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São Paulo
2015
São Paulo
Janeiro 2015
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Nome: RÊGO, Volmer Silva do
Título: Poder, Loucura e Razão na obra de Lima Barreto: crítica e devaneio
socioliterário do major Policarpo Quaresma
BANCA EXAMINADORA
Nomes e titulação
Política
Data de aprovação
- 16/02/2015
AGRADECIMENTOS
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A literatura é essencialmente uma
reorganização do mundo em termos de
arte; a tarefa do escritor de ficção é
construir um sistema arbitrário de objetos,
atos, ocorrências, sentimentos,
representados ficcionalmente conforme um
princípio de organização adequado à
situação literária dada, que mantém a
estrutura da obra.
Antonio Cândido
Resumo
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Abstract
This paper discusses the novel “Sad End of Policarpo Quaresma” by Lima
Barreto and focuses on the character named in the title of the book and on the city of
Rio de Janeiro, the downtown area and the outskirts of the capital of the First Republic.
The novel also addresses the psychosocial aspects of the people within the historical
context of the Revolt of the Navy (1892). In the same temporal and hierarchical period,
focuses on the actions of the most prominent man of the Republic, the President
himself while its in the direction of the more peripheral characters of that political and
administrative order, he enables the attentive reader to delve into a wide range of
interpretations, amidst the neighborhoods described and the great politicians of the
time: Marshal Floriano Peixoto, President of the Republic and other public figures of
lesser importance, who gravitate around him, and whose questionable, political and
intellectual skills and substance are ironically exposed.
1 Mulato: existem na literatura nacional excelentes trabalhos, romances e análises socioliterárias sobre
a situação e a condição psicossocial do que representa ser um mulato, um meio sangue, meio negro,
meio branco, e, por conseguinte, à guisa de puro preconceito, uma indefinição racial ou étnica na
formação do Brasil desde a chegada dos primeiros negros escravos, a miscigenação com o branco
europeu, português ou não e consequentemente o que isto represente até hoje. Recomendam-se as
leituras do romance naturalista O mulato, de Aluísio Azevedo, o romance socioanalítico O mulo, de
Darcy Ribeiro, e o estudo socioliterário realizado pelo professor Rodrigo Estramanho de Almeida, A
realidade da ficção: ambiguidades literárias e sociais em O Mulato de Aluízio Azevedo (2010).
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Visconde de Ouro Preto(2) um político monarquista, amigo do imperador Dom Pedro II,
uma sorte que ele aproveitou até os 15 anos de idade, quando passou nos exames
para cursar Engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, o que seguramente
lhe garantiria espaço profissional futuro e diferente condição de vida. Curso e
condição perdidos numa inclinação da roda do destino, logo após o golpe que os
militares deram na corte imperial de Dom Pedro II, e que depôs, junto com o imperador
a sua corte e os seus ministros, dentre os quais o seu protetor, Ministro da Marinha
Imperial, a segunda grande força militar do império e que rivalizava em importância
com o Exército Imperial, a força e organização militar mais poderosa de então e que
abrigava dentre outros, em seus quadros e fileiras os Generais tornados em seguida
Marechais (patentes máximas das forças armadas) Deodoro da Fonseca e Floriano
Peixoto, personagens nucleares do episódio histórico-político da proclamação de
nossa república em novembro de 1888. A virada do episódio republicano alterou
significativamente os rumos e a vida política do país, afetando diretamente os
envolvidos e seus próximos, e, seguramente lhe custou caro, promovendo uma
grande transformação em sua rotina, motivo suficiente para se posicionar
contrariamente à nova instituição. Lima teve, portanto, razões pessoais para se
colocar como crítico ao evento e a ele somou conteúdo histórico e social dourado em
sarcasmo e acidez que se depreendem das falas, ações e descrições de seus
personagens, muitas vezes expondo-lhes ao ridículo por serem o que eram, sua
condição social, status e posturas.
