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Exercícios de micro-história
Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
aprovado pelo Decreto Legislativo no 54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo Decreto
no 6.583, de 29 de setembro de 2008.
1a edição — 2009
Versão digital — 2012
Ficha catalográfica elaborada pela
Biblioteca Mario Henrique Simonsen / FGV
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-225-0898-3
Apresentação 7
Mônica Ribeiro de Oliveira
e Carla Maria Carvalho de Almeida
Prefácio 11
Giovanni Levi
3. Reciprocidade mediterrânea 51
Giovanni Levi
APRESENTAÇÃO
metodológicas seriam mais apropriadas para abordá-los.1
Na primeira parte do livro, dedicada aos precursores da micro-
história, são apresentados à comunidade acadêmica brasileira, tradu-
zidos para o português, quatro importantes textos de Edoardo
Grendi e Giovanni Levi. Os dois primeiros — “Microanálise e his-
tória social” e “Paradoxos da história contemporânea” —, de 1977
e 1981, respectivamente, e ainda inéditos em língua portuguesa, são
da autoria de Edoardo Grendi, considerado o principal responsável
pela difusão desse campo de investigação e pela dimensão que o
debate teórico sobre a micro-história alcançou, a partir da década de
1970, através do periódico italiano Quaderni Storici.
Originariamente publicados em 1990 e 2000, e também inéditos
em língua portuguesa, os outros dois textos que compõem a primei-
ra parte deste livro são da autoria de Giovanni Levi. Em “Recipro-
cidade mediterrânea”, partindo das noções de equidade, analogia e
reciprocidade, Levi discute as especificidades das formas jurídicas das
nações católicas do sul da Europa e sugere uma polarização entre
países com direitos fortes em que a lei restringe a liberdade de inter-
pretação dos juízes e países em que a origem teológica do conceito
de justiça permite aos juízes uma ampla margem de interpretação,
mediante uma leitura muito específica da equidade. No texto “Eco-
nomia camponesa e mercado de terra no Piemonte do Antigo Regi-
me”, Giovanni Levi emite valiosos alertas aos historiadores interes-
sados em investigar as transações mercantis com a terra nas sociedades
da Idade Moderna. Segundo Levi, a terra era a base da produção,
mas também do sistema de poder e de proteção social que caracteri-
zava todo o sistema político nessas sociedades. Assim sendo, “a cir-
culação mercantil da terra, não impossível, mas complexa e viscosa,
obstaculizava a fluidez: direitos familiares, senhoris, comunitários,
1
Para a organização desse evento e da presente obra contamos com o precioso
apoio do professor dr. Cássio da Silva Fernandes, da professora dra. Ângela Brandão
e do professor dr. Henrique Espada Lima.
∗
Tradução de Ângela Brandão.
PREFÁCIO
ções sem descartar os indivíduos, as situações? Ou, vice-versa, como
descrever situações, pessoas, sem cair em tipologias, exemplos, e sem
renunciar à compreensão dos problemas gerais?
Talvez seja partindo desse problema insolúvel que os historiado-
res frequentemente são levados a falar de suas insatisfações, muitas
vezes confrontadas com a descoberta de situações novas, objetos no-
vos. O resultado corre o risco de ser um tanto lamentável: a histo-
riografia excluiu as classes populares, as mulheres, as culturas orais,
a vida cotidiana, os mundos marginais, as sociedades diferentes da
nossa. E não quero, por certo, subtrair minha parte de lamentação.
Mas não basta falar de alguém para incluí-lo na história do mundo,
para mostrar sua presença e relevância. O importante é como falar
desse alguém.
A micro-história pretende ser antes de tudo uma tentativa: narra,
mas sem esconder as regras do jogo que o historiador seguiu. Cer-
tamente, não apenas remetendo aos documentos — isso faz parte da
ética profissional —, mas por meio de uma clara declaração do pro-
cesso pelo qual a história foi construída: os caminhos certos e erra-
dos, o modo de formular as perguntas e procurar as respostas. Por-
que o minucioso trabalho de laboratório não deve permanecer
escondido, e a receita não deve permanecer um segredo do cozi-
nheiro. Porque talvez os verdadeiros excluídos da atenção dos his-
toriadores não sejam os protagonistas descuidados dos eventos, mas,
sim, os leitores esmagados pelas pesadas interpretações gerais, pelas
opiniões discutidas com as armas díspares de quem escreve e de
quem lê, pelos mecanismos causais simplificados e estabelecidos a
partir de uma percepção tardia. Por essas indagações serem feitas a
partir da revelação do nome do assassino, o verdadeiro excluído é o
consumidor de livros de história.
Portanto, a micro-história não é, necessariamente, a história dos
excluídos, dos pequenos, dos distantes. Pretende ser a reconstrução
de momentos, de situações, de pessoas que, investigadas com olho
PREFÁCIO
cionamentos sociais complexos.
Muito frequentemente, as explicações que elucidam os mecanis-
mos casuais tendem a descrever o passado como um feroz mecanismo
de necessidades biológicas, políticas, econômicas. Introduziu-se, as-
sim, uma visão evolucionista, apologética do presente e do fato exis-
tente. Nesse sentido, as duas alternativas que procuraremos docu-
mentar e as regras em confl ito atuantes em cada situação pretendem
também ser uma perspectiva de pesquisa diferente. Os escritos de E.
P. Thompson, que estão na raiz de toda a renovação da história so-
cial, são, segundo o autor, uma resposta àqueles que descrevem “o
homem como subjugado pela necessidade e sobre o qual domina um
único absoluto”.
As palavras-chave eram então evidentes: lente ou microscópio,
experimento, contestação, complexidade, escolha, vínculos, inters-
tícios, confl ito, ponto de vista. Mais uma série de práticas e de mé-
todos do que uma teoria. Todavia, a proposta da micro-história atin-
gia um mundo historiográfico muito sensível. Não foi apenas o tom
de reviravolta que caracterizou os anos 1980 desde o seu início.
Também a crise do sistema soviético que se avizinhava e a fragmen-
tação do sistema mundial depois do fi m da bipolaridade fizeram sen-
tir, com brutal evidência, seus efeitos no debate historiográfico, pon-
do em crise a historiografia de inspiração marxista, mas também de
modo mais geral a história social, a experiência central dos Annales
franceses, que falavam de ponto de mutação, ou dos Subalterns studies
indianos, que abandonaram o marxismo para voltar sua atenção de
modo especialmente confuso para os estudos pós-coloniais: no cen-
tro das atenções progressivamente apareceram temáticas culturais
que pouco a pouco se abriram às dúvidas relativísticas do descons-
trutivismo ou à identificação da historiografia com a ficção. Afi nal,
a própria historiografia perdera sua centralidade nas ciências huma-
nas, porque é difícil estudar o passado quando não há perspectivas de
futuro e também porque o papel central que desempenhara até os
A micro-história e
seus precursores
1
No número 34 de Quaderni Storici, Villani e Romanelli retomam a
discussão sobre a história (social) contemporânea.1 O primeiro, um
típico “otimista”, tenta descobrir a nova alvorada em uma série de
trabalhos recentes de valor e coerência desigual; o segundo, um tí-
pico “pessimista”, pergunta-se por que a alvorada não chega e atri-
bui a culpa disso aos esquemas práticos e mentais dos historiadores
contemporaneístas. Tal “reificação” acontece em duas direções:
contra a simplificação ideológico-política da análise marxista como
princípio historiográfico, e contra a simplificação teórica que deriva
da aceitação generalizada de categorias e de um modelo interpreta-
tivo destinados a explicar um processo histórico específico, como a
*
Tradução e notas de Henrique Espada Lima do artigo “Microanalisi e storia so-
ciale”, publicado em Quaderni Storici, v. 12, n. 35, p. 506-520, ago. 1977. O texto é,
na verdade, uma intervenção em um debate sobre história social que acontecia nas
páginas da revista e seguiu textos publicados por Pasquale Villani e Raffaele Roma-
nelli, dois historiadores da Itália contemporânea. O debate em torno da história
social continuou em outros artigos, mas este texto em especial acabou por tornar-se
uma referência central no debate sobre a microanálise social e, a partir daí, sobre as
escolhas metodológicas da chamada “micro-história” italiana.
1
Os textos a que Grendi faz referência aqui são Villani (1977) e Romanelli (1977).
2
Vale indicar de imediato o “campo de interesse” específico, mesmo
com o risco de cair no ridículo da abstração mais grave, aquela do
concreto total. Digamos que se trate do “universo relacional”; por-
tanto, do campo das relações interpessoais, forçosamente válido para
uma microárea. Essa escolha explica o interesse pela história demo-
gráfica, ou seja, a disciplina que coloca seus problemas em relação
direta com a sociedade total. Que a demografia faça isso recorrendo
antes de tudo a números e, em particular, para contar eventos vitais
é relativamente secundário. De fato, a reconstrução das famílias per-
mite a identificação desses núcleos-base, a qualificação de sua situa-
ção em um ciclo de desenvolvimento, a posterior elaboração de ge-
nealogias. Os apontamentos daí derivados podem ser enriquecidos,
antes de tudo, a partir da utilização mais sistemática da própria fonte
dos registros paroquiais, identificando, por exemplo, testemunhas de
núpcias, padrinhos de batismo e de crisma, operações que permitem
mapear relações não secundárias. E ainda, sobretudo, a partir do es-
tudo de fontes até agora pouco utilizadas, como contratos notariais,
atos de jurisdição civil e criminal, cadastros, parlamenti, registros con-
tábeis, atos privados que remetem a fontes “centrais” de caráter judi-
ciário, contábil, fiscal, político, censitário. Cada informação exprime
um dado ou, mais frequentemente, uma relação. Existe assim a pos-
sibilidade de reconstruir histórias de família e, às vezes, por alguma
feliz coincidência de fontes, histórias individuais suficientemente ri-
2
Ver ensaios reunidos (após a redação original deste texto) em Barth (1981).
3
Ver Kroeber (1948).
4
Ver Davis (1975); e Castan (1974).
5
Ver Foster (1965).
3
Uma vez que a ciência econômica constituiu até agora um suporte
privilegiado para a pesquisa histórica, parece-me útil mostrar as im-
plicações da abordagem acima ilustrada em confronto com tal “or-
todoxia”.
Cito uma súplica do fi nal do Seiscentos, na qual a comunidade de
Monterosso — hoje pertencente à província de La Spezia —, sujeita
às méte (impostos) aplicadas por Gênova ao vinho rossese, típico do
lugar e um de seus poucos recursos, protesta contra o fato de que
eram sempre os mesmos mercadores que iam ao burgo, que eles
ofereciam tecidos velhos e grãos estragados a preços fi xados por seu
próprio arbítrio, em troca de um vinho com preço defi nido pela
administração. Em termos de análise econômica, a assimetria da
troca deriva de um jogo oferta/demanda livre contra um jogo de-
manda/oferta prefi xado. Mas a “liberdade” do primeiro continua
sendo uma função da estreiteza do mercado, o que é absolutamente
normal em uma sociedade pré-industrial: o mercado não só é restri-
to, como também ocasional, e tal ocasionalidade está estritamente
ligada “àqueles” mercadores. Que o preço do grão seja fruto de uma
relação oferta/procura é no mínimo tautológico: de fato, pode-se
assumir preliminarmente que seja assim, mas isso não quer dizer que
6
Ver, entre outros, Mintz (1971).
7
A pratik haitiana de S. Mintz (1961).
8
Sahlins, 1972.
veis e reconhecíveis por meio de uma grade de teses e temas que são,
frequentemente, uma mistura de “ideias recebidas”.
É significativo que a antropologia, mesmo tratando necessaria-
mente de sociedades contemporâneas, venha sendo, há bastante
tempo, capaz de estimular, sobretudo, a história medieval e mesmo
a história antiga. E isso não pode ser atribuído à correspondência do
objeto (sociedades relativamente mais “simples”). De fato, o mesmo
problema da social change foi discutido e ilustrado analiticamente pe-
los antropólogos. E o que pode ser a história contemporânea senão
uma história das transformações sociais? E por que deve ser o agre-
gado-nação e não a comunidade, ou a cidade, ou o ofício, o lugar de
eleição para o estudo dessas transformações?
No fundo, a argumentação que procurei ilustrar nesta interven-
ção equivale à defesa de um princípio: que a história social é a his-
tória das relações entre pessoas e grupos. O problema posterior e
fundamental da identificação dos conceitos e das possibilidades ope-
rativas, que foi aqui desenvolvido de modo muito parcial, pode ser
enriquecido indefi nidamente. Me parece indubitável que, no âmbi-
to da vida social contemporânea, tais possibilidades podem apenas
crescer e jamais diminuir, mesmo que não utilizemos as indicações
da história oral (das quais, é claro, não há motivos para prescindir).
O crescimento da “administração” multiplicou as observações e le-
vantamentos, e inumeráveis depósitos de documentação (seccional,
funcional ou de associações), hoje destinados ao descarte, são per-
feitamente capazes de se tornar objeto de imprevistas iluminações
histórico-analíticas.
Assim, o objetivo de uma historiografia social contemporânea é
o de conquistar a distância cultural da sociedade que estamos viven-
do, de objetivá-la nos seus conteúdos de relação, de reconstruir a
evolução e a dinâmica dos seus comportamentos sociais.
apr. 1977.
SAHLINS, Marshal. Stone Age economics. Chicago, Ill.: Aldine, 1972.
VILLANI, Pasquale. Problemi e prospettive di ricerca: la storia sociale
dell’Italia contemporanea. Quaderni Storici, Bolonha, v. 12, n. 34, p. 215-229,
apr. 1977.
∗
Tradução de Henrique Espada Lima. “Paradossi della storia contemporanea” foi
publicado originalmente em maio de 1981, em uma coletânea intitulada Dieci interven-
ti sulla storia sociale, lançada pela editora Rosenberg & Sellier, em Turim (Itália). A
origem do volume foi a organização das intervenções em um debate promovido pela
editora sobre as tendências e instituições da história social e das classes subalternas na
Itália. Edoardo Grendi, que havia escrito sobre o movimento operário inglês e o tra-
balhismo britânico, participou do debate, que incluiu ainda contribuições de Sergio
Bologna, Gabriela Bonacchi, Federico Bozzini, Maurizio Carbognin, Vittorio Foa,
Antonio Gibelli, Giovanni Levi, Dora Marucco, Luisa Passerini e Franco Ramella.
síntese que não se fará jamais, e um trabalho histórico pode vir a ser
discutido, contestado, imitado, mas não refeito a cada geração. A
história termina por ser redimensionada a uma experiência cognos-
citiva como as outras, com os mesmos elementos de gratuidade, a
mesma amplidão de opções temáticas, a possibilidade absolutamente
livre de selecionar e organizar as relevâncias. De resto, não se vê
porque o historiador deveria condenar-se a uma perpétua esquizo-
frenia: ocupar-se de cadastros, fontes criminais ou greves singulares
e depois disso refazer ou repetir o enésimo manual, voltando a con-
tar o costumeiro périplo secular do homem. E pelo menos neste caso
estamos diante de um contraste entre diferentes estatutos da histó-
ria. O contemporaneísta parece ignorar esta antinomia: o episódio
individual vem de tal modo carregado de valores ideológicos que
nem mesmo interessa mais enquanto tal, não se torna campo espe-
cífico de análise.
Dentro deste campo da história contemporânea, a escolha entre as
interrogações mais ou menos relevantes já está feita, assim como o
esquema das relevâncias explicativas está já predefinido. Podemos
falar, acredito, também de uma orientação ideológica, desde que por
isso não entendamos equivocadamente uma acusação de parcialidade
e se tenha presente que a crítica refere-se antes ao tipo de orientação
mental que a ideologia representa quando opera como omnicompre-
ensividade de categorias prontas para o uso, isto é, para o enquadra-
mento dos fatos e fenômenos históricos. Os temas mais comuns são
o événémentiel, a instituição ou o debate ideológico: tudo dentro de
uma estrutura analiticamente esgotada e dominada pelas classes e
pelos partidos, que reproduz o debate político, ou seja, uma das ma-
nifestações mais deprimentes do nosso tempo (os discursos de Moro,
as entrevistas de Berlinguer, em meio ao esotérico e o oracular).
Pode-se dizer, a propósito da orientação macroteleológica, que
toda sociedade civil é autocelebrativa, e o mesmo vale para toda ins-
tituição interessada naquele etnocentrismo do qual tira sua autojusti-
área social dessa mesma troca. E é por todos esses elementos que o
indício de uma transação assume um significado revelador do con-
junto da estrutura social, entendida esta última, não por acaso, tam-
bém como uma pirâmide de rendimentos.
Em quarto lugar, a cultura. A continuidade ou a renovação das
formas expressivas coletivas constituem certamente um problema, já
que se trata de compreendê-las e apreender seus significados. Mas o
problema central é o da função do fenômeno expressivo e, portanto,
do seu significado sociocultural contextual: apenas desse modo po-
deremos capturá-lo como orientação de valor. Naturalmente, tal
expressividade não é apenas palavra, gesto ou rito, mas também ação
social, violência coletiva, organização.
Certamente a relevância destas temáticas não é válida apenas para
os estudos do Ancien Régime. Seu significado encontra-se, de fato,
em um processo coerente que recoloca o problema do próprio sujei-
to histórico: se não sempre a comunidade (que pode ser uma comu-
nidade de produtores industriais-têxteis, de mineradores etc.), cer-
tamente o grupo social, pois trata-se sempre de tecidos de relações
interpessoais inseridos em contextos sociais mais amplos. E tudo o
que dissemos sobre a transação de um bem produzido vale também
para o bem trabalho. Podemos realmente dizer que o preço/salário
é fi xado por uma oferta/demanda de trabalho? Com certeza não
pode ser provado ou negado que uma escolha voluntária tenha um
papel na determinação do nível do salário. De resto, demanda e
oferta confrontam-se em uma rede de relações interpessoais: por
uma parte, formas diversas de delegação e subarrendamento a ter-
ceiros; por outra, os mecanismos muito humanos da imigração e da
admissão, mais ou menos ligados entre si. E tudo isso cria a oportu-
nidade da intermediação, que é um tema inesperado. O proletário,
por um lado, não é um trabalhador eventual, e isso oferece uma
continuidade de referência com relação ao seu ambiente de trabalho,
especialmente à fábrica, que lhe outorga então a ocasião para uma
1
Se quisermos empregar o conceito de reciprocidade em sentido con-
creto e não meramente formal, parece-me imprescindível incluí-lo
em um marco amplo de relações jurídicas e econômicas relativas a um
tempo e a uma região de referência específicos. Portanto, buscarei
mostrar de que modo esse conceito assume sua especificidade na Ida-
de Moderna, em relação com os sistemas jurídicos que, utilizando
uma expressão inadequada, chamarei de direito débil, ou seja, siste-
mas jurídicos nos quais predomina a jurisprudência sobre a lei, em
oposição à ação dos juízes com respeito ao caráter central do poder
legislativo soberano, ao qual, outra vez inadequadamente, chamarei
sistemas de direito forte. Na área mediterrânea é possível incluir nesta
categoria de direito débil pelo menos três tradições — o direito canô-
nico, o direito islâmico e o direito talmúdico — que extraem de
princípios gerais de origem religiosa as bases imutáveis às quais se re-
∗
Publicado originalmente em Hispania (Madri), LX/1, núm. 204 (2000), p. 103-
126 e reproduzido com a permissão da revista. Tradução para o castelhano de Mar-
co A. Galmarini e para o português de Ronald Polito.
1
Cf., por exemplo, Brewer e Porter (1993).
