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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Priscila Lambach Ferreira da Costa

Ser diferente: dificuldades e superação de


pessoas canhotas em diferentes gerações

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO
2014

1
Priscila Lambach Ferreira da Costa

Ser diferente: dificuldades e superação de pessoas canhotas em


diferentes gerações

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo para obtenção do
título de Mestre em Educação: Psicologia
da Educação sob a orientação da Profa
Dra Mitsuko Aparecida Makino Antunes.

São Paulo
2014

2
BANCA EXAMINADORA

____________________________

____________________________

____________________________

3
AGRADECIMENTOS

À minha querida mãe pelo constante suporte e amor em absolutamente todos


os dias.

À Mimi, querida orientadora, por acreditar nesta pesquisa desde o começo.

Aos professores Carol Kolyniak Filho e Daniela Leal, pelas ricas contribuições
e carinho com este trabalho.

A todas as minhas amigas de mestrado por tornarem essa etapa algo muito
mais divertido.

À PUC-SP por ter sido palco das minhas transformações profissionais.

À Capes, por financiar esta pesquisa.

4
Quanto a mim mesma, sempre conservei uma
aspa à esquerda e outra à direita de mim.

Clarice Lispector

5
RESUMO

Esta pesquisa teve por objetivo compreender como as pessoas vivenciam a


condição de serem canhotas, buscando identificar as características de
manifestação da lateralidade, além de compreender a relação do sujeito com
sua família, escola e trabalho frente a essa condição. Dessa forma, foi
possível localizar as dificuldades enfrentadas por esse grupo, as facilidades e
vantagens de ser canhoto, discutindo o significado dessa diferença, e os
mitos e preconceitos enfrentados ao longo de suas vidas. Foi realizado um
estudo teórico para esclarecer o conceito de lateralidade, o que leva uma
pessoa a ser canhota ou destra, o canhoto ao longo da história e concepções
sobre essa condição. Foram realizadas entrevistas não diretivas, com foco
nas histórias de vida, em busca da compreensão da constituição do sujeito,
tal como proposto por Ciampa. Foram entrevistadas cinco mulheres entre 23
e 82 anos, representantes de diferentes gerações, o que permitiu identificar
mudanças na maneira como a escola e a sociedade perceberam e agiram em
relação ao sujeito canhoto. Os dados demonstram experiências variadas,
havendo casos de repressão da lateralidade pela família e pela escola, e
outros em que não houve objeção. As dificuldades se mantiveram no aspecto
material, como o uso de tesouras e carteiras escolares, por exemplo. De
forma comum, constatamos que essa diferença que atinge um grupo
minoritário, ainda que implique algumas dificuldades, não é vivenciada
negativamente. Verificamos que o canhoto aceita e se compraz com sua
condição, sente-se pertencente a um grupo em que as pessoas se
reconhecem e se valorizam e, apesar de ao longo da história o canhotismo
ter sido considerado algo aliado ao mal e ao negativo, hoje há uma nova
postura. O canhoto gosta de ser diferente, de se destacar entre os demais.

Palavras-chave: lateralidade; canhotismo; escola e família.

6
ABSTRACT

This research aimed to understand how people experience the condition of


being left-handed, trying to identify the characteristics of manifestation of
laterality, understand the relationship of the person with his family, school and
work concerning this condition. Thus, it was possible to locate the difficulties
faced by this group, the facilities and advantages of being left-handed,
discussing the significance of this difference, and the myths and prejudices
faced throughout their lives. A theoretical study was conducted to clarify the
concept of handedness what causes a person to be left-handed or right-
handed, left-handed throughout history and conceptions about this condition.
We worked with non-directive interviews, focusing on the life stories in the
pursuit of understanding the constitution of the person, as proposed by
Ciampa. Five women between 23 and 82 years old, represented different
generations, which allowed us to identify changes in how school and society
realized and acted in relation to the left-handed. The data demonstrate varied
experiences, with cases of repression of handedness by family and school,
and others in which there was no objection. Difficulties remained in the
material aspect, such as using scissors and desks, for example. Common
form, found that this difference reaches a minority group, even if it involves
some difficulties, is not a negative experience. We found that the left-handed
accepts and is pleased with his condition, he feels that belongs to a group in
which people recognize and value, and although throughout history left-
handedness has been considered something allied to evil and negative, today
there is a new look. The left-handed like to be different, to stand out among
the rest.

Keywords: handedness, left-handedness, school and family.

7
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................... 10

INTRODUÇÃO........................................................................................ 13

CAPÍTULO 1 – BREVE HISTÓRICO DA CONDIÇÃO DE SER


CANHOTO............................................................................................... 15
Estudo da palavra CANHOTO................................................................. 15
O canhoto na história.............................................................................. 19

CAPÍTULO 2 – LATERALIDADE............................................................. 23

CAPÍTULO 3 – A PESQUISA.................................................................. 34
3.1 O problema de pesquisa................................................................... 34
3.2 Referencial teórico............................................................................. 34
3.3 Objetivos da pesquisa....................................................................... 35
3.4 Procedimentos................................................................................... 36

CAPÍTULO 4 – APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS


DADOS.................................................................................................... 38
4.1 Depoimentos..................................................................................... 38
4.2 Análise e Discussão.......................................................................... 53

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 67

REFERÊNCIAS CITADAS...................................................................... 70

8
REFERÊNCIAS CONSULTADAS........................................................... 73

ANEXOS.................................................................................................. 75

Anexo 1 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE...... 75


Anexo 2 Quadro Comparativo das Categorias de Análise............... 76
Anexo 3 Depoimento Bianca............................................................ 81
Anexo 4 Depoimento Carolina......................................................... 100
Anexo 5 Depoimento Luísa.............................................................. 113
Anexo 6 Depoimento Marcela.......................................................... 118
Anexo 7 Depoimento Dulce............................................................. 125

9
APRESENTAÇÃO

Gostaria de apresentar-me brevemente, para que aspectos da minha


trajetória sejam identificados, pois serviram de mobilizadores de meu
interesse pelo canhotismo e sua influência na determinação de meu objeto de
estudo.
Tenho formação como Pedagoga e Administradora de Empresas.
Atuava em uma empresa de consultoria, quando uma colega me convidou
para ser voluntária do programa Escola da Família, do Governo do Estado de
São Paulo. Aceitei e comecei a dar aula aos sábados numa Escola Estadual
no Centro de São Paulo. A paixão pela educação tomou conta de mim. Levei
um ano para decidir cursar Pedagogia e mudar de rumo. Valeu a pena. Sou
muito feliz com a minha escolha, da qual me orgulho e não me arrependo um
só dia.
Atuo como professora e orientadora educacional de crianças, jovens e
adultos. Por tentar entender o complexo, no caso, o ser humano, vi no
programa de Psicologia da Educação uma oportunidade para começar a
compreender partes desse todo, tão desafiador.
Nesse constante acúmulo de condições, reconheço a origem e
desenvolvimento de alguns papéis; outros fazem parte de mim sem eu nem
mesmo me dar conta. Um deles é ser canhota. Proponho-me, neste estudo,
aprofundar o conhecimento sobre canhotismo e buscar compreender melhor
as vivências, positivas e negativas, da pessoa canhota. Considero esta minha
escolha quase como inevitável, pois o assunto me chamou atenção durante
toda a minha vida, e ter um espaço aberto a estudá-lo, para mim é uma forma
de realização. Digo que sou canhota desde que nasci e durante toda a minha
trajetória sou muito atenta às questões que envolvem essa condição. Reparo
nas pessoas, como elas comem, escrevem, e fico feliz quando percebo os
canhotos que estão por aí.
Ser canhota para mim é um privilégio. Não considero um problema,
nem uma limitação. O fato de ser canhoto não impede ninguém de realizar
qualquer atividade. Existem coisas que são mais difíceis de fazer, como
cortar algo com tesoura ou abrir uma lata, por exemplo, mas há no mercado

10
materiais adaptados. Além de também ser possível desenvolvermos
habilidades com a mão direita.
Posso arriscar a dizer que o canhoto vive em uma espécie de
comunidade. Nós nos identificamos uns com os outros; é como se fosse uma
“tribo” mesmo. Não é incomum estarmos passeando e alguém dizer: “Ah!
Você também é canhota?” E o que é mais comum ainda: “Nossa, não sabia
que você era canhota”. O pior é quando o espanto vem de um amigo próximo
ou familiar que nos conhece há mais de 25 anos e nunca tinha percebido.
Pensando por outro lado, se aquilo não era notado, mostra que não era
empecilho para nada. Não é mesmo?
Quando era pequena achava o máximo ser diferente dos outros por
usar a mão esquerda para realizar minhas atividades. Era como se de
alguma forma eu fosse especial. Não foram todas as professoras que
atentaram para isso, nem todos os colegas, mas era comigo, e bastava. Me
achava até “chique”, “elegante”.
Adorava, e ainda adoro, quando as pessoas vêm dizer: “Os canhotos
são mais inteligentes” ou “têm a letra mais bonita”. Como não gostar de ouvir
elogios assim?
Sou daquelas pessoas tão apaixonadas pelo canhotismo que fico
quase “caçando” os canhotos. Quando assisto a um filme, seriado, teatro,
qualquer coisa, fico buscando o canhoto. O engraçado é que muitos dos
grandes atores e atrizes e personagens marcantes estão lá, sentados na
cadeira escrevendo com a mão esquerda. Os bonitões, os maquiavélicos, os
interessantes. Podem reparar.
Mas é claro que nem tudo são flores. Não consigo cortar precisamente
qualquer pedaço de papel. Sempre deixo a linha como um grande ondulado.
Tento, faço com calma, deposito toda a minha energia, porém o resultado é
desastroso, fora dos padrões.
Sou apaixonada por brigadeiro de colher e o faço praticamente toda
semana, desde pequena. O leite condensado é um ingrediente essencial
para a receita e não tem como escapar de abrir a lata. O abridor
convencional é um terror para os canhotos, mas é o que tem em casa. De
tanto abrir lata, faço tranquilamente com a mão direita. Isso mostra que é

11
possível desenvolver os aspectos motor e cognitivo para operar do lado que
temos menos habilidade.
Não me peçam, porém, para fazer muito mais com a mão direita. A
minha mão direita é limitada a digitar, girar a chave de casa e do carro e abrir
portas e torneiras. Se segurar uma taça muito delicada, fina e leve, ou uma
xícara quente de café com ela, a mão treme e o líquido começa a vazar. É
como se não tivesse força ou destreza.
Mas não foi somente na vida pessoal que enfrentei obstáculos. Na
escola também passei por alguns desafios. Canetinhas eram terríveis. Se
escrevesse ou desenhasse com elas, era certo que partes das folhas ficariam
manchadas. Nós que usamos a mão esquerda para escrever em uma escrita
ocidental (da esquerda para a direita), acabamos encostando na tinta o
“gordinho” da mão e isso borra o registro.
Depois as coisas ficaram mais amenas, até a chegada à 6ª série. Com
o ingresso do Desenho Geométrico na grade curricular veio o uso do
compasso. Eu fazia as piores representações da sala, e foi só quando a
professora notou que eu era canhota que pôde me dar uma atenção especial
e me ajudar a fazer melhor.
Os tempos passaram e as coisas foram mudando. Quer dizer, nem
todas. Hoje em dia ser canhota não me apresenta dificuldades, pelo
contrário, me dá alegria. Continuo orgulhosa dessa condição, sou feliz com
ela. “Vesti a camisa”. E continuo gostando de ser diferente.
Considerando-se narrativas de canhotos sobre sua história de vida, o
objetivo deste trabalho será o de estudar como as pessoas de diferentes
gerações vivenciam a condição de serem canhotas, suas dificuldades e as
formas de superação.

12
INTRODUÇÃO

O termo canhoto há décadas atrás era relacionado ao sinistro, mal,


escuro e proibido. Era como se ser canhoto fosse uma desgraça, uma
catástrofe, ou até mesmo um ato criminoso. Atualmente, a sociedade
compreende a pessoa canhota como alguém que prefere ou é mais
habilidoso com o lado esquerdo do corpo, o que não necessariamente implica
uma desvantagem ou inadaptação aos mais diversos ambientes e atividades.
Há muitas discussões sobre a questão da lateralidade. São duas as
maiores vertentes que tentam explicá-la. Uma delas entende que a
lateralidade é essencialmente biológica e outra atribui esse aspecto à
interação do organismo com o ambiente. Entendemos que esses últimos
estão em constante interação e precisam ser vistos como uma totalidade.
Ao realizarmos algumas entrevistas com canhotos, pudemos perceber
que o uso do lado esquerdo tem uma determinação biológica, ou seja, há
uma tendência por esse uso, porém também existe uma influência do
ambiente. Inclusive, duas das entrevistadas sofreram intervenções
significativas, a ponto de suas tendências “biológicas” serem modificadas
pela escola e/ou pela família.
Compreendemos que tanto o espaço de socialização primária (família)
quanto secundária (escola) representam papéis importantes para a condução
do canhotismo. É função desses lugares e de seus recursos humanos
auxiliarem as crianças em seu desenvolvimento, respeitando suas
especificidades.
A criança canhota difere pouco da criança destra. O principal aspecto
que torna essa condição especial é a dificuldade de manuseio de alguns
objetos não adaptados. É preciso providenciar uma tesoura de canhoto para
os pequenos, para que eles não sofram e se esforcem em excesso para
executarem as tarefas do cotidiano escolar. Não menos importante está a
carteira escolar. Para evitar que o aluno precise se contorcer para estudar, a
carteira adequada é fundamental.

13
Mas será que é só isso que muda? Quer dizer que se compramos os
materiais está tudo tranquilo? E, afinal os canhotos não são mais
inteligentes? Mais artísticos?
Ainda são tantas as afirmações que as pessoas escutam sobre o
canhoto. Lembro-me de diversas situações em que recebi uma carga enorme
de suposições acerca dessa minha condição. Umas são positivas, como a de
ter letra bonita ou ser inteligente; outras nem tanto, de que somos todos
desajeitados e distraídos.
Ao realizarmos esse estudo, apreendemos da fala das pessoas
aspectos muito ricos sobre o que é vivenciar o canhotismo. Ao optarmos por
fazê-lo com sujeitos de diversas gerações, pudemos acompanhar os
aspectos sociais e culturais de cada época e entender a relevância do
ambiente para a formação do cidadão canhoto.

14
CAPÍTULO 1
BREVE HISTÓRICO DA CONDIÇÃO DE SER CANHOTO

1.1 Estudo da palavra CANHOTO

Sinistro, esquerdista, deixado de lado, inútil. Apenas para citar


algumas palavras que estão associadas ao ser canhoto.
Nos Estados Unidos é muito comum utilizarem-se do recurso: right
(direita) é a mão que write (escreve), pelo menos para a maioria. No Brasil
isso também ocorre. Muitos ainda identificam a mão direita dizendo que é a
mão que escreve. Ainda que sendo minoria, essas expressões mostram que
não são considerados, os canhotos, como sujeitos diferentes e que não se
encaixam na norma geral.
Apresentaremos, a seguir, o significado de canhoto e de palavras
associadas com o canhotismo em diferentes idiomas. Acreditamos que essa
é uma maneira de entrarmos em contato com o olhar que cada cultura tem
para aquele que usa o lado esquerdo na execução de suas atividades.
No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das
Ciências de Lisboa (2001) canhoto é aquele que
(...) se ajeita melhor com a mão ou o pé esquerdo do que com os
direitos = ESQUERDINO, SINISTRO ≠ DEXTRO 2. que é relativo
ao lado esquerdo 3. que denota falta de habilidade, de destreza, de
jeito = CANHESTRO, CANHO, DESAJEITADO. Benzer-se com a
mão canhota, experimentar profundo espanto
Demônio, diabo, cruzes, canhoto! Pop. Frase exclamativa usada
como esconjuro.

O Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza (Auletr, 1925)


também apresenta as definições no feminino. CANHOTA 1. Infrm. M. Q.
SINISTRA 2 indivíduo do sexo feminino cujos membros do lado esquerdo são
mais hábeis que os do lado direito.
Em edições brasileiras, encontramos definições que apresentam
desde a preferência lateral, até conotações pejorativas. Citaremos algumas.

15
Para Bueno (s/d):
Canhoto adj Esquerdo; que se ajeita mais com a mão esquerda que
com a direita; o talão em livro de recibos.

Houaiss, Villar e Franco (2009) trazem mais elementos:


Canhota 1. Infrm. M. Q. SINISTRA 2 indivíduo do sexo feminino cujos
membros do lado esquerdo são mais hábeis que os do lado direito
Canhotismo sinistrismo
Canhoto que usa preferencialmente a mão ou o pé esquerdo (diz-se
de pessoa); canho, canhoteiro, esquerdo, sinistro 2 m.q. CANHESTRO
(‘falto’) 3 individuo cuja mão mais hábil é a esquerda 4 infrm o diabo SIN/VAR
ver sinonímia de diabo.

Ferreira (2010) acrescenta:


Canhoto que é mais hábil com a mão esquerda do que com a direita;
esquerdo, canho, canhoteiro 2. Inábil, desajeitado, desastrado.

Para Cunha (1986):


Canhoto canho
Canho adj De origem controvertida. Acanhar vb. Impedir o
desenvolvimento de “envergonhar-se” XVI Canhestro adj feito
desajeitadamente

Fernandes (1997) traz as duas definições citadas acima:


Canhota Sin. (cogn.) Canha, sinistra. Ant, – destra, direita
Canhotismo Sin. Sinistrismo, mancinismo.
Canhoto Sin. Canhoteiro, canho, esquerdo (ant.: manidestro).
Desastrado, inábil, desajeitado, canhestro. Diabo, demônio.

Muniz e Castro (2005) apresentam um novo elemento:


Canho adj 1 canhoto, esquerdo sm 2 pop Lucro ilícito

Machado (1990) também:

16
Canhoto vj canga
Canga No Oriente <tábua de suplício>

Em outros idiomas também aparecem conotações negativas


relacionadas ao canhotismo.
No Dicionário de Sinônimos e Antônimos de Oxford (1999) Left
(esquerdo) é sinistro; comunista, liberal, marxista, progressista, radical,
revolucionário e socialista. Sinistro é escuro, inquieto, perturbador, mal,
proibido, ameaçador, maligno, ameaçador. Os motivos sinistros são maus,
corruptos, criminais, desonestos, questionáveis, suspeitos.
Left (esquerda em inglês) é também inútil. Bem diferente de right que
é o certo, o correto.
Em espanhol Canhoto é zurdo, parecido com o nosso “surdo”. Surdo
para eles é sordo; porém a pronúncia é praticamente a mesma. No
Diccionario de la lengua española da Real Academia Española (2007), zurdo
é quem tem tendência natural a usar preferentemente o lado esquerdo do
corpo. Coloquialmente é o contrário do que deveria fazer, não ser alguém.
No idioma italiano, sinistra (esquerda) é a parte correspondente à
posição do coração, comando militar ou infortúnio grave, desgraça,
catástrofe. (Devoto e Oli, 2011).
Conforme demonstrado, várias línguas têm a palavra esquerdo
associada ao negativo. Em latim, sinister, é desajeitado, fraco, desfavorável,
ameaçador, mau e assustador. Por outro lado, destro, do grego dexter,
significa hábil.
McManus (2002), ao expor a palavra em diversas línguas, apresenta
esquerdo como link no alemão moderno, o que para nós (fazendo o uso do
termo em inglês) significaria ponte, ligação, relação, elo, o que traz uma
conotação muito rica à palavra.
Ainda há, portanto, uma postura de que o esquerdo é o ruim e o direito
o bom.
Se pensarmos em nosso cotidiano, encontraremos diversas
manifestações disso. Um exemplo atual: quando fazemos algo bem,
perfeitamente? O fazemos com destreza. Destreza, que no Dicionário Online
de Português, signifca: qualidade ou característica daquele que é destro;

17
habilidade ou agilidade na utilização das mãos; comportamento ou ato que
denota delicadeza; fineza.
Quando precisamos acionar o seguro do carro, o que precisamos
fazer? Abrir um sinistro.
Se queremos entrar em algum lugar e desejar coisas boas a quem nos
recebe, entramos com o pé direito. Se estamos mal humorados, perguntam
se levantamos com o pé esquerdo. Quando alguém está falando mal de uma
pessoa, sua orelha esquerda arde.
Às vezes até parece uma briga linguística do bem (destro) versus mal
(canhoto).
No momento das traduções dos artigos para esta pesquisa, uma
dificuldade sempre aparecia. Enquanto na Língua Portuguesa possuímos as
palavras: lateralidade, destro e canhoto, no inglês esses três conceitos
podem facilmente se transformar em mais termos, como: lateralization e/ou
sidedness (lateralidade), handedness (preferência manual), righthanded
(destro) e lefthanded (canhoto). Ressaltando que footedness é traduzido para
o português em algo bem maior: “preferência de membro inferior”.
Entendemos que o que cada palavra carrega demonstra muita coisa; é
uma manifestação da cultura e da história. Pensando na língua portuguesa,
ainda é possível que se abram novos caminhos e que encontremos, aos
poucos, novas palavras que ilustrem aspectos importantes do que por
enquanto é somente uma questão de lateralidade.

18
1.2 O canhoto na história

Acreditamos, assim como Fonseca (2004), que a motricidade humana


precisa ser considerada na relação homem-mundo. As atividades são
dirigidas por motivos e fins a serem alcançados. A ação do homem no mundo
é mediada por instrumentos, objetos, signos e símbolos.

Em termos de transmissão cultural, os seres humanos


diferenciam-se substancialmente dos primatas porque não só
acumulam e conservam a tradição cultural, como a modificam
e aperfeiçoam ao longo do tempo, assegurando, assim, um
processo sócio- histórico. (Fonseca, 2004, p. 121)

Segundo McManus (2002), uma das maiores dificuldades semânticas


até os dias atuais é a diferença entre ontem, hoje e amanhã. Logo em
seguida, vem a diferença de esquerda e direita.
Outras concepções envolvendo esses conceitos ocorreram ao longo
da história. A mão direita sempre foi associada às coisas boas e a mão
esquerda ao profano, ao mal. A mão esquerda era associada à feitiçaria,
tanto que pessoas chegaram a ser queimadas por isso. Na era medieval, o
diabo era representado com a mão esquerda estendida.
Alguns afirmam que tudo isso começou com Adão e Eva. O lado direito
representando a primeira fase da criação: Adão, o homem, consciente, ativo.
O lado esquerdo, a segunda fase: Eva, meramente a mulher, aquela que não
resiste a tentação do mal. No Alcorão e na Bíblia, os favoritos de Deus
sentavam-se à sua direita e os malditos à esquerda. A Igreja Católica
sustentou por mais de mil anos que os canhotos eram obras do diabo; pode-
se destacar, por exemplo, que Jesus Cristo “ressuscitou dos mortos, subiu
aos céus e está sentado à mão direita de Deus”, no “Credo”.
De acordo com McManus (2002), Ehud, personagem bíblico, filho de
Gera, o Benjamim, pode ser sido o primeiro canhoto a se ter conhecimento.
Em 1.200 d.C, Ehud foi enviado por israelitas para pagar um tributo a Eglon,
Rei de Moabe. Ehud fabricou sua própria espada, guardou-a do seu lado

19
direito, por debaixo de suas roupas. Logo após realizar o pagamento, Ehud
perguntou a Eglon se poderiam conversar em particular. Ao se aproximar,
Ehud tirou a espada de seu lado direito, utilizando-se do braço esquerdo, e
fincou-a no abdômen de Eglon.
A Igreja Católica é sem dúvida repleta de simbolismos. Até mesmo em
sua arquitetura e ocupação do espaço. Em algumas, os homens ainda se
sentam à direita e as mulheres à esquerda. O budismo também apresenta
sua particularidade quanto aos lados: o esquerdo é o que precisa ser evitado,
enquanto o direito é para ser seguido.
Hertz (apud McManus, 2002) se preocupa com o simbolismo por trás
do canhotismo. Para o destro, vai a honra de grandes designações, o fazer,
ordenar e realizar. Para o canhoto, o contrário. É apenas um auxiliar. Ao
canhoto cabe ajudar, dar suporte. Preocupa, também, com o fato de que a
condição da lateralidade seja reduzida a fatores biológicos. Ressalta a
relevância de complexos fenômenos sociais, dando lugar aos conceitos de
sagrado e profano.
Ainda muito presente nos dias atuais, gostamos de entrar em um novo
lugar com o pé direito, representando a sorte. E quando estamos num mau
dia, frequentemente alguém pergunta se acordamos com o pé esquerdo.

A interação social é fundamental para o desenvolvimento de


formas de motricidade que acabaram produzindo o fenômeno
civilizacional. Ao internalizar a sua cultura, (...) o indivíduo
constrói e co-constrói seu universo (...) a partir das interações
mediatizadas e humanizadas que estabelece com seu
mundo. (Fonseca, 2004, p. 129)

A mais conhecida manifestação de que o canhotismo não era bem


visto, era a de que muitas mães amarravam as mãos de seus filhos para que
não fossem canhotos e a mesma restrição se repetia na escola. Quase todos
nós conhecemos alguém que passou por isso, ou pelo menos escutamos
algum relato.
McManus (2002) alerta para a associação do direito e do esquerdo
quanto ao comportamento de diferentes culturas. A mão esquerda era tão

20
desvalorizada que era a usada para a higiene depois da defecação e a mão
direita para levar comida à boca. No simbolismo de algumas culturas, como a
Purum1, por exemplo, direito é vida, Deus é o que está acima; esquerdo é
morte, profano e o que está abaixo. Os Gogo people of Tanzania 2 seguem
uma linha semelhante; o direito representa o gênio, superior e saudável, e o
esquerdo o estúpido, inferior e enfermo.
Vale salientar que Watson (apud McManus, 2002) comenta que a
preferência pela mão direita em detrimento da esquerda é universal. Enfatiza
que não há conhecimento de nenhuma tribo formada de canhotos.
Não há uma tribo no sentido de povo. Porém, quando pensamos no
aspecto de comunidade, de pessoas que se identificam em algum aspecto,
podemos arriscar dizer que os canhotos representam uma “tribo”. Nós
canhotos focamos nossa atenção nos canhotos que cruzam nossos
caminhos, seja na vida real ou até mesmo em filmes e na televisão.
Constatamos isso, inclusive, em nossas entrevistas. Atitude que talvez o
destro não tenha.
Embora haja o estigma do esquerdo, existe uma questão histórica e
cultural acerca do assunto; há mudanças de valores ao longo do tempo. O
canhotismo foi considerado algo ruim e alguns ainda permanecem com essa
concepção, porém hoje raramente se proíbe uma criança de ser canhota e
tampouco a sociedade a exclui. Muitas vezes, essa diferença sequer é
notada.
Entendemos que as pessoas carregam marcas de um histórico como
esse, porém não são afetadas negativamente por pertencer a esse grupo de
pessoas, e de certa forma até se orgulham dessa diferença, que não
apresenta necessariamente um problema. Tínhamos, portanto, a hipótese de
que não encontraríamos apenas um muro de lamentações acerca do lado
pejorativo do conceito, da proibição e das dificuldades acerca do ser canhoto.
E isso se confirmou claramente após a realização das entrevistas.
Nas entrevistas percebemos que a visão que se tem do canhoto é
histórica, muda ao longo do tempo e tem significativas implicações sobre a

1 Nome transcrito tal como grafado no artigo original em inglês


2 Nome transcrito tal como grafado no artigo original em inglês

21
constituição e vida do sujeito. Fazer parte de um tempo e de um espaço
influencia em como a pessoa se coloca e vivencia o mundo.

