo, por ocasião
do décimo aniversário de sua morte: “um dia as fórmulas fracassam/ a atração dos corpos cessou/
as almas não combinam/ esferas se rebelam contra a lei das superfícies/ quadrados se abrem/ dos
eixos/ sai a perfeição das coisas feitas nas coxas/ abaixo o senso das proporções/ pertenço ao
número/ dos que viveram uma época excessiva” (LEMINSKI, 1982a, p. 16).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 309
já fui coisa
escrita na lousa
hoje sem musa
apenas meu nome
escrito na blusa
LEMINSKI, 1983, p. 75).
A vez da várzea
No Brasil, éramos quase todos candidatos ao fracasso, salvo os que con-
seguiram se salvaguardar da recessão e da hiperinflação ou aqueles que se
310 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
de que a poesia escrita perdia visibilidade, proclamou que naquela década o me-
lhor que se fizera em matéria de poesia tinha sido o conjunto de revistas literárias
e não um poeta ou uma poética em particular (LEMINSKI, 2011, p. 74). A revista
era o veículo adequado para se introduzir no cenário literário algo do espírito
das comunidades hippies, daquela vida coletiva em que a individualidade é fatal-
mente deixada do lado de fora em favor de um projeto comum, mesmo quando
não há projeto algum, aliviando um pouco a sobriedade das revistas programá-
ticas ou acadêmicas que marcaram gerações inteiras. A gravação de “Verdura”
em 1981 talvez tenha sido o ponto exato em que se iniciou a transição do poeta
de revistas e edições artesanais para o poeta comercial e nacional. Depois desse
ano, talvez nenhum outro tenha transitado com tanta facilidade entre os supor-
tes e os media como Leminski (antes dele, talvez Torquato Neto, poeta, letrista,
jornalista, ator e cineasta), que passara a se dedicar quase integralmente à poesia
em sua ampla apresentação.
Depois da publicação de Caprichos & relaxos em 1983, vieram os livros
Distraídos venceremos e Agora é que são elas, traduções de James Joyce, John
Fante, Lawrence Ferlinghetti, John Lennon, Yukio Mishima, Petrônio, Samuel
Beckett e Alfred Jarry, biografias de Cruz e Sousa, Bashō, Jesus e Trotsky, re-
unidas no volume Vida, além de ter suas letras cantadas por Ney Matogrosso,
Moraes Moreira, Itamar Assumpção e Guilherme Arantes, com quem compôs
uma trilha sonora para a TV Globo. Já suas intervenções jornalísticas podiam
ser lidas na Folha de S. Paulo, no Correio de Notícias, na revista Veja e mesmo
na televisão, ao integrar o grupo de apresentadores do Jornal de Vanguarda na
TV Bandeirantes. Cada uma dessas atuações pode ser catalogada como indício
de êxito comercial raro na carreira de qualquer poeta ou intelectual. A indústria
cultural, especialmente sua manifestação computadorizada, que inicia seu pro-
cesso de expansão na década de 1980, tem natureza complexa e onívora, com ca-
pacidade ímpar de produzir conteúdos para todos os nichos e públicos, daí suas
muitas faces. E Leminski parecia ter os predicados para circular por todas, pois
conhecia as manifestações de sua linguagem e sabia como não sucumbir a elas.
Entrou pela porta do mercado, mas não deixou toda a esperança do lado de
fora, já que mantinha a consciência de que sua poética seria modificada a partir
do momento em que passasse a escrever para milhares de leitores de jornal. Em
“Jornal para embrulhar peixe”, Leminski reflete sobre a influência do jornalismo
em sua poesia, dada uma evidente diferença de natureza entre os dois modos
de expressão escrita, “essa anomalia me cria problemas específicos e especiais”,
312 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
Mesmo o Catatau, seu projeto mais ambicioso, passou a ser interpretado por
ele como “o fracasso da lógica cartesiana branca, o fracasso do leitor em entendê-
-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico” (LEMINSKI,
2014, p. 212). De algum modo, fazer poesia, em seu sentido mais radical, seria
paradoxalmente empenhar-se numa atividade que inviabilizasse o poema como
mercadoria, impedindo-o de existir nas mesmas condições que qualquer outro
bem gerado pela indústria, sendo a figura do kamikaze24 a alegoria que melhor
caracteriza sua postura diante do mercado. Em La vie en close, último livro pre-
parado por ele, mas que só veio a público após sua morte, há uma espécie de
revisão crítica de seus vinte anos de produção poética, cujo título “Motim de
mim (1968-1988)” já é o prenúncio dessa guerra dentro de si que travara desde
sempre:
XX anos de xis,
XX anos de xerox,
XX anos de xadrez,
não busquei o sucesso,
não busquei o fracasso,
busquei o acaso,
esse deus que eu desfaço
(LEMINSKI, 2004, p. 30).
