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Contextos Clínicos, 9(2):279-289, julho-dezembro 2016

2016 Unisinos - doi: 10.4013/ctc.2016.92.12

Influências da Psicanálise neofreudiana


na psicoterapia de Carl Rogers

Influences of Neo-Freudian Psychoanalysis in Carl Rogers’ psychotherapy

Paulo Coelho Castelo Branco


Universidade Federal da Bahia. Rua Rio de Contas, 58, 45029-094,
Vitória da Conquista, BA, Brasil. pauloccbranco@gmail.com

Emanuel Meireles Vieira


Universidade Federal do Pará. Rua Augusto Correia, 1, 66073-040,
Belém, PA, Brasil. emanuel.meireles@gmail.com

Sérgio Dias Cirino


Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627, 31270-901,
Belo Horizonte, MG, Brasil. sergiocirino99@yahoo.com

Jaqueline de Oliveira Moreira


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Av. Itaú, 525, 30535-012,
Belo Horizonte, MG, Brasil. jackdrawin@yahoo.com.br

Resumo. Este artigo, de cunho ensaístico e histórico, objetiva revisitar


didaticamente alguns aspectos presentes no contexto estadunidense de
ideias psicanalíticas que influenciaram Carl Rogers, durante a compo-
sição da terapia centrada no cliente, nas décadas de 1920 – 1950. Rogers
indicou, especificamente, influências das psicanálises neofreudianas de
Otto Rank e Karen Horney. Destarte, disserta-se sobre os momentos his-
tóricos do surgimento da psicanálise nos EUA. Em seguida, aprofundam-
-se algumas concepções clínicas de Rank e Horney. Finalmente, demarca-
-se o que Rogers contatou e apropriou das ideias desses psicanalistas.
Conclui-se que Rogers esteve atento aos debates psicoterapêuticos esta-
dunidenses e que estes o ajudaram a compor elementos da terapia centra-
da no cliente. Apontam-se, finalmente, outras possibilidades de estudos
sobre o legado de Rogers.

Palavras-chave: escola neofreudiana, psicologia do self, terapia centrada no


cliente.

Abstract. This article, of historical and essayistic nature, aims to revisit di-
dactically some aspects presents in the US context of psychoanalytical ideas
that influenced Carl Rogers, during the composition of client centered-ther-
apy, in the years of 1920 – 1950. Rogers specifically indicated Neo-Freudian
influences of Otto Rank and Karen Horney. Thus, the historical moments of
the rise of American Psychoanalysis are discussed. Then, some conceptions
from the Neo-Freudian psychoanalysis of Rank and Horney are probed. Fi-
nally, what Rogers contacted and appropriated from those Psychoanalysts

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo
permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Influências da Psicanálise neofreudiana na psicoterapia de Carl Rogers

is delimited. It is concluded that Rogers was a mindful thinker of the Amer-


ican discussions about psychotherapy and that they helped him compose
elements of the client-centered therapy. Other possibilities of studies are
therefore outlined.

Keywords: client centered therapy, Neo-Freudian school, self psychology.

Introdução investida internalista ao construto teórico de


Rogers e externalista ao seu contexto histó-
É possível situar no pensamento de Carl rico. Rogers contatou e se apropriou de cer-
Rogers diversas correntes de pensamento psi- tas concepções psicanalíticas pertencentes
cológico, filosófico e psicoterapêutico que o ao Zeitgeist psicoterapêutico estadunidense,
influenciaram na composição de sua teoria clí- nas décadas de 1920 – 1950. Tais concepções
nica da personalidade. A despeito disso, este lhe foram conhecidas durante o seu período
artigo, de cunho ensaístico e histórico, objetiva de elaboração teórica e prática na Society for
revisitar didaticamente alguns aspectos pre- the Prevention of Cruelty to Children (de 1928 a
sentes no Zeitgeist psicanalítico estadunidense 1938), na Universidade de Ohio (entre 1938-
que influenciaram Rogers durante a composi- 1945) e na Universidade de Chicago (de 1945
ção de sua teoria e terapia centrada no cliente1. a 1957) (Rogers e Russell, 2002).
Na acepção utilizada pelo campo da His- Destaca-se que o estudo aborda, especi-
tória da Psicologia, o termo Zeitgeist alude ficamente, as perspectivas psicanalíticas de
a certos acontecimentos que enviesaram as Otto Rank e Karen Horney, devido ao fato de
ações teóricas e práticas de um indivíduo ou Rogers (1978, 1977, 1992, 1997, 2005) apontar
um grupo de pessoas em um tempo específico explicitamente as influências desses autores
(Broz̆ ek e Guerra, 1996). Em outras palavras, em suas obras e entrevistas transcritas (Evans,
existem fatores sociais e culturais que deter- 1979; Rogers e Russell, 2002). Com efeito, pro-
minam um contexto científico de circulação cede-se da seguinte lógica expositiva: disserta-
de ideias. Por conseguinte, tal contexto afeta -se como a Psicanálise se propagou nos EUA;
a preocupação, a apropriação e a produção em seguida, aprofundam-se as psicanálises
intelectual de um período histórico (Watson, neofreudianas de Rank e Horney; finalmente,
1998). Urge, pois, entender Rogers em relação analisa-se o que Rogers contatou e apropriou
ao seu contexto sócio científico de circulação desse Zeitgeist em sua teoria clínica.
de ideias psicológicas e clínicas, considerando
o seu momento histórico, sua participação em Preâmbulo sobre o desenvolvimento
grupos profissionais e o seu conjunto particu- da Psicanálise nos EUA
lar de experiências pessoais.
Desse modo, constitui falácia distinguir os Considera-se que três momentos históricos
expoentes da Psicologia do seu Zeitgeist, pois foram imprescindíveis para o desenvolvimen-
incorre equívoco pressupor uma unilateralida- to da Psicanálise nos EUA. O primeiro (Millet,
de na influência de um pensador sobre os seus 1981), transcorrido na década de 1900, foi marca-
fatores contextuais e vice-versa (Hilgard et al., do pela visita de Sigmund Freud e Carl Gustav
1998). No transcurso do que foi argumentado, Jung a Clark University. Ambos foram convida-
pergunta-se: que aspectos do Zeitgeist de Ro- dos por Granville Stanley Hall, um psicólogo
gers são possíveis observar, caso se possa lan- funcionalista estadunidense que se interessou
çar nova luz sobre ele ou compreendê-lo sob pelas ideias da Psicanálise. Naquela universida-
outra perspectiva, no caso, a histórica? de, Freud recebeu o título honorário de Doutor
Considera-se, pois, que uma possibilida- em Psicologia e teve suas palestras traduzidas e
de de resposta está na combinação de uma publicadas no American Journal of Psychology.