22
CAPÍTULO 2
LATERALIDADE

A lateralidade humana é uma questão complexa.


O termo existe para identificar que os hemisférios cerebrais possuem
suas particularidades e englobam funções específicas (Coto, 2012).
O cérebro humano possui 100 bilhões de neurônios, cada um com
potencial para fazer em torno de 60 mil conexões, também conhecidas como
sinapses (Rotta, Ohlweiler e Riesgo, 2006). O cérebro é constituído de duas
metades chamadas hemisférios, que estão unidos por fibras nervosas que
servem como uma ponte para transmitir a informação de um lado a outro
(Coto, 2012). O início do desenvolvimento da lateralização dos hemisférios
cerebrais se dá principalmente aos dois anos de idade, podendo estender-se
até os 5 anos (Rotta, Ohlweiler e Riesgo, 2006).
Pode-se compreender que os hemisférios atuam de forma conjunta.
Ao exercer suas inúmeras funções, um lado atua como ator principal e o
outro como coadjuvante. Apesar de sempre atuarem em conjunto, cada um
deles tem funções primordiais. São elas:
HEMISFÉRIO ESQUERDO HEMISFÉRIO DIREITO
Funções Específicas Funções Globais
Cálculos matemáticos Prosódia
Fala Reconhecimento de categorias de
pessoas
Escrita Reconhecimento de categorias de
objetos
Leitura Compreensão musical
Preferências motoras lateralizadas Compreensão prosódica
Identificação de pessoas Relações espaciais quantitativas
Identificação de objetos e animais -
Compreensão linguística -
Relações especiais qualitativas -
Fonte: Rotta, Ohlweiler e Riesgo, 2006, p. 37

23
De acordo com Souza e Teixeira (2009), existem dois pontos de vista
distintos que têm sido discutidos sobre a origem e o desenvolvimento da
lateralidade humana. Há uma vertente que defende que a lateralidade é
essencialmente determinada por fatores biológicos; outra acredita que ela
pode ser atribuída à interação organismo-ambiente.
Analisando a lateralidade como biológica, compreende-se que os
genes trazem em seu código especificações sobre o desenvolvimento
diferenciado de uma parte do cérebro em detrimento da outra.
Provins (apud Souza e Teixiera, 2009) defende a influência do
ambiente. Enfatiza que é o componente ontogenético dado pelas
experiências lateralizadas do indivíduo que constitui o fator principal na
determinação de sua lateralidade.
Concordamos com Fonseca (2004), que afirma:
(...) a evolução da espécie e da criança, isto é, seus
desenvolvimentos psicomotores intrínsecos realizam-se entre
dois fatores dialeticamente dependentes: o biológico e o
social, ou, por analogia, o corporal e o cultural. Ambos
ilustram uma unidade biossocial, que é uma histogênese em
contínua metamorfose com o envolvimento social. (p. 121)

Compartilhamos da postura de Coto (2012) que aponta que a


lateralidade tem um componente genético, parte do nosso equipamento
neurofisiológico básico, e um componente adaptativo que se dá pela
assimilação de estímulos físicos e socioculturais. A autora aponta, ainda,
alguns tipos de lateralidade:
- Lateralidade contrariada: quando há uma interferência na tendência
“natural”. Exemplo: a pessoa tem tendência a ser canhota, porém a escola a
obriga a realizar atividades com a mão direita
- Lateralidade Integral ou Homogênea: quando o lado direito do
cérebro domina totalmente o lado esquerdo do corpo, e vice- versa. Como se
uma pessoa fosse totalmente destra ou totalmente canhota
- Lateralidade não integral: quando o mesmo indivíduo apresenta
tanto tendências destras como canhotas. Exemplos:

24
 Lateralidade cruzada: ocorre quando não há uniformidade
da manifestação da lateralidade em diferentes partes do corpo, como quem é
destro para escrever e canhoto para chutar. Ou seja, envolve os membros
superiores e inferiores.
 Lateralidade mista: quando se utiliza mãos diferentes para
atividades diferentes. Uma ilustração seria de pessoas que comem com a
mão esquerda e escrevem com a direita.
Coste (1992, apud Lucena, 2010) divide a lateralidade em quatro tipos:
1) destralidade verdadeira (integralmente destro); 2) sinistralidade verdadeira
(integralmente canhoto); 3) falsa sinistralidade (executa algumas ações com
um membro esquerdo, pois perdeu a mobilidade direita) e 4) falsa
destralidade (executa algumas ações com um membro direito, pois perdeu a
mobilidade esquerda).
Sainburg (2005) é mais conciso em sua definição. Para ele, a
lateralidade é a tendência de preferir um lado específico na realização de
determinadas atividades, como por exemplo, escrever e jogar bola.
Especifica que ter a preferência definida é de grande vantagem para o
indivíduo na organização e controle de seus movimentos.
Certamente, quando temos a lateralidade bem definida e logramos
uma consciência corporal, podemos exercitar e aprimorar esse aspecto.
Justamente por isso, acabamos nos tornando mais habilidosos. É a prática e
o uso que nos leva à uma boa execução de movimentos.
Serrien, Ivry e Swinnen (2006) defendem uma mudança de paradigma.
Alertam para a necessidade de se discutir os hemisférios e suas funções de
forma integradora, e não especializada; entender a lateralidade como uma
definição de um lado em detrimento do outro, considerando dois aspectos
complementares: a preferência e a performance. A preferência seria o lado
escolhido para desempenhar uma função ou uma atividade; já a performance
é definida pela qualidade desse movimento, isto é, qual lado o realiza melhor.
Compartilhamos dessa visão de lateralidade como um processo dinâmico,
relativo e passível de transformações. É na interação com o ambiente, com a
cultura em que se vive que é possível superar esse determinismo e encontrar
diferentes possibilidades de ser.

25
Em resumo, concordamos com a postura de Souza e Teixeira (2009),
ao afirmarem que:

(...) a lateralidade é entendida como um elemento dinâmico


da motricidade humana, em que predisposições inatas são
reforçadas ou modificadas pela contínua interação com o
ambiente durante o ciclo de vida de um indivíduo. (Souza e
Teixeira, 2009, p. 68)

Segundo Coto (2012), há uma evolução da lateralidade. Até os 3


meses não existe preferência. Dos 4 aos 6 meses há um aumento na
frequência de um uso sobre outro. Dos 6 meses aos 3 anos desenvolve-se
um predomínio. Dos 3 até os 8 anos, o predomínio se estabelece de forma
qualitativa, ou seja, há uma determinação de qualidade naquele movimento.
Dos 8 aos 12 anos, é quando se instaura um predomínio qualitativo e
quantitativo (no sentido de repetição, continuidade de ocorrências) de um
lado sobre o outro.
De acordo com Rotta, Ohlweiler e Riesgo (2006), aos seis anos a
criança já é capaz de reconhecer direita e esquerda em si mesma. Aos sete
anos consegue mostrar essa diferença em si mesma, além de responder
sobre a posição de um objeto. Aos oitos já consegue diferenciar esquerda e
direita no examinador, e com nova anos já imita movimentos do observador.
Lucena (2010) estuda a relação entre lateralidade manual, ocular e de
membros inferiores e categoriza as variações de lateralidade na população
infantil brasileira com o objetivo de verificar se há um déficit de organização
espacial. Verificou que 48,75% da amostra apresenta um resultado DDD (ou
seja, tem predomínio do lado direito nos três aspectos: manual, ocular e nos
membros inferiores), e somente 2,50 % são EEE (ou seja, esquerda nos três
aspectos). Os demais (46,25%) estão distribuídos nas mais diversas
combinações possíveis, como destro manual e ocular, porém canhoto nos
membros inferiores, ou destro manual e nos membros inferiores, porém
canhoto ocular e assim sucessivamente. O estudo comprova uma maioria de
sujeitos destros.

26
McManus (2002) amplia as possibilidades de observação da
lateralidade que vão além de chutar uma bola, escrever e olhar num
caleidoscópio, exercícios clássicos para a avaliação de um destro ou
canhoto. Há quem observe o momento das palmas, cruzar os braços, tocar
instrumentos musicais, realizar diferentes esportes, até mesmo falar ao
telefone (aspecto auditivo).
Ou seja, a lateralidade vai além da preferência pelo uso de uma mão.
Também existem outros fatores que precisam ser considerados (Teixeira e
Gasparetto, apud Lucena, 2010). Quanto mais consistente e homogênea a
lateralidade, as habilidades serão desenvolvidas com mais precisão.
Corballis, Hattie e Fletcher (apud Lucena, 2010) comprovaram, em um estudo
realizado com crianças em idade escolar, que as que possuem preferência
manual inconsistente apresentam desempenho menos satisfatório em testes
de leitura e matemática. É como se os que estão indefinidos,
independentemente das razões, fossem prejudicados em suas ações.
Segundo McManus (2002) temos um gene dominante D (destro) e um
recessivo C (canhoto). Podemos apresentar combinações como DD, DC, ou
CC em nosso material genético.
Segundo Cioni e Pellegrinetti (apud Souza e Teixeira, 2009), a maioria
dos indivíduos da espécie humana tem preferência manual direita, o que é
manifestado desde os primeiros dias de vida. Isso pode ser observado em
várias culturas e comunidades. Ou seja, para eles, a maioria dos humanos
está praticamente programada geneticamente a ser destro.
Serrien, Ivry e Swinnen (2006) defendem que em curto prazo a
lateralidade é afetada por fatores ambientais, como atenção e contexto. O
aperfeiçoamento de um lado ou de outro ocorreria em função da prática
específica de um dado segmento corporal.

A partir desse ponto de vista, considerando que há uma


pressão social considerável a favor do uso da mão direita, o
ambiente poderia desempenhar o papel primário para o
estabelecimento da preferência lateral e assimetrias
interlaterais de desempenho. (Zverev, apud Souza e Teixeira,
2009, p. 65)

27
McManus (2002) enfatiza que até o momento em que sua obra foi
escrita, e podemos dizer que ainda não encontramos evidências que provem
o contrário, pesquisadores ainda discutem se a preferência por um lado do
corpo é ou não hereditária. O autor relata que Philip Bryden realizou uma
pesquisa com 70.000 crianças e constatou que a chance de ser canhoto é de
9,5% quando ambos os pais são destros; 19,5% quando um dos pais é
destro e o outro canhoto; e 26,1% quando ambos os pais são canhotos.
Quanto aos gêmeos, um a cada cinco pares de gêmeos idênticos tem
preferência manual discordante.
Condiseramos que não haja uma determinação genética absoluta, pois
a herança trazida pelos genes (genótipo) entra em interação com o meio
ambiente, produzindo as características específicas do indivíduo (fenótipo),
que podem ser modificadas ao longo do tempo.
Strogonova, Pushina, Orekhova, Posikera e Tsetlin (apud Souza e
Teixeira, 2009) realizaram uma investigação com bebês de 10-11 meses de
idade que foram avaliados por meio de eletroencefalografia durante a ação
de alcançar um objeto. Os resultados revelaram uma ativação mais
acentuada do hemisfério cerebral esquerdo naqueles que apresentaram
preferência manual direita durante a ação. Como o estudo foi realizado com
bebês, supuseram que as relações funcionais entre os hemisférios cerebrais
sejam definidas precocemente.
Além desses estudos, Souza e Teixeira (2009) apresentam outras
pesquisas que enfatizam a contribuição social para a preferência entre
esquerdo ou direito. Singh (apud Souza e Teixeira, 2009) realizou uma
pesquisa com crianças de 4 e 6 anos de idade; encontraram a preferência
manual esquerda em 3,2% das crianças indianas e em 9,6% das crianças
francesas pesquisadas. A principal razão encontrada é de que os fatores
culturais contribuem para a escolha do uso de uma mão em detrimento da
outra. Em determinadas sociedades ainda há uma pressão contra o “ser
canhoto”. Meng (apud Souza e Teixeira, 2009) realizou um estudo em
escolas coreanas e constatou que 61% das crianças canhotas trocaram sua
preferência manual para a direita. Isso ocorreu com crianças maiores, que
acabam realizando a mudança, pois ser destro, para eles, é mais desejável.

28
No mesmo artigo, Souza e Teixeira (2009) relatam o estudo de Nagy
et al., que observaram movimentos imitativos de bebês. Os pesquisadores
constataram que há aprendizagem por imitação. Fagard e Lemoine (apud
Souza e Teixeira, 2009) vão por um caminho parecido, relatando que no
início os sujeitos, no caso crianças de 12 a 15 meses de idade,
apresentavam preferência manual direita, porém quando o objeto era
apresentado com a mão esquerda, eles o manipularam como canhotos.
Refletindo ainda mais sobre a preferência manual do bebê, alguns autores
defendem que a preferência da mãe será mais influente nesse processo.
Uma das razões apontadas por Harkins e Uzgiris (apud Souza e Teixeira,
2009) seria que há maior interação social entre mãe e bebê; portanto, é ela
quem ele imita mais e por mais tempo.
Wallon (1998) relata que imitar é um começo importante para a
realização de atividades. Imitar é induzir um ato por meio de um modelo
exterior, modelando um movimento.
Essas pesquisas demonstram que a imitação contribui nas escolhas
pelo uso de uma mão ou da outra nos primeiros meses de vida. Entendemos
que ela pode influenciar quando a criança começa interagir com o objeto,
pois muitos pais e cuidadores aprensentam-no diretamente em uma mão e
servem de modelo para que a criança os imite em atividade. Acreditamos que
essa influência não se sustenta ao longo do tempo, quando a criança de fato
começa a mostrar uma preferência mais consistente, e usar o objeto com a
mão que lhe é mais conveniente.
McManus (2002) frisa a relevância das imagens espelhadas para o
desenvolvimento das habilidades humanas. Uma vez que estou de frente à
criança e lhe apresento um objeto, se o entrego com a mão esquerda, ela o
recebe de seu lado direito e vice-versa. O autor coloca um exemplo simples:
se uma pessoa escreve na areia a letra “d” o que está em frente pode fazer a
leitura do “p”. Ele nos alerta para essas orientações, observando em que
lugar estamos, para evitar desentendimentos e confusões.
Além da questão da predominância lateral, alguns estudos se
empenham em aprofundar questões mais específicas do funcionamento
cerebral. Muito deles intensificam suas pesquisas na compreensão da

29
responsabilidade que cada parte do cérebro tem no funcionamento do nosso
organismo.
Um dos pioneiros, citados por McManus (2002), foi o cirurgião Paul
Broca, que em 1861 analisou dois pacientes com problemas de linguagem. O
primeiro deles foi nomeado de Leborge, apelidado de Tan, pois era a única
palavra que conseguia pronunciar. Este possuía uma grande área
comprometida no lóbulo frontal esquerdo. O segundo paciente, Lélong, teve
um colapso devido a um infarto e deixou de falar. Alguns meses depois,
sofreu uma fratura de fêmur que o levou à morte. No exame post-mortem
constatou-se que seu dano cerebral havia sido na mesma área que o
primeiro paciente. Broca acabou revolucionando a ciência, concluindo que o
lado esquerdo do cérebro era responsável pela linguagem.
Souza e Teixeira (2009) ampliam essa explicação apontando que para
pessoas destras o hemisfério cerebral direito seria o principal responsável por
questões espaciais do ambiente e pelo processamento paralelo, enquanto o
esquerdo teria o papel principal. Com o canhoto ocorreria o inverso.
Segundo Rotta, Ohlweiler e Riesgo (2006), atualmente entende-se que
existe uma lateralização bem definida para alguns aspectos como a
motricidade, por exemplo, porém para funções mais complexas como a
linguagem, não há uma simples lateralização. Os hemisférios atuam juntos,
porém com dominância. Ou seja, um trabalha melhor em um aspecto da
função, enquanto o outro trabalha melhor em outros aspectos da mesma
função.
De forma geral, algumas características próprias de cada hemisfério
foram sintetizadas. São elas:
Hemisfério Esquerdo Hemisfério Direito
Verbal Não verbal
Analítico Sintético
Sequencial Global, holístico
Lógico Criativo e intuitivo
Consciente do tempo Aqui e agora
Gostam de rotinas e hábitos (utiliza Prefere as novidades e mudanças (cria
modelos mentais) modelos mentais)
Fonte: Coto, 2012, p. 23

30
É interessante o comentário que McManus (2002) faz sobre uma
tabela semelhante em seu livro. Diz que o cérebro humano por ser
assimétrico, dividido em duas partes (hemisférios), conectados pelo corpo
caloso, pode ser analisado didaticamente como se fossem dois
computadores. Eles foram feitos para trabalharem juntos; caso contrário um
deles sofreria muito para trabalhar sozinho. Portanto, a melhor maneira de
deixá-los bem e em bom funcionamento, é que cada um seja especializado
em diferentes áreas. Em qualquer atividade, um está trabalhando mais como
o chefe, e o outro como o subordinado, um ajudando o outro, prevenindo
qualquer aspecto que possa prejudicar a execução da tarefa.
Observando as características da tabela, poder-se-ia supor que os
canhotos são mais criativos e sintéticos e os destros mais lógicos e
analíticos. Mas será que essas regras são mecânicas e se aplicam para
todos? Defendemos que não. Acreditamos que colocar os indivíduos nessas
formas teóricas é, na maioria das vezes, inadequado. A individualidade e a
particularidade de cada pessoa, podendo, de acordo com as interações que
estabelece, as atividades que realiza, a cultura que vive, dentre outros
múltiplos aspectos, ter desenvolvido certas habilidades em detrimento de
outras, o que não se deve ao fato de ser canhoto ou destro.
McManus (2002) apresenta alguns dados que apontam para esse
caminho. É evidente que a preferência por um dos lados e a dominância da
linguagem estão associadas. Destros têm maior probabilidade de possuir a
linguagem no hemisfério cerebral esquerdo do que os canhotos. Porém, os
canhotos não são o espelho dos destros. Enquanto 95% dos destros
possuem essa característica, 70% dos canhotos também a tem.
Numa direção complementar, Bell (2005, apud Lucena, 2010) alerta
que a incidência de tantos destros pode estar determinada por fatores sociais
ainda muito presentes na sociedade. Não é raro crianças serem forçadas a
usar a mão direita em detrimento da esquerda, ou pessoas adultas canhotas
que adquiriram lateralidade cruzada por pressões da vida cotidiana. Meng
(2007, apud Lucena, 2010) demonstrou que 59,3% das crianças canhotas
natas, em outras palavras, aquelas que possuem todas as características e
habilidades de um canhoto, foram pressionadas a se converter em destras.

31
Luria (apud McManus, 2002) arriscou-se a dizer que os canhotos são
mais intensos em sua preferência que os destros, que apresentam
irregularidades na dominância pela mão direita.
Carey (2001) aponta que essas contínuas experiências de converter
um canhoto em destro podem modificar conexões cerebrais, estabelecendo
um novo predomínio de um dos lados na execução de tarefas. O corpo
consegue se adaptar à sua realidade. Ser canhoto, assim como destro, é
descobrir e exercer uma função (Wallon, 1998).
Ser canhoto significa exercer ações e possuir habilidades em que o
lado esquerdo esteja em destaque. É preciso que ao menos duas das três
possibilidades de manifestação da lateralidade (manual, ocular e de membros
inferiores) sejam predominantemente esquerdas. Ou seja, escrever (manual)
e chutar (membro inferior) com a esquerda, mesmo que, quanto à visão
(ocular), o lado direito seja o dominante.
McManus (2002) relata o estudo que Darwin fez com seu filho sobre a
preferência manual. Quando William tinha somente 11 meses, o pai já o
estava analisando. O histórico da família era primordialmente de canhotos: a
esposa de Darwin, mãe do garoto, Emma, seus avós, mãe e irmão. Sua
motivação foi verificar como o menino se comportaria diante de uma carga
genética tão repleta de canhotos. Infelizmente não encontramos relatos de
que o estudo tenha seguido adiante. Esse dilema serve apenas de introdução
para McManus (2002) referir-se à incidência de canhotos, destros e
ambidestros no mundo. Ele diz que a maioria das pessoas tem uma
predominância, mesmo que em 10 atividades realize 5 com uma mão e 5
com outra; e que muito dificilmente, a não ser que tenha praticado muito,
alguém consegue escrever tão bem com ambas as mãos.
McManus (2002) aponta que o canhotismo é mais comum em homens
(11,6%) do que em mulheres (8,6%). A família de Darwin apresentava
resultados bem diferentes da média da população mundial, pois 38% dos
homens e 17% das mulheres eram canhotos. Esse dado ilustra que nem
sempre as pessoas se enquadram nas estatísticas, apesar de alguns
gostarem de descrevê-las numericamente. Dentre as pesquisas que fizemos,
buscando fundamentação teórica, foi difícil encontrar algo que se referisse
diretamente ao nosso problema de pesquisa.

32
Encontramos diversos estudos estadunidenses sobre a lateralidade do
ponto de vista médico, bastante técnico e estatístico, com temáticas como:
lateralidade da linguagem no canhoto, hemisfério dominante em humanos
saudáveis, lateralidade e tempo de gravidez, nível de lateralidade e
dominância cerebral. Outros, mais atentos à questão da performance, como:
controle de trajetória e posição de acordo com a preferência manual,
maturidade para exercer as tarefas, quem exerce melhor as atividades:
destros ou canhotos? Encontramos algumas pesquisas no Development
Neurophychology, algumas com as seguintes temáticas: preferência manual,
padrões de dominância manual e de membros inferiores, habilidades
canhotos x destros e canhotos “forçados”. Já o Perceptual and Motor Skills
trata mais de processamento da lateralidade no aspecto cerebral,
características de personalidade de destros e canhotos. Alguns outros, como
o Child Development, enfatizam o estudo de lateralidade em animais, como
macacos, por exemplo.
De fato, as plataformas estrangeiras foram aquelas em que
encontramos o maior número de artigos. Pesquisas em português com
informações relativas à temática e que pudessem contribuir para nosso
estudo foram escassas. No Portal da CAPES, a única, porém grande
contribuição para nosso trabalho, foi o artigo de Lucena. Os demais artigos
da plataforma, pesquisados até o momento, estudam a lateralidade de forma
segmentada por faixa etária, e a incidência de destros e canhotos em
pessoas que apresentam algum transtorno de conduta, ou deficiência
intelectual; os temas não fazem parte dos objetivos desta pesquisa. No Portal
BvsPsi, encontramos outra pesquisa, que foi bastante relevante, de Souza e
Teixeira, porém as demais encontradas abordavam aspectos psíquicos e
neurológicos que não cabiam neste trabalho.

33
CAPÍTULO 3
A PESQUISA

3.1 – O problema de pesquisa

Como é vivenciada a condição de serem canhotas por pessoas de


diferentes gerações?

3.2 – Referencial teórico

Adotamos como referencial teórico da Teoria da Identidade de Ciampa


(2005) elementos que contribuem para compreender o processo de vivência
da condição de ser canhoto. No entanto, não se trata de um estudo
específico sobre identidade, ainda que elementos identitários possam ser
observados. Trata-se de um estudo biográfico, analisando depoimentos de
pessoas canhotas.
Ciampa (2005) estuda as múltiplas determinações na constituição do
sujeito. Para ele, a identidade transcende a individualidade do sujeito, é a
história personificada, a possibilidade de identificar-se como humano,
pertencente a grupos.
Quando nascemos, a nossa família nos atribui um nome, e com ele
uma personagem. Essa personagem começa a socializar-se dentro dessa
família, considerado nosso primeiro grupo social. Nesse espaço, recebe uma
herança histórica que caminhará junto com a própria história desse novo
indivíduo.
Essa mistura de passado, presente e futuro dá concretude à
identidade. O tempo todo essa temporalidade se mistura. É esse movimento
que define o homem como um ser temporal e um ser-no-mundo.
Ao considerarmos a pessoa como histórica e social, abrimos a ela um
mundo de possibilidades. A identidade é isso; é metamorfose, está em

34
constante transformação. Segundo o autor, esse processo identitário vai do
nascimento à morte.
A personagem que cada um constitui desempenha diferentes papéis
ao longo de seu desenvolvimento. Nesse processo vai se formando a
identidade pessoal, a história de vida própria de cada indivíduo. O coletivo de
indivíduos forma o conjunto das identidades que acabam então por constituir
a sociedade.
Essas questões contribuem para o estudo sobre algumas mulheres
canhotas, buscando compreender como as relações sociais (sobretudo na
família, na escola e no trabalho) em relação a essa condição marcam as
vivências dessas pessoas.

3.3 – Objetivos da pesquisa

Objetivo geral
Identificar as vivências na família, escola e trabalho das pessoas
canhotas

Objetivos específicos
- identificar as características de manifestação da lateralidade em
sujeitos canhotos
- compreender a relação do sujeito com sua família no que diz respeito
ao canhotismo
- verificar a reação da escola e do trabalho do sujeito frente ao ser
canhoto
- identificar as dificuldades enfrentadas pelos canhotos
- entender quais são as facilidades e vantagens de ser canhoto
- reconhecer mitos e preconceitos vivenciados pelas pessoas canhotas
- estudar o que significa essa diferença para os canhotos

35
3.4 – Procedimentos

Esta pesquisa constitui-se num estudo bibliográfico sobre conceitos a


respeito da lateralidade e do ser canhoto na história e de um estudo empírico,
realizado com 5 (cinco) sujeitos. O critério principal é que esses se
considerassem pessoas canhotas e que fossem representantes de diferentes
gerações. Coincidentemente entrevistamos apenas mulheres.
Realizou-se primeiramente uma análise de cada caso em particular.
Os sujeitos participantes foram os seguintes:
 Bianca3, 23 anos, pedagoga. Representante da faixa etária de
20 a 30 anos
 Carolina, 34 anos, médica. Representante da faixa etária de 30
a 40 anos
 Luísa, 49 anos, dona de casa. Representante da faixa etária de
40 a 50 anos
 Marcela, 56 anos, advogada. Representante da faixa etária de
50 a 60 anos
 Dulce, 82 anos, dona de casa. Um caso especial que, embora
não seja incluído entre os demais sujeitos como representante
de faixas etárias específicas, porque não se considera canhota,
será utilizado como complementar e ilustrativo.

Posteriormente procuramos estabelecer um diálogo dos depoimentos,


respeitando os seguintes temas, todos relacionados ao canhotismo:
 Características e manifestação da lateralidade
 Interação com a família e reação do sujeito
 Escola e trabalho
 Dificuldades e superação
 Facilidades e vantagens
 Mitos e preconceitos
 A diferença

3 Os nomes são fictícios para garantir o anonimato dos sujeitos

36
Considerando os procedimentos éticos da pesquisa com seres
humanos, foram disponibilizados para a instituição o TERMO DE
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE), garantindo o
anonimato (Vide anexo 1), que estão arquivados com a pesquisadora.

37
CAPÍTULO 4
APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Este capítulo foi composto a partir de entrevistas que realizamos com


diferentes sujeitos, que tinham em comum o fato de se considerarem
pessoas canhotas.
Dividimos o capítulo em duas partes: na primeira, serão apresentados
os sujeitos e uma síntese de seus depoimentos. Na segunda parte, serão
apresentadas a análise e a discussão acerca dos aspectos principais
identificados na fala dos sujeitos.

