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http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581997000100006
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é resgatar as reflexões sobre o tema das relações raciais de
dois sociólogos baianos radicados no Rio de Janeiro, a partir de suas trajetórias
sociais e intelectuais. Trata-se de Luiz de Aguiar Costa Pinto e Alberto Guerreiro
Ramos. A escolha desses cientistas sociais, com destacada participação no campo
das ciências sociais no Brasil entre 1945 e 1964, se deve não só à importância de
suas respectivas obras, mas, também, à polêmica que se criou entre os mesmos
em torno da questão dos intercursos étnicos.
A face mais visível do confronto teve como fórum privilegiado a grande imprensa da
época. Em um primeiro momento, a controvérsia poderia ser confundida com uma
mera questão pessoal; no entanto, uma leitura mais cuidadosa das origens sociais
e raciais dos dois intelectuais, de suas trajetórias profissionais e abordagens sobre
o tema em questão, revela que seus respectivos enfoques sobre as relações raciais,
afora importantes implicações políticas, pertenciam a dois padrões distintos de
trabalho sociológico. Nesse sentido, é importante destacar que os dois sociólogos,
de modos variados, ao lidarem com os intercursos raciais, trataram também da
mudança social e do processo de desenvolvimento do país, questões obrigatórias à
época.
TRAJETÓRIAS CRUZADAS
Após a Revolução de 30, a derrotada elite política baiana não ofuscou a presença de
importantes intelectuais baianos, ou que viviam na Bahia, como Arthur Ramos,
Jorge Amado, Édison Carneiro, Aydano Couto Ferraz, Thales de Azevedo, e de
outros que iniciavam suas carreiras como Afrânio Coutinho, Rômulo de Almeida e
Alberto Guerreiro Ramos. Eles não ficaram imunes à radicalização política dos anos
30, optando ora pela vertente comunista, ora pela católica ou integralista (Oliveira,
1995a, p. 23). Alguns deles, como Arthur Ramos, Édison Carneiro e Aydano Couto
Ferraz organizaram o 2º Congresso Afro-Brasileiro, em 1937, que se pautaria pela
ênfase nos constructos raciais, especialmente a raça negra, destacando as
características intrínsecas às raças (físicas e psíquicas), as "sobrevivências"
culturais e religiosas, os processos de aculturação.
Quanto à Faculdade Nacional de Filosofia FNFi, ela foi criada no início da ditadura
varguista sob forte influência católica e de remanescentes do integralismo. Alguns
integrantes da antiga UDF foram absorvidos pela nova estrutura, como foi o caso
de Arthur Ramos, assim como os professores franceses Jacques Lambert, de
sociologia, e André Gross, de ciência política, entre outros (Paim, 1982;
Schwartzman et alii, 1984, pp. 214-219).
Durante os anos 40 e parte dos 50, o curso de ciências sociais da FNFi esteve
essencialmente voltado para o ensino. A frágil vinculação entre ensino e pesquisa
no campo das ciências sociais no Rio de Janeiro pode ser ilustrada pelo depoimento
de Costa Pinto: "a pesquisa era uma aspiração. Nunca houve pesquisa
propriamente. O [Arthur] Ramos fazia alguma coisa, mas de uma maneira muito
individual. Era dele, não era da faculdade" (Costa Pinto, 1989, p. 14).
Em 1942, ao terminar o curso, Costa Pinto foi convidado para ser assistente de
Jacques Lambert na cadeira de sociologia. Suas afinidades profissionais com o
professor francês resultaram na publicação de dois livros:Problèmes
Démographiques Contemporains (Lambert e Costa Pinto, 1944) e Lutas de Famílias
no Brasil (Costa Pinto, 1949b), estudo monográfico sobre o poder privado no Brasil
colonial. Costa Pinto publicou, ainda, diversos artigos na revista Sociologia, da
Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, concernentes ao ensino das
ciências sociais e sobre aspectos teóricos e empíricos da pesquisa sociológica
(Costa Pinto, 1941; 1944; 1946; 1947; 1948; 1949a; 1950).
