Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
2
FREUD, A perda da realidade na neurose e na psicose, in Obras completas, v.XIX. Rio de Janeiro: Imago,
1976, p. 229.
3
FREUD, S., Sobre a gênese do fetichismo, in Revista Internacional da História da Psicanálise, n.2, Rio de
Janeiro, Imago, 1992, p.371-387.
à fantasia o lugar que ela tem no psi- Do lado desta temos o princípio de
quismo. prazer, dominado pela fantasia, e do
Não é sem motivo que Lacan conce- lado da pulsão de morte, o mais além
berá o fim da análise como ligado à ques- do princípio de prazer.
tão da fantasia, mencionando a sua tra- Tudo isso ocorre nas neuroses e nas
vessia. A fantasia é uma espécie de matriz perversões. Em ambas, há ação do
psíquica que funciona mediatizando o Nome-do-Pai, há recalque originário e,
encontro do sujeito com o real. Ela é uma por conseguinte, a instauração da ma-
matriz simbólico-imaginária que permite triz psíquica chamada fantasia incons-
ao sujeito fazer face ao real do gozo. ciente fundamental.
Se tomarmos a noção de pulsão de No caso da psicose, essa constelação
morte na obra de Freud que foi, na não ocorre, porque a foraclusão do signi-
verdade, valorizada por Lacan , vere- ficante Nome-do-Pai produz uma falha
mos que o que ele chama de morte é o no recalque originário de tal modo que
que Lacan chama de o gozo. essa fantasia não se instaura e, por que
Há um vetor que rege nosso psi- ela não se instaura, o psicótico tenderá
quismo. Para Freud, esse vetor único, a, no melhor dos casos, a produzir um
fundamental, se chama pulsão de mor- delírio que preencherá essa lacuna, esse
te. Na leitura que faz de Mais Além do vazio. Esse vazio é a própria psicose.
Príncipio do Prazer (1920), Lacan afir-
ma que toda pulsão é pulsão de morte. Neurose e Perversão
Freud disse exatamente a mesma coisa
com outras palavras. Tomemos, agora, a fórmula da fan-
Felizmente, muitos de nós não vi- tasia para tentar ler nela a diferença que
vemos submetidos a esse vetor, que, por há entre neurose e perversão: .
definição, é mortífero. Alguma coisa Podemos ver nela dois pólos: se a
acontece que nos permite lidar de uma fantasia é a articulação entre o incons-
forma diferente com esse alvo da pul- ciente e a pulsão, podemos situar, no
são de morte: o gozo. Essa alguma coi- lado do , o pólo inconsciente, e no lado
sa se chama fantasia. do objeto a, o pólo pulsional. No pri-
Ela surge a partir de uma operação meiro temos o sujeito, que é barrado
chamada recalque originário, operação pela linguagem, pelo significante, en-
agenciada por um significante, o signi- tre S1 e S2, e no segundo, o elemento
ficante Nome-do-Pai. O recalque ori- que é aquilo que se inscreve na fanta-
ginário resulta sobre o psiquismo da cri- sia como mais-gozar, como a inscrição
ança a imediata instauração dessa ma- do gozo que era absoluto, mortífero e
triz psíquica: a fantasia. Esta, por sua que, na fantasia, se transforma num
vez, fará com que aquilo que era em- gozo limitado: o gozo fálico. Este é o
puxo-ao-gozo, como diz Lacan pul- gozo submetido à linguagem, ao falo.
são de morte, empuxo na direção da Podemos, também, dizer que o pólo
morte , seja freado e passe a ser uma inconsciente é o pólo simbólico, e o
região na qual a pulsão de morte é se- pólo pulsional é o pólo real da fanta-
xualizada. Nessa região, a fantasia pas- sia. Do lado do primeiro do , do
sa a dominar pelo menos um trajeto inconsciente, do simbólico podemos
dessa pulsão de morte. É o que Freud situar o amor e do outro lado do ob-
chama de pulsão de vida e que, para jeto a, da pulsão, do real podemos si-
nós, é a pulsão sexual. tuar o gozo.
32 Estudos de Psicanálise Rio de Janeiro n. 29 p. 29 - 38 Setembro. 2006
A Travessia da Fantasia na Neurose e na Perversão
tenção de um traço que é forte na psi- e num mesmo sujeito, ela também apa-
cose: o gozo. Isso se inscreve na per- rece na cultura. A cultura traduz essas
versão, mas não como na psicose. Ins- fixações. A história da música popular
creve-se de outra maneira, pela presen- recente é um bom exemplo disso.
tificação do objeto a, do objeto mais- Em 1966, em Liverpool, nasceram
gozar. dois grandes grupos de rock: os Beatles
Na neurose, há também essa saída, e os Rolling Stones. Os Beatles tive-
há um corte em relação à psicose. A ram uma existência efêmera, foram um
dimensão que dominará, porém, é a cometa que atravessou a existência da
do simbólico e, portanto, a dimensão música e deixou rastros em todos nós.
do amor ao Pai, que vem, como radical Os Rolling Stones existem até hoje,
alteridade, frear o empuxo ao gozo. E dando shows no mundo inteiro, gra-
a criança neurótica se atém a esse ele- vando discos etc. O que me chama a
mento que a salvou. A fantasia amo- atenção é que os Beatles foram um gru-
rosa é uma salvação. po que cantou essencialmente o amor.
