PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos
“anormais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, p.11-20, abr. 2011.
As diferenças sexuais, para além de uma definição do ser em categorias,
abrange o aspecto político: de identidade, de controle, da subjetivação, do corpo, do normativo, pelo capitalismo. Em sua ampla complexidade, é preenchida por uma variação de significados e sentidos, uma espécie de quebra cabeças, que juntas estipulam o que um sujeito de fato é, mesmo que na ausência de algumas peças, definindo-se assim a base do controle dos sujeitos. Para além dessa contextualização a teoria queer se abrange, para um “fora” da simples definição. Os corpos são amontoados. A ação política sobre esses corpos, perde seu efetivo controle. A multiplicidade é a voz que desterriorializa o simples domínio do normal.
Foucault, nos explicita a partir do poder disciplinar, da biopolítica, como a
passagem dessa configuração se altera, a partir de um império sexual de normalização, de uma relação de controle com o corpo, sobre o conjunto de indivíduos, sobre a população. O discurso sobre o sexo passa a não se relacionar mais somente a prática sexual, como também a uma ação política, de embate ao que o capitalismo impõe, com sua lógica de mercado e de subjetivação. Assim, um dos objetivos da teoria queer seria confundir essa lógica capitalista de controle, fugindo as normas, as formas de poder, criando uma pluralidade de identidades “anormais”, de tal modo que seria impossível fechá- las em conceitos, dadas as mudanças constantes, dado o intenso movimento de alteração. Os sujeitos, portanto, não respeitariam uma definição estipulada pela lógica de controle, mas seriam múltiplos, multidões queer, “confusas” demais para sistema as encaixarem em moldes afim de as submeter as lógicas do capitalismo.
A partir desse panorama, a teoria política queer procura acima de tudo o
combate ao viés normal e anormal, englobando assim as multidões, em um panorama de diferenciações, não de rivalidade, ou de criação de um critério normativo superior a outro dito não normal, mas de multiplicidade. Logo, não focaliza na relação das políticas feministas de identidade do homem e da mulher, pois o conceito de multidão queer se opõe a estrutura em que se há diferença sexual assim como também ou de práticas dualistas da sexualidade (homossexual, heterossexual). Na teoria queer ambos se coadunam e se transversalizam afim de não se privilegiar as diferenças, afim de resistirem as normais de modo político, em um cenário de homens sem pênis, de mulheres com barba ou mulheres sem vagina, etc.
A política capitalista por outro lado, se aproveita das categorizações para
cada vez mais se alimentar das individualidades e da subjetividade, aperfeiçoando seus modos de controle, se aproximando desses públicos. O princípio da normalidade cria os “anormais”, alimentados pelo discurso do capitalismo a procurarem incessantemente a busca pelos padrões normativos estabelecidos, que nem todos possuem acesso. A norma gera, portanto, uma deficiência no indivíduo e o capitalismo se apropria desse outro. A circulação de fluxos de silicone, hormônio, técnicas cirúrgicas, etc, se torna, nesse ponto, um papel de normalização.
A sexopolítica é assim, além de tudo, o espaço de criação, de construção
não somente de um simples lugar de poder, de conquista, visando trabalhar as normas, ultrapassa-las. As minorias possuem como objetivo, na política queer se tornar multidões, a partir desse processo de desterritorizalização, resistindo, transgredindo essa simplicidade moral estabelecida da sexualidade,
Entretanto um desafio se impõe: como resistir a essa configuração
existente, no qual o capitalismo se alimenta, no qual se cria normas e diferenças sexuais, se a conquista de direitos dentro das políticas públicas se resumem efetivamente a esses conceitos, a essas categorizações? Quando o sistema se utiliza dessas definições para aplicar suas ações práticas, o desligamento torna- se ainda mais complexo.
PALESTRA
Julia Naomi Costa Rodrigues, graduanda em hotelaria, a partir do seu
lugar de fala como ativista social, expôs, através de seu próprio corpo como mulher trans, não só uma série de questões práticas acerca das diferenciações de gênero como também a vivencia dolorida diária de uma população que hoje no Brasil é a que mais sofre de violência no mundo a frente inclusive de países que consideram crime a pena de morte à transexualidade. Em consonância, é um dos países que mais consomem pornografia transexual no mundo.
A partir da diferenciação das múltiplas formas de expressão do ser, Julia,
buscou explicitar cada ponto de caracterização, seja das drag queens (forma mais performativa em que se interpreta um personagem de simbologia feminina em um espaço restrito de tempo), seja à mulheres e homens trans (mulheres que foram registradas como homens ao nascer; homens que foram registrados como mulheres ao nascer), seja a indivíduos não binários (que não se identifica com a binariedade de gênero – homem, mulher – podendo se identificar com ambos), ciborgues (como por exemplo mulheres com barba), etc.
Procurou também perpassar toda a questão política envolvida na busca
pela transição, da transexualidade no Brasil, a partir do cenário de apoio das instituições públicas, ao acesso hormonal, cirúrgico e psicológico, que pouco se encontra presente na realidade. Com raras instituições, com insuficientes incentivos, e uma série de restrições esse público se vê envolto e refém de métodos e medicamentos que realizam a “passagem” de sua forma corporal no meio clandestino (seja de homem para mulher, seja de mulher para homem), e portanto, muitos sofrem com os efeitos adversos do auto uso hormonal de medicamentos.
Julia, no Brasil, infelizmente ainda é exceção diante da regra. Estudante
universitária, enfrentou e enfrenta duras barreiras diárias, e luta por direitos das trans não só no Maranhão, como em partes de todo o Brasil. “Longe” da realidade da grande maioria das transexuais e travestis que se encontram na prostituição por conta do preconceito enraizado que as exclui do meio social, empregatício e consequentemente universitário, Julia em toda a sua fala, expõe a dor e o sofrimento, de vivencias suas e de pessoas da qual teve contato, muitas vezes direto. O suicídio de trans no Brasil é uma morte além da própria desistência da vida pelo sofrer, é gritada e silenciosa, provocada não só pelo preconceito e ódio, mas por toda a falta de assistência, por toda relativização do sentimento desse outro, pelo fechar dos olhos, por todo o desamparo do governo e da sociedade.
A necessidade do saber psicológico estar intrinsicamente ligada a esses
modos de sofrer, portanto, é essencial. Poder ter a possibilidade de entrar em contato não só com a pesquisa mas com os corpos ativistas e viventes, em seu lugar de fala, é para qualquer profissional, não só da psicologia, uma forma de abrir espaço para sentir, pela empatia, o que um corpo trans vivencia, afim de criar novos modos de pensar essa dor, a partir dela própria, do ser e do meio, em busca de intervenções.