Guerreiro Ramos teve trajetória diversa. Em 1942 foi preterido tanto na cadeira de
sociologia como na de ciência política. Em seu lugar, Victor Nunes Leal tornou-se
professor-assistente de André Gross. Na sua versão dos fatos, Guerreiro Ramos
alega que seu passado integralista no contexto da Segunda Guerra Mundial e de
aproximação do Brasil das Forças Aliadas prejudicou a continuação da sua vida
acadêmica na universidade. O diretor da Faculdade, San Thiago Dantas, outro ex-
integralista, conseguiu um emprego de professor para o sociólogo baiano no
Departamento Nacional da Criança (Oliveira, 1995a, pp. 140-141).
No começo dos anos 50, com a volta de Getulio Vargas ao poder, Guerreiro Ramos,
como funcionário do DASP, foi convidado a trabalhar na assessoria econômica do
gabinete civil da Presidência da República junto com Rômulo de Almeida, Jesus
Soares Pereira e Inácio Rangel. Ao analisar esse período afirma que sua
participação no governo Vargas foi de suma importância para sua compreensão do
Brasil (Oliveira, 1995a, p.147).
Costa Pinto e Guerreiro Ramos, dois baianos que vieram para o Rio de Janeiro na
mesma corrente migratória de vários intelectuais dos anos 30: o primeiro, branco e
típico exemplo da elite baiana; o segundo, mulato e pobre, que aos poucos foi
ascendendo socialmente. Um na universidade, outro no Poder Executivo, Costa
Pinto e Guerreiro Ramos iriam se encontrar no debate sobre as relações raciais no
Brasil na década de 50.
No final de 1949, Costa Pinto foi convidado pelo seu ex-professor Arthur Ramos,
recém-empossado no cargo de diretor do Departamento de Ciências Sociais da
UNESCO, para participar de um encontro em Paris sobre a questão racial.
A primeira Declaração sobre a Raça só veio a ser publicada em maio de 1950, por
ocasião da 5ª Conferência Geral da UNESCO, em Florença. O tópico mais polêmico
da Declaração foi o questionamento radical da validade científica do conceito de
raça. A intervenção de Costa Pinto na reunião de Paris de 1949 indica, em boa
medida, as dúvidas quanto à aplicabilidade desse conceito para o entendimento das
desigualdades étnicas existentes no mundo. Suas indagações referiam-se à
natureza econômica e política dessas relações e a uma de suas mais importantes
manifestações: a discriminação racial. Para o sociólogo, raça não seria uma variável
independente na dinâmica dos conflitos étnicos, tendo íntima relação com a
dominação em uma sociedade de classes e, em escala mundial, com o poder do
imperialismo (Costa Pinto, 1950, p.17). As diversas formas de perpetuação das
disparidades sociais criariam" mecanismo[s] ideológico[s] pelo[s] qual[is] se
formam os preconceitos de raça, mesmo quando se apresentam como
etiquetas soi-disant científicas" (ibidem).
"[...] au Brèsil d'une enquête-témoin concernant les contacts entre races ou entre
les groupes éthniques, en vue de déterminer les facteurs économiques, politiques,
culturels et psychologiques favorables ou défavorables aux bonnes relations entre
ces races ou ces groupes éthniques" (UNESCO, 1950a).
A imagem positiva do Brasil no terreno das relações raciais já vinha sendo cultivada
no plano internacional desde o início do século, especialmente pelos americanos
(Hellwig, 1992; Pierson, 1945). Essas interpretações do Brasil forjadas por
brasileiros e estrangeiros reforçavam a visão do país como uma democracia racial,
especialmente nos anos 30, 40 e 50. A título de ilustração podemos citar as obras
de Gilberto Freyre (1980[1933]) e Donald Pierson (1945). Além disso, é sugestivo
pensar que depois do genocídio nazista e da manutenção de um sistema legal de
discriminação racial em países como a África do Sul e, especialmente, nos Estados
Unidos, objeto de constante comparação com o nosso país, o Brasil pudesse
oferecer "lições de civilização" ao mundo. Assim, o Brasil transformou-se em um
"laboratório racial", fornecendo o respaldo empírico necessário à luta política,
revestida de ciência, da UNESCO.