1
Após se aposentar, em 1963, Rogers deixou de exercer e pesquisar a terapia centrada no cliente, interessando-se pelos
fenômenos grupais, familiares e educacionais. Ao perceber que o alcance de suas ideias excedia o espaço clínico, Rogers
(1983, 2001), em 1977, nomeou sua prática de abordagem centrada na pessoa (ACP), indicando uma definição mais ampla,
que envolvia outros âmbitos das relações humanas que não apenas a psicoterapia. Alguns colaboradores, como Maria
Bowen, desenvolveram a ACP na clínica, mantendo interlocução com Rogers.

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Esse primeiro momento também caracte- Carvalho (1999), a terapia desenvolvida por
rizou-se pela militância de um grupo de mé- Rogers teve grande impacto por ser um tipo
dicos estadunidenses que leram as obras de de intervenção que era “[...] simples, informal,
Sigmund Freud, até então publicadas em ale- breve e requeria pouco treinamento (p. 142,
mão. Entre eles, destaca-se Abraham Brill, que, tradução nossa). Foi nesse esteio que se deu
em 1907, foi a Zurique visitar Eugen Bleuer e o desenvolvimento de uma Psicologia Clínica
Carl Gustav Jung. Em 1909, Brill colaborou (Capshew, 1999). Com a escassez de médicos
com a tradução da obra de Jung intitulada The psicanalistas, restritos a consultórios, muitos
psychology of dementia praecox e, posteriormen- órgãos sociais se aproveitaram de psicólogos
te, traduziu diversos livros de Freud para o in- com o título de doutorado para executar fun-
glês. Freud (1996a) credita o trabalho de Brill ções na clínica (Oberndorf, 1953). Embora o
como difusor da Psicanálise nos EUA. ofício de psicoterapia naquela época não fosse
No segundo momento (Millet, 1981), de- uma atribuição do psicólogo clínico, muitos
corrido nas décadas de 1910 – 1920, ocorreu se apropriaram da prática psicanalítica, ou de
uma efervescência de associações e sociedades elementos dela, para executar o trabalho. Eis
psicanalíticas em terras ianques. Ao retornar por que muitas ideias psicanalíticas se torna-
para a Europa, Freud e Jung fundaram, em ram populares em diversos centros sociais e
1910, a International Psychoanalysis Association. educacionais.
Esta inspirou a formação da Sociedade Psica- Em decorrência dos três momentos histó-
nalítica de Nova Iorque, fundada em 1911, por ricos acenados, observa-se que o desenvolvi-
Brill, que recém retornara de uma formação mento da Psicanálise nos EUA foi caracteriza-
psicanalítica em Zurique e Viena. No mesmo do por uma heterogeneidade de perspectivas
ano, Ernest Jones estabeleceu a Associação Psi- freudianas e neofreudianas que incorporaram
canalítica Americana. Tal internacionalização outros problemas relacionados ao novo con-
da Psicanálise culminou, em 1920, na criação texto cultural (Dunker, 2007).
do International Journal of Psychoanalysis. Alguns aspectos podem diferenciar a Psica-
O terceiro momento, procedido nas déca- nálise europeia da Psicanálise americana. Um
das de 1930 – 1940, foi ensejado pela assun- deles está no fato de que, na Europa, houve
ção do nazismo na Alemanha e consequente uma tendência de apropriação da Psicanálise
migração de vários médicos analistas para os por etologistas, psicofisiologistas e neurologis-
EUA. Curiosamente, enquanto a Europa ex- tas. Nos EUA, tal apropriação foi mais patente
portava psicanalistas para os EUA, este país por parte de psiquiatras, assistentes sociais e
enviava os seus analistas nativos para servir psicólogos (Figueiredo, 1991).
ao exército na ocasião da Segunda Guerra Outro ponto reside na concepção funcio-
Mundial. Minuta-se que, naquela época, em nalista que distingue a Psicanálise europeia
certos locais, como Nova Iorque, o número de da americana. Conforme elucida Figueiredo
analistas europeus ultrapassava a quantidade (1991), existe um aspecto funcionalista na Eu-
de analistas estadunidenses com formação lo- ropa que aponta para o entendimento de que o
cal (Oberndorf, 1953). Com efeito, esse aconte- organismo é regido por impulsos da ordem do
cimento tornou a Psicanálise mais popular em instinto, que endogenamente se aglomeram e
diversos centros de formação clínica, à medida o fazem buscar no ambiente exógeno alguma
que criava uma tensão com os profissionais forma de descarregar a energia acumulada.
locais. Ressalta-se que muitos psicanalistas Essa liberação enseja padrões de comporta-
dissidentes de Freud participaram da aludida mentos normais e patológicos. Nesse âmbito, a
migração e popularização. Psicanálise freudiana possui uma relação am-
Ainda no terceiro momento, houve um ad- bígua com esse modelo, porque, de um lado,
vento social de solicitação governamental para foca-se no conflito decorrente das forças pul-
que a Psicologia transcendesse suas práticas sionais antagônicas e da função do aparelho
experimentais com intuito de se tornar mais psíquico em libertar-se das tensões que isso
aplicada a diversos contextos profissionais. produz, mas, de outro, substitui a ideia de ins-
Vale dizer que a demanda pelo desenvolvi- tinto por pulsão, diminuindo a força de uma
mento de uma psicologia mais voltada para ênfase biológica.
problemas práticos está diretamente vincula- O desenvolvimento da Psicanálise em solo
da à ocorrência da Segunda Guerra Mundial estadunidense, por outra via, desenvolve
e ao retorno de veteranos daquele combate uma concepção funcionalista, oriunda daque-
(Capshew, 1999). Nesse sentido, segundo De- le contexto, de impulso, em que os conflitos

