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XXXVIII MIGUEL REALE

Restam} por certo) muitos e muitos aspectos da Epistemologia


JU1"ídica a ser considerados} mas os aqu,i examinados bastarão para F-nsaio /
dar maior consistência e plenitude à teoria tridimensional do direito}
dernonstrando a f ecundúlade de seus pressupostos no sentido de
uma compreensão mais íntima entre filósofos e juristas} cada qual
f iel às rcspecth'as áreas de estudo.
Se a publicação de um liv1"0 alberga vários motivos determi-
nantes} há) no presente} também o de contribuir para o reconheci-
lnento de que o Direito é uma das ciências fundamentais da expe-
riência humana} numa época em que parece só haver olhos abertos o PROBLEMA DA EXPERIÊNCIA JURíDICA
e extasiados para a tecnologia} como se esta pudesse significar algo
divorciada do problema ético essencial do homem.
SUMÁRIO: I - A crise da teoria da expenencia jurídica e a
a tualidade do tema, II - As três perspectivas filosóficas funda-
São Paulo} Julho de 1968 mentais da experiência juridica : • a) a posição imanente; b) li
posição transcendente; c) a posição transcendentaL III - A
MIGUEL REALE experiência ética na linha de Kant e dos neokantianos. IV - A
experiência ética a partir da fenomenologia.

I
A CRISE DA TEORIA DA EXPERffiNCIA JURíDICA E
A ATUALIDADE DO TEMA

§ I. Desde o momento em que se alargou o conceito de "expe-


riência" para nêle se incluir a esfera da ética, com mais clara
consciência dos processos epistemológicos adequados à compreensão
das realidades histórico-sociais e com a concomitante determinação
ôntica de suas estruturas, abriram-se melhores perspectivas para
o estudo do problema da "experiência jurídica", que já tende a
atrair novamente a atenção de filósofos, juristas e sociólogos, rea-
tando-se uma linha de estudos prematuramente abandonada, apesar
dos resultados obtidos em alguns ensaios de real valia 1.
Vários fatôres terão contribuído para o abandono de um
assunto de tão fundamental importância, e que já suscitara,
desde o primeiro após-guerra, uma preciosa bibliografia 2 . Não

1. Sôbre o reaparecimento das teorias sôbre a expenencia jurídica


vide o recente estudo de RECASÉNS SICHES, em Dianoia, n. 9 XI, México, 1965,
onde o leitor encontrará plenamente demonstrada a atualidade do t ema,
bem como a necessidade de sua reformuJação.
2. Só para me referir a traba lhos que cuidam especificamente da expe-
riência jurídica, lembro, a título de exemplo: GIUSEPPE CAPOGRASSI - Ana.lisi
dell'Esperienza Com1M!R, Roma, 1930; St1tdi suZI'Esperienza · Git~ridica, Roma,
1932; II Problema. della Seienza deZ Diritto, Roma, 1937; G. GURVITCH -
UExpérienee Juridique et la Philosophie Plw'ali<;te du Droit, Paris, 1935;
T. CASTIGLIA - UEsperienza GiJu·ridica, ed il Concetto di Stato, Turim, 1933;
LUlGI BAGOLINI - Diritto e Scienza Giuridica nella Critica dei Concreto,
Milão, 1942; G, P. HAESAERT - La Forme et le Fond du Juridique, Bruxelas.
1934 ; WIDAR CESARINI SFORZA - Oggettività e Astratezza nell'Esperienza
Giu1'idica, (934) em ldee e Problemi di Filosofia Giw'idica, Milão, 1956,
() illHEITU COi\íO I': X Plcrn(;1':ClA 2.
2 MIGUEL REALE

necessürinl11enie circunscrito, e recebê-la como um dcu10 objetiva-


será demais uma referência, embora sumarIa, a tais motivos, ment e vúlido.
mesmo porque a sua análise objetiva poderá talvez conduzir-nos Como veremos, uma das questões mais deli cadas com que se
a mais rigorosa colocação dos dados do problema. defront a o estudioso da experiência jurídica consiste exatamente
Antes, porém, não posso deixar de notar que, não obstante o em resolver se se trata de assunto que, por sua natureza, se situa
decréscimo de interêsse pela problemática da "experiência jurídica", também no [nnbi to da Jurísprudência (Ciência do Direito), isto é,
êste têrmo nunca deixou de ser empregado por juristas de tôdas em [unçüo da vigência e da eficácia dos ordenamentos jurídicos
as orientações e países, o que poderia ser maliciosamente explicado positivos, ou se equivale apenas a mais um "ponto de vista" sõbre o
como desamor ao rigor da linguagem, ou pela paradoxal e subj a- direito, significativo nos domínios da Filosofia, mas sem reper-
cente influência de um conceito recebido inadvertidamente como cussüo efetiva no plano da ciência positiva.
de sentido pacificamente determinado, às vêzes no instante mesmo É de excluir-se, penso eu, possa o assunto ser tratado tão-so-
em que se proclamava a inutilidade de dedicar-lhe um instante mente à luz de fatos históricos contingentes, como se daria, por
sequer de atenção 3. Bastaria êsse fato singular do persistente uso exemplo, com a vinculação do conceito de "experiência jurídica"
do têrmo, para exigir-se a retomada do discurso que com êle se àqueles elementos de ordem doutrinária e fática que determinaram
confunde. o aparecimento dos primeiros estudos sôbre a matéria. Por quais
Volvendo, porém, ao fio da análise que me proponho realizar, motivos, em verdade, haveriamos de configurar um tipo inamovível
parece-me plausível apontar, como causa originária do compro- de "experiência jurídica", nos moldes do correspondente à realiza-
metimento do nosso tema, a falta de uma prévia indagação de çáo dos fins que os pesquisadores do primeiro após-guerra tiverem
ordem gnoseológica, destinada a discriminar os dois possíveis tipos em vista, em sua luta contra o formalismo juridico ou a estatalidade
de pesquisas da experiência jurídica, evidentemente complementa- do direito, em prol do pluralismo das fontes normativas? Nâo há
res, mas nem por isto insuscetíveis de rigorosa distinção: a filo- dúvida que as primeiras expressões da "teoria da ea~periência jn-
sófica e a empírico-positiva. Em geral predominaram, neste ponto, rídica." surgiram como resultado de poderosas transformações so-
duas tendências que não podiam senão empobrecer ou obscurecer ciais, devidas sobretudo ao impacto da ciência e da técnica sôbre
os dados do problema: uma, no sentido de se fazer total abstração os processos econômicos e as formas do viver comum, a que corres-
de quaisquer cogitações de caráter filosófico, ignorando-se, pura e ponderam Filosofias mais aderentes à problemática da ação e do
simplesmente, tudo o que ultrapassasse os limites estritos das re- concreto , como o pragmatismo ou o intuicionismo; é exato que a
lações fenomênicas; uma outra, no sentido de se tratar, concomi- atenção dos juristas foi despertada pelo direito espontâneamente
tantemente, dos aspectos filosóficos e científicos, quer por se partir revelado através do movimento sindical, à revelia do Estado e até
do pressuposto de uma radical identidade entre Filosofia e Ciência, mesmo em conflito com êle; é incontestável que a projeção dada
quer por se adotarem os princípios de uma doutrina, como a de aos estudos de Direito Processual assinalaram, a partir das últimas
Croce ou de Gentile, em cujos âmbitos a tarefa empírico-positiva décadas do século passado, uma orientação mais dinâmica no sistema
se põe como "pseudo-ciência", ou conhecimento condicionado e da Jurisprudência" assim como é inegável que a inadequaçào verifica-
segundo, particular e contingente. da entre as leis e os falos sociais suscitou o apêlo ao Direito Natural
ou a soluções de conteúdo axiológico, mas tudo isto não significa
É imprescindível, pois, para a boa ordem das pesquisas, reco- que aquela teoria deva ficar jungida ao quadro histórico-cultural
nhecer desde logo que a experiência jurídica se apresenta para o
filósofo como um "objeto" não coincidente com o ângul o de apre- que inicialmente lhe deu causa.
ciação do jurista como tal, pois êste, - qualquer que seja a sua Se houvesse tal vinculaçào, se estivéssemos irremediàvelmente
formação filosófica - , deve situá-la num "campo de realidade" ligados a uma configuração já definitivamente plasmada na tela
da história, a "experiência jurídica" deixaria de ser um problema
epistemológico fundamental, para valer como simples categoria
págs. 17-70; VINCENZO PALAZZOLO - OOMiderazioni 8ullct Na tura dell'Aziol1r.: histórica destinada à compreensão daquelas circunstâncias que,
e sul Oara.ttere dell'Esperienza Giuridicet, Pisa 1941. Quanto à situação atual
do problema, v. ENRICO OPOCHER - "Esperienza Giuridica", na Enciclo- durante certo tempo, a converteram em tema de relêvo nos qua-
pedia del Diritto, X V, pág. 735 e Luis RECASÉNS SICI-IES - "La Experiencia drantes do Direito 4.
Juridica", em Dianoia., fasc. cit., ambos com ampla bibliografia.
3. É de HEGEL esta nota irônica, iniciando a sua crítica ao empirismo 4. É dessa compreensã o parti cul a r do problema que não se liberta intei-
de LoCRE: "Geralmente, quando se fala de experiência, não se entende com ramente ENIlICO OPOCHER, no belo ensaio que escreveu sôbre o a ssunto
ela patavina ; e dela se fala, pois, como de coisa pacificamente n otória". (El1ódopedia deL Diritto, loco ci.t.). Apesa r , porém, de vincular o conceito
(v. Lezioni sulla Storia della Filosofia, trad. de Codignola ~ S l1nn a, Florença, ele experiência jurídica a determinados pressupostos históricos, sendo levado
1938, vaI. lU, 2, pág. 159).
4 MIGUEL REALE
o DIIlf::ITO COMO f::XI'ERIÊNCIA 5

Não há dúvida que a perquirição da gênese da teoria é indis- É essencial, por conseguinte, proceder-se ao estudo da questão
pensável, mas tão importante como a minuciosa análise dos fatôres numa atitude de objetividade fenomenológica, para verificar se
e das doutrinas que formaram o quadro conceitual, ao ser ela pela efetivamente há no conceito de "experiência jurídica", ou, por
primeira vez sistematizada, é indagar de suas razões mais profundas, outras palavras, no conceito do direito como experiência algo de
de algo, em suma, que nos explique o porquê de seu constituir-se universalmente válido para o jurista, ou se se trata apenas de um
como um ponto de convergência para o qual tenderam concepções conceito, não apenas problemático, mas polêmico, peculiar às épocas
filosóficas, sociológicas e juridicas tão díspares e até mesmo con- ele transiçüo ou de crise de estrutura.
trastantes.
A investigação, conduzida com êsse espírito, exige, pois, que,
Se, por outro lado, desponta novamente o interêsse pelo pro- primeiro, se procure determinar o "conceito de experiência jllrídica",
blema da experiência jurídica, e se, mesmo com o eclipse da teoria, com o rigor compatível com a índole das ciências culturais, para,
a sua expressão nuclear continuou sendo um valor positivo na lin- depois, se indagar das razões que, no primeiro após-guerra, deram
guagem comum do jurista, é sinal de que nos cabe renovar a nascimento a uma dada forma de compreensão do assunto, que não
pesquisa, numa análise que nos permita descer, de camada em ca- coincide com a ora vigente, como esta poderá também não corres-
mada, até ao eidos da questão, captando o que nela possua validade ponder à exigida em futuras circunstâncias: tais mudanças de pers-
universal na esfera da Jurisprudência. pectivas valem antes como estímulo à captação das possíveis raízes
Estou convencido, por conseguinte, de que qualquer investi- condicionantes do problema.
gação sôbre a experiência jurídica não pode partir a priori da
preconcebida tese de sua vinculação a dado sistema de idéias § 2. No parágrafo anterior apontei, como uma das razões da
e de aspirações, devendo-se, ao contrário, admitir-se, pelo menos perda de interêsse pela teoria da experiência jurídica, a falta de
como hipótese de trabalho, que o seu conceito, como tantos outros mais rigorosa determinação de seus pressupostos gnoseológicos, espe-
da história do Direito, é dêsses que, uma vez trazidos à luz da cialmente quanto à distinção entre a pesquisa do filósofo e a do ju-
consciência teorética, emancipam-se dos motivos transeuntes que rista. Mas essa imprecisão de conceitos não foi menos acentuada
o revelaram, para passar a desempenhar uma função positiva e no âmbito mesmo da ciência positiva.
necessária nos domínios da ciência. Refiro-me sobretudo a dois equívocos paralelos, o dos juristas
Não me iludo, evidentemente, com a possibilidade de um con- que acabaram por fazer uma identificação indevida entre direito e
ceito unívoco de "experiência ,iurídica". tão avultado é o número experiência jurídica, e o dos que pretenderam convertê-la em objeto
das perspectivas filosóficas e ideológicas que a condicionam, mas exclusivo da Sociologia Jurídica, graças a cujas contribuições e di-
não creio seja êsse motivo bastante para negar-se, de antemão, a retrizes caberia ao legislador elaborar as leis, assim como aos ju-
possibilidade de uma construção sistemática do direito como expe- risperitos a tarefa de interpretá-las e aplicú-las convenientemente.
riência, como não o impediria o seu natural caráter problemático, Experiencialismo jurídico (permitam-nos o neologismo) e sociolo-
por tratar-se de uma experiência axiológica, com todos os impre- gismo foram as duas facêtas com que se apresentou a apontada
vistos inerentes ao valor e à liberdade. O direito todo estaria em orientação reducionista, oriunda do esquecimento ou desconheci-
causa, se pudesse prevalecer essa antinomia abstrata entre o "pro- mento de que o conceito de experiência jurídica é bem mais amplo
blemático" e o "sistemático", só admissível com base num rígido do que o determinado pelo jurista ou pelo sociólogo no campus de
e equívoco conceito de sistema 5. suas respectivas indagações: à luz da teoria tridimensional do direi to,
penso ser possível esclarecer que o jurista aprecia a experiência
a excluir a possibilidade da "construção sistemática do direito como expe- jurídica no sentido vetorial do ato normativo, enquanto o sociólogo
riência", o mestre de Pádua conclui o seu trabalho afirmando qu e a colocação põe o problema no se ntido vetorial da eficácia, a nenhum dêles de
do assunto em têrmos problemáticos pode trazer relevante contribuição para per si cabendo o monopólio de tal ordem de estudos, e sem que, por
a Filosofia e a Ciência do Direito, pelo menos em três pontos fundamentais: outro lado, em ambas as hipóteses, "direito" e "experiência juridica"
a) no tocante ao conceito de Filosofia do Direito e à sua legitimidade como
Filosofia particular; b) sóbre a questão das relações entre histof.i cidade e se confundam.
validade axiológica do direito, ou, se se preferir, entre o direito como fato Ainda, neste passo, impõe-se uma advertência quanto à com-
histórico e o direito como valor; c) sóbre a questão do conceito de Ciência
Jurídica e, em particular, da função reservada ao jur ista quanto à "cons- plexidade e certa fluidez inerentes à matéria versada, pois, assim
trução" de seu objeto (loe. eit., pág. 746). como não é possível repudiar a Filosofia do Direito de Hegel sob a
5. Também a propósito do conceito de Dogmática Jurídica (v. infTa, alegação simplista de não ser obra de jurista, conhecedor dos mean-
págs. 123 e segs.) encontraremos essa falsa antítese entre "sistema" e dros da Jurisprudência, ou a validade científica da produção de
"problema".
Sa vigny, por se reputarem sumários os seus pressupostos filosó-
6 MIGUEL REALE o DIREITO CO M O EXPERI~NCIA 7