4.1 DEPOIMENTOS

Neste item serão apresentados os resumos dos dados referentes aos


depoimentos realizados com cinco mulheres que vivenciaram o canhotismo.
As entrevistas foram realizadas no período entre setembro de 2013 e
janeiro de 2014; em geral duraram aproximadamente de 25 minutos a 1 hora
e 20 minutos. Foram realizadas em diferentes locais, conforme a
disponibilidade dos sujeitos: em um café, no local de trabalho e na casa das
entrevistadas.
Esses sujeitos foram escolhidos a partir de conhecimento prévio da
pesquisadora, seus familiares e amigos. Todos eles se disponibilizaram a
participar, não havendo recusa.
Esses dados referem-se a cinco casos, com diferentes experiências
acerca do ser canhoto; as idades variam entre 23 e 82 anos, sendo todas do
sexo feminino; há quatro sujeitos que moram na cidade de São Paulo e uma
em Curitiba (Dulce).

38
QUADRO SÍNTESE DOS DEPOIMENTOS
CARACTERÍSTICA
SUJEITO IDADE DA SER CANHOTA É
LATERALIDADE
Canhota que
Bianca 23 anos também faz tudo Legal
com a direita
Canhota para
Carolina 34 anos Muito bom
tudo o que pode
Luísa 49 anos “200%” canhota Um diferencial
Escritora destra e
Marcela 56 anos “canhota de Ser eu mesma
alma”.
Canhota de
nascimento, Não se considera
Dulce 82 anos
destra por canhota
imposição

Os depoimentos dessas cinco mulheres, de diferentes gerações, nos


ajudam a compreender como diferentes pessoas canhotas vivenciam o
canhotismo.
Veremos, agora, os relatos sobre as entrevistas de modo mais
detalhado, acompanhados de uma análise. Os nomes das pessoas e
instituições foram alterados para preservar a identidade dos sujeitos.

39
BIANCA

Não ficava trocando. Fazia como todo mundo, que era mais
fácil. Para não errar.

Bianca tem 23 anos. A irmã mais velha de um irmão com “Distúrbio no


Processamento Auditivo Central”. Professora de escola católica, na qual a
disciplina e a religião estão sempre presentes.
Devido ao fato de ter um irmão com problemas, vivia se locomovendo
de um lado para o outro, acompanhando sua mãe para levar o caçula para
todos os atendimentos que precisava.
Com uma infância agitada, acabou por desenvolver muito sua
autonomia. Mostra-se alguém independente, capaz de realizar e se sentir
realizada.
O ser canhota acabou ficando na sombra. Eram tantas as outras
demandas para as quais a mãe precisava atentar que isso passou de forma
tranquila. O que não quer dizer que era ignorado. Sua mãe procurava
encontrar materiais adaptados e demonstrava à filha que aquilo não era
defeito e sim uma condição perfeitamente administrável.
Diz que, por ser uma pessoa ansiosa, aprendeu a fazer muitas coisas
com a direita. Não aguentou esperar ter uma tesoura de canhoto: aprendeu a
cortar com a direita. Não tinha paciência para aguardar o professor ensiná-la
a jogar: chuta e arremessa melhor com a direita. Inclusive, quando se cansa,
escreve com a direita.

Foi um pouco culpa minha. Eu quis me adaptar desse jeito e


me adaptei. Me adaptei bem, acredito. Não sofro de fazer as
coisas com a direita. Pelo contrário. Acho isso bom.

Bianca é uma pessoa que, de acordo com seu relato, seria alguém de
lateralidade mista, ou seja, utiliza mãos diferentes para atividades diferentes,
dependendo da situação.

40
Ela não está sozinha. Conta que está cercada de canhotos. De seus
quatorze primos, três são canhotos. Ou seja, o dobro da média, que é de um
para cada dez. Em sua família são dois para cada dez.
Comenta que o canhotismo foi bem aceito por seus familiares, exceto
pela avó paterna, que constantemente trocava o lápis de sua mão esquerda e
passava para a direita. Por outro lado, a mãe buscou tudo para que ela se
sentisse bem.

Nisso minha mãe super me apoiou. Você é canhota, vai! Não


tem problema nenhum.

Diz que na escola as coisas não foram tão simples assim. Lembra-se
dos professores reclamando sobre sua grafia, o que chateava sua mãe. Não
entende por que nenhum deles falou: “é porque ela é canhota”. Lembra de
como é difícil pegar na mão de um canhoto para ensiná-lo a escrever. Conta
que chegou a levar bronca por borrar o caderno da escola. O canhoto quando
escreve passa a mão em cima do que escreveu, manchando o papel. Foi
pedido que trocasse de caneta e evitasse a sujeira.

Eu não tinha culpa, mas fazer o quê? Eu escrevo com essa


mão [esquerda].

Seu professor de tênis não lhe dava a devida atenção como canhota.

Literalmente uma explicação e “se vira aí”.

Conta que como não quis ser jogadora profissional, aquilo não a
incomodava tanto. O que realmente incomodava era a falta de carteira de
canhoto na realização dos vestibulares e exame psicotécnico. No vestibular
ficou com vergonha de pedir uma carteira especial. Resultado: de tanta dor,
precisou parar a prova, pois não aguentava mais. Depois dessa experiência,
não deixava mais uma prova começar sem que ela estivesse bem
acomodada.

41
Outra dificuldade que mencionou é o momento do jantar. Precisa
sentar-se do lado esquerdo do namorado. Caso contrário:

A gente se tromba o jantar inteiro. É um caos.

Ficou indignada quando sua mãe comprou uma espátula de bolo que
só cortava para a direita. Era seu aniversário e ela não conseguiu cortar o
bolo. Entrou em contato com o fabricante, que a despistou e o caso ficou
esquecido.
Diz que existiram essas situações, porém não se lembra de histórias
traumáticas. Nunca escutou dizerem que isso era um problema. Apenas
considera que o canhoto se adapta e não se preocupa em buscar melhorar
sua situação. Apesar desse percurso nem sempre ser o mais fácil, diz que
gosta de ser canhota. Inclusive já escutou de uma amiga de que “é lindo ser
canhoto”.
Por ser professora de crianças pequenas, sua concepção sobre a
pessoa canhota acompanha sua prática. Comentou que 20% (vinte por
cento) de seus alunos são canhotos e que se empenha para ajudá-los, pois
compreende quais podem ser as dificuldades. Recomenda que os pais
comprem tesouras adaptadas e cuida para que os alunos sejam atendidos
em suas necessidades.
Para Bianca é bom ser canhota, porém não considera como verdade o
mito de que o canhoto é mais inteligente.

Na verdade, eu acho que esses mitos novos chegaram para


encobertar os velhos. No sentido de: “Não, gente, não
achamos mais que é pecado; inclusive achamos até que
vocês são mais inteligentes”.

Bianca defende que o canhoto, sendo minoria, acaba precisando se


submeter ao mundo do destro. E que isso não deveria acontecer. Defende
que é necessário um mundo adaptado.
A entrevistada menciona que os canhotos são como uma “tribo”; diz
que repara nos canhotos em todos os lugares que vai.

42
Eu enxergo em qualquer um. Enxergo se é canhoto, porque
isso, sei lá, é o detalhe que levo em conta.

E se sente parte integrante desse grupo. Conta que gosta de ser


canhota, acha “legal”. Gosta porque é um diferencial. Fala inclusive que se
orgulha dessa condição. Ser diferente, ser minoria e ter se dado tão bem é
motivo de alegria.

Acho que é isso. Sou feliz sendo canhota.

43
CAROLINA

Dizem que a gente é mais inteligente, né?

Carolina é uma médica radiologista, de 34 anos de idade, apaixonada


pelo que faz. Diz que é muito perfeccionista. Canhota convicta e feliz por sua
condição, compartilhou conosco as vantagens de ser dominada pelo lado
esquerdo.
Podemos pensar que é uma canhota total, apesar de não saber ao
certo qual é sua perna dominante, pois faz tudo com a mão esquerda, exceto
o que exige que seja com a direita, como, por exemplo, fazer ultrassom,
devido a maca com o paciente ficar sempre do lado direito do médico e não
existir a possibilidade de trocar o aparelho de lugar, mas se adaptou a
trabalhar assim.
Conta que sua mãe percebeu que ela era canhota, logo quando
pequena. Apesar de não ter sido reprimida e ser algo irrelevante para seu
pai, irmã e marido, sua mãe estranha muito. Relata que ela fica incomodada,
e diz: “filha, pega com a mão certa”. Nesses momentos, a mãe prefere
executar ela mesma a tarefa.
Diferente de Bianca, que tem vários parentes canhotos, Carolina não
conhece nenhum familiar com a mesma condição.

Eu sempre procurei saber. Isso sempre chamou atenção.


Sou a única.

Os canhotos também chamam sua atenção em outros ambientes. Diz


que os percebe por onde passa. Repara na TV, cinema, em qualquer lugar.
Inclusive afirma saber quais são todos os colegas canhotos. O mesmo muitas
vezes não ocorre dos outros em relação a ela: “Ai, você é canhota. Não
sabia”.
Gosta de ser canhota, mas enumera inúmeras dificuldades:

A gente sofre um pouquinho, né, Pri?

44
Manipular colher de molho; tesouras da época de escola (pequenas e
coloridas), que diz que não cortavam; faltar constantemente a carteira para
canhoto na escola e no vestibular; além de sair para comer e ficar batendo na
pessoa ao lado o tempo todo (senta-se estrategicamente nos restaurantes).
Apesar de ter uma forte dominância do lado esquerdo, diz ser
habilidosa com a direita nos jogos de vôlei.

O que entra muito o meu canhoto.

Conta que durante o Ensino Médio foi morar nos Estados Unidos, algo
que sempre quis fazer. Lá, recebeu uma proposta para jogar vôlei
profissionalmente. Ser a jogadora canhota do time permitiu que obtivesse
destaque. Ela surpreendia os adversários, jogando para o outro lado. E
quando esses já começaram a notar, passou a desenvolver a direita, e logo
ser uma atleta exímia. Era uma excelente jogadora, que chegava inclusive a
aparecer no jornal da cidade.

Todo mundo gostava porque eu fazia bem para todo mundo.


Era muito diferencial.

Diferencial. Palavra que apareceu com frequência em nossas


entrevistas. Para os sujeitos canhotos, pareceu positivo, porém nem todos
encaram essa condição dessa maneira. Carolina conta que já escutou “você
sabe, é coisa do diabo”. Ignora. Afinal de contas, considera a condição de
canhota como algo “normal”, mas que chama a atenção. Relata que não
considera o canhoto mais inteligente,

Mas a gente fala, né?

Fala porque gosta, adora, se sente bem. Ser canhota para ela, em
suas palavras, só trouxe coisas boas. Ser diferente dos outros lhe agrada.

45
O normal, mas um pouquinho diferente (...) Não tem o que
falar. É ótimo. Nasceria canhota de novo (...) Se pudesse
nascer canhota 20 vezes, nasceria canhota 20 vezes.

Não só ela nasceria canhota novamente, como torce para que a filha
que está esperando o seja também.

Deve ser a coisa mais fofa (...) uma canhota bebê. Se a


minha for, vou ficar louca. Vou dar o maior apoio. Tudo com a
esquerda!

46
LUÍSA

O canhoto não afetou em nada na minha vida. Tranquilo.

Luísa é uma dona de casa, de 49 anos, nascida em uma família


especial. Conta que teve muita sorte de fazer parte de uma família diferente,
com uma cabeça mais avançada que as outras na época. Acredita que se a
família não tivesse essas características, ela nem sequer teria sobrevivido.
Conta que foi uma criança com muitos problemas. Nasceu com uma
doença genética, de base neurológica, rara, e que influencia a função
imunológica. Além disso, menciona ter “déficit de atenção” e “dislexia”.
Assim como Bianca (entrevistada 1), o canhotismo quase não foi
notado em sua vida. Havia outras coisas mais importantes para se preocupar.
Luísa desacredita que possam existir famílias ou sistemas que reprimem o
canhoto.

Nunca ouvi contar.

Se intitula 200% (duzentos por cento) canhota, daquelas que não


sabem fazer nada com o lado direito. Até crochê aprendeu a fazer com a
esquerda.

Era uma coisa impossível de ensinar. Todo mundo dizia. Mas


eu aprendi.

Mesmo assim, conta que se adaptou bem ao que era inevitável. A


tesoura de canhoto não lhe fez falta; o bico da panela é ao contrário, porém
nunca precisou de algo diferente. O que realmente lhe incomodava era a
carteira de classe.

Que era chato. Você ficava virado ao contrário. Isso é uma


sacanagem. Devia ter.

47
Em seu depoimento, essa é a maior dificuldade que apresenta. Seus
outros problemas se sobrepõem a ser canhota. Relata que sempre foi muito
distraída e essa era uma desvantagem em sua vida. Sua experiência escolar,
em uma escola construtivista, vem de encontro a essa situação. Diz que a
liberdade dessa postura pedagógica, aliada ao “déficit de atenção” e da
“dislexia”, fez com que ela estivesse sempre em outro lugar. Foi somente
quando mudou de escola, para uma tradicional, que encarou o colégio como
algo ótimo.
É uma entrevistada que possui várias “teorias” sobre o ser canhoto.
Inclusive relacionada à distração.

Eu acho que isso tem a ver com o canhoto, sabia? Eu acho


que o canhoto gosta de “viajar” um pouco. Todo canhoto
“viaja”. Repara?

Considera que os canhotos são organizados do ponto de vista


espacial, porém têm a vida bagunçada. Arrisca que isso se deve à
capacidade criativa. Menciona ser habilidosa do ponto de vista artístico,
apesar de ter uma letra que ela mesma nomeia como horrível. Para sustentar
esse argumento, cita um cunhado canhoto que é meio artista, interessante de
conversar, mas que tem uma vida profissional instável. Conta que o sobrinho,
filho desse cunhado, também canhoto, teve “déficit de atenção”.
Ressalta que o canhoto tem sempre um “Plano B”. Diz que eles estão
sempre “metidos em alguma coisa”. Para ela, o canhoto experimenta.
Acredita que isso se dá porque eles pensam diferente, têm outro raciocínio.

Mas é tranquilo. Tranquilíssimo.


O canhoto não afetou em nada a minha vida.

Apesar do canhotismo não ter destaque em sua vida, assim como as


outras entrevistadas, se considera parte de uma “tribo”. E que gosta de ser
canhota por ser algo diferente, raro. Em suas palavras, ser canhota é um
diferencial.
Tem dez e tem um canhoto: sou eu!

48
MARCELA

Eu apanhava na mão esquerda.

Marcela tem 56 anos. É advogada, com uma experiência especial em


relação a ser canhota. Conta que, desde criança, por volta dos 4 (quatro)
anos de idade, tinha tendência a usar a mão esquerda. E que sempre gostou
disso. Porém, assim que o pai percebeu, não aceitou, chegando inclusive a
bater em sua mão.

(...) meu pai, como todo imigrante, principalmente árabe,


tinha certos preconceitos.

E ela, respeitou.

(...) eu era muito ligada ao meu pai. (...) Então eu falava


assim: já que ele fica chateado, não posso fazer isso para
desagradá-lo. Aí comecei a desenvolver a direita.

Outros membros da família canhotos, como uma prima irmã e um


sobrinho passaram ilesos a esse tipo de repressão. Alguns tios nem ligavam.
Exceto David, tio com quem ela possuía uma forte ligação afetiva. Este até o
fim da vida não admitia que ela o servisse com a mão esquerda, alegando
que todo canhoto é desastrado. Ele e seu pai ficavam muito bravos se
presenciassem um ato ou movimento realizado com a mão esquerda.
Marcela tem a hipótese de que eles tenham adquirido essa cultura no Líbano.
Devido a essa vivência, a entrevistada escreve e come com a mão
direita, porém atribui a essas atividades a qualidade de serem mecânicas.

A direita eu escrevo por hábito, é mais rápida. Mas a


esquerda é a mão do meu EU realmente. Eu me sinto. Sinto
meu EU se manifestando.

49
É com a mão esquerda que ela se realiza, se percebe como autora.
Quando faz uso da direita, é algo superficial. Diz que sua força sempre foi na
mão esquerda. É canhota ao varrer, escovar os dentes, jogar tênis, golfe,
cozinhar.

Se mexer numa panela com a direita, a comida não sai


gostosa.

Menciona ter recebido um carinho e atenção especial dos professores


de esportes, como tênis e golfe. Diz que eles se esforçavam para estimulá-la,
ao mesmo tempo em que sentia que eles ficavam receosos; afinal, acredita
ser mais complicado ensinar um canhoto que um destro.
Assim como Luísa (entrevistada número 3), também “teoriza” sobre
essa condição, dizendo que escutou dos colegas de faculdade que sua
memória é boa porque é canhota. E já leu que os canhotos possuem um
sexto sentido mais aguçado.
Sendo isso verdade ou não, aqui não importa. O que fica evidente
nesse depoimento é que Marcela, apesar de ter sido reprimida em sua
condição, se considera, em suas palavras, com um “íntimo” canhoto e um
“supérfluo” canhoto e destro.
Mas quando a pergunta é: “o que é ser canhota para você?”, vem o
encanto:

Me realizar como pessoa. Ser eu.

50
DULCE
UM CASO ESPECIAL

Você causou diversos problemas. Porque eu comecei a


reparar o que fazia com a direita e com a esquerda.

Essa foi sua impressão quando foi convidada para compartilhar um


pouco de sua história.
Embora não faça parte do nosso conjunto de sujeitos, seu depoimento
é digno de ser contado.
Dulce, uma senhora de 82 anos de idade, foi nossa entrevistada como
um caso bem especial.
Começa a entrevista dizendo que nunca teve trauma nem depressão
por coisa alguma em sua vida. Foi mãe de 4 (quatro) filhos, um em seguida
do outro. A rotina com as crianças era intensa. Logo depois de contar um
pouco sobre sua família, diz:

Não posso sequer imaginar de dizer: “meu Deus, será que


isso é resultado de não terem deixado eu ser canhota?”
Nada, nada, nada. O mais light possível, você pode escrever,
que não tenho coisa alguma. Agora, descobri com a vida que
tudo que me obrigaram a fazer, eu faço com a direita.

Refere-se aqui às freiras, suas professoras em um colégio religioso


tradicional e da elite de Curitiba (Paraná). Elas não permitiam que Dulce
fizesse uso da mão esquerda, principalmente para escrever e comer.
Conta que sacava no vôlei com a esquerda e isso passou
despercebido pelas “fiscais do canhoto”.

Para as freiras, antigamente era um caso de polícia, gente.

Relata que tudo que a obrigaram no colégio ela faz com a direita.

51
Naquele tempo não havia objeção ao que a irmã estava
dizendo.

Nas demais atividades, é uma canhota. Ao se maquiar, bater clara de


ovo, abrir e fechar garrafa.
Vivenciando essa postura da escola, confirma a existência de
preconceitos sobre o ser canhoto:

O diabo inclusive era chamado: “o canhoto”.

Diferente da escola, sua família, em suas palavras, nem ligava. Hoje


tem duas netas canhotas e percebe a mudança de mentalidade:

Hoje deixam. Fazem tudo com a mão esquerda. O que


quiserem.

Apesar de dizer que nasceu canhota:

Se me perguntarem, digo que sou destra. O canhoto ficou lá


tão longe, tão longe (...),

E que acabou se perdendo, segundo ela. A espontaneidade de ser


uma canhota foi encoberta pela formalidade de ser uma destra, numa época
e universo que tinha valores muito distintos dos atuais.

52
4.2 ANÁLISE E DISCUSSÃO

Nossas entrevistadas são todas mulheres, de cinco gerações


diferentes. Bianca, de 23 anos; Carolina, de 34; Luísa, 49 anos; Marcela, 56 e
Dulce de 82 anos, esta última que não entrará em nossa análise, porém
deixamos seu rico depoimento registrado neste trabalho.
Consistiram em entrevistas não diretivas, tendo como frase
desencadeadora: “Me conte sobre a sua vida”. Lançada essa frase,
aguardávamos da entrevistada seu depoimento.
Percebemos uma enorme motivação das entrevistadas em
compartilhar um pouco de sua história, bem como de fazer parte da pesquisa.
Aparentemente, se sentiram prestigiadas e privilegiadas. Ao mencionar que a
temática principal que envolve o trabalho é o canhotismo, notou-se
claramente uma satisfação. Como se, de alguma forma, esse grupo
ganhasse voz e representatividade.
A empolgação e envolvimento dos sujeitos foi notável no momento do
convite para participarem, durante a preparação para o depoimento
(primeiras conversas), o depoimento em si, e inclusive depois. Todas as
entrevistadas demonstraram-se interessadas em acompanhar o andamento
da pesquisa. Algumas disseram: “depois quero ver o resultado”.
Compreendemos que muito mais do que isso, neste trabalho elucidam-se
importantes contribuições para um olhar sobre o canhoto. Entender um pouco
mais desse universo, desse grupo, dessas pessoas. Os sujeitos têm muito a
contribuir. Perceber em suas falas o caminho que trilharam ao longo de suas
vidas, a influência da família, escola e trabalho, e o impacto disso tudo em
suas constituições, é algo muito rico.
As entrevistadas que fizeram parte desta pesquisa eram pessoas
bastante diferentes. Moravam em diferentes partes da cidade, ou até mesmo
em outro Estado, tinham famílias e trabalhos distintos. Cresceram e foram
educadas cada uma de uma forma, em escolas com posturas diversas e
escutaram da sociedade coisas positivas e negativas sobre elas. Isso foi
muito rico do ponto de vista de informações que pudemos coletar, mas, mais

53
ainda, foi um enorme prazer escutar tudo o que elas tinham a dizer. Cada
uma delas percorreu um caminho, porém todas comentaram sobre a
condição de ser canhota e a implicação disso em suas histórias de vida.
Optamos por separar essa análise em temas por uma questão
didática. Ao todo foram 7 (sete) temas, determinados posteriormente à
realização das entrevistas. Foram as falas dos sujeitos que levaram a seguir
essa organização.

1. Características e formas de manifestação da lateralidade

Entendemos como fundamental esse tema, pois todas as


entrevistadas contaram, de alguma forma, como a lateralidade manifestou-se
em suas vidas. Conforme mencionado anteriormente a lateralidade pode ser,
em linhas gerais, integral, não integral ou contrariada.
Os dados mostram que Bianca não tinha paciência para esperar que
lhe ensinassem de forma especial e acabou aprendendo a fazer tudo com a
mão direita também. Podemos considerá-la como tendo lateralidade não
integral, em que ela apresenta tendências com as duas mãos. Em seu caso,
utiliza mãos diferentes em atividades diferentes.
Carolina desde pequena mostrou-se canhota. Ao longo da vida,
precisou entregar-se um pouco ao lado direito, principalmente em seu
trabalho (com ultrassom), que exige o uso dessa mão. Arriscamos a dizer
que sua lateralidade é integralmente canhota, pois se houvesse opção de
trabalhar com a esquerda, ela não se preocuparia em usar a direita.
Luísa, por sua vez, é totalmente canhota. Realiza todas as atividades
com o lado esquerdo. Marcela tem a “alma canhota”, mas escreve e come
com a mão direita, pois apanhava do pai se fizesse o contrário; as demais
atividades cotidianas realiza como canhota. Marcela seria alguém de
lateralidade contrariada.
Em resumo, encontramos: Bianca (sujeito 1) que faz tudo com as duas
mãos; Carolina (sujeito 2) que é integralmente canhota, mas usa a esquerda
para o que “não tem outro jeito”; Luísa (sujeito 3) totalmente canhota; e
Marcela (sujeito 4) canhota por “dentro”, mas de vez em quando destra por

54
“fora”. Isso se deveu à história de cada uma, conforme contado
anteriormente. Bianca usa as duas mãos por “ansiedade”; Carolina de vez
em quando usa a direita por imposição do ambiente; Luísa era de uma família
moderna que não se preocupava com isso, logo, só usa o lado esquerdo; já
Marcela era de uma família oposta, que se preocupava muito com essa
questão; para o pai era inaceitável, portanto ela escreve e come com a mão
direita.
Fica evidente aqui que cada uma das entrevistadas possui uma
relação com a manifestação da lateralidade, assim como todos os indivíduos.
Apesar de existir uma base biológica que contribui para que o sujeito use
preferencialmente uma das mãos, o ambiente desempenha um papel
importante. Pessoas forçadas, contrariadas ou, por diversas razões, podem
desafiar a condição de seu nascimento e, mesmo assim, conviverem bem
com essa mudança.

2. A família

Antes de nascer, o nascituro já é representado como filho de


alguém e essa representação prévia o constitui efetivamente,
objetivamente, como filho, membro de uma determinada
família, personagem (preparada para um ator esperado) (...)
(Ciampa, 2005, p. 167)

Entendemos, assim como Ciampa (2005), que a socialização primária


dos sujeitos ocorre na família. É nessa relação que a criança é introduzida
em nosso mundo, que se inicia o processo de humanização. A família é
formada por pessoas que desempenham diferentes papéis, cada um deles
com significados específicos. Esse primeiro estágio é fundamental para o
processo de socialização, individuação, constituição e identidade do sujeito.
Família é algo muito particular e próprio de cada indivíduo. Nossas
entrevistadas comprovam essa afirmação ao contarem partes de suas
histórias de vida. As respostas dadas a essa questão foram bastante
interessantes, porque são todas diferentes e muito provavelmente abarcam

55
as possibilidades de relação com a família que os canhotos em geral podem
ter. Acreditamos que muitos canhotos, ao lerem, se identificarão com uma ou
outra situação.
Nessa categoria encontramos apenas uma entrevistada que passou
ilesa de qualquer intervenção: Luísa. Ela teve seu canhotismo bem aceito por
todos os familiares. Sua família estava “à frente de seu tempo”. Além disso,
ela tinha outros problemas que eram mais relevantes que o fato de ser
canhota. Sua “dislexia”, “déficit de atenção” e ter uma doença autoimune,
tomavam a atenção. Sua família também não era submissa às questões
religiosas e, portanto, não se envolveram com preconceitos e mitos acerca do
ser canhoto.
Bianca tinha todo o apoio de sua mãe para ser canhota, porém teve
problemas com a avó, que tentou levá-la a pender para o outro lado, sem
sucesso. Assim como Luísa, tinha problemas (um irmão com “distúrbio no
processamento auditivo central”) que tomavam a atenção de todos, e o
canhotismo não era algo tão importante para que eles se preocupassem.
Carolina, apesar de escutar constantemente da mãe que a incomoda
ver a filha realizando atividades com a esquerda, adora ser canhota e
“nasceria de novo” assim quantas vezes forem necessárias, com prazer. O
canhotismo para ela trouxe vantagens e alegrias, que nada nem ninguém
ainda a fizeram ter vontade de ser diferente.
Marcela, obediente ao pai e ao tio, rendeu-se à vontade deles de não
usar a mão direita em público; escreve e come com a direita. Esses homens
tinham um papel tão forte em sua vida que contrariá-los estava fora de
cogitação.
Isso demonstra que a família constitui inicialmente o mundo de e para
cada sujeito. Para Bianca, o irmão ter toda a atenção a auxiliou em ser uma
canhota de sucesso e independente. Para Carolina, ser canhota é tão bom
que nem a represália da mãe com todos os seus comentários, a fez querer
mudar a dominância lateral. Luísa é de uma família progressista que mostrou
para ela que ligar para isso era “bobagem”. Marcela respeitou a vontade da
família e desempenha o papel de destra em algumas situações.
Cada uma dessas mulheres mostra que a família é importante e
exerce uma forte influência sobre quem somos; é a base primária da

56
socialização e, em geral, permanece como campo de relações significativas
ao longo da vida.
Nos primeiros momentos, eles nos dão a base para que possamos
começar a andar. Conforme atingimos destinos cada vez mais distantes,
podemos nos afastar de certos conceitos e começar a traçar nossos próprios
caminhos. Muito do que a família é e ensina será sempre carregado conosco.
O que difere é o que faremos com toda essa bagagem.