Um motim é sempre uma revolta interna (militar a priori) numa instituição
contra um poder constituído, é um ato de recusa ou negação, mas também um
ato que visa a reconstrução das relações de hierarquia, de comportamento etc.
Um motim algumas vezes depõe a autoridade, outras, apenas reivindica me-
lhorias, mas em não raras ocasiões os amotinados não têm sorte alguma. Nesse
24 Além da conhecida fotomontagem na qual é retratado como um calígrafo japonês que traz na
porção inferior o portmanteau KAMIQUASE, reproduzida em Caprichos & relaxos (LEMINSKI,
1983, p. 137), há um poema seu publicado no jornal Tribuna da Imprensa de 23-24 de julho de
1977, que incorpora o termo à poesia brasileira, termo que pode ser associado, guardadas as
devidas particularidades, ao mesmo campo semântico de outros contextos, como marginal ou
maldito: “naquela base/ quem?/ o kamikaze” (LEMINSKI, 1977c, p. 3).
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 315
poema, após vinte anos imitando (“xerox”), vinte anos planejando (“xadrez” que
também pode ser vinte anos de prisão), é importante frisar que a ele não esca-
pava a dicotomia sucesso/fracasso, um par que faz parte da vida burguesa, e
mais ainda da indústria cultural, revelando que sempre esteve atrás do acaso, o
dado imponderável que é aproximado da imagem criadora de deus, porém um
deus que procurou para se opor a ele. Amotinar-se contra o acaso equivaleria a
amotinar-se contra o projeto de vanguarda que sempre o perseguiu desde pelo
menos Mallarmé.
25 Entre os primeiros trabalhos de Leminski, constam traduções de Maiakovski, duas pelo menos,
que chegaram a ser divulgadas na imprensa paranaense em 1964: “Noite de lua”, publicada
no Correio do Paraná em 19 de janeiro de 1964, e “Recordação de Baku, cidade do petróleo”,
publicada no Diário da Tarde em 26 de julho de 1964. Maiakovski é uma rara constante na obra
e no pensamento de Leminski, como se entre ambos houvesse uma espécie de ancestralidade,
especialmente no tocante a ser um poeta radicalmente dedicado à invenção e ter buscado
a compreensão das massas. Em mais de um momento, como em “Leminski minimanifesta
informado por Maiakovski”, defendeu pressupostos teóricos extraídos do poeta georgiano,
como a “teoria da central elétrica”, pela qual pressupunha que o poema que produzisse um novo
conhecimento, mesmo quando de difícil compreensão, pode ser transmitido em uma cadeia
entre leitores, do mais ao menos experiente, ou seja, de outros poetas até as massas, opinião
compartilhada com os poetas concretos quando se referiam a uma poesia para produtores.
(LEMINSKI, 1976b, p. 4)
26 Algumas das crônicas de viés político publicadas em 1985 no Correio de Notícias foram:
“Introdução a um ano muito difícil”, 6 de janeiro, “Os três poderes da praça”, 13 de janeiro de
1985, “Tancredorock”, 23 de janeiro, “Mas que nordeste é esse?”, 3 de fevereiro, “Tratado de paz
USA e URSS”, 15 de fevereiro, “A nova semântica”, 1º de março, “Você trabalhou, e o Brasil se
mudou para os Estados Unidos”, 15 de março, “Calma, calma, tudo vai piorar”, 3 de maio, entre
outras.
316 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
Se a meta é a democracia
Se a democracia é a meta
Eleição é direta
Eleição é direta
Eleição é direta
É o eleitorado novo
E o povo já canta o que sente
Eu quero votar
O CAMINHO DOS MEIOS: A POÉTICA DE PAULO LEMINSKI E SUAS REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA COMERCIAL DO POEMA 317
Eu quero votar
Pra presidente
No próximo pleito
Eu quero o direito de participar
De ser cidadão feliz
Que tem opinião desde menino
Sobre o destino do seu país
(ARAGÃO, 1984, p. 5).
Sem entrar no mérito da qualidade poética da letra, pois a forma como foi
escrita era adequada às necessidades do fato histórico, há um ponto que merece
destaque nessa transição política que levou milhões aos comícios por todo o país,
e que a letra identifica: a alegria, o prazer que todos tinham em perceber que a ci-
dadania era capaz de trazer esperança. Não era tanto por militância partidária,27
mas por um festivo sentimento catártico que Leminski embarcava nessa ação
coletiva, uma vez que sua orientação política era outra, a que lhe permitia “as-
sociar novamente prazer e política”, pois na ditadura “o prazer estava em outro
lugar, sempre longe da política que era sinônimo de baixo astral, de perigo, de
medo” (CURITIBA…, 1984, p. 3). Nas ocasiões em que o prazer é o centro, todo
discurso racional, toda construção teórica, todo argumento mediado acaba por
ser prescindível, pois tudo se move em torno da paixão.