ficos, da mesma forma não haveria como pretender que todo so- de linguagem, a começar pela discriminação das diversas formas
ciólogo seja jurista e todo jurista seja sociólogo. São verdades de experiê ncia jurídica, em função das distintas modalidades do
óbvias, mas com freqüência nos esquecemos das conseqüências saber jurídico, sem ter havido sequer o cuidado preliminar de
nelas implícitas, no momento em que nos referimos à experiência situar-se o Direito (= Ciência normativa do direitn) "perante"
jurídica. ou "na" experiência jurídica.
Uma conseqüência, por exemplo, a tirar-se dessa verdade Em certos mestres pioneiros ou fundadores da teoria da ex-
prende-se à natureza mesma da Filosofia do Direito, que só uma periência jurídica, como é o caso especial do mais profundo dêles,
acanhada compreensão da experiência jurídica poderá levar a iden- Giuseppe Capograssi, o estilo colorido, e às vêzes de tonalidade
tificá-la com a Filosofia da Ciência Dogmática do Direito, como se romântica, traduz como que o entusiasmo e o ímpeto polêmicos
o jurisfilósofo pudesse se desinteressar pela problemática socio- de quem se opõe à predominante visão lógico-normativa do di-
lógica ou psicológica, etc. que naquela experiência se contém. O reito, sendo os problemas por êle enunciados segundo intuições
posterior constituir-se, por exemplo, da Sociologia Jurídica implica, que se articulam e se sistematizam em virtude da capacidade
ao contrário, o imprescindível dever que tem o filósofo de transpor ordenadora do autor, e não como resultado de uma clara fundação
os limites tradicionais do Direito, visto apenas "sub specie norma- epistemológica. Frise-se, desde logo, que não recuso a Capograssi
tivitatis", para inserir-se na totalidade e concretitude da experiên- a elevida preocupação pelas questões condicionantes da experiência
cia jurídica, de cujo processo o momento dogmático-normativo é jurídica, mas não me parece que passe de mera constatação das
parte essencial, integrante e constitutivo, mas não até ao ponto de dificuldades existentes a qualificação de ambigüidade por êle atri-
eliminar os demais fatôres, sem os quais, aliás, perderia êle a sua buída à Ciência do Direito no mundo da cultura 6. Daí a necessi-
consistência ôntica e o seu significado axiológico. dade de retomar-se a linha dessa e de outras contribuições valio-
sas, para melhor compreensão da natureza do direito e do objeto
§ 3. A terceira ordem de reparos, sempre com o propósito da Jurisprudência.
de vislumbrar as possíveis causas que levaram a se considerarem
precipitadamente sem sentido ou superados os estudos sôbre a
experiência jurídica, liga-se à amplitude mesma dêste tema, que II
se presta fàcilmente tanto a divagações como a observações frag-
mentárias, desligadas umas das outras, sem aquela continuidade AS TR.:f';S PERSPECTIVAS F1LOSóF1CAS FUNDAMENTAIS
e sistematicidade indispensáveis a qualquer investigação ele cará- DA EXPERIf;NCIA JURíDICA
ter científico, máxime em se tratando de matéria que, por sua
vastidão e riqueza ele perspectivas, exige a .cooperação de todns § 4. Reconhecida a correlação existente entre a compreen-
os que cuidam do direito, filósofos, juristas, sociólogos, historia- são filosófica e a científico-positiva da experiência jurídica, não
dores, antropólogos, psicólogos e politicólogos. A primeira fase será demais discriminar, logo no início dêste trabalho, as posições
dos estudos sôbre a experiência jurídica revela, ao contrário, co- fundamentais que se delinearam perante o binômio Filosofia-Ex-
mo que a "auto-suficiência" ele que se achava possuíelo cada inves- periência, a partir de Kant. Não obstante o caráter propedêutico
tigador, pouca ou nenhuma atenção dispensando certas pesquisas das noções que vão ser expostas a seguir, a confusão operada
filosóficas - máxime quando desenvolvidas sob o influxo do idea- entre elas não foi causa menor do comprometimento das pesquisas
lismo de Croce e de Gentile - , aos resultaelos atingidos, por exem- em curso sôbre o nosso tema.
plo, nos dominios fundamentais da Antropologia cultural ou da O conceito de "e;rperiência" é tão nuclear que põe, desde
Sociologia. logo, o problema de sua relação com a investigação filosófica, e
Ê claro que o filósofo não pode ser infiel à natureza de sua vice-versa, constituindo, por conseguinte, uma questão prévia que
especifica investigação, mas isto não quer dizer que possa fazer condiclona o conceito segundo de "experiência jurídica".
abstração das contribuições científico-positivas, a não ser que
de antemão as considere fruto de "pseudo ciência", ou receie ver 6. Cf. CAPOGRASSI - Il Problema della Scienza deZ DiTitto, cit., págs.
por elas contaminada a forma pura e absoluta ele seus pressupos- 32 e segs. e 220 e segs. :f; inegável que CAPOG RASSI afirma a necessidade de
tos transcendentais, pôsto, elêsse modo, um antagonismo absurdo um "método sintético" para a compreensão da experiência jurídica, mas êle
entre Filosofia e Ciência. não va i além de considerações genéricas sôbre a inadequação da abstração
generalizante para a problemá tica dos valôres, devendo ser integrada por
Faltou, por outro lado, a alguns autores a preocupação ue processos de "observação-implicação", aos qua is faz breves r e ferências. (Cf.
delimitar 0$ assuntos versados com os necessários apuro e rigor RoDOLFO BOZZI - Premesse allo Studio di Capograssi, Nápoles, 1965, págs.
52 e segs.).
U DIHEITO COMO EXPERlf:NCIA 9
8 MIGUEL REAl.E

Pois bem, para os objetivos estritos destas pagmas introdu- gidos : como veremos, as diversas formas de instrumentalismo ju-
tórias, se partirmos da já apontada correlação ou do binômio ridico correspondem a êsse tipo de compreensão da experiência
Filosofia-Experiência, poderemos discriminar pelo menos três ori- jurídica, em têrmos de cansalidade ou de funcionalidade, ad instar
entações fundamentais possíveis, conforme nos si tuarmos na ou do que ocorre no campo das ciências físico-naturais.
perante a experiência jurídica de uma forma imane.nte, transcen- Outra expressão do imanentismo jurídico, e de imanentismo
dente ou transcendental, ao indagarmos de seu sentido, ou das integral, é a correspondente à posição de Hegel, para quem ,não
razões de seu processus. Fixemos sucintamente tais posições: há diferença ontológica entre realidade e pensamento do direito,
por serem ambos momentos que, a seu ver, se dialetizam na uni-
dade concreta do espírito, nada se pressupondo fora do processo
a) a posição imanente
de objetivação ética, sendo o sistema do direito "o reino da liber-
dade realizada, o mundo do espírito expresso por si mesmo, como
Se afirmo que jamais posso ir além do plano dos eventos
históricos e considero os problemas jurídicos permanentemente uma segunda natureza" 7.
inseridos nêle e só explicáveis segundo os valôres inerentes às É certo que Hegel ainda emprega o têrmo "Di reito Natural" B,
relações que o constituem, assumo uma atitude filosófica de cunho mas em sentido bem diverso do até então prevalecente: em
imanente. Expressões de imanência jurídica são, por exemplo, o sua obra não há lugar para qualquer dualismo, como de um direito
sociologismo ou o neo-empirismo jurídicos, que andam muitas positivo subordinado a um outro, ideal e inhistórico; nem se con-
vêzes conjugados, assentes ambos no pressup'Osto de que só os cebe o ser distinto do dever ser, pressupondo-se um bem inatingível
fatos marcam, necessàriamente, os horizontes do direito. Tudo ou sem objetividade. Nesse sistema de idéias, o Direito Natural,
o que se elabora no mundo jurídico, quer pelo legislador, quer ou se confunde com a Filosofia do Direito mesma, ou corresponde,
pelos tribunais ou através dos usos e costumes, resulta, segundo na progressão imanente da eticidade, ao momento inicial e abstrato
tais doutrinas, das relações sociais mesmas, sendo, o mais das desta: é o "Direito Abstrato", isto é, o direito como liberdade
vêzes, as regras de direito explicadas indutivamente, segundo ne- imediata ainda indiscriminada, primeiro e fecundo mome.nto da
xos de causalidade ou fwtcionalidade. Nesse complexo de idéias, o objetivação do espírito, destinado a realizar-se ou a positivar-se em
Direito Natural não passa de um conceito metajurídico, ou de um sua plenitude através das [armas sucessivas da sociedade civil e
simples nome com o qual se procura dar ênfase e fôros de ciência do Estado 9 . À luz dessa doutrina, - como o demonstraram sobe-
a uma das possíveis tomadas de posição valorativa (e, como tais, jamente os estudos dos nco-idealistas italianos, aplicando idéias de
consideradas puramente subjetivas e incertas) no processo da ex- Croce ou de Gentile - , opera-se uma identificação entre direito
periência jurídica. e experiência jurídica, resolvendo-se todo em si mesmo o fato his-
Opera-se, nessa linha de pensamento, a redução do valor ao tórico do jUB, com uma interpretação absolutizante, e, a meu ver,
fato, do dever ser ao ser, visto como o valor não representa senão inadmissível, do verum ac factum convertuntu?' de Vico.
o resultado de um fenômeno psicológico, de ordem emocional ou Sabe-se que, do tronco da doutrina hegeliana, desprende-se a
volitiva, ou, tal como preferem dizer alguns, uma integração emo- teoria marxista do Díreito, também ela incompatível com qualquer
cional-volitiva de sentimento e de desiderabilidade. O dever ser,
sob êsse ângulo, equivale a uma diretriz possível do comporta-
7. HEGEL _ Gl'undlinien der Phi.losophie des Rechts, Berlim, 1821, § 4,
mento, como que uma resultante enucleada do seio dos próprios pago 14.
fatos: os valôres, dessarte, exerceriam função puramente indica-
8. Os Lin eamentos de Filosofia do Direi to, de HEGEL, ainda são enci-
tiva e operacional, não ultrapassando o plano da mera sugestão mados pela referência ao Direito Natural. mas só na aparência se trata de
tendente a facilitar ou determinar o advento de um dado resultado uma cont inuação dos tratados jusnaturaJistas, c ujo dualismo essencial entre
de ordem prática. Compreende-se, assim, a crítica de Benedetto real id ade e idea l conflita com o idealismo abso luto. De qualquer forma, é
Croce quando pondera ser o empirismo um pseudo-imanentismo, bom recordar o duplo título completo da 1.' edição da obra hegPliana: Na-
tWTechts 101(1 Staatswisscl1scJw.ft im Gnmelrisse II Gl'undlinicn eler P hiloso-
ou um imanentismo parcial, dada a implícita extrapolação do ele- TJhie dos R echts, Berlim, 1821 , um frontispício põsto ao lado do outro. quase
mento fático, que passa a operar como ped ra de toque ou de afe- a indi car a perplexa passagem do jusnatura l.ismo tradicional para urna nova
rição da experiência mesma, sendo por sua vez o material essen- e mai s profunda compreensflo da positiv idade do direito.
cial da própria experiência, num círculo vicioso manifesto. 9. Sõbre êsses aspectos do id ealism o hegeliano, v. m eu ensaio "Direito
Abstrato e Dialética da Positividade", em H ori·zontes do Direito e da Histórin,
Torna-se claro, todavia, que, enquadrada a experiência jurí- São Paul o, 1956, págs. 173-183. Para maiores esclarecimentos quanto às
dica em tal contexto, ela equivale ao reconhecimento de que o três posições aqui discriminadas, faç o remissão à minha Filosofia elo Direito,
direito só pode ser "experimentado" em função dos resultados atin- 4' ed., Sflo Paulo, 1966. Há uma 5,' ed. no prelo.
10 MIGUEL HEALE o DIREITO COi\!O ,;XPElllÊNCI A 11

dualismo e.ntre Teaz.idade e valo?') ser e dever ser, os segundos elição ele sua legitimidade, com'O preceitos ou mandamentos eternos,
têrmos dessas díades resultando dos primeiros em seu evolver albergando sempre as mesmas diretrizes essenciais de ação, de
histórico, por mais que, por sua vez, as chamadas "superestrutu- ['Orma abstrata e perfeita, não obstante a variabilidade natural de
ras ideológicas" possam vir a condicionar as fases ulteriores do suas aplicações. O Direito Positivo, ao contrário, contingente e
processo, atuando sôbre as infra-estruturas originais. É de notar-se, mutável, dependente da autoridade pública em função de critérios
aliás, que, no Direito soviético, sob o impacto da gnoseologia de de conveniência e de 'Oportunidade, deveria representar, para ser
Lenine, os estudos da experiência jurídica pouco se distinguem das moralmente válido, uma adequação necessária aos "institutos ideais
orientações empiricistas já indicadas, reduzidas as estruturas dia- elo Direito", ou, como se prefere dizer na linha do pensamento
léticas da experiência jurídica a meros esquemas operacionais em tomista, uma adequação aos princípios supremos da vida prática,
função dos planos políticos traçados pelos órgãos do Estado. válidos em si mesmos, das normas jurídicas positivas e de sua
execução, segundo exigê.ncias de ordem lógica e de prudência
política.
b) a posição transcendente
Dêsse modo, a verificação ou a "experiência" do direíto no
§ 5. Bem diversa é a pOSlçao daqueles autores segundo os plano empírico conter-se-ia dentro dos horizontes superiores e im-
quais, além dos fatos, num plano diverso do empírico e temporal, perativos da Justiça, expressão de uma harmonia e de uma ordem
é necessário admitir alguns paradigmas ideais, certas exigências transcendentes 9' .
objetivas e imutáveis, à guisa das idéias de Platão; são modelos
estáticos ou eternos, que não participam de nossas contingências
histórico-sociais, a não ser quando nos reportamos a êles, pro- c) posição transcendental
curando adequar àqueles arquétipos as expressões contingentes de § 6. Segundo uma terceira poslçao, o direito não resulta do
nosso comportamento individual e coletivo. processo fático, nem lhe é imanente, mas, por outro lado, também
A essa luz, tôda a atividade humana, tanto de ordem teorética é inconcebível como valor em si, desvinculado do processo histó-
como prática, desenvolvida pelo homem nos quadrantes da história, rico ou sem referibilidade à experiência, havendo em todo fenô-
elaborando doutrinas e leis, aprimorando técnicas e incutindo nos men'O jurídico dois aspectos a serem analisados, um quanto à sua
indivíduos e nos povos o respeito e o amor pelo Direito, ou seja, gênese, outro quanto as suas condições de possibilidade e de va-
todo o drama da experiência jurídica não representaria senão um lidade.
esfôrço constante de adequação a modelos transcendentes de Justiça. Ora, tôda vez que se pensa a experiência em geral, ou qual-
Em função de como se situam e se compreendem os nexos de quer tipo de experiência particular, em função de suas necessárias
correspondência entre o Direito Histórico e o Direito Natural ou ({condú;ões a pri,ori de possibil'idade", sem se extrapolar essa
o "mundo dos valôres", variam as diversas perspectivas e teorias, funcionalidade, o~ seja, sem se entetizarem os seus nexos relacio-
até às formas mais recentes de compreensão da justiça como "rea- nais (como se as condições de possibilidade existissem em si e por
lidade em si", consoante o ontologismo axiológico de N. Hartmann, si), configura-se uma te'Oria de cunho transcendental, na acepçã'O
de influência marcante em certas áreas da cultura hispano-ame- que êste têrmo passou a ter a partir de Kant.
ricana.
Há impropriedade, a meu ver, quando se diz que, assim como
Mas, por mais que haja diferenças entre os adeptos dêsse tipo
de Direito Natural ou de "paradigmas axiológico-jurídicos autô- "transcendente" se contrapõe a "imanente", "transcendental" se
nomos", não só distintos do Direito Positivo mas também dotados
de validade própria, o que os acomuna é a crença na transcendên- 9a. É claro que as discrimin ações constantes dos §§ 4 a 6 dêste Ensaio
cia da Justiça e dos demais valôres fundantes da experiência juri- obedecem às linhas dominantes das principais diretrizes de pensamento, sem
levar em conta variações ou composições mais ou menos ecléticas. No que
dica, ora sendo concebidos como realidades ontológicas, 'Ora como se refere, por exemplo, ao Direito Natural, há au tores contemporâneos que
expressões ou manifestações do Valor divino, fonte e fundamento sustentam uma concepção imanentista, preferindo apresentá-lo sub specie
de tôda a vida ética. historiae e não sub spec1e aeternitatis, até o ponto de se ler, nas páginas da
Givil!:à GattoZica (CXIV, 1963, n, pág. 329), que "os princípios do direito
Essas formas de transcendência, ainda quando nelas o Direito natural são imane ntes na experiência jur ídica concreta; estão na história,
Natural signifique apenas um reduzido número de princípios dire- não fora dela" (8. LERNER). Quanto ao superamento do "jusnaturalismo
tores da vida prática, importam no pressuposto de valôres jurídi- mcta-histórico", e ao "jusnaturalismo historicista", v. GUIDO FAss6 - La
Legge della Ragione, Bolonha, 1964, págs. 200 e segs. e CARLO ANTONI - La
cos não vinculados à experiência histórica e que seriam antes con- RcstatLrazione del Diritto di Natura, Veneza, 1959.
12 MIGUEL REAL,I';
o DlTlEITO COMO EXPERI~NCIA 13