"Seria fácil encontrar por exemplo, para tais investigações, excelentes pontos de
observação no Brasil, nos Estados Unidos, na África do Sul, na União Soviética, na
Índia, no México, na Palestina e em diversas outras regiões desse tipo que Park
denominou ‘ fronteiras raciais’ o que nos permitiria observar, sempre em
ligação com as diferentes estruturas sociais, os tratamentos e as diversas soluções
encontradas para os problemas das minorias nacionais e étnicas" (Costa Pinto,
1950, p. 18).
Um outro personagem de peso a respaldar a "escolha do Brasil" foi Paulo Berredo
Carneiro, representante do Brasil junto à UNESCO, que exerceu papel político
decisivo na 5ª Conferência Geral da UNESCO em Florença. Em sua intervenção
durante o debate acerca da viabilidade do projeto, Paulo Carneiro afirmou:
"[...] it extremely important as far as certain countries in the New World were
concerned, in which there were to be found side by side native yellow peoples,
black skinned descendants of African slaves and, finally, white immigrants. He
[Paulo Carneiro] suggested that the investigation in question should be carried out
in Brazil, where the intermixture of the population was proceeding with a
remarkable absence of tensions, and where UNESCO would find a rich field for
study and could be assured of efficient help from the Brazilian authorities"
(UNESCO, 1950b).
Antes de abordar com maiores detalhes o livro de Costa Pinto, O Negro no Rio de
Janeiro: Relações de Raça numa Sociedade em Mudança, cabe apresentar a
trajetória de Guerreiro Ramos na virada da década de 40 com o objetivo de tornar
mais inteligível a polêmica ocorrida entre os dois sociólogos.
GUERREIRO RAMOS: DOS PRIMEIROS ENSAIOS SOBRE RELAÇÕES RACIAIS
À MILITÂNCIA ÉTNICA
Cabe, todavia, ressaltar que a opinião de Guerreiro Ramos sobre as ciências sociais
no Brasil sofrerá solução de continuidade a partir de seu engajamento político no
Teatro Experimental do Negro. Instituição criada no fim do regime autoritário
estadonovista, sob a liderança de Abdias Nascimento, o TEN procurou resgatar em
um novo patamar a luta política dos negros da década de 30, cuja referência mais
importante era a Frente Negra Brasileira (1931-37). No início, o TEN constituiu-se
como movimento cultural, politizando-se em seguida com a democratização do país
no pós-guerra, a luta contra o racismo em escala mundial e a eclosão dos
movimentos africanos de libertação nacional. Foi o TEN que patrocinou as
Convenções Nacionais do Negro em 1945 (São Paulo) e 1946 (Rio de Janeiro), a
Conferência Nacional do Negro em 1949 e o I Congresso do Negro Brasileiro em
1950 (ambos no Rio de Janeiro) (Nascimento, 1982, p. 103).
Guerreiro Ramos inicia sua militância afirmando que o" problema do negro" deveria
ser encarado a partir das diferenças regionais, de classe e da clivagem
rural/urbano. Ademais, aponta a existência de uma "psicologia diferencial do negro
brasileiro", advinda de um "forte ressentimento" do negro das "classes inferiores"
com relação aos negros "de elevada categoria social", que o leva a acreditar que
com o emprego de "métodos da sociologia psicodinâmica" esse fenômeno poderia
ser melhor compreendido. De sua perspectiva, o preconceito em relação ao negro
seria de cor e não de raça, o que significaria a inexistência de uma linha de castas
no Brasil. Por fim, critica a valorização das "sobrevivências africanas" por parte de
sociólogos e antropólogos, indicando que os negros estariam mais preocupados em
ascender socioculturalmente (Guerreiro Ramos, 1948a, p. 5).