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entre natural (instinto) e social (civilização) intitulado O desenvolvimento da Psicanálise,


dão lugar ao ajustamento e à adaptação do no qual protesta contra o fato de a atuação do
organismo ao ambiente. Há, ainda, uma pre- analista se focar predominantemente no mate-
mência nos estudos da personalidade do in- rial inconsciente do analisando. O ponto ini-
divíduo em suas esferas conscientes e autô- cial da dissidência rankiana consiste, segundo
nomas (Figueiredo, 1991). a reconstrução de Eisenstein (1981), em enfa-
A assimilação da Psicanálise nos EUA foi tizar mais os aspectos relacionais que aconte-
integrada, pois, à sua tradição funcionalis- cem no momento presente da clínica do que
ta. Isso resulta em uma ênfase maior no Ego os conteúdos inconscientes de formação an-
(self), como função adaptativa em relação ao Id terior ao encontro analista-paciente. Vale res-
– caldeirão das pulsões (Freud, 1996b) – e ao saltar que, de um ponto interno à Psicanálise
Superego – constituído pelas exigências da ci- freudiana, a interpretação que Rank e outros
vilização. O que Freud considera efetivamente analistas neofreudianos dão à relação psicote-
insolúvel na relação entre o natural e o social, rapêutica dentro da teoria psicanalítica pode
nos EUA, passa a ser entendido com base em ser considerada um equívoco, na medida em
uma “[...] dinâmica de ajustamento sob a re- que o conceito de transferência se refere ao
gência do ego” (Figueiredo, 1991, p. 99). modo de relação estabelecido entre analista e
Reconhece-se, destarte, que outros momen- analisando. Destarte, a transferência é a base
tos poderiam ser elencados para aprofundar o da análise e é definida como uma repetição
desenvolvimento da Psicanálise neofreudiana em ato e atual dos conteúdos inconscientes,
nos EUA, tal como outros aspectos distintivos não cabendo, portanto, a crítica de que a rela-
entre as Psicanálises europeia e americana. ção analítica se prende totalmente ao passado.
Entretanto, optou-se por delimitar somente os Rank publicou, ainda, outros livros que o afas-
momentos ora raciocinados, por entender que taram da Psicanálise freudiana.
eles melhor atendem a uma descrição do Zei- Devido às rejeições de Freud e dos seus fiéis
tgeist psicanalítico que Carl Rogers contatou. seguidores, Rank mudou-se para a França, re-
sidindo em Paris entre 1926 e 1935. Nesse ín-
Psicanálises neofreudianas terim, Rank visitou os EUA diversas vezes, até
de Otto Rank e Karen Horney mudar-se em definitivo para Nova Iorque, onde
encontrou maior aceitação de suas teorias no
Desenvolvem-se aqui os aportes que dizem campo da Assistência Social. Salienta-se que, na
respeito às psicanálises de Otto Rank e Karen Filadélfia, as ideias rankianas também encon-
Horney que encontraram maior circulação e traram alento nos trabalhos de Frederick Allen,
assimilação nos EUA. Por um critério didático, Virginia Robson e Jessie Taft, que as aplicaram
baseado na cronologia da assunção das ideias em diversos trabalhos sociais (Millet, 1981).
psicanalíticas dos expoentes mencionados, Considera-se que as ideias rankianas se tor-
apresenta-se, inicialmente, o pensamento de naram populares nos EUA, por sua proposta
Rank e, em seguida, o de Horney, destacando de psicoterapia romper com o monismo ins-
e ponderando alguns dos seus elementos his- tintivo e pulsional de Freud e tratar o eu (self)
tóricos e teóricos. como algo ativo e criativo (Eisenstein, 1981).
Rank foi um analista que, entre 1906 e 1924, Rank (1934) propõe um modelo de psicotera-
pertenceu ao ciclo psicanalítico de Viena. Ob- pia baseado na realização consciente de esco-
serva-se que Rank não possuía formação mé- lhas. Conforme o autor, a vontade é uma força
dica, sendo ele um diletante da Psicanálise que cósmica primitiva atuante no indivíduo, que o
chamou a atenção de Freud, que o convidou a faz transcender seus instintos para produzir os
secretariar a Sociedade Psicanalítica de Viena. próprios ideais.
Rank, que apenas tinha uma formação supe- No entendimento de Rank (1934), o eu é
rior técnica, foi – o que Freud considerou – o consciente e criador, e não apenas um escravo
primeiro psicanalista leigo a tratar doentes (Ei- que serve a três senhores, Id, Superego e Reali-
senstein, 1981). Posteriormente à sua ascensão dade. Desse modo, cabe à psicoterapia voltar-
na Psicanálise, Rank cursou um doutorado em -se para os sentimentos e emoções que acon-
Medicina na Universidade de Viena. tecem no devido momento da relação clínica,
Nos anos em que esteve vinculado a Freud, evitando interpretações. É pela consciência
Rank lançou diversos livros de fundamen- que se apreende a vontade, são estabelecidos
tação psicanalítica. Contudo, em 1924, junto ideais e se avança sobre as forças naturais que
com Sandor Ferenczi, Rank publicou um livro, fazem do homem um refém.

