Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Abstract Resumo
1 Centro de Pesquisas René The goals of this study were to identify how com- O objetivo deste trabalho é investigar como ido-
Rachou, Fundação Oswaldo
Cruz, Belo Horizonte, Brasil.
munity-dwelling elderly deal with the prospect of sos residentes na comunidade de Bambuí, Mi-
2 Prefeitura Municipal disability/functionality and to understand how the nas Gerais, Brasil, lidam com a perspectiva da
de Belo Horizonte, Belo sociocultural context modulates this process. The incapacidade/funcionalidade na velhice, bem
Horizonte, Brasil.
study adopted a qualitative approach in which como compreender de que forma o contexto so-
Correspondência the signs, meanings, and actions model was used ciocultural modula esse processo. Trata-se de
J. K. Pereira
in the data collection and analysis. The study in- abordagem qualitativa, na qual o modelo de sig-
Av. Lisboa 639,
Governador Valadares, MG terviewed 57 elders ranging from 61 to 96 years of nos, significados e ações foi utilizado na coleta e
35057-450, Brasil. age and enrolled in the six primary health units in análise dos dados. Foram entrevistados 57 idosos
josikatherine@yahoo.com.br
Bambuí, Minas Gerais State, Brazil. “To stay still or com idades entre 61 e 96 anos, cadastrados nas
not to stay still” is the underlying question in func- seis unidades básicas de saúde de Bambuí. “Fi-
tioning and disability in old age. However, staying car ou não ficar quieto” é a dúvida que subjaz
still is not a matter of individual choice, because ao processo de funcionalidade e incapacidade
the answer depends on the elder’s financial, intel- na velhice; todavia, não se trata de uma questão
lectual, and subjective resources and available so- de escolha individual, pois a resposta depende
cial support. Staying still also implies a concept of dos recursos financeiros, intelectuais, subjetivos
old age inexorably associated with disability, leav- e de apoio social disponível. Além disso, ficar
ing the elderly resigned to their condition; when quieto reflete uma concepção de velhice inexo-
difficulties increase, their only choice is to “wait for ravelmente associada à incapacidade, deixan-
death”. Health teams need to interfere in this con- do os idosos conformados com sua condição, de
cept, providing care to older people during their modo que, quando as dificuldades aumentam,
recovery and until the end of life. resta-lhes somente “esperar a morte chegar”. As
equipes de saúde precisam interferir nessa con-
Aged; Health of the Elderly; Anthropology cepção, oferecendo cuidado aos idosos na sua re-
cuperação até o fim da vida.
Esta pesquisa qualitativa foi realizada na cida- Na presente pesquisa, o modelo de “Signos, Sig-
de de Bambuí, Minas Gerais, Brasil, atualmen- nificados e Ações”, desenvolvido por Corin et
te com aproximadamente 23 mil habitantes. À al. 10, foi utilizado na coleta e análise dos dados,
semelhança do Brasil, o município passa por para permitir a sistematização dos elementos do
progressiva urbanização e acelerado envelheci- contexto que participam da construção de ma-
mento: em 1950, sua população rural represen- neiras típicas de pensar e agir diante da funcio-
tava 84% da população total, reduzindo-se para nalidade e do enfrentamento da incapacidade.
apenas 15% em 2010. Quanto ao envelhecimento, Nesse modelo, as entrevistas devem ser iniciadas
em 1960, 3,8% dos seus habitantes tinham 60 ou com perguntas que revelam ações em face do
mais anos de idade, aumentando para 15,9% em evento a ser investigado, uma vez que, diante
2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. deste, o comportamento pode explicar melhor
Dados gerais e informações estatísticas da cida- a influência dos valores socioculturais daquele
de de Bambuí. http://www.ibge.gov.br/cidadesat/ local 10.
topwindow.htm?1, acessado em 04/Out/2011). A Para reconstruir o universo de representa-
principal fonte de renda provém de atividades ções (maneiras de pensar) e comportamentos
agrícolas, pecuária e de extração mineral, porém (maneiras de agir) associados a esses processos
um terço da sua população encontra-se em es- pelos idosos residentes em Bambuí, foram rea-
tado de pobreza, sendo elegível para o Programa lizadas entrevistas no domicílio, guiadas por um
Bolsa Família 13. roteiro semiestruturado. As perguntas geradoras
No cuidado à saúde, Bambuí se destacou foram: (a) Como você acha que está sua saúde? (b)
como centro de profilaxia contra a doença de Para você, o que é uma saúde boa? E saúde ruim?