Para eliminar esse suposto perigo, o TEN formaria uma intelligentsia com o objetivo
de "ganhar a confiança dos poderosos desta terra. Que eles reconheçam em nosso
movimento uma expressão de elite, um princípio de equilíbrio e de harmonia social"
(Guerreiro Ramos, 1950e, p. 50).
Vale ressaltar que o conceito de intelligentsia utilizado por Guerreiro Ramos para
representar um determinado segmento da sociedade, apesar de se inspirar
originalmente na idéia de um grupo de intelectuais "que produz e difunde idéias
que contribuam para a reforma social ou para o processo revolucionário" (Oliveira,
1995a, p. 53), é apropriado em um sentido mannheimiano, ou seja, o de um
"intérprete em geral da sociedade" (Werneck Vianna, 1994, p. 379). Por isso
mesmo, Guerreiro Ramos recusa qualquer solução do tipo" partido de negros", na
medida em que "o homem de cor, entendido como homem-massa, não estaria
habilitado às funções de mando, as quais, como é sabido, supõe uma longa
aprendizagem" (Guerreiro Ramos, 1950a, p. 38). Caberia à intelligentsia negra
promover a elevação social e sem conflitos da "massa negra".
Coerente com sua nova visão, Guerreiro Ramos apresenta, no final de 1950, sua
crítica aos trabalhos acadêmicos até então elaborados sobre o negro. Para ele,
esses estudos estariam defasados e contaminados pelo academicismo. Assim, as
investigações de natureza histórica, folclórica ou antropológica, apesar de seu valor
documental, partiam erroneamente do princípio de que o problema do negro veio a
ser resolvido com a Abolição e que caberia apenas pesquisar as" sobrevivências
africanas" como se fossem "peças de museu", em vez de elevá-las à condição de"
forças operativas".
Na primeira parte do livro, Costa Pinto delimita seu objeto de estudo dialogando
com a literatura existente sobre o tema. Lembrando os comentários de Guerreiro
Ramos, o autor, inspirado em Sérgio Buarque de Holanda, considerava que o negro
tinha sido enfocado como "espetáculo" (Costa Pinto, 1953, p. 16). Isto significava
dizer que
Costa Pinto procura demonstrar, a todo momento, a distinção entre fatores étnicos
e sociológicos na dinâmica demográfica do Rio de Janeiro. Nesse sentido, variáveis
como a fecundidade seriam influenciadas pela divisão de classes e pela relação
rural (atraso)/urbano (moderno). O deslocamento de negros e mulatos para os
grandes centros seria motivado pelo" caráter mais impessoal das relações sociais
na vida urbana [sendo] fator que contribui, ao lado dos demais, para que muitas
pessoas de cor procurem numa comunidade maior meios de ascender na escala
social" (idem, p. 53). Embora o processo de urbanização e industrialização abrisse
canais de ascensão social, Costa Pinto observa o caráter restrito da mobilidade
social, já que a migração se traduz em proletarização. Este fenômeno levaria à
identificação dos negros "com a condição e as aspirações das classes trabalhadoras,
que constituem a esmagadora maioria da população urbana deste País" (idem, p.
111).
Dessa forma, o estímulo à educação dos negros pelas elites brancas vem
acompanhado de uma certa ambigüidade: como mecanismo de ascensão social a
educação é aplaudida, mas, ao mesmo tempo, é vista como uma ameaça diante da
potencial formação de uma elite negra ansiosa por galgar posições que os brancos
não estariam desejosos de compartilhar.
Essa elite viveria o drama da ascensão e das barreiras advindas dos estereótipos.