3. Escola e Trabalho

A escola pode ser considerada a primeira instância de inserção do


sujeito fora da família e caracteriza um novo tipo de socialização. É lá que a
criança amplia seus contatos sociais, começa a ter contato com outras
pessoas e a se desenvolver.
De acordo com Berger e Luckmann (apud Martins, 2012) os estágios
de socialização primária e secundária podem ser explicados da seguinte
forma:

A socialização primária é o processo por meio do qual a


criança se transforma num membro participante da
sociedade. A socialização secundária compreende todos os
processos posteriores, por meio dos quais o indivíduo é
introduzido num mundo social específico. Qualquer
treinamento profissional, por exemplo, constitui um processo
de socialização secundária.

A experiência escolar das entrevistadas é relevante para nossa


pesquisa, pois além de ser palco de importantes relações sociais, a escola é
um lugar em que certamente a lateralidade se manifesta, seja na escrita ou
em qualquer outra atividade motora que a criança realize.
Percebemos na fala dos sujeitos que há outros fatores escolares que
ultrapassam a condição de pessoa canhota. Nossos sujeitos Carolina e Luísa
destacaram mais a diferença de metodologia das escolas que estudaram do

57
que o fato de serem canhotas. Para elas, estudar em colégio construtivista,
liberal ou tradicional eram fatores mais relevantes e traziam mais questões
para debate.
Marcela teve sua condição de ser canhota reprimida dentro de casa, a
ponto disso nem ser mencionado em sua experiência escolar.
Bianca relata que os professores chegaram a reclamar que ela
passava com a mão por cima do que escrevia e aquela sujeira era inaceitável
para eles. Ela concorda com a postura deles, pois realmente aquilo não fica
estético, mas diz que não há muita alternativa, uma vez que ela não tinha
culpa de ser canhota. Entretanto, não critica a postura dos professores, que
precisariam reconhecer as diferenças dos alunos e acolhê-los em suas
singularidades.
Bianca e Marcela falam um pouco de suas relações com os
professores de esportes. As duas afirmaram que eles não sabiam muito o
que fazer com elas. Ensinar uma canhota a chutar não é o mesmo que
ensinar para a maioria. Orientar no basquete, no tênis e em grande parte dos
esportes, envolve dedicação. Bianca não quis esperar a boa vontade dos
profissionais e acabou “se virando” sozinha. Marcela notou que apesar de
inexperientes para ensinar uma canhota, incentivavam-na a aprender,
inclusive citando atletas famosos que se destacaram por usarem o lado
esquerdo do corpo.
Bianca merece um comentário especial nesse tema. Ela é pedagoga e
professora de Educação Infantil. Diz ser muito atenciosa com seus alunos
canhotos e procura suprir aquilo que não foi feito com ela no passado.
Auxilia-os constantemente, se preocupa e está disposta a preencher com
eles as lacunas que vivenciou em sua experiência escolar. Está interessada
em incentivá-los nessa condição e mostrar a eles que o canhotismo não os
impede de nada; inclusive conversa com os pais e recomenda que estes
deem suporte a seus filhos nas dificuldades e que adquiram materiais
adaptados e próprios para o canhoto, para facilitar a vida escolar das
crianças.
Dentre os quatro sujeitos, três, Bianca, Carolina e Luísa mencionam o
problema das escolas (principalmente os vestibulares) não terem número
suficiente de carteiras para canhoto. Para elas, isso pesou; afinal, ficaram

58
com dores ou incomodadas pela posição desconfortável. A necessidade de
uma carteira especial para cada canhoto em sala de aula não precisa ser
mais discutida. É um comentário recorrente entre os canhotos, principalmente
em rodas de conversa. As escolas precisam respeitar essa diferença e
permitir que seus alunos estejam bem acomodados e em condições para
realizarem tarefas de forma saudável.
Quanto à postura do professor, há atitudes diferentes. Nossos sujeitos
sugerem que os professores de educação física possuam em sua formação
momentos de reflexão e conheçam formas e maneiras de ensinar o canhoto
a praticar esportes, sobretudo porque a eles cabe, entre outras coisas,
trabalhar com a dimensão motora do educando.
Quanto à disposição física da escola, vemos que ainda há muito o que
fazer. As carteiras para canhotos precisam existir e em número suficiente nos
ambientes educativos. Nas escolas, universidades, em qualquer lugar em
que seja necessário executar uma tarefa.
Em relação ao trabalho, Carolina, que usa frequentemente a mão
direita para fazer ultrassom, adaptou-se com facilidade, afinal era uma função
nova que já começou a desempenhar dessa forma. Não foi algo que
aprendeu a fazer com a esquerda e depois exigiram que trocasse de mão.
Ser radiologista implica que ela manuseie o aparelho com a mão direita. Isso
não representou uma dificuldade.
Em síntese, podemos perceber que as dificuldades das entrevistadas
foram em relação às questões motoras, e não sociais. E estas, apesar de
desafiantes, não as impediram de realizar o que era necessário e esperado
em seus momentos de vida.

4. Dificuldades e superação

As dificuldades são reconhecidas por todos os sujeitos. Elas não


negam que existem “pedras no meio do caminho”. Porém, para todas, esses
empecilhos tornam-se secundários frente a outros problemas. Outras

59
questões, encaradas como mais importantes, parecem se sobrepor às
relacionadas ao canhotismo.
Relembrando, Bianca tem um irmão com “distúrbio no processamento
auditivo central” e Luísa é “disléxica” e tem “déficit de atenção”. Essas coisas
pesam muito mais do que o canhotismo. O ser canhota ficou na sombra,
secundário. Para Bianca, a personagem canhota ficou insignificante em
relação ao papel de irmã que precisava desempenhar. E para Luísa a
personagem com “problemas de aprendizagem” também se sobrepôs à
personagem canhota, que se tornou insignificante em relação aos tantos
outros problemas.
De acordo com Ciampa (2005), o homem assume e desempenha
diversos papéis durante sua existência. O papel é resultado de uma
implicação que vem de fora, em outras palavras, é resultado de uma
definição institucional. Durante um único dia podemos desempenhar o papel
de mãe, filha, esposa, professora. Ao desempenhar um papel, o foco do
sujeito é de construir uma personagem. Diferente do papel, a personagem é
uma elaboração própria de cada indivíduo, vivenciada em sua singularidade.
Na medida que vamos, ou precisamos desempenhar outros papéis,
acabamos por construir novas personagens. Isso ocorre constantemente
durante as nossas vidas.
É claro que há dificuldades relacionadas ao canhotismo, mas, pelos
relatos, todas foram superadas ou não se constituíram como problemas. Três
de nossos sujeitos contam o quão complicado é lidar com a tesoura e/ou com
o abridor de lata, mas elas buscaram e encontraram alternativas. São bem
sucedidas usando esses materiais impróprios para canhotos, mas a
adaptação foi viável.
Apesar de ficarem “tortas” na carteira de destro, “sobreviveram”. O
desconforto não as impediu de estudarem e realizarem suas atividades.
Mencionaram dificuldades com bico de panela, colher de molho, espátula de
bolo, nada disso adaptado ou próprio para o canhoto, mas cada uma a sua
maneira conseguiu que desse tudo certo. Elas “se viram” com o que existe no
mercado ou com o que tinham em casa. Superam os obstáculos ao longo do
caminho. Trombar com o namorado no jantar é considerado chato, mas elas
já contam em tom de diversão.

60
Carolina deu um pouco de trabalho para os colegas na faculdade de
medicina, pois contou que fazia o corte do parto normal ao contrário e isso
complicava o trabalho de quem ia suturar depois. Mas também, no final, deu
tudo certo. Afinal de contas, o canhoto precisa se adaptar quase que
integralmente ao mundo destro, porém o contrário não acontece. Esse relato
mostra uma situação em que os destros foram os que precisaram “se virar”.
As dificuldades maiores são mesmo em relação aos materiais, todas
superadas. Quanto às dificuldades sociais, Marcela foi a que enfrentou a
maior delas dentro da família. A proibição de usar a mão esquerda para
comer e escrever mudaram seu “destino”. Bianca levou algumas broncas por
borrar o caderno, mas diz não sofrer de traumas e não apresenta problemas
por conta disso.
Os depoimentos mostram que os obstáculos foram todos superados e,
mais do que isso, podemos arriscar dizer que as fortaleceu. Parece que a
condição de ser canhota ficou ainda mais intensa e assumida pelas
entrevistadas. Elas gostam dessa condição. Ser canhota é diferente, as
destaca no meio da multidão. É como se as tirasse do lugar comum. Isso é
semelhante a todas.

5. Facilidades e Vantagens

Vimos as dificuldades que os canhotos podem enfrentar. Em


contraponto, o canhotismo pode apresentar facilidades e vantagens para os
sujeitos.
A maior facilidade vivenciada por nossas entrevistadas se manifestou
na fala de Carolina (sujeito 2), que foi uma eficiente jogadora de vôlei, o que
diz dever muito ao canhotismo. Ela conta que quando todos esperavam que
ela jogasse a bola para um lado, ia para o outro. Por desempenhar um papel
no time diferente das demais, era considerada um desafio para as
adversárias. Ou seja, há um papel prescrito para uma jogadora de vôlei;
entretanto, o fato de ser canhota fez com que ela, no desempenho de seu
papel, assumisse uma personagem bastante especial, a de jogadora
canhota. Ser destaque no esporte a faz muito feliz e satisfeita com sua

61
condição. Ela conta dessa época da sua vida com uma alegria imensa, e
muito orgulho de ter conquistado essa posição elevada no esporte.
Carolina foi o nosso sujeito que relatou uma experiência em que ser
canhoto é uma vantagem. As demais não contaram um momento especial,
porém consideram positivo serem diferentes das outras pessoas, e isso faz
com que elas se sintam bem. Considero algo merecedor de destaque, pois
afinal ser feliz é uma das maiores vantagens que alguém pode ter na vida.
Podemos arriscar a dizer que essa condição proporciona realização, e uma
pessoa mais confiante geralmente atinge mais efetivamente seus objetivos
do que alguém que não se considera capaz. Além disso, ter superado
obstáculos em relação ao canhotismo fortalece e potencializa a capacidade
do sujeito de superar, fazer acontecer. Diferentemente de alguém que não
precisou lutar para que as coisas acontecessem, muitos canhotos já
enfrentaram diversos obstáculos e tiveram sucesso.
Assim como Carolina, esportistas canhotos renomados não faltam.
Maria Esther Bueno foi mencionada por Marcela (sujeito 4), porém, ao
pesquisarmos, encontramos que ela teve uma lesão na mão direita e,
portanto, tentou jogar com a esquerda, sem sucesso.
Atualmente, Lionel Messi é um canhoto de grande destaque. O
argentino, atacante do Barcelona, foi eleito o melhor do mundo por quatro
vezes consecutivas, um recorde. As pessoas o consideram rápido, com um
arranque mortal, “ginga” e habilidade. Ou seja, é um jogador completo.
Seu conterrâneo e colega de profissão, Diego Maradona, fazia tudo
com a perna esquerda. Era um canhoto conhecido por seus malabarismos e
controlava muito bem a bola em velocidade.
Pelé (futebol), Rafael Nadal (tênis), Ayrton Senna e Fernando Alonso
(automobilismo) são controversos. Há quem os coloque em uma categoria ou
outra. Portanto, não podemos afirmar quais são de fato suas lateralidades.
Aliás, quando conversamos com as pessoas sempre uma lista enorme de
canhotos é mencionada. Precisamos tomar cuidado com essas afirmações,
uma vez que ao pesquisarmos mais a fundo, encontramos inúmeras
incoerências. Muitas vezes, cada fonte apresenta uma informação.
O destaque do canhoto nos esportes pode ser justificado justamente
pelo diferencial que isso representa. É uma pessoa incomum, que realiza

62
coisas diferentes, em um lado que os outros geralmente não o fazem. A
concorrência desse atleta para fazer parte de um time acaba sendo menor.
Uma posição como o lateral direito, por exemplo, seja no handebol e até
mesmo no futebol, é melhor desempenhada por um canhoto. Se existir
somente um no time, seu lugar é praticamente garantido. Os canhotos
surpreendendo o adversário, também ganham notoriedade. Um boxeador
canhoto, por exemplo, é capaz de golpear o oponente de uma forma mais
eficaz, uma vez que o outro, em geral, não está tão habituado e treinado para
se defender de canhotos.
Os comentários ressaltam que ser canhoto pode apresentar
dificuldades, mas elas podem ser superadas. E mais do que isso, ser canhoto
pode ser muito bom. Ser diferente das outras pessoas, de uma forma ou de
outra, chama a atenção. Isso feito, há uma maior possibilidade de
notoriedade e destaque.

6. Mitos

Os mitos são representações criadas pelo homem para tentar explicar


os diferentes fenômenos. O canhotismo, ao longo da história, recebeu
diferentes olhares. Conforme mencionamos anteriormente neste trabalho, o
canhoto já foi associado ao demônio, ao mal, ao negativo. Hoje em dia, os
canhotos não sofrem represálias na escola como antigamente em que não
era aceito escrever com a mão esquerda. Houve mudanças ao longo do
tempo.
Ainda há mitos e preconceitos que hoje, embora muito frágeis,
continuam persistindo, seja nas pessoas mais velhas, seja até de uma forma
mais cômica. No entanto, essas ideias de alguma forma ainda estão
presentes. A essas se somam hoje mitos sobre inteligência, habilidades etc.
Bianca diz em seu depoimento que acredita que um dos mitos
vigentes atualmente, de que o canhoto é mais inteligente, se deve a uma
tentativa de tentar amenizar os fatos de repressão ocorridos no passado.
Carolina, apesar de ter 34 anos, já ouviu dizer que ser canhoto é coisa
do diabo. Ela diz que quando escuta, nem se importa. Marcela nem sequer

63
podia escrever e comer com a mão esquerda, por considerarem algo ruim.
Ela justifica dizendo que o pai era imigrante árabe, e que isso deve ser
resultado de sua cultura, em que o lado esquerdo era mal visto. Bianca e
Luísa não escutaram diretamente esse tipo de coisa. Bianca inclusive já
ouviu o comentário de que é lindo ser canhoto.
Há alguns mitos que a sociedade reproduz, até mesmo sem pensar, e
outros construídos pelos próprios sujeitos. As entrevistadas desta pesquisa
possuem alguns. Carolina acredita não ser bem verdade, mas fala que os
canhotos são mais inteligentes; Bianca considera isso uma bobagem.
Marcela arrisca-se a dizer que os canhotos são mais sensíveis e possuem
boa memória. Luísa traz várias possibilidades: canhoto é mais criativo, tem a
vida em constante desordem, possui sempre um Plano B, e tem um pé na
arte. Esta última é quem mais possui modelos para explicar os canhotos. É
como se ela os houvesse observado criteriosamente, por um longo período, a
ponto de afirmar com convicção que essa série de características pertence a
esse grupo.
Isso tudo vem ao encontro do que foi dito anteriormente, de que a
sociedade construiu e segue construindo alguns conceitos acerca do canhoto
que vão passando de geração em geração. Ainda se escuta falar alguma
coisa, hoje menos, sobre o lado negativo dessa condição, e mais das
vantagens que isso pode ter. De certa forma, as contradições aparecem com
frequência. Há quem diz que tem letra linda, mas o sujeito 3 (Luísa) repete
algumas vezes que a sua é horrível; merece ser mais explorada a condição
específica do processo de alfabetização e do desenvolvimento da escrita
para essas entrevistadas.
Em outras palavras, essas questões acompanham a vida social,
porém não podem ser tomadas como uma verdade genérica, uma vez que
são diferentes a cada fala, a cada momento e às particulares da história de
cada sujeito. O importante e interessante é se ater ao que os entrevistados
nos trazem e provocar uma reflexão sobre o ser canhoto nos dias atuais.
Aparentemente, o papel que esse grupo representa na sociedade é de
pessoas diferentes do comum, uma minoria satisfeita com a sua condição e,
mais do que isso, que gosta de não fazer parte de um todo homogêneo.
Talvez justamente por isso, que as entrevistadas possuem tantos conceitos

64
sobre ser canhoto. O diferente chama mais atenção, se destaca. Este é,
inclusive, um dos motivos deste trabalho. O fato do canhotismo ser pouco
abordado inspira ainda mais curiosidade sobre o fenômeno.

7. Diferença

Não há como negar que ser canhoto é diferente. A maioria das


pessoas, em média 90% da população, não é. As diferenças podem ser
interpretadas de muitas maneiras. Pode ser algo ruim ou justamente o
oposto, dependendo da vivência que o sujeito e as concepções que a
sociedade têm em relação ao fenômeno.
Devido à convivência com canhotos, acreditávamos desde o início
desta pesquisa que ser canhoto em um mundo de destros não era tarefa
fácil, porém muitos consideram essa condição como sendo positiva e
interessante.
Conforme realizamos as entrevistas, essa hipótese foi se confirmando.
De fato há coisas nesse mundo que dificultam a vida dos canhotos,
principalmente as temidas tesouras e carteiras escolares. Mas, há outras que
se sobrepõem a essa condição. Uma delas é o “ser notado”. O canhoto,
sendo alguém diferente, muitas vezes é percebido e recebe atenção. Além
disso, encontramos indícios de que os preferentes pelo lado esquerdo
formam uma espécie de “tribo”. Um grupo que possui uma forte identificação
entre seus membros e que percebe quando há um “deles” no meio da
multidão.
Ser canhoto, para as entrevistadas desta pesquisa, é bom. Até mesmo
para Bianca e Luísa, em que o canhotismo é praticamente irrelevante por
terem outros problemas mais importantes para cuidar. Elas gostam de ser
diferentes, se sentem especiais por serem uma em cada dez. Carolina é
apaixonada pela condição e gosta muito de ser canhota. Gosta tanto que
está grávida e deseja que a filha o seja também. Marcela, que escreve com a
direita para cumprir determinado papel, sente-se realizada quando faz as
atividades com a mão esquerda, como se aquilo que fosse definido pelo
outro, de não usar a mão esquerda para escrever e comer, ou seja, em

65
atividades que se mostrassem ao público, não fizessem sentido. Ela se sente
autora do que faz, presente integralmente no movimento, quando o elabora
com a mão esquerda. Ela precisou desempenhar um papel que não era
propriamente o dela, com o qual não se identificava, por imposição da família.
Acabou assim, por assumir também uma personagem destra, sem abandonar
a personagem canhota que é de fato com a qual ela se nomeia e, portanto, é
a substancial que a constitui.
Ser diferente para as nossas canhotas é reconhecido como algo
positivo. Para todos os sujeitos ser canhoto é ser diferente, e essa é uma
diferença que, além de aceita, é admirada. Encontrar essas evidências na
fala das entrevistadas demonstra que a visão do canhoto na atualidade não é
como a de antigamente. Hoje, além de não ser problemática, é até
considerada positiva.

66
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O canhotismo é identificado como a preferência pelo uso ou maior


habilidade com o lado esquerdo do corpo, seja na mão, membros inferiores
ou até mesmo a lateralidade ocular. Há pessoas que têm lateralidade
homogênea ou integral, ou seja, são totalmente canhotas ou destras; outras
já podem apresentar uma lateralidade não integral, em que realiza diferentes
atividades, de diferentes formas, ou seja, em algumas situações usa o lado
direito, em outros, o lado esquerdo; também há a lateralidade contrariada,
quando há uma interferência na tendência “natural”.
Ser canhoto não é apenas uma questão biológica. Apesar de
acreditarmos que nascemos com uma tendência, é no ambiente e nas
interações sociais que nos definiremos mais precisamente como canhotos ou
destros. Nesta pesquisa, percebemos a forte influência da família e da escola
para que a lateralidade se manifestasse concretamente.
Além de um aspecto biológico, e outro social, há no canhotismo um
fato que se destaca: a identificação das pessoas canhotas com essa
condição e com o grupo de pessoas que compartilha da mesma
característica. Vimos que os canhotos são orgulhosos de serem assim,
gostam de ser diferentes.
Pudemos perceber que, apesar de haver algumas dificuldades para
esse grupo, principalmente com o uso da tesoura, a carteira escolar, abridor
de lata e outros materiais, há muitas maneiras de superá-las. Seja usando
materiais adaptados, aprendendo a fazer do seu jeito ou até mesmo com a
mão direita.
Notamos também que quando há uma dificuldade de outra natureza
na vida da pessoa canhota, esta se sobrepõe. Podemos inferir que as
dificuldades de ser canhoto comparadas aos transtornos que um obstáculo
de maior gravidade traz, passa a ser uma condição irrelevante.
Algumas famílias foram responsáveis por incentivar ou reprimir seus
filhos de seguirem essa tendência “natural”. Escutamos histórias de familiares
que não permitiram de forma alguma que fosse utilizada a mão esquerda. Em

67
contraponto, ouvimos casos também de ajuda e apoio da mãe para que a
pessoa tivesse a melhor experiência possível como canhota.
Nos espaços educativos não foi diferente. Percebemos a postura de
alguns professores, que foram incentivadores, e outros, principalmente os
ligados aos esportes, indiferentes à condição de seus alunos, não
contribuíram para que eles se desenvolvessem como atletas canhotos.
Constatamos também em uma das falas de nossas entrevistadas, estudante
de um colégio religioso na década de 1930, a proibição total pelo uso da mão
esquerda pelas freiras. Sem possibilidade de que fosse diferente, ela seguiu
assim, a ponto de se considerar canhota de nascimento, porém se considera
como uma pessoa destra.
Podemos encontrar também posturas diferentes na sociedade como
um todo. Em tempos passados, o canhotismo foi associado ao diabo, ao mal,
ao negativo. Era proibido e um tabu ser canhoto. Com o passar dos anos,
esses conceitos sofreram modificações, e hoje em dia raramente as pessoas
canhotas enfrentam esse tipo de preconceito. Quando muito, ocorre por parte
de pessoas mais idosas ou em tom de brincadeira. Porém, esses mitos
construídos historicamente deixaram seus resquícios.
Isso é fortemente notado em nossa linguagem. Entrar na casa de alguém
com o pé direito, indica sorte. Acordar com o pé esquerdo é justificativa de
um péssimo dia. Apenas para citar dois simples exemplos.
Apesar de existirem esses mitos, há outros nem tão negativos, ou
melhor, bastante positivos, que fazem parte do cotidiano: o de que o canhoto
é mais inteligente, tem a letra mais bonita, é bom nos esportes. Nada disso é
comprovado cientificamente, porém faz parte do universo simbólico de muitos
agrupamentos sociais.
Os canhotos de hoje parecem esquecer esses preconceitos vividos no
passado e se preocupam mais em não serem iguais à maioria, destacarem-
se frente a tanta gente parecida nesse mundo, como se hoje em dia fosse
bom ser diferente. Encontramos esse aspecto na fala de todos os sujeitos
entrevistados.
Por mais que atualmente ser canhoto não seja um problema, é preciso
que os espaços educativos estejam preparados para recebê-los. Notamos a

68
recorrente queixa da falta de carteiras para canhoto em salas de aula. É
muito importante que esse direito seja respeitado.
Nas famílias, é necessário um olhar especial quando a criança começa
a dar as primeiras indicações de sua lateralidade. Deixar os objetos no
centro, para que ela escolha com que mão vai pegar, e não direcioná-la
especificamente para um lado ou outro. Permitir que a pessoa possa se
manifestar livremente em sua singularidade.
Cada pessoa constitui-se de uma maneira particular e única, por meio
das experiências que tem, das pessoas com quem estabelece relações
significativas. Poder apresentar, nesta pesquisa, um pouco da realidade do
canhoto e sua constituição foi um prazer. Saber que esse grupo de pessoas é
feliz com sua condição e se sentem prestigiados em compartilhar suas
experiências foi muito rico. Esperamos que o olhar para a pessoa canhota
seja sempre cuidadoso, pois apesar de gostarem de ser como são, não há
como negar que elas são diferentes.

69
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40, 1966.

74
ANEXO 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE

1. Você está sendo convidado para participar da pesquisa-participante: (título)


Ser diferente: dificuldades e superação de pessoas canhotas em diferentes
gerações

2. A sua participação não é obrigatória e a qualquer momento você pode desistir de


participar e retirar seu consentimento.

3. Sua recusa não trará nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador ou com
a instituição.

4.O Objetivo deste estudo é: identificar as vivências na família, escola e trabalho das
pessoas canhotas.

5. Sua participação nesta pesquisa consistirá em responder a uma entrevista.

6. As informações obtidas por meio desta pesquisa serão confidenciais e


asseguramos o sigilo sobre sua participação.

7. Os dados não serão divulgados de forma a possibilitar sua identificação.

8. Você receberá uma cópia deste termo onde constam os dados do pesquisador, e
seu orientador podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora
ou a qualquer momento.

Dados da Pesquisadora Dados da Orientadora


Nome: Priscila Lambach Ferreira da Costa Nome: Profa. Dra. Mitsuko A. M. Antunes

Assinatura: ............................................ Assinatura: ....................................................

Endereço: Rua Sampaio Viana, 238


São Paulo/SP Endereço: Rua Artur de Azevedo, 166 ap 11E
São Paulo/SP

Telefone: (11) 3884-7794 Telefone: (11) 99984-7070


e-mail: priferreiradacosta@hotmail.com e-mail: miantunes@pucsp.br

Declaro que entendi os objetivos da minha participação na pesquisa e


concordo em participar.