Anos depois, em 1902, o escritor teve o seu pai acusado de roubo e
conduzido a um hospício após se tornar dependente de álcool. Como consequência
do encadeamento sequencial destes fatos abandonou definitivamente os estudos e
decidiu trabalhar para ajudar no sustento da família. É desse ano também sua
primeira aparição como colaborador na imprensa carioca pelo jornal A Lanterna.
No ano seguinte, passou em um concurso público e assumiu um posto de
secretário administrativo, uma espécie de arquivista em um departamento da
Secretaria Administrativa do Ministério da Guerra, sedimentando a sua decisão de
abandonar a Escola Politécnica, condição da qual, talvez, advenham seus
conhecimentos, suficientes para descrever com certa riqueza de detalhes, as
minúcias militares que enredam o personagem Policarpo Quaresma em seu livro e o
2 Ministro da Marinha no 2º Reinado – Dom Pedro II – Afonso Celso de Assis Figueiredo foi o Chefe do
seu Triste fim. Nos anos seguintes, em 1905, já como jornalista profissional,
empregado no Correio da Manhã e afastado da Secretaria da Guerra, participa de
atividades políticas pelo Partido Operário Independente (3) e teve um livro publicado
em Portugal – Recordações do escrivão Isaías Caminha (4) que recebe críticas
favoráveis de Monteiro Lobato (5 ).
Em 1911, adentrando o primeiro quartel do século XX, a República já
consolidada, Lima inicia em capítulos publicados no Jornal do Comércio, seu livro
Triste fim de Policarpo Quaresma, objeto deste artigo. A partir de 1916, os efeitos e os
excessos de uma vida boêmia, devido a frequência noturna em bares e cafés, nas
quais participa de debates acalorados com jornalistas e intelectuais de seu meio se
fazem notar, e, em 1917, embora entregue ao alcoolismo e em condições precárias de
saúde, já abalada, ainda exerce intensa atividade política como anarquista libertário,
defendendo a abolição dos governos e o fim das classes sociais que deles derivam.
Em uma luta pela defesa dos trabalhadores chegou a publicar um texto de conteúdo
marxista defendendo estas causas e a Revolução Socialista Russa.
Sua saúde abalada levou-o a internar-se por duas vezes, e o fato de ter
perdido a proteção de um tutor com a importância do ex-ministro da Marinha Imperial
deve tê-lo deixado insatisfeito, possivelmente irritado e estressado com os rumos de
sua vida, as circunstâncias conjunturais e as suas leitura e as interpretações
sociopolíticas de seu tempo, as propostas e a instabilidade da república recém
instaurada, de certa forma alterando as suas relações psicossociais e no trabalho, e
talvez deteriorando ainda mais a sua fé no novo regime político instalado. Em 1914,
no Hospital Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, na Urca, na então capital
federal, aos 33 anos – transtornado e com alucinações supostamente provocadas
pelo abuso do álcool e em camisa de força – é internado e, noutra segunda vez, em
1919, no Hospício Nacional (6) onde veio a falecer em 1922, aos 41 anos por “colapso
Conselho de Ministros da Monarquia, preso e exilado em 1899, logo após a proclamação da República.
3 Partido Operário Independente - Fac-símile – Correio da Manhã, 23 de abril de 1905. Em:
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_01&pagfis=7959&pesq=&url
=http://memoria.bn.br/docreader#
4 Recordações do escrivão Isaías – o primeiro romance de Lima Barreto, publicado em Portugal, em
março de 1917.
5 Crítica favorável ao livro feita por José Bento Monteiro Lobato em – A barca de Gleyre – Globo livros,
1959 – p. 453
6 Informações contidas em documentos clínicos produzidos no Hospício Nacional e no Pavilhão de
Observação, entre 1900 e 1930. Disponível em: - http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v17s2/31.pdf
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cardíaco e gripe torácica”, dias antes de seu pai, lá também internado pelos mesmos
problemas.