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
cultural que implica, e provavelmente simplifica, a própria ideia de
reciprocidade, na qual a relação de dom e contradom resulta menos
importante que o sistema global de intercâmbio em uma sociedade
governada por um sistema aceito de justiça da desigualdade.2
2
No centro do discurso devemos pôr a equidade, conceito que gover-
na alguns dos sistemas jurídicos dos países mediterrâneos e certos
aspectos profundos da cultura e da estrutura antropológica do senti-
do comum de justiça das populações mediterrâneas. Em uma socie-
dade governada pela justiça distributiva, isto é, por uma justiça que
aspira a garantir a cada um o que lhe corresponde segundo seu status
social, complica-se inclusive o modelo polanyiano de reciprocidade,3
a saber, o movimento recíproco e bilateral através do qual passam os
bens no intercâmbio: não se trata só de reciprocidade generalizada
ou equilibrada, mas de uma multiplicação de reciprocidades possí-
veis nas quais — nas relações de cada grupo com todo outro grupo
e no próprio seio de cada grupo ou no limite das relações de cada
pessoa com todas as outras — as interpretações da reciprocidade se
multiplicam de acordo com significados complexos que misturam
tipo de reciprocidade e nível social dos protagonistas do intercâm-
bio. Desta forma, todo intercâmbio mercantil teoricamente equili-
brado pode considerar a determinação do preço segundo os níveis
sociais e as relações dos contratantes, e todo intercâmbio de bens
pode parecer o resultado de uma reciprocidade equilibrada ou gene-
ralizada segundo quem realiza o intercâmbio e com quem. Do mes-
mo modo, é impossível examinar uma sociedade que põe os valores
puramente econômicos acima dos valores de boa vontade e amizade,
2
Cf. Levi, 1996.
3
Polanyi, 1977:61-74.
4
O importante livro de Clavero (1991) me parece que subestima a necessidade de
inserir o dom e o contradom no modelo geral de sociedade — hierárquico e prote-
gido — que aspira construir a segunda escolástica. Duas coisas não partilho com
Clavero: a insuficiente avaliação do sentido comum de justiça, como se se pudesse
explicar as práticas sociais através das leis e dos códigos exclusivamente. Em segun-
do lugar — e como consequência —, a insuficiente avaliação da permanência, nos
comportamentos políticos nos países católicos de hoje, de uma concepção de justiça
em confl ito com as instituições estatais. Para observações muito interessantes sobre
a distância entre a interpretação do direito do antropólogo e do jurista, veja-se
Geertz (1983).
5
Na Itália são frequentes os movimentos de repúdio às leis em nome de um senti-
do indefi nido de justiça mais justa que a lei. Recentemente, um médico, o doutor
Di Bella, provocou uma autêntica insurreição popular com uma manifestação de
mais de dez mil pessoas perante o Ministério da Saúde e conseguiu que dois juízes
municipais se pronunciassem a favor de que o sistema sanitário público se encarre-
gasse de uma terapia sua contra o câncer que havia se demonstrado ineficaz. Apaga-
do o caso na Itália, tentou — sem êxito — relançar a questão em outro país católico,
a Argentina. Há anos houve um caso de adoção ilegal, anulada pelo juiz, que deu
lugar a uma discussão que se prolongou vários meses. Sobre este tema foi publicado
um livro exemplarmente representativo do sentido comum de justiça, escrito por
uma conhecida autora, Natalia Ginzburg (1990:2), que sustentava precisamente que
“o fi m de proteger a universalidade dos meninos não justifica uma ação cruel reali-
zada sobre a pessoa de um só menino [...] É preciso perguntar-se qual é a ação mais
justa à luz da verdadeira justiça”.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
na elaboração do direito propondo interpretações, como a consciên-
cia da impossibilidade de individualizar uma interpretação única do
texto. A relação entre elaboração, aplicação e interpretação da lei
caracteriza de uma maneira muito particular a história cultural dos
países do Mediterrâneo. Certamente não de modo unívoco; contu-
do, tenho a impressão de que os sistemas jurídicos dos países católi-
cos e dos islâmicos, enquanto tradição jurídica do judaísmo, têm
deixado — com grandes variantes, repito — muito espaço para as
interpretações jurisprudenciais, para o uso da analogia, para o papel
corretivo dos juízes no sentido da equidade na hora de aplicar a casos
concretos a lei demasiadamente geral.
Portanto, trata-se de um problema de caráter mais antropológico
que estritamente histórico-jurídico. O papel do sentido comum de
justiça difundido entre as pessoas que vivem nesta área parece parti-
cularmente confl itivo em relação com os sistemas jurídicos que se
foram constituindo sucessivamente. A debilidade das instituições
em relação ao sentido comum de equidade parece associar-se a um
papel particularmente forte de tradições políticas de origem teológi-
ca e à permanência, na consciência comum, da imagem de um plu-
ralismo jurídico que na multiplicidade das fontes de produção das
normas vê em realidade a possibilidade intersticial de mover-se com
relativa liberdade entre sistemas normativos contraditórios, cada um
deles já debilitado e erodido pela própria multiplicidade. A defi nição
da área que temos chamado mediterrânea, não obstante sua dificul-
dade e sua grande arbitrariedade, pode encontrar-se em todas as
realidades nas quais, em que pesem os esforços realizados, não se
tem alcançado estabelecer uma separação e uma hierarquização ní-
tida a favor das instituições do Estado sobre a presença de institui-
ções religiosas. Excluiria deste modelo a França, porque a formação
do Estado moderno neste país através do absolutismo defi niu preco-
cemente a supremacia das instituições do Estado também no sentido
comum de justiça.
3
Mas partamos de Polanyi. Apesar de que os comentaristas não o
tenham observado e de que não se possa encontrar neste autor uma
elaboração ampla do conceito de equidade, o próprio Polanyi vê
uma estreita relação entre reciprocidade e equidade:
6
Cf., por exemplo, o dossiê Verité judiciaire, vérité historique, com artigos de F. Har-
tog, M. Baruch, Y. Thomas e P. Y. Gaudard em Le débat, 102 (1998), p. 4-52.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
Um sistema de reciprocidades não é, pois, o pózinho dos atos de
reciprocidade, de dom e contradom, que “tem lugar em ocasiões
diferentes, segundo um cerimonial que impede qualquer noção de
equivalência, porque com frequência as atitudes pessoais individuais
carecem de efeitos sociais”. Só em um ambiente organizado simetri-
camente, as atitudes de reciprocidade darão lugar a instituições eco-
nômicas de certa importância.7 As formas de integração devem
criar, portanto, um sistema. E a regra das sociedades que se baseiam
na reciprocidade não será senão a adequação:
7
Polanyi, 1977:64-65.
8
Polanyi (1977:66). O grifo de equidade é meu.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
ções de outro e na devida proporção da circunferência a seu
centro do mérito, porém não sem esta condição.
9
De Luca, 1740:54-65.
linhas, nenhuma das quais deve ser maior que as outras, ou en-
tão à balança, que para estar em equilíbrio deve ter tanto peso
em um prato como no outro: e em consequência, que a cada um
se dê o seu e o que lhe é devido, mas não mais nem menos.10
10
De Luca, 1740:66.
11
Cf. Villey (1991). Mais em geral, cf. Villey (1985).
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
é aparente: é a liberdade do pecador sob tutela.
Há, pois, uma aparência de incomensurabilidade nas relações de
reciprocidade porque há uma aparência de liberdade absoluta. Po-
rém, nela se oculta um sentido determinado de justiça que se mede
em função da adequação na criação de uma sociedade hierarquizada
e corporativa em que não são justos os atos econômicos que têm
como fi nalidade o enriquecimento, a não ser os que tendem a favo-
recer a circulação de bens e o bem-estar coletivo e desigual, em que,
portanto, predominem a amizade e a boa vontade e no qual cada um
tenha o que lhe corresponde segundo equidade, ou seja, conservan-
do a proporção relativa a seu status. Em consequência, a equidade é
um ideal que não se mede sobre a base de regras abstratas, mas sobre
a base de referências ao processo geral de melhora progressiva da
sociedade rumo a seus destinos sobrenaturais; não são objeto de me-
dição por parte dos atos particulares, mas de juízo por parte da Igre-
ja em seu papel de tutora.
Sendo assim, como podemos caracterizar mais detalhadamente
este conceito de equidade?
4
É obrigatório remontar o conceito de equidade (epiéicheia) a este
conhecidíssimo fragmento da Ética a Nicômaco:
12
Skinner, 1978:213.
13
Cf. Skinner (1978:199-253) sobre o renascimento do tomismo, e Clavero (1991).
14
Aristóteles. Ética a Nicômaco, livro V, 14, p. 5-25.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
embora sem atribuir-lhe natureza antijurídica ou ilícita.15 Para mim,
em contrapartida, me parece que a equidade — ou, melhor, as equi-
dades — são a própria raiz de um sistema jurídico que aspira orga-
nizar uma sociedade estratificada, porém móvel, na qual convivem
muitos sistemas normativos no esforço de conhecer o que é justo
para cada um.
Não poderíamos compreender as revoltas camponesas da Idade
Moderna se as concebêssemos como revoltas contra um sistema es-
tratificado e não como destinadas a obter o justo e equitativo para os
camponeses no seio de um sistema de desigualdades aceitas. O mes-
mo ocorre com as revoltas anonárias básicas, segundo Edward P.
Thompson,16 para a interpretação da economia moral do povo e que
são precisamente revoltas pelo preço justo ou, melhor ainda, pela
reafi rmação de um sistema adquirido diferenciado e equitativo de
preços, mas não movimentos igualitários ou contrários à existência
do mercado; para confi rmar e não para modificar a estrutura social.
Além disso, me parece que acentuar a equidade contribui para
explicar os esforços classificatórios que caracterizam a sociedade de
Ancien Régime, esforços desprendidos justamente para defi nir de ma-
neira estável condições sociais às quais se reconhecem privilégios
específicos. Para dar um exemplo extremo, pense-se no gênero pic-
tórico mexicano que floreceu nos séculos XVII e XVIII, que repro-
duz “a sociedade de castas” e que trata de classificar os efeitos das
mestiçagens e das mestiçagens de mestiçagens entre índios, brancos,
negros e orientais: “de mulato e mestiça se produz mulato tornatrás”,
ou “de índio e mestiça nasce coyote”, ou “de espanhol e índia nasce
mestiço; de espanhol e mestiça, castizo; de espanhol e castiza, espa-
15
Veja-se, por exemplo, as sínteses: Calasso (1966:65-68); Guarino (1960:619-
624); Varano (1989:1-14).
16
Thompson (1993). Até que ponto os cardeais que administravam a anona roma-
na tinham presente o problema do preço justo dos alimentos é mostrado em Marti-
nat (1999).
17
Cf. García Sáinz, 1989.
18
Uma interessante casuística neste sentido, com referência aos tribunais civis ro-
manos, pode ser vista em Groppi (1999). Cf. também Ago (1998).
19
Berengo, 1999:339.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
5
Mas o que agora me interessa não é a história do conceito jurídico
de equidade, senão sua importância tanto para os sistemas jurídicos
como para a elaboração dos sistemas políticos e a realidade antropo-
lógica das sociedades do Mediterrâneo. Contudo, toda a história do
conceito de equidade pode ser sintetizada em dois processos contra-
postos: enquanto alguns ordenamentos — quase todos os dos Esta-
dos modernos continentais — tendiam a deixar de lado toda refe-
rência à equidade, reduzindo-a em realidade a instrumento perigoso
ao qual recorrer unicamente em casos extremos de ausência de re-
gras no campo civil, outros ordenamentos — os que acentuam mais
o papel dos tribunais e da jurisprudência — tendiam a fazer da equi-
dade um instrumento central da interpretação e da aplicação da lei.
Tenho a impressão de que precisamente nas sociedades mediterrâneas
não predominou nenhuma destas orientações, porém entre uma e
outra se seguiu uma história própria e paralela nas atitudes e nos sis-
temas informais de direito, embora não nos ordenamentos.
Escolherei três momentos como particularmente significativos.
Comecemos pela equidade canônica que ilustram, por exemplo, Ch.
Lefebvre,21 P. Fedele22 e, com particular atenção ao significado políti-
co de longa duração do conceito, P. Grossi,23 a quem remeto também
para uma análise mais profunda. Neste momento só me urge destacar
que a equidade é um elemento central de um sistema normativo que,
contrapondo a inflexibilidade e a imobilidade abstrata da justiça divi-
na à especificidade da justiça humana, prescreve diretamente como
20
Costa, 1999:19.
21
Lefebvre, 1951a.
22
Fedele, 1966.
23
Grossi (1995:203-222). Pelo contrário, em Gaudemet (1994) deixa-se de lado
por completo a importância do problema.
24
Lefebvre, 1951b.
25
Villari (1987:18). Tampouco me parece que encare este problema Borrelli (1993).
26
Villari, 1987:25.
27
Olivero, 1953.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
notável influência do direito canônico clássico no desenvolvi-
mento de toda a juridicidade ocidental. A posição central da
equidade canônica, verdadeira norma constitucional não escri-
ta; o sentimento constante da mutabilidade do direito humano;
a consequente e forçosa elasticidade deste e o importante papel
do juiz que o aplica: eis aqui pontos fi rmes que, ao transbordar
os termos fechados da sociedade eclesial, penetrarão na ordem
jurídica da sociedade civil, a solicitarão, a impregnarão.28
Mas vale a pena destacar que não se trata tão só de relação entre
ordem jurídica canônica e civil, senão também de influência da con-
cepção de unidade em um campo menos defi nido, como é o do
sentido comum de justiça, o modo de perceber o justo e o injusto
das sociedades católicas e, portanto, o modo de relacionar-se com o
Estado e suas instituições. Convivência complexa que, não obstante
os ordenamentos e as codificações, não se resolve em uma sucessão
de concepções jurídicas: de fato, no sentimento comum convivem
“nossa igualdade formal, abstrata, igualdade jurídica de sujeitos na
realidade desiguais e que continuam sendo desiguais apesar da cíni-
ca afi rmação de princípio” e “a igualdade que a aequitas pretende
garantir e que, pelo contrário, é pura substância […] a unicidade do
sujeito — do sujeito civil abstrato — é um futurível das invenções
iluministas. Não existe aqui o sujeito, mas os sujeitos, e sujeitos bem
encarnados, com toda sua carga de faticidade, ou seja, de imersão
nos fatos”29 e, portanto, de status e de papéis diferentes.
A equidade não se proporá sem gravíssimos confl itos: a conciên-
cia que a equidade contrapõe à própria concepção de Estado moder-
no, e em particular à monarquia absoluta, pouco a pouco abrirá ca-
28
Grossi (1995:216). A referência é também à equity do sistema jurídico inglês, que
contudo não estudaremos aqui, pois nos distanciaria demasiadamente desta análise
mediterrânea.
29
Grossi, 1995:179.
6
Podemos exemplificar isto com Bodin, que na interpretação dos
juízes de acordo com a equidade via precisamente uma ameaça ao
próprio princípio de soberania: na base mesma das teorias absolutis-
tas reside a contradição que deriva da interpretação da lei e da apli-
cação equitativa das normas como modo de operar dos juízes. No
primeiro livro de La République, capítulo X, Bodin defi ne “as ver-
dadeiras marcas de soberania”.
30
Bodin, J. Les six livres de la République, livro I, cap. 10. Tradução livre de “La
premiere marque du prince souverain, c’est la puisssance de donner loi à tous en général et à
chacun en particulier [...] sans le consentement de plus grand, ni de pareil, ni de moindre que
soi [...] La seconde marque de majesté […] décerner La guerre ou traiter la pax [...] La troi-
sième marque de souveraineté est d’instituer lês principaux offi ciers [...] Ce n’est pas I’élection
des offi ciers que emporte droit de souveraineté, (mais) la confirmation et provisión [...] L’autre
marque souveraine, c’est á savoir du dernier ressort, qui est et a toujours eté l’un des principaux
droits de La souveraineté [...] La cinquiéme marque de souveraineté [...] la puissance d’octroyer
gráce aux condamnés par-dessus les arrêts et contre la rigueur des lois, soit pour La vie, soit
pour les biens, soit pour I’honneur, soit pour le rappel du ban”.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
de, são inalienáveis. Só um aspecto da equidade escapa ao soberano:
31
Bodin, J. Les six livres de la République, livro I, cap. 10. Tradução livre de “Mais
entre les marques de souveraineté, plusiers on mis la puissance de juger selon sa conscience:
chose qui est commune á tous juges, s’il n’y a loi ou coutume expresse [...] S’il y a coutume ou
ordonnance au contraste, il n’est pas en la puissance du juge de passer par-dessus la loi, ni
disputer la loi [...] Mais le Prince le peut faire si la loi de Dieu —única limitação a la sobera-
nía— n’y est expresse”.
7
Durante todo o século XVII — de Hobbes a Leibniz —, o sonho de
uma lei tão simples e clara que reduzisse o papel de juiz ao de mero
agente de aplicação mecânica das normas dominaria as escolas fun-
damentais do pensamento jurídico-político. Quer se trate das inter-
pretações voluntaristas e nominalistas da justiça para as quais as coi-
sas são justas porque assim Deus o quis, quer das interpretações
essencialistas ou realistas, para as quais Deus quis que as coisas fos-
sem assim porque eram justas, quer das interpretações do positivis-
mo jurídico que deixam à vontade do homem a criação das normas
jurídicas para que sirvam a seus apetites nas cambiantes circunstân-
cias da vida, todas têm em comum a ideia de que há uma única
fonte de justiça e que, portanto, é possível criar uma justiça exata e
uniforme. A justiça distributiva tende a desaparecer dos objetivos do
32
Bodin, J. Les six livres de la République, livro VI, cap. 6. Sobre Bodin e a equidade,
veja-se Beaud (1994:191-196). Tradução das quatro citações em francês deste pará-
grafo: “a incomovível fi rmeza da regra de Policleto”; “da variedade e incerteza da
regra lesbiana”; “seguir a justiça harmônica e reunir os quatro pontos, a saber, a Lei,
a Equidade, a Execução da lei e o dever do Magistrado” e “acomodar a equidade à
variedade particular de lugares, momentos e pessoas” (N. do T.).
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
sem contrastes. Em suas reflexões jurídicas, por exemplo nas Medita-
ções sobre o sentido comum de justiça (c. 1702), Leibniz (1994) chega ao
que talvez seja a posição mais extrema quando sonha com uma jus-
tiça praticamente mecânica, de acordo com sua teoria lógica que
buscava a coordenação rigorosa entre signo e significado, que fi xas-
se de uma vez por todas a proporção entre caracteres e coisas, que é
o fundamento da verdade. A justiça é uma das
33
A busca de uma distribuição justa dos bens seria sem dúvida um objetivo dema-
siadamente ambicioso para o jurista e que, ou bem não forma parte de suas tarefas,
ou bem carece diretamente de todo sentido para ele. Grócio descarta a justiça dis-
tributiva do campo do direito propriamente dito. Villey (1985:529).
34
Leibniz, 1994.