Tal dualidade provocaria a elevação do número de negros distanciados "das massas
de cor" e que se transformariam em "porta-voz natural das angústias e das
aspirações de seu grupo étnico enquanto grupo social" (idem, p. 270). No entanto,
segundo Costa Pinto, esta nova liderança se mantém em uma redoma, na medida
em que não consegue sensibilizar as "massas de cor" que, por serem proletárias,
estariam mais identificadas com movimentos de corte classista (partidos,
sindicatos) e não étnicos (idem, p. 274).
Para dar mais sentido às suas reflexões, Costa Pinto detém-se na análise do Teatro
Experimental do Negro, que, devido "à dinâmica da tensão racial, [...] assum[e] a
envergadura de um movimento, mais que isso: de um grupo de pressão [...]"
(idem, pp. 276-277) no final da década de 40.
Vivendo o dilema entre uma "atitude de protesto contra a linha de cor que lhes
dificultava a ascensão" (idem, p. 276) e a busca da disciplina gradativa da "gente
negra nos estilos de comportamento da classe média e superior da sociedade"
(Nascimento apud Costa Pinto, 1953, p. 281), o TEN seria, em seu tempo, "a mais
legítima expressão ideológica da pequena burguesia intelectualizada e pigmentada
no Rio de Janeiro e, por sem dúvida, no país" (Costa Pinto, 1953, p. 278).
"[...] do mesmo modo que se pode aqui mais uma vez repetir que não há um
problema donegro pois o problema é o branco que tem sobre o negro falsas
idéias e age de acordo com essas idéias falsas , também se poderia dizer,
inversamente, que a idéia da negritude não é negra é branca, é o reflexo
invertido, na cabeça de negros, da idéia que os brancos fazem sobre ele, é o
resultado da tomada de consciência (também em termos falsos, diga-se de
passagem) da resistência que o branco faz à ascensão social do negro. É, em suma,
um racismo às avessas" (idem, pp. 332-333).
Com a modernização capitalista, a estratégia de ascensão social dos negros pela via
do branqueamento, de caráter individual, tornou-se inócua, já que se estaria diante
da conformação de uma classe média não-branca. A solução dos movimentos
sociais negros seria ineficaz não só pela" falsa visão" da ideologia da negritude,
um" racismo às avessas", mas também pelo descompasso, apontado por Costa
Pinto, entre as diferentes inserções sociais e visões de mundo das respectivas "elite
negra" e" massa negra". Esta última, segundo o sociólogo baiano, agiria diferente
da "elite negra", pois
"[...] quando o preconceito [a] atinge el[a] reage de pronto, e diretamente, como
quem repele uma afronta pessoal, muitas vezes violentamente, à sua maneira. Não
discute pomposamente, nem elabora explicações sofisticadas sobre o paideuma de
sua negritude. Se o problema surge el[a] simplesmente o enfrenta, como home[ns]
simples, como home[ns] do povo. E como o preconceito não se apresenta numa
frente única e unida, apoiado pela lei e cristalizado numa doutrina, consistindo
antes num sistema de atitudes e estereótipos que não raro se contradizem e não
apresentam qualquer coerência, moralmente batido pela ciência e pela história, o
negro-massa encara-o sempre face a face, em cada forma ou circunstância em que
se manifesta, e destrói-o e vence-o em mil batalhas quotidianas, pensando,
sentindo e agindo menos como raça, mais como massa, cada vez mais
como classe" (idem, pp. 337-338, ênfases no original).
A pesquisa de Costa Pinto só foi publicada no final de 1953. Desde o ano anterior
Guerreiro Ramos já trabalhava na Casa Civil do governo Getulio Vargas (Oliveira,
1995b). No segundo semestre de 1952, Guerreiro Ramos começa a participar de
reuniões com um grupo de intelectuais (Helio Jaguaribe, Ignácio Rangel, Roland
Corbisier, Juvenal Osório Gomes, Hermes Lima e outros) que criaram
posteriormente o IBESP, futuro ISEB. Fazia parte da pauta de discussões do IBESP,
segundo Schwartzman, "o subdesenvolvimento brasileiro, a busca de uma posição
internacional de não alinhamento e de ‘ terceira força’ , um nacionalismo em
relação aos recursos naturais do País, uma racionalização maior da gestão pública
[e uma] maior participação de setores populares na vida política" (1981, p. 3).
