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1 May, 2019 | created using FiveFilters.

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A aura da ironia (I) — explicarem que as pessoas estão sempre mais vulneráveis, portanto
assustadas, logo passíveis de persuasão, quando são abordadas

Todoprosa, de Sérgio sozinhas.)

Rodrigues Os comerciais clássicos da televisão eram todos sobre o Grupo.


Tomavam a vulnerabilidade de João Bobão – sentado lá, olhando para
uma peça de mobília, solitário – e a capitalizavam, relacionando a
Dec 20, 2010 10:00AM
compra de determinado produto com a inclusão de João B. em alguma
Como presente de Natal aos leitores do Todoprosa, publico esta comunidade atraente. É por isso que aqueles que têm mais de 21 anos
semana, em três partes, o trecho de um longo e brilhante ensaio de nos lembramos de tantos velhos anúncios intercambiáveis estrelados
David Foster Wallace sobre as relações entre a televisão e a nova por turmas de gente bonita em algum contexto festivo, todos se
ficção americana que traduzi para a revista “Serrote” – e que teve divertindo muito mais do que qualquer pessoa tem o direito de se
apenas um pequeno naco aproveitado. O ensaio integral, E unibus divertir, e todos unidos como Grupo Feliz pelo fato conspícuo de que
pluram, encontra-se na coletânea A supposedly fun thing I’ll never do tinham nas mãos certa garrafa de refrigerante ou marca de
again, ainda não lançada no Brasil. O presente trecho foi batizado pelo salgadinho – o apelo altissonante, aqui, é que aquele importante
próprio DFW de “A aura da ironia” e contém seu argumento central: o produto pode ajudar João Bobão a se integrar: “Somos a Geração
de que a ironia da ficção pós-moderna foi apropriada e esvaziada pela Pepsi…”.
TV. Certos nomes de atrações televisivas à parte, o texto parece-me
Mas desde os anos 80, pelo menos, o lado Individualista da grande
não ter envelhecido substancialmente desde os anos 90, quando o
conversa americana tem predominado na publicidade televisiva. Não
ensaio foi escrito. Espero que o aperitivo sirva de estímulo a quem
estou bem certo de por que ou como isso ocorreu. É provável que haja
quiser correr atrás do livro em inglês (disponível aqui) ou a editoras
grandes correlações a serem traçadas – com o Vietnã, a cultura
que se disponham a lançar a obra no Brasil.
jovem, Watergate, a recessão e a ascensão da Nova Direita – mas o
É fato amplamente reconhecido que a televisão, com sua bateria de que importa é que grande parte dos mais eficazes comerciais de TV
estatísticos e pesquisadores de aros de tartaruga, sai-se terrivelmente dirige-se agora ao espectador solitário de modo dramaticamente
bem na tarefa de discernir padrões no fluxo das ideologias populares, distinto. Os produtos são frequentemente louvados como capazes de
absorvendo-os, processando-os e em seguida reapresentando-os como ajudar o telespectador a “expressar seu eu”, afirmar sua
estímulos para assistir e comprar. Anúncios dirigidos aos filhos do pós- individualidade, “destacar-se da multidão”. O primeiro exemplo dessa
guerra que prosperaram nos anos 1980, por exemplo, ficaram famosos tendência que eu vi foi o de um perfume do início dos anos 80,
por usar versões processadas de melodias da cultura rock dos anos 60 ardorosamente anunciado como capaz de reagir à “química corporal
e 70, tanto para evocar o desejo que acompanha a nostalgia quanto única” de cada mulher para criar “sua própria fragrância individual”.
para atrelar o consumo de produtos àquela que, para os yuppies, foi O comercial mostrava uma fila indiana de modelos lânguidas que,
uma época perdida de convicção genuína. Vans esportivas da Ford são amuadas e sem expressão, aguardavam o momento de, uma a uma,
anunciadas como “Esta é a aurora da era de Aerostar”; a Ford terem seus pulsos borrifados, cada modelo aspirando então seu pulso
recentemente envolveu-se com Bette Midler num litígio sobre a individual úmido com uma espécie de revelação bioquímica e se
apropriação indébita de seus velhos vocais em Do you wanna dance; afastando do borrifador numa direção que uma tomada de cima
as passas de argila animada da California Raising Board dançam ao revelava ser diferente das demais. (Podemos ignorar as óbvias
som de Heard through the grapevine, etc. Se a reutilização cínica das conotações sexuais, o borrifamento e tal; algumas táticas nunca
canções e dos ideais que elas costumavam simbolizar parece de mau mudam.) Ou pense naquela série recente de anúncios de Cherry 7-Up,
gosto, não se pode dizer que os músicos pop sejam eles próprios rodada num preto e branco excessivamente sombrio, em que os únicos
epítomes do não-comercialismo, e de todo modo ninguém jamais disse personagens que têm cor e se destacam do ambiente são as pessoas
que vender era bonito. Os efeitos de qualquer caso isolado de rosadas que se tornam rosadas no exato instante em que se embebem
absorção e trivialização de símbolos culturais pela TV parecem do bom e velho Cherry 7-Up. Exemplos de comerciais do gênero
razoavelmente inócuos. A reciclagem de tendências culturais como “destaque-se” são hoje praticamente onipresentes.
um todo – e das ideologias que as informam – é outra história.
A não ser pelo fato de serem mais tolinhos (produtos alegadamente