Talvez fosse um eco revolucionário de um poeta que mergulhara na con-
tracultura, fazendo com que tivesse sempre firme a posição de que seu projeto
era em favor da absoluta liberdade coletiva, sem qualquer cerceamento moral,
político ou estético tendente a impor padrões de convivência. Essa orientação
libertária particularmente se voltava contra um modelo de sociedade que con-
vertia trabalho em virtude social, e sua ausência em vício de caráter, e mais: o
trabalho nas condições em que é oferecido não passa de cruel mecanismo de
controle e alienação. “Nenhuma monstruosidade se compara à de ser um vaga-
bundo, isto é, alguém refratário às delícias da ordem e da disciplina necessárias
O prazer é um valor em si. […] Uma coisa sem preço é um não ser. O que
está fora do mercado não tem existência, propriamente falando. Cores,
prazeres gratuitos, obras de arte, produtos culturais, são coisas, no fundo,
sem preço, lúdicas, insusceptíveis de marketing, gestos livres… Nossa
tendência é ver a produção artística como uma coisa séria. Isso é uma
estupidez. A produção artística tem mais que ver com brincadeira do que
com as coisas sérias. Sério é chato. E todo artista chato é medíocre. Artista
tem que ser emocionante (LEMINSKI, pp. 114-115).
Quem está com pressa, não tem tempo para ver a paisagem. Nem para
refletir sobre o trajeto e o percurso. A pressa é a face visível do tempo
maquinal e despótico, criado pelo trabalho industrial e pela burguesia
europeia, com a Revolução Industrial. Como tal, é inimiga mortal das
liberdades do homem, entre as quais está a de produzir essas liberdades,
que são os produtos culturais, poemas, visões, músicas… A preguiça é que
é de vanguarda (LEMINSKI, 2011, p. 118).
28 Justamente num dos primeiros artigos nos quais defende o inutensílio, “O direito à poesia” de
8 de maio de 1985, diz: “Existe uma coisa mais burguesa que o Estado soviético, que herdou,
passivamente, o desenvolvimento industrial da burguesia, sem propor no fundo, nenhuma
realidade nova? O Estado soviético é a hipertrofia (a caricatura) do Estado burguês, acentuados
seus traços mais brutais” (LEMINSKI, 1985d, p. 16).
320 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça
(LEMINSKI, 1983, p. 59).
29 Trata-se de um artigo jocoso, desde o título que remete a uma piada, qual seja “Deus morreu, a
arte está fraca e eu não estou me sentindo muito bem”, no qual pondera sobre a ausência de um
movimento artístico brasileiro ou internacional em meados da década de 1980, inserindo-se
no contexto: “Sim, senhores, eu já me acreditei um artista de vanguarda. Alguém nascido para
receber no rosto ‘os ventos do futuro’, de que falava o poeta russo Khliébnikov, na época quando
a Rússia já era um campo de concentração, mas ainda não era uma fazenda-modelo.
Artista de vanguarda, acreditei na revolução permanente da arte. Cada dia, um motim. Cada
intuição, uma explosão de dinamite. Cada texto, a promessa de uma nova era para a arte.
Hoje descubro que o que eu pensei ser eterno era apenas uma fase, uma época, um pedaço de
memória lá atrás na longa estrada. […] Será que a humanidade cansou? Será que a perspectiva
da hecatombe nuclear limitou o infinito dos nossos desejos em direção a futuros longínquos?
Ou será que a arte está fraca por que a vida está se transformando em arte?” (LEMINSKI, 1985c,
p. 14).
322 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
Referências
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cultural. 4. ed. São Paulo: Nacional, 1978.
BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira: poesias reunidas. 19. ed. Rio de Janeiro:
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CURITIBA chama de indireto quem for contra emenda. In: O Fluminense, Niterói,
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324 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
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1985b, p. 16.
______. Deus morreu, a arte está fraca e eu não estou me sentindo muito bem. In:
Correio de Notícias, Curitiba, 26 maio 1985c, p. 14.
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______. Introdução a um ano muito difícil. In: Correio de Notícias, Curitiba, 6 jan.
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______. Mas que nordeste é esse? In: Correio de Notícias, Curitiba, 3 fev. 1985f,
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______. Meio polaco. In: Correio de Notícias, Curitiba, 5 jan. 1985g, p. 16.
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326 NESTE INSTANTE – NOVOS OLHARES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DOS ANOS 1970
______. Poesia: vende-se. In: Correio de Notícias, Curitiba, 29 maio 1985i, p. 16.
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______. Para alguém lá longe. In: Correio de Notícias, Curitiba, 24 ago. 1986e.
Segundo Caderno, p. 9.
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Programe-se, p. 15.
______. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. 2. ed. São Paulo: Editora
34, 1999.
______. Release para o disco Cabeça Dinossauro. In: DAPIEVE, A. Brock, o rock
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