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Sob essa perspectiva, Rank (1934) reconhe- amparo e reconhecimento, o que motivou a
ce que a relação terapêutica “[...] não é uma criação da Associação para o Avanço da Psica-
compreensão interpretativa; é uma experiên- nálise e da Associação Americana de Psicaná-
cia imediata, uma forma de criação [...] Temos lise, ambas presididas por ela.
procurado, a todo o momento, um meio de A tese de Horney, em epítome, consiste
escapar a esse constrangimento interpretati- em negar a universalidade do Complexo de
vo onde vontade e consciência se torturam Édipo, ressaltando que existem certos aspec-
mutuamente” (p. 26-27). No entendimento de tos etnológicos que demonstram a não exis-
Rank (1934), essa tendência consciente e cria- tência de tal complexo em condições culturais
dora se manifesta em todos, com formas dife- diversas (Natterson, 1981). Horney (2007) se
rentes e tem, ao mesmo tempo, algo de “[...] afinou ao contexto americano de Psicanálise
superindividual, de primitivo, de cósmico, ao questionar as primazias etiológicas das
que possui um valor geral humano ou uni- forças instintivas que compõe o psiquismo
versal” (p. 45). O problema da interpretação humano e a neurose, repensando-as segundo
reside, pois, em perder esse caráter micro e suas funções culturais.
macrocósmico que pertence ao indivíduo. Por Horney, assim como Rank, aspira a eliminar
isso, o autor ressalta que, na psicoterapia, “[...] o que entende por falácias biológico-mecanicis-
devemos evitar introduzir julgamentos defini- tas de Freud, para focar em uma Psicanálise da
tivos de valor, porque não lhe conhecemos a realização das plenas capacidades do indiví-
origem psicológica” (p. 45). duo. O pensamento de Horney tenta superar,
Cabe à psicoterapia, portanto, trabalhar a pois, as teorias instintivas e sexuais freudianas,
adaptação do indivíduo à sua vontade real, dando maior destaque aos relacionamentos in-
fazendo-o suportar a própria personalidade. terpessoais, que não são somente permeados
Isso ocorre somente quando o indivíduo aceita por impulsos sexuais, pois também trazem pa-
sua vontade, em vez de negá-la (Rank, 1934). drões culturais e sociais que se internalizam nos
A flexibilidade da técnica psicanalítica de indivíduos. Esses padrões internalizados po-
Rank possibilitou a circulação de sua terapia dem trazer alienações intrapsíquicas e interpes-
relacional entre psicólogos, assistentes sociais soais. Quando acontecem alienações decorren-
e educadores. tes dessas internalizações, o indivíduo começa
Saindo do percurso rankiano para adentrar a ter perturbações psíquicas, havendo reações
o decurso de Horney, salienta-se que esta foi neuróticas de desamparo e busca pelo reconhe-
uma analista alemã de formação médica que cimento dos outros (Hall et al., 2000).
desenvolveu o seu trabalho em Berlim, du- Segundo Horney, a neurose ocorre em ra-
rante os anos de 1919 – 1932. Embora tenha se zão de carência e do medo de perder o amor
vinculado ao Instituto Psicanalítico de Berlim, desejado. Essa ansiedade básica enseja neces-
desde o início, Horney exerceu a Psicanálise sidades excessivas de afeição. Quando elas
com um viés crítico a certos elementos cabais à não são satisfeitas, surgem impulsos de hosti-
teoria freudiana (Natterson, 1981). Especifica- lidade, autorrepressão e sentimentos de inse-
mente, aproximou-se de uma reflexão cultura- gurança, inferioridade e desamparo. Tudo isso
lista para refutar a tese freudiana, que genera- produz no indivíduo um quadro irrealista e
liza a inveja do pênis por parte das mulheres, idealizado de si (Hall et al., 2000).
acusando-a de ser oriunda de um preconceito Em conformidade com o pensamento de
masculino comum à cultura germânica. Rank, Horney (1959) compartilha a ideia de
Diante dessas críticas, Horney, assim como que a natureza humana não é escrava dos ins-
Rank, foi severamente excluída do circuito psi- tintos primitivos e que sua essência não é des-
canalítico freudiano, ao passo que, em 1932, truidora. No pensamento da autora, existem
ela aceitou o convite de migrar para os EUA forças construtivas que permitem aos huma-
e se tornar diretora do Instituto de Psicanáli- nos realizarem suas potencialidades criativas
se de Chicago. Ao se mudar para lá, Horney na luta pela autorrealização. Segundo ela, a
igualmente não encontrou aceitação e interlo- neurose desvia as forças construtivas para ca-
cução, situação que a fez mudar-se para Nova nais inertes e destrutivos, no entanto, há uma
Iorque, em 1934, na busca de continuar o seu força autorrealizadora que funciona como im-
trabalho (Natterson, 1981). No ano seguinte, as pulso autônomo e direcionador de forças para
ideias culturalistas e psicanalíticas de Horney superar a neurose.
a fizeram conferencista na New School for Social Para isso ocorrer, é necessário que a psico-
Research. Nesse contexto, Horney encontrou terapia priorize uma compreensão consciente