contrapõe a "empírico". A rigor, transce.ndental e empmco são emplflco e de "experiênc ia" e quais são as condições não apenas
têrmos distintos, irredutíveis um ao outro, mas de tal macio impli- lógicas, mas éticas e históricas que torna m essa experiência pos-
cados ou correlacionados entre si que se não compreendem fo ra sível. Êste é, rig'O rosamente falando, o pr'Oblema da fundação
de sua mútua dependência. Nesse ponto essencial coincidem tôdas filosófica do direit'O como experiência, que é correlato ao da con-
as posições transcende.ntais, desde Kant até Husserl, e se "parva dicionalidade do direito como 'Objeto de ciência.
licet componere magnis", até às minhas modestas meditações ontog-
noseológicas. As diferenças entre as diversas doutrinas transcen- Relembl'adas essas noções básicas, quer parecer-me que ,nem
dentais resultam de múltiplas razões, a começar pelo modo de se sempre os estudios'Os da experiência jurídica souberam manter dis-
conceberem as "condições a prior'i de possibilidade", - que para tintos os dois plan'Os ele pesquisa, o filosófico e o jurídico; ou, então,
Kant e os neokantianos traduzem meras exigências lógicas ou deixaram de deter mina r as necessárias correlações entre um e
critérios de todo conhecimento, de valor puramente lógico-subje- outro, de sorte a superar o grave divórcio reinante entre a Fil'Oso-
tivo; mas que, para Husserl e outros, se bem que elas sempre se fia do Direito e a Jurisprudência, ora r eduzindo esta àquela, ora
revelem no plano da subjetividade transcendental, referem-se intrn- a pr imeira à segunda , daí resultando conclusões destituídas de
cionaZmente ao real (a prior'i material) ou ao histórico) de ma neira significação pa r a 'O filósofo ou para 'O jurista. No meu modo de
que resulta, assim, estendida a noção de aprioridade também ao ver, foi só com o já apon tado alargamento do conceito de t rans-
que não é somente intelectual, fato êste que, consoante lembrado cendental que se tornou possível a teoria integral da experiênci a
por Ferrater Mora, já fõra admitido por H egel 10. jurídica, correlacionando-a , complementarmente, com a " realidade
jurídica", mas sem reduzir um conceito a'O outro.
Além dessa, há outras diferenças entre os transcendentalistas
no tocante à maneira de correlacionar as condições de possibili- Pode-se dizer que o renovad'O interêsse que se nota pelo tema
dade com a experiê.ricia, daí resultando divergências relevantes da experiência jurídica, no âmbito da Jurisprudência de nossos
quanto à noção mesma de experiência, inclusive, como veremos, dias, - apesar da resistência que lhe opõem alguns juristas-soció-
para além de sua mera compreensã'O predicativa, renovando-se o logos, que o consideram exclusivamente per tinente à Sociologia,
conceito de transcendental. ou de juristas a pegados a uma compreensão puramente normativa
do Direito - , é conseqüência de duas ordens de motivos:
Abstração feita, por 'Ora, dessas discrepâncias, bastará, para
os propósitos limitados da discriminação que esta m'Os fazendo, di- a) dos estudos fenomenológicos que permitiram uma 11In-
zer que, .na posição transcendental, para pa rafrasearm'Os expressões claçüo fil'Osófi ca mais adequada da experiência no âmbito das ciên-
de Kant logo na página inicial da Crítica da Razüo Pura, "no ci as h istórico-culturais;
tempo, todo conhecimento do Direito c'Omeça com a experiência, lJ) em virtude de análoga tendência no sentido de ir-se até
mas nem por isso deriva da experiência". Com tais palavras tor- as coisas mesmas, prevalecente no âmbito da Teoria da cultura,
na-se clara a distinção entre o ponto de vista genético e o lógico da Sociologia 'Ou da Antropologia, retoma ndo-se as geniais intuições
e o epistem'Ológico, na compreensão da experiência jurídica, nâo de Vico e as pioneiras c'Ontribuições epistem'Ológicas de \V. Dilthey
se devendo confundir o início (Anfang) com a origem (U1's]!rung) sôbre as categorias pr óprias d'O "mundo histórico" e das ciências
do conhecimento. que o investigam.
O direito é uma realidade histórico-cultur al que se constitui
e se desenvolve em função de exigê ncias inilimináveis da vida hu- lU
mana, cabendo indagar se êle é, como tal, suscetível de estud'O
A EXPERIENCIA ÉTICA NA LINHA DE KANT E DOS
10. Cf. FERRATER lVIORA - Diccionario de Filosofía, 4.' ed., I3uenos-Aires, NEOKANTIANOS
1965, t. I, a prioTi, pág. 25.
Relativamente às diversas forma s de compreensão do conceito de a. § 7. Parece-me que é no âmbito ela Filosofia transcendental,
priori e de tnov~cendental, temas que volta rão a ser focal izados no decorrer considerada em seu pleno desenvolvimento e expansão, desde Kant
dêste e de outros ensaios dês te livro, cf. meu trabalho "Fenomenolog ia. Ontog- até Husserl e seus atuais continuadores, que se pode e nc'Ontrar
noseologia e Reflexão Crítico-Histórica", na Revista Brasileira ele Filosofia,
1966, fase. 62, págs. 161-20l. uma base para a compreensão mais concreta e plena da experiê ncia
De todo em todo descabida é a afinnação de NICOLA ABBAGNANO de que jurídica, liberta das preocupações reducioni stas e setorizantes que
o têrmo tra nscendenta l teria caído em d esuso, a não ser nas corrcn tes lig adas fora m, no passado, uma das ca racterísticas d'O empirismo positivis-
à fenomenologia husserliana... (Cf. Dizionario di Filosofiét, Turim, 1961, ta e que, c'Omo se most rará em outros ensa ios dêste livro, ve mos
pág. 862, no verbete "trascendentale"l. repetida nas t e'O r ias neopositivistas de noss'O tempo.
o DIREITO COMO EXPERIt!:NCIA 15
14 MIGUEL REALE

Há, aliás, outra razão para remontar-se a Kant, pois foi em Limitando-me aos objetivos estritos destas pagmas introdu-
suas idéias que deitaram raízes as primeiras teorias que reivindi- tórias, o que me parece essencial, nessa colocação do problema
caram a especificidade da experiência social e histórica, apesar da gnoseoIógico, é o principio da função constitutiva, e náo mera-
insuficiência de suas formulações, cujo superamento só se tornou mente receptiva e reprodutora do espírito, com a correlata asser-
possível, permitindo uma compreensão mais concreta e dinâmica ção de que a obj etividade do conhecimento resulta de uma "cons-
ciên~ia em geral" (iiberhaupt) a qual não deve ser entendida como
da juridicidade, quando se reconheceu a insuficiência do transcen-
dentalismo lógico-formal do pensador de Koenigsberg. É até certo sendo uma "consciência comum", distinta das consciências indivi-
ponto paradoxal que da corrente inicialmente mais infensa a qual- duais e superior a elas, mas antes indicando o que há de comum
constítutivamente em cada homem como ser pensante. É na cor-
quer forma de "experiência" da vida ético-jurídica houvesse sur- relação entre a objet ividade da experiência possível e as condicio-
gido, ou se desprendido, por contraste e como necessidade de su- nalidades a prioTi e constitutivas próprias do eu ]lur o ou da cons-
perar as antinomias postas por Kant entre o plano teorético e o
prático, uma linha de pesquisas sôbre o conteúdo axiológico da ciência em geral que reside todo o fulcro do pensamento trans-
conduta ética ou a ética material dos valôres, sem se perder na cendental, cuja nervura, como Kant timbrava em assinalar, é dada
rala trama dos fatos empíricos, mas antes conservando e poten- pela " unidade si.ntética da apercepção) o ponto mais alto, ao qual
ciando duas exigências do pensamento crítico: a sua compreensão se deve ligar túdo o uso do intelecto, tôda a lógica mesma, e,
transcendental e o rigor epistemológico de seus enunciados. após esta, a Filosofia transcendental. Pode-se dizer que êsse poder
é o intelecto mêsmo" 12.
É sabido que uma das contribuições fundamentais e decisivas
de Kant consiste no reconhecimento da função ativa e constitu- Pois bem, se nessa descoberta de Kant há um núcleo fecundo
tiva do espírito, enquanto dotado da faculdade de síntese ordena- de idéias renovadoras, marcando o superamento do ceticismo em-
dora dos dados sensíveis, para a determinação da experiência e a pírico, de um lado, e do dogmatismo racionalista, do outro, mister
constituição fenomênica dos objetos, pondo em correlaçã'o neces- é reconhecer que a crítica posterior veio demonstrar, sobretudo
sária a "experiência possível" com as "condições lógicas de possi- à luz de novas exigências do saber' científico e das mutações so-
bilidade" inerentes ao sujeito cognoscente, considerado de maneira fridas na concretitude da experiência ética, que o transcendenta-
universal, isto é, não como individualidade empírica, mas como lismo kantiano continha lacunas e distorções q ue comprometiam
"consciência em geral". Para ilustrar o modo como Kant situa os seus propósitos de fundação geral das ciências.
o binômio "Transcendentalidade-Experiência") nada melhor do que Nesse sentido, limito-me a assinalar dois pontos que mais me
lembrar dois textos, nos quais o assunto se acha compendiado de parecem negativos: ° primeiro refere-se à fratura ou "abismo"
maneira exemplar: (para empregarmos aqui o substantivo usado por Kant no Pre-
a) "Chamo tm'nscendental) escreve êle, todo conhecimento fácio à Crítica ([o Juízo) pôsto entre natureza e espírito) lei na-
que se ocupa não dos objetos, mas sim do modo de conhecimento tural e liberdade, ser e dever ser, implicando uma separação radical
dos objetos enquanto êste deve ser possível a priori"; e inadmissível C'ntre a experiência natural e a experiência ética e,
por via de conseqüência, entre ciências naturais e ciências hu-
b) "As condições de possibilidade da experiência em geral manas; o segundo diz respeito não só ao caráter puramente lógico-
são, ao mesmo tempo, condições de possibilidade dos objetos da -formal das condições transcendentais do conhecimento, como tam-
experiência) e têm, por co.nseguinte, validade objetiva em um juízo bém ao artificialismo resultante da pretensão de prefigurar a priori
sintético a priori" Il. uma tábua completa e exaustiva das formas e categorias, às quais
Vê-se, por aí, como os dois problemas, o da transcendental deveriam se adequar todos os tipos de realidade possíveis 13.
e o da experiência, podem, em última análise, ser focalizados como
sendo aspectos de um único problema, no sentido de que não se 12. Cf. !(ritik de)' R einen: Ventunfl, ed. cit., "Analítica dos Conceitos",
pode determinar qualquer objeto da experiência sem o referir às 16, n. 9 1.
suas condições transcendentais de possibilidade, nem é concebível 13. CL, sôbre êsses dois pontos. 8S considerações por mim expendidas
uma condição transcendentâl sem ser correlacionada, desde logo e em um IX'queno estudo intitulado "Para um criticismo ontognoseológico",
necessàriamente, com a experiência possível. inserto em Horizontes do Direito e da História, São Paulo, 1956, págs.
334 e segs.
MF:IlJ.EAI J-PONTY (La St ructure dn OompoTtement, 5.' ed., Paris. 1%3,
11. Cf. KANT - Critica da Razão Pura, lI, Introd. VII, e "Analítica pflg. 185) observa que é próprio do kantismo "não admitir senão dois tipos
dos Princípios", L. lI, Capo lI, Secção lI, in fine. Na edição críti ca de de ex periê nci as que sejam providas de uma estrutura (/, priori (a de um mundo
CASSIRER, da Kritik der Reinen llernunft, Berlim, 1912, págs. 49 e 153. de objetos externos p a dos estados do senso íntimo) e correlacionar com a
16 MIG U E L REALE o D!I1F;ITO COMO EXPERIÊNCIA 17

§ 8. A rigor, no âmbito da filosofia de Kant só há lugar para psicológicos e econômicos geradores dos institutos jurídicos, re-
a experiência natural, pois, como êle o afirma, na Primeira Intro- conhecera a .necessidade de compreendê-los à luz de critérios pró-
dução à Crítica do Juízo, - talvez as páginas em que o filósofo prios, consubstanciac1os em sua teoria do artifício ou do "conven-
mais sente e vive a necessidade de superar a a ntítese existente, em cionalismo" como fundamento psicológico da experiência social,
seu sistema, entre a razão teórica e a razão prática - , lia liberdade nos seus dois aspectos, o jurídico e o político 15,
não pode, em circunstância alguma, ser objeto de experiência", de Não me parece possa haver dúvida quanto ao restrito conceito
tal modo ,que tudo o que resulta da vontade (Willlcür) como apli- de experiência no sistema de Kant, aplicável, verdadeira ou pro-
cação prática, tudo, em sUlr.a, que seja fruto de atos voluntários priamente, só no mundo da natureza: natuTCza e experiência, são
"pertence ao reino das causas naturais". P or tais motivos, acres- conceitos que em seu sistema inseparàvelmente se correlacionam,
centa êle, "como as proposições práticas se distinguem das teóricas implicando a existência de uma realidade explicável segundo leis
pela sua fórm ula, mas não por seu conteúdo, nenhum tipo especial necessárias 16.
de Filosofia é necessár io para o seu estudo; o que resulta da vontade,
e existe como tal na natureza, "pertence à Filosofia teorética como Não é dito, entendamo-nos, que os resultados ou conseqüências
conhecimento da natureza" 14. dos imperativos éticos, os comportamentos morais ou jurídicos, não
constituam matéria de experiência, no pensamento de Kant, mas
Não cabe aqui, por certo, expor como dessa colocação do sim que para êle se trata de experiência natural. Inspirando-se
problema da experiência dos atos volitivos Kant infere um nôvo nessa linha de pensamento, Windelband ainda dirá, apesar de já
conceito de técnica) como elemento mediador comum, por analogia, assinalar o ponto crítico de passagem de uma ética formal para
tanto à técnica do homem (como no caso da obra de arte) come à uma ética material de valôres, que a a tualização da liberdade, como
técnica da natureza, como adequações da heterogeneidade de suas norma inserida na vida psíquica do homem, se verifica segundo a
formas empíricas aos enlaces de suas formas lógicas possibilitantes. "condicionalidade causal" própria das leis naturais 17.
Bastará, todavia, acentuar que Kant, considerando os produtos da
ação humana uma especi al modalidade da "experiência natural", Pode-se dizer que o grave e árduo problema legado por Kant
ao mesmo tempo que retrogradava, dessarte, à uma posição ante- a quantos se mantiver am fiéis aos p ressupostos da Filosofia crí-
r ior a Vico, - o qual já havia lançado as bases da nova ciência do tica, - sem enveredar pelo monismo hegeliano, com sacrifício dos
"mundo humano", reclamando para ela categorias e métodos espe- valôres da subjetividade originária --, consistiu em superar a am-
cificos -, suscitava uma sér ie de problemas e de dificuldades, que bigüidade de uma experiência que, nascida da liberdade, se punha
seriam objeto de estudo por parte de quantos não se satisfizeram como legalidade necessária no plano da temporalidade, o que só
com ns correlações por êle postas entre natureza e liberdade, ou se tornou possível , penso eu, depois que, graças sobretudo a Henri
ai nda, com a sua colocação do problema gnoscológico do Direito Bergson, a li berdade deixou de ficar confinada no mundo da "coisa
em têrmos de simples pensabilidade do dado jurídico, e não como em· si" para atuar na concreta temporalidade, e, com os estudos
estudo compreensivo das condições mesmas da experiência juridica. fundamentais de Max Scheler, a experiência ética passou a ser
entendida como cJ.:-periência de valôres 1S.
Não era, aliás, só em relação a Vico que a posição kantiana
representava um retrocesso, mas também em confronto com David § 9. É sabido que coube aos neol<antianos, a partir das últi-
Hume, que, além de ter atentado, com mais acuidade, para os fatôres mas décadas do século passado, sobretudo na esteira das Escolas de
Baden e de Marburgo, retomar o problema dos fundamentos gno-
vari eda de dos conteúdos a postm'iori tôdas as outras espec ificaçõcs oa cxpp- seológicos das ciências culturais ou históricas, ao verificar-se a in-
riêncin, por exemplo, a consciência lingüística ou a consciên ci a de o utrem", suficiência da compreensão positivista que, ao mesmo tempo que
Dessar tc, a "vida ética", ou sej a, a " experiência ét ica" hi stô ricnme nle obje-
l,vada só pode ser vista a poste1"iori, com o expe riên cia natu ral, m uito embora
proclamava a gênese causal das regras ét icas e jurídicas, reduzia
su bord in ad a aos ditames Ct priori da vontade pura.
14. C f. KANT - ETste Ei111citungin die KTitik de1" Urteilskraft, voL 15. Cf. BAGOLlNI - Espel'ienza Giuridi<:a e Poli t ica nel P ens iero di
VI ela Ed. Cass irer, Berlim, 1922, VoL V, pág. 180 (meus os grifas). David H u,me, 2.' ed" T urim, 1966.
Importância fundamental, - sobretudo à vist a da posterior Fil osofia da 16. V, KANT - Pmlegõrnenos a T 6da Metafísica F'utttTa, §§ 25 e 26,
cu ltura --, deve-se atribuir à Primeira Int1"Odução escrita por KANT à Crítica Sôbre o assunto, consulte-se LEO L UGARINI - La Logi<:a Tmscendentale di
[/0 Juízo, a qua l perm aneceu quase ignorada a té a sua p rime ira publi cação
Kant, Mil ã o-Messin a , 1950, págs. 245 e segs,
por E , CASSIRER, consoan te a dmi rà velm en te saJ ic ntaoo por êstc <Jutor ['m s ua
obra Knnf:s L eben und Lehre, publi cada como s uplement o à ci tada ed ir;flo d as 17. Sôbre essa e outras questões ·conexas, v. o meu estudo "Liber dade
obras completas, vol. X L N a trad . castelhana de \ V. R oces, sob o título e Valor" em Plu,1"alismo e L ibfrrdade, São Paulo, 1963. págs. 31 e segs,
J(a.nl , V ida y Do tTin((., México, 1948, v. sobretudo págs. 345 e segs , 18. Ibidem.
?1