Estes são, fundamental e possivelmente, de forma resumida, os leitmotiven
localizados pela nossa pesquisa, que lhes franquearam as bases e o levaram a
escrever Triste fim de Policarpo Quaresma, assim e aqui condensados, sem esgotar o
conteúdo amplo e tentacular de sua obra, escrita poucos anos antes de sofrer
definitivamente os efeitos da doença que o minava e da internação que terminaram
por matá-lo. Acrescente-se a isto o poder e o sentido-entendimento que dava a ele
(esteve próximo e circulava entre militares pelos corredores do palácio da Guerra
onde redundavam republicanos golpistas e adjuntos ao presidente Floriano) e a
loucura: o conhecimento teórico da vida militar, depreendido de suas experiências no
Ministério da Guerra, e suas duas passagens pelo Hospício Nacional, onde morreu
seu pai, e no qual se internou voluntariamente para tratamento de saúde.(7)
7 Diário do Hospício é um (de dois) documento escrito por Lima Barreto, um impressionante relato da
internação do escritor, entre o natal de 1919 e fevereiro de 1920, no Hospício Nacional dos Alienados,
no Rio de Janeiro, organizada por Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura, prefaciada por Alfredo
Bosi, pela editora Cosac Nayfi, 2010.
econômicos políticos e sociais da época, a sequência histórica, desde a derrocada
napoleônica e a influência dos tratados comerciais então feitos com a Inglaterra, e
além, os fatos particulares da família imperial portuguesa, em que pesem os seus
modos de tratar os personagens da corte, as relações de negócios e a economia
própria do Estado lusitano (FAORO, 2001), consubstanciaram-se nos fatos que
levaram o país a declarar-se politicamente independente da metrópole portuguesa em
1822, para, em seguida, tornar-se Império, antes de se tornar uma República.
Retrocedendo na contramão da história, comparativamente aos outros países do
continente, sem a participação popular tanto quanto no episódio da independência
política de Portugal preconizada por D. Pedro I, o Brasil adentrou à força de golpe
militar no modelo republicano, proclamado e imposto ao país por marechais, generais
e militares à revelia do povo, o que foi visto com desconfiança pela Inglaterra, mas foi
saudado pela Argentina, ao mesmo tempo em que gerava um alinhamento criador de
facilidades econômicas com os Estados Unidos em franca expansão industrial. O
golpe fora dado em certa medida como reação à morosidade da corte que, parece
também não pretendia alterações no status quo, nem na estrutura
burocrático-administrativa, política e socioeconômica do período pré-imperial da qual
remanescia e ainda se mantinha. Não houve consulta ou conclame à população,
desde sempre e então, mais uma vez, alijada das principais convenções e dos rumos
do país (FAUSTO, 1977).
Algumas panorâmicas e outros recortes aproximados de certos
personagens destacáveis no livro nos deixam entrever, erguida a cortina do sarcasmo
barretiano, diversos modos de vida compondo a população em sua diversidade étnica
e social. Desfilando orgulhosa e alheia, pisando no barro das ruas do subúrbio carioca,
e por entre mundanos de toda ordem, agia uma burguesia branca, fatia intermediária
dos substratos sociais ali apresentados, moralmente apequenada por seus interesses
pessoais, cheia de recalques, artificialismos e maneirismos frouxos, também
ancorada no modelo imperial e seu anacronismo, partícipes de um modo de ser
econômico, administrativo e político evocativo de outros e “novos” valores trazidos a
navios mercantes, galope e espada pelos ventos do tempo.
Estes são demonstrados, dentre outros exemplos da “modernidade” que
ganhava vulto e categorização, por exemplo, no aspecto cultural, pela introdução no
gosto daquela gente mediana de um instrumento musical, o violão, que no Brasil só
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Lima Barreto já assistira, dois anos antes, outro ataque militar ser
despejado sobre Canudos, na Bahia (MONIZ, 1987), em nome e em defesa do ideal
republicano, episódio sangrento e grotesco, naquela feita sob o comando do marechal
Floriano, ocasião em que morreram massacrados pelos canhões e pela moderna
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artilharia e fogo do Exército e das forças militares unidas, na região do Vaza Barris, no
sertão baiano, de um lado, todos os habitantes do campesinato alternativo: cerca de
30 mil brasileiros entre velhos, homens adultos, mulheres e crianças, orientados por
Antônio Conselheiro - e de outro lado, emboscados e surpreendidos pela capacidade
de resistência daqueles „matutos‟ simples, alguns milhares de soldados. O sistema de
terror e da propaganda aplicados e alardeados nos jornais cariocas seguia as regras e
a bula dos massacres e invasões do período medieval ou colonial realizados contra
perigosos inimigos estrangeiros: decapitação e exposição em praça pública dos
restos dos cadáveres dos insurgentes. Um museu expôs as fotos durante mais de um
mês no centro da capital da República.