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a respeito de nós próprios, a fim de conseguir Europa, a abertura dos EUA para receber psi-
a libertação dessa força de crescimento es- canalistas europeus e o advento da persegui-
pontâneo. Destarte, conforme Horney (1959, ção nazista foram fatores que influenciaram
p. 16), “[...] o ideal, para nós e para os outros, a migração de Rank e Horney para o conti-
consiste, sempre, na libertação e no cultivo das nente americano. Em Nova Iorque e Chicago,
forças que levam a autorrealização”. Assim, predominantemente, havia um contexto ins-
“[...] o indivíduo sempre crescerá no sentido titucional de associações e sociedades psica-
de sua autorrealização” (p. 119). Essa crença nalíticas favoráveis à difusão do pensamento
em uma força autorrealizadora é sustentáculo desses autores, que obtiveram maior aceita-
das questões teórico-práticas da psicoterapia ção entre psicólogos, psiquiatras, assistentes
de Horney. No que concerne à autorrealiza- sociais e educadores.
ção, Horney (1959) se remete aos estudos de
Kurt Goldstein, apesar de se diferenciar dele, Relação de Carl Rogers com as
por investigar o eu. Conforme o raciocínio de
Psicanálises neofreudianas
Horney (1959), a expressão eu real se refere ao
crescimento do indivíduo no sentido de sua de Otto Rank e Karen Horney
autorrealização, ou seja, de sua força interna,
central, comum a todos os indivíduos e, ao Após obter o seu título de doutor em Psi-
mesmo tempo, singular a cada um. O eu real cologia Clínica e Educacional na Universidade
se desenvolve em favor das condições internas de Columbia, Carl Rogers trabalhou em Nova
e valores do indivíduo. Iorque com crianças desajustadas no Rochester
A expressão eu ideal (Horney, 1959), por Institute for Child Guidance, de 1927 a 1928, e na
seu turno, vincula-se às imagens alheias que The Society for the Prevention of Cruelty to Chil-
o indivíduo adota como suas, funcionando de dren, de 1928 a 1938. Naquela época, Rogers
modo a manter ou a atingir essa idealização. (2001) lidou com a impossibilidade de atuação
Ocorre que tal autoidealização se transforma no campo da psicoterapia, dada a sua forma-
em um ponto de referência em que o indiví- ção em Psicologia. Segundo ele, não cabia ao
duo a adota como se lhe fosse real. Uma idea- psicólogo o emprego da psicoterapia, devido
lização, contudo, pode se tornar real quando o a sua restrição ao campo da Psiquiatria. Ro-
indivíduo busca atingir seus desejos com base gers atendia sob a égide do aconselhamento
em suas necessidades próprias. São caracterís- psicológico para exercer intervenções clínicas,
ticas do eu ideal: o afastamento dos próprios a partir de entrevistas. Evitando enfrentar a
sentimentos, desejos e crenças; a perda da sen- questão de frente com o campo da Medicina,
sação de ser um todo orgânico; e o alheamento ele acumulou significativas experiências clíni-
do eu verdadeiro. É próprio da neurose o des- cas e diversas pesquisas, que demonstraram a
vio de energias autorrealizadoras, destinadas possibilidade de atuação do psicólogo em ní-
ao desenvolvimento do eu real, para potencia- vel de psicoterapia.
lidades fictícias de um eu ideal ou idealizado. Esse contexto decorre do terceiro movi-
Quanto maior for o consumo de energia pelo mento psicanalítico nos EUA, mencionado an-
sistema do eu ideal, menores serão os impul- teriormente. Contudo, a despeito da questão
sos em favor da autorrealização e menor será a política envolvida em relação ao domínio da
capacidade do indivíduo de assumir a respon- psicoterapia na clínica, Rogers aproximou-se
sabilidade por si mesmo (Horney, 1959). das concepções de Otto Rank e Karen Horney,
As ideias de Horney foram bastante po- devido à abertura que eles tinham com profis-
pulares nos EUA entre psicólogos e psiquia- sionais não médicos.
tras, ao contrário do que lhe aconteceu na Após ter o seu trabalho clínico reconheci-
Europa. Muitos de seus livros se tornaram do, em 1938, Rogers partiu para a docência
best-sellers, em razão da sua didática e da na Universidade de Ohio, onde desenvolveu
alegação de que pessoas leigas poderiam re- pesquisas e intervenções sob a égide de acon-
ceber formação analítica para resolver ques- selhamento psicológico. Contudo, nessa atua-
tões específicas, caso guiadas por um psica- ção, Rogers (2005) se aproximou do campo da
nalista (Horney, 1976). psicoterapia, argumentando que uma relação
Em comum, Rank e Horney apresentam de aconselhamento bem facilitada produz
proposições teóricas e clínicas que repensam efeitos semelhantes aos resultados de uma
e divergem da Psicanálise freudiana. As di- psicoterapia. Tal proposição culminou, em
ficuldades de circulação de pensamento na 1942, na obra Counseling and Psychotherapy,

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Paulo Coelho Castelo Branco, Emanuel Meireles Vieira, Sérgio Dias Cirino, Jaqueline de Oliveira Moreira

que promoveu uma aproximação do campo modo conceitualmente mais denso de que
do aconselhamento psicológico com a Psico- modo foi impactado por seu pensamento e
logia clínica (Scorsolini-Comin, 2014) e levou que seu contato pessoal com Rank num semi-
Rogers a ser contratado pela Universidade de nário ocorrido em Rochester no início de sua
Chicago, em 1945, com o intento de desen- carreira não durou mais que dois ou três dias.
volver pesquisas em psicoterapia. Ressalta-se Nesse sentido, Kirschenbaum (2007) assegura
que, naquele período, a American Psychologi- que não foi Rank que diretamente influenciou
cal Association (APA) estava interessada em Rogers, mas a escola rankiana que se desen-
financiar os estudos de Rogers para legiti- volveu nos EUA e o contato que Rogers teve
mar um lugar de psicoterapia para a Psico- com estudiosos dessa escola. DeCarvalho
logia (Rogers e Russell, 2002). Não por acaso, (1999), também, compartilha desse ponto de
por exemplo, Rogers foi eleito presidente da vista. Salienta-se que, a despeito do que foi ex-
APA, em 1946 (Capshew, 1999). posto, existe uma linha de argumentação que
Nas obras de Rogers oriundas desse con- defende a terapia tal como desenvolvida por
texto fértil de trabalho e pesquisa, é possível Rogers como fundamentalmente uma elabora-
encontrar diversas menções à Psicanálise neo- ção da terapia rankiana (Ellingham, 2011).
freudiana. Por exemplo, ao caracterizar sua Sollod (1978) concorda com os pontos de
proposta teórica de psicoterapia, Rogers (2005, vista de Kirschenbaum e DeCarvalho e afirma
p. 27) reconhece suas raízes a partir das no- que rankianos que desenvolveram a terapia da
vas perspectivas clínicas críticas aos métodos relação, como Jessie Taft, tiveram impacto so-
freudianos, aludindo às teorias de Rank, mo- bre a prática de Rogers. Tal influência se deu
dificadas por Taft, Alen e Robison (o chamado quanto: à ênfase no presente; à valorização da
Grupo da Filadélfia), e ao trabalho de Horney. expressão de emoções e sentimentos; ao foco
Nos anos em que trabalhou na Universidade no potencial de crescimento do cliente; à rela-
de Chicago, ao alcunhar sua proposta clíni- ção terapêutica desprovida do lugar de autori-
ca de terapia centrada no cliente, Rogers (1992, dade do terapeuta; ao não julgamento; a uma
p. 10) reconhece que esta apresenta fontes nos atitude mais compreensiva e menos interpre-
pensamentos psicanalíticos de Rank, do Gru- tativa; à concepção de relação como um encon-
po da Filadélfia e de Horney. Discorre-se, pois, tro real entre terapeuta e cliente; à aposta no
o que foi contatado e apropriado por Rogers fato de o cliente saber mais de si do que o tera-
em relação à Psicanálise neofreudiana de Rank peuta; e ao enfoque no autodesenvolvimento
e Horney. e na responsabilidade do cliente perante sua
Rogers revelou que as concepções de Rank situação e busca por autorrealização.
exerceram profunda influência no seu pensa- Devido às características acima, presentes
mento, com ideias que possuía apenas em es- tanto na terapia da relação quanto, posterior-
tado embrionário. Em 1928, Rank chegou a mi- mente, na terapia centrada no cliente, Sollod
nistrar alguns cursos na Pennsylvania School of (1978) afirma que Rogers não desenvolveu
Social Work, organizados por Rogers e alguns algo tão original no campo da psicoterapia,
terapeutas rankianos da Escola de Filadélfia, senão que tomou para si ideias da terapia da
como Jessie Taft, Virginia Robson e Frederick relação, simplificou-as “[...] e, o mais impor-
Allen (Rogers e Russell, 2002). tante, trouxe-as para o reino da Psicologia
Segundo Rogers (1992, p. 17), a abordagem acadêmica, onde poderia ser objeto de uma
rankiana o influenciou pelo fato de esta ser avaliação experimental” (p. 100, tradução nos-
“[...] a extensão das experiências práticas com sa). DeCarvalho (1999) não chega a tanto, mas
uma orientação terapêutica baseada principal- reconhece que a noção não biológica de cres-
mente na capacidade do cliente”. A despeito cimento, a valorização da experiência imedia-
de não ter dado importância ao modelo teó- ta da relação terapêutica e sua representação
rico de Rank, Rogers (1978) reconheceu que a como não invasiva e passiva constituem o fun-
terapia rankiana influenciou o seu pensamen- damento do que viria a ser a terapia centrada
to, por se focar mais em atitudes e emoções no cliente.
do que em técnicas e racionalizações clínicas, Mesmo que consideremos a originalidade
possibilitando maior autorrealização (DeCar- da obra de Rogers, é notório que ele se apro-
valho, 1999). priou de alguns aportes rankianos. De acordo
Kirschenbaum (2007), contudo, pondera com Kirschenbaum (2007), de todas as carac-
que Rogers não chega a citar textualmente terísticas que Rogers assimilou do pensamen-
Rank em suas obras ou mesmo explicitar de to rankiano, talvez a mais importante tenha