18 MIGUEL REALE o DIREITO CO~lO EXPERlf:NCIA 19

paradoxalmente a Jurisprudência à análise das fontes formais do tal caso, se impõe não apenas a especificação dos meios necessários
direito, convertendo-a, no fundo, em uma técnica de interpretação à consecução ele um fim, como se dá nos imperativos técnicos
e de sistematização de textos legais ou dos atos normativos, rele- comuns, mas também a elefinição elo fim como tal]o.
gando-se para a Ciência Política ou à Sociologia o problema do
do ((sentido da experiência jnrídica JJ como tal. Ora, tôda a magnífica obra de Stammler poderia ser vista
como um poderoso esfôrço no sentido de preencher a lacuna legada
No que se refere aos marburguianos cabe observar que, desde pelo pensamento kantiano também no campo do Direito, por falta
Cohen a Cassirer, - o qual, aliás, transcende os limites da Escola, ele determinação das condições a 1JJ'ioJ'i daquelas proposições prá-
inserindo-se na Filosofia da cultura contemporânea - , dá-se o alar- ticas cujo carúter nem opcional e nem puramente técnico o próprio
gamento do conceito de experiência. Esta, no pensamento de H. Kant reconhecera, permanecendo, no entanto, o assunto em sus-
Cohen mantém-se ainda estritamente limitada ao mundo da natu- penso, entre as tenazes de sua bifurcada compreensão da natureza
reza, - com o que contorna, mas não supera a já referida ambigüi- e do espírito, Foi mérito inegável de Stammler ter pôsto o problema
dade de uma experiência ética subordinada à legalidade natural -, da experiência jurídica em têrmos de condicionalidade transcen-
enquanto que Natorp e Cassirer timbram em estender o criticismo dental. elevando-se ao conceito de direito como "norma de cultura",
e os seus métodos a tôda a cultura humana, a tôdas as "formas mas t6da a sua doutrina padece ainda de uma concepção lógico-
de vida" 19. -formal que, no tocante ao mundo do direito, não vai além de uma
Ê nessa linha de pesquisa que se situa o jusfilósofo da Escola, abstrata relação entre for ma e conteúdo, de uma adequação ex-
Rudolf Stammler, cuja obra teve por principal escopo determinar trínseca entre a logicidade de um querer autárquico e entrelaçante
as formas lógicas condicionantes da experiência jurídica, ou a e a economicidade do que é juridicamente querido 21 .
"pura legalidade" do direito. Talvez seja possível dizer-se que Por outro Jado, como tem sido freqüentemente observado, o
a via seguida por Stammler já se encontrava esboçada por Kant, universal lógico do direito é apresentado pelos neokantianos, de
com a sua distinção essencial entre imperativo ético, como um maneira estática, como resultado de um processo de abstração,
princípio a priori da razão pura prática, e imperativo técnico, que diferenciação e generalização, corno simples juízo lógico, esvaziado
se refere às proposições práticas, as quais, "enquanto afirmam algo daquela função constittdiva que as categorias desempenham em
como existente devido à nossa vO.ntade, pertencem, - são palavras relação a experiência, e que, como bem pondera Renato Treves.
de Kant na já citada Primeira Introd'UÇão à Crítica do Juízo - , marca o valor do transcendentalismo kantiano 22 . :Êsse esvazia-
ao conhecimento natural e à parte teorética da Filosofia" , A êsse mento do transcendental ainda mais se acentua na doutrina de
tipo de proposições, que êle denominara "imperativos problemáti- Hans Kelsen, com a redução da norma de direito a um puro juízo
cos", na Fundação da Metafísica dos Costumes, Kant prefere qua- lógico de caráter hipotético,
lificar, - para, diz êle, superar a contradição que naquela expressão
se ocultava - , de "imperativos técnicos", .neste gênero de propo- Um passo essencial à frente se deu com a Escola Sudocidental
sições distinguindo, - e a distinçã.o é de grande alcance - , a Alemã, pois, sob a influência da Windelband e de Rickert, consti·
espécie dos imperativos pragmáticos. tuiu-se o cuZt1lralisrno jurídico de Lask e Radbruch, os quais, como
se sabe, intercalaram entre o mundo da liberdade e o da natureza
Pondera Kant, - em uma nota, a meu ver fundamental, da o mundo da cultUTa. , isto é, das realidades históricas constituídas
citada Primeira Introd'UÇão - , ser necessário dar a tais impera- pelo homem através do tempo, e compreensíveis, não segundo os juízos
tivos o nome especial de pragmáticos, para diferenciá-los dos me- de ser ou juízos de 1iulor, mas segundo U,1ttízos referidos a valôres".
ramente técnicos, visto como configuram regras de p1'1.wência que
comandam sob a condição de um fim efetiva e subjetivamente ne- Se, no entanto, era assim claramente reconhecida a necessidade
cessário, isto é, a nossa própria felicidade. Além disso éles nao de se investigar a experiéncia jurídica como uma realidade autô-
têm caráter puramente opcional, pois a êles subordinamos ta.nto
nós mesmos como os demais homens. Ê a razão pela qual, em 20. V. KANT - ETste Einlei.t'll.n.gin die J(I'itik der Ul-teilskm/t, loco
cit., pág. 183, n.· 1.
21. Sôbre a doutrina de STAMMLER, assim como relativamente a KEI~~EN
19. Uma pen!'trante análise do conc!'ito de experiência no neokantismo c ao culturalismo de LASK, RADBRUCH, etc. peço vênia para remeter o leitor
marburguiano é feito por LEO LUGARINI no estudo "CrIticismo e Fondazione a meus livros Filo8ofio, do Direito, 4.' cd., cit., capítulos XX, XXIII e XXV
Soggettiva", em Il Pensiero, 1966, voI. XI, 1-2, págs. 77 e segs ., n . 3, págs. e XXXII, e Fundamentos do Direito, cit., caps. IV e V, bem como à biblio-
158-$2 e vaI. XII, 1967, págs. 142 e segs. Quanto à posição de CASSlRER, v. a grafia nêlcs referida.
Introdução de CHARLES W. HENDEL à trad. inglêsa de Philosophie der sym- 22. Cf. RENATO TREVES - Il Diritto come Relazion.e, Sa.ggio critico sul
bolischen Formen (Yale Univ. Press, 1953), sobretudo págs, 21 e segs. do vaI. r. neokantismo contemporaneo, Turim, 1934, págs. 90 e segs.
20 MIGUEL REALE o DIREITO COMO EXPERlf;NCIA 21

noma. - irredutível à mera explicação causal, ou a puros impe- nadora do real ou mero "sujeito lógico", mas de remontar à fonte
rativos éticos - ; e se a categoria da " compreensão", sob o impulso que se intitula "eu mesmo, com tôda a minha vida cognoscitiva
decisivo das obras de Wilhelm Dilthey ou de Max Weber, vinha real e possível, e, enfim, com a minha vida real e concreta", ao
possibilitar mais seguro acesso aos domínios do "mundo histórico", ego e ao mundo de que é êle consciente 23.
não é menos certo que subsistia sempre uma essencial antinomia O que há de fecundo no pensamento husserliano, no concer-
entre "natureza" e "liberdade", cuja dicotomia era pressuposta para nente ao assunto que nos ocupa, é a não exclusão a priori de
admitir-se a mediação intercalar da "cultum". qualquer dado para a plena compreensão da realidade: não se
No fundo, era sempre a concepção do transcendental em têrmos contenta, por exemplo, com as f ormas lógicas condicionadoras das
puramente formais que impedia uma visão mais concreta da expe- mais altas expressões do pensamento científico, esplendentes em
r iência jurídica, impossibilitando os neokantianos, - por mais que seus enlaces e estruturas de pura racionalidade, por não lhe pare-
proclamassem as excelências da Filosofia dos valôres - , de com- cerem menos essenciais as formas pré-lógicas, as manifestações
preender que o elemento valor desempenha uma tríplice função, espontâneas e naturais do viver comum, ou da Lebenswelt, pondo-se,
lógica, ôntica e deontológica, na constituição e desenvolvimento do dêsse modo, o problema da aprioridnde mesma da relação eu-mundo.
mundo da cultura: os culturalistas neokantia nos contentaram-se, ao Mas se assim é, se é mi ster não perder contacto com a fonte
contrário, em concebê-lo como um simples paradigma, pôsto ab origi.nária da subjetividade, como fonte doadora de sentido, im-
extm do processo histórico, desempenhando mera fu nção heur ís- põe-se' penetrar, com êsse nôvo espírito, na concretitude da expe-
tica ou de tábua de referência gnoseológica. riência histórico-cultural, até se atingirem os valôres que a con-
dicionam e constituem 24.
IV Não se pode dizer que Husserl o tenha fe ito de ma neira ple-
namente satisfatória, com uma clara discriminação e.ntre o mundo
A EXPERI11:NCIA ÉTICA A PARTIR DA FENOMENOLOGIA da natureza e o das ciências do espírito, apesar de pretender ir
além de Dilthey, cujos estudos apresenta como ponto decisivo na
§ 10. Coube, sem dúvida, a Husserl e, em um primeiro mo- compreensão da realidade cultural 25.
mento, mais a Max Scheler, Nikolai Hartmann e Martin Heideg-
ger do que ao fundador da fenomenologia, ampliar os horizontes 23. HUSSERL - Lct Cl'is i deUe Scienze Eltropee e kt Fmwmenologia
da problemática existencial, abrangendo tanto as ciências da na- Trascendenl.ale, trad. de Enrico Filippini, 2.' ed., Milão. 1965, pág. 125; e
tureza como as do espírito, como decorrência de um conceito de Espericn za e Giudizio, trad. de Filippo Costa, Mlão, 1960, pág. 47, e Ideen
"transcendental" capaz de condicionar e compreender tôdas as for- zu einer reinen P h ii nomenologie u nd Phiinomelogis chen P hilosop hie, l, lI,
lU, E dição italiana aos cuidados de Enrico Filippini, Turim, 1965, sobre-
mas de realidade em tôda a sua concreção, num significativo r e- t udo L. 11. Confor me obser va ANDRÉ DE M URALT (La Conscience Transcen-
tôrno às coisas mesmas. dentale, Paris. 1958, págs. 150 e segs.) enqu anto que, n a r eflexão trànscen-
dental kanti'll1a. lima vez atingido o " eu transcendental ", êste se põe de
Ao longo dêste livro, terei a oportunidade de ir dando realce maneira im ed iata , como pura forma lógica, válida e m si independe ntemente
às modificações essenciais oper adas no binômio Filosofia-Experiência de sua g('lleSe hi s tórica, isto é, de seu revelar-se por ocasião da experiência.
nos quadros da fenomenologia e da Filosofia da ciência contempo- na reflex ão fe nom e nológica o que se que r atingir é o "eu tran scendental'·
rânea, mas será possível dizer-se que tôdas r esultam de uma com tõda a vida real c concreta , com o deflui do citado texto de H USSERL.
mudança de atitude perante a realidade, recebida como que "ingê- De ve-se. todavia , lembrar que. sendo o transcendental pa ra KANT lima
nuamente" para inserir-se criticamente numa consciente totalidade "condi <,'iio de possibilirladC'''. n ã o se pode olvidar como KANT e ntendC'u o
problema da tCllIpo!'alidade própri a da "npercepção transcende ntal". Ncss('
concreta. sen t ido. v. as p recisas ponderações de ERNESTO MAYZ V ALLENILLA. demonstra nd o
que o "('u t ra nscendental" para KANT não é a-temporal, mas simpl('smentc
Segundo Husserl, o nôvo conceito de transcendental, superada não exibe as mesm as earae teristicas temporais do "cu e mpírico e re al": a
a posição kantiana, não traduz a mera busca de formas lógicas sua determinnçã o como permanent e não define uma ausência a bsoluta de
puras, mas sim "um retôrno à s fontes últimas de t ôdas as for- tempo. mns antes uma presença absoluta no meio do fluxo cambiante da
mações cognoscitivas, da reflexão por parte do sujeito cognoscente consciência empí r ica. (E l Problema. de la N ada en Kant, Madri, 1965, p ágs.
81 e sC'gs. l.
sôbre si mesmo e sôbre tôda a sua vida cognoscitiva, na qual se
definem, de conformidade com um fim, tôdas as f ormações cientí- 24. Para m a is pormenorí zado est ud o de como me sit uo peran te iI
doutrina h ussc rlia na , v. o meu tra balh o Fenomenologia, OntognosGologia. G
f icas que valem para êle; na qual elas atuam como r esultados e são Refle.rfio C rí tico -Histórica, cit., na nota 10, pág. 12, supra.
e se tornam constantemente disponíveis", N ão se trata, como se 25. S ôbre o papel de D ILTHEY n a fenomenologi a , v. HUSSF: RL. Id.ecl!. n.
vê, de adm itir-se a priori um eu pnro, como subjetividade orde- Secção IIl. "A const ituição do mundo espirit ual" e o Apêndice XII. ~ U.
22 MIGUEL [(EALt o DiltEITO COi\lO EXPEmf: N CL\ 23