8
Disto se dava conta Vico — que utilizarei como último exemplo da
evolução comparada do significado da equidade —, muito influen-
ciado pelo sentido católico da comunidade política no caminho
rumo à redenção, isto é, “o progresso não interrompido de toda a
história profana”. A semelhança com Leibniz é mera aparência: para
o primeiro, a equidade desaparece na lei, enquanto para o segundo,
a lei desaparece na equidade. Em De universi iuris uno principio et fine
uno (1720),35 Vico divide o direito natural em ius naturale prius e ius
naturale posterius, em que o primeiro mostra o indivíduo em sua exi-
gência de conservação, para a qual o critério individual de cada um,
dirigido à conservação, faz as vezes de norma. Em seu curso, a his-
tória tem a função de desvelar progressivamente uma ordem natural
diferente, fundada na capacidade da razão para transformar o prin-
cípio de conservação individual em coletivo, quer dizer, referido aos
corpos sociais. Este processo passa pelo ius gentium e pelo desenvol-
vimento do direito civil, que transformam a luta de todos contra
todos em relações de proteção baseadas no domínio e na subordina-
ção. Da equidade natural do ius prius, que se contrapõe à verdade
porque “ex ipsa hominis sociali natura duplex existit naturalis rerum socíe-
35
Vico (1974). A tradução italiana é de Carlo Sarchi, Milão, P. Agnelli, 1866.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
pretorio, no qual “o vulgo (é) sensível à equidade natural e ignora a
equidade política (vulgus naturalis solens, civilis aequitatis ignarum)”.
Com a manutenção invariável das fórmulas das ações — segundo as
XII tábuas —, o pretor provia a estabilidade da região civil, e com
as exceções, quando se tratavam questões não contidas nas XII tábu-
as ou quando a lei das XII tábuas resultava demasiadadamente dura
(si aequitati lex surda durave esset), lhes introduzia, em caso de neces-
sidade, a equidade do ius naturale.37
Assim se introduz uma jurisprudência benigna, “ars adqui boni”,
segundo a defi nição de Celso. A equidade natural se caracteriza,
pois, por acolher muitas exceções nas regras que a lei expressa, por-
que no ius naturale prius domina contudo um hiato entre indivíduo e
conveniência racional. A equidade civil, em troca, parece e é auto-
ritária, pelo que “muito frequentemente recebe o nome de rigor da
lei porque o rigor civil que se sofre imerecidamente é muito grave e
amargo (magis appellata est ‘iuris rigo’, quia civilis rigor est sane rigor in
causis in quibus contra immerente duratur)”.38 Só com o desenvolvimen-
to da racionalidade e da communitas, o direito natural posterius faz
coincidir aequitas e lei. Porém se trata de uma aequitas que tem sua
raiz na aequitas natural, que a comunidade consente realizar.
36
Vico, 1974:65.
37
Vico, 1974:283-285.
38
Vico, 1974: 289.
39
De constantia jurisprudentis (Vico, 1974:381).
40
Vico, 1974:57.
41
Vico, 1974:261.
42
Vico (1974:289). “A norma eterna de uma jurisprudência assim realizada é a
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
católico e no pensamento político tomista quando descreve o pro-
cesso que, através da realização progressiva da communitas entre os
homens dominados pelas paixões e pelo pecado, leva à explicitação
de uma racionalidade comum, que progressivamente elimina a força
das relações entre os homens. Em síntese, uma racionalidade que
conhece um desenvolvimento paralelo ao desenvolvimento das for-
mas de convivência social.
9
A fi nalidade dos exemplos que examinei era mostrar que as imagens
de justiça que se vão estruturando na Idade Moderna nos países eu-
ropeus e nos do Mediterrâneo nascem de modos diferentes de en-
frentar a oposição entre ordenamentos que, reforçando o peso da lei,
abrem passagem pouco a pouco para a codificação e o ordenamento
que reforçam — sem renunciar a certa forma de medida e de segu-
rança do direito — o poder interpretativo dos juízes nas práticas
judiciais. Desta forma, o problema vai se concentrando no espaço
concedido aos juízes perante os casos não previstos explicitamente
pela lei ou de difícil redução aos princípios fundacionais do ordena-
mento: é assim como o conceito de analogia vem cumprir um papel
muito importante, seja em sua forma mais limitada de analogia legis,
seja na mais geral de analogia iuris.
equidade natural, e por isso recebe e acolhe muitas exceções às regras que a lei ex-
pressa, e se esforça em temperar os rigores da razão civil. Mas por sua própria con-
dição, a equidade natural implica um rigor mais inflexível ainda; não exclui nin-
guém de sua lei imutável, e a nenhum homem pode a razão natural agradar com o
distanciamento da honestidade, pois a equidade natural é o nome genérico, que
compreende todas as formas do equitativo. Que a equidade civil receba mais fre-
quentemente o nome de ‘rigor de lei’ se deve a que o rigor civil sofrido imerecida-
mente é muito grave e amargo, enquanto, pelo contrário, a equidade natural, isto é,
a ‘equidade’ genérica e absoluta, se mostra sempre benigna inclusive nas causas nas
quais se mostra mais estreitamente unida (e em todas é encontrada); e perverso é o
conselho dos que a toleram de má vontade, porque têm o juízo ofuscado pela sabe-
doria dos sentidos, que temos defi nido como estultícia”.
43
Bobbio (1960). Cf. também Carcaterra (1988), com particular referência à rela-
ção entre equidade e analogia, p. 12-14.
44
Cf. Secretan (1984). Sobre as posições de Tomasso de Vio Cayetano a propósito
da analogia, veja-se Nef (1993) e Riva (1955). Sobre Tomás de Aquino e Suárez, cf.
Bastit (1990).
45
O Kant dos Prolegomena zu einer jeden künstigen Metaphysik die als Wissenschaft wird
ausreten können (1783) é citado por Needham (1980) em seu importante ensaio sobre
analogia intitulado “Analogical classification”.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
Pelo contrário, é preciso destacar que todos os ordenamentos que
tendem à individualização da pena, de grande predomínio nas so-
ciedades desiguais e hierárquicas do Ancien Régime, utilizam com
amplidão a analogia.47 Precisamente com referência à consideração
subjetiva do delito, à sua diferenciação de acordo com os momentos,
os lugares e as pessoas, à diferencialidade social de conjunto do sis-
tema jurídico, a equidade impõe o procedimento analógico como
instrumento central de direito. Não é necessário recordar o papel
central da analogia (qiyás) nos sistemas jurídicos islâmicos,48 nos
quais constitui uma das quatro fontes da lei muçulmana referida aos
casos em que não exista uma prescrição textual explícita do Corão
ou de uma tradição. Na realidade, o raciocínio analógico contém
um vigoroso elemento de insegurança e permite, por exemplo, in-
terpretações diferentes. Contudo, remete rigorosamente aos deveres
morais dos juízes e à equidade: de fato, coincide com o esforço de
investigação pessoal (ijtihâd).49
Mas o foco de toda a discussão sobre a analogia está ocupado pelo
problema da segurança e da uniformidade do direito: mesmo quan-
do o papel interpretativo do juiz seja na verdade amplíssimo, o pro-
blema da proporção entre as penas e a segurança se desloca — no
caso do direito islâmico — para o testemunho, para a multiplicidade
das provas, para a confissão do réu e para a coerência com os princí-
pios e as regras do direito de Deus.
Problemas semelhantes apresenta o papel da analogia (héqèsh y gezéra
chava) na exegese jurídica do direito talmúdico, no qual o raciocínio
46
Cf. Vassalli, 1960.
47
Sobre semelhança e analogia na sociedade moderna é útil referir-se também ao
capítulo 2, “Les quatre similitudes”, de Foucault (1966).
48
Veja-se a palavra “kiyas”, redigida por Bernard (1980:238-242). Cf. também
Schacht (1964:64-75), Coulson (1964:59-60) e Brunschvig (1976, vol. I, p. 303-
327; vol. II, p. 347-403).
49
Em um dos textos fundadores da metodologia jurídica islâmica, Muhammad lbn
Idrîs Ash-Shâfi î (767-820) defi ne com clareza tanto o raciocínio analógico como o
esforço de investigação pessoal: Shâfi (1997:317-338).
50
Wingort, 1998:xix.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
ca ou valor numérico das letras. Seus limites, contudo, são específi-
cos e rigorosos porque se defi nem progressivamente a partir das sete
regras de Hillel para passar através das treze middot de Rabbi Ismaél,
para chegar às chamadas trinta e duas middot que devem seu nome a
Eliezer ben Yosé há-Gelili.51
No direito canônico se apela expressamente para a analogia no
cân. 20 C.J.C., que detalha os quatro meios para preencher as lacu-
nas. O primero destes meios é precisamente a analogia em sua versão
débil de semelhança: “Si certa de re desit expressum praescriptum legis sive
generalis sive particularis, norma sumenda est, nisi agitur de ponis applican-
dis, a legibus latis in similibus, a generalibus juris principiis cum aequitate
canonica servatis, a stylo et praxi Curiae Romanae; a communi constantique
sententia doctorum”.
No direito canônico, a distinção entre analogia tesis (o recurso a
leges latas in similibus) e analogia iuris, com referência aos princípios
gerais, levará Suarez ao princípio geral em virtude do qual é legíti-
ma a interpretação extensiva de qualquer lei eclesiástica, inclusive
penal, porque se funda no fi m da lei, que acentua a salus animarum e
a aequitas canonica. Mas tampouco aqui se trata de arbitrariedade,
senão de uma proporção geométrica que refere o caso específico ao
sistema de conjunto e proporciona méritos e culpas entre eles.
Contudo, é importante recordar que no campo católico — subs-
tancialmente uniforme no que diz respeito aos procedimentos jurí-
dicos — a discussão sobre a analogia apresenta profundos contrastes
de grande importância político-teológica. Contra as posições domi-
nicanas de Cayetano, que privilegiam a analogia de proporcionali-
dade e que consideram a analogia como diferença gradual, Suárez
sustenta a analogia dos atributos, a analogia da atribuição. Assim, em
De Legibus, afi rma que Deus transmite ao povo o poder soberano
51
Abitbol (1993:94-210). Para a relação com a equidade, cf. também Cohen
(1991:145-184).
10
Após esta viagem, demasiado rápida sem dúvida, pelos conceitos
mencionados, voltemos à reciprocidade. O que tratei de sugerir é
que, quando referimos a reciprocidade equilibrada e a reciprocida-
de generalizada às sociedades complexas do Mediterrâneo e às for-
mas econômicas, sociais e jurídicas que nelas predominam, é neces-
sário complexar a diferenciação entre esses conceitos, hoje em dia
moeda corrente entre os antropólogos. De fato, não se trata de
identificar transações presumivelmente altruístas, modeladas sobre
o padrão da assistência prestada e, se é possível e necessário, recom-
pensada, mas sem a expectativa de uma contrapartida material di-
reta de transações diretas nas quais a compensação seja um equiva-
lente consuetudinário e instantâneo do bem recebido.53 Em uma
sociedade que não tem uma defi nição clara da determinação dos
valores econômicos,54 que não conhece um mercado impessoal e
autorregulado, os problemas de defi nição do preço justo e do salá-
rio justo são complexos e remetem continuamente ao conceito de
equidade. Não se trata de deduzir o valor dos bens intercambiados
de uma determinação defi nida no intercâmbio, nem de uma carac-
terística intrínseca dos bens, mas de construir um sistema de inter-
52
Suárez, F. Tractatus de legibus ac Deo legislatore, III, viii, 4-6 y III, xv, 11.12. Utili-
zou-se a edição do Corpus Hispanorum de Pace do CSIC, Madri, 1975, p. 103-107 e
p. 231-239. Sobre equidade, inclusive em relação com a analogia na interpretação
das leis, Suárez discute amplamente sobretudo no livro II, xvi, p. 1-16.
53
Retomo aqui a defi nição de Sahlins (1972:185-261).
54
Grenier (1996) tem proposto o problema com maior ênfase na dificuldade para a
elaboração de uma teoria do valor que no marco cultural distinto em que se colo-
cava a prática do intercâmbio.
RECIPROCIDADE MEDITERRÂNEA
bem adote valores distintos segundo quais sejam as pessoas que en-
tram na transação: “in salarii taxatione ad hoc, ut se cum dispositione
iuris conforment multarum rerum rationem habere debebunt, et primo qua-
litatis personae”.55 Como se pode pagar um médico, que se ocupa da
vida e da morte?, pergunta-se o jurista Zacchia. Ou a um juiz, que
se ocupa do justo e do injusto? Não pode haver um salário adequa-
do: eles serão pagos de maneira diferente, não por suas prestações,
nem por sua capacidade, mas de acordo con seu status social, seu
prestígio, sua honra: por isso se denomina “honorários” ao salário
do médico e do juiz.
Sendo assim, a mistura de economia e ética, de valores gerais da
sociedade e de valores específicos que entram na reciprocidade que
se manifesta nos intercâmbios, complica e dificulta a determinação
das medidas — imprescindíveis, contudo — da sociedade equitativa
e desigual que obedece a estas regras.
Isto não se opõe ao esforço de medir e assegurar os valores e dar
uma ordem legível à sociedade por meio de classificações simplifica-
doras: esta exigencia será precisamente a que favoreça o progressivo
predomínio de esquemas uniformes de valor que deslocarão a aten-
ção do uso e das pessoas para o intercâmbio e para as coisas. Mas
nunca haverá uma vitória total em nenhum campo, e menos ainda
no campo jurídico, setor no qual sempre será difícil separar a justiça
legal do sentido comum de justiça.
Creio que precisamente através do exame destes problemas, exa-
me que requereria sem dúvida muito mais espaço do que eu tivesse
podido dispor aqui, será possível esclarecer algumas diferenças subs-
tanciais na história e nas características culturais e antropológicas de
diferentes países e identificar uma série de especificidades mediter-
râneas que continuam operando ainda hoje.
55
Zacchia (1658:37). Um exemplo muito evidente da relação entre economia e
salário justo se encontrará em Trivellato (1999).
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∗
Traduzido da versão italiana “Economia contadina e mercato della terra nel Pie-
monte di Antico Regime”. Publicado em Storia dell’agricoltura italiana in età contem-
porânea, II, Uomini e classi, Marsilio Editori, 1990, p. 535-553. Tradução e notas
para a versão em português de Ângela Brandão.
1
Polanyi, 1980:32-33.
2
Polanyi, 1980:29.
3
O termo viscosidade, empregado por Giovanni Levi em diferentes momentos de
seu texto, foi mantido na tradução como oposição à ideia de fluidez, mas poderia ser
entendido como complexidade.
4
MacFarlane (1978). Em realidade, os estudos sobre o mercado da terra na Inglater-
ra medieval são mais atentos aos problemas aqui discutidos do que aquele extremo de
MacFarlane. Cf., em particular, Postan e Brooke (1960). Os estudos sobre a Inglater-
ra são muito numerosos e foram discutidos em Levi (1989:225-258). (N. do T.)
5
A utilização de preços médios que escondem as oscilações foi uma prática cor-
rente na historiografia que se ocupou do mercado da terra no Antigo Regime. Al-
guns exemplos: para a Inglaterra medieval, cf. Rafi s (1974); para a América colo-
nial, Davisson (1967). Ainda os ótimos estudos de Béaur (1984) e Masella (1976)
parecem-me pouco sensíveis ao problema da dispersão dos preços. Importantes con-
7
Chayanov, 1966:9-10.
8
Chayanov, 1966:10.
9
Cf., em particular, Geertz (1963 e 1979).
10
Levi, 1985a.
11
Cf. Razi, 1980:28-30; 111-112.
12
Levi (1985b:151-177). Também sobre Brischerasio, no Piemonte, cf. Sclarandis
(1987).
13
Prato (1908:192-201 e 1910:334-339). O fundo da equiparação relativo ao espó-
lio dos contratos de compra e venda sobre os quais estão baseados todos os dados
citados nas páginas seguintes encontra-se no Arquivo de Estado de Turim, Seções
Reunidas, Finanças, segundo arquivamento, pasta 21, maços 162-206. Os dados
sobre formas jurídicas de posse da terra foram retirados do maço 43 do mesmo fun-
do. Os dados sobre população estão na pasta 10, maços 1-9.
14
Prato, 1908:198.
15
Idem.
16
Bracco, 1981:51-52.
TA B E L A 1
Percentuais de terras vendidas em 29 anos sobre o total
da superfície disponível (1680-90 e 1700-17)
TA B E L A 2
Percentuais de contratos relativos a propriedades superiores a 10 jornadas
sobre o total das vendas (em jornadas e liras piamontesas)
17
O número de camponeses é uma hipótese, proporcional à superfície: o levantamen-
to completo do fundo — que tenho em curso — permitirá uma maior precisão.
TA B E L A 3
Número das transações em quatro províncias
TA B E L A 5
Relação entre extensão de terra alodial per capita
e número de camponeses por família — província de Ivrea
TA B E L A 6
Relação entre extensão de terra alodial per capita
e número de contratos por família — província de Saluzzo
18
Uso aqui os termos de Appadurai (1986), que sustenta tese de grande interesse
(mas um pouco geral demais) também para o estudo do mercado da terra.
19
Chayanov (1966:235-238). As pesquisas de Laur sobre a Suíça são temas de con-
tínuo confronto utilizado por Chayanov.
20
Concordo em grande parte com a tese sustentada no livro; no entanto, o papel da
terra parece-me subavaliado, em particular nas montanhas: como seria “superado
pelo tempo o problema de separar os produtores da terra” (Merzario,1989:13), uma
vez que me parece que seja bastante útil no estudo da proto indústria levar em con-
sideração o papel diferenciado que resulta do confl ito entre modelos diferentes de
mercado da terra.
21
As teses de Ester Boserup, que têm alguma analogia com tudo o que aqui susten-
tei sobre a capacidade dos negócios camponeses tradicionais de desenvolver novas
técnicas e de incrementar a produção, parecem-me não levar em conta esta diferen-
ça de confl ito de comportamento econômico. Cf. Boserup (1981).
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1
Ver a esse respeito Miccoli (1970), esp. p. 223-228.
2
Ginzburg, apud Lima, 2006:286.
DELIO CANTIMORI
formas e fórmulas para além do contexto em que nasceram.3
3
Ginzburg, 2007:9-10.
4
Cantimori, 1992:11.
DELIO CANTIMORI
arquivos e os museus, faziam de Pisa um dos mais importantes centros
de estudos humanísticos na Itália e passagem necessária de pesquisado-
res de toda a Europa. Nesse ambiente deu-se, quase integralmente, a
formação acadêmica e a prática docente de Delio Cantimori.
Em Pisa, Cantimori participou, como aluno, da escola de Giovan-
ni Gentile e de Giuseppe Saitta. No prefácio de Eretici italiani del Cin-
quecento, ele próprio afirmaria que seu interesse original em estudar
esse tema teria surgido da leitura do livro de Gentile, Giordano Bruno
e il pensiero del Rinascimento. Certamente também as conferências de
Gentile, em parte publicadas depois no livro Il pensiero italiano del Ri-
nascimento, conferências que mergulhavam com amplitude na ciência
e na fi losofia do Renascimento, teriam aberto ao jovem estudante o
universo do humanismo italiano. Com os escritos e o ensinamento
acadêmico de Gentile, Cantimori diz ter sido encorajado a retomar a
leitura (já realizada na juventude) da obra de Burckhardt sobre o Re-
nascimento italiano. Gentile, afinal, era um dos principais responsá-
veis pela recepção dos escritos de Burckhardt em solo italiano nas
primeiras décadas do século XX. Vale lembrar as páginas de Gentile
sobre o papel de Petrarca na formação do humanismo italiano, além
de seu estudo sobre o caráter do Renascimento ou aquele sobre o
conceito de homem no Renascimento, todos publicados em Il pensiero
italiano del Rinascimento. Esses escritos traziam a marca burckhardtiana
da compreensão do Renascimento italiano como berço e origem do
indivíduo moderno, e eram interpretados, pelas mãos de Gentile,
numa chave de cunho fi losófico-idealista que marcou um tipo de
leitura de Burckhardt nas primeiras décadas do século XX, e não
somente na Itália. A tese de perfezionamento de Cantimori sobre o
conceito de Renascimento fora discutida na Scuola Normale exata-
mente com Giovanni Gentile, e publicada em 1932.5 Sobre o papel
de Giuseppe Saitta, autor de livros como Marsilio Ficino e la filosofia
5
Cantimori, 1932:229-268, reed.: Cantimori, 1971:413-462.