Chagas com o Posto Avançado de Estudos Em- (c) Como é o seu dia a dia, sua rotina? Como é
manuel Dias. A rede pública de assistência à um dia em sua vida? (d) Qual(ais) o(s) conselho(s)
saúde da cidade conta com seis unidades bá- você daria para chegar à sua idade com boa saú-
sicas de saúde (UBS), com suas respectivas de? As primeiras perguntas foram direcionadas
equipes, que integram a Estratégia Saúde da às questões de saúde e doença porque o cons-
Família (ESF); um centro de saúde; um Núcleo truto funcionalidade-incapacidade é parte da
de Apoio à Saúde da Família (NASF); dois hospi- percepção de saúde dos idosos acerca do proces-
tais, um municipal e outro estadual. Inexistem so saúde-doença, conforme verificado em outra
instituições de longa permanência para idosos pesquisa antropológica realizada nessa mesma
(Prefeitura Municipal de Bambuí. http://www. localidade 15.
bambui.mg.gov.br/portal/htdocs/modules/ Com base nas respostas obtidas, outras per-
mastop_publish/?tac+Dados_gerais, acessado guntas foram feitas abordando o contexto biopsi-
em 04/Out/2011). cossocial, os recursos, as dimensões relacionadas
Solicitou-se que cada equipe de saúde das à funcionalidade e o impacto da incapacidade.
seis UBS indicasse pessoas idosas que apresen- As entrevistas foram gravadas para possibilitar
tassem diferentes níveis funcionais: nenhuma, a análise mais cuidadosa e detalhada dos dados.
alguma ou completa dificuldade para realizar
atividades rotineiras. Os participantes do estu- Análise dos dados
do, todos com idade mínima de 60 anos e em
condições de responder a perguntas, residiam Primeiramente, as entrevistas foram transcritas e
na sede do município, estando cadastrados em lidas várias vezes. Nesse momento, algumas fra-
UBS da cidade. Os critérios de inclusão visaram a ses, palavras, adjetivos, concatenação de idéias,
garantir a heterogeneidade dos participantes e a sentido geral do texto, foram destacados. O pro-
multivocalidade, segundo o território da UBS, o cesso de análise buscou identificar os sistemas
gênero, a idade e a condição funcional. O critério de signos, significados e ações, ou seja: (a) os
de saturação regulou o número de entrevistas 14. diferentes tipos de signos associados aos fenô-
Este trabalho integra o projeto Abordagem menos investigados – velhice, funcionalidade e
Antropológica da Dinâmica da Funcionalidade incapacidade funcional – e ao cuidado à saúde;
em Idosos, aprovado pelo Comitê de Ética do (b) as explicações privilegiadas em face desses
Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação signos; (c) as reações e ações que eles desenca-
Oswaldo Cruz (CAAE: 0028.0.245.000-9). As en- deiam 12. Posteriormente, as articulações entre
trevistas foram realizadas mediante consenti- os sistemas de signos, significados e ações foram
mento livre e esclarecido dos idosos. examinadas, avaliando-se os diferentes elemen-
tos do contexto pessoal, social e cultural acer-
ca da construção e evolução das reações e dos
uma doença progressiva e incapacitante, na qual sujeito, muitas vezes, é o único modo possível de
a perda não é apenas um conceito abstrato, mas sobrevivência dentro de determinado contexto
uma realidade: o corpo e a vida mudaram, uns social 22. Essa responsabilização do idoso por sua
pararam de trabalhar, outros de cozinhar, outros própria vida encontra-se bastante difundida en-
ainda de se divertir, visitar amigos e familiares. A tre os profissionais da saúde e desresponsabiliza
entrevistada com maior idade do grupo narra seu outros atores, como a família, a sociedade e o po-
momento de vida: “Muita idade... Não dou conta der público, fenômeno que Debert 23 denominou
mais, quietei mesmo... na minha saúde, eu fica- “reprivatização da velhice”.