Em 1911, surge o livro que coloca o personagem major Policarpo
Quaresma no cerne da segunda revolta da República cujo movimento central atinge a
capital da República, o centro do Rio de Janeiro e partes da periferia da cidade. Mas
aquele personagem curioso vem, a muito tempo já, sendo gestado no imaginário do
autor, fruto da sua leitura e crítica da realidade desde então. Os gestos dos próceres
da república não lhe passam desapercebidos, e o fato determinante de ser jornalista e
trabalhar nas redações, portanto, atualizado com os fatos de seu tempo, e de ter
tomado contato com procedimentos do Ministério da Guerra tornam afiados o espírito
e a sagacidade analítica de Quaresma, que nasce assim crítico, ácido e corroído pelo
azedume da realidade, pois seu criador é observador, partícipe e esperançoso de uma
nova ordem social. Como Lima Barreto, o personagem Policarpo tem consistência
histórica, é culto, erudito, um intelectual, não se julga um qualquer. É de boa índole,
tem bom humor e admite-se doido, vá lá, mas, ignorante de seu país e dos males que
o acometem, jamais! Seu perfil apaixonado é amargo e ingênuo, e ao mesmo tempo,
detém irônica capacidade de corrosão. Este conjunto de qualidades, atributos éticos e
morais singulares, deforma-se no contínuo do romance, e ele inadvertidamente
transpõe o espaço que havia entre funcionário público ousado e inconformado ao
posto de subalterno indisciplinado, quando propõe a adoção do Tupi como língua
oficial do país e distraidamente encaminha ofício ao superior do gabinete no Ministério
da Guerra, onde trabalha, escrito na língua indígena, provocando a ira e a indignação
de seus chefes, para, em seguida ao fato, ser retratado pelos folhetins e imprensa da
época, sequiosa de fofocas e atenta às gafes e detalhes das ações governamentais, à
procura de um bobo na corte. Por fim, no entardecer do romance, isolado e preso
torna-se “criminoso de guerra‟, é condenado à prisão e à morte por traição, ele que,
em seu idealismo apaixonado só pretendeu as mudanças, só quis e procurou imprimir
conceitos e caráter de qualidade e firmeza na condução do país que sabia rico, na
execução de um projeto baseado na justiça e na nobreza da República, regime
recém-inaugurado à força de assalto e golpe militar, e no qual, de fato, como deixa
entrever em seus comentários finais, dadas estas características, com o desenrolar
dos fatos e à mercê destes descrê, deixando entrever pelas suas elocuções o que
verdadeiramente pensava o autor de suas peripécias, que enfim o descreve quase
como um herói sem forças para exercer sua razão, impotente para consubstanciar as
causas que o movem.
Sozinho, e às vezes cercado de sicofantas e inúteis, o major, de certa
forma, parece encarnar a República que é retratada e discutida pelos personagens
como um regime que se instaura à revelia da anuência popular, à maneira dos
conquistadores e invasores imperialistas, sem o contrato firmado com a população
civil sempre relegada durante todo processo colonial a um plano inferiorizado, e mais
uma vez, ignorante na sua maioria, irresponsável e irresponsiva do projeto que lhes é
imposto, desta feita por marechais furiosos e contrários à presença de monarcas
portugueses, contra quem, por militância política e forte inclinação anarquista, Lima
Barreto, a mão que pinta Quaresma, dispensa ataques velados e crítica mordaz.
Estava o regime, de tal sorte, fadado ao fracasso? Tinha de dar naquilo.