_______________________, de _______________________de 20_________

Sujeito da pesquisa

75
ANEXO 2 – QUADRO COMPARATIVO DAS CATEGORIAS DE ANÁLISE

BREVE CARACTERIZAÇÃO

Sujeito 1 2 3 4 5
Nome (fictício) Bianca Carolina Luísa Marcela Dulce
Idade 23 anos 34 anos 49 anos 56 anos 82 anos
Profissão Pedagoga Médica Dona de casa Advogada Dona de casa

CATEGORIAS

1. Características Considera-se Diz ser totalmente Considera-se Diz ser canhota, Considera-se
e forma da canhota, porém canhota, exceto totalmente canhota, porém escreve e destra, pois
manifestação da consegue realizar para atividades em alegando não ter come com a mão aprendeu no
lateralidade todas as atividades que é inevitável o habilidade alguma direita por colégio a não fazer
também com a mão uso da mão direita, com a mão direita imposição do pai e o uso da mão
esquerda, inclusive como seu trabalho do tio que esquerda. Porém, é
escrever de reprimiam o uso da canhota na maior
ultrassonografista mão esquerda parte do seu dia a
dia
2. Interação com O canhotismo foi O canhotismo é De uma família O pai e o tio não A família não se
a família e bem aceito e bem aceito por diferente e à frente permitiam em importava com o
reação do sujeito obteve ajuda da todos os familiares, das outras da hipótese alguma fato dela apresentar
mãe. Sua avó exceto pela mãe, época, isso era que ela fizesse o tendência a usar o
paterna tentou que se sente muito bem aceito uso da mão lado esquerdo do

76
encaminhá-la para incomodada esquerda corpo
o uso da mão
direita.
3. Escola Chegou a levar Estudou em dois Diz que, por ter Não comenta A escola não
bronca na escola colégios com “déficit de atenção” aspectos da escola. permitiu que fosse
por borrar o metodologias e e “dislexia”, a canhota, induzindo-
caderno e fazer posturas bastante distração era sua Conta que teve a a escrever e
sujeira. diferentes. Isso foi maior questão no aulas de tênis e comer com a mão
Os professores de mais relevante do colégio, e o golfe, e sentia que direita
Esportes não que o fato de ser canhotismo passou os professores
tinham paciência canhota. quase que procuravam
para explicar tudo despercebido, se incentivá-la,
ao contrário para não fosse a falta de ressaltando o
ela, o que a levou a carteiras para diferencial de ser
se adaptar e jogar canhoto, o que a canhota, apesar de
com o lado direito. incomoda bastante. senti-los um pouco
receosos para
A diferença ensiná-la
metodológica e de
postura dos dois
colégios que
estudou, também
aparecem como
pontos mais
relevantes que o
ser canhota
3.1 Trabalho É professora de Em seu trabalho de
crianças pequenas, ultrassonografista,
e o canhotismo foi necessário que

77
está presente em desenvolvesse
sua atividade diária. habilidades com a
É bastante mão direita, uma
cuidadosa com os vez que o aparelho
alunos que são fica sempre do lado
como ela esquerdo da maca,
(canhotos) e o paciente do
direito

4. Dificuldades e Falta de carteiras Teve problema com Não possui Superou o fato de Diz não possuir
Superação adaptadas em a falta de carteiras dificuldades em precisar usar a mão traumas por ter sido
diferentes espaços para canhoto no relação ao direita por forçada na escola a
(vestibulares e vestibular, com as canhotismo, imposição da ser destra
exame tesouras de escola, inclusive superou família e convive
psicotécnico) e com as colheres aspectos como bem com isso
de molho que fazer tricô e crochê
Trombar-se com o possuem o bico ao
namorado durante contrário para um
o jantar canhoto

Superou suas Trombar-se com as


dificuldades pessoas no
realizando todas as restaurante e no
atividades com a avião
mão direita também
Na época da
faculdade, fazia
incisão de parto
normal ao contrário

78
dos colegas, o que
dificultava para os
outros no momento
da sutura

Consegue abrir lata


com a mão direita,
e “se vira” em um
mundo para destros
5. Facilidades e Possui facilidade Foi destaque na Relatou possuir Não menciona Não menciona
Vantagens em fazer uso da equipe de vôlei por habilidades
mão direita ser canhota e artísticas, porém
surpreender os não sabe se está
adversários relacionado ao que
diz ser o lado
Comenta que os “criativo” do
canhotos têm a canhoto
vantagem de tomar
o café no lado da
xícara
6. Mitos e Acredita que os Já escutou falar Não foi reprimida Foi reprimida pelo Para as freiras de
Preconceitos mitos novos de que que é coisa do em sua vida, muito pai e pelo tio, o que seu colégio, ser
os canhotos são diabo, mas ignora. pelo contrário. acredita ser canhoto era caso
mais inteligentes Inclusive diz ter dó herança cultural da de polícia.
vieram acobertar os dos canhotos da Possui várias teses família árabe
velhos que época quando isso sobre o ser Seu marido brinca
consideravam era marcante. canhoto: ele é Possui teses sobre que é do demo
pecado ser organizado o ser canhoto: são
canhoto. Brinca que dizem espacialmente, mas mais sensíveis e

79
que os canhotos tem a vida têm um “sexto
Tem uma amiga são mais bagunçada; “viaja” sentido” mais
que acha lindo ser inteligentes, porém (no sentido de aguçado, e
canhota não considera isso abstração); tem possuem boa
verdade sempre um “Plano memória
B”; tem um
raciocínio diferente;
é mais criativo e
“tem um pé” na arte
7. A diferença Percebe os Nota onde há Ser canhota não Essa diferença feita Diz que nasceu
canhotos por onde canhotos em todos afetou em nada sua pelos pais, fez com canhota, porém se
passa. Se identifica os lugares, vida. que ela separasse considera destra.
com o grupo. inclusive em seu Gosta de ser as atividades Essa diferença foi
trabalho. canhota, pois impostas como importante em sua
Apesar de possuir considera um mecânicas, e as vida, pois acabou
alguns Considera uma diferencial. “naturais” como inclusive
inconvenientes diferença boa que aquelas em que se influenciando no
(como a falta de só trouxe sente ela mesma, ciclo natural de seu
carteiras de vantagens e se sente realizada desenvolvimento
canhoto no alegrias para sua
vestibular), se vida. Inclusive,
orgulha, acha legal, deseja que a filha
e gosta de ser que está esperando
canhota. É feliz seja canhota
assim. também

80
ANEXO 3 – DEPOIMENTO BIANCA

Então Bianca...me conta um pouco sobre a sua vida...

Vamos lá. Eu tenho 22 anos, nasci em dezembro, dia 19. Sou a filha mais
velha. Tenho um irmão só, tem 20 anos. Ele tem DPAC que é Distúrbio no
Processamento Auditivo Central, isso já fez uma diferença... em relação à
criação. Minha família é católica, sempre estudei em escola católica, desde
eternamente, e trabalho na mesma escola que estudei.

Você é professora?

Sou professora. Do integral, 20 crianças de 5 anos mais ou menos. Em


escola católica com preceitos mesmo. De ter que rezar, enfim.

Tradicional?

Isso! Tudo certinho. Ainda... infelizmente. De freiras.

E você estudou nessa mesma escola que você trabalha?

Estudei desde a 1a série. Antes eu estudei numa escola que só tinha


Educação Infantil, que era menor. Era bem construtivista. Mesmo que
antigamente, quer dizer, quando eu tinha essa idade, não usassem muito
esse nome, tinha cavalo, tinha horta, tinha tudo mais que pende para o lado
construtivista. Foi uma criação legal. Achei que fez diferença. Eu caçava tatu-
bola, comia terra e nunca aconteceu nada, eu me machucava e estava tudo
bem.

Que legal! E no colégio religioso você sente que é diferente?

É. Agora melhorou, mas quando eu estudei, eu sentia que era diferente. Por
exemplo, amanhã, que é 7 de setembro, tinha que cantar o hino, hastear a

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bandeira, toda aquela coisa que é mais burocrática mesmo. A gente não
entendia com aquela idade, e os meus alunos, que hoje a gente cantou o
hino, não entenderam nada o que estava acontecendo. É diferente, é
diferente. Mas foi bom porque fez diferença a criação religiosa nesse sentido.
Não pelo catolicismo, porque eu não ligo pra isso; mas em relação a ter fé.
Isso eu acho que faz diferença.

Disciplina...

É. Antes era mais. Nunca precisou levantar quando o professor chegasse.


Não era nada absurdo. A disciplina era maior em respeito, em relação ao
respeito às irmãs que são mais velhas. A gente tinha aula de religião muito
pendente ao catolicismo. Isso agora na minha idade me incomoda um pouco.
Eu acho que não deve ser assim. Agora já não chama mais ensino religioso,
como chamava, agora tem um outro nome que não sei qual é, mas é um
nome mais abrangente para poder estudar todas as religiões. Igual a gente
teve na faculdade.

E você comentou um pouco do seu irmão. Por ele ter DPAC isso mudou um
pouco a criação, pelo que você disse. Você quer falar um pouquinho sobre
isso?

Isso fez diferença no sentido, eu não lembro a maioria das coisas, mas
mesmo a minha mãe contando eu continuo não lembrando, óbvio, ele tem 1
ano e 8 meses de diferença, quando ele nasceu ele ficou 3 meses internado,
direto, sem saber o que era, enfim, e demorou muito tempo. Até hoje
ninguém sabe o que ele tinha, porque a DPAC foi uma consequência. Então
a criação foi diferente, porque eu sempre tive que me locomover muito com a
minha mãe por causa dele. Ele fez fono 8 anos. Foi bom em partes, porque
acabei conhecendo muitas coisas que não conheceria. Fono, por exemplo, é
uma coisa que nunca ia precisar pela minha condição, que acabei
conhecendo e achando muito legal. Eu até queria fazer fono, muito legal,
uma sala cheia de brinquedos. Sempre houve algumas necessidades de fato.
Eu sempre fui extremamente extrovertida e ele extremamente introvertido.

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Isso pesava pouco, de eu sempre fazer mais e ele fazer menos. Nesse
sentido. Agora...agora com 20 anos, as coisas graças a Deus caminharam –
porque também parar não ia dar- mas ainda existe essa diferença, não de
criação, mas diferença de importância no sentido de necessidades que eu
não tive. Graças a Deus.

Da atenção...

É da atenção, de ter que ficar em cima. Eu nunca, nunca, nunca –mas isso
era de mim- precisei, nunca gostei de alguém fazendo lição perto de mim, ou
andando, ou cuidando da minha lição. E o meu irmão, se ninguém ficasse
cobrando, olhando agenda, ele não iria fazer lição. Ele odiava! Eu adorava
escola! Ele odiava escola! Isso é uma diferença que faz até hoje. Até o 3 o
colegial minha mãe falava: tem prova, vai estudar, não vai estudar. E eu não
gostava. Sempre fui muito independente, fazia as coisas muito sozinha.
Agora as coisas melhoraram. Então tudo bem. [risos]

Você acha que o fato de você ter sempre gostado de escola contribuiu para a
sua escolha profissional?

Eu acho que sim! Eu acho que sim! Mas eu acho que o que pendeu também
foi que eu sempre gostei de escola, sempre tive muita facilidade, sempre fui
muito reforçada positivamente. Skinner total nesse sentido. Eu sempre fui
muito reforçada...Eu sou um ano adiantada exatamente, isso é um reforço
muito positivo. Agora eu percebo, mas antes não. Era um reforço que eu não
percebia, mas era um reforço. “Nossa, ela é um ano adiantada e é uma das
melhores alunas da sala”. Era um reforço: poxa, um ano adiantada. Agora eu
vejo que é difícil uma criança adiantada –eu tenho algumas crianças que
estão adiantadas, 5 meses, são adiantadas, isso faz diferença. É ruim em
alguns casos. Porque a maturidade é diferente. Para mim, graças a Deus,
deu tudo certo. Eu acho que contribuiu, mas acho que contribuiu também
porque eu sempre fui muito apegada com a escola que eu estudei, que é
onde eu trabalho. Extremamente apegada. Uma das coisas que minha mãe
sempre diz e que eu também acho é que essa escola, enfim com muitos

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defeitos como todas as escolas, uma das maiores qualidades da escola, ela
gosta muito de formar um cidadão consciente no sentido de afeto, um ser
humano de fato. Então, por exemplo, fazer presente de dia das mães com um
enfoque. Se você não tem mãe, vai fazer para alguém; você tem que
comemorar, você tem que lidar com isso. Os amigos sempre foram eternos.
Até hoje, há 6 anos que eu saí, são amigos de sair todo final de semana, de
ligar. Porque o ambiente da escola é um ambiente, era muito familiar, e isso
pendeu. Porque o carinho que eu criei com a escola, com a instituição de fato
é muito grande. Tanto que o esforço que faço muitas vezes no trabalho,
percebo que é maior do que eu precisaria fazer, que eu faço pela escola,
pelos meus alunos, pelo carinho que eu sinto. Isso influenciou tanto a minha
parte educativa de criança, quanto a minha formação de adolescente, essas
coisas. E eu fiz magistério lá. Então começou desde o colegial. Desde os 14,
sei lá. Isso fez diferença.

E acabou seguindo carreira...

Assim, não é o que eu quero fazer para sempre. Acho que dar aula não. Eu
não me vejo numa sala de aula pra sempre. Acho que não tenho muita
paciência. Eu sou uma pessoa de pouca paciência de fato. Eu gosto das
crianças, tal, mas eu não me vejo pra sempre. Eu sempre quis fazer
Psicologia, sempre. Mas encarar 5 anos de faculdade agora...só de pensar o
que foram meus 4 anos. É punk. Mas eu queria. Tanto que eu fiz um curso de
neuro agora. As contribuições da Neurociência para o Fazer Docente, na
PUC. Eu sempre me encantei por essa parte biológica. Eu acho isso muito
legal, como funciona, onde, o que estimula, o que não estimula, enfim, o
mestrado que eu quero ou a pós, enfim, eu queria pendente mais a essa
parte comportamental e biológica. Como, por que, e o que desencadeia. Eu
acho isso interessante.

Bom, você é canhota...eu queria saber se isso influenciou, se você se lembra


de alguma história que viveu na escola relacionada ao canhotismo...seu
irmão tinha um atendimento especial pelo Distúrbio no Processamento
Auditivo central e você também teve alguma atenção especial por ser

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canhota, ou isso passou desapercebido? Queria que você falasse um pouco
sobre isso...

Não. Isso foi, digamos, bem aceito. Tanto que histórias, graças a Deus,
histórias traumáticas, ou eventos traumáticos, ou histórias de “quando eu
tinha sei lá quantos anos”, não, não me recordo. Claro, eu tenho algumas
características que perpetuaram pelo canhotismo. Pelo contrário. Por
exemplo, até hoje eu pergunto pra minha mãe brincando...é engraçado eu
tenho muitos alunos canhotos. De uma turma de 20, tenho 5 alunos
canhotos. E é muito. Eu vejo a dificuldade de cortar com a mão esquerda, por
exemplo. E eu sei que existe tesoura de canhoto. É uma coisa que eu falo
para os pais, porque sei que eles vão sofrer, tadinhos. Eles não vão gostar de
cortar, porque vão achar difícil. E é uma coisa que...eu perguntei pra minha
mãe muitas vezes. Ela disse que nunca foi avisado pra ela que existia
tesoura de canhoto. Então ela falava que achava que a tesoura cortava nas
duas mãos. Enfim, eu só sei cortar com a mão direita. A minha mão
proeminente de cortar é a direita. Se me der uma tesoura de canhoto mesmo
na mão esquerda, vou cortar com menos habilidade, menos velocidade que
com a direita. Arremessar e chutar, mais força com a direita. E a única coisa
que ficou de criança...isso a minha mãe que me diz, porque eu não lembro: a
minha avó paterna, quando eu era criança ela trocava o lápis da minha mão,
um pouco. Não obrigava nem nada, mas ela trocava. Estava sempre na
esquerda e ela passava pra direita. Até que uma hora ela entendeu que não
precisa mais trocar. Meu pai comentava que era um fato engraçado, porque
até ele mesmo falava, que o meu tio, filho dela, é canhoto. Meu pai falava:
“você não deixou...o seu filho não é canhoto?” [ela estava] meio que pagando
pra ver. Mas uma hora ela entendeu e desistiu de ficar trocando. Mas isso eu
não me lembro. Não me lembro de bronca...porque já escutei muitas histórias
de antigamente de amarrar a mão, umas coisas assim. Nada disso. As únicas
coisas pontuais que existiam era isso. Existia sim uma preguiça de
educadores. Nem tanto na escola, mas por exemplo, eu fazia aula de
esportes. Tinha aula de tênis. O professor tinha preguiça, explicitamente, de
me ensinar o tênis com a mão esquerda. Porque é diferente. Do jeito que
você segura...era meio que: “olha o direito e troca pelo esquerdo”. Vai você

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ai, vai aprendendo aí. Mas nunca quis virar uma jogadora, nunca me
incomodou de eu trocar de mão...eu olhava como fazia, via como ficava, fazia
ao contrário. Mas acho que o pior evento que aconteceu de ser canhota foi
grande, foi no colegial, quando eu fui prestar vestibular, muitas vezes isso
aconteceu, tanto que eu precisei ser mais radical. Foi uma das vezes que fui
prestar, ainda de treineira, na UNICAMP, que era dissertativa ainda, que eu
entrei e tinha vergonha de causar na sala, de falar: “ai moço, por favor, uma
cadeira de canhoto”. Aí muda de lugar, muda aqui, ali. Enfim, como eu nunca
liguei de escrever na carteira que tinha o braço na direita, eu ficava um pouco
torta, mas não sabia quanto ia me desgastar na UNICAMP, nunca tinha feito.
Nossa! No final......A culpa foi minha... Eu que não quis pedir a troca de
carteira por vergonha mesmo. Nossa, eu vou causar! Era isso que eu
pensava! Vou mudar tudo. Mas depois da dor....enfim, eu parei a prova,
porque não conseguia mais escrever; 12 questões com a, b, c, dissertativas,
torta daquele jeito. Chegou uma hora que não dava mesmo. A partir daquilo,
e depois de ter levado uma bronca da minha mãe também, quando eu contei,
ela falou: “Bianca, do mesmo jeito que um cadeirante vai pedir um espaço no
elevador para subir, você vai pedir uma cadeira pra trocar. Você tem
totalmente o direito”. Depois disso eu ficava na porta, mostrava o RG, que eu
olhava...já pedia uma carteira de canhoto. Eu não deixava a prova começar
enquanto não me dessem uma cadeira de canhoto. Eu precisava estar bem
para desenvolver bem o vestibular. Então isso foi o pior, que eu percebi,
nossa que besta que eu fui. Não pedi e me estropiei inteira. Depois disso eu
não; literalmente aprendi a lição.
Eu gosto de ser canhota. Eu acho isso legal. E eu acho isso legal porque, por
exemplo, eu tenho uma amiga de eternas que acha lindo. Ela fala: “eu acho
lindo ser canhoto”. Eu falo: gente! Eu já levei bronca na escola, isso eu
lembro. Porque canhoto quando escreve passa em cima do que escreveu, e
mancha o papel. E eu sempre gostei de caneta que tinha muita tinta. Era uma
caneta que eu gostava muito que era muito grossa, ela demorava pra secar.
Não era tipo Bic. E eu lembro que o meu caderno ficou todo marcadinho,
azulzinho, as linhas, todo marcadinho azulzinho, e eu levava bronca. Tinha
que trocar de caneta. Enfim, eles estavam certos porque eu sujava tudo,
sujava a prova, sujava tudo. Não ficava ilegível, mas sujava. Então eu tive

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que trocar várias vezes porque eu escrevia assim, e não tinha muita culpa.
Isso eu lembro que me incomodava, porque eu não tinha culpa: está sujando,
mas vou fazer o quê? Eu escrevo com essa mão.
Acho que só. Eu tenho muitas habilidades com a mão direita, muitas. Então
consigo escrever com a mão direita numa boa, não com a mesma
velocidade, mas consigo escrever tranquilo. Chuto melhor com a perna
direita, e corto muito melhor com a mão direita. Eu acho que isso eu fui
condicionada a, inconscientemente, involuntariamente, das pessoas também.
A tesoura, como eu vi que funcionava melhor, porque com a esquerda não
cortava nada, eu me adaptei à tesoura com aquela mão. Tudo bem! Em
arremessos, em jogos, aulas de educação física, arremessar na cesta: tinha
que dar 3 passadas com a perna ao contrário do braço. Como eu ia...? Eu
não ficava trocando. Fazia como todo mundo fazia, que era mais fácil, pra
não errar. Era aquela confusão com que perna que começa que achava
melhor ir pelo jeito que ele estava explicando, do que ter que recordar –tanto
eu, quanto pra ele professor: “não professor, eu sou canhota. Com que perna
eu começo?” Achava isso tão ruim mesmo. Ai, não precisa. Também foi um
pouco culpa minha. Eu quis me adaptar desse jeito e me adaptei, me adaptei
bem, acredito. Não sofro de fazer as coisas com a direita. Pelo contrário.
Acho isso bom. Se eu canso muito com a esquerda, a direita está ali, beleza.
Isso me ajuda muito pra fazer a unha. Consigo fazer a unha com as duas
mãos perfeitamente. Per-fei-ta-men-te! Eu consigo! Isso eu acho o máximo!
[risos]

Pelo que entendi, alguns profissionais não tiveram cuidado de olhar pra você
dessa outra maneira.

Não! Não! Nunca me tacharam, nunca foi escancarado: “problema seu se é


canhota”. Nunca escutei isso. Mas era aquela coisa: aula de tênis, já era
difícil ensinar as crianças, com uns 10 anos, onde segurava, que o lado que
rege você, no caso do destro é a direita, e que se a bola vem na esquerda
pra você, você segura com a mão esquerda embaixo. Comigo tinha que ser
tudo ao contrário. Existia a preguiça de fato. Nunca me trataram mal, mas
existia aquela preguiça de: “Bianca, é só trocar”. “Tá, é só trocar”. Eles

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subentendiam que eu tinha entendido e que eu ia fazer, e pronto, acabou.
Não teve aquela atenção. Segura aqui, vou te explicar na prática. Não! Um
boca-a-boca, literalmente uma explicação e se vira aí. E o da tesoura é uma
coisa que me marca, porque eu não lembro de ter dificuldades com a tesoura
porque eu arrumei um jeito de me entender. Mas é uma coisa que eu vejo
que é uma projeção minha nos meus alunos: “pô, eles estão sofrendo”, a
tesoura come, come o papel e não corta. Por que ninguém avisa pra essa
mãe que tem uma tesoura de canhoto. Porque isso vai mudar a vida deles,
eu sei que vai. Porque eu só sei cortar com a mão direita. Se você me der
uma tesoura na mão esquerda eu não vou cortar maravilhosamente. Com a
direita é perfeito. Pô não era pra ser assim. Era pra eu cortar bem com a
esquerda, porque eu sou canhota. E não é assim, porque foi de fato um
desleixo. “Tá, está se entendendo. Está cortando”. E foi empurrando com a
barriga e foi. Acabou! E isso é uma coisa que, graças a Deus, como eu
projeto muito nos meus alunos, é a primeira coisa que eu vejo. Eu faço de
propósito, dou uma tesoura na mão deles pra ver como está. Se eles estão
cortando, como eles estão cortando. Porque nenhum dos meus alunos
chegou com uma tesoura de canhoto. Nenhum foi instruído. Então eu falo
para os pais: tem uma tesoura de canhoto, compra, vai mudar a vida dele; vai
fazer a diferença.

E eles compram?

Tem alguns que os pais falam: ai, tá bom, aquela coisa. Não que eles não
tenham me escutado, mas porque eles acham que é frescura. A maioria, os
pais são destros, que é a maioria, ele acha que está bacana. Alguns pais que
são mais atentos, e que percebem em casa algumas dificuldades, são bem
abertos. Alguns vêm até perguntar. Por exemplo, eu sempre quis aprender a
fazer tricô com a minha mãe, fazer cachecol. E eu aprendi a fazer tricô como
destro, porque a minha mãe não sabia me ensinar como canhoto. Se algum
canhoto me pedir pra explicar vou explicar como destro. Tadinha, minha mãe
trocava as mãos, se embaralhava toda, mas não conseguia explicar. Essa é
uma coisa que eu vejo. O canhoto se adapta ao destro. Claro, pelo destro ser
maioria. O destro nunca, nunca não, mas muitas vezes não se dá o trabalho

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de se preocupar com. Uma vez estava com um problema, porque a minha
mãe comprou uma espátula pra bolo, linda, pagou um milhão na espátula,
que não sei o que, e a espátula era pra destro. Ela tinha serrinha, só que só
cortava pra direita. E eu fui cortar o meu bolo de aniversário e não cortava.
Eu falei: não! É um absurdo isso! E eu mandei um e-mail pra empresa,
falando: e aí, o que eu faço? Me enrolaram, me enrolaram, me enrolaram...e
aí? Eu não estava pedindo uma entrevista, o meu dinheiro de volta, e só
estava contanto pra eles que isso poderia acontecer, e que era errado.
Coloca a serra dos dois lados, pronto! Olha que difícil! Me enrolaram, me
enrolaram, me enrolaram, e tá bom!
Eu vejo que o canhoto não “luta” muito, [entre aspas] porque não é uma
causa nobre. Ele não vai muito atrás das coisas. Ele se adapta e fica por isso
mesmo, muitas vezes. E foi a primeira vez. Eu fiz isso mais pra ver o que eles
iam me responder. Pô, eu percebi! E me enrolaram: “ah, é verdade, mil
desculpas”, e acabou. Mil desculpas, e ficou nisso.

E abridor de lata?

Eu abro com a esquerda e com a direita também eu abro.

Aquele clássico?

É. Com a esquerda e com a direita.

Eu não consigo com a esquerda. Eu abro com a direita.

Com a esquerda e com a direita. Mas nisso eu sou muito orgulhosa. No


sentido de orgulho ferido mesmo. Pô, eu sou canhota, isso não é anomalia
nenhuma. Eu vou tentar, vou conseguir e acabou! Eu sou persistente demais
até. Até orgulho meio cabeça dura. Algumas coisas, claro, não vou ficar me
matando pra cortar com a mão esquerda, que eu me adapto com a direita. É
um detalhe muito funcional. Abrir uma lata. Exatamente. Eu vou tentar. Claro,
não me matei para conseguir, mas consigo abrir com as duas mãos
tranquilamente. Consigo. Mas é difícil. As pessoas não conseguiram me

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ensinar. Me ensinaram com a mão direita, e vi o processo e passei pra
esquerda. Então o ensinar é diferente, para as pessoas destras.
Principalmente vejo pela minha mãe que era a que mais tentava me ensinar.
Ela me ensinou com a direita a abrir lata, eu vi o processo e passei pra
esquerda. Ela não conseguia, se encasquilhava toda, era um caos. Ai eu falei
pra ela que era melhor desistir. Que eu me entendia daquele jeito. [risos]

Você se adaptou muito. Você faz muita coisa com a outra mão por adaptação
própria.

Faço. Faço porque eu gosto das coisas rápido. Então até eu tentar....está
funcionando com a direita? Faz com a direita. Eu sei que com a esquerda eu
vou escrever. Eu sei que o que me rege é o lado esquerdo; que eu sou
canhota enfim. Mas já que eu preciso pra ontem essas coisas, vai com a
direita que está indo. Algumas coisas, por questão de orgulho mesmo, vou ter
que conseguir com a esquerda. Se existe e funciona um abridor, eu vou
conseguir. O abridor tradicional eu consigo, mas tem um abridor lá todo
tecnológico que você prende na lata...não...esse só com a direita. Esse só vai
com a direita.

Sendo que com esse teoricamente a gente poderia fazer...

Exatamente. Eu não consigo. Esse eu não me matei de tentar igual ao outro,


mas o tempo que tentei, não consegui nem encaixar no negócio. Aí eu desisti
e abri com a direita. Porque eu precisava abrir, entendeu? Como eu
precisava rápido eu não ia: ah, passar a tarde: vamos tentar abrir com a mão
esquerda! Não foi o objetivo de vida. Esse eu não consigo, por exemplo.
Esse não dá pra fazer.

Achei incrível essa sua adaptação. A imitação e o ambiente influenciaram


você.

Sim.

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A gente não percebe isso com todo mundo. A influência do ambiente foi
absurda na sua adaptação, maneira de conduzir o canhotismo. Achei isso
muito legal.