va sozinha, trabalhava sozinha... foi acabando e No grupo pesquisado, as pessoas idosas se
acho que ficou desse jeito” (M16, 96 anos, viúva). consideravam responsáveis pela sua condição de
Essa visão fatalista da velhice aparece ainda vida, de trabalho, e pelos resultados disso na ve-
mais forte entre aqueles que foram menos fa- lhice. É o que pode ser observado no relato abai-
vorecidos do ponto de vista socioeconômico ao xo: “Eu fiquei nas condições que eu tô aqui agora
longo de toda a vida e continuam a sê-lo na ve- por ignorância minha mesmo. No tempo que eu
lhice. Uma mulher refere-se ao tempo de infân- era novo, tinha saúde, graças a Deus, o peso que
cia: “(...) Aqui, os pobres que nem eu, andava na era pra dois eu queria pegar sozinho e muitas das
rua pedindo. (...) a gente não podia comprar nem vezes eu peguei” (H7, 84 anos, casado).
1kg de carne para comer, mas a gente tinha saúde, Na contemporaneidade, de acordo com Gi-
tava boa. Vestia uma roupa usada que os outros ddens 24, a noção de estilo de vida é crucial para
davam, mas não tava sentindo nada. Agora, hoje, compreender o momento da velhice, pois a re-
você pode ter tudo, mas tá doente, não adianta produção social de uma forma de viver e pensar
não” (M24, 86 anos, viúva). se faz por meio dos processos de vigilância soma-
Nesse contexto, cabe discutir o que seria es- dos à reflexividade, e quem não faz parte desse
colha individual sobre a vida e o que, ao longo sistema de reprodução social torna-se alheio e
desta, reflete falta de opções. van Kampen et al. 20, isolado. Portanto, a velhice e a loucura são exem-
em artigo de revisão, buscaram elucidar a rela- plos de condições que, segundo o pensamento
ção entre incapacidade funcional e pobreza, po- moderno, teriam sido criadas pelo próprio indi-
rém, se a incapacidade conduz à pobreza, sofre víduo. Entretanto, como as condições de vida de-
influência da cultura e depende fortemente dos pendem das possibilidades de acesso e aquisição
valores sociais existentes na sociedade estuda- de recursos, esses modelos lineares de causalida-
da. Pessoas com alguma dificuldade, ao serem de merecem ser questionados 24.
consideradas incapazes e sofrerem algum tipo de Outro homem mostra-se resignado diante de
estigma, podem ser mais vulneráveis à pobreza. “uma vida cheia de sofrimentos e peripécias”: “Eu
Outra possível relação entre incapacidade e po- costumo falar o seguinte, é, o Brasil é campeão em
breza seria esta última como causa da dificulda- muita coisa: futebol, carnaval e acidente de traba-
de. Mais uma explicação plausível poderia ser a lho. Eu também, eu ajudei a conquistar a taça des-
existência de possíveis barreiras físicas que refor- te triste campeonato. Quando tinha 14 anos, eu
çariam a incapacidade. Nesse caso, a pobreza di- fui acidentado no trabalho, perdi o braço esquer-
ficultaria o acesso à alimentação, aos serviços de do, fui amputado e agora é, é, é uma vida cheia
saúde, ao transporte, à mobilidade dentro e fora de sofrimentos, de peripécias. Eu tinha 14 anos,
de casa, quadro que pode piorar a condição das fui aprender a trabalhar com uma mão só, agora,
doenças e favorecer o aparecimento da incapaci- depois de setenta e tantos anos, veio o AVC e me
dade, resultando em mais pobreza, mais estigma, pegou o lado direito, o lado bom [risos] (…) ...mas
que, por sua vez, levariam a mais incapacidade. eu tô aí, não posso me queixar não. Se eu perdi...