É interessante observar que o sociólogo baiano cria "um sub-ramo desta última
corrente" (idem, p. 12) que estaria voltado para os estudos do negro, ou seja, que
faria do negro "material etnográfico", e à qual pertenceriam Nina Rodrigues,
Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Alfred Métraux, Donald Pierson, Roger Bastide,
Emilio Willems e outros (idem, pp. 12-17). Estes autores veriam o negro "como
uma espécie de múmia, e não na sua problematicidade política e social. Daí que até
certo ponto, eles tenham cooperado para distrair a atenção das elites do país do
sentido programático do movimento abolicionista, tal como tinha sido delimitado
por homens como Joaquim Nabuco" (idem, p. 17).
Esse novo exercício de classificação dos intelectuais no interior das ciências sociais
revela uma mudança radical do sociólogo diante dos escritos anteriores,
especialmente Notícias sobre as Pesquisas e os Estudos Sociológicos no Brasil
(1940-1949) (Guerreiro Ramos e Garcia, 1949). Essa guinada se revela no
cancelamento da divisão, cujo marco seriam os anos 30, entre produção sociológica
institucionalizada e a considerada" pré-científica", "ensaística". Dita questão é bem
evidente nas reflexões sobre o negro. Guerreiro Ramos considera que a sociologia
acadêmica, ao fazer do negro" objeto de estudo", lembraria as pesquisas sobre as"
sobrevivências africanas", tão criticadas por ele.
O sociólogo divide essa tradição entre aqueles que procuravam incorporar o negro à
nação, embora com uma série de equívocos de natureza racista, como Oliveira
Vianna, e aqueles que, com uma visão racista e pessimista, como Nina Rodrigues,
não conseguiam encontrar "um lugar para o negro", já que este ameaçaria a
identificação entre os destinos da nação e a civilização branca e ocidental.
A aproximação de Guerreiro Ramos da vertente" autenticamente nacional" sugere a
existência de uma certa tensão, no pensamento do autor, entre o reconhecimento
da diversidade étnica existente no país e a necessidade de sua diluição em face da
urgência de se construir uma identidade nacional. Esta posição seria reforçada em
julho de 1953 no II Congresso Latino-Americano de Sociologia ocorrido no Rio de
Janeiro e em São Paulo, no qual o sociólogo apresenta, como presidente da
Comissão de Estruturas Nacionais e Regionais desse Congresso, uma série de
teses, recusadas em sua totalidade, sobre o que deveria ser o trabalho sociológico
em um país em processo de desenvolvimento em bases nacionais. Isso faz com que
Guerreiro Ramos estabeleça uma discussão pública, por meio do jornal Diário de
Notícias, a respeito de suas idéias. Dentre as teses derrotadas pelo Congresso
encontra-se uma especialmente dedicada à questão racial:
A radiografia do pensamento social brasileiro feita por Guerreiro Ramos em 1953 foi
aprofundada no ano seguinte em reação às críticas de Costa Pinto ao TEN.4 Além de
transformar textualmente o sociólogo mulato em objeto de estudo, na medida em
que o mesmo seria um dos ideólogos do TEN, Costa Pinto caracteriza o movimento
negro como uma elite mergulhada em um profundo dilema por estar nos estratos
superiores da sociedade, mas não ser aceita de fato pelas" elites brancas". Além
disso, afirma que a" ideologia da negritude" seria um "racismo às avessas" e que a
"elite negra" se constituiria em uma minoria totalmente descolada da "massa
negra", não percebendo que a dicotomia entre raça e classe é uma falsa questão. A
análise de Costa Pinto só viria a confirmar, segundo Guerreiro Ramos, a idéia de
que a sociologia estaria impregnada de estudos nos quais o negro seria
transformado em" material etnográfico".
