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Gregorius Aldenburgk
Vittorio Serafin
As crônicas evidenciam que quer fossem formadas por adesão voluntária, ou reunidas
compulsoriamente, as tripulações do passado, quase sempre resultaram na reunião de uma
ralé que sem grande erro se poderia considerar a escória social. Não é difícil imaginar que uma
atividade que ocasionava significativo número de baixas e uma vida extremamente sacrificada,
mesmo que fosse a única ou a profissão que propiciasse uma melhor remuneração, serviria de
opção apenas a desesperados e aventureiros iludidos com seus próprios sonhos. Assim é, que
manter a disciplina entre uma tripulação constituída de indivíduos de formação rudimentar ou
de incorrigíveis arruaceiros, não era tarefa das mais simples e parece que a regra adotada foi a
de combater as violências e desvios verificados a bordo com desigual proporcionalidade e,
sobretudo, de formas a servir de coerção e exemplo aos demais.
Johannes Gregorius Aldenburgk, serviu como soldado raso no exército de 1700 soldados que a
WIC - Companhia das Índias Ocidentais despachou com a armada corsária, composta de 26
navios, 509 canhões e 1600 marinheiros, comandada por Jacob Willikens (1564 – 1649), tendo
como vice-almirante o hoje famoso herói nacional holandês Piet Pieterszoon Heyn, que em
1623, zarpou dos Países Baixos rumo ao Brasil objetivando a tomada da Bahia.
Johannes Gregorius Aldenburgk registrou as principais ocorrências que lhe chamaram a
atenção em um diário, aqui foi parcialmente traduzido por Alfredo de Carvalho em 1613 e
concluído por Agrippino Martins em 1958, que recebeu o título Relação da conquista e perda
da cidade do Salvador pelos Holandeses em 1624-1625, e foi impresso em 1961 nas Oficinas
da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais em S. Paulo, e que as páginas Pág 167 e 168
apresenta o relato a seguir atualizado, transcrito (em itálico) e comentado (box):
No mês de Marco de 1624, o almirante Jacob Willekens mandou disparar um dos seus
grossos canhões, como sinal de que todos os capitães se deviam aprestar para partir.
Em seguida, reuniu-se, em nosso navio "Esperança", o conselho de guerra, a fim de
punir a vários delinquentes que jaziam no calabouço de bordo, durante muitas semanas
a pão e água, presos por grandes ferros e correntes; uns foram condenados a passar
por baixo da quilha do navio e outros a saltar no mar do alto da verga grande.
E oportuno tratar aqui da justiça de bordo na punição dos crimes. Seis espécies de
castigo havia, a saber:
a) — Quando alguém blasfema, ou usa de linguagem grosseira ou indecorosa, é batido
varias vezes de encontro ao mastro grande, de sorte que não se pode sentar sem dor.
Refere-se ao açoitamento através de uma corda grossa com um nó em sua extremidade. Esse
castigo obrigava ao condenado manter as pernas bem juntas para ser açoitado nas costas e
nádegas. Se mantivesse as pernas abertas corria o risco de receber lesão permanente nos
testículos. A quantidade de açoites era definida em função: da gravidade do delito, a
contumacidade do apenado e ou reincidências, tratando-se de uma penalidade imposta “à
sentimento” pelo comandante da embarcação as quantidades de açoites podiam variar
b) — Aos que cometem faltas mais graves, prendem, à pão e água, por alguns dias ou
semanas, no beque do navio, onde, quando o mar se agita em grandes vagas, ninguém
pode ficar enxuto; é, por assim dizer, o cárcere de bordo.
Beque: refere-se a extremidade superior da proa do navio. Nessa região eram mantidos os
cárceres e os sanitários da tripulação, os compartimentos localizados nessa área do navio eram
alagados a cortar as ondas em mares de tormenta.
Alimentação exclusivamente a base de pão é água: É difícil estimar, com precisão as
implicações da alimentação exclusivamente a base de pão e água, embora tal dieta seja
reconhecidamente prejudicial à qualidade de vida, que, contudo, é condicionada a condição física
de cada condenado. Trata-se uma dieta que não contempla a necessidade nutricional básica e a
reposição de calorias, pois o pão é constituído basicamente de carboidratos e o corpo humano
requer a ingestão complementar de proteínas e gorduras.