Para quebrar esse círculo vicioso, seria necessá- porque eu tenho mais que agradecer a Deus de eu
rio, além de conhecer os fatores determinantes já viver mais de que a média brasileira, apesar da
e agravantes da incapacidade, reduzir o estigma, luta difícil na vida. Porque eu sou de origem mui-
coibir as práticas discriminatórias e fortalecer o to difícil na vida” (H49, 77 anos, casado).
empowerment dos indivíduos com dificuldades. Boltanski 25, ao estudar a “cultura somática”
Ou seja, as intervenções deverão operar na dire- nas diferentes classes de trabalhadores, eviden-
ção dos direitos humanos e na compreensão da ciou que o nível de instrução média de um grupo
incapacidade como um fenômeno sociocultural, influencia na forma como este presta atenção ao
e não apenas como uma fatalidade biológica 7,20. próprio corpo. À medida que se sobe na hierar-
O modelo biomédico apregoa que quem cui- quia social e no nível de instrução formal, de-
da da saúde, pratica exercícios, alimenta-se bem cresce o trabalho físico exaustivo e aumenta o in-
e consulta regularmente um médico tem maior telectual. Dessa forma, é possível manter-se uma
chance de viver mais e melhor 21. No entanto, es- relação mais consciente com o corpo, uma vez
se modelo parece ignorar que o “estilo de vida” do que trabalhos extenuantes fisicamente dificul-
tam a comunicação entre o sujeito e seu corpo. não ficar quieto” indicam que as maneiras de agir
Além disso, caso sinta algo, terá de interromper diante da incapacidade não são apenas escolhas,
a atividade, o que faz o trabalhador ter medo de mas se relacionam ao cuidado à saúde e ao con-
perder seu meio de sobrevivência. Por sua vez, ao texto sociocultural, como se verá a seguir.
trabalhar de modo insalubre, sofre acidentes, do-
enças profissionais e outros agravos, que podem • “Velho não pode parar”
comprometer as condições de vida na velhice.
Ao discutir a questão do curso da vida na Considerando-se cada UBS separadamente, ve-
contemporaneidade, Debert 26 problematiza a rificou-se que, naquela em que era atendida a
questão da liberdade de escolha e enfatiza que, população com melhores condições socioeconô-
embora o curso de vida seja uma construção so- micas, os idosos, inclusive aqueles que relatavam
cial e cultural, não se trata de algo que o homem doenças incapacitantes, apresentavam-se com
possa fazer e refazer, como se não houvesse limi- discurso mais positivo e menos queixoso em re-
tes – impostos pela sociedade à qual pertence – à lação à velhice, segundo o qual “velho não pode
sua criatividade e à sua capacidade de inscrever a parar”. Portadora de retinose pigmentar, doença
cultura na natureza. Para Debert 26, é necessário responsável pela cegueira total de um olho e par-
reconhecer que, se a responsabilidade individu- cial do outro, uma idosa de maior poder aquisi-
al pela escolha é democraticamente distribuída, tivo, que administrava sua própria construtora
os meios para agir em conformidade com essa de imóveis, não se mostrava preocupada com
responsabilidade não o são. Caso contrário, o eventuais barreiras físicas, nem se queixava de
descaso de alguns setores do poder público e da problemas de saúde; sentia-se privilegiada por
sociedade pareceria justificado ante idosos que sua vida e, apesar de morar sozinha, contava com
enfrentam o declínio inevitável do corpo, que apoio de familiares e de vizinhos: “...minha saúde
não responde às vontades individuais, por serem eu acredito que é boa, entendeu. Também não fico
os velhos considerados consumidores falhos. De parada... Porque a única coisa ruim que eu acre-
modo similar, aqueles cujo corpo é compreendi- dito que eu tenho é só a visão. Também Deus não
do como resultado de transgressões também não pode dar tudo pra uma pessoa só... Minhas filhas
teriam direito à piedade 24. Segundo Bauman 27, são todas boazinhas comigo... Qualquer coisa que
a liberdade de escolha é uma condição gradua- acontecer a gente se vira... a gente já guarda as
da, que, somada à desigualdade das condições reservas [dinheiro] da gente pra isso...” (M44, 69
sociais e ao dever da liberdade sem os recursos anos, divorciada).