6
Saitta, 1953:vi.
7
Idem.
DELIO CANTIMORI
seus estudos sobre um grande tema de história moderna.
Mas o deslocamento da fi losofia para a história, de acordo com o
próprio Cantimori, teve no centro dois acontecimentos: a leitura do
livro do historiador Gioacchino Volpe, Movimenti religiosi e sette ereti-
cale nella società medievale italiana, e a permanência para estudos em
Basileia (Suíça), no início da década de 1930. A importância do li-
vro de Volpe ficaria atestada em uma carta dirigida a ele por Canti-
mori, em 30 de novembro de 1939, que dizia o seguinte:
8
Apud Prosperi, 1971:XXVII.
9
A esse respeito, ver Miccoli (1970:54-62).
DELIO CANTIMORI
dade; mas as vidas dos homens, as suas atividades intelectuais, as
relações entre homens pareciam sempre menos claras e precisas;
assim sensivelmente se passou do estudo doutrinário ao estudo
erudito, pensando, porém, sempre em dar uma base concreta a
uma pesquisa de ordem puramente fi losófica ou de história da
vida intelectual fi losófico-religiosa. [...]
10
Cantimori, 1992:11-13.
DELIO CANTIMORI
Nesse sentido, é significativo que, no futuro, tenha sido a esposa
de Cantimori, Emma Cantimori, a tradutora para o italiano da obra
de Aby Warburg, editada na Itália em 1966. É também sintomático
que no primeiro número do Journal of the Warburg Institute, de 1937,
Delio Cantimori tenha publicado o artigo “Retórica e política no
humanismo italiano”. Em 1937, Aby Warburg não mais vivia. Po-
rém, seus estudos e sua memória eram celebrados por um círculo de
historiadores da arte e da cultura em torno do “Instituto Warburg
para a Ciência da Cultura”, então instalado em Londres. O historia-
dor alemão, que tinha eleito como mote de seu trabalho intelectual
a máxima de Flaubert, “Deus está no particular”, o estudioso do
Renascimento que já em 1902, concentrando-se no círculo erudito
de Lorenzo, o Magnífico, em Florença, observava as pinturas de
Domenico Ghirlandaio como “provas indiciárias” (Indizienbeweis)
do gosto clássico florentino, havia sido importante para Cantimori.12
Especialmente os estudos de Warburg sobre a “profecia antiga pagã
em textos e imagens da época de Lutero”13 (publicados em 1920)
tinham interessado ao estudioso italiano, e não apenas pelo tema. O
modo pelo qual Warburg percebia o traço de paganismo nas ima-
gens astrológicas elaboradas no âmbito do cristianismo luterano, e
especialmente no círculo de relações muito próximas a Lutero, abri-
ra os olhos de Cantimori, fazendo-o perceber que, no oceano de
diversidade que compõe o tecido histórico, a concretude da vida e
da ação dos homens instala-se sempre nas fronteiras dos modelos
ideais. Warburg, no texto em questão, percebia a presença dos de-
mônios astrais nas imagens e nos textos astrológicos elaborados no
ambiente de Lutero como produtos de um entrecruzamento cultural
que dizia respeito a interpretações árabes medievais de estudos astro-
lógicos gregos no âmbito de Aristóteles, depois aportadas na Itália
11
Ver, a esse respeito, Miccoli (1970:90).
12
Warburg, 1932a:96.
13
Warburg, 1932b:487-557.
14
Apud Miccoli, 1970:310.
DELIO CANTIMORI
naquele momento, dos estudos sobre o humanismo italiano, aluno de
alunos de Jacob Burckhardt. Kaegi, por sua vez, discípulo de Walser,
era o estudioso do humanismo na Europa central, autor recente de
uma tese sobre Hutten e Erasmo. Com Kaegi iria se prolongar, por
parte de Cantimori, um frutífero diálogo erudito e uma sincera ami-
zade que levaria um e outro a transpor inúmeras vezes a barreira dos
Alpes. Além das várias conferências pronunciadas por Werner Kaegi
na Scuola Normale Superiore di Pisa e das muitas visitas de Cantimo-
ri à Universidade de Basileia, visitas que incluem a de 1960, para re-
ceber das mãos de seu ex-professor de história da Igreja, então reitor
Ernst Stähelin, o título de doutor honoris causa. O contato erudito
entre os dois ficaria registrado na história das edições de seus livros.
Kaegi foi o responsável pela publicação basileense dos Eretici italiani del
Cinquecento, em 1949. Cantimori foi o tradutor na Itália das Historische
Meditationen de Werner Kaegi. No dramático contexto da II Guerra
Mundial, as conferências de ambos juntaram-se à voz de um outro
historiador da cultura, o holandês Johan Huizinga. Os três haviam se
encontrado em Basileia, em 1936, para celebrarem o quarto centená-
rio de morte de Erasmo. Naquele momento, eram três conferencistas
refletindo sobre o humanismo na Europa central. Tempos depois,
Cantimori trabalharia na edição em italiano do livro do historiador
holandês, As sombras do amanhã, e Kaegi traduziria para o alemão o
último manuscrito de Huizinga, inédito até mesmo em idioma ori-
ginal, Quando falam as armas. Entre Cantimori e Kaegi havia ainda
outro ponto de aproximação. Enquanto Kaegi trabalhava no maior
empreendimento de sua vida, a biografia intelectual do historiador
de Basileia, Jacob Burckhardt, em sete volumes e editada entre 1947
e 1982 (o último publicado postumamente), Cantimori fazia a já
referida tradução italiana das Weltgeschichtliche Betrachtungen de Bur-
ckhardt: as Meditazioni sulla storia universale15 publicadas na Itália em
15
Burckhardt, 1959.
16
Ver Cantimori (1971).
DELIO CANTIMORI
sas aulas, o historiador afi rma a necessidade de descentralizar os es-
tudos dos hereges italianos, apagando seu sentido de movimento
(entendido como corrente de algum modo unitária e contínua),
para integrá-los na vida religiosa italiana e europeia. Nas palavras de
Delio Cantimori (1992:424):
17
Cantimori, 1992:419-481.
DELIO CANTIMORI
timori. Florença: Sansoni, 1959.
———. Refl exões sobre a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.
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In: WARBURG, A. Der Erneuerung der Heidnischen Antike. Leipzig, Berlim:
B. G. Teubner, 1932b. Band 1.
1
Cf. Sewell Jr., 2005:25.
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
Esse quadro se transformou bastante entre o final dos anos 1960 e o
início dos 80. Os motivos são muitos, de natureza tanto historiográfica
quanto extra-historiográfica. Não há dúvida de que há uma relação
dialética entre as transformações políticas e culturais e as mudanças no
campo das ciências sociais. A crescente percepção de que uma “crise”
se abria no horizonte aconteceu simultaneamente nos dois campos.2
Não creio que haja necessidade de detalhar a natureza dessas
transformações. Falando dos Estados Unidos e da Europa ocidental,
pode-se acompanhar a análise de William Sewell Jr. (2005:30 et
seq.), que vê na falência do modelo “fordista” (uma expressão usada
por ele para classificar tanto as sociedades quanto as ciências sociais
que nelas se desenvolviam no período) um dos fatores essenciais
dessa crise. De acordo com Sewell Jr., a desconfiança crescente
quanto às virtudes de um modelo de sociedade padronizada e estru-
turada foi um dos fatores essenciais a mover tanto os movimentos
políticos de esquerda e a contracultura a partir do fi nal da década de
1960, quanto a própria agenda dos historiadores sociais.
Assim, o que se vê na década de 1970 é que o ponto alto do su-
cesso da história social coincidiu com o momento em que ela come-
çou a passar por profundos questionamentos sobre o próprio alcance
de seus resultados como disciplina. Dois diagnósticos, publicados
com duas décadas de diferença e realizados por protagonistas dos
debates sobre a história social, nos ajudam a compreender o alcance
e a direção das transformações que ocorreram no período.
Pensando o estado da história social em 1971, é perfeitamente ra-
zoável que Eric Hobsbawm concluísse seu amplo diagnóstico sobre o
campo afirmando que era “um bom momento para ser historiador
social”,3 sublinhando ao mesmo tempo as fronteiras ilimitadas da
2
Sobre alguns dos impasses que brotaram dessa conjuntura de “crise”, ver Lima
(2002:77-106).
3
Hobsbawm (1997:105), texto originariamente publicado em Daedalus, n. 100, p.
20-45, 1971.
4
Cf. Hunt, 1992.
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
porém, de que o centro do palco — o que ecoava mais fortemente
nas caixas de reverberação acadêmica (sobretudo nos Estados Uni-
dos e na França) — era um debate que tematizava crescentemente a
cultura. O impacto sobre o vocabulário em circulação nos debates
centrais da historiografi a mostra isso: noções como “classe”, “estru-
tura”, “organização social” foram sendo menos escutadas, enquanto
termos como “identidade”, “gênero”, “subjetividade” e “representa-
ção” tomavam clamorosamente a dianteira.
A “virada cultural” (e mesmo, em uma versão mais extrema, uma
“virada linguística”) sintetizou essa busca por rearranjar a hierarquia
de importância na interpretação histórica entre os anos 1980 e o fi-
nal da década de 90. É importante notar, entretanto, que esse qua-
dro não deixou de se transformar. O último capítulo ou, quem sabe,
o último capítulo antes do último — para parafrasear Siegfried Kra-
cauer (1969) — dessa história é o que se vive hoje, com a revisão de
parte desse quadro, onde parece estar em curso uma nova inflexão
desse panorama teórico.5 Isso se deve, é preciso acrescentar, pelo
menos em parte, à dinâmica própria ao desenvolvimento de qual-
quer debate intelectual, e que faz com que fi nalmente se acabe con-
frontando as promessas feitas no momento com os resultados teóri-
cos e empíricos que as próprias pesquisas obtiveram ao longo do
tempo. Pretendo voltar a falar mais adiante sobre esse quadro de
reavaliação, após me deter no segundo ponto de discussão que le-
vantei no início deste capítulo.
A pergunta sobre os modos às vezes contraditórios pelos quais a
micro-história se relacionou com esse quadro de transformações da
história social levanta alguns pontos de discussão nos quais valeria a
pena nos deter mais.
5
Atestam isso, parece-me, as recentes avaliações dos caminhos do debate históri-
co nos Estados Unidos, das quais se pode destacar o já citado livro de William
Sewell Jr., Logics of history, e o de Geoff Eley, Una linea torcida (publicado originaria-
mente em inglês em 2005).
6
Edoardo Grendi (1998:258) afi rmou, em um artigo de balanço publicado pela
primeira vez em francês em 1996, que a “microanálise representou uma espécie de
‘via italiana’ para uma história social mais elaborada (e mais fundamentada teorica-
mente) num contexto particular, fechado às ciências sociais e dominada por uma
ortodoxia historiográfica que hierarquizava de maneira rígida a importância dos
objetos”. O diagnóstico, a meu ver, pode ser estendido ao debate sobre a micro-
história como um todo.
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
O tema da “microanálise”, que emergiu inicialmente como o ter-
mo que sintetizava as preocupações teóricas e metodológicas, brota
das intervenções de Edoardo Grendi no debate sobre a história so-
cial nas páginas dos Quaderni Storici. A trajetória intelectual de
Grendi revela, por outro lado, o quanto a micro-história devia a esse
debate mais amplo que ocorria não só sobre a história social fora da
Itália, mas também sobre a forma original que poderia adquirir
(como, de fato, adquiriu) ao entrelaçar-se com discussões menos
óbvias e problemas de investigação que brotavam da própria histo-
riografia italiana.7
Um aspecto importante a ser ressaltado é que a microanálise ape-
nas lentamente ganhou substância em trabalhos de pesquisa empíri-
ca. Tratava-se antes de tudo de uma proposta metodológica, com
forte inspiração na antropologia social. Na medida em que o debate
se tornou mais amplo e mais diversificado, aquele programa intelec-
tual inicial foi bastante alterado. Como falou Carlo Ginzburg
(2007a:249), o fato é que, em meados dos anos 1970, a micro-histó-
ria mais parecia um rótulo em uma caixa vazia, a ser preenchida.
A citação de Ginzburg não é casual, pois ele é um dos responsá-
veis pela complicação do quadro da interpretação do debate. Como
já se falou muitas vezes, a trajetória de Ginzburg e suas preocupações
intelectuais não poderiam estar mais distantes das dos outros prota-
gonistas da micro-história, como Giovanni Levi, Edoardo Grendi e
mesmo Carlo Poni, com quem de resto Ginzburg escreveu um tex-
to sugestivo sobre o tema em 1979.8
A aproximação de Ginzburg passava por um conjunto muito
diferente de diálogos e aproximações, e sua abordagem da história
7
Sobre a trajetória intelectual de Grendi, ver a introdução de Osvaldo Raggio e
Angelo Torre ao livro de Grendi publicado postumamente, In altri termini. Ver tam-
bém o capítulo “História social e microanálise: Edoardo Grendi”, de Lima
(2006:151-224).
8
Ver Ginzburg e Poni (1989:169-178).
9
Ver Ginzburg (1988).
10
Ver Ginzburg (1987 e 1989a).
11
O texto a que me refiro é “Sinais. Raízes de um paradigma indiciário”, em Ginz-
burg (1989b).
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
gunda vertente microanalítica, na qual se incluía, Grendi qualificava
como voltada para a contextualização social, marcada por outros
“procedimentos analíticos” e interessada na “reconstrução de redes
de relações e [na] identificação de escolhas específicas (individuais e
coletivas)”, que reconhecia o “primado das relações interpessoais”
como seu principal plano de investigação.12
Esse quadro esquemático era problematizado, no entanto, mais
adiante pelo próprio Grendi. “Empréstimos e trocas recíprocas” aju-
davam a turvar esses limites, sendo a “alternativa original entre con-
textualização social e contextualização cultural” excessivamente
abstrata e havendo sido superada, ao menos parcialmente, pela pró-
pria pesquisa.13 Além disso, Grendi reconhecia que a mudança no
quadro de influências e diálogos que os historiadores ligados à mi-
cro-história empreenderam acabou sendo responsável por reforçar
temas não previstos no programa original, como a aproximação
com a antropologia cultural, o interesse por idiomas políticos, a dis-
cussão sobre as “práticas sociais”. De resto, o “elemento decisivo” a
marcar a experiência historiográfica entre meados dos anos 1980 e
meados dos 90 havia sido a “passagem de uma problemática da pro-
dução e da troca para a da linguagem e da representação”.14
O quadro abstrato que dividia arbitrariamente a micro-história
social da micro-história cultural permaneceu não resolvido no pla-
no da discussão teórica. Um dos motivos disso talvez tenha sido o
fato de nunca ter acontecido um verdadeiro diálogo sobre as dife-
renças e convergências entre as duas abordagens possíveis para a
micro-história. Isso talvez tenha acontecido — o que me parece
mais importante — no próprio trabalho dos micro-historiadores
nos anos seguintes e se mantido como uma das fontes de renovação
do próprio debate.
12
Grendi, 1998:253.
13
Cf. Grendi, 1998:259.
14
Grendi, 1998:254.
É preciso olhar com mais atenção, portanto, o lugar que esse tema
ocupou nas “duas vertentes” micro-históricas, o que tem a ver, aliás,
com o próprio lugar da micro-história na reorientação do debate
sobre a história social durante as décadas de 1970 e 80.
O tema da cultura estava longe de ser uma preocupação ausente
nas discussões sobre a microanálise. Ao contrário, o projeto históri-
co-antropológico que inspirava a micro-história sugeria exatamente
que a avaliação da importância dos modelos culturais tinha um peso
significativo para a compreensão das lógicas e estratégias sociais. Nes-
se sentido, é digno de nota o entusiasmo com que um historiador
como Grendi acolheu os trabalhos publicados por Natalie Davis no
início dos anos 1970,15 bem como sua análise certamente positiva dos
trabalhos de antropologia histórica publicados por E. P. Thompson,
reunidos por Grendi em um volume intitulado Societá patrizia, cultura
plebea (Sociedade patrícia e cultura plebeia), publicado em 1981 como
o segundo número da coleção einaudiana “Micro-histórias”.16 Davis
e Thompson haviam sido pioneiros nessa exploração da interface
com a antropologia, sem abandonarem um programa forte de histó-
ria social.
Mas a questão que me parece mais relevante aqui é a maneira dis-
tintiva com que a vertente “social” da micro-história tratava o proble-
ma da cultura. Esse elemento está ligado, a meu ver, ao modo de in-
vestigar essa dimensão.
Se observarmos alguns dos principais trabalhos que levaram adian-
te as exigências de contextualização social que a microanálise havia
colocado em pauta — por exemplo, o livro de Giovanni Levi A he-
rança imaterial —, a cultura tinha um papel importante e confundia-se
com o modo pelo qual os sujeitos sociais organizavam suas vidas e o
horizonte de racionalidade em que suas ações faziam sentido. A cul-
15
Ver Grendi, 1976.
16
Thompson (1981). Sobre a avaliação de Grendi do trabalho de N. Davis, ver tam-
bém Lima (2006b:151-224).
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
que de respostas para o problema da incerteza e definia um conjunto
de valores e de princípios comuns que davam sentido às escolhas fa-
miliares, a lógica do mercado de terra, a política e assim por diante.
O que Levi evitava fazer em seu livro era pensar a cultura como um
contexto autônomo, tomando uma distância considerável da história
das ideias. Assim, sua investigação sobre a trajetória de Giovan Battista
Chiesa não procura encontrar o sentido da pregação do padre exorcis-
ta nos livros religiosos ou nos manuais de exorcismo, mas busca-o so-
bretudo nos modos possíveis com que os camponeses que seguiam
Chiesa organizavam seu horizonte de expectativas diante de um mun-
do em colapso. A discussão de Levi ecoa em muitos pontos o programa
de pesquisa que Edoardo Grendi havia feito discutir alguns anos antes:
para Grendi (1981:71-72), entre os “objetos analíticos” de uma micro-
análise deveria estar seguramente a cultura, isto é, as “formas expressi-
vas coletivas” cujo significado, enquanto “orientação de valor”, pode-
ria ser capturado não só na palavra, no gesto ou rito, mas também na
“ação social, [na] violência coletiva, [na] organização”. Essa inspiração
etnográfica estava presente, em A herança imaterial, na pesquisa intensiva
sobre as formas de organização da vida camponesa, no funcionamento
do mercado de terras, no estudo do jogo de alianças verticais e hori-
zontais operado pelos vários sujeitos sociais, bem como na reflexão
sobre o caráter imaterial do poder político que dava título ao livro.
Em contraste, podemos pensar um pouco sobre aquilo que separa
e aproxima o livro de Levi de um outro trabalho que ajudou a dar
conteúdo ao termo “micro-história”: O queijo e os vermes, de Carlo
Ginzburg. Ali o autor procura reconstruir, através da leitura intensi-
va das palavras do moleiro Menocchio registradas no processo inqui-
sitorial de que fora objeto, um contexto cultural e intelectual perdi-
do. As ideias de Menocchio e, em especial, a grade de leitura que ele
projetava nos livros que lia faziam emergir um extrato cultural desa-
parecido de uma cultura camponesa com componentes materialistas
e radicais que não podiam ser intuídos através de outras fontes e,
17
Ver Merzario (1982); e Boureau (1991).
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
como o seu programa original foi também modificado e tornado
mais complexo com o tempo.
