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GRUPO C
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ÍNDICE
1 – INTRODUÇÃO
2 – OS MITOS
3 – O SOLO
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1 – INTRODUÇÃO
Neste nosso breve trabalho, procuramos apreender a forma como um dos acontecimentos mais
marcantes da História de Portugal, os Descobrimentos, foi miticamente apropriado em três obras
maiores da cultura portuguesa do século XX, fazendo, de passagem, a genealogia da sua estrutura
mítica.
Não pretendemos, portanto, explanar qualquer verdade sobre os Descobrimentos, mas dar a ver a sua
emergência enquanto mito: o Mito por excelência de Portugal.
2 – OS MITOS
2a) Fernando Pessoa ou o Prenúncio
Obra mítica e simbólica, a Mensagem apresenta-nos 44 poemas agrupados em três partes, numa
reflexão sobre a História de Portugal ao longo dos séculos, e que correspondem às etapas de
evolução do Império Português - nascimento, realização e morte. Fernando Pessoa procura aí
anunciar um novo império civilizacional. O "intenso sofrimento patriótico” (Pessoa, 2008, p. 17)
leva-o a antever um império que se encontra para além da materialidade.
Logo na primeira parte, intitulada “Brasão”, Pessoa traça o retrato de um Portugal destinado a
grandes feitos, valendo-se dos seus heróis e mitos, e onde a localização geográfica, para além de ser
o ponto de partida ideal para a epopeia que foram os Descobrimentos, assume papel fundamental na
civilização ocidental, afirmando mesmo que o rosto da Europa é Portugal (Pessoa, 2007, p. 15).
O mito começa a ganhar contornos. As referências a D. Sebastião e a Nuno Álvares Pereira,
culminam com os protagonistas dos Descobrimentos, Infante D. Henrique e D. João II, sendo o
primeiro “O único imperador que tem, deveras, / O globo mundo em sua mão.” (Pessoa, 2007, p.
41). Enquanto D. João II, uma das figuras maiores de Quinhentos, pelo impulso dado aos
Descobrimentos é caracterizado como “Seu formidável vulto solitário / Enche de estar presente o
mar e o céu, / E parece temer o mundo vário / Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.” (Pessoa,
2007, p. 42).
“Deus quere, o homem sonha, a obra nasce” (Pessoa, 2007, p. 49), assim começa a segunda parte,
intitulada “Mar Português”, com o poema “O Infante”, símbolo do homem universal, que realiza o
sonho por vontade divina. Nos outros poemas dedicados à gesta dos Descobrimentos evoca
personalidades como Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães e Vasco da Gama, assim
como a luta dos marinheiros para vencerem o medo do desconhecido e os elementos naturais. Os
poemas “Padrão” e “O Mostrengo” são disso exemplo.
Ainda na segunda parte, o seu poema mais célebre, é o que lhe dá o nome, “Mar Português”, aquele
que condensa toda a História dos Descobrimentos, com as glórias e as tormentas, o sangue e as
lágrimas, o medo e a esperança. Ao interrogar-se sobre a bondade do empreendimento que foram os
Descobrimentos, Pessoa diz-nos “Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.”
(Pessoa, 2007, p. 60).
No antepenúltimo poema, evoca a partida de D. Sebastião em “A Última Nau”, prenúncio do desastre
de Alcácer Quibir e do mistério que envolve o desaparecimento do rei, transportando-nos assim para
o que deverá ser o impulso do renascimento de Portugal. O último poema é a “Prece”, onde se
renova o sonho, e se afirma que é preciso acreditar.
Resumindo, em “Mar Português” Fernando Pessoa procura simbolizar a essência do ideal de ser
português, um povo vocacionado para o mar e para o sonho.
Na III parte, “O Encoberto”, Pessoa apercebe-se que afinal “falta cumprir Portugal”, que a Nação
está em crise, e sendo a Nação o tronco, a súmula dos indivíduos que a compõem, só será valorizada
se esses mesmos indivíduos se valorizarem. Apela-se, então, à regeneração nacional pelo mito e
pelos seus símbolos, mesmo que tudo pareça perdido.
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Esta parte tripartida é formada por “Os símbolos”, composto pelos poemas “D. Sebastião”, “O
Quinto Império”, “O Desejado”, “As Ilhas Afortunadas” e “O Encoberto”; neles exprime-se a
esperança e a fé de um novo alento para um império moribundo. Em “Os avisos”, composto por “O
Bandarra”, ”António Vieira” e "Screvo meu livro à beira-mágoa", definem-se os espaços de Portugal
e anuncia-se já a emergência do Quinto Império. Em “Os tempos”, nos poemas “Noite”, “Tormenta”,
“Calma”, “Antemanhã” e “Nevoeiro”, anseia-se e sente-se saudades do Salvador da Pátria, aquele
Encoberto que, chegada a Hora, deverá aparecer para construir o Quinto Império, moral e
civilizacional.