que permitam uma escolha mais livre, parece ser Os idosos desta UBS tinham maior poder
a fórmula exata para uma vida sem dignidade, aquisitivo, maior nível de escolaridade próprio
carregada de humilhação e autodepreciação. ou de familiares e contavam com cuidadores, pla-
Logo, para que os idosos entrevistados mu- nos privados de saúde, pouco utilizando os servi-
dem a concepção cultural da velhice como uma ços de saúde pública. Concepção semelhante foi
fase negativa para uma que possa trazer recom- observada nos demais territórios, entre pessoas
pensas 28, eles terão de vislumbrar novas for- mais novas, com pouca ou nenhuma dificulda-
mas de viver esse momento. Para isso, devem de nas funções diárias, maiores recursos finan-
ser-lhes oferecidas condições para enfrentar as ceiros, intelectuais e/ou apoio social. Um idoso
dificuldades e minimizar as perdas que marcam bambuiense, que trabalhou como bancário em
a forma como eles conhecem a velhice e se re- Belo Horizonte e retornou para Bambuí na sua
conhecem nela. aposentadoria, declara-se adaptado à nova fase:
“Aí morando aqui, com o tempo a gente aprendeu
• “Ficar ou não ficar quieto” a viver com o que tinha aqui (...) Tenho bastante
amigo. Nós temos movimento de igreja. Eu, por
Tendo como pano de fundo essa perspectiva da exemplo, pertenço ao encontro de casais da igre-
velhice como tragédia, observa-se uma dualida- ja, eu sou Vicentino, então tem muita atividade.
de, quase hamletiana em face do processo fun- Eu sou aposentado, mas eu não tenho tempo pra
cionalidade-incapacidade. Emergiram da análi- nada (...) Eu pesco, eu sou criador de pássaro regis-
se duas maneiras, em princípio antagônicas, de trado no IBAMA (...) Comigo não tem esse negócio
lidar com a incapacidade, refletidas na categoria: de ociosidade... Tenho nada não [problemas de
“ficar ou não ficar quieto”. Os signos “não pode saúde]” (H18, 65 anos, casado).
parar”, “não fico parado”, “não pode quietar” e Sendo assim, a maneira de lidar com a velhice
“movimentar” aparecem em contraposição a e a funcionalidade, de acordo com os achados
“velho fica mais quieto”, “parei de fazer”, “esperar deste trabalho, pode variar conforme a dispo-
Deus”, “tenho de esperar, não posso me matar”. nibilidade de recursos financeiros, intelectuais,
Contudo, as ações referentes à questão “ficar ou subjetivos e ou de apoio social, os quais parecem
mediar a forma como idosos experimentam a até Ele [Deus] me levar. Vontade de ir para o céu...
velhice com ou sem limitações. Possivelmente, Criei duas [filhas] e nenhuma está aqui...” (M34,
outras condições, como as questões psicológicas, 81 anos, viúva).
também interfiram no modo como essas pessoas A segunda idosa, tendo sofrido “derrame” e
constroem a subjetivação desses eventos de vida interrompido o tratamento fisioterapêutico por
e as suas velhices 16. dificuldades de transporte até a clínica conve-
niada com a prefeitura, explica: “...mas fazer o
• “Velho fica mais quieto” quê, eu não posso me matar... tenho que esperar
Deus... consulto diariamente porque não sara,
Nos territórios de maior risco sociossanitário, mas a gente fica naquela fé que vai sarar, mas o
os idosos têm discurso mais negativo acerca de médico ótimo me desanimou que isso é idade, que
suas vidas e da velhice, principalmente aqueles eu tenho que aceitar... Meu filho mora longe, quer
de maior faixa etária, mais adoentados, mais de- que eu vou morar lá, mas não posso, aqui é minha
pendentes dos serviços públicos, com maiores casa...” (M24, 86 anos, viúva).
dificuldades diárias e menos recursos disponí- Observa-se, assim, que, no caso dos entrevis-
veis – financeiros, intelectuais, subjetivos e de tados mais incapacitados, a desistência da vida
apoio social. Para estes entrevistados, a maneira vinha acompanhada da percepção da ausência
de lidar com a funcionalidade é oposta a “velho de apoio social, principalmente da família, único
não pode parar”, sendo representada pelo signo recurso reconhecido pelos idosos: “Que minha
“velho fica mais quieto”, que externa certo con- família mora tudo longe né. Aqui no Bambuí,
formismo com as limitações que surgiram com o só eu... Eu sou igual filhote de perdiz, sou só eu”
aumento da idade, como afirma este homem: “A (M13, 69 anos, união estável).