Logo na introdução, Guerreiro Ramos afirma que os estudos raciais são, em geral,
alienados por seguir parâmetros sociológicos espelhados nas realidades européia e
norte-americana. Conceitos como "aculturação"," estrutura social" e "mudança
social" estariam comprometidos com "uma concepção quietista da sociedade e,
assim, contribu[iriam] para a ocultação da terapêutica decisiva dos problemas
humanos em países subdesenvolvidos" (Guerreiro Ramos, 1957, p. 125).
É interessante observar que parte dos cientistas sociais criticados por Guerreiro
Ramos pertenciam ao projeto patrocinado pela UNESCO sobre relações raciais no
Brasil. Este projeto suscitou uma interessante confluência dos propósitos da
UNESCO com a presença de um grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros
que chegavam, em graus variados, à maturidade intelectual e profissional,
possibilitando, no contexto de democratização do país vivido entre 1946-1964, o
surgimento de novas interpretações sobre as relações raciais no Brasil e,
especialmente, a revelação da discriminação racial em diversos níveis, frustrando,
em parte, a expectativa inicial da UNESCO.
No centro dessa ideologia estaria a estética branca assimilada pelas sociedades que
sofreram a dominação colonial. Influenciado pelo etnocentrismo europeu, o
brasileiro," especialmente o letrado, adere psicologicamente a um padrão estético
europeu e vê os acidentes étnicos do país e a si próprio, do ponto de vista deste.
Isto é verdade, tanto com referência ao brasileiro de cor como ao claro" (idem, p.
153). Portanto, os estudos sociológicos e antropológicos sobre o negro elaborados
até então não passariam de" documentos ilustrados da ideologia da brancura ou da
claridade" (idem, p. 154).
A atitude reativa da minoria branca, ávida por preservar sua condição de estirpe,
de pureza racial, em face de um povo nitidamente mestiço, mascararia seu
complexo de inferioridade, revelando assim uma combinação de anomalia e atraso.
Diante de uma nação em intenso processo de urbanização e industrialização, que se
traduziria pela mobilidade social vertical, contemplando inclusive os negros, a
"patologia social do ‘ branco’ brasileiro" seria sinônimo de antinação, "já que
[indicaria assim um] sintoma de escassa integração social de seus elementos [...]"
(idem, p. 191).
O sociólogo baiano acreditava que só uma sociologia operada por uma elite negra
poderia atingir uma solução satisfatória no terreno das desigualdades raciais. Para
isso, o pesquisador deveria "partir de uma situação vital [...] aberto à realidade
fática e, também, aberto interiormente para a originalidade" (idem, p. 156).
"[...] à nova fase dos estudos sobre relações de raça no Brasil, fase que se
caracteriza pelo enfoque de tais relações, desde um ato de liberdade do negro.
É minha convicção que desta mudança de orientação resulte, não um conflito
insolúvel entre brancos e escuros, mas uma liquidação de equívocos de parte a
parte e, conseqüentemente, uma contribuição para que a sociedade brasileira se
encaminhe para o rumo de sua verdadeira destinação histórica a de tornar-se,
do ponto de vista étnico, uma conjunctio oppositorium" (idem, p. 159).
À crítica às "sobrevivências africanas" soma-se agora uma visão que não diluiria as
especificidades raciais mas, pelo contrário, apostaria na superação do atraso,
precondição para a constituição política do povo brasileiro. Como afirma Guerreiro
Ramos:
"Desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do país,
como povo brasileiro, carece de significação falar de problema do negro puramente
econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do
pauperismo. O negro é povo, no Brasil.[...] O negro no Brasil não é uma anedota, é
um parâmetro da realidade nacional" (Guerreiro Ramos, 1957, p. 157, ênfase no
original).