Contextos Clínicos, vol. 9, n. 2, Julho-Dezembro 2016 285


Influências da Psicanálise neofreudiana na psicoterapia de Carl Rogers

sido a ênfase na autocompreensão e autoacei- sa). Para ambos, portanto, a experiência clínica
tação do cliente no momento da relação tera- serviu de fundamento para suas reflexões a
pêutica. Ainda segundo Kirschenbaum, para respeito das condições de valores que moldam
os rankianos, “[...] se o paciente pode desen- a assimilação da experiência na relação com os
volver a capacidade de viver como um indi- outros.
víduo saudável na hora terapêutica [...], isso Em relação à teoria do eu, de Horney, Ro-
poderia ser transposto para a vida diária” (p. gers (1992, 1977) se aproxima dela ao reco-
88, tradução nossa). nhecer como hipótese central a noção de que
Rogers (1978), todavia, criticou a terapia de o indivíduo possui uma capacidade latente
Rank, devido a seus critérios não serem passí- para compreender os aspectos de si mesmo. O
veis de investigação científica e pelo seu suces- indivíduo tem, potencialmente, recursos para
so estar mais relacionado à sustentação de um desenvolver um direcionamento à autorreali-
ponto de vista relacional que não estabelece zação e à maturidade de um eu mais integrado
uma ordem do processo psicoterápico e me- com as suas experiências organísmicas, auto-
dição dos seus resultados. DeCarvalho (1999) conceitos e valores próprios. Para DeRobertis
acrescenta as seguintes diferenças entre Rogers (2006), Horney tem concepção semelhante a
e Rank: o uso de terminologia psicanalítica no respeito do eu, uma vez que, para a aludida
trabalho de Rank, como a importância da re- autora, o eu se move em direção ao crescimen-
lação mãe-bebê e o trauma do nascimento, é to – concepção muito cara à de autorrealização
ausente na obra de Rogers; a noção de cresci- postulada pela Psicologia Humanista. Para
mento em Rank ainda se ancora num quadro Paris (1998), a ênfase que Horney dá à self-
psicanalítico de organização da personalidade, -realization tendency (tendência à autorrealiza-
enquanto Rogers a simplifica, apresentando-a ção ou atualizante – a depender da tradução
como autorrealização; finalmente, ao contrário brasileira) como fonte de valores saudáveis e
de Rank, Rogers explicitou minuciosamente as meta de vida a torna uma das fundadoras da
condições para uma relação terapêutica efetiva. Psicologia Humanista. Em outro trabalho, Pa-
Kirschenbaum (2007) ainda menciona que, ris (1999) aproxima Maslow, expoente da Psi-
embora Rank condenasse as técnicas de instru- cologia Humanista, e Horney quanto à aposta
ção e interpretação, muitas passagens de sua na self-actualization mesmo diante de eventuais
obra trazem uma forte carga interpretativa. dificuldades encontradas no cotidiano.
Kirschenbaum acredita que isso se justifica na Nota-se que a teoria da personalidade e do
medida em que “[...] enquanto está proibido comportamento de Rogers (1992) baseia-se na
de interpretar o significado do conteúdo pas- relação do eu real e do eu ideal com as autor-
sado do paciente [...] é possível interpretá-lo regulações do organismo e a autorrealização
segundo o significado do seu comportamento da personalidade. Conforme expressa o autor,
presente na relação terapêutica” (p. 87, tradu-
ção nossa). Definitivamente, esta não é uma [...] a noção do ‘eu’ – elemento importante a nos-
característica da qual Rogers se apropriou na sa teoria – não é um ‘agente especializado’ que
construção de seu pensamento. funcionaria em conjunção com a tendência atua-
No que concerne à teoria de Karen Horney, lizante. O ‘eu’ nada faz; representa simplesmente
é interessante notar como Rogers (1977) a ela uma expressão de tendência geral do organismo
para funcionar de maneira a se preservar e se va-
se assemelha pela noção de condições de valia
lorizar (Rogers, 1992, p. 160).
(valores). Quando um indivíduo se ajusta em
favor das condições de valores que lhe foram [...] Considerando-se que a tendência atualizante
impostas, pode desenvolver estratégias para rege todo o organismo, ela se exprime igualmente
pleitear uma não perda de amor, mesmo que no setor da experiência que corresponde à estru-
para isso tenha que assumir um eu ideal (Hall tura do ‘eu’ – estrutura que se desenvolve à me-
et al., 2000; Paris, 1999). dida que o organismo se diferencia. Quando há
Segundo DeRobertis (2006), tanto Rogers acordo entre o ‘eu’ e o ‘organismo’, isto é, entre
quanto Horney elaboraram concepções de a experiência do ‘eu’ e a experiência do organis-
mo’, na sua totalidade, a tendência atualizante
desenvolvimento a partir do mesmo método:
funciona de maneira relativamente unificada. Ao
“[...] um estilo de coleta de dados retrospecti- contrário, se existe conflito entre os dados expe-
vo, baseado em casos, significando que cada rienciais relativos ao ‘eu’ e os relativos ao ‘orga-
um deles revela temas do desenvolvimento nismo’, a tendência à atualização do organismo
infantil por meio da reconstrução das infân- pode ser contrária à tendência à atualização do
cias de seus pacientes” (p. 178, tradução nos- ‘eu’ (Rogers, 1992, p. 161).