idade bota as coisas tudo mais custoso pra gente Novamente, a questão da velhice com difi-
né... o peso da idade... É muita coisa que a gente culdades e sem apoio é o que permeia essa ma-
vai deixando... Então, mas também não tem [ou- neira de agir dos idosos entrevistados. Se antes,
tro jeito], como diz o outro, tô conformado” (H30, para eles, a velhice era vivida e percebida como
76 anos, solteiro). perdas, agora ela também é vivida diariamente
A mesma concepção de que não há nada a fa- diante da perspectiva da morte, constructos as-
zer, a não ser aquietar-se e se conformar, é trans- sociados no imaginário social 17,29. Não se pode
mitida a um idoso ao procurar o profissional de negar que os idosos morrem, mas também não
saúde: “(...) [o médico] só falou comigo assim: ‘o se pode negar que as crianças morrem, os jovens
senhor não preocupa muito não, caça um jeito morrem, os adultos morrem, pois a morte não
de ficar mais despreocupado, repouso, isso maior é uma condição da velhice, é uma condição da
que você sente agora é idade. Essa idade da gente vida 19. Porém, a morte do indivíduo não se limita
aparece uma coisinha aqui, aparece outra por lá, à morte biológica, existe a morte social, que ocor-
o senhor não tem que preocupar, não’” (H7, 84 re quando ele não se reconhece como a mesma
anos, casado). pessoa, por não conseguir executar as ativida-
Contudo, esta concepção revela-se uma faca des que fazia anteriormente, podendo afetar to-
de dois gumes: por um lado, aquietar-se pode- da a dinâmica familiar 18. Ademais, a morte dos
ria favorecer a resiliência de pessoas com limita- vínculos sociais precede a morte física e, nesse
ções; por outro, mostra-se uma estratégia inefi- momento, a religião, a fé e Deus aparecem para
caz e contraproducente de cuidado 2, a qual, pos- esses indivíduos como âncoras a que se agarram
sivelmente, torná-los-á ainda mais dependentes quando a vida pouco parece ter para lhes ofere-
e desamparados no futuro. cer 30. Nesse contexto, “ficar ou não ficar quieto”
Portanto, com o agravamento da condição de e “esperar Deus” podem não ser escolhas indivi-
saúde e da incapacidade, quando as dificulda- duais, mas o resultado concreto do investimento
des aumentam a ponto de lhes impedir uma vida familiar e coletivo – ou da falta dele – tanto na
digna e independente, os idosos que ficam mais possibilidade de melhora das pessoas idosas com
quietos desenvolvem uma segunda forma de incapacidade, quanto na velhice digna.
pensar e agir: “esperar Deus” ou “esperar a morte
chegar”. Nesse momento, viver perde o sentido e
nada mais há a fazer, como ilustram os dois rela- Considerações finais
tos a seguir. No primeiro, uma idosa restrita ao
leito por obesidade mórbida, cujo único gesto A velhice é uma experiência inédita para cada
independente é abrir e fechar uma janela com indivíduo, com dimensões simbólicas, sociais e
uma bengala, necessitando de cuidados para to- culturais. Acreditar que todos poderão viver da
das as atividades cotidianas, sem filhos morando mesma forma é deixar de compreender que a
na cidade, admite: “Tem de dar conta de aguentar velhice, em seu processo, apresenta inúmeras
formas de ser vivida, dependendo dos caminhos dição pior. A presença dos profissionais da ESF
escolhidos e dos determinantes desse envelheci- e do NASF pode ser um alento, mas ainda não
mento. Entretanto, percebe-se que, em Bambuí, foi reconhecida pelos entrevistados. Para aqueles
os fatores que medeiam as várias formas de vi- que já experimentam a incapacidade com de-
ver a velhice com ou sem saúde e com ou sem pendência, urge a implementação de políticas
dificuldades nas funções diárias são os recursos públicas que ampliem a possibilidade de apoio à
financeiros, intelectuais, subjetivos e sociais. Pa- família, pela sociedade e pelos serviços públicos
ra idosos com mais recursos, a incapacidade e sociais e de saúde, que os alcancem onde estive-
a velhice não são condições vividas necessaria- rem, no domicílio, em hospitais ou instituições.