Minha mãe sempre deu força. Você é canhota. Então é canhota e acabou.
Não tem que ser, ficar fazendo as outras coisas. Eu escrevia mal com a mão
esquerda; mal no sentido de garrancho. Uma letra horrível, mas, claro, tinha
7 anos, enfim. E é uma coisa que os professores pegavam no meu pé, muito.
E a minha mãe ficava incomodada com aquilo. Nenhum dos professores
falou: é, porque ela é canhota. É difícil você pegar na mão de um canhoto
para ajudar ele a escrever. É uma coisa que a minha mãe sempre falou: tá,
não consegue...minha mãe comprava adaptador para encaixar dedo; tudo a
minha mãe buscou para que eu ficasse o mais bem sucedida possível,
porque eu não tinha culpa. Na verdade não é um crime, enfim essas coisas.
Nisso minha mãe super me apoiou. No sentido de beleza, você é canhota,
vai...não tem problema nenhum. Qual é o problema? Porque eu já escutei
muitas vezes, até hoje eu escuto, estou escrevendo, alguém meio conhecido,
namorado de alguém, enfim: “nossa, você é canhota?”. Como se isso
fosse...sei lá...”nossa, você tem olho verde?”. Eu falo: sou canhota [risos]! “É
que é estranho ver alguém escrevendo com essa mão; parece que está
errado”. Já escutei isso várias vezes. É, eu sou canhota. Eu só falo isso. É, tá
bom, eu sou canhota[risos]. Basta por aí.

E você gosta de ser canhota?

Eu gosto de ser canhota. Eu acho isso legal. Sei lá, eu gosto porque eu acho
que é um diferencial. Eu gosto de ser canhota. Antes eu não gostava tanto
nessas situações de vestibular, enfim, porque eu não queria causar, gerar
problema. Mas no geral eu gosto muito de ser canhota. Acho isso legal. O
que me incomoda de ser canhota, uma coisa que eu acho engraçado: se eu
sento com o meu namorado para jantar, tenho que sentar do lado esquerdo
dele. Porque se eu sentar do lado direito dele, a gente se tromba o jantar
inteiro. E é um caos. E eu sempre escuto assim: “você que é estranha“. É
uma brincadeira. A culpa é minha? Como se isso fosse um crime, como eu

91
falei. Inconscientemente eu já estou condicionada a isso. Por exemplo, eu
sou a mão para ele, sempre ele estando do meu lado esquerdo, e eu sempre
do lado direito dele. Que é o único momento que a gente “junta” as mãos que
a gente usa. Porque o resto, tudo eu faço do lado esquerdo dele. Para comer
eu tenho que sentar do lado direito dele. Porque se não a gente se tromba,
eu trombo. Não é só com ele. É uma confusão. Isso eu percebia. Escuto
comentários até hoje. Uma vez eu fui na balada de relógio e o relógio fica na
mão ao contrário do destro. Lembro que um menino olhou e falou: “nossa,
você é canhota, né?”. Levei o maior susto. Gente, não estou escrevendo, não
estou fazendo nada. Ele disse: “é porque seu relógio está na mão contrária”.
Falei: Nossa Senhora, que medo. Falei, é eu sou canhota! [risos]. Isso eu
percebo, alguns detalhes de sentar à mesa, de jantar, que colide. Aí, tá bom,
encostei aqui. Ou, por exemplo, uma coisa que aconteceu; agora que eu
lembrei! Quando fui fazer a bendita da coisa para dirigir, lá, o exame
psicotécnico, aquelas baboseiras, enfim, faz pauzinho, enfim. Entrei numa
sala que tinham 6 carteiras, as 6 eram de destro. Falei: tudo bem, vou pedir
uma de canhoto. Não tinha uma de canhoto. Moço, como assim, você quer
que eu faça pauzinhos retos em uma carteira de destro? “Ahh, isso eu vou
anotar aqui. Vou anotar essa observação”. E aí eu fiquei pensando...nem vou
arrumar encrenca. Fiz os pauzinhos na mesa de destro, coloquei o rabo no
cavalo, todas aquelas histórias, na mesa de destro. O lugar que está vendo
se eu tenho condições de dirigir, psicotécnico, que tem um nome Nossa
Senhora, não tinha uma cadeira de canhoto para escrever. Pauzinho reto. Aí
fiquei pensando: depois bate o carro, acontece essas coisas, ninguém sabe
por quê. Mas tudo bem.

Ainda não é bem adaptado. Talvez eles nem tenham se atentado a isso.

É engraçado. Eles não se atentam, e o canhoto se atenta duplamente, eu


acho. Porque o canhoto vê: eu sou canhoto, mas o destro vai fazer desse
jeito. Então, por exemplo, agora que você falou eu lembrei: quando a gente
era criança falavam: vamos fazer o sinal da cruz. Que mão usa para fazer o
sinal da cruz? “A mão que escreve”. Não é a mão que escreve! Eu lembro
que eu falava: é a mão que não escreve. Eu tinha mil associações, porque eu

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tinha que fazer o lado oposto sempre. Que lado que é? “Ah, é o da mão que
escreve”. Não é! Escolhe outro referencial, outro ponto de referência. Está
todo mundo perto de uma janela: “ah, é do lado da janela”. Porque daí eu vou
entender. Lembro que eu fazia a mão que escreve e tinha que trocar sempre.
Tá, a mão que não escreve. Tá, tá bom. Isso é uma coisa que exatamente,
eles....como é a palavra?

Universalizam?

É mais ou menos isso. Eles querem que o canhoto se adapte porque ele é
minoria, e o destro está vivendo feliz. O que na verdade não deveria
acontecer. É lógico, o destro não precisa fazer....Mas precisa ter essas coisas
para facilitar. Porque acaba dificultando, na verdade. É um problema, uma
coisa desnecessária. Quer escrever? Por isso eu sou contra –não por ser
canhota, porque eu acho errado mesmo- uma carteira que só tem um pedaço
do braço. A carteira de escola quadradona, retangular, ela permite que você
sente direito, se apoie, escreva com a mão que você bem entender, que você
faça o que for preciso. Do que aquelas carteiras...Por exemplo, na faculdade.
Cada sala tinha 1 carteira de canhoto. Era um tal de transportar carteiras de
canhoto das outras salas, ó...você precisa fazer o quê? Deixar por escrito: ó,
nessa sala existem 3 canhotos. Poxa! Não! Acho isso tão desnecessário. É
um trabalho a mais. Deixa assim...O número é menor mas ele existe.
Em 20 alunos eu ter 5 [canhotos] é um absurdo. É um absurdo no bom
sentido. São muitas crianças, de 20. Sempre que eu estudei, por muitos anos
eu era a única canhota. Então eu acho muito legal. Eu vejo, sabe quando eu
vou ajudá-los a escrever...porque eu tenho que pegar ao contrário eles. Eu
sento de frente para eles, é engraçado eu pego com a mão direita: “nossa,
fazia tempo que eu não fazia isso”. Porque com os destros eu consigo pegar
com a mão esquerda, porque eu sento de frente, estou ao contrário. É
engraçado; eu falo: canhoto, canhoto. Eu gosto disso. Eu vejo que...é
engraçado que eles falam: “eu sou canhoto Tia”. E eu reforço isso neles. É
você é canhoto. E a Tia também é canhota. Eu falo num tom positivo para
que eles não se sintam estranhos, diferentes. Porque eu sei que muitas
vezes isso acontece. Aí, todo mundo faz com essa mão, porque eu tenho que

93
fazer com essa? O chute mais forte: as crianças, maioria, chuta mais forte
com a direita, e vai lá o canhoto chutar com a esquerda, eu já escutei isso
dos meus alunos: “você está chutando errado”. Está chutando errado? Está
chutando com a perna que ele consegue chutar, ué. Isso eu reforço muito
positivamente os meus alunos, claro, não para eles saírem marchando a
favor, mas para que eles se entendam, e que sejam felizes sendo canhotos.
Que não tenham problema nenhum.

Você falou que seu tio é canhoto...

Na minha família tem muitos. Muitos. Do lado do meu pai tem só o meu tio,
irmão do meu pai. E meu pai diz que –não sei até que ponto é verdade ou
não- que a minha avó era para ser canhota. Essa avó que trocava o lápis da
minha mão. O avô dele, meu biso, naquela época achava toda aquela
história, que era pecado, enfim, e fez a minha avó ser destra, e ela é destra e
acabou. Ela, eu já percebi, faz muitas coisas com a esquerda. Eu até acredito
que ela tenha não só a facilidade, mas a propensão para o canhotismo.
Porque eu sei que você já nasce predestinado a... Mas que foi mudado ali,
mas que ela se entende com o esquerdo. Por exemplo, pelo meu lado
materno eu sou canhota, tenho um primo canhoto, tenho mais um tio
canhoto, e mais uma prima canhota. Na minha família tem bastante gente.
Na minha família razoavelmente tem bastante gente. Tem muitos. São 14
primos, de 14 tem 3, é um bom número. É igual os meus 5 para 20; tem
bastante. E na família também está tudo beleza, tudo lindo. Mas até a minha
família às vezes, quando está todo mundo, eu olho meus primos: “nossa você
é canhota”; “você é canhota?”. Gente, eu sou da sua família, e eu sempre fui
canhota. Não mudei aqui, agora [risos]. É que você não percebeu. Engraçado
que é uma coisa que chama atenção das pessoas.

Você não acha que chama mais a nossa atenção, de quem é canhoto, do
que deles?

Eu percebo estritamente quem é canhoto. Por exemplo, se eu estou no


restaurante e o garçom vem me atender, e está com a comanda na mão; isso

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já aconteceu várias vezes, eu falo para o meu namorado: é canhoto! Porque
é intrínseco em mim. Ele fala: “tá”. Eu faço um comentário avulso. Mas eu
percebo estritamente quem é canhoto, quem não. Mas, eu percebo que as
outras pessoas percebem alguém que tem algum vínculo, que conhece, não
um desconhecido como eu. Eu vejo num desconhecido. Eles vêm sei lá, em
alguém da família, conhecido. Porque, sei lá, está na cara deles, escrevendo,
fazendo qualquer coisa. Eu enxergo em qualquer um. Enxergo se é canhoto,
porque isso, sei lá, é o detalhe que levo em conta. É inconsciente. Não sei
por que, mas eu levo. Em tudo eu vejo. Esses dias uma amiga pediu para,
ela gostava de um menino, cadê a vida do menino? Ela não tem Facebook,
então eu fui caçar a vida do menino. Em 30 minutos eu sabia da vida do
menino E que ele era canhoto. Tinha uma foto que ele estava com um
caderno e ela falou: “eu nunca ia perceber isso”. Mas eu percebi! [risos]. Eu
olho isso. O do relógio eu não sei que mão que é, mas se está com uma
caneta na mão eu vou perceber, e vou falar que é canhoto. Eu percebo isso.
De fato.

Eu percebo muito. Têm os famosos mitos: o mito antigo que é o do mal,


ligado à bruxaria. E tem o mito novo, que o canhoto é mais inteligente, que
tem a letra mais bonita. A gente escuta isso com frequência. O que você
acha disso?

Acho uma besteira gigante! [risos] Letra bonita? Faz caderno de caligrafia a
vida inteira que a sua letra vai ficar bonita com o pé, com a mão, enfim [risos].
Na verdade, eu acho que esses mitos novos chegaram para encobertar os
velhos. No sentido de: “não gente, a gente não acha mais que é pecado, a
gente acha até que vocês são mais inteligentes”. Parece história para
criança, sabe? Para desfocar a atenção. Como foi muito negativo, estão
tentando colocar na balança para dar uma equilibrada. Não! Nada de mitos,
nada dessas coisas! O que eu acho mágico de ser canhoto é que meu
cérebro é ao contrário; as coisas funcionam ao contrário. Então, por exemplo,
na aula de neuro que a gente estava vendo o cérebro, a gente pegou no
cérebro, a professora estava explicando o que mandava, aquela coisa do
direito, esquerdo, e ela contando um caso de um homem que a lança entrou

95
na cabeça... ela falou que ele mudou de comportamento... ela contou várias
histórias dessas, acredite se quiser, quase isso, e aí eu joguei a pergunta: “e
se ele fosse canhoto? O que teria afetado?” E ela me olhou com uma cara:
ninguém me fez essa pergunta. E a pergunta que ela me fez, retrucando a
minha pergunta –que ela não respondeu- foi: “você é canhota, né?” Eu ri. Ela
falou: “é claro. Um destro nunca faria essa pergunta”. Ela ainda brincou. Que
ela é neuro, super legal. Eu falei: sou canhota, isso me chama atenção. O
que ia acontecer se a lança... ela explicou o negócio da lança, que entra, que
sai. Eu indaguei: quer dizer que se entrar, vai mudar ao contrário? Assim, é
um pouco mais fundo que a mão que você escreve. Claro, nossa, rezo para
que a lança entre ao contrário. Nada dessas histórias. Mas é mais fundo.
Acho isso legal. Não é só uma característica como: seu cabelo é castanho.
Poxa, tem uma parte biológica aí. É uma parte que me instiga. Eu nasci
“diferente” que a maioria, e isso muda mesmo de fato. E eu acho isso legal.

Tem interesse em estudar mais?

Ahh, Pri. Acho que teria mais interesse se não fosse tão bem resolvida na
verdade. Como em muitas outras coisas... se eu tivesse uma curiosidade
extrema, extrema, extrema. Mas eu não tenho. Acho que a maioria das
minhas dúvidas mais existenciais foram sanadas. Depois do curso de neuro
eu perguntei tudo o que eu podia, e não podia, e muitas coisas eu perguntei
sobre o canhoto mesmo. Porque ela começou a falar que atingia, não sei o
quê lá. Que mexia na ínsula ou no lóbulo frontal, não sei o que, e eu sempre
indagava se com o canhoto isso ia ser diferente, pela parte da aprendizagem.
Ela foi sanando as minhas dúvidas, em relação às minhas perguntas, depois
que a gente discutiu esse negócio de ser “ao contrário”, inverso. Isso me
extasiou, por enquanto. É uma coisa que posso falar: “sou canhota”.
Eu gosto. Eu não gosto tanto do meu nome como eu gosto de ser canhota.
[risos] Eu não gosto muito do meu nome, mas gosto de ser canhota. [risos] É
diferente. Melhor que Charlote, que o meu pai queria colocar. Rezemos pelo
Bianca. [risos]. Mas eu me orgulho. Não me orgulho do tipo: uhu! Vamos
fazer uma passeata. Eu acho legal. Ser diferente. Eu gosto disso.

96
E esse ano tive uma experiência muito especial, pois tenho uma criança de
inclusão. Tem 8 anos, está no primeiro ano, adora assistir a Casa do Mickey,
enfim a mentalidade dela é super regredida, e ninguém tem o diagnóstico
dela. Que é o que me mata. Com um mês de idade, segundo... ela é gêmea
de uma irmã “perfeita”, tem todas essas questões, e ela não tem a escolha da
mão ainda, porque ela, com 1 mês de idade, ela teve meningite. Ela nasceu
“perfeita” igual a outra irmã, então foi uma coisa bem complicada. Ela entrou
na escola esse ano, enfim, ficou sequela na fala, visão, na coordenação
motora, ficou muita sequela, ela passa o tempo todo com a mãozinha
balançando, o tempo todo. E eu me apeguei muito a ela, e me apeguei mais
ainda porque eu queria descobrir, como eu sei que existe, se ela é canhota
ou destra. Eu sei que tiveram muitos problemas biológicos pela parte
cerebral, que isso também pode ser afetado, mas isso é uma coisa que me
instiga. Porque querem que ela escreva, mas ela troca muito de mão como
criança que ainda não está acostumada, muito pequenininha. Como eu vou
ensiná-la, que a letra do nome dela é M se eu não sei que mão ela usa? Se
eu coloco na mão direita ela troca para a esquerda e, às vezes, se coloca na
esquerda, ela troca. Isso me incomoda, porque os pais querem que ela seja
alfabetizada, no tempo dela, só que nunca perceberam, ligaram para isso. E
tem que ligar na minha cabeça. Pô, claro! Você quer que ela seja
alfabetizada, que aprenda escrever as letras pelo menos, tem que ver a mão
que ela tem facilidade, porque ela já tem tantas dificuldades. E nunca ligaram
muito para isso, sabe? Ela é uma criança que me instiga. Eu sento, eu olho,
eu rodopio, eu faço o que precisa, dou papel pra amassar, para ver
coordenação, motricidade fina, ver se alguma coisa sai dali. Olha, é essa
mão, aquela mão. E eu não cheguei a uma conclusão ainda. Ela está comigo
há quase um ano. Ela entrou em fevereiro. Ela me instiga nesse sentido,
porque eu acho que não tem como explicar a fazer o M. Vou ficar ensinando
tudo com as duas mãos? Poxa, já tem tantas dificuldades. Vou ficar falando:
o M com essa mão é assim, o M com aquela é assim. Poxa, não dá certo. Eu
queria descobrir primeiro que lado é ali, para falar: poxa, ela tem facilidade
por esse lado, então vamos por esse lado. Amassar bolinha por exemplo, ela
não consegue. A maioria dos movimentos de motricidade fina ela não
consegue. A mãozinha não para. E a visão, enfim, tem muitas questões

97
envolvidas. E é uma coisa que eu queria descobrir. Muito. Porque é o que eu
falei para os pais: tudo bem que vocês querem que ela se alfabetize, ela
escreve o nome com muita dificuldade, mas cada hora é com uma mão. É
totalmente regido por mim. Eu não pego na mão, mas falo: coloca o giz no
papel, sobe, desce, sobe, desce. Ela mais ou menos sabe o movimento do
M. Eu narro. Sobe, desce. Por exemplo, o E do nome dela. Faz um tracinho,
agora vem perto da Tia Bianca, eu fico no lugar para ela...ela não tem noção
que o E vai ter os 3 pauzinhos para direita. Ela não tem essa noção. Para
esse lado...não tem! Claro que não vai aprender as letras, se ela nem sabe
com que mão ela vai escrever. Isso é uma coisa que me incomoda. Graças a
Deus ela faz todos os tratamentos possíveis de terapia ocupacional,
psicopedagoga, tem muitos requisitos para uma melhora, mas ninguém se
prendeu a isso. Li todos os relatórios, mas nenhum fala sobre ser destra ou
canhota. Pode ser que alguma coisa tenha alterado no cérebro que...porque
ela não tem um diagnóstico. Ela teve com um mês meningite, acabou, nunca
mais nada. E isso é uma coisa que me instiga. E eu sei que me instiga
porque eu sou canhota. Se eu fosse destra, talvez não apreenderia. E ela é o
meu xodó. Ela é tão fofa. Eu gosto dela!

Novos olhares sempre contribuem muito...

Eu acho que todo mundo se descobrisse a sua lateralidade ia ajudar. A gente


não sabe o que aconteceu. Faz ressonância, nada. A gente não sabe o que
desencadeou. Que nem, por exemplo...Os pais e os médicos me disseram:
tudo nela é uma surpresa. Não sabiam se ela ia andar e falar. Então ela falar:
nossa! Ela comer sozinha...tudo é uma surpresa. Ela almoça comigo, porque
fica no integral. Tem dia que ela almoça com uma mão, tem dia que almoça
com a outra. É engraçado, que os pais querem que ela seja alfabetizada,
graças a Deus que no tempo dela, mas ao mesmo tempo existe essa
cobrança. E é engraçado, tudo bem, eles cobram mas tem que entender o
que estão cobrando. Nas condições. Calma, tudo bem. Claro que ela tem que
ser alfabetizada. Se tiver que ser aos 15 anos os pais vão falar, a gente vai
esperar; agora se o pai falar: “ano que vem”. Não vai rolar. Ela tem uma
coordenação que eu acho legal. Ela anda no banco sueco. O que eu acho

98
legal que o que atrapalha ela andar no banco sueco não é a coordenação, é
a visão. O que eu já acho o máximo. A minha preocupação é a coordenação.
Ela pula com os dois pés, com um pé atrás do outro. Graças a Deus. O
problema é que tudo envolve essa parte da coordenação.

[pausa]
Quer falar mais alguma coisa? Que você se lembre?

Não Pri. Eu fui te contando....

Foi uma surpresa. Gostei! Queria que você finalizasse com uma frase. Isso
não estava no script mas eu quero. [risos] É. Vou te dar o comecinho. [risos]
Ser canhota é...

Que difícil. Posso pensar um pouquinho? [risos]

[pausa]

Vou ter que resumir? Não sei.

Não...da forma que você quiser. O que vier à sua cabeça.

Ser canhota para mim é uma questão de orgulho, principalmente por ser
minoria, ter me dado tão bem com isso, e ter conseguido me adaptar tanto
para o lado que é minoria quanto maioria. Acho que é isso. Sou feliz sendo
canhota. [risos]

99
ANEXO 4 – DEPOIMENTO CAROLINA

Gostaria que você me contasse um pouquinho sobre a sua vida...

Bom, meu nome é Carolina, tenho 34 anos, sou casada, há 2 anos, estou
grávida de 15 semanas de uma menina que vai se chamar Sabrina, trabalho,
sou radiologista. Trabalho no Hospital A e no Hospital B. Faço ultrassom e
tomografia. E amo o que eu faço de paixão. Faria tudo de novo se
precisasse. Desde pequenininha eu já sabia que queria ser médica. Meu pai
é médico e eu sempre me espelhei nele. E eu nunca quis ser outra coisa na
vida. Sempre quis ser médica. E desde pequenininha ia para o hospital com
ele. Sabia que ia ser. Prestei medicina, entrei. Virei radiologista totalmente
por acaso, porque eu nunca tinha pensado em ser radiologista. Tive uma
chance e amei. Amo de paixão. Trabalho com o maior amor do mundo. Nasci
pra fazer isso. Nasci pra ser médica.
Estudei quando era mais nova no Escola X4 que era um colégio bem liberal.
Depois, fui para o Escola Y5 que era um colégio totalmente oposto. Mas eu
gostei muito dos dois. De lá fui pra faculdade. Esquema totalmente diferente.
Tive várias amizades. Da Escola X são amigos até hoje, da Escola Y
também. Muito diferente. Na Escola Y tudo certinho, e na Escola X tudo
bagunçado, mais tranquilo, mais formação de pessoas.
Na Escola Y é tudo estudo, estudo, estudo. Mas conheci o meu marido lá. Ele
era da minha sala. A gente fez o mesmo colégio, o mesmo cursinho e a
mesma faculdade tudo sem querer. Fomos entrando no mesmo lugar.
Começamos a namorar só no fim da faculdade. Ele é otorrino. Era meu
amigo, sentava do meu lado. Na Escola Y eram cadeirinhas de dois. A gente
era super amigo mas não tinha nada. Só na faculdade a gente começou a
namorar. No final.

E como era lá na Escola X? Me fala...

4 Escola para as camadas média- alta que até pouco tempo ia somente até os Anos Finais do
Ensino Fundamental, de Pedagogia Liberal
5 Escola para as camadas média- alta de Ensino Tradicional

100
Minha mãe fala que quando eu era pequena, era muito tímida. Não sei se é
por que ela me mimou muito. Ela ia me colocar na Escola D, mas achou que
era um colégio muito grande e que eu ia ficar muito reprimida pelo contexto
da escola. Ai me colocou lá (Escola X). Tinha um primo que estudava lá.
Achou que ia me soltar mais. Fez o efeito total que ela queria. Agora, onde
ela me colocar eu fico bem. Era um colégio menor, menos gente. Era
completamente diferente dos outros colégios. A gente via que era uma
educação diferente. Muito voltada para o ser humano, formar pessoas boas.
Totalmente voltado pra isso. Era ótimo, bem tranquilo. Não tinha grandes
dificuldade de estudo. É que eu sempre estudei, mas era tranquilo. Fazia
muito esporte na escola. Era bom demais. Criança, né? Uma delícia. Podia
fazer tudo. E era tudo diferente. Lembro de um negócio de base, que nenhum
lugar tinha. Só lá. Chamava “Base”. Eram uns quadrados, como se fosse
uma tabuada do 2, do 10. Eram quadradinhos com umas divisões, não
lembro como a gente aprendia. Eram barrinhas e cubos. Um método de
ensino totalmente diferente de tudo.
Quando fui para a Escola Y senti muito. Chegou lá e tive que fazer aula
particular. Mudou da água pra o vinho. Eu sofri bastante. Na Escola X era
muito bom. Mas estou esperando para colocar a Carol na Escola D. Queria
colocar lá porque é do lado de caso. Pensei que não preciso ser igual minha
mãe. A Escola X é super longe. Lá no Alto de Pinheiros. A gente ia todos os
dias. Mas se puder estudar na esquina de casa, é o melhor. Lá era ótimo.
Muito, muito bom. Amei de paixão. Tenho várias amigas. Várias madrinhas
de casamento que conheci lá. Amigas até hoje. Era isso. Formar pessoas.
Super legal. Bem diferente da Escola Y, né? Fui no Colegial, e outra vida.
Agora vamos estudar para o vestibular. Mas foi bom até, porque fiquei
bastante tempo na Escola X. Por bastante tempo tive uma vida mais
tranquila, e depois eu fui. Foi bom porque fez muito da minha personalidade
lá (Escola X) Eles formam com esse intuito. Não sei dizer o que eles fazem
com a gente, eu não lembro. A gente tinha uma coisa que chamava TP,
trabalho pessoal. Tínhamos Português, Ciências e TP. Todo dia fazíamos TP.
Como se fosse a lição de casa lá. 50 minutos, ou sei lá quanto era pra fazer o
trabalho de casa lá. Era tudo pra você ter uma vida boa fora. Sair e não ter
lição, não precisava fazer nada. Bem assim. Mas eles controlavam todo

101
mundo, todo mundo acabava estudando de qualquer jeito, tinha que fazer de
qualquer jeito. Era ótimo. Muito, muito bom. Na Escola Y no final foi bom para
aprender que a vida não era tão fácil assim. Eu chorava, chorava, chorava no
começo. Falava pro meu pai que queria ir embora. E ele: não, calma, vai ficar
tudo bem. Foi passando o tempo e acostumei. Acabei conhecendo muita
gente, acostumei que teria que estudar, muita prova, muita coisa.
Fui morar nos Estados Unidos no meio do 2o colegial. Foi ótimo também. Fez
toda diferença na minha vida. Sempre quis ir. Fui. Tive uma proposta pra
jogar vôlei lá. O que entra muito o meu canhoto. O super diferencial que tinha
lá era isso. Jogava muito bem, e era canhota. Uma coisa que assim: sempre
fez diferença na minha vida! É muito diferente você jogar com uma canhota.
É muito ruim para os outros. Quase ninguém é canhoto. Eu era atacante,
então sempre jogava com essa mão (esquerda) e as pessoas não sabiam.
Depois até sabiam, mas as pessoas não estão acostumadas. Todo mundo ia
pra uma mão e eu ia com a outra.
A gente faz tudo diferente mesmo. Jogava muito bem isso, e era uma das
coisas que fazia muita diferença. Eu sempre fui alta, jogava bem e ainda era
canhota. Era muito ruim pros outros times, sempre. Fui pros Estados Unidos.
Era um time ruim, e eu era a melhor. Saía no jornal toda semana. Só tinha
eu. Com o uniforme da escola, tal. Recebi uma proposta pra ficar lá jogando
numa Universidade. E minha mãe não deixou. Fui pra ficar uns 6 meses, e
iria ficar uns 3 anos. Minha mãe não deixou. Por mim eu teria ficado. Já que
não deixou, nem fiquei com esperança.
Voltei. Terminei o Colegial, entrei na faculdade, e daí entra aquilo tudo que eu
já te contei.