Um fim trágico, com os elementos literários necessários para se confirmar como tal,
tratado com nuances de loucuras e pantomimas que lhe conferem, ao mesmo tempo,
suave sabor de comédia. Lima mata Quaresma, mas antes torna-o patético,
ridicularizo-o em diversas ocasiões, juntamente com outros personagens a meio
palmo da mediocridade, coloca-o em um hospício e, noutra feita, a lutar contra
formigas (talvez apontado a sua inglória disposição de lutar contra o que não se pode
nem se deve lutar), ele o mata no final porque o trata como um sonho que mal se tem
e que logo se transforma em pesadelo. Como a república e sua instauração. Era
melhor acordar!
Trazido para o meio de uma luta travada entre grupos rivais, ainda que
baseados na Lei, cada qual com sua interpretação do que fosse esta, o anti-herói
major Policarpo Quaresma, um intelectual nacionalista visionário de boa índole nela
se envolve inocentemente, sofre por seus ideais e suporta o peso e a crueldade do
conflito armado, das traições e da indiferença sórdida de seus próximos, daqueles
com quem convive, misantropos interessados apenas e tão somente em seus próprios
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negócios, como vai apontando nas passagens da narrativa: o médico sociopata que
se casa com sua afilhada Olga, um individualista e egoísta que só quer ficar rico, as
conversas com os militares reformados que nunca foram à guerra, mas vivem nas
repartições, dando movimento aos trâmites burocráticos que podem melhorar as suas
aposentadorias etc. Quaresma é preso e encarcerado em uma ilha por aqueles que
um dia ajudou em combate e morre abandonado – executado? - pelos mesmos que
viviam em sua casa, mas no final o negam e lhes viram as costas. A revolta na qual se
joga como defensor do marechal Floriano Peixoto é uma luta para a qual se procurou
dar feições de conturbação e convulsão social, mas sem a participação popular –
deseducada e mais uma vez alheia –, conduzida pelas mãos de uma elite mesquinha
e dissociada do resto e das verdades profundas do país, é mera continuação do golpe,
e é neste subterrâneo de intenções, neste vazio moral que Lima coloca o major. Entre
a tibiez moral daquela gente que fala de país, de honra e dos grandes fatos políticos
que determinam a vida das pessoas, mas que sob a luz de um olhar mais perspicaz
desnuda a falsidade e o rasteiro de suas intenções.
Treze generais decidem que o presidente marechal Floriano Peixoto
deveria seguir a Constituição e chamar nova eleição para o cargo que ocupara após a
saída de marechal Deodoro da Fonseca. A Constituição de 1891 garantia que, se a
presidência ou a vice-presidência ficassem vagas antes de se completarem dois anos
de mandato, deveria ocorrer uma nova eleição, o que fez com que a oposição
começasse a acusar Floriano por manter-se ilegalmente à frente da nação. Ocorre a
Segunda Revolta da Armada, em 1893 (MARTINS, 1997).
Mas como fazer uma revolução se aquela era uma população distante, sem
a menor vontade de participar do processo “revolucionário republicano”, porquanto
ignorante do que vinha ser este ou aquele modelo político? “[...] Eu sei lá[...] Urubu
pelado não se mete no meio dos coroados. Isso é bom pro „sinhô‟” (BARRETO, p. 141)
parecem dizer em uníssono, Felizardo, Anastácio e Mané Candieiro, os negros
roceiros que cuidam do sítio do major em Curuzu, e que tão logo ouvem falar da
insurgência se metem no mato e desaparecem para não serem convocados para lutar.
Nisso reside a ironia de Lima Barreto que expõe a mixórdia, a algaravia da sociedade
brasileira, presa dos pequenos grandes planos e interesses grupais, desconectada da
realidade maior e social, enlouquecendo e adoentando aqueles que a querem
entender e sanar-lhe os problemas, mas tendo de ao mesmo tempo de debater-se
com saúvas que invadem a plantação e a põem a perder de uma noite para o dia, cem,
mil, milhões... Simbolismo profundo!
Lima Barreto fatia a realidade, e a disseca em gestos, esmiúça-lhe as
situações, circunstâncias, causas e efeitos, e assume o olhar e a fala de quem a
descreve ficcionalmente.