mente com sofrimento e desesperança. Para os Essa concepção cultural, que vê a incapa-
demais, a velhice com dificuldades nas ativida- cidade funcional como condição inexorável da
des diárias vem acompanhada de conformismo e velhice e responsabilidade exclusiva de quem a
da concepção de ser uma fase associada a perdas, vivencia, desresponsabiliza o Estado e a socieda-
a restrições e à morte. de de seu dever constitucional e ético de amparar
A concepção cultural vigente considera que pessoas idosas em situação de vulnerabilidade.
deixar de fazer algo ao envelhecer é normal. Des- Ainda que os resultados não permitam genera-
sa forma, os serviços públicos sociais e de saú- lização, compreender a percepção dos próprios
de não devem esperar que os idosos demandem idosos acerca da dimensão funcional da saúde é
cuidados para uma incapacidade, pois, na visão parte de um cuidado mais humanizado e efetivo
daqueles, não haveria recursos ou tratamento dessa população. Afinal, a avaliação da funciona-
para suas limitações: “isso é coisa da idade”. Em lidade e a reabilitação da incapacidade funcional
adição, os idosos se ressentem da falta de inter- devem ser parte do cuidado de pessoas de todas
venção proativa e efetiva de políticas públicas as idades, sendo incluídas no cotidiano dos pro-
inclusivas, para que não evoluam para uma con- fissionais de saúde.
Resumen Colaboradores
El objetivo de este trabajo es investigar cómo los ancia- J. K. Pereira, K. C. Giacomin e J. O. A. Firmo contribuí-
nos residentes en la comunidad se ocupan de la pers- ram na redação e revisão do artigo.
pectiva de la funcionalidad/discapacidad en la vejez,
así como entender de qué forma el contexto sociocultu-
ral modula este proceso. Se trata de un abordaje cua- Agradecimentos
litativo, en el cual el modelo de signos, significados y
acciones se utilizó en la reunión y análisis de los datos. Ao Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswal-
Se entrevistaron a 57 ancianos con edades entre 61 y 96 do Cruz, à FAPEMIG e aos idosos que participaram
años, registrados en las Unidades Básicas de Salud en da pesquisa.
Bambuí, Minas Gerais, Brasil. “Moverse o no moverse”
es la cuestión que subyace a la movilidad y discapaci-
dad en el proceso de la vejez. Sin embargo, no es una
cuestión de elección individual, porque la respuesta
depende de los recursos de apoyo financiero, intelec-
tuales, subjetivos y sociales disponibles. Además, no
moverse (estarse quieto) refleja una concepción de la
vejez inexorablemente asociada a la discapacidad, que
deja a las personas de edad conformándose con su con-
dición física y cuando las dificultades aumentan, ellos
sólo “esperan la llegada de la muerte”. Los equipos de
salud tienen que intervenir para prevenir esta concep-
ción sobre la condición física en la tercera edad.
Referências
1. House JS. Understanding social factors and in- 16. Beauvoir S. A velhice. 3a Ed. Rio de Janeiro: Nova
equalities in health: 20th century progress and Fronteira; 1990.
21st century prospects. J Health Soc Behav 2002; 17. Le Breton D. Antropologia do corpo e modernida-
43:125-42. de. Petrópolis: Editora Vozes; 2011.
2. Vincent C, Deaudelin I, Robichaud L, Rousseau J, 18. Barros MML. Trajetória dos estudos da velhice
Viscogliosi C, Talbot LR, et al. Rehabilitation needs no Brasil. Sociologia, Problemas e Práticas 2006;
for older adults with stroke living at home: percep- 52:109-32.
tions of four populations. BMC Geriatr 2007; 7:20. 19. Garcia MAA, Odoni APC, Souza CS, Frigerio RM,
3. Kleiman A. Patients and healers in the context of Merlin SS. Idosos em cena: falas fazer adoecer. In-
culture. An exploration of borderland between an- terface Comun Saúde Educ 2005; 9:537-52.
thropology and psychiatry. Berkeley/Los Angeles: 20. van Kampen M, van Zijverden IM, Emmett T. Re-
University of California Press; 1980. flections on poverty and disability: a review of lit-
4. Eisenberg L. Disease and illness: distinctions be- erature. Asia Pacific Disability Rehabilitation Jour-
tween professional and popular ideas of sickness. nal 2008; 19:19-37.