286 Contextos Clínicos, vol. 9, n. 2, Julho-Dezembro 2016


Paulo Coelho Castelo Branco, Emanuel Meireles Vieira, Sérgio Dias Cirino, Jaqueline de Oliveira Moreira

Nessa ótica, destaca-se a influência de Hor- é mais claro e preciso – especialmente no que
ney. Convém mencionar que Rogers (1992) diz respeito ao fato de ser uma diferenciação
utiliza as noções eu real e eu ideal para fazer do organismo como um todo (Rogers, 1992).
alusões às autorregulações que o comporta- O segundo ponto de discordância entre Ro-
mento pode esboçar mediante o eu e as neces- gers e Horney, ainda de acordo com DeRobertis
sidades do organismo. Salienta-se que Esselyn (2006), diz respeito à maneira como eles reagem
Rudikoff (1954), em uma obra organizada por a relações parentais que não facilitam seu de-
Carl Rogers e Rosalind Dymond, apontou so- senvolvimento. Para Rogers, em nome da ma-
bre essa semelhança com a teoria de Horney e nutenção do amor de pessoas significativas, em
comentou que as pesquisas empíricas rogeria- relações de consideração positiva condicional, a
nas a comprovam. criança passa a adotar comportamentos rígidos,
Destarte, é possível perceber que os apor- buscando cumprir as expectativas alheias a seu
tes de uma personalidade que funciona me- respeito. Horney, por sua vez, afirma que, dian-
diante os impulsos da autorrealização e um te de tais relações, a criança pode adotar uma
ajustamento em função do eu real ou eu ideal de três possíveis formas de se relacionar com o
têm raízes em Horney. Para Horney, segundo outro: ou vai em sua direção, ou foge dele, ou
DeRobertis (2006), o eu real tem em si a po- vai contra ele. Na teoria de Horney, essa forma
tencialidade de resolver conflitos e de ser mais de relação adotada pela criança soma-se às re-
espontâneo. Rogers faz, no entanto, uma re- gras (ou aos shoulds, como a autora chama) para
leitura da teoria do eu de Horney, incluindo moldar um eu idealizado.
alguns elementos funcionalistas, como a noção Rank, Horney e Rogers, ao assumirem uma
de autorregulação. posição de destaque para a autorrealização,
Para DeRobertis (2006), as aproximações para as adaptações do eu e ao papel da cons-
entre Rogers e Horney no que se refere à teoria ciência, distanciam-se de Freud, quando de-
do eu permitem que se vislumbre uma con- fendem a ideia de que os conflitos psíquicos
cepção comum a ambos acerca do desenvolvi- advêm de determinadas condições sociais e
mento humano. Segundo esse ponto de vista, ambientais, não se limitando somente a ques-
“Individualidade é uma expressão do desejo tões de ordem sexual, pulsional e instintiva.
inerente de crescer e se desenvolver em todas Rank, Horney e Rogers reconhecem a influên-
as crianças humanas, o qual é essencialmente cia do contexto social em que o indivíduo vive,
vivido, sentido, profundamente pessoal e in- detendo-se a seus aspectos íntimos em intera-
terpessoal em vez de intelectual” (p. 189, tra- ção com os fatores que moldam e afetam a per-
dução nossa). A força que motiva o desenvolvi- sonalidade. Indica-se, pois, que as teorias dos
mento, tanto para Rogers quanto para Horney, três autores em tela, em comum, cultivam uma
é a self-actualization, mediada pela relação com visão positiva do ser humano, com suporte em
os outros, que podem ou não facilitar esse pro- suas forças interiores e criativas, bem como
cesso. Nesse sentido, o self não é uma entidade sublinham a possibilidade de o indivíduo se
fixa e individualizada, senão que se apresenta estabelecer como único e criativo ante as con-
como um processo que se atualiza no conta- dições sociais e culturais.
to com os outros (Paris, 1999). É interessante No que se verifica, é notório que Rogers se
destacar que, a despeito da nítida similitude apropriou de alguns elementos da Psicanálise
entre as concepções a respeito da constituição neofreudiana desenvolvida nos EUA. Embora
do self em Rogers e Horney, não há menções esses elementos psicanalíticos o tenham in-
específicas a influências desta sobre aquele em fluenciado na composição de certos aspectos
duas das mais relevantes biografias de Rogers de sua teoria clínica, é equivocado afigurar
(Rogers e Russel, 2002; Kirschenbaum, 2007). Rogers exclusivamente como um expoente
Conforme DeRobertis (2006), Rogers e Hor- ou representante do movimento psicanalítico
ney se diferenciam em dois aspectos princi- neofreudiano, dado que ele não o continuou.
pais. O primeiro diz respeito ao fato de que, de Em outros termos, nos EUA, as ideias psica-
acordo com o referido autor, a concepção de nalíticas eram populares em um circuito de
Horney a respeito do self é pouco precisa, ca- formação composto por associações, institutos
racterizando-se como uma força quase mística e consultórios, alheios às exigências universi-
que impulsiona a pessoa ao crescimento. Já o tárias de ciência psicológica, com as quais Ro-
entendimento de Rogers sobre o mesmo con- gers se deparou. Seja freudiana ou neofreudia-
ceito, embora não entre em choque com aque- na, em comum, as vertentes psicanalíticas de
le apresentado pela psicanalista neofreudiana, psicoterapia não dialogam com os tradicionais