Freud desenvolve essa idéia prin- Por exemplo, All you need is love,
cipalmente num artigo do ciclo da fan- para tomar uma canção deles que é pa-
tasia, chamado Fantasias Histéricas e sua radigmática dessa posição. Já a canção
Relação com a Bissexualidade (1908). paradigmática dos Rolling Stones é Sa-
Trata-se de um texto sobre a relação tisfaction: I can´t get no satisfaction,
entre pulsão e fantasia. É muito curio- But Ill try, but Ill try, but Ill try. É a
so que ele seja do primeiro dualismo própria pulsão falando...
pulsional e ainda não tenha a articula- Talvez esses grupos e a presença
ção entre pulsão de vida e aquela de deles em nossa vida e em nossa cultura
morte. É possível, porém, encontrar signifiquem que o amor é mais frágil
todos os elementos sustentando que a que o gozo, que o gozo é a busca da
fantasia freia o empuxo ao gozo da pul- satisfação absoluta que se repete com
são de morte. uma intensidade impressionante, na
O problema é que, como tudo no medida em que há esse vetor insistente
nosso psiquismo, a fantasia tem dois la- em nós. Tudo indica que Mick Jagger
dos: ela é uma salvação, mas também é cantará e dançará até os 80 anos. E
uma patogenia. Pelo próprio fato de nós com ele, o que é interessante.
que ela nos salvou da derrelição abso- Mas vamos também cantar com
luta na qual estamos fadados pela pul- os Beatles. Poucos de nós sabem de cor
são de morte, vamos nos agarrar a ela a letra de uma música dos Rolling Sto-
com unhas e dentes. Isso é o que Freud nes, mas muitos aprenderam inglês com
chama de fixação. Agarramo-nos à os versos de John Lennon e a música
fantasia com tanta intensidade, que ela dos Beatles.
passa a ser um núcleo da nossa vida, e Mas a música não é o único exem-
passamos a produzir uma série de coi- plo cultural que temos das fixações nos
sas chamadas sintomas, que são a per- pólos da fantasia. O pólo do amor se
petuação constante da nossa relação traduz também pela religião no qual há
com a fantasia. Ela tem, então, uma uma fixação nele por meio dela. E o
dupla face: uma face de salvação e uma pólo do gozo se traduz pela pujança do
face de produção patológica. capitalismo.
E assim como há uma báscula en- É possível perceber certa rivalida-
tre amor e gozo nas estruturas clínicas de entre religião e capitalismo, que se
Estudos de Psicanálise Rio de Janeiro n. 29 p. 29 - 38 Setembro. 2006 35
A Travessia da Fantasia na Neurose e na Perversão
expressa até pela arquitetura das cida- um lugar da fantasia. E acredito que,
des. Em Salvador, Belo Horizonte, no na cultura, há, hoje, dois discursos que
Rio de Janeiro, é possível ver templos sustentam esse lugar: a psicanálise e a
religiosos de novas seitas evangélicas arte. A arte é também um discurso
construídos em frente aos grandes sho- poderoso que tenta sustentar esse lugar
pping centers. Um espelha o outro, bri- do vazio e da falta.
gando por primazia. Passamos, ali, no
meio desses desfiladeiros de fixações de
amor, na religião porque a religião é Keywords
uma fixação no amor: Amai-vos uns Fantasy Unconscious Drive Neu-
aos outros , e de gozo, no capitalis- rosis
mo, com aqueles objetos todos que nos
são oferecidos e vendidos de uma ma- Abstract
neira tão excessiva. The author starts from a new concept of
Mas não é só a neurose e a perver- fantasy: the articulation of the unconscious
são que se traduzem na nossa cultura, a with the drive or, in other words, from the
psicose também o faz. E parece que ela language to the sexuality. Two different
o faz pela ciência. É preciso que nós, points are in the lacanian matema of fan-
analistas, possamos dizer, com todas as tasy: the one of the unconscious ( ) and
letras, que a ciência está louca. A ci- the one of the drive (a). Neurosis and per-
ência enlouqueceu, perdeu os limites. versions are broached in its fundamental
Hoje, ela mistura espécies, clona os ani- positions: in neurosis, the fantasy of love
mais a bel-prazer e quer fazer isso com fulfillness. This one is much valued and
o ser humano. O ápice dessa loucura, corresponds to the fixation of the subject
desconfio, é seu intento de transformar in the first unconscious point. In perver-
a reprodução sexuada em reprodução sion, the fantasy of the pleased fulfillness
assexuada. Isso é loucura. Não é à toa is dominated and corresponds to the fixa-
que, na cultura, existe a figura do cien- tion of the subject in the pulsional point.
tista maluco. O cientista maluco é um Positions of fantasys fixation are equally
traço da linguagem no inconsciente que indicated in culture, taken in moebian
denuncia que a ciência tem uma forte continuance of the structure of language
tendência à loucura, patente hoje em of the subject
dia.
Evidentemente que fomos adverti-
dos quanto a isso desde a época em que
o homem foi a Lua. Ali, começava uma
grande loucura, porque ir à Lua, é cla- Bibliografia
ro, é coisa de lunático.
A psicanálise propõe um quarto FREUD, S. O delírio e os sonhos na Gradiva
de W. Jensen, in Obras completas, v. IX. Bue-
lugar da fantasia, diferente daqueles tra- nos Aires: Amorrortu, 1996.
duzidos pela religião, pelo capitalismo FREUD, S. As fantasias histéricas e sua relação
e pela ciência. Nem a fixação no amor, com a bissexualidade, in Obras completas, v.IX.
nem a fixação no gozo fálico, nem a Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
fixação no gozo absoluto. Ela propõe FREUD, S. Pontuações psicanalíticas sobre
um caso de paranóia (Dementia paranoides)
um lugar do desejo, que é aquele lugar, descrito autobiograficamente, in Obras
no matema da fantasia, entre e a pe- completas, v.XII. Buenos Aires: Amorrortu,
queno. Porque aquilo ali é um lugar, é 1996.