Você contou que ser canhota fez uma diferença no esporte...

Nossa Pri. Sempre. Muita. Desde aqui, Aqui eu jogava também antes de ir,
jogava em clube, era federada. E era uma coisa que fazia muita diferença.
Sempre foi muito bom. Para os outros era muito ruim eu ser canhota. Tinha
uma vantagem. Era uma das grandes vantagens que eu tive em ser canhota.
É engraçado. Apesar de a gente ter muita coisa que é meio ruim pra nós,
temos muita coisa boa. Eu gostaria que a minha filha fosse canhota. Eu

102
gostaria. Eu acho que a gente é diferente, chama a atenção. Eu vi você
escrevendo e “nossa, ela é canhota”. Eu sabia que você era, mas esqueci.
Sempre que eu vejo um canhoto escrevendo eu: “ah, você é canhoto”. E todo
mundo sempre gosta. Não sei...sei lá. Dizem que a gente é mais inteligente,
né?
Eu adoro. Acho que a gente é meio diferente mesmo. Eu gosto de ser um
pouquinho diferente dos outros. O normal, mas um pouquinho diferente.

Como que é...quando você vai a um restaurante repara? Assiste um filme,


repara?

Você já viu o negócio da xícara? Que falam? Alguém me falou isso


relativamente há pouco tempo. Que a gente sempre toma o café ou sei lá o
que for do lado limpo. Porque todo mundo pega com essa mão (direita) e
toma aqui. E a gente não. Toma do lado que ninguém toma. É verdade. É o
lugar mais limpo da xícara. Se a pessoa não limpou direito, o lugar que vocês
vão tomar é sempre o mais limpo. Porque ninguém toma. Só nós. Gente, que
maravilha! Ahhhhhh (respira fundo). Essa é uma vantagem interessante.
Você toma num restaurante, não sabe quem limpou, tal.
Mas a gente sofre um pouquinho, né Pri?
Não muda nada na vida, mas assim as colheres...Colher de molho. Aquela
colher que tem um biquinho. Se a gente pega com a nossa mão o biquinho
fica pro outro lado. Tem uns transtornozinhos, mas na prática não muda
nada. Você já parou pra pensar no ultrassom? Comentei que você vinha, e
uma amiga falou: “mas você faz ultrassom com que mão?”. Porque a gente
só faz ultrassom com a mão direita, né. Quando eu entrei meu pai falou: “e aí,
como é que você vai fazer?”. Eu falei: sei lá. Achei que talvez tivesse um jeito
de mudar a maca. Mas não tem. Eu aprendi! Aprendi a fazer com a mão
direita e não sei fazer com a esquerda. A gente vai se adaptando. Fico super
bem. Ninguém nem repara. Faço o que tenho que fazer normal.
Mas na faculdade deu um pouquinho de problema. Por exemplo, no parto
normal a gente tem que fazer um corte para ajudar o bebê sair. E aí quando
eu fazia, fazia o corte assim (/) e o destro fazia assim (\). Só que se eu

103
fizesse o corte e não conseguisse fechar, o destro não conseguia fechar,
porque eu tinha feito de um jeito....
Isso era um problema pra todo mundo. Era horrível pra eles. E eu precisava
cortar do jeito que eu sabia se não conseguiria cortar. Acho que foi o único
problema na faculdade mesmo que eu tinha era com isso. O que tinha que
fazer às vezes era deixar eles cortarem. Ai eu dava um jeito de fechar.
Porque se não era um transtorno quando eu cortava para eles fecharem era
horrível. E era quem sabia mais era quem tinha que fechar tudo direitinho.
Acho que na faculdade foi a única coisa mesmo que passei.
Quando vim pra cá tive que me adaptar a fazer tudo com a mão direita.
Ninguém nunca me deu opção. E paciência. A gente acostuma.
Quando comecei a dirigir, pensei: será que vai ser mais difícil pra nós? Por
que não é a mão certa? Mas não tinha outra opção. E a gente vai melhor.
Só voltando um pouquinho com o negócio do jogo, quando jogava eu tinha
muito mais habilidade com essa mão (esquerda). Quando as pessoas
reparavam que eu era canhota, conseguia jogar muito com a mão
direita...Nunca foi igual à esquerda. As outras pessoas...a esquerda era
ignorada. Ninguém faz nada com a esquerda. Então eu conseguia jogar
muito bem com as duas. Acho que a gente consegue desenvolver muito mais
a nossa mão direita, do que os destros. Os destros não fazem nada com a
esquerda. A gente não. A gente não tem muita opção na vida. Abrir lata, só
abro com a direita. Porque é muito mais difícil. A gente se adapta. A minha
mão direita serve para muita coisa. Acho que é bem diferente de um destro.
As tesouras....
Hoje em dia eu não tenho tanta dificuldade. Mas há um tempo
atrás...Principalmente aquelas pequeninhas, meio coloridinhas. Nossa! Não
cortava. Dai era um problema. Porque cortar é mais difícil. Quando você
precisa de uma linha, era meio complicado. Eu não sei se é porque não uso
muito tesoura, mas acho que hoje em dia elas são melhores. Mas, nossa.
Quando era pequena era um problema. Não cortava. O negócio não vai. Não
cortava e não lembro o que fazia. Se minha mãe me ajudava...Na escola não
lembro de ter tido problema.
Eu lembro do vestibular. Vestibular era meio que o problema. Quando tinha
aquelas mesinhas. Que às vezes não tinha carteira de canhoto, tinha que

104
juntar duas mesas. Às vezes você chegava e os canhotos já tinham pego
todas. A mulher falava: “ah, não tem”. Algumas vezes tinha que fazer assim
(torcendo o tronco) do lado do destro porque não tinha opção. Eu sempre
pedi, mas às vezes ia nuns lugares “ah, não tem”. Não tem, não tem.
Paciência. Problema seu. Às vezes colocava no colo, ficava torta, horas. E
não tinha jeito. Aquela coisa, não tem opção, vai fazer o quê? Mas são
poucas vezes. As vezes você olhava e tinham várias de canhoto. E vários
canhotos, né? Você olhava e: não sou a única. Mas na escola acho que não
lembro de nada disso.
Eu nunca lembro disso. De ter sujado papel, essas coisas. Sempre fui muito
caprichosa. Acho que é do signo. Sou virginiana e nossa. Sou encarnada no
signo. Sou muito perfeccionista. Tem que ser tudo certinho. Então não sei se
sempre fui muito detalhista que nunca teve nenhum problema. Nada.
Tudo o que você lê de uma virginiana eu sou. Perfeccionista, chata. Nossa,
eu falo: fui trabalhar com uma coisa que, enquanto não faço a imagem
exatamente do jeito que eu quero, eu vou, friso, solto, friso, solto, faço 500
fotos até a foto ficar do jeito que eu quero. Enquanto ela não ficar perfeita, do
jeito que eu quero...E o laudo, eu leio 500 mil vezes. Escrevi isso, isso. Às
vezes eu saio do laudo, entro de novo pra ver se escrevi tudo. Sou TOC.
Pentelha total. Muito chata. Muito, muito chata. Comigo mesmo, sabe? Acho
que isso é bom. Como médica acaba sendo bom. Às vezes o paciente fala:
“nunca fiz um exame que demora tanto”. Não adianta. Enquanto eu não fizer
tudo que quero fazer, você não vai sair daqui. Eu falo. Até tudo certinho.
Tudo que eu leio de virgem eu falo: “sou eu”. Tudo! É impressionante. Até me
irrita.

Tem gente que fala que o canhoto é muito caprichoso...

Minha letra é linda, linda, linda. Às vezes a gente vê aqueles canhotos que
escrevem totalmente torto, nossa cada letra. Gente! (assustada) Eu não faço
nada com a mão.

Eu viro um pouco o papel.

105
Eu não. Escrevo assim (virou o papel).
É. (parou, olhou e pensou)
Eu escreveria assim (com o papel virado-dúvida). O papel não tá virado?

Tá. Oh lá. Olha o Termo (escrito no papel)

É igual você?

É. Se eu escrever reto fica assim (demonstrei). Se escrever de lado fica


bonitinho.

Ah não! Não tenho a menor condição de escrever reto (risos. Se deu conta e
ficou encabulada). Assim tá ótimo.

Mas isso é pra gente conseguir enxergar. Se a gente fizer assim (reto) não
vemos.

Por que a mão vai ficar na frente! (surpresa) Assim, você enxerga tudo.

A gente tinha que ter nascido em país oriental. Eles escrever de cá pra cá
(direita pra esquerda). O canhoto em um país oriental enxerga o que está
escrevendo.

E o destro?

Os destros não. É a mesma coisa que a gente.

E eles escrevem torto, será?

Não sei, mas deve ser.

É...isso eu posso até perguntar. Em Israel é assim também. É tudo ao


contrário. O hebraico é tudo meio invertido. Não leio, mas pelo que sei é. Eu

106
pergunto pra uma prima minha que sabe escrever. Eu pergunto. Ela vai saber
me responder essas coisas.

[intervalo de assunto]

E na Escola Y? Não teve dificuldade?

Não teve. Lá a gente sentava junto. Sempre sento na cadeira da ponta. Me


preocupo com essas coisas.

E em restaurante?

Se eu vou sair com um casal, não interessa onde o homem sentou, sei lá. Eu
sempre vou sentar...Se não não dá. Você fica batendo na pessoa o tempo
todo. O meu marido já sabe. Ele já sabe que vou sentar do outro lado. Por
que não dá Pri. Me incomoda. Você fica encostando na pessoa. Às vezes é
ruim. Avião, não tem muita opção. Tudo. A gente mexe muito mais esse
braço. Tem uma pessoa ali que você não sabe quem é, fica tomando cuidado
na hora de cortar.
De cortar acho que nunca tive problema também.
Nunca reparei muito nisso.

[pausa sem assunto]


Você falou que pra você ser canhota foi muito mais um diferencial positivo
que negativo. Acho que o esporte foi o mais significativo que você comentou.

É. Que fez uma diferença boa. O resto todo mundo pergunta: “você é
canhoto!”. Gente que convive muito tempo, aqui (no hospital) por exemplo, a
gente usa muito o negócio de ditar, não escreve muito. Tem gente que
convive comigo há anos e me vê assinando alguma coisa: “nossa, mas você
é canhota”. Assinando um cheque...É uma coisa que chata atenção de todo
mundo. Comigo todo mundo fala. Quando eu vejo um canhoto, eu sempre
comento. Não sei por que a gente faz isso. Eu pergunto. E eu guardo. Todo
mundo que é canhoto e trabalha comigo eu sei.

107
E na minha família não tem ninguém. Nenhum parente direto. Quem tinha era
um tio meu, que até já faleceu, mas que era casado com a minha tia. Não sei
de onde eu vim. Sabendo eu não conheço ninguém, ninguém, ninguém. Só
eu sou canhota. Só se deve ter sido alguém mais velho que não sabia. Eu
sempre procurei pra saber. Cacei mas ninguém sabia pelo menos. Nem um
primo um pouco mais velho. Isso sempre me chamou atenção. Sou a única.
Minha mãe falou que quando eu comecei a pegar lápis, sei lá com o que eu
brincava, já pegava com a esquerda e me deixaram. Minha mãe estranha
muito. Ela fica incomodada. Às vezes eu vou passar roupa, ela: “filha, pega
com a mão certa. Não é assim”. Ela sabe que é a minha mão certa, mas ela
se incomoda. “Deixa que eu faço. Isso não vai dar certo”. Às vezes quando
vou carregar alguma coisa, ela: “não, não, não. Me dá. Vai cair. Você pega
com essa mão errada”. Ela fica com a sensação de que tá errado. “Essa sua
mão é muito estranha. Deixa que eu pego”. Incomoda ela. Ela fala por falar,
né. “Dá aqui que eu faço. Não dá certo”. E é minha mãe, né? Ela fica super
incomodada. Meu marido nem liga. Meu pai nem liga. Minha irmã muito
menos. Mas aqui (no hospital) todo mundo fala: “você é canhota”; “você é
canhota”. Mas só. Hoje em dia não muda nada, né.
Ai só. Na musculação eu vejo bastante diferença de força entre os braços.
Meu braço esquerdo é bem mais forte, apesar de eu fazer tudo igualzinho.

E a perna?

Como eu operei duas vezes a direita, ela ficou mais fraquinha coitada. Mas
por isso. Não sei te dizer. Não jogo futebol. Não sei dizer se tenho uma perna
dominante.

[mostrou que pega o telefone no jaleco e já passa pra mão esquerda]

Todo mundo tem o bolso ai? (do lado esquerdo)

Todo mundo.

Por que será? Agora você falou que eu reparei...

108
Todos os bolsos são aqui. Todo mundo tem um bolso aqui sempre. Sempre
do lado esquerdo.

Não sei se tem alguma razão.

O fato é que ele vai pra mão esquerda. Tudo que eu posso fazer com a
esquerda, faço. Ultrassom. Faz muita diferença. Mouse, marcha, abridor de
lata. Tesoura se tiver que usar eu uso. Aí é meio problemático. Se tiver que
usar com a mão direita vai sair tudo meio esquisito. E aquele negócio que eu
te falei das colheres de molho. Porque ai eu tenho que fazer (com a direita).
Com a esquerda é muito ruim porque não tem biquinho. Fica uma coisa
totalmente errada. Às vezes eu desencano e viro, ou às vezes mudo de mão.
Tenho muita coordenação com a mão direita. Eu acho que era por causa do
jogo que eu fiquei assim. Tinha que jogar. Nisso era sempre bom. É sempre
mais difícil marcar. Querendo ou não, não é igual. As pessoas ficam meio
confusas. Eu sempre jogava do nosso lado, mas era muito fácil pra mim jogar
com essa mão (direita). Passar uma bola. Era muito fácil. Essa minha mão é
ótima, graças a Deus. Porque uso tanto ela também. Eu acho que ela teve
que ser. Teve que se adaptar à algumas coisas da vida. Ficou muito mais
desenvolvida que a esquerda de um destro.

Você repara em tudo?

Tudo. Cinema, TV, o que for. Aonde tem um canhoto eu reparo. Nunca
passa. Eu sempre reparo. Geralmente eu lembro quando eu vejo um
canhoto.
Então e eu não acho que a gente é mais inteligente que os outros...Mas a
gente fala, né? Acho que é inteligente igual. Nem mais nem menos.
Mas nunca vi um canhoto “nossa que diferencial”. Normal.

E sua mãe fala que é a mão errada. Como foi isso quando você era
pequena?

109
Pequena acho que ela não falava nada pra não me reprimir. Não sei se é
porque eu não fazia nada que chamasse muita atenção dela. O que
incomoda é fazer coisa que ela acha perigosa. O ferro de passar incomoda
ela. Ela acha estranho. Ela fica irritada. “Fica passando com essa mão
errada”. Ela sabe que não está errado, mas incomoda ela. Ela fala meio
brincando. E tira assim. Fica incomodada. Tem aflição mesmo. “Ai, essa mão
errada”. Eu falo, foi você que fez. Isso veio. Ela falou que desde
pequenininha quando ela viu que tinha uma mão dominante era a esquerda.
Só. Hoje em dia só quando alguém me vê escrever...mas é tudo comentário.
“Ai, você é canhota. Não sabia”. Não você sabia...tem uns que esquecem.
“Nossa, nunca te vi escrever”. Às vezes a gente convive muito e “nossa, você
é canhota”. Tantos anos que convivo com você e não sabia disso. Sei lá, não
vê no dia a dia, de almoçar. Isso é uma coisa que não me chama atenção. Na
mesa não me chama atenção os outros.

Esse jeito de sentar no restaurante. Você acha que as pessoas reparam?

Isso eu só faço com o meu marido. Se eu estou com ele, eu sempre vou pra
onde eu posso. O meu problema é ele. Com ele que eu posso pedir pra ficar
em outro lugar...Com os outros não. Se tiver com 8 pessoas quaisquer eu
sento em qualquer lugar. Não vou procurar a ponta. Não me incomoda. É
mais eu e ele que eu posso pedir. Ele só não gosta...se eu tenho que por ele
no canto...hoje eu faço mais xixi que ele, mas quando eu não tava grávida ele
fazia mais xixi que eu, tomando cerveja, tal.

[tocou o telefone e a conversa ficou comprometida. Retomei]

Você falou que gostaria que a Carolina (filha que está esperando) fosse
canhota. Por quê?

Eu acho legal ser canhoto. Me fez tão bem na vida. Nunca me fez mal. Acho
legal a gente se esse diferente que não é nada ruim. Querendo ou não
somos diferentes. E eu queria que ela fosse. Me dei tão bem sendo.
Porque na família do meu marido não conheço ninguém.

110
Tomara. Ela podia ser. Ia ficar feliz. Mas vai demorar pra saber isso, né.
Vou reparar muito. Deve ser a coisa mais fofa. Muito bonitinho. Uma canhota
bebê. Se a minha filha for, vou ficar louca. Vou dar o maior apoio. Tudo com
a esquerda!

Você tinha alguma coisa adaptada?

Nem tesoura eu tinha. Eu nunca tive nada. Antes não conseguia abrir muito
garrafa. Mas tem alguma coisa que a gente não consegue fazer...
Abridor, eu consigo abrir super bem com a direita. A direita é mais fraca mas
vai bem.
Tudo que sai um pouco do normal, do que estou acostumada não vou
conseguir fazer.

Pri...que mais?
Nossa menina.

[tempo...]

Podemos falar do diferencial que você tinha no esporte, que você gosta. O
fato de você se destacar, como é pra você? Isso te faz bem?

Super. E todo mundo via. Sabia que eu tinha um diferencial. Me fazia muito
bem.
Todo mundo gostava porque eu fazia bem pra todo mundo. Num jogo
coletivo, eu estava sempre fazendo o bem pra quem estava comigo. Era
muito diferencial. No esporte era uma coisa que chamava MUITA atenção.
Onde eu tinha muita habilidade com as duas mãos. Deixava todo mundo
muito confuso, nossa era ótimo. Tanto que joguei a vida inteira. Só parei
depois da faculdade que não tinha mais jeito.
Acho que por isso que eu queria que a minha filha fosse. Porque sempre me
trouxe coisa boa. Nunca me prejudicou em nada. E tudo que me trouxe de
diferencial era coisa boa. Então, assim, me diferenciar pro bem, ótimo.
Sempre me traz lembrança boa.

111
Não tive nenhum trauma.
Às vezes as pessoas fazem algum comentário que não sei se é um termo em
inglês..

O que sinistro?

Exatamente. Falam: “você sabe, é coisa do diabo”. Nem... tem gente que faz
uma brincadeirinha. Eu nem escuto. Ah, tá. Eu fico com dó dos canhotos
daquela época. Coitados. Porque até achavam que tinham alguma coisa
errada. Por que a gente é assim, diferente? Pra nós é tão fácil.
Esse negócio da mão do relógio me incomoda. Minha mão não precisa ser a
que todo mundo usa o relógio. Nem sei qual é.
Muito doido.

Você gostaria de ser destra?

Não. E gostaria que a minha filha fosse ainda (canhota). De jeito nenhum! Se
pudesse nascer canhota 20 vezes, 20 vezes.

E se você falasse uma frase? Ser canhota pra mim é...

Muito bom. Muito bom. Só me traz coisas boas. É bom. É bom. Ponto. Não
tem o que falar. É ótimo. Nasceria canhota de novo.

112
ANEXO 5 – DEPOIMENTO LUÍSA

Me conte um pouco sobre a sua vida...

Ah...eu nasci numa época muito legal. Minha família era muito legal, na
verdade. Muito diferente das famílias padrão. Tinha uma cabeça mais
avançada. Nesse sentido eu tive muita sorte em algumas coisas. Por
exemplo, convivia muito com uma avó e com uma tia muito malucas. A gente
passava férias com elas, nadava pelado em cachoeira. Você não imagina
encontrar uma tia e avó e um bando de criança tudo pelado. Ninguém teve
essa infância que eu tive. Que foi super precioso. Acho que não é só viver no
mato e ter lombriga, mas era de tudo. Muito enriquecedor. Eles eram muito
cultos. São muito cultos. Mas muito loucos ao mesmo tempo. Tinha um
pouco esses dois lados. Então, teve toda essa riqueza de experiências que
me ajudaram muito. Por outro lado, eu tive muito problema. Fui uma criança
muito problema. Graças a Deus depois eu acabei descobrindo de onde
vinham todos esses problemas. Eu nasci com uma doença genética, de
herança genética, super rara, e que mexe com toda a parte imunológica.
Como é neurológica, eu tive muito problema. Além da dislexia e do déficit de
atenção que eu já tinha, eram várias as outras coisas que eu tinha junto. Se
eu tivesse nascido numa família normal, normal que eu digo com aqueles
padrões mais rígidos, mais conceituais, pontuais, tem que ser assim, assado,
criança não fala, não conversa, não participa, não era bem o caso da minha
família. Se tivesse sido assim, eu acho que nem teria sobrevivido. Começa
por aí. Nesse sentido foi muito bom para mim. Tinha um lado muito
bagunçado, mas tinha outro que era tão rico que me apoiei nele. Tirando
isso, está tudo certo, tudo tranquilo.
Sempre fui canhota. Só chutava a bola com o esquerdo, se pedir alguma
coisa com o direito não funciona. Não vai.
100%
Se der, 200! Não sei fazer nada com o direito. Minha letra é horrorosa. Dá até
vergonha. Tudo só com a esquerda.

Ninguém te reprimiu?

113
Imagina, nem se cogitava. Quando alguém falou que era reprimido, eu:
“como assim?”. Até quando o Thiago (marido) fala que tomava na mão de
professor, ou a Marcela (cunhada) conta que a família...eu falei assim: “ah?”.
É uma coisa mais antiga. Na época da minha avó eu ouvia que a coisa era
mais reprimida. Já na geração do Tadeu não conheço ninguém que tenha
sido reprimido. Só eles (família do marido). Minha irmã mais velha tem mais
ou menos a idade, um pouquinho mais moça, nunca ouviu reguada na mão,
nunca ouvi contar. Nem a minha avó quando estudava, foi expulsa de vários
colégios, nunca ouvi que ela levou o chapéu de burro ou reguada na mão.
Acho que os pais dela matavam. Uma coisa muito arcaica mesmo.
Enfim, nunca fui reprimida. Muito pelo contrário.
E assim, não tem coisas para canhoto. Tesoura, não tem. Perto dos anos
1980 eu ouvi que tinha uma lojinha não sei onde com produtos de canhoto.
Mas nunca me fez falta. A não ser aquela carteira de classe. Que era chato.
Você ficava virado ao contrário. Isso é uma sacanagem. Devia ter. E panela,
o bico da panela é ao contrário. Tem um monte de produto, mas nunca
precisei.
Eu tenho facilidade para desenho, para coisas manuais. Eu aprendi crochê.
Tenta ensinar um canhoto a fazer crochê! Ninguém consegue. E eu
conseguia. Não me pergunte como. Para mim é muito fácil. Faço crochê,
tricot. Hoje em dia eu não lembro, mas fiz muito crochezinho. A gente ficava
em frente a televisão e fazia aqueles quadradinhos. E era uma coisa
impossível de ensinar. Todo mundo dizia. Mas eu aprendi.
O ser canhoto não afetou em nada na minha vida. Tranquilo.
Eu sempre fui muito distraída. Essa era uma desvantagem na minha vida.
Mas eu sempre fui muito boa nos esportes. Não era aquela atleta fanática,
mas o que eu fazia, fazia direitinho. Era sempre escolhida. A Luísa estava
sempre no meio. Não sabia como ia parar lá. Eu era alta para a época. Tinha
uma cabeça e meia a mais que os meninos. Era indecente. E aí eu lembro de
uma cena que fomos competir com a escola, handebol, eu adorava, super
dinâmico. Você acredita que eu estava catando mosca no meio. Escuto
assim de longe: “Luísa!”. Era a torcida inteira. E eu: “ué”. Quando eu vi estava
no meio da quadra. Mas não tinha problema. Quando pegava a bola, fazia

114
gol. Então passava, sabe? Dava umas coisas assim e de repente eu voltava.
Eu me dava bem nos esportes, gostava. Esquio direitinho, por exemplo. Não
sou ruim no esporte. Só não sou fanática.

De se dedicar horas...

Uma vez eu fui, era ginástica olímpica. Mas tomei um tombaço. E nunca mais
fiz. Esquece. Era uma japonesa louca que me dava aula.

Que mais querida?


Queria saber como é para você ser canhota. Se identifica?
Não. Acho que é diferente. O que eu vejo: todo canhoto tem letra feia. E os
que têm bonitinha escrevem assim (entorta a mão). Engraçado, né? Eu
escrevo normal, não tenho. Eu gosto de ser canhota porque é diferente. É
raro. Tem dez e tem um canhoto: sou eu!

E você repara em quem é?

Reparo justamente na hora de escrever. Eu falo: “eu também sou”. É uma


tribo. É quase uma tribo. A gente vê que são mais criativos, têm um pé na
arte. Gosta de pintura, a maioria. Não sei por que cargas d’água.
Michelangelo era canhoto, disléxico. Ele fazia confusões na hora de escrever.

Eu não escrevo assim (entortando a mão). Você escreve?

Não, mas eu viro a folha.

Eu também. Total. Eu viro a folha. Não adianta nada. A letra continua feia.
Horrorosa. Você não tem noção.

A religião na minha família era uma coisa. Minha avó detestava padre. Metia
o pau em todos. Mas tinha um lado super religioso. Adorava São Francisco.
Não era de frequentar a Igreja, mas tinha uma fé louca. Ela não acreditava no
padre, na figura do padre, e eles já enxergavam o quanto a Igreja era

115
corrupta. Essa coisa da Igreja mesmo. Igreja eles nunca acreditavam, mas
tinham fé. Isso foi passado para mim e não era discutido, mas falavam as
coisas na lata. Que roubam mesmo, que é tudo uma palhaçada. Em prol da
religião pode tudo. É uma coisa horrorosa.

O que mais você se lembra?

Me lembro disso. Minha escola era...Inclusive a turma da minha irmã foi a


primeira experiência da escola. Era construtivista, pequena, você tinha muita
liberdade, aula dada em diferentes contextos, muito diferente das
tradicionais. Já pelo construtivismo é quando você está pronta. Então esse
conceito nunca foi mostrado. O que, aliás, para mim não foi bom. Não foi
bom. Foi péssimo. Porque justamente pelo déficit de atenção e pela dislexia,
o construtivismo você tem liberdade, então eu viajava na maionese. Estava
em qualquer outro planeta. Abrir parêntesis para mim é um problema. Eu
viajo. É uma desgraça. Quando eu fui para uma outra escola “quase que
você levanta quando o professor chega, Amém Jesus” foi ótimo.
Eu acho que isso tem a ver com o canhoto, sabia? Eu acho que canhoto
gosta de viajar um pouco. Todo canhoto viaja. Repara? Eu acho que tem
esse lado viagem.
Nunca me conformei da letra ser ruim, e desenhava bem. Fazer o quê? Tinha
que ter um defeitinho.
Mas é. Eu acho que a gente pensa diferente. Não pensa? Até como fórmula,
o tipo de raciocínio, eu vejo que é diferente. Eu vejo pelo Sudoku. O tipo de
raciocínio é totalmente diferente. Adoro! Sou viciadona!
Mas é tranquilo. Tranquilíssimo.
Eu acho que canhoto tem sempre um Plano B. Você já reparou?
Eu acho que canhoto não é organizado, de uma maneira geral. Por exemplo,
apesar de toda a minha bagunça, eu sou muito organizada. Se eu não souber
onde eu guardei, aquele canto, não vou achar.
Mas não é esse tipo de organização. É organização na vida. O fato de ser
muito criativo, você pode até ter mania de arrumação, mas é uma
organização mais geral.