Aqui, vale a pena voltar um pouco à relação problemática que o
debate sobre a micro-história teve com o panorama cambiante dos
estudos históricos durante os anos 1980.
Creio que não se pode ignorar que alguns dos caminhos tomados
pelas pesquisas dos micro-historiadores estão diretamente ligados a
essas transformações. O erro, nesse caso, é tentar simplesmente en-
caixar a micro-história em um quadro mais geral e homogêneo de
“virada cultural”. Olhar o debate por esse ângulo — um ângulo
externo — é antes de tudo multiplicar os mal-entendidos.
O que se pode identificar de saída é uma clara reação ao rumo
que o debate histórico tomou a partir da década de 1980. De um
ponto de vista interno, acredito que as questões propostas pelo tra-
balho de Ginzburg não deixaram de ter algum efeito sobre as for-
mulações gerais do debate. As diferenças e aproximações foram ne-
gociadas nos resultados das próprias pesquisas dos historiadores e
historiadoras que tiveram sua formação sob essa inspiração. Por ou-
tro lado, a abertura ao debate internacional exigiu uma readequação
das discussões às novas questões que se impunham. Há também uma
dinâmica institucional da qual vale a pena falar brevemente.
Os estudos de história nas universidades italianas permaneceram
fortemente impermeáveis à micro-história, enquanto o interesse
pela micro-história fora da Itália apenas crescia. A circulação de
pessoas tem aqui um papel fundamental, não sendo uma informação
secundária considerar que vários dos ex-alunos dos micro-historia-
dores italianos foram fazer seus doutorados fora da Itália, na École
des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, bem como na In-
glaterra e nos Estados Unidos, onde mais tarde muitos se inseriram
profissionalmente. Assim, os temas e problemas teóricos em circula-
ção no debate histórico dos anos 1980 entraram no horizonte das
pesquisas que se inspiravam com maior ou menor intensidade no
18
Publicado originariamente em Quaderni Storici em 1985. Para a versão em por-
tuguês, ver Levi (1999).
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
dos também não apresentavam novidade: a atenção ao caso indivi-
dual, a descrição densa não resultavam em um verdadeiro ganho
cognitivo, apenas ilustravam um contexto estático. O episódio em si
era lido através de um vocabulário já conhecido.
Poucos anos depois, Levi (1992:149) retomou a discussão acerca
da história interpretativa, desta vez em um balanço seu sobre a mi-
cro-história. O julgamento, nesse caso, era mais claro:
19
E, de fato, mais de um comentador da micro-história enfatizou essa suposta
“dívida” da micro-história para com a antropologia interpretativa de Geertz, como
é Ronaldo Vainfas (2002). Mesmo algumas passagens do autorretrato de Levi dis-
cutindo sua própria versão da micro-história sugerem essa ambiguidade (que, a
propósito, me parece equivocada). Ver, por exemplo, Levi (1992:141).
20
Ver, por exemplo, Ginsburg (2002 e 2007b).
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
uma “classe trabalhadora” homogênea e dotada de interesses co-
muns e coerentes, explorando amplamente o papel construtivo das
linguagens políticas. Temas igualmente presentes no livro de Simo-
na Cerutti (1992) sobre o nascimento de uma linguagem corporati-
va no Piemonte do século XVII. Poderíamos acrescentar outros li-
vros, como o de Oswaldo Raggio (1990), colega e orientando de
Edoardo Grendi em Gênova, sobre os rituais de violência e de poder
na vida familiar e comunitária da Fontanabuona, na Liguria, ou
ainda o livro de Angelo Torre (1995) sobre o consumo das devoções
no Piemonte moderno. Também os estudos de gênero passaram a
ocupar aí um lugar importante, como nos trabalhos de outras histo-
riadoras ligadas à micro-história, por exemplo Gianna Pomata e
Sandra Cavallo.21
Poderia citar outros, mas o que essa breve lista quer dizer é que os
temas da cultura (e da pluralidade das culturas), dos significados, da
dimensão ritual e simbólica, da subjetividade, que pareciam aspectos
negligenciados pelo programa de microanálise social colocado ini-
cialmente em circulação por Grendi e Levi, acabaram sendo incor-
porados ao universo de temas e questões centrais da micro-história.
O debate em torno dessas questões, bem como sobre o alargamento
não só do leque de interesses dos micro-historiadores, mas das cate-
gorias de análise e dos procedimentos interpretativos, continua.
Muito recentemente, Simona Cerutti (2004:17-40), uma das
principais responsáveis por levar adiante a pesquisa micro-histórica
nos últimos anos, debruçou-se sobre essas mesmas questões e for-
mulou uma autocrítica muito articulada tanto à forma pela qual a
21
Pomata vem trabalhando com temas relacionados ao gênero e à história da saúde
desde o fi nal dos anos 1980. O primeiro livro de Sandra Cavallo (1995) é um exem-
plo dessa convergência entre microanálise e estudos de gênero. A temática do gêne-
ro estava presente, de todo modo, na discussão dos Quaderni Storici (a revista que
reuniu a maior parte das colaborações dos micro-historiadores) desde o início dos
anos 1980, como atesta a coletânea organizada por Edward Muir e Guido Ruggie-
ro, Sex & gender in historical perspective (1990).
22
Cerutti, 2004:19.
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
historiográfico nos próximos anos.
Chegando às últimas considerações deste texto, seria importante
concluir com uma constatação, que toca o terceiro ponto que eu
havia me proposto a discutir nas primeiras páginas do capítulo.
No início dos anos 1990 — época em começa a circular a palavra
“micro-história” no Brasil —, a atenção a esse debate italiano era
muito seletiva e, ao mesmo tempo, excessivamente impressionista e
lacunar. Em contraste, o debate sobre a micro-história parece hoje
muito mais rico e atento às sugestões e propostas que a própria pes-
quisa dos micro-historiadores produziu ao longo dos anos. Ainda
que se possa lamentar a ausência de traduções de muitos livros e
textos importantes sobre a micro-história — e a centralização da
atenção e da leitura, que daí deriva, em um pequeno número de
autores selecionados —, não há dúvida de que o debate brasileiro
vem conseguindo articular as sugestões de pesquisa oriundas dos
trabalhos dos micro-historiadores com as próprias conquistas da his-
tória social e cultural no Brasil dos últimos anos, que passou por
uma rearticulação de problemas e um vigor renovado de pesquisa
certamente notáveis.
A primeira recepção da micro-história coincide com a própria
recepção de um debate mais amplo sobre a historiografia que se in-
ternacionalizava. Esse foi o contexto que permitiu, em meados da
década de 1980, o contato com um conjunto amplo de leituras que
vinham traduzidas para o português e lidas, pelo menos nos cursos
universitários, de modo quase simultâneo: a tradução maciça de his-
toriadores franceses ligados aos Annales, como Jacques Le Goff e
Georges Duby, bem como historiadores ingleses e anglo-america-
nos, como Edward Thompson, Eugene Genovese e Natalie Davis,
além de todo um leque de discussões que brotavam da fi losofia, da
23
E aqui, como referência desse quadro de revisão, aponto para os livros de Geoff
Eley (2008) e William Sewell Jr. (2005).
PENSANDO AS TRANSFORMAÇÕES
versão “social”, certamente ajudaram a tornar o debate sobre a mi-
cro-história mais rico e mais fundamentado.
A publicação do livro de Giovanni Levi — A herança imaterial —
em 2000 tanto atesta a atenção aos desdobramentos da micro-histó-
ria para além da referência da obra de Ginzburg, como acabou por
acrescentar um elemento novo no quadro da recepção do debate no
Brasil, fazendo circular um texto que, entre outras qualidades, tem
o mérito de apresentar um exemplo de microanálise histórica cujos
procedimentos e estratégias de investigação são perfeitamente capa-
zes de instruir trabalhos do gênero que abordem temas de pesquisa
mais próximos das possibilidades oferecidas pelos arquivos brasilei-
ros. Por outro lado, manifesta-se o risco — já presente, pontual-
mente, em alguns dos debates recentes — de tomar a “microanálise”
como um procedimento com fi m em si mesmo, deixando de lado o
aspecto essencial da proposta, isto é, ser uma estratégia de pesquisa
colocada a serviço da investigação de um problema historiográfico
de amplo fôlego.
O que se atesta, portanto, é que o interesse pela micro-história
não deixa de crescer entre os pesquisadores brasileiros. Apesar de
esse interesse ainda ser mediado por traduções seletivas, que tendem
a ignorar os desenvolvimentos (mesmo contraditórios) do debate
sobre a micro-história, tanto na Itália quanto na França, ele também
testemunha aquela característica da micro-história enfatizada por
Giovanni Levi,24 que é sua capacidade de formular perguntas que
puderam ser generalizadas a ponto de servir de inspiração e contra-
ponto aos avanços recentes da história social no Brasil.
As transformações recentes no horizonte das discussões historio-
gráficas apontam para uma reconfiguração de temas e questões que
terão certamente impacto sobre o modo pelo qual a micro-história
24
Por exemplo, na entrevista dada a Diego Sempol na Costa Rica. Ver Levi
(1998:16-17).
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Exercícios de micro-história
∗
Pesquisa fi nanciada pelo CNPq.
1
Ver Eltis, Richardson, Berhens e Florentino, em <http://wilson.library.emory.edu>.
2
Sistema pelo qual a coroa concedia o privilégio do comércio de cativos em de-
terminadas áreas da costa africana. Por exemplo, no século XVI, os moradores de
Cabo Verde tinham tal exclusividade na área da Senegambia. Ver Teixeira (2005,
t.II); e Serrão e Marques (2005:85-89). Através da economia do dom, os serviços
prestados à monarquia, no Atlântico e em outras paragens, eram pagos com a con-
cessão de hábitos militares, tenças, monopólios etc. Sobre o tema, ver Xavier e
Hespanha (1993); e Fragoso (2000).
TA B E L A 1
Distribuição dos partidos de cana entre diferentes estratos sociais:
Engenho São João de Sapopema
3
Ver escritura de entrega que faz Vicente João da Cruz ao capitão-mor Agostinho
de Carvalho, da fazenda do visconde Asseca, 1692, 1o Livro de Notas do Tabelião de
Campos. Agradeço a Sheila de Castro Faria a consulta dessa fonte. Sobre o início do
século XIX, ver inventário post mortem de Manoel Antunes Suzano e de sua mulher,
Maria Januária Galvez Palença, 1818, cx. 3622, DEP 511. Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro.
repetir uma ideia de Pierre Vilar, algo como “ao historiador cabe o
estudo das mudanças principalmente das estruturas sociais, daí a ne-
cessidade de investigações sobre a longa duração”. Essa ideia talvez
esteja em desuso, mas acredito que cabe ao profissional de história o
estudo do tempo social e, nessa ótica, das mudanças e permanências.
No texto a seguir, minha intenção, como afi rmei, é estudar até que
ponto a chamada plantation açucareira brasileira do Setecentos seguia
a ideia de autogoverno das casas, um conceito caro à concepção cor-
porativa. Com esse intuito, procuro compreender os comportamen-
tos dos moradores — senhores, escravos e pardos — das plantations
no sistema normativo considerado.4 Escolhi duas freguesias — Ira-
já e Jacarepaguá — e, através dos registros paroquiais, procurei fazer
uma primeira aproximação das estratégias de vida de mais de 2 mil
famílias (casais e solitários) de diferentes status sociais, distribuídas
entre 1700 e 1800.
4
A principal documentação utilizada foi a coleção dos registros paroquiais de batis-
mos do Rio de Janeiro, especialmente os das freguesias de Irajá e Jacarepaguá. Trata-
se de uma documentação seriada, o que permite acompanhar as decisões de escravos,
senhores e pardos, entre outros, quanto às suas alianças na vida (casamentos e com-
padrios); reconstruir redes parentais, o vocabulário social usado pelos fregueses, per-
guntas atinentes a uma antropologia da aldeia. Através dos registros também é pos-
sível ter ideia da dimensão dos plantéis, da taxa de fecundidade e das decisões dos
casais quanto a tais taxas etc. Essa fonte serviu como espinha dorsal, e a ela foram
incorporadas outras, como inventários post mortem, genealogias etc. Tudo faz parte de
um pesquisa minha em andamento — “Fidalgos parentes de pretos” —, fi nanciada
pelo CNPq.
5
Ver Fragoso (2007), v. 1, p. 33-120.
6
Ver Olival (2001).
7
Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Seção de Obras Raras, Ms. 5, 3, 13-15.
8
Sousa, 2005, t. I; e Serrão e Marques, 2005:140-150.
9
Um bom exemplo disso são as folhas de serviço dos capitães de fortaleza ou da-
queles que adquiriam ordens militares. Nesse ethos existia uma hierarquia das áreas
preferidas para a prestação do serviço. Ver Cunha e Monteiro (2005:191-252).
10
Cf. minha pesquisa em curso — “Fidalgos parentes de pretos” —, fi nanciada
pelo CNPq. Ver também Rheingantz, 1965, v. 1, p. 92, 165 e 217.
11
Um exemplo emblemático e talvez limite de tal ethos aristocrático é dado pela
trajetória do capitão Francisco de Lemos Peixoto, natural do Rio de Janeiro, neto
de Francisco Lemos de Azevedo, alcaide da cidade e senhor de engenho. Lemos
Peixoto serviu em Massagano e Luanda, retornando depois ao Rio de Janeiro, onde
recebeu em 1653 a ordem de Aviz. Ou ainda o caso de Salvador Correa Vasqueanes,
fidalgo da casa real, fi lho de Duarte Correa Vasqueanes (governador do Rio de Ja-
neiro na década de 1640 e dono de engenhos de açúcar). Salvador Correa lutou
contra os holandeses em Recife e serviu no Castelo de São Jorge de Mina, sendo por
essas atividades agraciado com uma tença por ano retirada do almoxarifado da ca-
pitania do Rio de Janeiro, vindo depois a se fi xar na Bahia. Arquivo do Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), Inventário dos livros das portarias do
Reino, v. 1, p. 122, e v. 2, p. 482 (ARM. 34-8), p. 122.
12
Entre eles, lembro Antonio de Mariz (Ordem de Cristo), Crispim da Cunha, João
Gomes da Silva, Afonso Guimarães, Pedro Gago da Camara etc. Ver Borrego (2008).
13
Para a caracterização das patentes de ordenanças na organização municipal portu-
guesa e da monarquia, ver Costa (1816), na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
14
A partir de fi nais do século XVII, os postos de oficiais de ordenança tinham de
ser confi rmados pelos governadores. Nesse processo, a câmara indicava ou podia
negociar os nomes para desempenhar esse papel. Cf. minha pesquisa em curso —
“Fidalgos parentes de pretos” —, fi nanciada pelo CNPq.
15
Em diversos outros trabalhos procurei caracterizar esse grupo, que denominei
nobreza principal da terra (Fragoso, 2007). Gostaria somente de lembrar que essas
famílias absorviam estrangeiros conforme seus interesses. Desnecessário dizer que
as patentes das ordenanças e auxiliares serviam para identificar alguns dos homens
das famílias da nobreza da terra.
16
Para o século XIX, ver Mattos (1993).
17
Registros paroquiais de batismos de escravos de Jacarepaguá, 1700-1709, da
Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
18
Ver Thornton (2004) Lovejoy (2002); e Silva (2002).
19
A expressão designa a capacidade de certas famílias de influenciarem na organi-
zação social da população. Por exemplo, impelindo as velhas famílias ao casamento
e ao compadrio católico, mediante a doação de dotes em testamento, a construção
e manutenção de capelas nas fazendas. Essas práticas estavam presentes nas famílias
conquistadoras da região. Além destas, foi também introduzido o costume da alfor-
ria, da formação da clientela via compadrio e a adoção do apelido da casa pelos não
consanguíneos.
20
Cf. Rudge (1983); e sobre o funcionamento do mercado, ver Fragoso (2009).
0,6
1750-9
1,9
21
Cf. Fragoso, 2009.
(ou 187 casais e/ou mães solteiras e 18 expostos). Esse fenômeno re-
trata principalmente a grande imigração de ilhéus e reinóis no Rio de
Janeiro da época. Já o de escravos decresce de 395 para 375 na fregue-
sia. Porém, no geral, entre a população de Jacarepaguá, o número de
batismos aumentou de 558 para 727, ou seja, 30%. É de supor que por
essa época o fantasma da torre de babel ainda rondasse a freguesia.
A tabela 2 nos dá uma ideia de tal imigração em Irajá, insinuando
mais uma vez a capacidade de organização dos conquistadores diante
dessas diferentes multidões. Pode-se identificar a procedência de 74
avôs paternos, dos quais uma metade era constituída de brasileiros e
a outra de ilhéus e reinóis, num universo de avôs paternos de 89. Para
avós paternas tivemos 83 mulheres, 48 (58,5%) nativas e as demais
provenientes do reino e das ilhas, sendo o total geral de 90. Assim,
considerando apenas a procedência dos avós paternos, tais números
mostram que cerca da metade da população sem cor era recém-insta-
lada na freguesia, fenômeno que nos informa sobre a diversidade po-
pulacional na qual as práticas costumeiras (tipos de compadrio, alfor-
rias, casa, acesso a terra, hierarquia social simbolizada pelas donas
etc.), criadas pelos conquistadores e primeiras gerações de escravos e
pardos na região, tiveram que se defrontar e que organizar.
TA B E L A 2
TA B E L A 3
Homens e mulheres e suas opções de união marital, segundo a condição social
Jacarepaguá, 1750-1759
Entre 1700 e 1759, o grupo dos sem cor apresentou o maior cres-
cimento absoluto. No último período, ele constava com 97 casais e
166 batizados. Mais de dois terços da população era formada por essas
pessoas, às quais o cura não atribuiu qualquer qualidade particular. A
tabela 3 demonstra que o grupo abrigava diversas possibilidades de
alianças étnicas e sociais, na falta de melhores expressões. Dos 97
casais, em 10 (mais de 10% do total) a esposa era parda ou forra e em
quatro, exposta. Assim, apesar de 83 dos casais sem cor, ou mais de
85%, aparecerem com a mesma procedência, segundo os costumes
locais expressados por nosso padre, o grupo permitia a incorporação
de pessoas egressas da escravidão.
Além do crescimento populacional de Jacarepaguá na primeira
metade do século XVIII, a estratificação social da região e da capita-
nia tornou-se mais complexa, ou pelo menos foi assim registrada pelo
pároco. Na tabela 3, nota-se que as famílias em que um dos pais era
pardo, por exemplo, passaram de oito (10% das 82 famílias do início
do século) para 55 famílias conjugais ou solitárias, ou 29% do total
(187) da década de 1750. Explicando melhor: temos 19 casos em que
ambos os esposos eram pardos, 10 em que as mães pardas se juntam
com pais sem cor, um exposto, uma parda e 29 mães solitárias. Entre
outras coisas, isso indicava a maior sedimentação de um agregado fa-
miliar procedente da escravidão, ou um processo de ascensão social
em meio a uma estrutura estamental. Nesse momento, cabe lembrar
que o dito pardo não decorria de uma intervenção da monarquia, pois
fora produzido por relações pessoais no interior, principalmente dos
engenhos de açúcar. Além disso, o fato de pelo menos 10% dos 97
casais encabeçados por homens sem cor escolherem moças pardas in-
sinua a não racialização de tal estrato.
Ainda na tabela 3 verifica-se que, apesar do número de mães, os
pardos e pardas preferiam a união marital. Mas existiam outras for-
mas de organização familiar em que a mãe solitária (um quinto das
mães) tinha abrigo. Provavelmente, ela estava sob a tutela de uma
TA B E L A 4
Padrinhos e afilhados em Jacarepaguá entre 1750 e 1759
Obs.: Uma mesma família podia ser batizada por padrinhos de diferentes grupos.