Há, sem dúvida, elementos altamente positivos na especulação Propõe-se Husserl determinar melhor o tipo de experiência
husserliana sôbre a "constituição do mundo espiritual", não se correspondente à "caus alidade rnotivacional", para fundar as "ciên-
podendo dêles prescindir em qualquer indagação sôbre a experiên- cias do espirito", mas, não obstante a riqueza das sugestões co.n-
cia ética ou jurídica, desde a sua concepção fundamental do eu tidas em Idecn II e lII, e mesmo em sua obra póstuma sôbre a crise
concreto (chamemo-lo assim) ao qual corresponde o que êle deno- da ciência européia, não se pode dizer que tenha logrado fazê-lo,
mina a "atitude pe1'sonalística", na qual nos situamos em nossa ao oferecer-nos uma frágil distinção entre "experiência interna" e
vida comum, quando conversamos, quando nos saudamos esten- "experiência externa", procedendo desta as ciências da natureza,
dendo a mão, no amor e na repulsa, na meditação e na ação, quando e daquela as ciências do espírito 28.
estamos em uma referência recíproca, nos diálogos e nas objeções Considerando Husserl que as ciências do espírito "se baseiam
recíprocas; na qual estamos também quando consideramos as coisas sôbre a experiência inte1'1w, ou melhor sôbre a experiência feno-
como sendo o nosso ambiente circundante e não, como nas ciências menológica", i.nterim·izando a ex periência externa, não deixa bem
da natureza, como uma natureza "objetiva". É a expe1'iência claro quais os limites entre a análise "fenomenológica" ou filosó-
compreensiva da exístência do outro, na qual o outro também se fica da experiência cultural e a ciência dessa mesma experiência
põe como sujeito pessoal, em um "mundo de comunicação", sendo como realidade objetiva de ordem "pessoal", mas no plano temporal
a pessoa centro dêsse mundo circundante, provido de significado e histórico. Falta à indagação husserliana um mais atento exame da
espiritual 26. experiência compreensiva da existência do outro como experiência
A socialidade assim constituída graças a atos comunicativos de essencialmente axiológiea e histórica: o seu pensamento, mesmo
compreensão, como uma unidade superior de consciência entre nas suas derradeiras expressões, não se situa na radical compreensão
pessoas, ou "o mundo das objetividades intersubjetivamente cons- do valor e da hi.stária como categorias essenciais à dimensão do
tituídas", não pode ser "explicado" segundo leis naturais. Para homem, tal como foi pôs to à luz por Heidegger: "a análise da his-
Husserl não é a causalidade, mas sim a motivação a lei fundamental toricidade do ser do homem (Dasein) trata de mostrar que êste
do mundo espiritual. A "causalidade motivacional", como êle a ente não é temporal por estar dentro da história, mas sim, ao con-
denomina, é a que governa a experiência cultural, numa trama de trário, que só existe e pode existir histàricamente, por ser tempo-
"estímulos", "interêsses" e "ocupações" entre o eu e o objeto in- ral no fundo de seu ser" 29.
tencional. Dessarte, escreve HusserI, quando, "na esfera das ciên- É certo que Husserl distingue entre a atitude do cientista da
cias do espírito se diz que o historiador ou o sociólogo da cultura que- natureza, cego para os valôres, e a do cultor das ciências culturais,
rem explicar os fatos das ciências do espírito, entende-se que êles que não pode deixar de eX]Je1'ienciar as objetividades axiológieas e
querem estabelecer claramente as motivações, querem tornar com- práticas, ou sej a de determiná-las "enquanto norma do experiencíar
preensível como é que os homens em questão chegaram a se com- e como elemento do mundo circundante do sujeito experiente, ou
portar de um modo ou de outro, que influxos receberam e quais então da comunidade experiente" 30, mas o que lhe escapa é a com-
exerceram, que é, em suma, que os induziu àquela comunhão de preensão da "objetividade" ou "positividade" peculiar à ciência
ações. Quando, pois, o estudioso, que se move no âmbito das que estuda tal experiência. Daí a sua tese de que as ciências
ciências do espírito, fala de regras, de le'Ís que regem aquêles modos culturais não são senão "uma das ciências da subjetividade", tor-
de comportamento, ou os modos de formaç.ão de certas configura- nando-se dificil, não oestante tôdas as sutis considerações desenvol-
ções culturais, as causalidades, que em tais leis encontram, uma vidas em Idccn lI, Apê'lldice, n, ~ 12, distinguir-se entre "ciência
sua expressão geral, são coisas bem diversas das caw,alidades na- cultural" e "ciência ei dética"; fica comprometido, em última análise,
turais ( ...... ). Todos os modos de comportamento esp iritual se
ligam causalmente através de' relações motivacionais 21. C3_1 Ilicatil,'(t"(illccn, IH, Capo l, ~ 1; trad. cit.. pág_ 787). Não há dúvida,
porém, que a falta de uma cl",ra no(ão ela "objetividade cultural " torna ele
certa forma imprecisa ou ambígua a posição de HUSSERL perante as ci[mci as
Na citada edição italiana, págs. 569 e segs. e 755 e scgs. e M. HEIDEGGER, espirituais.
Sein und Zeit, § 77 (El Ser y Bl Tiempo, trad. casto de José Gaos, México 28. Idecn, n, Apêndice XII, Ir, ~ Ir (cd. cit .. págs. 753 e segs.l.
Buenos-Aires, 1951, págs. 456 e segs.l. 29. V. Sein Ulul Zeit, trad. cit.. pág. 433. E ainda: "A exegese da 11; 5-
26. HUSSERI, - ldeen, n, §§ 49 e 51 (págs. 579 e 587 da trad. ciL). torícidadc elo Dusein apresenta-se, nssi m , no fundo, tão·sômente como uma
27. Sôbre êsses pontos, v. op. cit., loe. cit., § § 55 e 56. :É preciso ter análise mais con creta da ü'lTlporalidadc" (pág. 439).
presente a distinção husserliana entre "causalidade natural" e "causalidade 30. 0 7)· ci t .. Apêndice, XII, * II ( pá g. 754). As palavras "expcricnciar"
motivacional" quando êle considera tôdas as ciências causais, ou, em suas c "cxí1cri(~ nt e " se ilTlpõ('m p ara d is t in guir de "experimcntar" c "ex[X'rimen-
próprias palavras: "qualquer ciência do real, se quiser determinar realmente, tador", têrmos dema s iado marcados de significado especif ico no domínio elas
c no sentido da 'validade objetiva , que é o mal, é uma ciência causalmente ciên cia s naturais.
24 Ml~UEL REALE

todo o sentido axio16gico e histórico inerente à distinção de Dilthey


entre "explicar" e "compreender", inadmissivelmente reduzidos a Ensaio 11
"explicar" e "descrever".
Não há, penso eu, no pensamento de Husserl plena compreensão
de que as ciências culturais possuem uma "objetividade própria",
de ordem axiol6gica e histórica. Talvez seja possível explicar-se
essa insensibilidade husserliana para o "real axiológico e histórico"
lembrando-se o seu desmedido apêgo à Psicologia, a qual, não obs-
tante as suas conhecidas críticas a todo psicologismo no plano "fe-
nomenológico", constitui, como persistente regra, o t ema central EXPERIÊNCIA JURÍDICA PRÉ-CATEGORIAL E
ou o fulcro de tôdas as suas pesquisas sôbre as ciências do espírito OBJETIVAÇÃO CIENTÍFICA
e a experiência ética.
Poder-se-ia dizer que Husser! supera os lindes da Psicologia S UMÁRlO: I - Concrctitude axiolõgica da expenencia jurid ica.
para fundar as investigações lógicas e fenomenológicas, mas dela II - P roblcmaticismo e tipicidade da experiência juridica. Sua
não se liberta no tocante a mais rigorosa compreensão das ciências natureza dialética, III - A experiência juridica pré-categorial.
histórico-culturais, inclusive por jamais ter tido a "experiência" IV - A ordem imanente à experiência jurídica. V - A experiência
dos respectivos problemas, em qualquer de seus ramos de aplicação. jurídica como objetivação cient ifica.

Cumpre, pois, procurar determinar a realidade histórico-cul-


tural, da qual a jurídica é uma das expressões mais relevantes, I
tendo-se em vista a sua constituição temporal-axiológica, sem perder
de vista, mas antes mantendo vivos os prévios ensinamentos de CONCRETITUDE AXIOLóGICA DA EXPERIÊNCIA JURíDICA
Husserl sôbre a necessidade de ir às coisas mesmas, na experiência
imediata, quer individual, quer social ou comunitária das motiva- § 1. À luz dos renovados conceitos de transcendental e de
ções que compõem o mundo do direito no quadro das "intencio.na- a pTiori, analisados no Ensaio anterior, parece-me que o problema
lidades objetivadas". da experiência ética em geral, e da experiência jurídica, em parti-
cular, deve ser situado sôbre novas bases, para além de sua mera
. Sem nos deixarmos seduzlr pelos que se iludem com o rigor apa~ referência à subjetividade pura, entendida como simples tábua de
rente de um estruturalismo, que acaba esvaziando o real de seu formas e categorias lógicas, visto como implica também condições
conteúdo vital para poder reduzi-lo a esquemas de puro intelectua- inelimináveis de ordem axiológica e histórica, como tais assumidas
lismo abstrato, a via que se abre a uma ciência do concreto é a e reconhecidas pelo eu que sen te, pensa e quer. O transcendental,
correlação funcional entre as realidades intuitivas ou espontâneas em última análise, abre-se à plenitude da experiência, tanto natural
e as formas e estruturas correspondentes às objetivações históri- como ética, podendo-se dizer que a categoTia lógica de possibilidade
co-racionais das intencionalidades fundantes. passa a ser compreendida concretamente em função das categorias
Nem é demais ponderar que essa aspiração de plenitude e de finalidade e de temparalidade) nos planos da praxis e da história.
concretitude, como adverte Marshall Mcluhan, é uma das caracte- Não se cuida, porém, de renovar a tentativa de um empirismo
rísticas de nosso tempo, uma conseqüência natural da tecnologia integral, pois êste, sob a aparência de uma compreensão unitária
cibernética ,que contrapõe à técnica mecânica anterior, - frag- e total, não colhe da realidade senão o que nela se mostra como
mentária, centralizadora e superficial, - a automação tecnológica enlaces causais, sem captar o sentido -que se alberga nos fatos, e
essencialmente descentralizadora e integral 31 . Aliás, como se verá sem referir os fatos à fonte originária doadora de sentido a tudo
sobretudo nos Ensaios VII e VIII dêste livro, a moderna "teoria da que existe, na concreta correlação entre o mt e o mundo, desde a
informação" vem enriquecer a compreensão dos fenômenos sociais, espontaneidade natural da Lebenstuelt ou da vida comum, até às
infundindo ao culturalismo um sentido operacional que o põe em manifestações mais apuradas de objetivação espiritual, no plano
mais vivo contacto com a experiência. da Arte, da Ciência ou da F ilosofia.
E ssa exigência de unidade e de concreção é justamente apon-
31. Sõbre o impacto dos novos meios ou canais de comunicação sôhre a tada por Êmile Brchier como sendo "a origem da Filosofia con-
vida cultural, v. a obra básica de MARSHALL McLuHAN - Unde)'slundi)1!J Mediu: temporâ nea", mais perceptível na obra de Husserl e de seus conti-
the extensions 01 man, 2.' ed" Nova Iork, 1964. nuadores, assim como .na Filosofia existencial, mas pode ser obser-
2G MJGUI';L n<;ALG o DIfIEITO COMO E;O(PERltNCIA 27

vada em outras direções, como, por exemplo, na obra de Pantaleo passar a ser também a priori material. Ê esta uma questão que,
CarabelIese, em cuja "crítica do concreto" se inspirou Luigi Bago- como dizem os juristas, tem caráter prejudicial, pois é em função
lini visando a atingir uma fundação crítica da experiência juri- dela que melhor podem ser definidas as posições filosóficas funda-
dica I, ou então, nas diversas expressões do pragmatismo jurídico mentais.
norte-americano 2. Bem vistas as coisas, a posição ontognoseológica pretende si-
Na concepção de Carabellese há, aliás, um aspecto que só mais t.uar-se numa linha superadora da antítese Kant-Hegel, no tocante
tarde veio a ser pôsto em seu devido relêvo por Husscrl, que é a à relação Transcendentalidade-Experiência, e, nesse sentido, cons-
"historicidade" como uma das condições primordiais da experiên- titui um prolongamento dos estudos fenomenológicos, pela verifi-
cia, vista à luz de uma dialética de polaridade que, sob outros pres- cação de que, se é necessário superar o conceito formal do ({eu
supostos, me parece ser a única adequada à interpretação dos fatos pen.so" k a ntiano, substituindo-o, - como o faz Heidegger, que se
culturais. vale de teses de Husserl, - pela concreção de ((eu penso algo no
Se lembrarmos, outrossim, as contribuições fundamentais de mundo" 3, torna-se indispensável reconhecer a historicidade do eiL
J'('1I80, sem que para tanto se acabe, paradoxalmente, por dissol-
N. Hartmann e Max Scheler pondo a problemática do valor no
centro da experiência ética, - muito embora se possa discordar vê-lo, enquanto eu, na totalidade envolve.nte e opressiva do processe
de sua Axiologia - , ou as pesquisas renovadoras de Dilthey, Weber, histórico.
Spranger, Cassirer e tantos outros nos domínios da Filosofía da Como lembra Mikel Dufrenne, 'O a priori em Kant é co.ncebido em
cultura, ao mesmo tempo que igual aspiração de concretitude função do dualismo; êle pertence à subjetividade que o impõe ao obje-
passava a nortear a Sociologia e a Antropologia culturais, fácil é to; é uma forma que determina o conteúdo sem se comprometer nêle,
perceber como o conceito de transcendental se enriquecia de estru- que torna a experiência possível sem ser ela mesma experiência.
turas outras que não as puramente lógicas, tendentes a se abrir Em Hegel, ao contrário, não há necessidade de nada para fundar
ou' já abertas a uma compreensão dialética do concreto. a experiência, porque a experiência se funda a si mesma: o a
Ê claro que quando falo em transcendental refiro-me necessà- posteriori é, por seu turno, a priori. A experiência mesma é abso-
riamente a um e~L ou consciência comum) não no sentido, porém, luta porque ela é a experiência do absoluto, isto é, a experiência
de algo pôsto acima das consciências individuais, mas sim no sen- que o absoluto faz manifesta ndo-se como identidade de sujeito e de
tido de que há algo universalmente idêntico em tóda consciência objeto 4.
humana enquanto eu que pensa (lch denke). Uma coisa é, no Pois bem, em contraste com o dualismo abstrato de Kant e o
entanto, admitir a "subjetividade" do transcendental, e outra bem monismo absoluto de Hegel, que supera a aporia só e.nquanto a
diversa é afirmar que a subjetividade é condição transcendental de destrói, o que se impõe é compreender a relação sujeito-objeto, ou
todo o real. É próprio da consciência, ao contrário, pelo caráter de transcendentalidade-expcriência, em sua concreta interrelação e
intencionalidade que lhe é inerente, reconhecer como distinto de funcionalidade; dêsse modo, nem o a priori se esvazia e se exaure
si o que ela assume em si mesma, o que equivale a dizer que, no numa Gnoseologia fo r mal; nem se destrói no ato mesmo em que
ato de conhecer e de agir, não é o sujeito que, de maneira absoluta, Gnoseologia se converte em Ontologia; mas traduz antes a condição
põe e constitui as leis naturais ou as normas de ação. Se a r elação de uma prévia correlaçào necessàriamente subjetivo-objetiva, con-
cognoscitiva e a relação volitiva só se dão na medida em que se soante o que denomino o.ntognoseologia.
conhece algo e se quer algo, está pressuposta a priori a correlação do É; nesse contexto que se pode dizer que a aprioridade designa
que se conhece e se quer com o sujeito cognoscente e agente, cor- a estrutura dos objetos ao mesmo tempo que a correlata capacidade
relação essa só tornada efetivamente possível no que denomino perceptiva do sujeito, atualizáveis uma e outra no processo his-
"processo ontognoseológico", no qual eu e objeto e en e objetivo tórico-cultural, emergentes da transcenc':!ntal relação eu-mundo,
se implicam e se condicionam, mantendo-se distintos mas comple- que as mantém essencialme.nte distintas e complementares.
mentares. Ora, como a aprioridade material condiciona a existência dos
Como se vê, o nóvo conceito de transcendental implica uma entes em geral, não tem sentido falar-se de experiência apenas com
diversa noção de a p1'iori) que deixa de ser puramente formal, para
3. Cf. H<;IDEGG8R - S ein und Zeit, ed. casto cit., págs. 367-69. Quanto
1. V. BAGOLlNI - Diritto e Scien;;a Giuridica della Critica dcl Concre to, à distinção husserliana entre Clt puro , como "sujeito puro de qualquer
ci t. . págs. 63 e segs. e passim, e Vi sioni della Giustizia e Senso Comune, cogito na unidade de um fluxo de Erlebnisse" e o eu· pessoal, como unidade
Bolonha, 1968, págs. 107 e sr gs. compreensiva do eu e do munrlo c ircundante, v . Ideen, lI, § 61 c Apêndice
2. Para uma visão global. v. a cole tânea organizada pOI' TJ10MAS A. X (Dl. it., pá gs 664 e sego e 713 e segs.l.
COWAN - The American JuTÍsprudenee Rcader, Nova-Iorque, 1956. 4. MIKEL D UFUG NNE - La Notion d'''A Priori" , Paris, 1959, pág. 47.
IlIIU;ITO CO~IO EX P ERlf:NCíA
:29
28 MIGU EL RÉALl': "