116
A coisa que você poderia dar uma organizada, uma centrada, não. Você
acaba ficando na coisa mais bagunçada.
Eu podia estar fazendo isso, mas estou fazendo aquilo e aquilo outro. Você
arruma um monte de coisa para fazer, não dá conta, não é o que você está
feliz, não sabe como foi se meter ali, mas você tem que dar conta. É o Plano
B. Você sempre está se metendo em algum lugar e acaba tendo um Plano B.
Organização não só espacial. De vida mesmo. Sem tirar as influências do
meio, do tipo de escola e de educação que você teve. Tirando todas essas
influências, tem a parte genética, biológica.
Uma grande capacidade que vejo no canhoto é essa do Plano B. Porque ele
está sempre metido em alguma coisa.
Toda vez tem sempre uma bagunça. Acaba metendo um pé numa outra jaca.
Mas sempre volta para jaca original. A gente tem essa experiência a mais da
saída pela direita, já que somos canhotos. Eu acho que isso é diferente. A
gente vai experimentar e às vezes é bom, às vezes é ruim. Sempre alguém
escorrega.
Meu cunhado é canhoto. Também é meio artista. Se você conversar com ele
é uma viagem. Você fecha o olho e vai. As cores e ao vivo. Mas,
profissionalmente a vida dele é uma bagunça. É um cara que nunca se
achou.
Meu sobrinho é canhoto, filho dele. Também teve problema de déficit de
atenção, estudou no Colégio S6. Uma gracinha ele. Loirinho de olho azul.
Parece um anjo.

Então tem vários na família.

Tem. Filho da minha irmã.

A gente termina sempre com uma frase...


Para mim ser canhota é

Um diferencial. (risos)

6 Escola tradicional para as camadas média- alta da sociedade paulistana

117
ANEXO 6 – DEPOIMENTO MARCELA

Me conta um pouquinho sobre a sua vida, por favor...

Vou contar desde o comecinho. Bom, o nascimento meu foi muito festejado.
Embora esperassem um menino, lógico. Família árabe. Era um privilégio. Eu
era menina. O meu nome foi escolha do meu pai. Eu era a primeira neta da
parte da minha mãe, então era muito bajulada. Principalmente pela família da
minha mãe. Uma das causas de eu começar desde esse comecinho, foi para
falar dessa iniciativa de canhoto. O que acontece? Desde criança eu tinha
tendências de usar a mão esquerda. Sempre gostei. A minha tia de criança
me levava muito no Grupo, ela trabalhava aqui pertinho. Já pegava o giz com
a mão esquerda. Foi uma tendência minha que começou com a mão
esquerda.
Só que o meu pai, como todo imigrante, principalmente árabe, tinha certos
preconceitos. O que ele fazia? Via que eu estava pegando tudo com a mão
esquerda, inclusive as minhas primeiras letras com a mão esquerda, não que
eu tivesse sendo alfabetizada, eu devia ter uns 4, 5 aninhos, eu tenho uns
negócios de geladeira da minha mãe que eu escrevia em cima. O “L”. Você
entendeu? Isso eu lembro direitinho, porque vi esses dias. Então, quando ele
via que eu pegava com a mão esquerda, ele falava: “dididai”, é o nome dele
Didi, e eu apanhava na mão esquerda. Aí, quando eu entrei para a escola e
ele viu realmente que a minha tendência era a esquerda, dai ele não
aceitava. Então, o que aconteceu? Comecei a ser obrigada a escrever com a
direita. Isso foi uma coisa para mim, na época ficava chateada. Mas é uma
coisa que eu era muito ligada no meu pai. MUITO mesmo. Inclusive quando
eu ia tirar sangue, qualquer coisa assim, ele estava comigo. Então, eu falava
assim: já que ele fica chateado, não posso fazer isso para desagradá-lo. Aí
comecei a desenvolver a direita.
Mas a minha força toda sempre foi na mão esquerda. Se eu tiver que ir para
uma lousa, é a mão esquerda que vai predominar.
Hoje em dia, logicamente na escrita normal, eu pego a direita mais por
hábito. Mas com a esquerda é uma letra totalmente diferente. E eu me sinto
bem. É a minha mão mesmo. Eu me sinto eu.

118
A direita eu escrevo por hábito, é mais rápida.
Mas a esquerda é a mão do meu eu realmente. Eu me sinto. Sinto meu eu se
manifestando.
A direita é a letra toda certinha, escrevo rápido o que gosto. Mas parece que
é superficial. Isso para mim...
Quando eu vou fazer algo com a direita, é rápido e isso para mim é ótimo.
Com a esquerda escrevo devagarzinho. É uma letra totalmente diferente.
Totalmente. Não tem nada a ver com a direita.
Uma vez até perguntei para uma moça que estava fazendo Psicologia. Será
que isso tem alguma coisa a ver? Daí me falou um monte de coisa e acabei
não fazendo.
Essa é uma curiosidade, se isso influenciou alguma coisa minha, que tem os
dois lados do cérebro. Logicamente que você foi obrigada a desenvolver um
dos lados. Quem escreve com a esquerda desenvolve o direito. E quem
escreve com a direita, desenvolve o esquerdo. Então eu não sei. Deve ter
afetado alguma coisa. Não sei.
Isso para mim é uma coisa muito gozada. Quando eu vou pegar numa
raquete, varrer alguma coisa, é sempre a esquerda que predomina.
Fazer uma comida no fogão, não sei mexer com a direita. Eu sinto muito leve.
Não dá certo. Precisa ser a esquerda. Eu me sinto melhor! Nesses trabalhos
manuais...
Só para escrever que a maior agilidade é com a direita.
Isso deve ser hereditário, porque eu tenho uma prima irmã minha, que mora
em Campo Grande; o pai dela, irmão do meu pai, nunca foi de esquentar com
isso. Era assim, como se diz? Bem desencanada de tudo. Não ligava muito
para isso. Ela, eu sei que é canhota. Nunca ligaram. Ela escreve com a
esquerda, tudo isso. Se não me engano, meu sobrinho, filho do meu irmão, é
canhoto também. Me parece, também, porque a minha cunhada Luísa é.
Acho que o Tadeu é canhoto também. Isso eu estou guardando de quando
ele era criança.
Voltando ao assunto, isso aconteceu na minha vida.
É um fato, é um fato que eu me lembro como lembro de muitas outras coisas.
Deve ter sido marcante, se eu lembro disso. Ainda mais ligado ao meu pai.

119
De resto, ser canhoto nunca me trouxe problemas na escola. Como eu tive
que aprender com a direita, não tive problema.
Quando eu comecei a ser alfabetizada, já usei a direita.
Mas a esquerda nunca foi esquecida. Desenvolvi isso.
Quando eu ia com a minha tia dar aula, na lousa, tinha uma lousa de criança
pequenininha. A gente morava em uma casa, ficava no quartinho de
brinquedo, e eu ficava lá com meus alunos. Era sempre com a esquerda.
Tem um tio que eu cuidei dele, que faleceu tem uns 13, 14 anos. Até o último
instante da vida dele, ele irmão do meu pai, solteiro. A gente saía muito, ele
ia muito na minha casa. E também não aceitava que eu escrevesse, nem
fizesse nada com a esquerda. Tanto é que no último instante da vida dele,
uma semana antes dele morrer, eu ia para uma viagem de Congresso. Ia
servir para ele, na boca dele e ele: “eu já falei que todo canhoto é desastrado.
Eu não quero que você me sirva com a mão esquerda”. Falou rindo, no fim
da vida. E eu: “agora você tem que aceitar tio. Eu estou aqui”. Ele era bem
assim! Se eu saía com ele para almoçar e pegasse alguma coisa com a mão
esquerda, ele ficava muito bravo. Ele e meu pai.
Os outros, meu padrinho, que era muito mais velho que eles nunca ligou para
isso. Os irmãos do meu pai que moravam em Corumbá, Mato Grosso, nunca
ligaram para isso. Família da minha mãe era bem light, nunca ligou. Isso era
típico mesmo do imigrante, que teve aquela educação, sabe?
Eu estava lendo outro dia, se tem alguma coisa a ver com islamismo. Tudo
de Alá, do Alcorão. E, se não me engano, eles dizem que tudo que vem da
mão esquerda não é muito aceito por Alá. Isso vem um pouco da religião.
E atualmente mesmo com essa história de que ninguém liga pra isso tem
uma descriminação. Tem! Porque as vezes a pessoa fala: “você tá do lado
torto”! Você é jovem, mas deve sentir isso em algumas coisinhas. Não que os
novos lembrem tanto disso, mas alguma coisa eu acho que tem.
Você nunca pode dar bom dia com a mão esquerda. Tem que dar com a
direita. Se estender com a esquerda, a pessoa já fica meio...
Quando as pessoas se referem a sua casa, é de pé direito alto. Se falar de
pé esquerdo, vão ficar te olhando. [risos]
São pequenas coisas, tem os resquícios.
E é uma filosofia que foi passando. De geração em geração.

120
Meu pai e meu tio vivenciaram, e adquiriram lá do Líbano. Não foi uma
cultura passada, e sim adquirida. Os outros não. Tinha gente mais velha do
que ele, esse meu tio Felipe tinha a idade deles e não ligava para isso. Era
um bon vivant, não gostava de trabalhar, era ótimo. Curtiu muito a vida. Teve
6 filhos. E era bem danado. E bem light, que não se preocupou muito com
isso.

Como era quando você ia com a sua tia no Grupo [escolar]?

A minha tia me levava. Ela trabalhou a vida inteira lá. Era muito respeitada.
Morei dois anos com a minha avó. Então moravam os filhos solteiros com ela,
em uma casa aqui perto, alugada. Em frente ao Hospital C atualmente. Morei
dois anos. Só fui embora porque meu pai veio me buscar. Não queria ir
embora, pois minha paixão era a minha avó. Primeira neta, nossa! Minha tia
levantava cedo para dar aula; se eu acordasse e ela não estivesse mais lá,
minha avó tinha que me levar até ela. Dava aula junto. Quando eu cresci, vim
morar aqui, estudava, mas continuava indo dar aula com ela. Aliás, o meu
sonho era ser professora!
Mas a minha mãe e um irmão dela, que era caçula, o Tio Joaquim, que foi o
último irmão homem a morrer, em 2003, ele falava para mim: “você vai ser
doutora”. Porque a professora já tinha, a Clarice, achavam que era muito
pouco. Mas eu adorava dar aula. Era uma das coisas...
A Juliana que trabalha no Paulo, quando chegou aqui, a gente morava nesse
apartamento, em 1965, 66, eu devia ter uns 7, 8 anos, eu chegava e tinha
que dar aula para ela. Ensinei ela a escrever o nome. O quadro negro era a
porta. Eu comprava o giz, e ensinava a Joana. Mas ela nunca gostou. Minha
mãe falava: “você vai ficar 2 horas ensinando ela”. E eu: “pode deixar”. Eu
era mais velha, e gostava! Ela foi minha primeira aluna [risos]. Fiquei uns dois
anos ensinando ela.
Eu tenho uma memória muito boa! Se você perguntar para mim, me lembro
até de quando era bebezinho. Ainda lá em Corumbá, em pé no berço, junto
ao quarto dos meus pais. Me lembro da casa, dos meus amiguinhos.
Perguntei para a minha mãe uma época, antes dela falecer, 25 anos atrás,

121
cadê a Janete e o Zezinho? Ela não sabia, e achava que tinham ido para
Cuiabá. Eu me lembro da Janete, umas pessoas assim.
Minha memória eu gosto. Modéstia à parte, é muito boa. Com o tempo a
gente vai perdendo.
Lembro de muitas coisas da vida.

E a questão da mão, era mais de escrita?

Não podia pegar garfos, talheres principalmente. Isso eles não aceitavam. Se
eu fosse servir alguém, não podia pegar um copo com a esquerda, tinha que
passar para a direita. Meu pai e o Tio David; minha mãe tudo bem. Meu tio
não aceitava até o último instante.
Ele faleceu no dia 24 de maio. Dias antes fui servir uma esfirra para ele, e
ele: “já falei que canhoto é tudo desastrado”. Por que Priscila? Até o fim da
vida!

E você acha que canhoto é mais desastrado?

Não, não acho. Embora eu tenha um livro, da Mônica Bonfiglio, ela é canhota
também. Ela tem um livro, Magias, não sei o quê. Eu fiz um curso com ela em
1990. E lá ela escreve que ela é canhota, e fala alguma coisa sobre. Ela fala
que todo canhoto tem uma sensibilidade maior, um sexto sentido bem
aguçado.

Ficava alguém te orientando para escrever diferente em casa...

Não. Meu pai ficava muito bravo se visse. Não gostava. De criança realmente
batia na minha mão.

Você lembra como foi para desenvolver o movimento?

Da mão direita eu não lembro. Vou ser honesta. Foi uma coisa muito
automática. Supérflua. Não foi natural. Hoje escrevo bem rápido.
Mas a mão que eu gosto, que faz uma letra direitinho é a esquerda.

122
Uma coisa é de dentro para fora. E outra é mecânica.
Até as assinaturas não têm nada a ver. São totalmente diferentes.

O que mais que você queira contar? Que acha interessante?

Fui uma época ter aula de tênis e jogo com a esquerda. Mais complicado!
Também fui ter aula de golfe, aí é meio complicado. Os professores querem
estimular, porque não tem taco para canhoto, mas eles ficam meio assim.
Estimulam, mas vejo que no fundo ficam meio assim [receosos].

Você acha que eles tem dificuldade de ensinar ao contrário?

Têm sim! Embora quando eu fui aprender a jogar tênis, eles falavam que a
Maria Esther Bueno é canhota e foi uma das grandes tenistas. Gravei isso,
porque eles falavam para mim. Falavam para me incentivar.
Na hora de bater bolinha e jogar com alguém é mais complicado. O destro
pega a raquete. Quem vai jogar normalmente com você, a parte contrária,
dificilmente é canhota. Então é um destro, e ele sente um pouco de
dificuldade.
Quando, às vezes, eu falo para alguém, principalmente quem estudou
comigo na faculdade, diz que eu lembro de muita coisa porque eu era
canhota. E que desenvolvi os dois lados do cérebro. Diz que é por isso que
eu tenho boa memória. Alegam isso!
Escovar dente só com a esquerda. Não conseguiria com a direita. Nem tento.
Escovar cabelo também tem que ser só com a esquerda.
Sou totalmente canhota!

O que mais? O que mais você quer saber?

Quero saber de você o que você quer me contar...


[pausa] Se lembra de algo da adolescência?

De adolescência não. Sempre fui canhota, e já estava escrevendo com a


direita...

123
A única coisa marcante era quando eu ia sair para algum restaurante,
principalmente com o meu Tio David, ele falava: “só não me pega com a mão
esquerda”. E ele ficava muito bravo. Muito bravo. Muito bravo mesmo!
Verdade. Ele faleceu bem depois do meu pai. Meu pai faleceu tem 33 anos, e
o Tio David 13, 14.
Nenhum filho meu é canhoto. Acho que exceto um sobrinho...o Tadeu Didi.

O que você é? Canhota ou destra?

O meu íntimo, o meu eu é canhoto. E o supérfluo é os dois. [risos]


Não posso negar que a mão mecânica, 80% eu faço com a esquerda. Tem
os 20 que é a mão mecânica, e a mão do meu eu que é canhota.
Minha força está na mão esquerda, minha natureza.

Ser canhota para você é...

Me realizar como pessoa. Ser eu. Eu me sinto bem.


E eu já reparei se fizer uma coisa manual com a direita não é bom. Se mexer
uma panela com a direita, a comida não sai gostosa. Não me sinto.
É só a caneta para escrita.
O resto não dá! Só pela esquerda!

124
ANEXO 7 – DEPOIMENTO DULCE

Me conta um pouquinho sobre a sua vida, por favor...

Nunca tive trauma de coisa alguma. Nunca tive depressão por conta de coisa
alguma. Tive quatro filhos assim (na sequência). Tudo de cegonha louca,
sabe? Da Dulce, a mais velha, para a Raquel foram três anos. Então era uma
cegonha responsável e inteligente. Depois um ano e três meses, e um ano e
três meses. Você já imaginou?
Quase nada. Não sobrava muita coisa.
Posso dizer que quando eram pequenos eu tinha quem me ajudasse, mas
quando acabava o dia eu estava exausta. Vai atrás de um, pega o
brinquedinho do outro, dá comigo para o seguinte, leva para o colégio, sai
correndo. Mas nada que me alterou a vida.
Nunca tive problema nenhum. Não posso sequer imaginar de dizer: “meu
Deus, será que isso é resultado de não terem deixado eu ser canhota?”
Nada, nada, nada.
O mais light possível, você pode escrever, que não tenho coisa alguma.
Agora, descobri com a vida que tudo que me obrigaram a fazer, eu faço com
a direita. Como com a direita. No Colégio S jogavam vôlei, e toda vida eu dei
saque com a esquerda. E diziam: “meu Deus, como você consegue?”. E o
Eric (marido) quando você disse que vinha, disse: “pois é, uma coisa que eu
fico olhando em você é quando” eu resolvo, excepcionalmente quando quero
me enfeitar, faço um risquinho bem pequenininho, “fico olhando você fazer
aquilo com a mão esquerda” (fala do marido). Nunca me obrigaram maquiar.
E aí eu nem sabia se fazia com a esquerda ou direita. Não tinha reparado.
Hidratante é com as duas mãos, mas pó de arroz sólido, blush, batom, tudo é
com a esquerda.
Só o que me obrigaram... (que faço com a direita). Tenho a impressão que
não é bem só, mas você pode dividir: o que não fui obrigada, faço com a
esquerda; o que fui obrigada, faço com a direita. Principalmente escrever e
comer, que foram as duas coisas que as irmãs do Colégio S me obrigaram.
Agora, por exemplo, não tenho ideia se chego no carro...eu acho que é com a
esquerda que eu abro o carro. “Pai (se dirige ao marido), ela está me pondo

125
em um apuro. Não sei se abro o carro com a esquerda ou com a direita” . Eu
estava dizendo que tudo que me obrigaram eu faço com a direita, e tudo que
não me obrigaram eu faço com a esquerda. Deve haver alguma exceção,
mas eu não sei dizer.
Na verdade, hoje em dia eu sou ambidestra, porque eu lido com as duas.
Agora eu não sei mais escrever com a esquerda. É difícil. Eu vou melhor que
uma pessoa que só faz com a direita, mas é difícil.
Você causou diversos problemas. Porque eu comecei a reparar o que fazia
com a direita e com a esquerda.
Fiquei vendo. Por exemplo, o carro. Guiar todo mundo guia igual. Mas se eu
chego no carro, se eu pego a maçaneta com a direita ou com a esquerda. Eu
acho que é com a esquerda.
E outro dia, depois que você disse que vinha, eu quis fazer uma coisa que
faço com a esquerda, com a direita, e você sabe que me prendeu aqui?
(massageia o ombro direito) [risos]
Eu digo: que coisa difícil de se notar.
Não tenho nada...não sei mais o que você quer saber?

Marido: Você falou do olho? Acho o mais importante. Ela fazer a delineação
do olho perfeito com a esquerda

É engraçado, né. É espontâneo. O que eu faço com a esquerda decerto


continuo fazendo. Você quer saber uma coisa que eu sei que faço com a
esquerda? Bater clara. Hoje em dia a maioria das pessoas bate com coisa
elétrica. Eu ainda gosto de bater a mão. Tenho preguiça de pegar mixer,
coisa de bater clara, lavar etc. Eu bato clara com a esquerda! (enfatiza)
É gozado, porque não fiquei com trauma nenhum. Não fiquei gaga como o
George VI7, nada. [risos]
O diabo inclusive era chamado: o canhoto.

Marido: Se você olhar no dicionário tem muitos nomes diferentes para o


diabo. Canhoto era um deles.

7George VI assumiu o trono de Rei da Grã Bretanha e Irlanda em 1936. A história conta que era
naturalmente canhoto, e foi forçado a usar a mão direita.

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O diabo.
Então a primeira coisa, quando eu saí de casa, no primeiro dia de aula, eu
sabia fazer umas letrinhas...
Imediatamente elas me tiraram da mão esquerda e falaram: “não é com essa
mão que a gente escreve. É com essa (direita). E você está escrevendo com
a mão errada”. Mas eu toda vida fui boa praça, não liguei para aquilo, e
aprendi com a direita. E pronto.
Mas fazia tudo com a esquerda.
Em casa minha mãe e meu pai nunca ligaram.
E hoje eu tenho duas netas canhotas. Tenho. Uma filha da Dulce, e uma filha
do Eric Filho. As duas são canhotas. Mas hoje não. Hoje deixam. Fazem tudo
com a mão esquerda. O que quiser. Se quiser fazer alguma coisa com a
direita, ninguém proíbe. Mas faz tudo com a esquerda.

E como era lá na escola? Essa proibição?

Se eu tivesse com a mão esquerda...


Não sei se a gente começou a escrever com lápis no Jardim da Infância.
Devia ser com lápis. Elas me tiravam: “não! Não é com essa mão que a gente
escreve. Tem que pegar o lápis com a outra”.
Então foram forçando, forçando, até uma certa altura que passei a escrever
com a direita e pronto.

E você era a única (canhota) na sala?

Ninguém. Só eu. Pior ainda. Se ainda tivesse companhia... [risos]

Amarraram, fizeram esse tipo de coisa?

Nada, nada. Não amarraram a mão, não fizeram nada. Foram insistindo.
Para comer no refeitório também. O meu era integral, a gente almoçava lá
todo os dias. Entrava as 8h e saía as 16h30. No refeitório também: “não
pegue o garfo (com a esquerda)”. E eu era pequenininha, tinha 6 anos e

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comecei a fazer. Tão logo podia trocava. Até que um dia eu passei a só
comer com a direita.
Não criou problema nenhum. Aliás, para a entrevista eu devo ser muito pouco
eficiente. Não tenho trauma, estresse, coisa alguma. Não amarraram a minha
mão, fui por bem. Mas que diabo? [risos]

Alguém explicava por que não podia escrever com a esquerda?

Não. Só que o certo era escrever com a direita. E o certo era comer com a
direita. E escrever com a esquerda e comer com a esquerda, era errado.
Simples, pronto.
Com 6 anos, e naquele tempo não é que nem hoje que falam alguma coisa e
a criança logo retruca: “por que isso, por que aquilo?”. Você não podia. Se
era errado, eu tinha que aprender com o certo. Não havia objeção ao que a
irmã estava dizendo. (respira fundo) Meu Deus, a gente não podia fazer
nada.
Eu sou do tempo que quando a professora entrava no Colégio S, elas
entravam, a gente levantava e ficava ao lado da carteira esperando. Quando
ela sentava, a gente sentava.

Eu não sei se abro e fecho garrafa com a esquerda...


Nunca dei muita importância a isso, sabe?
Então, por exemplo, depois que você falou que vocês vinham, eu comecei a
prestar atenção em algumas coisas que eu faço e nem sabia. Com a
esquerda e com a direita.
Foi automático, sem maiores problemas.
Por isso que eu digo que sou sem graça para a entrevista.
Eu não tenho nada.
Trabalho manual eu faço com a direita, porque no Colégio S tinha aula de
trabalho manual. Até hoje não me passa pela cabeça, nem sei, pegar uma
agulha, pregar um botão com a esquerda.
Tudo com a direita.
Mas tinha lá.

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Isso eu não me lembro se elas me obrigaram a pegar e fazer com a direita.
Não sei. Decerto foi. Porque era ensinado no colégio.
Tudo que foi de lá eu faço com a direita.
Existe hoje em dia tesoura para canhoto, e coisa.
Porque as tesouras, principalmente as grandes, são feitas com uma lâmina
maior e outra menor, uma sobre a outra. Fica mais difícil.
As pessoas gostam (de serem canhotas), porque é diferente.

Marido: Vou te contar uma coisa. Não sei se você já ouviu de alguém. Sou
canhoto de perna. Só chuto com a esquerda. E para mastigar. O lado de cá
(esquerdo). Uma vez me aconteceu de mastigar uma maça (do lado direito) e
mordi a língua. Você imagina o trabalho que deu para estancar o sangue...
(por causa do anticoagulante)

O Eric então é direito, esquerdo e aí vai.

[risos]

Marido: A única coisa que faço com a esquerda é o pé. E mastigar. Ainda
hoje que lembrei disso.

Mastigar eu não sei se faço com a esquerda ou com a direita.

E você se intitula destra ou canhota?

Hoje eu sou destra. Se me perguntarem, digo que sou destra. O canhoto


ficou lá tão longe, tão longe, que o que eu faço com a mão esquerda é
espontâneo. Não sei se estou fazendo com a esquerda ou com a direita. De
resto é esquerda ou direita conforme cai a coisa.

Você considera que tenha nascido canhota?

Canhota! Ah sim!! Era tudo com a mão esquerda.

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Marido: Tinha um pacto com o demo (brincadeira)

Estão vendo o perigo! Somos duas canhotas aqui.

(risos) Duas canhotas aqui!

Para as freiras, antigamente era um caso de polícia, gente.

Elas falavam com os pais, ou não?

Não. Elas resolveram ali mesmo. Não me lembro nunca que tenham falado
com pai. Coisa assim não.

Marido: O S era um colégio autoritário, à moda antiga. Nem sei se havia, a


não ser quando era para expulsar, se havia alguma conversa com o pai. Hoje
que há Associação de Pais e Mestres, reuniões.

Naquele tempo não. A irmã dizia, a diretora dizia, estava dito.


Em casa, ninguém ligou.
Ai, ai. (respira fundo).
Estou pensando em histórias, mas acho que não tenho.
Brinco com o Eric que nós dois somos muito sem graça.
Porque o Eric viveu uma vida de estudar e trabalhar. Trabalhar e estudar. E
ficava em casa, brincava com os filhos, quando pequenos ia passear com as
crianças, coisas assim. Mas nunca foi de muito movimento social. Ele dizia:
“não tenho tempo. Se eu começar a fazer noitada, sair e tudo, nem estou
pronto para estudar, nem para trabalhar”. A gente tinha vida social, é lógico,
mas nunca fomos desses arroz de festa. Como se dizia antigamente. E nós
somos muito pacatos.
Agora que o Eric não trabalha, e estamos mais velhos, brinco que somos tão
sem graça. Não vemos novela, não dizemos palavrão...Na internet estou,
mas não sabemos contar anedota. Não somos sem graça? (risos).

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Marido: Uma coisa que vou acrescentar à você. Eu tinha enxaqueca quando
era mais moço. Sempre do lado esquerdo. Uma única vez senti a dor de
cabeça do lado direito. Anos a fio, do lado esquerdo. Entrava por aqui (pela
frente) e saía por trás. Não sei se tem alguma coisa a ver com a esquerda e
direita, não tenho a menor ideia. A enxaqueca é uma doença com dor
hemicrania. Mas eu podia ter do lado direito, não do lado esquerdo. Mas era
sempre do lado esquerdo.

Interessante.

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