Fonte: Registros paroquiais de batismo de livres de Jacarepaguá, 1750-1759, da
Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
teiras que levaram suas crianças à pia batismal, 136 pais, ou dois
terços, preferiram os sem cor. Algo bem diferente do que ocorria em
1700, quando todas as crianças de casais conquistadores foram bati-
zadas dentro do próprio grupo. É importante aqui qualificar os pa-
drinhos desses potentados locais. Em 1751, Francisco de Almeida
Jordão, cavaleiro da Ordem de Cristo e integrante de uma das mais
poderosas famílias de grosso trato do Rio de Janeiro da primeira
metade do século XVIII, foi a Jacarepaguá para batizar Joaquim,
neto do juiz de órfãos Antonio Teles de Menezes. Sete anos depois,
em 1758, Francisco voltou à freguesia para batizar o fi lho do então
coronel das ordenanças e futuro mestre de campo dos auxiliares
João Barbosa de Sá Freire. Essas cerimônias demonstram as ligações
e mesmo a dependência dos potentados quinhentistas ao capital
mercantil. Por exemplo, desde finais do século XVII, os Barbosa de
Sá tinham ligações creditícias com os Almeida Jordão. Em meados
do Setecentos, tais ligações tornaram-se mais pessoais, no caso pa-
rentais, seguindo assim as normas do catolicismo em vigor. Talvez
seguindo também os costumes desse Antigo Regime nos trópicos, o
mesmo Francisco, cavaleiro da ordem de Cristo, batizou ainda em
Jacarepaguá, em 1753, outro menino de nome Manuel. A diferença
entre esse afi lhado e os já mencionados era o fato de Manuel ser fi-
lho de Bernarda parda, escrava do juiz de órfãos; a madrinha fora
Antonia Luzia de Menezes, fi lha do mesmo juiz.
Enfi m, o crescimento populacional verificado em 1750-1759
ocorreu em uma sociedade em transformação, porém ainda segundo
regras hierárquicas e costumeiras e, portanto, preexistentes. Na dé-
cada de 1750, existiam em Jacarepaguá seis engenhos e pelo menos
134 proprietários escravistas, que possuíam 276 famílias escravas e
mais expostos. O campeão nos registros de crias escravas e provavel-
mente o maior proprietário de cativos da região era o estrangeiro
José Rodrigues Aragão, com 37 crias. Ele era o proprietário do En-
genho da Serra, adquirido por meio de uma arrematação em 1751
TA B E L A 5
No de madrinhas conquistadoras no universo das madrinhas qualificadas como donas
Irajá, décadas de 1730, 1740 e 1750
Proprietários de
Engenhos de açúcar Proprietário Famílias escravas*
escravos
Taquara Antonio Teles Barreto 5 40
Fora João Barbosa Sá Freire 4 9
Rio Grande Manuel Pimenta de Sampaio 20 37
Serra Antonio Teles Barreto 2 25
Água Visconde Asseca 6 11
Subtotal 37 (27,6%) 122 (44,2%)
Total 134 276
22
Tratei desses assuntos em outros textos. Ver Fragoso (2009).
23
Ver Pedroza (2008).
24
Sobre essas opções como resultado um conjunto de valores, ver Pedroza (2008).
25
Pedroza, 2008.
26
Cf. “A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravo cabra José Batista:
notas sobre hierarquias sociais costumeiras na monarquia pluricontinental lusa —
séculos XVII e XVIII”, texto ainda inédito de minha autoria.
27
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Seção de Obras Raras, Ms. 5, 3, 13-15.
28
Cf. minha pesquisa em curso “Fidalgos parentes de pretos”, financiada pelo
CNPq.
29
Ver Fragoso, 2007, v. 1, p. 33-120.
TA B E L A 7
Origem das mães escravas de Irajá entre 1780 e 1795, segundo os livros de batismo
Origens Mãe
Angola 92
Benguela 82
Congo 11
Guiné 6
30
Lavradio, 1842.
31
Ibid.; ver minha pesquisa em curso — “Fidalgos parentes de pretos” —, fi nan-
ciada pelo CNPq.
TA B E L A 8
Hierarquia nas senzalas: escravos com partidos de cana e seu acesso a ofícios qualificados
Fazenda São João Batista de Sapopema, 1795
Estado Total de
Pai Origem Idade Profissão Mãe Origem Idade Filhos
civil familiares
João Cassange Angola 50 serviço de roça casado Ana Angola 30 0 2
Manuel Ignácio Angola caldeireiro casado ? ? ? ?
Thomaz ? 60 s/informação casado Josefa Angola 50 2 7
José Batista cabra 30 of. carpinteiro casado Efigênia Angola 40 0 2*
Joaquim Domingues pardo 30 barqueiro casado Isidora parda 20 0 2
Fabiano cabra 30 s/informação casado Arcângela parda 25 0 2
Raimundo crioulo 30 pastor casado Marcela angola 30 1 3
Martinho crioulo 30 s/informação solteiro 2
Mas vejamos esses traços com mais cuidado. A tabela 9 trabalha com
a ideia de hierarquia nas senzalas, tendo como referência o acesso de
africanos e crioulos aos ofícios mais qualificados nas plantations. Nessa
tabela reúno quatro engenhos de açúcar das freguesias rurais do Rio de
Janeiro entre 1795 e 1818. Como se vê, a população total era de 453
escravos — 239 africanos (53%) e 214 crioulos (47%) —, dos quais 249
(55%) viviam em 85 famílias. Os cativos com ofícios qualificados esta-
vam em 17 famílias e somavam 56 pessoas, o equivalente a 12% da
população total escrava. Assim, não resta dúvida de que carpinteiros,
ferreiros, alfaiates, entre outros ofícios mecânicos, formavam uma elite
TA B E L A 9
Hierarquia nas senzalas: famílias escravas
e acesso aos ofícios qualificados masculinos em quatro engenhos
Obs.: africanos — família africana chefiada por pai africano ou mãe solitária afri-
cana; crioulos — família crioula chefiada por pai crioulo ou mãe solitária crioula.
Fontes: Inventário post mortem de Ana Maria de Jesus, 1795, no 9.225, cx. 872; in-
ventário post mortem de Manoel Antunes Suzano e de sua mulher, Maria Januária
Galvez Palença, 1818, cx. 3.622, DEP 511. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
Indo mais adiante, nota-se que tal situação não decorria apenas da
antiguidade nas fazendas. Na verdade, a posição cimeira daquelas famílias
de oficiais resultava também de sua ação, ou melhor, de suas estratégias.
Raimundo, crioulo, pastor e com partido de cana, e sua mulher tiveram
três filhos, todos batizados por escravos oficiais casados, sendo um, cha-
mado Joaquim — pardo, também com lavoura. Um desses padrinhos,
Felizardo, angola, caldeireiro, escolhera para batizar sua filha Agueda o
acima mencionado Joaquim. Assim, Raimundo, Joaquim e Felizardo,
além de compartilharem a mesma posição na senzala, eram compadres,
ou seja, aliados diante das incertezas da vida em cativeiro. O nosso José
Batista, cabra, teve um comportamento semelhante. Ele era compadre de
Salvador, ferreiro e pai de dois rebentos. A figura a seguir indica clara-
mente que esses oficiais procuravam estabelecer alianças entre si.
32
Sobre escravidão aberta e fechada e suas respectivas sociedades, ver, entre outros,
Watson (1980), Isaacman e Isaacman (2004), Glassman (1995) e Willis (1980).
33
O século XVIII foi um período de várias transformações, desse modo, deve-se
ter certa cautela nas análises de conjunto da segunda metade do século. As observa-
ções a seguir não estão imunes a tais perigos.
TA B E L A 11
Estado civil das mães escravas por naturalidade e cor, Irajá 1780-1795
TA B E L A 11.1
Escolhas das mães escravas — conforme naturalidade, estado civil
e status social — de seus compadres — conforme status social e jurídico, Irajá, 1785-1790
34
Cf. “A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravo cabra José Batista: notas
sobre hierarquias sociais costumeiras na monarquia pluricontinental lusa — séculos
XVII e XVIII”, ainda inédito.
to. José Batista era casado e fi lho de outro casal; e mais: sua esposa
era Efigênia, angola. Portanto, uma senhora que, segundo os crité-
rios já mencionados, se encontrava no último patamar entre as mu-
lheres da senzala. Na verdade, a história de José Batista destrói toda
a estratificação de moças acima construída. Ou melhor, nos obriga a
olhá-la com mais cautela.
Talvez uma saída para essa aparente confusão por mim construída
seja perceber que a sociedade escravista considerada comportava di-
ferentes estratégias escravas, mas visando a mesma coisa: reduzir as
margens de insegurança no cativeiro. Vejamos o mundo que José
Batista personificava.
A tabela 12, apesar de sua fragilidade, chama a atenção para o fato
de os casais com maior fecundidade serem os formados por crioulos
e africanas (1,92), seguidos dos africanos (1,19). Já a tabela 12.1 mos-
tra que os ditos casais mais férteis escolhiam seus compadres na sen-
zala. Eles privilegiavam, em primeiro lugar, alianças com outros
escravos e, não, com pessoas fora do cativeiro. Em segundo lugar,
usavam o batismo como instrumento para reforçar pactos com alia-
dos já conhecidos. Daí 14 padrinhos escravos terem batizado 21
crianças, à semelhança do apresentado na figura, onde Raimundo e
Marcela escolheram o casal Joaquim e Izidora para batizar dois de
seus três fi lhos. Aqui não há como esquecer que os pais eram criou-
los, portanto descendiam de escravos como os seus compadres escra-
vos crioulos e pardos também escravos; talvez tais pactos remontas-
sem a outros tempos e mesmo gerações.
Ao que parece tais práticas ocorriam em casas com grandes escra-
varias, e os escolhidos como padrinhos eram escravos da terra, leia-se
com mais de uma geração na mesma fazenda. Nesse momento, a es-
tabilidade no engenho ou o fato de pertencerem a uma antiga paren-
tela escrava implicava prestígio perante os demais cativos. Aqui en-
contramos um link entre uma elite de cônjuges e as mães pardas
aparentemente solitárias: ambos saíram de velhas parentelas escravas.
Crioulo x crioula 16 16 1
Forro x parda 1 3 3
Forro x forro 1 1 1
Forro x crioula 2 4 2
TA B E L A 12 .1
Escolhas de padrinhos pelos 13 casais com pai crioulo e mãe africana
Tipos de padrinhos: origem e status social e jurídico, Irajá, 1785-1795
Forros/Pardos 2 2 2
Livres 2 2 2
Escravos 14 9 21
Total 18 13 25
TA B E L A 13
Redes de compadrio com a participação de mais de um casal de escravos
Casais
Padrinhos No Africano x Africano x Crioulo x Crioulo x Africana Parda Crioula
Mães Forros
africana crioula africana crioula solteira solteira solteira
Forros/Pardos 6 5 3 2 1 4 2 2 19 21
Escravos 17 11 2 8 0 6 0 0 27 34
TA B E L A 13 .1
Escolhas, pelos padrinhos, de suas comadres escravas: origem e status social e jurídico
Padrinhos No de padrinhos Mães africanas Mães crioulas Mães pardas Total de mães
Forros/Pardos 51 35 34 4 73
Escravos 204 137 58 9 204
Livres 136 64 76 35 175
Total 391 236 168 48 452
***
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35
Cf. Inventário post mortem de Manoel Antunes Suzano e de sua mulher Maria
Januária Galvez Palença — 1818, cx. 3.622, DEP 511. Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro.
∗
Resultados ainda parciais das reflexões que venho realizando em um projeto de
pesquisa intitulado “Destinos incertos: o comportamento familiar das comunidades
rurais da América portuguesa”, com apoio da Fapemig e do CNPq.
1
Não faz parte também de meu objetivo trafegar no vasto e rico debate sobre a
história da família no Brasil e sua demografi a, já bastante consolidado há quase 20
anos. Pretendo outra qualidade de investigação, que não passa prioritariamente pe-
los levantamentos demográficos sobre nascimentos, idades de casamento, ciclo de
vida e taxas de legitimidade/ilegitimidade.
2
Kocka, 2002:84.
A conformação do lugar
O “lugar” eleito para essa investigação formou-se como reflexo de um
amplo movimento migratório de portugueses e naturais da terra, es-
pecialmente os paulistas em direção à região das minas. A imigração se
constituía em um traço da identidade cultural do Império português,
e os números, às vezes divergentes, comprovam essa importância.
Charles Boxer calcula que, no século XVI, cerca de 2.400 pessoas
deixavam Portugal todos os anos com destino à Índia portuguesa. Já
Magalhães Godinho cita a saída de 3 mil a 4 mil por ano, chegando a
atingir 8 mil por volta de 1620. No século XVIII, o fluxo humano
teria aumentado consideravelmente, levando a efeitos catastróficos
para Portugal.3 Por outro lado, David Eltis (2003:18), ao analisar as
variáveis entre a imigração e a estratégia global, trabalha com números
mais baixos. Enquanto os espanhóis tiveram uma média de 2 mil mi-
grantes por ano no século XVI e os portugueses, 3 mil por ano no
século XVIII, é provável que antes do século XIX a migração europeia
não tenha excedido uma média quinquenal de 10 mil imigrantes.
3
Russel-Wood, 1998:95.
4
Durães, 2004.
5
Brettel, 1991; e Lobo, 1992.
6
Russel-Wood, 1998:94.
7
A respeito da chegada de “paulistas” e das considerações relativas ao emprego
desse termo, consultar Oliveira (2008).
8
Ver Florentino (1995:45).
9
Venâncio, 2007, v. 1, p. 85-102.
A conformação da paróquia
É nesse contexto de encontro de distintos indivíduos que a comuni-
dade eleita para nossa investigação se encontra. Quando opto pela
utilização do conceito de comunidade, faço-o sem me prender às
tradicionais reflexões acerca do termo.11 Ana Sílvia Volpi Scott, tri-
butária de uma longa tradição demográfica do Núcleo de Estudos e
Pesquisas Populacionais da Universidade do Minho (Neps), elegeu
uma freguesia do noroeste português para, mediante uma vasta pes-
quisa empírica, analisar as famílias, as formas de união e reprodução
social numa comunidade. A autora reflete sobre os riscos desse tipo de
opção metodológica, ressaltando os riscos do “paroquialismo” através
10
Há importantes trabalhos dedicados ao estudo da ocupação urbana em Minas
Gerais. Destaco Moraes (2007) e Borrego (2004).
11
Refi ro-me às questões propostas originariamente por Alan MacFarlane (1980 e
1990). O autor analisou a precisão da delimitação de uma comunidade; se as fron-
teiras defi nidas respeitavam os limites geográficos nos quais se realizavam os casa-
mentos e as trocas de produtos; ou mesmo se uma comunidade reuniria aquelas
pessoas que praticavam juntas seus cultos. O autor também dissociou os aspectos
sociais e geográficos dos estudos de comunidade, procurando demonstrar que os
relacionamentos sociais em uma área geográfica defi nida seriam distintos do sentido
de “pertencer a um grupo” e da proximidade física.
12
Para discussões mais amplas a esse respeito, consultar Brandão e Feijó (1984),
Pina Cabral (1989) e Rowland (1984).
13
A pertinente crítica de Grendi (1976) nos alerta para o uso indiscriminado de
certas fontes documentais sem o devido cruzamento com outras. Na pesquisa his-
tória no Brasil, por exemplo, alerto para a utilização dos inventários como única
fonte de pesquisa, uma vez que estes eram abertos no momento da morte do chefe
de família ou da esposa, o que coincidia, na maioria das vezes, com o período da
velhice e, portanto, de decadência do ciclo doméstico.
14
Grendi, 1976:883.
TA B E L A 1
Livro de capitação de 1715, lançamento dos moradores de Ibitipoca
15
Franco, 1989.
A conformação da família
Entre 1750 e 1760, 399 responsáveis batizaram 555 ingênuos no Alto
da Borda do Campo.16 Utilizo o termo “responsáveis” porque mi-
nha opção de levantamento dos registros baseou-se no método de
“reconstituição de paróquias”, pelo qual foi criada uma ficha de fa-
mília a partir da entrada do nome do pai no registro de batismo e a
16
Não consegui mapear a primeira metade do século XVIII, a não ser pelos regis-
tros de capitação de 1715, acima analisados, que nos dão indícios da presença dos
primeiros mineradores. Os dados subsequentes referem-se à segunda metade do
Setecentos. Está sendo realizada uma varredura em todas as informações possíveis
sobre as localidades, a partir do levantamento nominal de cada indivíduo que pagou
impostos, batizou seus fi lhos, abriu inventário e demais processos cíveis. A pesquisa
ainda se encontra em desenvolvimento.
17
Oliveira, 2007:257-268.
Origem
Portuguesa declarada Arcebispado de Braga Ilhas atlânticas Dados incompletos
Total 122 73 46 3
% 100 60 37 3
TA B E L A 3
Origem das esposas dos imigrantes portugueses da Borda do Campo, 1750-1760
18
Os registros de casamento que ainda não foram levantados poderiam responder
a essas questões.
19
Carla Almeida (2006:76) chegou a outra conclusão. Segundo a autora, a maciça
presença de noivos naturais da província do norte de Portugal (86,7%) se aliou a
mulheres nascidas na região das Minas (83%). Na comunidade em foco, encontrei
apenas 9,2% de noivas oriundas do espaço regional stricto sensu.
20
Barth, 2000:25-30.
21
A cobrança da capitação é um bom exemplo desse “contrato”. Como seu mon-
tante era determinado pela Coroa com base na propriedade escrava de cada habitan-
te, cobrá-lo devidamente e fazer com que todos pagassem constituía uma obriga-
ção, a fi m de que o ônus pudesse ser partilhado.
22
Cunha, 2000:441.
23
Barth, 1981.
24
Ações de justificação de dívidas e prestação de contas — Arquivo Mendes Pi-
mentel, Barbacena.
25
Creio que, no caso brasileiro, o modelo de campesinato delineado por Chaya-
nov, no qual o grau de atividade agrícola é que determinaria a composição da famí-
lia (o camponês providencia uma família de acordo com sua segurança material) é
plenamente adequado. Estimulada pela disponibilidade de terras e pelo consequen-
te grau de atividade agrícola, a organização familiar ensejava o aumento do número
de fi lhos e a redução dos intervalos intergenésicos: mais braços para a potencializa-
ção das oportunidades. Esse, certamente, pode ser considerado um traço do campe-
sinato constituído na América portuguesa do Setecentos. Ver Oliveira (2008:186).
26
Trabalhos recentes têm revelado interesse em analisar as teias de relações fami-
liares e estratégias socioeconômicas das elites que remontam ao século XVIII. No
processo de montagem do sistema exportador cafeeiro da Zona da Mata mineira,
entre 1780 e 1870, muitas das famílias constituidoras desse núcleo possuíam suas
raízes no termo de Barbacena e São João del Rei. Ver Oliveira (2005) e também
Ferreira (2008).
Considerações finais
Tentei acompanhar a trajetória de uma comunidade e de seus indiví-
duos no espaço e no tempo. A análise das escolhas realizadas no mo-
mento da abertura da fronteira mineral e agrícola, as regras comunitá-
rias criadas e as transformações ocorridas na família no longo prazo
permitiram-me uma maior aproximação com o comportamento so-
cioeconômico das sociedades agrárias setecentistas. Grupos e indivídu-
os buscavam potencializar suas oportunidades, ordenando seus recur-
sos, interesses e necessidades particulares, nem sempre semelhantes.