relação. ao. plano. da natureza, assim co.mo. em identidade da expe- chegar através das vias cmocionais e volitivas, que permitem captar
riência ética com a experiência natural, ou ,na redução de uma à l' COlllpl'l'C'nelcr as co isns em suas "objetivas conexões de sentido".
outra, dada a diversidade das estruturas co.nstitutivas do.s objetos Nil.o qlll~ devamos nos contentar com as intuições que nos
possíveis, a que correspo.ndem, no ensinamento de Husserl, onto- püe!11 em imediat o contato com a problemática existencial, mas,
logias regionais materiais distintas) cada uma delas implicando assim como o espi rit o manipula e orde na o material sensível estru-
um tipo adequado de ciência, com o seu "tipo de experi ência" e tura ndo o real no ato ela percepçüo, supera também o momento
os seus métodos próprios, sem prejuízo. de sua comum fundação das intuições axiológicas elevando-se ao plano de uma raciona-
transcendental, segundo normas de uma "noética geral" s, lidade concreta de base cstimativa.
Às diversas categorias de objetos, segundo Husserl, devem por Ncssa tarcfa dc racionalizoçdo compreensiva ou de ordem axio-
essência corresponder diversas apreensões constitutivas e, por con- lógica, - divcrsa da mais comumcn te cstudada, isto é, da raciona-
seguinte, também diversas formas fundamentais dos atos originá- lizaçào de tipo c:nilicativo -, o cspírito tem a guíá-Io a faculdade
rios ofertantes, pois, em tôdas as ciências o método é também de- elc síntcsc autoconscicntc que lhc pcrmitiu fundar o mundo da
terminado pela essência geral da objetividade 6, cultura, superando o disperso e o fragmentário dos dados das múl-
Se a natureza 'ou o "dado natural" é inerente aos atos tiplas e heterogêneas experiências, e conti nua possibilitandO o
mesmos de conhecer e de querer, vê-se bem que a experiência adve nto dc novas formas de vida.
histórica (e nela a experiência do direito) não é algo de intercalado Nada apreendemos nos domínios da arte , da religião, da eco-
entre o espírito e a natureza, mas antes a projeção engloba nte do nomia ou do dircito, de tôdas as criações do homem, em suma,
primeiro sôbre a segunda, enquanto a chama a si e a torna sua, nem nos é possível interpretar a nossa faina histórica, no empenho
no ato mesmo em que a põe como distinta de si, numa sucessão. de de ajustar cada vez mais a natureza a nossos fins racionais de
atos de reconhecimento e de posse, na dialética aberta exigida tanto emancipaçüo ética, sem indagarmos dêsses mesmos fins, da "inten-
pela inexauribilidade dos valôres que o espírito projeta sôbre a cionalidade" do ato criador obietivada nas obras e nos bens cons-
natureza, convertendo-a indefinidamente em cultura, como pela ine- tituídos. Os bens culturais existem na medida e enquanto pos-
xauribilidade da natureza como objeto de conhecime.nto, o que re- suem um senti.do) ou, por outras palavras são enquanto devem sig-
vela, sob outro prisma, a essencial correlação e complementariedade nificar algo para alguém) como meio de comunicação,
existente entre natureza e espíríto, ciências naturais e ciências da Partindo dessa observação inicial chego a algumas conclusões
cultura, que, no seu todo, compõem o que denomino historicismo axiológico)
dada a tripla função desempenhada pelo valor na história: a pri-
§ 2, Correlacio.nar a expenencia natural à expenencia ética, meira é de caráter ontológico ou constitutivo) por ser êle o conteúdo
sem reduzir uma à outra, eis, a meu ver, a primordial condição significante dos bens culturais, os quais são some.nte enquanto
para um conceito integral de experiência jurídica, reconhecendo-se valem e valem porque são ; a segunda é gnoseológica, uma vez que
a especificidade do mundo histórico-cultural pelo reconhecimento só através dêle podemos captar o sentido da experiência cultural;
de que não é só graças a nota da "verificabilidade" que uma inves- c a terceira é deontológica) visto como de cada valor se origina um
tigação adquire a dignidade de ciência: ao lado das explicações dever ser suscctível de ser expresso racionalmente como um fim.
causais ou analíticas, como se tem observado sobretudo a partir de Ora, a razão. dcssas funções primordiais, que equivalem a verda-
Dilthey, põem-se as formas de compreensão segundo cnlaccs valo- deiros agentes motores da história, é dada, penso eu, pela fo.nte
rativos determináveis como objetivas conexões de sentido. donde todos os valôres promanam, que é o espírito humano, o valm'
As proposições verificáveis, dependentes da possibilidade lógica originário) o único que se põe por si mesmo. Daí dizer que a
da redução do real a esquemas e modelos racionais, é a mais segura pessoa é o valo1"-tonte de todos os valô1"es) visto ser o homem o
e certa, sem dúvida, mas não a única forma de comuni.cação cntre único cnte quc, de maneira originária) é enquanto deve ser 7 .
os homens e de acesso à natureza: a esta é necessário também Os bens e obras constituídos pelo homem apresentam também
essa caractcrística, de serem enquanto devem ser, mas de maneira
5. Sôbre êsse problema essencial da fund aç ão das cwncias com relação derivada, como reflexos que são do ser deontológico que os põe in
às distintas ontologias regionais, v. HUSSERL - Ideen, trad, eit., especial- esse. O homem, ao model ar o mundo histórico, modela-o à sua
mente o Livro IH, ("La Fenomenologia e i Fondamenti delle Scienzc").
págs. 785 e segs, Anteriormente o problema fôra focaliz ado, sob ou tros fun-
damentos, por N. HARTMANN com a sua teor ia das categorias es truturais 7, Para outros aspectos dôsse tem a , v. Plnra.lismo e Liberdade, cit ..
do mundo da natureza e do espírito. especialmente às págs, 63 e segs. e T eoria Tridimensional do Direito, São
6. Op. cit., L. IH, §§ 5 e 6, págs. 805 e sego Paulo, 1968.
:lO li! ! (~ {l F. L Il E A l. F. (I !ll!\EITO CU~lO r:;Xf>BHI(;i\"Cf,\ ~ll

imagem e semelhança; ao objetivar em bens materiais e espirituais Pode-se dizer, pois, que pela sua própria natureza, o díreito
os ditames e projeções de sua intencionalidade instauradora, enri- se lksl ína ,\ experil-'l1cia e só se aperfeiçoa no cotejo permanente
quece e potencia a sua própria subjetividade, devendo a sua imagem da l'Xl)l'rí(~'llci a correspondente ao seu ser axíológico, experiência
ser encontrada nêle mesmo e nas coisas por êle próprio formadas, essa que ni-lO se reduz a uma adequação extrínseca, a uma tábua
elaborando os dados da natureza. de referências fúticas ou a paradigmas de valôres ideais, nem se
Sendo essenciais as correlações entre a Antropologia, a Filoso- resolve numa unidade incliferençada, mas conserva, como condição
fia e a História, não devemos contentar-nos com o estudo descritivo de seu próprio "expcriri", a dialeticidade problemática e aberta
ou funcional das relações existentes entre os bens culturais, colo- dos [atôres que nela e por ela se correlacíonam e se implicam, na
cando-nos perante a cultura como o físico se põe perante os "dados" unidade de um processo ao mesmo tempo fático, axiológico e nOT-
da natureza. O culturalismo neutralista e positivista fica escravi- mativo.
zado aos instrumentos, aos veículos e suportes de significados, sem No fundo "direito como experiência" ou "experiência jurídica"
compreendê-los autênticamente como "formas de vida", pois não significa "concl'etitude de valoração do direito", o qual não pode
se deve confundir a atitude "realista" ou "natural", inerente a tõda ser concebido ou construido como um objeto de contemplação, ou
investigação científico-positiva, necessàriamente adstrita aos ho- uma pura seqüência de esquemas lógicos através dos quais se per-
rizontes empíricos de dada objetividade, com a tendência "natura- ceba fluir, à distância, a corrente da experiência social, com todos
lista" que consiste em tratar os atos humanos como se fôssem os problemas a que com tais esquemas se pretendia dar resposta;
"coisas", ou seja, como se fôssem cegos aos valôres e pudessem ser as suas normas são deontologicamente inseparáveis do solo da expe-
"explicados" tão-somente segundo nexos causais. Uma concepçãn riência humana.
culturalista, fiel aos seus pressupostos, jamais perde de vista a Cumpre, pois, pesquisar e aferir o direito como experiência
fonte espiritual da qual os bens históricos promanam, cuidando, jurídica concreta, isto é, como realidade histórico-cultural) enquanto
ao contrário, permanentemente, de captar-lhes o significado graças atual e concretamente presente à consciência em geral, tanto em
à sua referência ao espírito demiurgo que as constitui, ao espírito, seu.'> a..~pcctos teoréticos como práticos, ou, por outras palavras,
em suma, entendido como valor primordial que implica a liberdade enquanto constitui o complexo de valorcu;ões e comportamentos
instituidora dos ciclos culturais. que os homens realizam em seu viver comum, atribuindo-lhes um
Seria, com efeito, incompleta a imagem do homem e da cultura signifi.cado su.'>cetível de qualificação jurídica no plano teorético,
se fixada com olvido de um valor correlato ao de pessoa: o de e correlatamente, o valor efetivo das idéias, normas, instituições
liberdade. Indo às raízes do problema, verificamos que liberdade e providências técnicas vigentes em função daquela tomada de
e valor se implicam, pois, para que algo valha é preciso que o consciência teorética e dos fins humanos a que se destinam.
espírito possa optar entre o valioso e o desvalioso; e, ao mesmo
tempo, para que a liberdade seja efetiva é mister que um valor seja Poderia parecer que, dessarte, o direito e a experiência jurídica
o motivo constitutivo da ação. No fundo, se a liberdade é um seriam uma só coisa, mas ela é antes a compreensão do "direito
valor essencial a todos os valôres, e se sem valôres não se con- in acto", como efetividade de participação e de comportamentos,
cretiza a liberdade, ambos constituem uma díade incindível, cuja sendo, pois, essencial ao seu conceito a vivência atual do direito, a
tensão dialétíca se confunde com a vida mesma do espírito. Po- concreta correspondência das formas da juridicidade ao sentir e
der-se-ia dizer que o valor é o espírito como liberdade, e a liberdade querer, ou às valorações da comunidade: trata-se, por conseguinte,
é o espírito autoconsciente de sua própria valia R. de uma compreensão necessária do direito, enquanto êste não pode
ser reduzido à simples vigência normativa ou a mero juízo lógico
§ 3. Liberdade e valor são, pois, o espírito mesmo na pleni- preceptivo, - que o mutilaria em sua essência -, mas deve ser
tude de si e de suas formas, desde o momento originário instaurador interpretado como real processo de aferição dos fatos em suas
do mais rudimentar dos bens de cultura até às mais altas determi- cone,rões ob,ieti1:as de sentido.
nações objetivas da espécie humana através da história, na pers-
pectiva contínua de novas afirmações valiosas: é entre essas formas
de realidade que se situa o direito, só autênticamente válido en- II
quanto efetivamente "experimentado" e vivido. PROBLEMA TI CISMO E TIPICIDADE DA EXPERIÊNCIA
8, Sôbre a implicação "valor-liberdade" e seu significado para o con-
JURíDICA - SUA NATUREZA DIALÉTICA
ceito de p€ssoa, v, em Pluralism.o e Liberdade, a comunicação pOl' mim
apresentada ao Congresso Internacional de Veneza, págs. 31 e segs. e § 4. Concebida a expenencia do direito como um processo
63 e segs. de concreção axiológico-normativa, já está implícita a sua exigência
" 33
o DIREITO COMO EXPERIf;NCIA
32 MIGl'EL I:"ALE

muladas por Stammler ou Marx passam, assim, a ter valor de


de unidade ou de totalidade, pois é sabido, - e ninguém melhor hipóteses particulares de trabalho, mas nem por isso menos rele-
do que N. Hartmann soube pôr êsse ponto em evidência -, que vantes, como instrumentos euristicos propiciadores de resultados,
os valôres se cOl'l'elacionam e se implicam, uns atuando sôbre os sempre subordinados a uma visão final totalizadora dos dados ob-
outros de maneira solidária. servados. A éste respeito, poder-se-iam lembrar as contribuições
,É a razão pela qual, sendo múltiplas as perspectivas segundo de Max Weber, El'l1st Cassirer, Giuseppe Capograssi e Georges
as quais se focaliza a realidade do direito, não podem deixar de Gurvitch que nos apontam o rumo certo para a colocação do
variar as formas de sua experiência, conforme se tenha em vista, problema economia-direito, assim como de 'Outros correlatos, em
por exemplo, uma pesquisa de ordem sociológica ou jurídico-dog- uma "totalidade de sentido", na concretitude dinâmica do processo
mática, muito embora possa haver, como há, um campo comum de cultural.
interêsse entre ambas. Há, porém, outro aspecto a considerar, pôsto em realce por
Seria prematuro, todavia, tentar fazer a sistematização dos um jurista cuja obra pode ser considerada exemplar no concernente
problemas da experiência jurídica, só possível com o amadureci- à compreensão do direito como experiência histórico-axiológica, e
mento dos estudos. Prefiro, assim, formular diretivas ou hipóteses em cuja doutrina as exigências de concreção jamais se divorciam
de trabalho, apresentando algumas "perguntas" que poderão merecer do principio de certeza essencial à vida jurídica. Refiro-me a Tullio
mais precisas respostas por parte dos diversos investigadores, cada Ascarelli 10 1 ue demonstra que o ordenamento jurídico se correla-
qual sob o seu ângulo próprio. ciona com o processo econômico, - como, de resto, com os demais
A primeira categoria de problemas que, a meu ver, recebe fatos sociais segundo uma tipologia própria, ou, em suas pa-
mais adequado tratamento em virtude da compreensão do direito lavras: "Ã tipologia funcional do estudioso de economia, com re-
como experiência refere-se, preliminarmente, às tão discutidas lação às diversas influências sôbre a produção e a circulação da
relações de funcionalidade ou interdependência em que se encon- riqueza, o jurista deve contrapor uma tipologia estruttlral, de su-
tra a experiência jurídica com as demais formas de experiência jeitos, de coisas e atos, tendo em vista a aplicabilidade de uma
social. A colocação, por exemplo, das relações entre Direito e disciplina normativa, muito embora convicto da contínua tensão
Economia em têrmos de "experiência" possibilita a análise do as- entre a tipologia individualizada e o diverso alcance de uma mesma
sunto segundo tôdas as suas perspectivas e implicações, sem ficar estrutura típica nos casos concretos, e da conseqüente dinâmica no
reduzida a uma das conhecidas interpretações de tipo reducionista, desenvolvimento do direito. A sabedoria do jurista consiste na sutil
como a que a resolve em uma relação entre "forma" e "conteúdo", percepção de uma individualização tipológica, que, sendo consciente
à maneira de Stammler (conseqüência, como vimos, de seu conceito da tensão, torne suportável o seu custo social e o transforme em um
de transcendental como pura forma a p?·iori) ou à maneira de Marx, útil fator de desenvolvimento" 11.
entre "infra-estrutura" e "superestrutura" (conseqüência de sua
unilateral compreensão da história). A experiência do direito, em suma, nunca se amolda e se
reduz às diversas experiências sociais, pois, delas extrai o ((sentido
Focalizada a referida questão sem os preconceitos setorizantes normativo ao fato" , e não o conteúdo do fato em sua especificidade,
de que foi fértil a mentalidade eminentemente reducionista do sé- como realidade econômica, psicológica, artística, etc.; a sua na-
culo XIX, para se abranger, ao contrário, a totalidade das formas tureza tipológica e normativa , ou, se quiserem, a sua ((tipicidade
da experiência social, graças a um processo dialético que leve em normativa" converte em jurídico tudo o que se insere em seu
conta a natureza plural e ao mesmo tempo unitária dos fenômenos processo. É a razão pela qual, como foi observado por Soler,
históricos, as relações entre "forma" e "conteúdo", ou entre "infra- quando o direito parece aproveitar conceitos psicológicos ou eco-
-estrutura" e "superestrutura" deixam de ser categorias rígidas nômicos, êle os assimila e os torna próprios, inserindo-os no sistema
e abstratas, para valerem como categorias históricas e concretas, normativo, com uma acepção e um alcance de ordem jurídica,
tão certo como o que é forma ou infra-estrutura hic et nunc pode
apresentar-se como conteúdo ou superestrutura sob outro ângulo irredutível às ciências que os inspiraram 12 .
temporal, ou em função de outras coordenadas do espaço social. No
contexto de uma compreensão dialética plural 9, as categorias for- 10, ASCAR"LLI _ Problemi Giuridici, Milão, 1959; Problemas das So-
ciedades Anónimas e Direito Comparwl0, São Paulo, 1945: Tem'ia Geral dos
Títulos de Crédito, trad. de Nicolau Nazo, São Paulo, 1943.
9, Sôbre essa questão, v. em meu livro Pluralismo e Liberdnde, cit, 11, ASCARELLI _ Problemi, Giuridici, cit., vol. l, pág. 63.
o ensaio intitulado "Dialética dos meios e dos fins" e o já citado ensaio . 12, SEBASTIAN SOLER _ Ley, Ilistol·ia y Libertad, Buenos-Aires, 1943,
"OntognoseoJogia, Fenomenologia e Reflexão Crítico-Histórica", na Rev~~ta
Bras. de Filosofia, fasc. 62, 1966. pago 188.
o DIIlEITO COMO EXPERIÊNCIA 35
34 MIGUEL REALE