Contextos Clínicos, vol. 9, n. 2, Julho-Dezembro 2016 287


Influências da Psicanálise neofreudiana na psicoterapia de Carl Rogers

ditames empíricos e experimentais de fazer eu real e eu ideal e de como essa dinâmica da


ciência, pois se resguardam a um paradigma personalidade afeta as autorrealizações do or-
próprio de produção e validação do seu co- ganismo e inspira-se nela para formular a no-
nhecimento clínico. ção de condições de valia (valores).
Rogers desenvolveu suas ideias em um Considera-se, finalmente, que a via de es-
contexto em que os psicólogos clínicos esta- tudo histórico sobre a relação de Rogers com
dunidenses pleiteavam o direito de exercer o o seu Zeitgeist psicoterapêutico estadunidense
ofício da psicoterapia, bem como o reconhe- possibilita a (re)constituição de alguns dos ele-
cimento acadêmico num contexto em que os mentos envolvidos na edificação de sua tera-
trabalhos de laboratório tinham mais prestígio pia centrada no cliente. Assinala-se que exis-
que a prática clínica (Capshew, 1999; Grogan, tem outros aspectos do mencionado Zeitgeist
2012). Naquela época, como as perspectivas possíveis de serem revisitados historicamen-
disponíveis e chanceladas de fazer psicotera- te, a saber: o contato de Rogers com a Teoria
pia eram psicanalíticas, a aproximação de Ro- Interpessoal da Psiquiatria desenvolvida por
gers com a Psicanálise foi inevitável. A terapia Harry Stack Sullivan, na década de 1950.
centrada no cliente, entretanto, dialoga com
a Psicanálise a partir de um lugar de Ciência Referências
psicológica, dado que o seu contexto univer-
sitário lhe exigia pesquisas empíricas sobre a BROZ̆ EK, J.; GUERRA, E. 1996. Que fazem os his-
clínica. Com efeito, Rogers tentou incorporar toriógrafos? Uma leitura de Josef Broz̆ ek. In: R.
elementos da psicanálise horneyana ao seu CAMPOS (org.), História da psicologia: pesquisa,
corpo de estudos sobre processos de mudança formação, ensino. São Paulo, EDUC/ANPEPP,
de personalidade em psicoterapia. Além dis- p. 11-28.
CAPSHEW, J. 1999. Psychologists on the march: Scien-
so, Rogers (1978) ressalvou a necessidade de
ce, practice, and professional identity in America,
pesquisas empíricas sobre a terapia relacional 1929-1969. New York, Cambridge University
rankiana. Press, 276 p.
Curiosamente, Rogers, em um momento https://doi.org/10.1017/CBO9780511572944
final de sua vida, abandonou o discurso aca- DECARVALHO, R. 1999. Otto Rank, the rankian
dêmico da necessidade de fundamentação circle in Philadelphia, and the origins of Carl
científica, por meio de pesquisas empíricas Rogers’ person-centered psychotherapy. Hys-
tory of Psychology, 2(2):132-148.
e experimentais, e desenvolveu sua aborda-
https://doi.org/10.1037/1093-4510.2.2.132
gem como um jeito de ser que não necessa- DEROBERTIS, E. 2006. Deriving a humanistic
riamente envolve uma formação científica theory of child development from the works of
(Rogers, 1983). Carl R. Rogers and Karen Horney. The Humanis-
tic Psychologist, 34(2):177-199.
Considerações finais https://doi.org/10.1207/s15473333thp3402_5
DUNKER, C. 2007. Aspectos históricos da psicaná-
lise neofreudiana. In: A. JACÓ-VILELA; A. FER-
O pensamento de Carl Rogers é compos- REIRA; F. PORTUGAL (orgs.), História da psi-
to por uma diversidade de influências histó- cologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro, NAU,
ricas explícitas e implícitas que merecem ser p. 387-424.
elucidadas e discutidas, dado que ele foi um EISENSTEIN, S. 1981. Otto Rank – o mito do nasci-
homem atento às contestações psicoterapêu- mento do herói. In: F. ALEXANDER; S. EISENS-
ticas que aconteciam nos EUA. Com efeito, TEIN; M. GROTJAHN (orgs.), A história da psi-
conquanto o pensamento de Rogers seja claro canálise através dos seus pioneiros: uma história da
psicanálise vista através da vida e das obras dos seus
em relação àqueles que o influenciaram, exer-
eminentes mestres, pensadores e clínicos – Volume.
citou-se um retorno ao Zeitgeist psicanalítico 1. Rio de Janeiro, Imago, p. 49-64.
estadunidense que ele contatou, de modo a ELLINGHAM, I. 2011. Carl Rogers’ fateful wrong
elucidar e refletir o que foi apropriado. O es- move in the development of Rogerian relational
tudo aponta, pois, para a síntese dos seguintes therapy: Retitling “relationship therapy” “non-
pontos de influência. -directive therapy”. Person- Centered & Experien-
Rogers se inspira em Otto Rank para ela- tial Psychotherapies, 10(3):181-197.
https://doi.org/10.1080/14779757.2011.599515
borar atitudes clínicas menos interpretativas e
EVANS, R. 1979. Carl Rogers: o homem e suas ideias.
mais compreensivas, com enfoque nos aspec- São Paulo, Martins Fontes, 196 p.
tos emocionais da relação terapêutica e aten- https://doi.org/10.1007/978-3-642-67355-9_18
ção ao seu presente imediato. Da Psicanálise FIGUEIREDO, L. 1991. Matrizes do pensamento psico-
horneyana, Rogers apropria-se das noções de lógico. Petrópolis, Vozes, 208 p.

288 Contextos Clínicos, vol. 9, n. 2, Julho-Dezembro 2016


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