A vida do major, que usa uma patente militar não desejada, comprou-a de
ocasião por 400 contos durante a passagem em que assume a resistência
pró-Floriano Peixoto – de quem traça perfil definitivo: cruel e ao mesmo tempo patético
– é, contudo, de uma riqueza impressionante, de uma abundância de informações e
conhecimento sobre seu país, capazes de colocá-lo acima dos generais, almirantes e
demais postos que o circundavam, metidos que viviam no dia a dia de seus afazeres
mesquinhos e nos escaninhos daquela burocracia empesteada de provincianismos,
distante da racionalidade weberiana, ainda estruturada e alimentada pela seiva
viscosa das raízes do feudalismo imperial português. (JURT, 2012). Eis porque, talvez,
da escolha de seu nome Policarpo.
Em sua busca quixotesca com um violeiro como escudeiro não oficial (a
característica impressa pelo escritor Miguel de Cervantes, espanhol do século XV e
autor de Dom Quixote de La Mancha configura-se intrínseca aos heróis sonhadores),
uma ironia fina parece perpassar os arroubos nacionalistas do major Quaresma pela
construção de uma República fortemente embasada em ideias de nobreza de caráter,
honra revitalizada e pura, fato que por si, graças à analogia, deixa entrever a
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8 O mais célebre dos heróis da mitologia grega, um semideus (meio homem meio deus), o símbolo do
homem em luta contra as forças da Natureza. Era filho de Zeus (pai dos deuses) e Alcmena (uma
mortal), a virtuosa esposa de Anfitrião, que foi ludibriada pelo pai dos deuses e por ele fecundada.
Morreu, segundo a lenda, abrasado por paixões, após vingar-se da morte da amada e por matar Quíron
sagrado, um centauro que fora seu mestre nas artes da luta e da defesa.
Macunaímico (9), suas saúvas podem muito bem ter servido de inspiração
para modernistas como Mario de Andrade (também mulato e interessado pelas
“coisas” do País), seu nacionalismo utópico personifica crítica mordaz, ironia e malícia
a uma patriotada emergente e/ou resistente, desde a Canção do Exílio (10 ) ilustração
acadêmica das belezas que apenas olhos e sentimentos étnicos e socialmente
adestrados pelo caldo cultural europeu e branco – o olhar de fora – podiam refletir. Ao
ridicularizar os militares de gabinete, aqueles almirantes sem esquadras ou navios,
generais que jamais deram um tiro em guerra, desertores interessados apenas e tão
somente em suas próprias patentes e promoções, Policarpo Quaresma revela-nos
Lima Barreto, e ironiza sua crença na ordem e no progresso positivista defendido
pelos militares republicanos cujo lema encima o auriverde pendão nacional. “O
general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse.
Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando,
nada fizera que tivesse relação com sua profissão!” (BARRETO, 1997, p. 36). E
coloca os mequetrefes e os pândegos em fila “[...] O Contra-almirante era
interessantíssimo. Na Marinha por pouco que não fazia pendant com Albernaz no
Exército. Nunca embarcara, a não ser uma vez [...]” (BARRETO, 1997, p. 52),
descrevendo-os, inclusive como descrentes da educação, da ilustração pelos livros,
nacionais e estrangeiros, estudos sérios sobre os quais, ele, Quaresma, erguera todo
o seu conhecimento. Mesmo sua crítica em relação ao marechal-presidente Floriano
Peixoto, ao traçar-lhe o perfil, é definitiva, demolidora, e nela inclui subliminarmente
crítica à mestiçagem, à mistura das raças que desgraçadamente também nos
conforma como país:
9 Macunaíma, do escritor paulista Mário de Andrade é tido como um dos principais romances
brasileiros do modernismo literário e artístico cultural de 1922. O livro surge em 1928, seis anos após a
morte de Lima Barreto que foi considerado um dos grandes renovadores da linguagem romanceada
pelos intelectuais que fazem o Movimento de 22. Mário também era mestiço.