Essa ordenação individualizadora não se opera como simples penetrantes com que esclarece vários aspectos do tema ora tratado,
processo de adaptação mecânica, nem se desenvolve segundo puros diz que "se falamos de experiência é porque nos achamos ante algo
nexos lógicos, mas brota, ao contrário, de uma constante prova (e dado" , concluindo que, sob êsse aspecto, ela é "um conjunt~ muito
no verbo provar, mais do que no substantivo, se percebe o sentido complexo, porém lmitário, de diversos dados, os quais estao reci-
da imediatidade da aferição axiológica 13) em contacto direto com proca mente entretecidos", dados êsses que são de dupla natureza,
os fatos, em função dos resultados considerados mais razoáveis ou _ por serem "fatos de relações inter-humanas", carregadas "de
racionáveis para atendimento do bem comum. Não é de estra- refe rências a valorações" l6.
nhar-se, por conseguinte, que a Jurisprudência tenha se constituído A experiência jurídica, porém, não corresponde apenas a uma
como ciência autônoma graças à "experiência jurídica" dos romanos, fase ou momento final e decisivo de verificação de normas e de
Ufactis ipsis dictantibus ac necessitate exigente", segundo os instru- institutos jurídicos, - como se poderia pensar em têrmos de abst ra-
mentos lógicos, as categorias e as estruturas recebidas da cultura ção intelectualística - , porque ela, como processo concreto e tota-
grega 14. lizante, ao mesmo tempo que comprova atos normativos, pondo-os
em prova, em função de objetivas conexões de sentido, vai também
Donde se conclui que é inerente à experiência jurídica, de desvendando e gerando novas soluções normativas. É por isso
todos os tempos e lugares, a co-implicação de dois elementos inse- que, com razão, Recaséns adverte que a experiência jurídica opera
paráveis, a estrutura formal, (a tipologia, a que se refere Ascarelli) como fator ou como fonte na geração e no desenvolvimento do
e a função normativa que resulta objetivamente de um processo direito em têrmos gerais, e na produção das normas jurídicas de
complexo de valoração dos fatos, conforme será melhor ilustrado tôda espécie, - genéricas, particulares e individualizadas - ; e
ao tratarmos do "tridimensionalismo jurídico concreto". também como estímulo e diretriz orientadora na crítica estimativa
§ 5. Ninguém melhor do ,que Capograssi soube compreender e na filosofia dos valóres jurídicos 17 .
o sentido totalizador e dramático da experiência jurídica, não só Há, pois, na experiência jurídica uma permanente tensão dia-
intuindo a necessidade de um "método sintético", a partir dos pres- lética, que pode deixar atônitos. os que dela se achegam levados
supostos pré-categoriais da realidade do direito, mas também apre- por antigos ensinamentos sôbre o ideal do direito como uma
sentando-a como "instrumento na totalidade orgânica da vida". É ordem imutável e formalmente certa, quando, n a realidade, a vida
de tal modo nela patente "a interdependência de todos os elementos jurídica, sendo u ma renovada sucessão de estimativas e de opções,
que parecem ser per se stanti, que ela apresenta a característica às vêzes dramáticas, é, ao mesmo tempo, estnaura e evento, esta-
singular de "um uníssono profundo sob a trama contínua das bilidade e movimento; é adequação ao fato particular, segundo
discordâncias, o uníssono nascendo ao mesmo tempo que o dissenso, motivos renovados de eqüidade e, concomitantemente, exigência
e êste sendo pôsto para ser resolvido" 15. universal de certeza, através da previsão garantida de classes de
Como se vê, "experiência jurídica" e "compreensão unitária e ações possíveis, capazes de assegurar planos de ação à liberdade
problemática" são conceitos que se exigem reciprocamente, assis- de iniciativa; é problemática, como tudo que se liga às alternativas
tindo razão a Recaséns Siches quando, nas páginas sucintas mas da liberdade e da justiça, mas necessàriamente se inclina a compor
e ordenar em sínteses unitárias, ou em sistema o mais possível
predeterminado, os conflitos de interêsse.
13. Provar é, ao mesmo tempo, experimentar, procurar, verificar c A complexidade da Jurisprudência resulta exatamente do fato
padecer, o que corresponde à complexidade das vias da experiência, muito
além da faculdade puramente intel ectiva. Para uma "análise" dos con- de haver, como escrevi à página 83 da Teoria do Direito e do
ceitos de experiências, v. HECTOR NERI CASTANEDA - "Consciousness and Estado, "em tôda sociedade duas ordens de aspirações permanentes,
Behavior: Their Basic Connections", inserto na coletânea I ntentionality, que só à custa de muitos esforços e sacrifícios se conciliam em um
Minds, and Perception, Detroit, 1967, págs. 147 e segs. estado que se poderia classificar de equilíbrio i.nstável, pur ser
14. Sóbre o constituir-se da Jurisprudência romana como experiência, sempre uma co.njugação de estabilidade e de ~novimento". Na expe-
v. o meu ensaio "Concreção de fato, valor e norma no Direito Romano
Clássico", em Horizontes do Direito e de! História, São Paulo, 1956, págs. riência jurídica essa tensão reflete-se em tôda a sua fôrça, dado o
58-81. contraste do problcmaticismo da liberdade e da justiça com as
15. CAPOGRASSI - II Problema della Scienza deZ Düitto, cit., págs. exigências ordenadoras da certeza.
12 e segs. e 51 e segs. Acrescenta êle com sagacid ade : "Põe-se a von -
tade comum porque as vontades imedia tas (dos indivíduos) discordam;
mas se a discórdia nasce também e sobretudo a propósito do estabeleci- 16. Artigo em Dianoia, cit., pág. 34.
mento da vontade comum, nâo há discordância quanto à necess idade de
pôr-se a vontade comum" (pãg. 51). 17. Ibidem ,
36 MIGUEL REALE
o DII~ElTll COilIO EXI'EllIÊNCIA 37

§ 6. Pois bem, ante a verificação da antinomia posta entre mas indagações que levaram Husserl à sua teoria da Lebenswelt,
a tipicidadeJ como nota ineliminável da experiência jurídica, por é a relativa a uma experiência jurídica originária, anterior a tôda
ser expressão do imperativo de certeza) - e as exigências da e qualquer elaboração conceitual, no estado espontâneo imediato
eqüidade como adequação ao particular/ ao reconhecer-se o cons- e nüo reflexivo de experiência pré-categorial.
tante conflito que há na vida do direito entre o abstrato e o con-
creto, e mais ainda, ao proclamar-se, consoante fórmula incisiva de Deve-se, aliás, ponderar que coube a vários filósofos e soció-
Capograssi que a experiência é vida e a ciência é abstração", é
<C logos do direito, talvez como fruto da reação ao exacerbado for-
natural que tenha surgido a tentação de optar-se por uma das malismo jurídico reinante, uma antecipada percepção da realidade
duas fôrças antitéticas; mergulharam uns, ardorosamente, no mar jurídica subjacente, entendida como projeção imediata das fontes
indefinido e revôlto do jus vivens (como o fizeram os pregadores da vida, sob as denominações no fundo equivalentes de direito
de soluções puramente emocionais, iludidos com as virtudes do concreto, ":ill,~ v/vens", direito intuitivo, direito social, etc., retor-
decisionismo eqüitativo) enquanto outros preferiram refugiar-se no nando-se, assim, aos temas apenas esboçados no clima romântico
céu dos esquemas abstratos de uma juridicidade axiomática : em da primeira fase da Escola Histórica, cujo conceito de Vol7csgeü"t
ambos os casos, o que se perdeu foi o direito como experiência, foi logo absorvido pelos esquemas lógico-normativos da Escola da
visto esta não poder ser confundida com a atomização dos atos de- Exegese ou dos Pandectistas 18.
cisórios, nem com a dissolução nominalista dos conceitos, em duas Muito embora o pensamento jurídico oficial não tivesse dado
posições que, no fundo, se equivalem. maior atenção a êsses apelos no sentido de captar-se o direito, por
O problema prévio e prejudicial, que se põe na raiz metodoló- assim dizer, cm "estado nascente", preferindo considerar os movi-
gica de tôda e qualqller teoria da experiência jurídica consiste, ao mentos elo Direito Livre ou da Livre Pesquisa do Direito uma
contrário, em não fugir das aporias da vida do direito, que seria ventania romântica a sacudir passageiramente os quadrantes da
tão ridículo como fugir da história, mas reconhecer que elas lhe Jurisprudência, - êles na realidade atendiam a exigências dura-
são conaturais e próprias, não havendo outro modo de compreen- douras e profundas, correspondentes à correlata transformação
dê-la senão em suas correlações e dinamicidade dialéticas. que, tanto no plano dos fatos como no das idéias, vinha se operando
Quando não se reconhece a dialeticidade essencial da experiên- nas estruturas da sociedade contemporânea.
cia jurídica (e dêste tema tratarei, especificamente, no Ensaio VII, Trata-se ele fatos por demais notórios para que se imponham
§§ 6.ç e 7. ç ) e não se quer abandonar a tese da experiência jurídica, maiores considerações. Ê essencial, todavia, observar que se.. devem
corre-se o risco de recorrer a meras justaposições entre natureza e em um primeiro momento, mais a juristas ou a sociólogos do di-
vida, abstrato e concreto etc., proclamando-se a sua ambigüidade reito, - como os nomes de Holmes e Cardozo, Cény e Duguit,
ou o seu caráter paradoxal, o que é ficar no limiar do problema Ehrlich e Heck, Carnelutti e Ascarclli e tantos outros o demons-
epistemológico. tram - , do que a filósofos pràpriamente ditos, as análises e ati-
Se a realidade do direito é a de um processo histórico, pare- tudes mais decisivas no sentido de se inserir a problemática jurídica
ce-me que somente graças a um processo dialético será possível .n a experiência social, consoante a tão discutida advertência de
compreender a experiência jurídica; e, como se trata de experiência WendeI Holmes logo no início de sua obra clássica sôbre o Common
de natureza axiológica, que participa da polaridade e da co-impli- Law : "A vida do direito não tem sido lógica; tem sido expe-
cação essenciais aos valôres, tal dialética só pode ser, como veremos, riência" 19.
a de complementariedade.
Dessarte, não será jamaís a Lógica Jurídica formal o instru- 18. Poder-se-ia dizer que é na primeira fase do pensamento de s..~.
mento de análise apto a responder aos problemas da Jurisprudência. VIGNY, bem como no famoso ensaio de KlRCHMANN que. no âmbito da
Ciência Juridica moderna, se proclama a necessidade de não perder o ju-
rista contacto com a experiência. Aludirei, no texto, às razões que dete r-
minaram o abandono dessa orientação.
lU 19. V. HOLMES - Common Lmu, Bostan, 1938, pág. 1. De HOLMES,
além da Common Law, - cujo aparecimento em 1881. constituiu "um dos
A EXPERIÊNCIA JURíDICA PRE-CATECORIAL marcos na revolta contra o formalismo", como bem pondera MORTON \VIllTE
(Socia.l Thou.ght in Ameri.ca., The Revolt against FOl'mali,'l1J1" Boston, 1963,
pág. 59) - deve ser lembrado o seu estudo The Path of the Law, de
§ 7. Uma das intuições mais fecundas de Capograssi, cujo 1897, no qual, partindo da conhecida afirmação de que o direito não é senão
significado ganha grande atualidade se considerada à luz das últi- a profecia daquilo que os tribunais efe tivamente vão decidir, põe o pro-
blema da Ciência do Direito em têrrnos de experiência, entendida, aliás,
,j () DIHEITO C()~IO EXPEIUÊNCIA 39
38 MIGUEL RE A LE
i

Abstração feita do mal ,que rep resentou para o filósofo do


i
~ sumida harmonia entre a vida e o sistema consagrado das normas
direito o ter-se perdido em puras abstrações, olvidando que lhe
cabe, acima de tudo, a compreensão do real em sua inteireza e
Ii jurídicas, torna.ndo-se imperioso o apêIo aos olvidados elementos
da experiência, numa nova e surpreendente percepção das infra-
concretitude, mister é uma referência, embora sumária, às razões -estruturas sociais.
determinantes da indifere.nça dos juristas pela aferição de seus Porém, se o constituir-se de uma "teoria da experiência jurí-
esquemas normativos no plano da vida real, isto é, em relação com i dica" se deveu, nas primeiras décadas do século, aos fatôres mate-
os comportamentos efetivos dos executores e dos destinatários das riais e ideais operantes na conjuntura histórica da crise do "direito
regras de direito. burguês", como reação a'O apêgo desmedido da Jurisprudência a
Seria errôneo e injusto pensar que os mestres da Escola da
Exegese, da Pandectística ou da Escola Analítica inglêsa tivessem
desamor ou desinterêsse pelos problemas da efetividade do direito
em função das infra-estruturas econômico-sociais, isolando-se no
ilusório culto dos valôres lógicos inerentes ao sistema dos preceitos
legais ou jurisdicionais vigentes.
Examinado o problema nas coordenadas culturais do século
I
1
certezas formais e a critérios abstratos de juridicidade, seria
grave equívoco, como já ponderei, absolutizar-se aquela fase his-
tórica, para ligar-se, irremediàvelmente, a teoria da experiência
jurídica ao complexo de objetivos particulares que então se tiveram
em vista.
§ 8. Além dos motivos histórico-culturais apontados nos pará-
grafos anteriores como causa da pouca ou nenhuma atenção dis-
XIX, é preciso, ao contrário, reconhecer que o apêgo às soluções 1I pensada à vivência concreta do direito pela Jurisprudência concei-
lógico-normativas, ou ao que se convencionou denominar Juris- I tual, é de lembrar-se outro fator, de ordem doutrinária, ligado à
prudência conceitual) representava, então, a atitude "normal" re-
clamada pelas circunstâncias, tal a convicção reinante de que, além
I
I,
tendência de se apreciarem sempre os fatos sociais segundo critérios
evolucionista.s inspirados na doutrina de H. Spencer e seus conti-
de os novos códigos e as estruturas normativas vigentes corres- nuadores.
ponderem à realidade subjacente, a função jurídica do E stado
devia conter-se dentro dos princípios indeclináveis de certeza e A idéia de que todos os acontecimentos sociais obedecem a
segura,11ça) em um sistema de regras concebido como sendo em um processo evolutivo crescente, a partir de dados originários de
si mesmo pleno, lógica e eticamente sem lacunas. Dessarte, ao caráter provisório, integrados e superados no decorrer da história,
interpretar e aplicar as leis ou os precedentes judiciais, o jurista graças ao constituir-se de formas cada vez mais altas de organi-
de tradição roma.nística ou do common law estava convicto de que zação social, não era de molde a suscitar interêsse pelos elementos
não constituía abandono da experiência '0 ato de explicar ou de- espontâneos e imediatos da vida jurídica, para reconhecer a sua
clarar, com todo rigor lógico, os mandamentos previstos no âmbito validade própria e a sua função constante, não obstante as objetiva-
das "possibilidades normativas", postas pelo legislador ou pelos ções da ciência.
precedentes jurisdicionais. Dêsse modo, o preconceito evolucionista e o desmedido aprêço
E, efetivamente, até e enquanto os acontecimentos sociais, pelas soluções da abstração generalizadora, conjugavam-se para
sob o impacto das novas conquistas da técnica e da ciência, não assu- lançar no olvido o valor do particular ou do cotidiano, sendo essa
miram novos rumos, impondo o superamento do individualismo atitude epistemológica ainda mais acentuada nos países em que
econômico e das categorias juridicas fundadas na autonomia da se deu o predominio de doutrinas idealistas neo-hegeJianas, sob
vontade, não se sentiu a necéssidade de examinar-se o direito em cujo influxo a experiência jurídica só podia ser concebida como
têrmos de experiência; esta era como ,que considerada implicita- expressão de uma objetivação espiritual totaJizante, na qual o
mente atendida no ato de executar-se o comando jurídico de acôrdo valor do singular ficava irremediàvelmente submerso.
com as circunstâncias ocorrentes, não se vislumbrando entre norma Ora, se há algo ·q ue diferencia e caracteriza o atual renasci-
e fato um conflito essencial. mento da teoria da experiência jurídica, é o firme propósito de
Sabem-no todos que, quando se tornou manifesta a "revolta "ir às coisa.s mesmas") sem desde logo situá-las numa presumida
dos fatos contra os códigos" desvaneceu-se a ilusão de uma pre- sucessão de eve.ntos, segundo razões imanentes de evolução ou
de progresso. Essa orientação resulta de várias correntes do pen-
samento contemporâneo, desde o intuicionismo de Bergson à feno-
com as limitações próprias de sua compreensão empirico-pragmática dos menologia de Husserl, em cujos quadros o problema adquire maior
fatos sociais, sob a influência direta de WILLIAM JAMES e CIMHLES PElRCE. consistência cientifica, pelo superamento da antinomia abstrata
Sôbre o pecado mortal da Filosofia Jurídica acadêmica, -- que con- pôsto pelo pensador de UÉvolution Créatrice entre inteligência e
siste na perda de contacto com a experiência do direito - , cf. RECASÉNS
SICHES - Nueva Fllosofía de la lnterpretación deI Derecho, México, 1959. intuição.
o DIREITO cO~ IO E XP ERI~NCI A 41
40 MIGUEL ltE:ALE

