Nulidade evidenciada na utilização dos antecedentes criminais do
acusado como argumento de autoridade no plenário do júri
Paulo Osório Gomes Rocha|Guilherme Batista Gomes Rocha|Elquisson
Sidney Gomes Rocha
No Tribunal do Júri, a carga subjetiva decorrente dos antecedentes criminais
ganha uma dimensão sem tamanho, já que a liberdade de convencimento dos jurados dispensa qualquer motivação, sendo possível o reconhecimento da culpabilidade do acusado em função de outros fatos não imputados.
A exposição da presente tese encontra suporte nas seguintes premissas
interpretativas: 1) os antecedentes criminais constituem ressonância explícita do direito penal do autor, representando uma mácula ao sistema de garantias estabelecido pela Constituição; 2) a valoração dos antecedentes criminais tende a (pré)determinar juízos de condenação, especialmente pelo Tribunal do Júri e 3) a modificação legislativa introduzida pelo art. 478 do CPP deve ser interpretada extensivamente, para abarcar também a vedação na utilização dos antecedentes criminais do acusado como reforço argumentativo para condenação.
Passemos, então, a demonstração da tese.
Um esclarecimento inicial deve ser realçado: a significação de antecedentes
criminais, para fins desse estudo, possui proposital amplitude [1] para indicar todos os registros (policiais e judiciais) constantes em nome do acusado, os quais são rotineiramente juntados em qualquer ação penal para avaliar a “vida pregressa” do agente. Englobam fatos atinentes aos inquéritos policiais ou investigações preliminares (em andamento ou já arquivadas), ações penais em curso ou com sentença irrecorrível (condenatória ou absolutória) e ainda informações sobre cumprimento de pena pelo agente ou causas de extinção da punibilidade.
Numa perspectiva histórica, os antecedentes criminais sempre exerceram
influência no sistema penal brasileiro. Desde as Ordenações do Reino de Portugal, especificamente o Código Filipino, já traduzia forte preocupação com a “vida pregressa” daqueles que praticaram algum fato delituoso, originando-se, nesse período, a conhecida folha corrida: documentos expedidos pelos escrivães e tabeliães, que eram levados pelos corredores de folha, com o fim de certificarem a ocorrência de crimes em outras escrivanias ou comarcas.[2] No atual Código Penal, os antecedentes criminais, entre outras tantas implicações, constituem: a) circunstância valorativa para impedir a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44, inciso III, do CP); b) critério para quantificação da pena-base (art. 59, caput, do CP); c) critério para determinação do regime inicial de cumprimento de pena (art. 33, § 3º, do CP).
As interferências dos antecedentes criminais também possuem coloração
destacada no processo penal brasileiro. Basta verificar o conteúdo dos atos judiciais para justificação das prisões cautelares: não é incomum a qualificação da segregação provisória da liberdade individual com apoio nos antecedentes do acusado, sob a rotulação, por exemplo, de risco na reiteração de delitos.[3] Mas de todo modo, inclusive para a finalidade dessa tese, a mais gravosa interferência dos antecedentes criminais diz respeito a sua valoração como critério de (pré)julgamento.
Sobre essa temática, colaciono o alerta mencionado por Salo de Carvalho:
...a valoração histórica do acusado, da forma com que se estabeleceu no
ordenamento jurídico pátrio, cria um mecanismo incontrolável do arbítrio judicial, pois tende a (pré) determinar juízos de condenação – geralmente, chegando o momento de prolatar a sentença penal, o juiz já decidiu se condenará ou absolverá o réu. Chegou a essa decisão (ou tendência de decidir) por vários motivos, nem sempre lógicos ou derivados da lei. Muitas vezes, a tendência a condenar está fortemente influênciada pela extensão da folha de antecedentes do réu...[4]
Esse processo de estigmatização – gerado pelos antecedentes criminais – é
um claro reflexo, ainda, da absorção do modelo etiológico positivista de Lombroso-Ferri-Garófalo. Ora, para se qualificar uma condenação penal como ético-jurídica, é imprescindível que o réu seja julgado pelo fato praticado, e não pelos seus atos anteriores (vitaanteacta). Estes revelam circunstâncias de caráter pessoal sem nenhuma ligação com o fato imputado. Há, pois, um desvirtuamento do princípio do direito penal do fato e da situação de inocência, revelando-se uma nódoa ao sistema de garantias imposto pela Constituição. É urgente, nesse sentido, uma (re)leitura constitucionalizada de vários dispositivos contidos na legislação penal e processual penal.