A cultura popular americana é exatamente igual à cultura americana capazes de distinguir os indivíduos da multidão são vendidos para

séria num aspecto: sua tensão central sempre se deu entre a nobreza imensas multidões de indivíduos), esses anúncios não são, na verdade,

do individualismo e o calor do sentimento comunitário. Em seus mais complicados ou sutis do que os velhos comerciais do tipo Entre-

primeiros vinte anos, parecia que a televisão buscava apelar para-o-Grupo-Feliz que hoje parecem tão antiquados. Contudo, a

sobretudo para o lado grupal dessa equação. Comunidades e laços relação do gênero Seja-Diferente-da-Manada com sua massa de

eram exaltados na infância da TV, embora a própria TV, e espectadores solitários é mais complexa e mais engenhosa. Os

especialmente sua publicidade, tenham desde o início se dirigido ao melhores comerciais da atualidade ainda são centrados no Grupo, mas

espectador solitário, João Bobão, de forma isolada. (Os anúncios agora o apresentam como uma coisa temível, algo que pode engoli-lo,

televisivos sempre apelam a indivíduos, não a grupos, um fato que anulá-lo, impedi-lo de “ser notado”. Mas notado por quem? As

parece curioso à luz do tamanho sem precedentes do público multidões ainda têm importância vital nas teses sobre identidade dos

telespectador – mas só até ouvirmos vendedores talentosos comerciais individualistas, mas hoje a multidão de um determinado
anúncio, longe de ser mais atraente, segura e vivaz do que o indivíduo,
funciona como uma massa de olhos idênticos e sem personalidade. A
multidão é hoje, paradoxalmente, tanto (1) a “manada” em contraste
com a qual a identidade distintiva do telespectador deve ser definida redes quanto para suas afiliadas locais. Isso é mais verdadeiro ainda
quanto (2) o grupo de testemunhas cujo olhar, e só ele, pode lhe quando o espectador está armado com uma engenhoca de controle
conferir tal identidade distintiva. O isolamento do espectador solitário remoto: João B. ainda consome suas seis horas totais de televisão por
diante de sua mobília é implicitamente aplaudido – é melhor e mais dia, mas o tempo que suas retinas dedicam a cada opção encolhe, pois
real, insinuam esses anúncios solipsistas, seguir em voo solo – e ao ele cobre remotamente um espectro muito mais amplo. Pior ainda, o
mesmo tempo tem implicações ameaçadoras, confusas, pois no fim das gravador de vídeo, com suas temíveis funções de avanço e zap,
contas João Bobão não é um idiota que, sentado ali, ignore ser ameaça a própria viabilidade dos comerciais. A solução inteiramente
culpado, como espectador, dos dois graves pecados que o anúncio sensata dos publicitários? Torne os anúncios tão atraentes quanto os
condena: ser um observador passivo (da TV) e fazer parte de uma programas. Ou pelo menos tente evitar que João B. desgoste tanto dos
grande manada (de telespectadores e compradores de produtos Seja- comerciais que sinta vontade de mover seu dedão e conferir dois
Diferente-da-Multidão). Tudo muito estranho. minutos e meio de Hazel no Superstation enquanto a NBC vende um
protetor labial. Faça anúncios mais bonitos, mais animados e cheios de
Na superfície, os comerciais Seja-Diferente ainda apresentam o suficiente informação visual rapidamente justaposta para que a
recado “compre isto” em estado relativamente puro, mas a mensagem atenção de João não chegue a se perder, mesmo que ele corte o
profunda da televisão no que diz respeito a esses anúncios parece ser volume. Como diz eufemisticamente um executivo publicitário: “Os
a de que o estatuto ontológico de João Bobão como mais um na massa comerciais estão ficando mais parecidos com os filmes de
reativa de espectadores é, em algum nível primordial, periclitante e entretenimento”.
contingente, e que a verdadeira realização do ser consistiria em
última análise na transformação de João numa daquelas imagens que Existe uma forma inversa, claro, de tornar os comerciais parecidos
são objetos da audiência de massa. Ou seja, o verdadeiro discurso da com os programas. Faça os programas se assemelharem a comerciais.
televisão nesses comerciais é o de que é melhor estar dentro da TV do Dessa forma os anúncios parecem menos interrupções do que
que do lado de fora, assistindo. marcadores de ritmo, metrônomos, comentários sobre a teoria da
atração principal. Invente um Miami Vice, em que há bem pouca
Isso quer dizer que a nobreza solitária do Seja-Único não se limita a trama para irritar e distrair, mas uma ênfase sem precedente na
vender produtos. Ela é capaz de garantir de forma brilhante – mesmo aparência, no visual, na atitude, num certo “estilo”. Faça videoclipes
em comerciais que a TV cobra para veicular – que no fim das contas com a mesma levada anfetamínica e as mesmas associações
seja a própria TV, e não qualquer produto ou serviço específico, que arquetípicas oníricas dos comerciais – ajuda bastante o fato de
João Bobão tomará como árbitro definitivo do valor humano. Um videoclipes serem basicamente longos anúncios musicais, de qualquer
oráculo que deve ser consultado sem parar. O estudioso de forma. Ou inaugure um híbrido de informação e publicidade bancado
publicidade Mark C. Miller formula isso de forma sucinta: “A televisão pelo patrocinador que finja ser, de forma despretensiosa, um
foi além da celebração explícita das mercadorias para promover o noticiário leve, como Amazing Discoveries ou aquelas reportagens
reforço implícito da postura de espectador que exige de nós”. sobre queda de cabelo apresentadas por Robert Vaughn que
Anúncios solipsísticos são uma das formas pelas quais a TV acaba por assombram as horas mortas da TV. Apague – exatamente como fez a
apontar para si mesma, mantendo ao mesmo tempo alienada e literatura pós-moderna – as linhas divisórias entre gêneros, interesses,
dependente a relação do espectador com sua mobília. arte comercial e comercial artístico.