Ao acompanhar um agrupamento social original em uma área de
fronteira que se reproduzia pela incorporação de outros espaços,
identifiquei os diferentes matizes do comportamento familiar: a es-
colha matrimonial, a esfera do nascimento, a formação dos laços de
parentesco rituais, as opções de ir e vir ao se cruzar o Atlântico, as
capitanias, a fi xação no alto de uma serra, a descida e a emigração
para outras áreas mais promissoras, entre outras. Essas trajetórias
revelaram-se diferentes respostas à série de desafios que foram sur-
gindo no decorrer das vidas dos indivíduos. No caso dos primeiros
27
Em levantamento feito no Arquivo Ultramarino, tive acesso a várias solicitações
de mercês, não só de sesmarias, mas de capitães de cavalaria, infantaria, entre outras.
Essas solicitações constituem uma outra instância de investigação do comportamen-
to dos indivíduos e grupos, questão que tratarei em outros trabalhos.
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Tempo, 2007. v. 1, p. 85-102.
1
Em contraposição à biografia modal, a biografia caso-limite sublinha a irredutibilidade do
indivíduo e de seu comportamento em relação aos sistemas normativos existentes.
2
Para uma análise do perfil da elite da capitania de Minas Gerais, ver Almeida (2004).
3
Both, 1976:76.
4
Silva e Fonseca, 2004:22.
5
Jardim, 1989:164.
6
Oliveira, 1981:5.
7
Jardim, 1989:165; e Oliveira, 1981:15.
8
Jardim, 1989:166.
9
Mattoso (1982:95). Cabe sublinhar que o valor de um escravo adulto foi calculado,
para o ano de 1790, em 125$000 réis, correspondendo 400 contos a 400.000$000 réis.
10
Maxwell, 1977:90.
11
Jardim, 1989:168-169.
12
Banco de dados da paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, Fapemig/
UFMG/Casa dos Contos. Sou grato a Maria José Ferro e Maria Teresa Gonçalves,
que trabalharam no levantamento dos dados.
13
Apud Lapa (1960:73). Nesse documento, como nos que se seguem, a ortografi a
foi atualizada e as abreviaturas desdobradas.
14
Gusmão (2004:141), grifo meu.
15
A crença no Limbo é um exemplo de como a morte de crianças sem o sacramento
do batismo devia ser comum no conjunto da cristandade, que teve de criar um “lugar”
intermediário — entre o Céu e o Inferno — para abrigá-las. Ver Le Goff (1993).
16
Venâncio, Sousa e Pereira, 2006:276.
17
Faria, 1998:216.
18
Klapisch-Zuber, 1999:740.
19
Xavier e Hespanha, 1993, v. 4, p. 381-393.
20
Bluteau, 1712-1728.
21
Berti, 2002:318.
22
Klapisch-Zuber, 1999:742.
23
Apud Oliveira, 1981:15.
24
Gudeman e Schwartz (1988:33-59), Brugger e Kjerve (1991:234), Goldschmidt
(1989:242), Rios (2000).
25
Florentino e Goes, 1997.
26
Maia, 2007.
27
Ramos, 2004:50; e Silva, 2004. Em Vila Rica, constatou-se que a maioria dos
governadores da capitania estabeleceu laços de compadrio com a elite local, ver Ve-
nâncio, Sousa e Pereira (2006:276).
28
Em Campos dos Goitacazes, São João del Rei e Juiz de Fora também foram cons-
tatadas redes semelhantes a essa, envolvendo dezenas ou até mesmo centenas de afi-
lhados de um mesmo padrinho, ver Faria (1998:216-217), Brugger (2007:303-312) e
Oliveira (2005:176).
29
Bluteau, 1712-1728.
30
Solicitação de pagamento por serviços prestados à Câmara — Antônio da Costa
de Azevedo — advogado. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro
Preto — CMOP, cx. 58, doc. 68, 24-12-1783. Em 1791, ele aparece como “advoga-
do do auditório”. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto —
CMOP, cx. 64, doc. 73. Cargo que exigia curso de oito anos de direito. Ver Salgado
(1985:328).
31
Coelho (2007:128). Sou grato ao professor Caio Boschi pela lembrança dessa in-
formação.
32
Catão, 2005:276.
33
Faria, 1998:213.
34
Souza, 1981:29.
35
Jardim, 1989:165.
Por ir duas vezes à Chácara ver um negro casado, que foi para
Antonio Dias ... ½.
36
Lista de dívida com os serviços médicos prestados aos escravos de João Rodrigues
de Macedo. Arquivo Público Mineiro, Casa dos Contos, CC-cx. 74, rolo 523.
37
Disponível em: <http://genealogia.sapo.pt>. Acesso em: 1 fev. 2005.
38
Faria, 1998:214-215.
39
Tal convento foi fundado em 1749, por ordem do bispo d. frei João da Cruz. Ver
Algranti (1993:84).
40
Carta de Perpétua Maria de Santa Ana a João Rodrigues de Macedo sobre notí-
cias de sua afi lhada e agradecimento pela esmola, 25 dez. 1785, Arquivo Público
Mineiro, CC-cx. 101, rolo 20.499.
41
Carta de Perpétua Maria de Santa Ana a João Rodrigues de Macedo a respeito da
afi lhada, 15 ago. 1791, Arquivo Público Mineiro, CC-cx. 74, rolo 523.
42
Carta de Ana Maria do Espírito Santo à madrinha Ignácia M. da Pa. de Franca,
16 jun. 1797. Arquivo Público Mineiro, CC-cx. 74, rolo 523.
Minha afi lhada. Recebi a vossa carta pelo próprio, que vossa mãe
me enviou, e por ele recebi também o vosso mimo, que muito
vos agradeço, não da [...] de sentir o incomodo que tivestes para
com ele me dareis melhor a conhecer o vosso afeto, o qual não
desconheço, e estou persuadido do muito que me amais [...]
43
Carta de Ana Maria do Espírito Santo a seu padrinho, João Rodrigues de Mace-
do, sobre sua escolha de vocação religiosa e pedido de compra de escravos, 19 abr.
1798. Arquivo Público Mineiro, CC-cx. 74, rolo 523.
oitenta seis réis, para com ela vos comprares o de que mais care-
ce, certo de que nunca se afrouxará em mim, e de que o mais
breve que me for possível há de cuidar em [arrumar-vos] na
vocação que tendes e de que faço muito gosto de vendo vos
Rogar a Deus, que me ajude a cumprir o que desejo. A respeito
de vossa idade, creio que andais por 21 anos, pouco mais ou
menos [...] Lanço a minha bênção com todo amor e vos enco-
mendo que peçais a Deus por mim, e ele como lhe Rogo [...].44
REFERÊNCIAS
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia; condi-
ção feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-
1822. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
44
Carta de João Rodrigues de Macedo a Ana Maria do Espírito Santo, afi lhada,
s/d. Arquivo Público Mineiro, CC-cx. 74, rolo 523.
45
Mattoso (1982:95).
46
Carta de Manuel Joaquim a João Rodrigues de Macedo sobre a confi rmação da
entrega das cartas a madre Perpétua e sua afi lhada Ana e envio das despesas do
convento, 12 jun. 1797. Arquivo Público Mineiro, CC-cx. 79, rolo 20.104.
∗
Tradução de Catalina Arica.
1
Vincent, 2002.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
didas que alteraram e prejudicaram os grandes comerciantes que es-
tavam muito ligados ao monopólio comercial espanhol. Essa
conclusão foi derivada das críticas que a instituição do Consulado do
Comércio levou à Coroa naquela época, e que relatavam a ruína dos
comerciantes. Entretanto, ao se realizar estudos de caso, comprovou-
se que nem todos foram prejudicados, e que, em certas situações, os
comerciantes conseguiram mais do que apenas se adaptar às novas
circunstâncias, inclusive tirando vantagem das medidas.
Portanto, o estudo das famílias de comerciantes apresenta-se
como um objeto de análise de grande importância não só para en-
tender e decifrar as estratégias utilizadas na época nos campos social,
econômico e político, como também para compreender o verdadei-
ro alcance das medidas tomadas pelos Bourbon que tanto afetaram a
classe mercantil, e que tipos de estratégias foram utilizados para dri-
blar os obstáculos surgidos nessa época. Foi necessário identificar os
principais comerciantes para analisar com quem tinham se relacio-
nado, como tiveram acesso ao poder econômico, que vínculos esta-
beleceram com o poder político, por que alguns se beneficiaram
mais do que outros, que tipos de atividades desenvolveram, quem
foram seus representantes no interior do país.
O estudo das famílias na América espanhola revela a existência de
“redes familiares”, ou seja, laços em vários setores da sociedade e da
economia. Trabalhos como os de D. Branding (1985), para o caso me-
xicano, Susan Socolow (1978 e 1985), para a Argentina, Susan Ramí-
rez (1991), para o norte do Peru, e minhas próprias pesquisas para Lima
(1994 e 1999) demonstram que houve um padrão de comportamento
no que se costuma definir como “atitudes coletivas” ou estratégias.
Conceito de estratégia
Jean Paul Zúñiga (2003) define o termo estratégia como um con-
junto de práticas e comportamentos que permitem alcançar ou che-
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
nadas instituições ou cumprirem tarefas específicas para os novos
governos com a fi nalidade de conseguir um espaço na sociedade,
como demonstrarei mais adiante neste capítulo.
Apesar de tudo o que já foi dito até aqui, vale lembrar que os espaços
familiares nem sempre eram de afinidade e solidariedade. Algumas ve-
zes também se apresentaram como espaços de conflito. Havia conflitos
durante a distribuição de heranças, conflitos por dote e até pela proprie-
dade da terra. Trabalhos como os de Gabriela dalla Corte, Andrea Re-
guera e Darío Barriera fazem um estudo detalhado desses casos.2
2
Ver esses trabalhos em Corte e Barrier (2003).
3
Casaús, 1994.
4
Barriera em Corte e Barrier (2003:305).
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
documentos que especificam a situação do comerciante e sua relação
com o Estado. Por exemplo, os comerciantes foram os principais cre-
dores do governo espanhol na entrega de “donativos da graça”, vo-
luntários ou forçados, devido às necessidades da Coroa, o que poste-
riormente seria revertido em algum favor ou benefício econômico,
como conseguir importar mercadorias isentas do pagamento de al-
guns impostos. O Consulado de Comércio de Lima era o encarrega-
do da arrecadação desses empréstimos, entre os quais se encontra a
quantia de 1,5 milhões de pesos exigidos pela Coroa espanhola aos
comerciantes de Lima para enfrentar os portugueses às margens do
rio da Prata.
Quanto às cartas particulares, não constituem a maioria dos docu-
mentos dos arquivos, mas são as mais ricas no que se refere a dados
precisos sobre conjunturas políticas, questões comportamentais, situa-
ções familiares e de negócios. No caso do Peru, ainda existem arqui-
vos privados de famílias aos quais só é possível ter acesso através de
relações ou contatos muito precisos — ainda não estão ao alcance do
público em geral. No meu caso, consegui ter acesso ao arquivo parti-
cular da família Lavalle e, a partir dessas cartas, pude analisar o comér-
cio por ocasião da guerra com a Inglaterra, em 1804, e o comércio de
escravos realizado através de barcos neutros. Nesses arquivos há refe-
rências muito interessantes à situação política do momento. Por exem-
plo: Antonio diz ao irmão Juan Bautista, radicado em Lima, que se a
Europa se perder — refere-se às conquistas de Napoleão — não terá
dúvidas em se instalar em Londres e de lá realizar suas transações co-
merciais. Esse dado é muito importante porque dá a conhecer a capa-
cidade de locomoção e de adaptação que o comerciante chegou a ter
nessa época tão conflituosa de fins do século XVIII.
Para incursionar no mercado interno, é necessário utilizar outro
tipo de fontes. No caso da distribuição de mercadorias para o inte-
rior do vice-reinado é preciso revisar os livros de checagem, que
contêm registros dos contatos com os comerciantes itinerantes, pro-
5
N. do T.: criollo é o nome dado em toda a América hispânica aos fi lhos de espa-
nhóis nascidos nos vice-reinados.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
cialmente porque muitos deles recebiam empréstimos com juros de
instituições coloniais — a Igreja, o Consulado ou a Fazenda Pública.
A característica do comerciante na América foi a capacidade de
combinar as formas de vida típicas dos grandes senhores, como os
comerciantes venezianos do século XVII, com a capacidade de ino-
vação dos capitalistas europeus do século anterior, especificamente
de Amsterdã. Ainda assim, foram representantes de uma sociedade
do antigo regime, patriarcal, em que o prestígio e a hierarquia so-
cial eram o principal patrimônio para conseguir bons negócios
mercantis. Por isso se diz que no século XVIII houve um duplo
processo: uma aristocracia que se aburguesou e uma burguesia que
se aristocratizou.
Muitos dos comerciantes de destaque tinham chegado ao Peru no
início do século XVIII, como os Sáenz de Tejada e os Lavalle y
Cortés. Os recém-chegados traziam a pureza do sangue e, mediante
casamentos, se ligaram a prestigiadas família criollas, descendentes
dos primeiros colonizadores. Isso prova o grau de mobilidade social
que a vinda para a América permitia aos espanhóis — eles conse-
guiam aqui o que teria sido muito difícil de conquistar na mesma
época na Europa. Outros chegaram na segunda metade do século
em consequência das reformas implantadas pelos Bourbon, que ofe-
receram maiores possibilidades comerciais quando foram abertos ao
comércio vários portos espanhóis e americanos. Pode-se citar nomes
como os Santiago y Rotalde, os Pérez de Cortiguera, os irmãos Eli-
zalde e Isidro de Cortázar y Abarca, que começaram como princi-
piantes, empregados ou marinheiros e, depois de 30 anos, chegaram
a ocupar a posição mais alta na sociedade colonial.
Havia também os comerciantes por tradição, que descendiam por
linha materna dos primeiros conquistadores, como José Antonio de
Lavalle y Cortés, que chegou a ser conde de Prêmio Real. Seu pai
foi regente em Piura e um irmão mais velho morou primeiro no
Chile e depois em Buenos Aires. Essa família tem hoje descendentes
6
AGN Lima, notario Valentín Torres Preciado, 1775:704-708.
7
AGN Lima, notario Antonio Luque, 1818/386:153/54; e José Joaquín Luque,
1825, 378:216-222.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
Cuadra, que foi dona de uma grande casa, na qual morava com o
esposo, e depois da morte do marido emprestou a juros grandes quan-
tias de dinheiro a comerciantes importantes como o conde de Fuente
González e Fernando Carrillo y Udurraga, marquês de Santa Maria.
Ela também conseguiu obter uma renda mensal pelos 20 mil pesos
que emprestou a juros à Fazenda Huayte, de Pedro Carrillo y Albor-
noz, e pelos 4 mil pesos à chácara de García Alonso, em Chancay.
O casamento entre descendentes de duas famílias socialmente im-
portantes na colônia — e também no período pós-independência —
era uma das estratégias mais comuns. Isso respondia à necessidade, por
um lado, de garantir atividades econômicas e, por outro, de “prote-
ger” a mulher e dar a ela certa estabilidade ao colocá-la sob a tutela de
um marido ilustre e, consequentemente, poderoso na sociedade colo-
nial. Se o futuro marido ainda não fosse poderoso ou ilustre, porque
era recém-chegado e não tinha garantias sociais, o casamento dava à
mulher a oportunidade de não “cair” em uma união com outro grupo
racial que não fosse de seu nível.8 Vale lembrar que a pureza do san-
gue nessa época era uma das condições indispensáveis para obter qual-
quer título de nobreza ou pertencer a uma ordem militar, o que dava,
por sua vez, hierarquia ao grupo familiar como um todo.9
No caso da família estudada, Antonio Sáenz de Tejada casou-se
com uma irmã de Rosa, Josefa de la Cuadra e, dessa forma, torna-
ram-se parentes da família de la Bodega y Cuadra, da qual descendia
o importante comerciante José Antonio de Lavalle y Cortés, conde
de Prêmio Real, que desenvolveu intensa atividade mercantil du-
rante o século XVIII.10
8
Zúñiga, 2003:39.
9
Os litígios derivados da união de pessoas de qualidade racial diferente começaram a
aparecer no direito civil com o estabelecimento da Pragmática Sanción de 1776, que
proibia os casamentos entre pessoas social e racialmente desiguais. Ver Castillo Palma
(1998).
10
Josefa e Rosa eram fi lhas de Dorotea de Mollinedo y Lozada Agüero, irmã de Fran-
cisca que se casou com Tomás de la Bodega y Cuadra, sobrinho de Isabel de la Bodega
y Cuadra, casada com Simón de Lavalle y Cortés, pais de José Antonio de Lavalle y
Cortés, conde de Prêmio Real. Ver árvore genealógica em Mazzeo (1994:96).
11
AGN Lima, notario José Joaquín Luque, protocolo 378:216-222.
12
Rizo Patrón, 2000:134 e 272.
13
Ver árvore genealógica; AGN, sección Notarios, Felipe de Orellana, Protocolo
477:274.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
valor de 178.045 pesos fortes e 140.280 dobrões de ouro em 1784,
1785 e 1796, nos navios La Mejicana, El Peruano, San Pedro Alcántara,
Francisco Javier e Astrea.14
Nessa família, são as mulheres que proporcionam os detalhes inte-
ressantes da situação familiar. Pode-se constatar que María Josefa de la
Cuadra y Mollinedo, esposa de Antonio, que morreu em 1785, her-
dou de seus irmãos todos os bens. Quatro filhas de Antonio — Petro-
nila, Mercedes, Francisca e Josefa — se casaram com comerciantes
espanhóis que tinham acabado de desembarcar na América.
Com a morte de María Josefa, Manuel — o único fi lho homem
— tornou-se testamenteiro. No testamento deixado por Manuel,
em 1845, ele declara que ainda tinha esperança de cobrar o que lhe
era devido pela Fazenda San José, no vale de Huatica, entre os vales
de Miraflores e Magdalena, conhecida como Orrantia. Ela tinha
sido arrendada por 3 mil pesos anuais. Se levarmos em consideração
a taxa média de 5% sobre o valor, o total deveria ser de 60 mil pesos.
Manuel pagou pontualmente até 1817, mas depois acumulou uma
dívida que não conseguiu pagar.
Outra característica geral desses comerciantes era a participação
no grêmio, o Consulado de Comércio de Lima, um elemento dife-
renciador do grupo porque, para entrar nesse órgão, era necessário
preencher certos requisitos e ter certas características. Os priores e
cônsules eram eleitos em função de sua capacidade econômica, ori-
gem racial, possuir uma loja, pagar pelo menos 750 pesos de impos-
to por ano e utilizar um capital superior a 12 mil pesos anuais. Entre
1773 e 1824, 10 pessoas integrantes de apenas quatro famílias ocu-
param os cargos mais importantes da instituição, o que nos permite
concluir o espaço de poder econômico que controlavam.
Ser integrante do Consulado era não apenas uma distinção que
permitia negócios a distância, dava também ao indivíduo a possibili-
14
AGN Lima, sección Aduanas, livros LTC 16.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
barris de alcatrão e piche.15
Depois da morte do pai, Juan Bautista manteve os negócios, assim
como Antonio, radicado em Lima. As cartas desses comerciantes (às
quais tive acesso) permitem visualizar as negociações feitas entre
1801 e 1815, os confl itos que geraram, as diferenças causadas e o
impacto das guerras, além de identificar as embarcações que entra-
ram e saíram do porto de Callao. Essa correspondência é composta
por 161 cartas entre Juan Bautista de Lavalle, em Lima, que substi-
tuiu o pai nos negócios, e Antonio de Lavalle, em Cádiz, o contato
para as trocas. As cartas descrevem os negócios da família e os deta-
lhes do comércio, em duas conjunturas de guerras internacionais.