10 Canção do Exílio - poema escrito em Coimbra – Portugal, em Julho de 1843 por Antônio Gonçalves
Dias, poeta, advogado, jornalista e, curiosamente mestiço, nascido em agosto de 1823, no sítio Bom
Vista, em terras de Jatobá, município de Caxias – MA. Morreu aos 41 anos em um naufrágio do
navio Ville Bologna, também no litoral maranhense.
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/exilio/index01.html>. Acesso em: nov. 2014.
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11 A origem da família, da propriedade privada e do Estado é uma obra de Friedrich Engels, e analisa
pelo viés do materialismo científico dialético, desde o início dos tempos, o desenvolvimento da
civilização. Foi publicado pela primeira vez em 1884.
[...] ele que há trinta anos estudava o Brasil minuciosamente; ele
que em virtude destes estudos, fora obrigado a aprender o
rebarbativo alemão, não saber tupi, a língua brasileira, a única
que o era – que suspeita miserável! Que o julgassem doido -
vá![...] (BARRETO, 1997, p. 68)
Não era doido o major, ingenuamente apaixonado por seu país, sim. Mas, o
tratamento a ele dispensado por todos, à exceção de Coração dos Outros, o amigo
violeiro, era este mesmo: “Você, Quaresma, é um visionário[...]” (BARRETO, 1997, p.
219).
Suspenso de suas funções de subsecretario de onde trabalhava,
Quaresma é tido como louco e vai-se para o Hospício. Lugar comum aos que afinam
diferentemente do diapasão consensual e têm ideias próprias. Não se revolta, e de
fato, aproveita o tempo ocioso para fazer breve análise da condição da loucura (o
próprio Lima Barreto redigiu textos sobre sua passagem pelo “sanatório”), e em
seguida principia a estudar, arquiteta e se lança num plano ambicioso – o de cultivar
as terras que possuía, um sítio chamado Curuzu, com o fito de provar-lhe as
qualidades e pujança. “O Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais bem dotado, e
suas terras não precisam de „empréstimos‟ para dar sustento ao homem. Fique certo!”
(BARRETO, 1997, p. 151).
Lima Barreto é esteticamente apaixonado pelo Império, e deixa entrever
este amor àquela sensação de estabilidade ao descrever em poucas linhas “a
simplicidade do antigo palácio do imperador as palmeiras imperiais, a beleza daquele
monumento etc.[...]” (BARRETO, 1997, p. 167) ou pelo menos via nisso alguns
valores a serem mantidos. Evolutivamente todas as formas de governo carregam
genes umas das outras, todas se parecem e se balizam pela conquista e manutenção
do poder. Mas, é revolucionário, apoia os ideais libertários da revolução russa que
aboliu as antigas castas aristocráticas e feudais que ainda vê funcionando no Brasil.
Critica o Positivismo (12) de uma facção militar que tentava se impor como corrente
filosófica dentro das Forças Armadas e implementado na política pelos militares de
nossa primeira República e da ditadura de Floriano a partir de 1920.
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É sobre esta mistura de povos, culturas, línguas e credos, cada qual com
uma visão de mundo e uma perspectiva diferenciada sobre um torrão rico e
exuberante que se pretendeu construir uma República, depois de os militares
retirarem pela espada os últimos monarcas. E o major Policarpo Quaresma responde
a isso, positivamente: conhecendo o território, suas mazelas e remédios, suas
riquezas e recursos, e pode-se, enfim, domá-lo. Para tanto é preciso educar os
homens, aplicar a justiça social, distribuir a riqueza e partilhar a cultura, fomentá-la e
traduzi-la como a canção universal harmonizando com todas as outras individual e
indistintamente. Sabe, porém, que lhes falta algo.
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MARTINS, Hélio Leôncio. Revolta da Armada. São Paulo: Ed. Biblioteca do Exército,
1997.
MONIZ, Edmundo. Canudos, a guerra social. 2. ed. São Paulo: Elo Editora e
Distribuidora, 1987.
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SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo: Ed. Cosac Nayfi, 1984.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 10. ed. São Paulo:
Graphia Ltda. p. 566-8