Cult Med Psychiatry 1977; 1:9-23. 21. Nelson ME, Blair SN, Duncan PW, Judge JO, King
5. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Ja- AC, Macera CA, et al. Physical activity and pub-
neiro: Editora Guanabara Koogan; 1989. lic health in older adults: recommendation from
6. Uchôa E. Contribuições da antropologia para uma the American College of Sports Medicine and the
abordagem das questões relativas à saúde do ido- American Heart Association. Med Sci Sports Exerc
so. Cad Saúde Pública 2003; 19:849-53. 2007; 39:1435-45.
7. Diniz D, Barbosa L, Santos WR. Deficiência, direi- 22. Castiel LD. Quem vive mais morre menos? Estilos
tos humanos, justiça. SUR - Revista Internacional de risco e promoção de saúde. In: Bagrichevsky M,
de Direitos Humanos 2009; 6:65-77. Palma A, Estevão A, organizadores. A saúde em de-
8. Barnes C. Disability activism and the price of suc- bate na educação física. Blumenau: Edibes; 2003.
cess: a British experience. Intersticios: Revista So- p. 79-98.
ciológica de Pensamiento Crítico 2007; 1:1-15. 23. Debert GG. A reinvenção da velhice: socialização
9. Caprara A. Uma abordagem hermenêutica da re- e processos de reprivatização do envelhecimento.
lação saúde-doença. Cad Saúde Pública 2003; São Paulo: Edusp; 1999.
19:923-31. 24. Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Ja-
10. Corin E, Uchoa E, Bibeau G, Kouma-Re B. Articula- neiro: Jorge Zahar Editores; 2002.
tion et variations des systèmes de signes, de sens 25. Boltanski L. As classes sociais e o corpo. 3a Ed. São
et d’actions. Psychopathologie Africaine 1992; Paulo: Editora Paz e Terra; 2004.
24:183-204. 26. Debert GG. A dissolução da vida adulta e a juven-
11. Corin E. The culture frame: context and meaning tude como valor. Horizontes Antropológicos 2010;
in the construction of health. In: Amick BC, Levine 34:49-70.
S, Tarlov AR, Walsh DC, editors. Society and health. 27. Bauman Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio
Oxford: Oxford University Press; 1995. p. 272-304. de Janeiro: Jorge Zahar Editores; 1998.
12. Uchôa E, Vidal JM. Antropologia médica: elemen- 28. Guerra ACLC, Caldas CP. Dificuldades e recom-
tos conceituais e metodológicos para uma abor- pensas no processo de envelhecimento: a percep-
dagem da saúde e da doença. Cad Saúde Pública ção do sujeito idoso. Ciênc Saúde Coletiva 2010;
1994; 10:497-504. 15:2931-40.
13. Rios DFF, Pinto NMA, Loreto MDS, Fiúza ALC. O 29. Guimarães I, Carneiro MHS. Envelhecimento e fi-
programa bolsa-família em um contexto de cida- nitude: qual a representação da morte? Estud In-
des rurais: o caso de Bambuí, MG. Oikos: Revista terdiscip Envelhec 2012; 17:7-18.
Brasileira de Economia Doméstica 2011; 22:150- 30. Santos WJ, Firmo JOA, Giacomin KC, Pereira JK.
70. O enfrentamento da incapacidade funcional por
14. Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, idosos da comunidade de Bambuí: crença reli-
Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas giosa e descrença nos serviços públicos de saúde.
qualitativas: proposta de procedimentos para Ciênc Saúde Coletiva 2013; 18:2319-28.
constatar saturação teórica. Cad Saúde Pública
2011; 27:389-94. Recebido em 23/Mar/2014
15. Fonseca MGUP, Firmo JOA, Loyola Filho AI, Uchôa Versão final reapresentada em 04/Dez/2014
E. Role of autonomy in self-assessment of health Aprovado em 05/Fev/2015
by the elderly. Rev Saúde Pública 2010; 44:159-65.