Aliás, para Pessoa, o mito sebastianista deve ser aproveitado de forma a criar as condições
necessárias para a realização do Quinto Império, um Império não em termos de território, mas sim
um Império do Espírito e da Cultura, imbuindo Portugal de uma missão civilizadora, cujo prenúncio
nos foi dado pelos Descobrimentos, desvelamento do Segundo Mundo que anuncia o do Terceiro:
“Quem é que dorme a lembrar/ Que desvendou o Segundo Mundo, /Nem o Terceiro quer
desvendar?” (Pessoa, 1979, p. 103). E esse querer surgirá da necessária assunção do Destino que nos
forma, pois “É a hora!” (Pessoa, 1979, p. 104)
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Estes teriam instituído, por breves momentos, o império do “novo Mundo”, da criação, da
construção, e aceitação, do ‘Diferente’ no seio do ‘Mesmo’, por afastamento (um ‘desvio do olhar’)
relativamente ao “velho Mundo” da negação e do poder.
Derrotado e de face macilenta, pronto para a aceitação da derrota e da aniquilação definitiva, D. João
de Portugal é instado a não esmorecer, porque “Portugal tem um Destino maior.” (Oliveira, NON ou
a Vã Glória de Mandar [DVD], 1998)
E, logo a seguir, ouvimos o NON do Padre António Vieira (Vieira, 1998), que ‘a si próprio’ se mata,
caindo inerte sobre um estandarte português.
Chegou a hora de se cumprir o Destino, que é acolhido pelo alferes Cabrita, moribundo no hospital
militar.
Na morte deste irmana-se D. Sebastião, cujo sangue que escorre das suas mãos arrependidas, e já
desligadas do desejo de poder, se torna um com o do alferes.
E da morte definitiva de ambos, do desespero e da descrença mais profunda (representados por
Alcácer-Quibir e a Guerra Colonial, símbolos maiores da impossibilidade radical de constituição de
um Império do NON), surgirá a instauração definitiva do ‘Mundo novo’ (o 25 de Abril cumprindo o
Destino dado a ver pelos Descobrimentos), o cumprimento final do Destino de Portugal,
manifestado, antecipadamente, pelos Descobrimentos.
‘Fundindo-se’ com Pessoa, Oliveira parece afirmar: “Ó Portugal, hoje és nevoeiro…/ É a hora!
(Pessoa, 1979, p. 104)
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Machina Mundi é uma composição para coro e orquestra composta por seis partes: A Largada,
Possessio Maris, Duas Visões, A Guerra, A Máquina do Mundo e Mísera sorte! Estranha condição!
A letra dos coros corresponde ao desfazer do mito dos descobrimentos. Emmanuel Nunes selecciona
a face esforçada, dramática e brutal desta epopeia; apresenta o anti-império, encarando os
descobrimentos não como um acto glorioso, mas como um acto de aventura, coragem e vã glória, ou
seja, colocando-os no ‘reino’ do NON de Oliveira.
Emmanuel afirma «Devant l’inconnu nous [os portugueses] ressentons un vertige» (Borel, Bioteau,
& Daubresse, 2001). Em, A Largada retrata-nos a partida das caravelas e a viagem até ao
desconhecido: «abrimos/ Asas ao sereno e sossegado Vento, e do porto amado nos partimos». Na
Possessio Maris são relatados os perigos da viagem «O céu fere com gritos nisto a gente, no romper
da vela, a nau pendente/ Toma grão suma de água pelo bordo». (…) «A noite negra se alumia/cós
raios m que o Pólo todo ardia! Ao descrever a viagem de Gama à Índia, e em face das tormentas, dá-
nos a ver os ventos que se unem para destruir o mundo: «Noto, Austro, Bóreas, Àquilo queriam /
Arruinar a máquina do Mundo».
Os titãs Bóreas (vento norte grego, correspondente ao Áquilo romano, o vento forte e destruidor), o
seu irmão Noto e Austro (o suave vento) reuniram-se numa força aniquiladora, em batalha desigual
entre o marinheiro das frágeis caravelas e o poder eólico e divinal. Logo adiante em As duas visões
«Ó gente ousada, / que por guerras cruas, / E por trabalhos vãos nunca repousa, (…) Naufrágios,
perdições de toda sorte que o menor mal de todos seja a morte!» Nunes lembra a coragem e ao
mesmo tempo as desventuras.
Em Emmanuel Nunes o pulsar da guerra traduz-se numa linguagem de sons metálicos e contrastantes
como se a Roda da Fortuna no seu movimento incessante deixasse de alternar a boa e má fortuna:
Em a Guerra somos remetidos para as adversidades próprias dos conflitos: «Seguindo a vitória,
estrue e mata; / A povoação sem muro e sem defesa/ Esbombardeia, acende e desbarata./ (…)
«Cristãos sanguinolentos, / que quase todo o mar tem destruído / Com roubos, com incêndios
violentos; / todos os seus intentos / são para nos matarem e roubarem, mulheres e filhos cativarem».