No entanto, talvez a relação do espectador contemporâneo com a No entanto, a televisão e seus patrocinadores tinham uma
televisão contemporânea seja menos um paradigma de infantilismo e preocupação de longo prazo ainda maior: suas delicadas relações
vício do que da familiar postura dos Estados Unidos diante de toda diplomáticas com o psiquismo do espectador individual. Como a
tecnologia, que equiparamos a liberdade e poder e, ao mesmo tempo, televisão precisa girar em torno das contradições básicas do ser e do
a escravidão e caos. Porque, assim como ocorre com a televisão, assistir, da fuga da vida cotidiana, o espectador medianamente
podemos adorar pessoalmente a tecnologia, odiá-la, tême-la ou todas inteligente não tem como ficar lá muito feliz com sua vida cotidiana e
as alternativas acima, mas ainda é a ela que recorremos sem cessar seus altos teores de assistência. Talvez João Bobão seja até bem feliz
em busca de soluções para os problemas que a própria tecnologia quando está assistindo, mas é difícil imaginar que se sinta
parece causar – vejam-se p. ex. os catalisadores contra a poluição do terrivelmente feliz por assistir tanto. Com certeza, lá no fundo, João
ar, a “Guerra nas Estrelas” contra os mísseis nucleares, os fica desconfortável por fazer parte da maior multidão da história da
transplantes contra diversos tipos de decadência física. humanidade, vendo imagens que sugerem que o sentido da vida
consiste em se destacar visivelmente da multidão. O ciclo de
Assim como a tecnologia, a Gestalt da televisão também se expande
culpa/complacência/conforto da TV dá conta dessa preocupação num
para absorver todos os problemas a ela associados. As
certo nível. Mas não haveria um jeito mais profundo de manter João
pseudocomunidades de telenovelas do horário nobre como Knots
Bobão firme no meio da multidão de espectadores, associando de
Landing e thirtysomething são confortáveis para o espectador por
alguma forma sua própria assistência à superação dessa multidão de
serem produtos do mesmo meio cuja ambivalência a respeito do Grupo
espectadores? Mas isso seria absurdo. É aí que entra a ironia.
contribui para erodir o sentido de inserção comunitária das pessoas. A
edição sincopada, as frases de efeito dos entrevistados e o tratamento (Continua…)
sumário de questões intrincadas são a forma como o noticiário
televisivo acomoda uma Audiência cujo arco de atenção e apetite pela Leia A aura da ironia (II).
complexidade encolheram um pouco, naturalmente, após anos de
doses maciças de assistência. Etc. Leia A aura da ironia (final).

Mas a TV tem seus próprios problemas provocados pela tecnologia. O http://todoprosa.com.br/a-aura-da-ironia-i/


advento do consumidor de TV a cabo, frequentemente dono de
pacotes de mais de quarenta canais, é uma ameaça tanto para as

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