Os primeiros resultados desse tipo de punição são a perda de massa muscular, a queda de
cabelos, o ressecamento da pele, o escorbuto e a cegueira. Condições que se agravam, pois os
órgãos vão dando sinais de falência e o condenado poderá passar a sofrer de fadiga e anemia,
sujeitando-se a infecções, lapsos de memória e sono intenso. Em continuidade rins e fígado param
de funcionar, culminando num colapso cardíaco.
Manter à pão é água, era também uma espécie de tratamento destinados a condenados revoltados
ou agressivos, acreditava-se que os humores eram determinados por prisões de ventre e um
prisioneiro “enfezado” deveria ser submetido a essa dieta laxante para acalmar-se. Esse objetivo,
como se viu acima, era finalmente alcançado pelas debilitações do organismo e estado de
prostração que ocasionava.
e) — O severíssimo castigo de ser passado por baixo da quilha do navio é assim posto
em prática: amarram ao condenado uma longa corda, suspendendo-lhe ao corpo pesos
de alguns quintais; prendem-lhe os braços, com um chapéu embebido em azeite diante
da boca, para que possa respirar em baixo d' água ; mergulham-no assim no mar até a
profundidade de varias braças, e fazem-no passar, por diversas vezes, por baixo da
quilha do navio, conforme a gravidade do delito. Esse castigo é o que mais se aproxima
da pena última: se o padecente consegue manter a respiração, muito bem; do contrário,
perece.
Conhecido na literatura como Keelhauling e tratava-se de uma forma de punição infligida a
marinheiros nos séculos XVII e XVIII, mas que certamente não se tratou de uma invenção da Era
Moderna, pois os gregos antigos aplicaram essa forma de punição a piratas e marinheiros
amotinados ou condenados por prática de crimes graves, conforme se deduz das imagens
registradas em antigo pote cerâmico, que hoje integra o acervo do Museu Nacional de Atenas.
Era uma punição, muito perversa e especialmente destinada a causar dor física e foi legalmente
praticada no início da Era Moderna, inicialmente, pela Marinha Holandesa [kielhalen], na qual a
primeira menção oficial sobre a prática do keelhauling data de 1560. Essa punição foi também
praticada pela Marinha Real do Reino Unido - Royal Navy e igualmente também pelas Marinhas
Mercantes e de Guerra de outros países como, França, Polônia onde constou das Ordenanças
datadas de julho 1571 (periodo de reinado de Sigismund Augustus) e na Dinamarca no reinado de
Christian V
A prática foi abolida em 1853 e não há um nome em Português para definir essa punição o termo
Keelhauling, numa tradução literal significaria “arrastar sob a quilha”, em italiano será descrito
como Giro di chiglia – Giro de quilha. Dessa forma se procurássemos uma forma de fugir ao uso
de estrangeirismos, poderíamos propor o termos: sub-quilhamento ou giro da quilha.
Pintura óleo sobre tela – O keelhauling,de acordo com a tradição do médico de bordo do Almirante Jan
van Nes, tela produzida entre 1645 e 1686, por Lieve Pietersz. Verschuier (1627–1686). Peça do acervo
do Rijksmuseum de Amsterdã – Holanda.
Referências
PAIVA, Márcia de - Crime e Castigo: As civilizadas práticas jurídicas de uma Idade, Artigo em:
Moderna. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 79-94, jan/jun 2002
DONNELLY, Mark P. & DIEHL, Daniel - The Big Book of Pain Torture & Punishment Through
History - History Press, 2008
SHOMETTE, Donald G. & HASLACH, Robert D., Raid on America: The Dutch Naval Campaign
of 1672 - 1674 (Columbia: University of South Carolina Press, 1988).
MARLEY, David F. - Pirates of the Americas volume 1: 1650 - 1685 ABC-CLIO, LLC, 2010
MARLEY, David F. - Daily life of pirates - ABC-CLIO, 2012