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escravos
Paula Sperb
De Porto Alegre para a BBC News Brasil
29 setembro 2018
Ex-escravos fotografados em estúdio, no final do século XIX, em Porto Alegre: Luta pela liberdade começou
muito antes da abolição
O primeiro teatro construído em Porto Alegre, o São Pedro, recebeu centenas de pessoas em 19
de setembro de 1869. Com sua fachada imponente no estilo neoclássico, o prédio ficou com o
salão e os camarotes lotados naquela noite. O público saiu de casa para assistir a um espetáculo
com desfecho impensável para a elite econômica da época.
Quando a cortina foi levantada, a plateia viu a personagem Liberdade visitando o Brasil. Na peça,
ela encontra um escravo, "coberto de andrajos e cicatrizes recentes, entregue à lida diurna". A
Liberdade, então, "invoca o auxílio do céu". Um anjo mensageiro responde o chamado e devolve o
escravo à Liberdade. Além disso, ele também ordena a libertação das crianças escravizadas.
Muito além da princesa Isabel, 6 brasileiros que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil
Como escravos entravam na Justiça e faziam poupança para lutar pela liberdade
No palco, então, surgem 21 crianças. Nenhuma delas é aspirante a ator mirim. Todas são negras e
filhas de escravas. Elas recebem cartas legítimas de alforria.
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"A este espetáculo as lágrimas correram e o entusiasmo dos corações sensíveis tocou até o
delírio", escreveu depois o médico José Antonio do Valle Caldre Fião, presidente da Sociedade
Partenon Literário, grupo criado há 150 anos, que organizou o espetáculo abolicionista e que fazia
"vaquinhas" para comprar a liberdade de escravos.
ACERVO DO MUSEU DE PORTO ALEGRE JOAQUIM FELIZARDO
Vista do Teatro São Pedro, em Porto Alegre, em 1881; no local, apresentação libertou 21 crianças escravas
Mas não só no Rio Grande do Sul atividades de libertação de escravos ocorreram no período. Por
todo o Brasil, de 1868 a 1888, há registros de grupos mobilizados pela causa abolicionista. No Rio
de Janeiro, São Paulo, Ceará, Pernambuco e Espírito Santo, por exemplo, as cartas de alforrias
também eram entregues em apresentações culturais com direito a registro na imprensa.
Fita de Möbius, o enigmático objeto com um só lado que fascina matemáticos, artistas e
engenheiros
Especial 130 anos da abolição: A luta esquecida dos negros pelo fim da escravidão no Brasil
Quanto ao grupo gaúcho Partenon Literário, sua bandeira ia além das letras.
"O Partenon não foi uma sociedade meramente literária, mas de ordem cultural e com viés político.
A maioria dos partenonistas tinha dois ideais. Eles defendiam sobretudo a República, sendo
contrários à Monarquia vigente, e eram abolicionistas", explicou Maria Eunice Moreira, professora
da Faculdade de Letras da PUCRS à BBC News Brasil.
Juntamente com os pesquisadores Alice Campos Moreira e Mauro Nicola Póvoas, a professora
escreveu um estudo que servirá de apresentação a todo o acervo digitalizado da "Revista Mensal
da Sociedade Partenon Literário". A revista, publicada entre 1869 e 1879, poderá ser acessada pela
internet a partir de outubro (o site ainda não divulgado). No periódico também eram publicados
textos contra a escravidão, como o registro de Caldre Fião sobre o teatro apresentado no São
Pedro.
ACERVO DO MUSEU DE PORTO ALEGRE JOAQUIM FELIZARDO
Ex-escravos que trabalhavam como vendedores ambulantes em Porto Alegre, no final do século 19
Atualmente, quem deseja pesquisar todas as 71 edições precisa alternar visitas a diferentes
acervos, entre eles o da coleção especial da biblioteca da PUCRS, onde esteve a reportagem.
As revistas eram diminutas para o padrão atual, com menos de vinte centímetros de largura e
altura, com somente a capa em papel colorido e raras ilustrações, como nos casos de textos sobre
figuras históricas.
'Ultraje'
A peça teatral de 1869 foi considerada um ultraje por quem defendia a escravidão. Vale lembrar
que, no Brasil, a abolição ocorreu 19 anos depois do espetáculo, em 13 de maio de 1888. A Lei do
Ventre Livre, que daria liberdade às crianças, também foi posterior à montagem teatral, assinada
em 1871. A Lei dos Sexagenários, que libertou os escravos idosos, foi firmada em 1885.
Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz
historiador
No Rio Grande do Sul, a escravidão foi abolida em 1884, resultado da pressão de diversos grupos,
como o Centro Abolicionista e o Partenon Literário.