Emmanuel Nunes continua com a visão da Máquina do mundo «Vês aqui a grande Máquina do
Mundo, / etérea e elementar, / sem princípio e meta limitada» e termina em «Mísera sorte! Estranha
condição» com o episódio do velho do Restelo «Ó glória de mandar, ó vã cobiça / desta vaidade a
quem chamamos Fama!» (…) Nunca juízo algum, alto e profundo, / nem cítara sonora ou vivo
engenho, / te dê por isso fama nem memória».
Em que medida a Machina Mundi de Pedro Nunes – que foi educador de D. Sebastião – seria
responsável pela obstinação de um jovem rei voluntarioso? Seria natural que Pedro Nunes
transmitisse ao seu discípulo os princípios da Machina Mundi. O primeiro móbil corresponde à
décima esfera e para além desta esfera está o Paraíso, a Utopia. Seria o Paraíso para D. Sebastião a
Utopia de um grande império e a busca da glória de mandar?
Parece ser essa a forma como Nunes vê os Descobrimentos, e como veria o empreendimento de D.
Sebastião.
Os versos escolhidos para os diversos cantos do coro desdobram-se, todos eles, na linha de uma
concepção dos Descobrimentos que os determina enquanto feito claramente marcado pela vontade de
poder, de cobiça e de glória vã.
Muito ao espírito da época pós-25 de Abril, ‘descemos à terra’, ao mundo dorido da dura
materialidade e dos instintos demasiado humanos, que a música acompanha com uma dissonância
dilacerante.
Mas, subterraneamente, desdobra-se, de forma pouco usual em Nunes, a Harmonia coral,
introduzindo uma espécie de tranquilidade inumana neste mundo dilacerado pela dor e pelo poder.
Como se Nunes tivesse sido, talvez inconscientemente, incapaz de escapar, de modo absoluto, a esse
mito maior da nossa História, que vê os Descobrimentos como empreendimento divino.
ENTRE a crueza do ‘real’ e a Harmonia, portanto. Indecidível…..o Mito.
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3 – O SOLO
3a) Bandarra e Vieira ou a “Origem”
Pessoa ancorará a sua concepção mítica da História de Portugal, principalmente na visão apocalíptica
do fim do Quinto Império, e dos destinos de Portugal, preconizado por aquele de quem disse “que
não era português mas Portugal” (Lourenço,1983, p. 245): Bandarra, “que profetizou nas suas
Trovas, (pensava o Padre António Vieira e com ele Fernando Pessoa, embora reconhecendo-lhes uma
autoria múltipla) a hegemonia portuguesa numa época futura; o único trunfo de que Portugal
dispunha era a cultura duma elite e, particularmente, um génio poético desproporcionado à sua
população; logo a hegemonia terá uma base cultural e será alcançada através de uma poesia tão
superior que inspire os homens à fruição da beleza em paz e concórdia...” (Mimoso, 2008)
Embora colocado sob a bandeira de Bandarra, Pessoa não esquecerá esse outro ‘construtor de mitos’
que foi o Padre António Vieira, responsável maior pela difusão do Quinto Império como destino de
Portugal; Quinto Império que, afastado da materialidade terrena do poder mundano, se desdobraria
no reino mais alto do espírito, da comunidade cultural e de partilha, da dádiva, porque “Terrível
palavra é um non. (…) A mais dura coisa que tem a vida é chegar a pedir, e, depois de chegar a pedir,
ouvir um não.” (Vieira, 1998, p. 3)
Dádiva e Destino que serão as duas visões maiores que Oliveira vai buscar a Vieira para a sua ‘re-
escrita’ da História de Portugal, e que serão as duas traves mestras de NON ou a Vã Glória de
Mandar. É esta ‘Palavra utópica’, de uma utopia que É Portugal, que comandará a sua ‘pena’ de
cineasta.
Aparentemente alheio a estes ‘mitos fundadores’ de que se quer libertar, Emmanuel Nunes esconjura-
os, escolhendo, a dedo, em Pessoa e Camões, os versos que escapam a qualquer destino mítico de
Portugal. No entanto, a Harmonia final em que culminaria a História de Portugal ressoa no coro de
Machina Mundi.
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Bibliografia
Adorno, T. W. (2007). Filosofia da Nova Música. Lisboa: Perspectiva.
Bacque, A. (Outubro de 1990). Comment on Filme l'Histoire. Cahiers du cináma , pp. 30-34.
Borel, H., Bioteau, A., & Daubresse, É. (2001). Emmanuel Nunes : Compositeur Portugais, XXe Siècle.
Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian.
Macías, E. X. (1991). Esbozo para una Aproximación al Universo Creativo de Emmanuel Nunes. Colóquio –
Artes .
Mimoso, J. M. (17 de Novembro de 2008). Mensagem de Fernando Pessoa comentada por Joao Manuel
Mimoso e ilustrada por Carlos Alberto . Obtido em 17 de Novembro de 2008, de
http://www.tabacaria.com.pt:80/Mensagem/Mensagem.htm
Pessoa, F. (2008). O Rosto e as Máscaras, Poesia e Prosa, antologia cronológica organizada por David
Mourão-Ferreira. Lisboa: Ática.