NOTAS:
3. A primeira crítica de Guerreiro Ramos a Costa Pinto foi publicada antes de o livro
deste último, O Negro no Rio de Janeiro, completar um mês da publicação. O artigo
intitula-se "Sociologia Clínica de um Baiano ‘ Claro’ ", no qual o sociólogo ressalta
a necessidade de se estudar os aspectos patológicos que norteariam a conduta do
branco em relação ao negro. Embora não mencione textualmente Costa Pinto, este
se constitui em seu personagem central (Guerreiro Ramos, 1953a). A resposta de
Costa Pinto viria duas semanas depois, quando o professor de sociologia da FNFi
afirma "que é preciso não confundir duas coisas bem diferentes e que só podem ser
misturadas por má-fé: uma coisa é IDEOLOGIA RACIAL, outra coisa completamente
distinta é o ESTUDO CIENTÍFICO DE RELAÇÕES DE RAÇA. O leitor inteligente que
tenha sobre o assunto o mínimo de conhecimento necessário para se interessar
pela leitura do livro e dos artigos é capaz de compreender que a segunda é
o métierprofissional do sociólogo e que a primeira é o seu material. As duas
atitudes, portanto, não se confundem e não serei eu quem há de confundi-las"
(Costa Pinto, 1954, p. 2, ênfases no original). Guerreiro Ramos responde ao artigo
de modo bastante agressivo, procurando desqualificar o trabalho sociológico de
Costa Pinto (Guerreiro Ramos, 1954a, p. 7).
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Bahia (Contribuição ao Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, Biblioteca do
Congresso), Washington, D. C., Publicação nº 11 do Museu do Estado da Bahia.
[ Links ]
ABSTRACT
A Forgotten Polemic: Costa Pinto, Guerreiro Ramos, and the Issue of Race Relations
The article focuses on Luiz de Aguiar Costa Pinto’ s and Alberto Guerreiro Ramos’
sociological production on the issue of race relations. Noteworthy contributors to
the social sciences during the 1945-64 period, these two sociologists were selected
not only for the importance of their work but also because of their polemic
regarding ethnic intercourse. Costa Pinto’ s and Guerreiro Ramos’ analyses of the
issue reveal two distinct patterns of sociological work. Yet it must be underscored
that when these two intellectuals approached race relations, each in his own way,
they were devoting themselves primarily to the era’ s driving issues social
change and the process of Brazilian development.
Keywords: race relations; Costa Pinto; Guerreiro Ramos; ethnic intercourse; social
change; race
RÉSUMÉ
Une Polémique Oubliée: Costa Pinto, Guerreiro Ramos et la Question des Rapports
Raciaux
Dans cet article on cherche à aborder la production sociologique des auteurs Luiz de
Aguiar Costa Pinto et Alberto Guerreiro Ramos au sujet des croisements raciaux. On
a choisi ces deux sociologues remarquables dans le domaine des sciences sociales
pendant la période 1945-1964, à cause non seulement des travaux particuliers de
chacun d’ eux, mais aussi de la polémique qu’ ils ont entamée à propos de la
question des rapports sexuels entre groupes ethniques différents. Les analyses de
Costa Pinto et Guerreiro Ramos à cet égard révèlent des modèles distincts dans
l’ approche sociologique. Il faut pourtant remarquer que ces deux spécialistes des
relations raciales ont abordé, chacun à sa façon, la question du changement social
et le processus de développement national, sujets inéluctables à l’ époque.
*
Este artigo é fruto de um trabalho elaborado para o curso "A Institucionalização
das Ciências Sociais", ministrado pelos professores Luiz Werneck Vianna, Maria
Alice Rezende de Carvalho e Manuel Palacios Cunha Melo. Gostaria de agradecer,
especialmente, ao prof. Werneck Vianna e aos pareceristas de Dados pelas críticas
feitas ao trabalho.