Especificamente, no Tribunal do Júri, a carga subjetiva decorrente dos
antecedentes criminais ganha uma dimensão sem tamanho, já que a liberdade de convencimento dos jurados dispensa qualquer motivação, podendo os jurados reconhecer a culpabilidade do acusado em função de outros fatos não imputados, daí a oportuna abordagem formulada por Aury Lopes Júnior:
A situação é ainda mais grave se considerarmos que a liberdade de
convencimento (imotivado) é tão ampla que permite o julgamento a partir de elementos que não estão no processo. A “íntima convicção”, despida de qualquer fundamentação, permite a imensa monstruosidade jurídica de ser julgado a partir de qualquer elemento. Isso significa um retrocesso ao Direito Penal do autor, ao julgamento pela “cara”, cor, opção sexual, religião, posição socioeconômica, aparência, física, postura do réu durante o julgamento ou mesmo antes do julgamento, enfim, é imensurável o campo sobre o qual pode recair o juízo de (des)valor que o jurado faz em relação ao réu. E, tudo isso, sem qualquer fundamentação. [5]
Mas, afinal, como impedir que os jurados sejam influenciados
indevidamente por ocasião do julgamento no Plenário do Júri? Dever-se-ia juntar os antecedentes em autos separados para serem valorados, se o caso, em eventual aplicação de pena pelo juiz togado? Ou basta proibir a sua utilização como reforço argumentativo durante os debates?
A nossa legislação, até o ano de 2008, ainda não previa nenhuma
normatização a respeito da preservação da autonomia dos jurados através de regras na linha argumentativa dos debates. Já no sistema da common Law há a regra de caráter (characterrule) que veda a utilização de prova relacionada ao caráter do acusado,[6]preservando-se a idoneidade do julgamento com o fato imputado. Acontece que, com o advento da Lei 11.689/2008, incluiu-se uma importantíssima regra normativa no art. 478 do CPP, visando conferir limites nas argumentações perante o Tribunal do Júri.
O direito de acusar, notadamente perante o Tribunal do Júri, também deve
encontrar limites, ou seja, deve estar adstrito ao fato delituoso imputado, impondo-se que aspectos ligados ao direito penal do autor sejam restringidos pelo Julgador.[7]
Vê-se que o Tribunal do Júri se constitui, no nosso sistema normativo, como
importante mecanismo de representação dos interesses populares, daí a preocupação legislativa – embora acanhada – em evitar que as decisões dos magistrados togados ou aspectos visuais influenciem os jurados. Buscou-se, com isso, alçar o Tribunal do Júri em harmonia com suas diretrizes constitucionais e não como simples instituição simbólica.
A constitucionalidade do art. 478 do CPP – ao contrário do afirmado por
alguns setores minoritários do Ministério Público que sustentam a inconstitucionalidade material do preceito em epígrafe – é evidenciada pela busca de garantia da soberania dos veredictos, eis que resguarda a livre convicção dos jurados das influências advindas das interpretações do juiz togado ou aspectos visuais extra-autos ou ligados aos antecedentes criminais do acusado. Nessa toada, o art. 478 do CPP deve ser interpretado extensivamente (inteligência do art. 3º do CPP) para abarcar também na vedação a utilização dos antecedentes criminais como argumento de autoridade para condenação. Não se estará, por ocasião dessa interpretação, limitando-se a carga probatória da acusação. O que há, ao revés, é uma limitação na exposição dos argumentos, possibilitando-se um controle judicial mais efetivo sobre o conteúdo dos debates e, com isso, evitando-se juízos perigos de presunção de culpa.
Essa extensão interpretativa a ser endereçada ao art. 478 do CPP também é
corroborada por substanciosa doutrina:
Se a leitura do decreto de prisão preventiva ou da folha de antecedentes for
feita com o objetivo de extrair uma “presunção de culpa”, haverá indevida influência no julgamento dos jurados e eventual veredicto condenatório será nulo. O art. 478 não constitui uma hipótese de numerusclausus. Não será apenas, única e exclusivamente, com finalidade que os jurados serão influenciados. Qualquer outra linha argumentativa, com finalidade persuasiva, mas que possa induzir o jurado a erro, implicará nulidade de julgamento. A diferença é que, nas hipóteses dos incisos I e II do novo art. 478, demonstrada a situação de base – o acusado foi pronunciado, ou o acusado está algemado, ou, ainda, o acusado permaneceu em silêncio, o que indica que seja culpado –, haverá nulidade, posto que o legislador, previamente, considera que neste caso haverá evidente prejuízo. No entanto, em qualquer outra hipótese, desde que se demonstre concretamente que linhas argumentativas seguidas pelas partes efetivamente influenciaram, de forma indevida e falaciosa, o convencimento dos jurados, a nulidade também será de se reconhecer. Aliás, mesmo antes do novo dispositivo, era isso o que a jurisprudência fazia no tocante a indevido argumento de presunção de culpa a partir da “periculosidade” do acusado que estivesse algemado. [8]