O livro que contém a ata original da sessão na Câmara de Vereadores da capital gaúcha que
acabou com a escravidão no Estado está preservado no Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés
Vellinho, da prefeitura.
ACERVO DO MUSEU DE PORTO ALEGRE JOAQUIM FELIZARDO
Barreiras
Os integrantes do Partenon Literário não organizaram o espetáculo sem encontrar barreiras. Pelo
contrário. Se conseguiram libertar as 21 crianças em 19 de setembro foi por que foram impedidos
na data originalmente planejada - 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil, declarada em
1822.
Segundo a historiadora Marília Conforto, autora de Escravo de Papel (Educs, 2012) e Faces da
Personagem Escrava (Educs, 2001), muitos dos escravos que chegavam ao Rio Grande do Sul
vinham pela rota do comércio interno, já que o tráfico internacional era proibido desde 1850. O
tráfico passou a ser ilegal por pressão da Inglaterra, que chegou a apreender navios negreiros. Com
o desenvolvimento do capitalismo inglês e da consequente industrialização, novos mercados
consumidores eram necessários para o comércio dos produtos da Inglaterra.
"Escravo não tinha salário e não consumia", resumiu criticamente a pesquisadora durante a
entrevista.
ACERVO DO MUSEU DE PORTO ALEGRE JOAQUIM FELIZARDO
Além de Caldre Fião, outro líder do Partenon que teve forte atuação abolicionista foi o professor
Apolinário Porto Alegre. O primeiro estudou Medicina no Rio de Janeiro, o segundo, estudou direito
em São Paulo. Segundo Conforto, "estudar fora" influenciava os intelectuais que depois retornavam
ao Estado trazendo novas ideias influenciados pelos ideais do positivismo europeu, entre eles a
liberdade, por exemplo.
Apolinário publicou na revista do Partenon diversas peças de teatro e textos abolicionistas. Uma
peça, em especial, foi a mais polêmica e chegou a ser proibida pela polícia. Os Filhos da Desgraça
contava a história de amor entre uma senhora e um escravo (o contrário era mais aceito no Brasil
colonial). "Com tal temática, Apolinário não poderia colocar a ação em Porto Alegre, porque
provocaria a revolta de muitos chefes de família", explicou o historiador Moacyr Flores, em artigo de
1978, sobre a obra do autor.
Como a ideia de "proximidade" chocava demais os "chefes de família", o escritor optou por situar a
trama em Salvador. "O drama está inserido na filosofia dos abolicionistas que por princípios éticos,
além dos econômicos, não admitem a escravidão", acrescentou Flores sobre a peça.
Apolinário também liderou o projeto de aulas gratuitas noturnas para os pobres e libertos, explica a
professora Maria Eunice Moreira, da PUCRS. Ainda de acordo com ela, enquanto ficcionistas, o
tema da liberdade interessava os partenonistas de maneira abrangente, incluindo figura do gaúcho
cavalgando livre pelos campos, o mítico "centauro dos pampas", que surge na literatura regionalista
do período influenciada pelo Partenon.
ACERVO DO MUSEU DE PORTO ALEGRE JOAQUIM FELIZARDO/
Rua dos Andradas, em Porto Alegre, na década de 1860; nesta rua, em 1884, os abolicionistas fizeram uma
campanha, batendo de porta em porta, para que os senhores libertassem seus escravos
Ele registrou cenas bucólicas da capital gaúcha na virada do século. Em 1900, Lunara fotografou
um casal de negros libertos, em frente ao seu barraco. A foto está catalogada como "Deixa disso,
nhô João".
"Os abolicionistas não-negros, os abolicionistas brancos, tinham uma visão ligada ao Iluminismo,
de humanização. O que dava a possibilidade de uma pessoa negra ser escravizada era sua não-
humanização. Até 1850, o código comercial colocava os negros como 'ser movente', categoria de
coisas que se movem. Estão nessa categoria ate hoje, por óbvio, cavalos, cachorros da polícia
militar. Então, a discussão dos abolicionistas era de que negros não eram coisas, mas pessoas",
afirma o especialista em direito público Gleidison Renato Martins, da coordenação nacional do
Movimento Negro Unificado.
Martins aponta o paradoxo de a própria "era da razão" ter dado origem a artigos e experiências que
tentavam provar a inferioridade dos negros e apontavam os brancos como "raça superior" o que, se
sabe, é falso. "Não basta apenas colocar as pessoas nessa outra estrutura sem mudar o
pensamento racista e processos de discriminação", conclui.
Casal de ex-escravos de mãos dadas em frente ao seu barraco, em Porto Alegre, em 1900
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