Outro fi lho, Simón, foi capitão da Companhia de Alabardeiros e
depois coronel de exército. José Antonio, em Cádiz, montou o Cor-
po de Granadeiros Voluntários do Estado. José Casimiro fez parte
do mesmo corpo organizado pelo irmão e chegou a brigadeiro. Juan
Bautista foi alcaide e regente do cabildo de Lima. Mariano foi ouvi-
dor da Audiência de Guadalajara. Depois da independência, Juan
Bautista se casou com a criolla Narcisa Arias de Saavedra. A fi lha de
Simón Petronila casou-se com Felipe Pardo y Aliaga, regente de
Cuzco. Da união dos dois nasceu o futuro presidente do Peru, Ma-
nuel Pardo y Barreda.
Nesse ponto, nota-se um caso típico de endogamia — outra es-
tratégia para proteger heranças. Essa família é particularmente im-
portante porque se junta aos Barreda y Osma, que ocuparam cargos
de peso no século XIX. Geralmente a fortuna era feita na primeira
geração, através do comércio; na segunda, aumentava-se o número
de atividades e o capital — se a família era do interior, se mudava
para a capital —, e na terceira é que aconteciam os casamentos entre
primos ou membros de outras redes, ingressando-se na carreira po-
lítica ou ocupando cargos eletivos.
15
Molinari (1916:116). Em tudo o que se referir a Lavalle, ver Mazzeo (1994).
16
Figueroa, 2000.
17
Colección documental de la Independencia del Perú, 1971, t. 21, v. 1, p. 441-442.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
tro de cidadania para continuar vivendo no país. Francisco Javier de
Izcue não teve dúvidas e ficou, mas Francisco Inda consta na lista
dos que deixaram Lima.18
A guerra prejudicou muitos comerciantes, mas o mau gerenciamen-
to do capital também levou à falência alguns deles. Em 1845, no testa-
mento de Manuel, um dos filhos de Antonio Sáenz de Tejada, pode-se
deduzir uma contínua deterioração econômica, devido ao dinheiro
gasto em jogo em Chorrillos19 e em “convites e passeios durante o ano,
em um total de vinte e três”. Ele também ficou com o dinheiro de al-
gumas capelas que tinham como função oficiar milhares de missas,
além de uma grande lista de ações judiciais. Em outras palavras, gastou
tudo o que haviam deixado para ele a tia, o pai e a mãe.20
O casamento mais importante entre as irmãs de Manuel foi o de
Josefa com Francisco Javier de Izcue, comerciante e cônsul do Tribu-
nal do Consulado de Lima entre 1811 e 1813. Francisco Javier de
Izcue não deixou testamento, mas sua esposa, Josefa Sáenz de Tejada,
disse ter recebido uma grande fortuna, que chegava a 633.771 pesos
fortes. O casal teve seis fi lhos: o mais velho chamava-se Juan Francis-
co, em seguida vinha María del Carmen Faustina de Izcue y Canal,
que morava nas Filipinas. A fi lha Margarita faleceu em 1839; José
María, que ficou por muito tempo em litígio com o irmão mais velho
devido à má administração do testamento do pai, aparece como co-
merciante na inscrição do Consulado em 1839; Juana casou-se em
Concepción de Chile com José Salvador Palma; e Evaristo, o último
fi lho, doente, ficou sob a custódia dos irmãos Inés e José María.21
Francisco Javier foi um grande comerciante que desenvolveu suas
principais atividades durante o auge mercantil, entre 1784 e 1796. A
título de exemplo: em 1795 importou mercadorias de Cádiz no va-
18
Colección documental de la Independencia del Perú, p. 442.
19
N. do T.: Bairro de Lima onde fica o Jóquei Clube.
20
Ver árvore genealógica do anexo 1.
21
Silva, 1999:13.
22
AGN, sección Aduanas, Barcos procedentes de Cádiz, Guadalupe alias La Reina,
El Buen Suceso alias El Levante, San Pedro alias La Reina, San José alias La Prin-
cesa, anos de 1795 e 1796.
23
AGN, Libros de Aduana, El Jasón 1795, fragata San Pedro alias La Reina, proce-
dente de Cádiz, jul. 1796.
24
AGN, notário Joseph Aizcorbe, protocolo 35:669, 26 ago. 1799; Luis Tenorio,
protocolo 1029:559, 22 ago. 1800; Ayllón de Salazar, protocolo 10: 106v., 21 ene.
1808. Agradeço muito especialmente a Ramiro Flores por me fornecer esses dados.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
em 1816 e, como estabelecia o regulamento, ocupara o cargo por
dois anos.25 Quando, em 1821, San Martín decretou a extinção do
Consulado de Comércio, que se converteu em Câmara de Comér-
cio, Francisco Javier de Izcue a presidiu até 1824. Por volta de 1839,
seu fi lho Juan Francisco, juntamente com Isidro Aramburu e Felipe
Barreda, passou a ocupar a direção do Consulado de Lima.
Foi em 1823 que o governo mais precisou de recursos. Lima estava
em poder dos separatistas, mas as forças monarquistas ainda se encontra-
vam em Cuzco, a guerra se prolongava e os empréstimos se sucediam
todos os meses. Nesse ano, participou com outro grupo de espanhóis de
um empréstimo no valor de 70 mil pesos, que seria pago com fundos
que viriam do Chile, totalizando 2 mil pesos. O montante seria com-
pensado com direitos aduaneiros, ou seja, notas promissórias que o co-
merciante descontaria na Alfândega como parte do pagamento do res-
pectivo imposto.26 Nessa época participou de dois outros empréstimos,
em julho contribuiu com 1.291 pesos em espécie e 1.387 pesos em mo-
edas de prata, e em outubro deu 5 mil pesos ao Tesouro.27 Nesse ano,
ele vendeu ao Estado uma prensa, pela quantia de 3 mil pesos, a serem
pagos no prazo de seis meses a contar da data de entrega.28
Outra atividade econômica desenvolvida por Francisco Javier era
a importação de farinha do Chile, pela qual devia pagar em taxas à
Câmara de Comércio29 a quantia de 3.266 pesos em 1823. Na insti-
tuição exercia a função de secretário suplente e, devido às circuns-
tâncias da época, não recebia salário.30 Em 1824, Francisco Javier de
Izcue continuava representando a Câmara de Comércio e o presi-
25
Flores Galindo, 1984:251.
26
AGN, sección Republicana, OL 84-17 1358 e OL 1691.
27
AGN, documentos do Consulado, Legajo n. 2 “Relación de individuos que en-
tregaron la cantidad de 200.00 pesos”, 31 jul. 1823.
28
AGN Lima, documentos da sección Republicana, OL 72-78 697.
29
Entre 1821 e 1826, o Consulado passou a se chamar Câmara de Comércio; depois
foi reinstalado em 1829 de forma definitiva e atuou até depois da Guerra do Pacífico.
30
AGN Lima, documentos da sección Republicana, OL 84-66 e 84-56. Devia re-
ceber um salário de 3 mil pesos anuais, mas só tinha recebido 250 pesos.
31
AGN Lima, documentos da sección Republicana, 108.05 e 108.06, 1978 e 1979.
32
Quirós, 1987:39.
33
Carlos Bernardo Flucker, palestra ministrada sobre a situação em Morococha
(Imprenta del Correo Peruano, 1846).
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
Como comerciante de sucesso, Juan Francisco foi testamenteiro
da irmã Margarita e da avó María Josefa de la Cuadra, falecida em
1836, e que deixou registrada em testamento uma dívida de 20 mil
pesos para com o fi lho Francisco Javier de Izcue. Ele também foi
testamenteiro de sua tia Rosa de la Cuadra, que se tornou o verda-
deiro centro da rede familiar. Rosa de la Cuadra y Mollinedo rece-
beu a chácara de Orrantia e o curral de Arrosavena (pagando um
tributo anual de 70 pesos, mas cujo imposto tinha sido cedido a um
mosteiro de Santa Clara). Francisco também foi testamenteiro de
outro empresário respeitado, Ramon Castaneda, morador do Callao,
onde tinha uma taberna.34
Em 1836, Juan Francisco emprestou 300 pesos ao governo (como
seu pai também fizera) e em 1839 (já prior do Consulado de Lima)
participou como candidato das câmaras de comércio, obtendo o cargo
de prior em 1840, 1841, 1842 e 1843. Nessa época, ele também apare-
ce como credor do ramo de impostos com uma dívida de 5.142 pesos
a ser paga pelo governo.35 Ele também foi membro da Junta de Bene-
ficência, órgão que reunia as pessoas mais importantes na sociedade, já
que era necessário dispor de certa quantia para pertencer a ela. A junta
estava envolvida em atividades beneficentes que movimentavam gran-
des quantias de dinheiro. Também ingressou no Exército republicano,
chegando a ser coronel e primeiro chefe do Regimento da Legião da
Concordia, em Lima.36 Entrou em negociações com Martín Arambu-
ru, com um capital de 75 mil pesos, para uma empresa que aparente-
mente se destinava à comercialização de produtos brasileiros, já que
tinha o nome de Rio de Janeiro. Após sua morte, em 1846 em Moro-
cocha, devido a uma doença grave, perdi o rasto dessa família.37
34
Silva (1999:18); AGN, Felipe de Orellana, 1846, protocolo 447:274.
35
Quirós, 1987:43.
36
Guía de Forasteros de Lima, 1837.
37
AGN Lima, notario Felipe Orellana, protocolo 477:273 v. 11 abr. 1846. Ver ár-
vore genealógica do anexo 1.
38
Silva (1999:14-15); AGN Lima, notario Orellana, protocolo 477: 313.
39
Riglos nasceu em Buenos Aires em 30 de janeiro de 1797. Estudou no Colégio
de São Carlos, de Buenos Aires. Militou nos exércitos libertadores como ajudante
de campo do general Alvear, e foi condecorado “Digno Defensor de la Libertad
Nacional”, “Medalla de la Rendición” em Montevidéu, em 1814. Ele fi nanciou
com o próprio dinheiro a expedição de San Martín ao Peru, onde Riglos ficou
encarregado do Comando Geral da Esquadra do Chile em 1825, e capitão da 1a
Companhia da “Legión Comercio”. Morreu em Lima, em 22 de janeiro de 1839.
Ver Ludowing Figari (2000:142). Esse personagem participou da reconquista de
Buenos Aires e da declaração de Independência em 1816, depois foi para o Chile, de
onde partiu para o Peru ao lado de San Martín.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
valor de 15 mil pesos, móveis, joias e dívidas de pessoas no valor de
37.125 pesos, além das dívidas do Estado, avaliadas em 10.701 pesos
fortes. Ele devia, por sua vez, 69.739 pesos a particulares e 49.761
pesos fortes à alfândega.40
José Riglos importou mercadorias de Valparaíso, Coquimbo,
Chivay e Guayaquil e mercúrio da Europa; exportou têxteis, bebi-
das, armas, vinho, manteiga, no valor de 92.239 pesos, além de apli-
car 30 mil pesos fortes em Valparaíso, na compra de bens pessoais.41
Também adquiriu produtos em Pisco, Paita, Huanchaco e Lambaye-
que. Riglos se endividou em 20 mil pesos com Manuel Blanco En-
calada, também radicado no Chile, a quem deveria pagar juros de 6%
ao ano.42 Também se relacionou com o senador chileno José Maria
Rosas, a quem representou em Lima perante a Casa Baring Brothers
e Cia., atuando como seu representante nas negociações em Londres.
Suas ligações com autoridades do governo ficam evidentes na relação
que teve com José Gutierrez, advogado da Corte Suprema de Justiça
do Peru, a quem entregou uma procuração para que o representasse
em todas as causas e negócios.43
Riglos, como tantos outros estrangeiros, passou a ser um dos pro-
vedores do Estado peruano, não apenas de fardas para o Exército,
mas também em empréstimos necessários para a manutenção da
guerra. Prova disso foram os adiantamentos concedidos ao governo
em 1827, no valor de 32 mil pesos. Em compensação, o Estado ce-
deu-lhe uma casa que já havia pertencido ao Tribunal da Inquisi-
ção.44 Em 1829, chegou a ser cônsul da Argentina no Peru, data em
que a dívida do Estado chegou a 47.040 pesos fortes.45 Riglos che-
40
AGN Lima, sección Notarios, Ayllón de Salazar, 1825, Protocolo 41:694-705.
41
AGN Lima, sección Aduanas, Barcos procedentes y con destino a mares del Sur.
42
AGN Lima, sección Notarios, Ayllón de Salazar, protocolo 41:767v e 837.
43
AGN Lima, sección Notarios, Ayllón de Salazar, protocolo 42:709; e Juan Cosio,
protocolo 156:245v.
44
AGN Lima, Ayllón de Salazar, protocolo 46:425.
45
AGN Lima, Ayllón de Salazar, protocolo 49:759.
Conclusões
O estudo minucioso de várias famílias de comerciantes permite que
se chegue às seguintes conclusões: os comerciantes do século XVIII,
em Lima, formavam uma espécie de irmandade, uma rede de rela-
ções e vínculos que ultrapassava o familiar. Esses comerciantes agiam
em conjunto, comprando, vendendo ou montando empresas para de-
terminada atividade e participando de forma contemporânea na con-
dução de uma das instituições que teve mais continuidade ao longo
do século XIX, o Consulado de Comércio de Lima. Embora a inde-
pendência tenha afetado os comerciantes e, por vezes, feito com que
perdessem grandes quantias de dinheiro, considero que esse grupo de
elite soube se recompor lançando mão de diversas estratégias.
Em primeiro lugar, várias gerações de comerciantes se uniram
pelo matrimônio, como foi o caso dos Elizalde, González Gutiérrez
com os Santiago y Rotalde, e depois, com os Cortiguea, Correa y
Garay e até Polanco.
Em segundo lugar, a utilização de práticas endogâmicas permitiu
a essas famílias de comerciantes a não dispersão da herança. Esse
papel da família na sociedade foi o que lhe deu apoio, proteção e
segurança, especialmente em momentos críticos de crise econômi-
ca, como na fase de consolidação da república. O caso mais emble-
46
AGN Lima, notario Julián de Cubillas, protocolo 204:162, 186, e 271.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
deduz que essa não era uma prática apenas vigente na colônia, mas
também comum durante a república.
Em terceiro lugar, continuaram sendo apoiados pela instituição
que os representava: o Tribunal do Consulado de Comércio de
Lima. Ele foi restabelecido em 1829 e manteve suas funções até
1886, data em que foi substituído pela Câmara de Comércio. Por-
tanto, essa organização empresarial permitiu aos comerciantes con-
tar com apoio institucional ao longo de toda a sua existência. O
Consulado desempenhava não só funções de árbitro em questões
comerciais, mas também garantia os comerciantes nos empréstimos
que concediam ao Estado.
Em quarto lugar, os comerciantes continuaram a emprestar aos
governos recém-independentes, fornecendo quantias significativas
de dinheiro através de diferentes agências, que cumpriam a mesma
função na era colonial: fi nanciar os novos governos em suas necessi-
dades de caixa, obtendo em troca interessantes privilégios econômi-
cos, que resultavam em lucros extras no comércio e em tarifas redu-
zidas. Portanto, o jogo de gentilezas entre o poder político e o
econômico perdurou durante todo o século XIX.
Nesse quesito, os comerciantes estrangeiros que se estabeleceram
em Lima após a independência foram os que mais especularam sobre
a concessão de empréstimos a altas taxas de juros. Do ponto de vista
social, agiram de forma semelhante à elite local, inserindo-se social-
mente pelo casamento na antiga elite limenha. Em termos econômi-
cos, envolveram-se em todas as etapas da produção e da diversificação
econômica, com ênfase na exploração de minérios e na agricultura.
O grêmio mercantil foi o que manteve relações mais estreitas
com o Estado — colonial ou republicano — sendo uma das institui-
ções mais fortes durante todo o século XIX. O Consulado de Co-
mércio de Lima agia como um mediador entre os comerciantes lo-
cais e o novo Estado republicano, sempre precisando de dinheiro. As
relações de parentesco e os laços familiares desempenharam um pa-
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Simón
c.c.
Isabel Cabero
y Salazar
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
Anexo 1
Susana José Hernando Mariana Mercedes Elvira Alejandrina Irene M. Luisa María
*
O fi lho desse casal, de mesmo nome do pai, casou-se com Adriana Vega Bazán,
parente de Rosa, esposa de Bruno Polanco,
(Luis Lasarte Ferreyros)
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
Anexo 2
Árvore genealógica de Elizalde, Rotalde e Santiago
SÉCULO XVIII
María Josefa de la
Cuadra y Mollinedo c.c.
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
Anexo 3
Parentes de Isabel de la Bodega y Cuadra
(de cujo ramo descende a família
Lavalle de la Bodega y Cuadra)
Evaristo Juana José María Margarida María del Juan Francisco Inés Gutiérrez
c.c. Carmen Izcue c.c. de Cossío
José Salvador (Filipinas)
Palmas
SÉCULO XIX
Chile
José Rafael María del Francisco Javier
Carmen
Edoardo Grendi
Nascido em Gênova, Itália, em 1932, e falecido em Nothingham, Reino
Unido, em 1999. Foi docente de história moderna na Universidade de Gê-
nova e um dos principais protagonistas do debate italiano sobre a micro-
história. Foi autor, entre outros livros, de Polanyi: dall’antropologia economica
alla microanalisi storica (Etas Libri, 1978), Lettere orbe: anonimato e potere nel Sei-
cento genovese (Gelka, 1989), Il cervo e la Repubblica. Il modelo ligure di antico regi-
me (Einaudi 1993), I Balbi. Una famiglia genovese fra Spagna e Impero (Einaudi,
1997) e In altri termini (Feltrinelli, 2004).
Giovanni Levi
Foi professor de história moderna nas universidades de Turim e Viterbo e,
atualmente, leciona na Universidad Ca’Foscari de Venecia. Codiretor do
Programa de Doutorado “Europa: o mundo mediterrâneo e sua difusão
atlântica”, na Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Dirigiu a
prestigiosa coleção Microstorie da editora Einaudi e a conhecida revista Qua-
derni Storici, entre outros trabalhos editoriais. Colaborador da associação Me-
rifor (Mediterráneo, Ricerca e Formazione) e membro do conselho diretor
do Ideas (Centro interdepartamental para a análise da “Interazioni Dinami-
che tra Economía, Ambiente e Societá”). Publicou, entre outros trabalhos,
os livros L’eredità immateriale (Einaudi, 1985; lançado no Brasil em 2000 pela
Civilização Brasileira com o título A herança imaterial. Trajetória de um exorcis-
ta no Piemonte do século XVII ) e Centro e periferia di uno stato assoluto (Rosen-
berg, 1985), e juntamente com Jean-Claude Schmitt organizou a obra Storia
dei Giovani (Laterza, 1994; lançado em 1996 no Brasil, em 2 volumes, pela
Companhia das Letras, com o título História dos jovens).
OS VÍNCULOS INTERFAMILIARES
João Fragoso
Professor titular de teoria da história da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Doutor em história pela Universidade Federal Fluminense
(UFF) desde 1990. É autor de Homens de grossa aventura: acumulação e hierar-
quia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. (2. ed., Civilização Brasi-
leira, 1998), coautor de O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio de Janeiro, 1790 –
1830 (4. ed., Civilização Brasileira, 2001) e um dos organizadores dos livros
O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa nos séculos XVI-
XVIII (Civilização Brasileira, 2001) e Conquistadores e negociantes: histórias de
elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII (Civili-
zação Brasileira, 2007).