Tendo como fulcro a doutrina da consclencia inte.ncional, tor- as ordenações das vontades "tais como nascem pnr si, espontânea-
na-se possível, - tal como veremos nos ensaios dêste livro - , mente, do concreto da ação" 21.
colocar sôbre novas bases o problema da experiência em geral, e A sua viva descrição do "mundo da ação" ou "da vontade ad
das experiências moral e jurídica, em particular, superando-se tanto extra", - no qual as ações intersubjetivamente se ordenam, com
o conhecimento empírico-descritivo destas, - sem sacrifício, pois, de salvaguarda e "ocultamento" do que há de singular e de intocável
seu essencial conteúdo axiológico - , quanto o intuicionismo in- em cada subjetividade pessoal - , apresenta vários aspectos posi-
fenso às formas ordenadoras da razão, evitando-se, dêsse modo, a tivos, como êste de captar, nas matrizes originárias da vida social,
perda do rigor exigido em tôda tarefa científica. Por outro lado, a natureza do direito como "experiência na qual a ação aparece
a compreensão fenomenológica, ou, como prefiro dizer, o.ntogno- na sua veste puramente prática e voluntária e, por conseguinte,
seológica, ao mesmo tempo que possibilita a recepção integral dos descolorida de tôdas as côres do concreto; mas é a experiência na
dados do real, reconhecendo o a priO'ri material que condiciona o qual, exatamente em virtude dessa redução, o mundo todo da
ato cognoscitivo, evita a redução das objetivações culturais a me- personalidade e da ação fica assegurado: é dêsse modo que se tor-
ros epifenômenos de uma infra-estrutura, de natureza econômica, nam possíveis tanto a vida mesma da personalidade única, em sua
por exemplo, tal como o prete.nde o materialismo histórico. originalidade, como o surgimento da ação na sua inconfundível
O delicado e fundamental problema epistemológico com que unidade" 22 .
se defronta o estudioso das ciências sociais consiste exatamente Já na experiência jurídica espontânea e imediata revelam-se,
em não mutilar a realidade humana, seduzido pela ilusória cons- por conseguinte, como momentos de uma única realidade, a orde-
trução de explicações de tipo quantitativo ou causal, e, ao mesmo nação objet'iva das vontades e a preservação das subjetividades
tempo, não se perder no mare magnum das intuições particulares, intocáveis, que a razão reflexa concretizará na temática comple-
fragme.ntárias e heterogêneas, tentado pelo desejo de imergir-se mentar do direito objetivo e do direito subjetivo, em função de
no concreto, mas com olvido dos valôres do rigor e da objetividade. múltiplas exigências e esquemas lógicos segundo a multiplicidade
Ê antes o sentido objetivo e crítico da realidade, acompanhado do das vigências ideológicas e das técnicas da melhor adequação dos
propósito de sua compreensão inteiriça e integral, pela recepção meios aos fins 23.
e a percepção de cada um e de todos os seus elementos, à luz do
respectivo significado singular, originário e próprio, que deve ca- IV
racterizar a tarefa da Sociologia e da Jurisprudência.
A ORDEM IMANENTE À EXPERmNCIA JURíDICA
Equivocam-se, pois, aquêles que recebem a teoria husserliana
da Lebenswelt como uma nova imersão romântica e irracional nos § 9. Mas, se ,na obra de Capograssi, Gurvitch e outros, ga-
meandros de uma realidade subjacente, movediça e fugidia, susce- nha realce o problema da experiência jurídica imediata, não é
tível de só ser captada através de intuições atomizadas e incertas. menos certo que essas pesquisas se ressentem de um desvio oca-
A doutrina da Lebenswelt, do "mundo da vida" , - e que melhor sionado pelo já apontado preconceito de considerar os elementos
fôra chamar da "vida ou existência comum" - , obedece a pressu-
postos críticos relativos às condições humanas de possibilidade, das 21. Cf. CAPOGRASSI - II Problema delZa Scienza deZ Diritto, cit., págs.
quais cada forma de experiência emerge, segundo os fins que lhe 37 e segs.
são peculiares 20. 22. Op. cit., pág. 49. Peço vênia para lembrar, a esta altura, o estudo
que em minha Teori.a do Direito e do Estado, São Paulo, L' ed" 1940.
Foi grande mérito de Capograssi, - que, embora ,n ão se dediquei às formas incipientes de juridicida de positiva, a que denominei
jactasse de filósofo do direito, foi dos que mais abriram trilhas "representações jurídicas", vendo-as como "germens ou esboços de normas
inéditas ao pensamento jusfilosófico da Itália, na primeira metade jurídicas positivas" (ed. cit., pág, 80) . Embora já as visse como "dados
da experiência jurídica", o ponto de vista "evolutivo" ou genético não me
do século -, dedicar todo um capítulo de sua obra à «experiência permitiu vê-las em s ua integridade. Seria êrro, todavia, extremar-se o
jurídica 't,'ÍSta antes da elaboração da ciência", procurando colhê r alcance do pensamento espontâneo ou da "experiência jurídica imediata"
até o ponto de perder-se de vista o significado das objetivações científicas
como expressão fundamental da intencionalidade humana, sacrificando-se. des-
20. Sôbre minha poslçao perante a teoria da LebenSUJelt v. o meu consolad amente, as realidades vivas por seus esquemas abstratos, ou. então,
citado estudo Ontognoseologia., Fenomenologia e Reflexão Crítico-Histórica. contrapondo-se, intelectual1sticamente, as estruturas da ciência às da rea -
Quanto ao conceito de LebensweZt, v. os estudos de J. GAOS, L. LANDGREBE, lidade.
E. PACI e J. EILD no volume coletivo SymposÍlUm 30bre la Noción Husser- 23. Sôbre o problema da preservação da subjetivi.dad.e como expressão
lia oo de la Lebenswelt, México, 1963; cf.. também, E . FACI - Funzioni deITe da " moral do direito", v. infra, Ensaio XI, "Experiência moral e experiência
Scienze e Sígnificato dell'uomo, Milão, 1963. jurídica", págs. 262 e segs.
42 MIGUEL REALE o DIREITO COMO EXPERlf;NCIA 43

elementares da vida social como sendo não só obscuros e confli- viver comnm é a base comum e global de tôdas as formas de
tantes, mas também "larvares", isto é, não significativos em si objetivação cultural, isto é, a fundàção existencial que condiciona
mesmos, mas tão-somente enquanto momento inicial e necessário tôdas as realizações de ordem científica, artística ou institucional,
de um processo evolutivo. podendo-se dizer que estas se integram e se desenvolvem em razão
Não resta dúvida que as ações que compõem a experiência dela, tudo como expressão da correlação transcendental eu-mundo.
social imediata, como o demonstra a análise fenomenológica, apre- ~ Não fôra a vinculação material e direta que liga as raízes aos
sentam-se como algo de fluido ou de difuso, mas lhes é inerente ramos, às fôlhas, às flôres e aos fru tos, a imagem da árvore, apli-
uma tendência fundamental à ordem, no sentido de uma compo- cada por Descartes à compreensão da Filosofia, seria a mais ade-
sição harmônica de fôrças. No âmbito da consciência comum quada a figurar as relações existentes entre as "formas culturais"
surgem a todo instante e se renovam modalidades de ação e de e o húmus condicionante da Lebenswelt.
conduta como "condutas jurídicas", segundo plexos axiológicos e Ao falar, pois, em "ordenação in fieri" da experiência não
enlaces normativos, vividos em sua espontânea imediatidade, sem penso em um processo evolutivo unitário, cujo último elo, de
se subordinarem a critérios ou a categorias da ciência, e sem, por conformidade com o realizar-se da síntese hegeliana ou marxista,
outro lado, representarem meros reflexos ou elaborações incons- superaria todos os momentos anteriores, suprimindo-os como tais
cientes de prévias tipificações científicas, difusas imperceptivel- no ato de integrá-los em si. Como será melhor explanado no
mente nas tramas dos hábitos e costumes sociais. parágrafo seguinte, penso, ao contrári'O, que o "imediato" e o
Talvez por influência de uma compreensão romântica, que "particular" são fatôres constantes da experiência histórica, de
remonta à teoria do Volksgeist, e depois exacerbada pelas filoso- tal sorte que as objetivações ou ordenações das "experiências ime-
fias intuicionistas, sobretudo na linha do pensamento bergsoniano, diatas" ocorrem incessantemente, como "processos singulares" de-
tem-se exagerado o caráter difuso e fugidio das experiências infra- vidos a motivos variáveis no espaço e no tempo, muito embora se
-estruturais, não se dando a devida atenção ao que nelas já se contenham todos no âmbito global do processo ontognoseológico,
manifesta como ordenação «in fieri", ou como forma.s iniciais de que, no fundo, nã'O é senão o processo mesmo da história e da
objetivação. cultura. É certo, outrossim, que algumas modalidades de expe-
Nesse sentido, Georg Lukács dá-nos preciosos esclarecimentos, riência evoluem, passando de estádios elementares para formas
na primeira parte de sua Estética, na qual, após observar que, ulteriores racionalizadas, mas outras há que se mantêm como tais,
"até o presente, a teoria do conhecimento se tem preocupado muito insuscetíveis de categorização científica, o que demonstra a insu-
pouco com o pensamento vulgar e cotidiano", focaliza °
problema ficiência de tôdas as teorias que têm procurado simplificar a expe-
da «cotidianeidade" à luz da teoria marxista, demonstrando que, riência jurídica, seja subordinando-a a um único fator, seja redu-
se a vida cotidiana não conhece objetivações tão cerradas como zindo-a a um desenvolvimento unilinear e englobante.
a ciência e a arte, isto não significa que careça totalmente de
objetivações 24. O que importa, por ora, é assinalar a irremediável contradição
Como bem observa Lukács, entre as objetivações da experiên- de se pensarem os dados da ação· imediata como algo de irracional
cia cotidiana e as formas reflexas cada vez mais refinadas da ou a-racional, e, ao mesmo tempo, considerá-los suscetíveis de pos-
ciência e da arte há uma diferença de grau. Isto, no entanto, terior ordenação racional. Essa aporia levou alguns autores a se
não pode ser entendido, como parece ser em parte o caso dêsse conformarem com o caráter ambígu'O ou paradoxal da Ciência do
teórico do marxismo, no sentido de um superamento progressivo Direito, enquanto outros penderam no sentido de recusar caráter
da experiência precategorial na unidade da evolução histórica, pois científico à Jurisprudência, convertendo-a numa arte fundada em
o constituir-se heterônomo das objetivações científicas ou das ins- intuições práticas, ou, então, acabaram por eliminar qualquer valor
tituições sociais e jurídicas não põe têrmo às experiências imedia- do imediato ou do espontâneo que não fôsse racionalizável, desde
tas, devendo-se reconhecer, ao contrário, que ambas as formas que não traduzisse uma adequação da matéria à forma.
coexistem, se complementam e se dialetizam. O estudo fenomenológico da ação ou datconduta demonstra
É preciso, aliás, não esquecer que, focalizada em sua totali- que, qualquer que seja o grau ou a forma de sua explicitação,
dade, ou em sua plena concreção, a experiência precategorial do implica sempre uma direção intencional para algo, segundo certo
fim e certa ordem. É essa uma verdade que os mais recentes estu-
24. Cf. Ãsthetik, l Teil. n a trad. castelhana de Manuel Sacristán, Esté- dos da Antropologia têm põsto em luz, mostrando os exageros da
tica, l , La peculiaridad de lo Estético, 1. Ouestiones preliminares e de prin- antiga teoria do totemismo, elaborada s'Ob o influxo de idéias evo-
cipio, Barcelona-México, 1966, pág. 39. lucionistas, a partir do pressuposto de uma mentalidade pré-lógica,
44 MIGUEL REALE o DIREITO COMO EXPERIF:NCIA ~5

quando, na realidade a vida humana, inclusive a "primitiva" é A meu ver, essa eXlgencia de ordem, ínsita ao pensamento,
"uma experiência carregada de exata e precisa significação" 25, liga-se à natureza mesma do espírito, que se põe e se define como
Como o demonstram as pesquisas renovadoras de Lévi Strauss, intcncionalidade e poder de síntese e liberdade, e, por conseguinte,
e de outros que procuram firmar as bases da Antropologia como como autoconsciência ordenadora ,q ue dá sentido ao real na me-
uma "ciência do concreto", é necessário abandonar as errôneas dida em que dêlc recebe o material de experiência, no qual como
concepções da linguagem do selvagem como "linguagem abstrata" , que dorme o esbôço de suas objetivações, possibilitando a concria-
ou sôbre o pensamento do selvagem como simples produto de fa- ção e a concreção das formas culturais.
bulação, quando, na realidade, a vida dos chamados "primitivos" Ora, a apontada "exigência de ordem" deve estar na base do
revela um «apetite de conhecimento objetivo". pensamento dos filós'ofos, sociólogos e juristas ao tratarem da
Em lugar de falar-se em "pensamento do selvagem", deve experiência jurídica pré-categorial, máxime em sendo o direito a
estudar-se o "pensamento selvagem", isto é, ainda não subordinado experiência social em que prevalece por excelência o valor da
a esquemas reflexivos, verificando-se que, se o referido "apetite ordem e da segurança. O direito é, na realidade, uma expressão
de conhecimento objetivo" é raramente dirigido para realidades natural da ordem do pensamento como ordem das vontades coexis-
do mesmo nível daquelas a que se liga a ciência moderna, nem tentes, o que se m anifesta em t ôdas as formas da experiência jurí-
por isso deixa de implicar demarches intelectuais e métodos de dica , até se aperfeiçoar, graças às categorizações da ciência, como
observação a ela comparáveis. reali.zação ordenada e garantida da convivência humana segundo
Lévi-Strauss está de acôrdo com Simpson, um dos mestres
vaZôrcs de altcridade,
da moderna Taxonomia, quando nos diz que "o postulado funda-
mental da ciência é o de que a natureza mesma é ordenada", fa-
zendo esta observação essencial : "Ora, essa exigência de ordem § 10. Do exposto resulta que a expenencia jurídica pré-ca-
está na base do pensamento que nós denominamos primitivo, mas tegorial é uma constante na história do direito, não desaparecendo
apenas e tão-sàmente por estar na base de todo pensamento . .. " 26, nem pcrdendo importância com o constituir-se das f ormas de co-
nhecimento cientifico, a partir da Jurisprudência.
25. São palavras de HANDY e PUKUI, citadas por LÉVI-STRAUSS - La
Antes de serem elaboradas as primeiras e rudimentares "c a-
Pensée Sauvage, Paris, 1962, pág. 4. Dêste mestre da Etnologia contem- tegorizações" jurídicas, que iriam adquirir feição autônoma e bem
porânea, V., outrossim, Totémisme Aujourd'hui, Paris, 1962 ; Anthropologie definida com o Direito Romano, pode dizer-se que tudo era expe-
Strnctumle, Paris, 1958; Le Grut et lc Guit, Paris, 1964 c Du MieI aux r iência social comum indiferençada, confundindo-se religião moral
Gcndres, Paris, 1966.
e dircito num complexo de comportamentos insuscetíveis de rigo-
Consoante resulta do até agora exposto, se me parecem de gr ande
alcance a s contribuições da Antropologia no sentido de corrigir certos exageros rosa qualificação, Mesmo, porém, naquele estágio primitivo não
da compreensão ainda dominante na prim eira metade do século, quanto à deixava de haver objetivações, pois, consoante lembra Lukács, "a
natureza puramente mítica e a-lógica do pensament o primitivo; e se é mister vida humana, o seu pensamento, o seu sentimento, a sua prática
reconhecer o que já há de objetivo e de positivo na chamada "mentalidade e a sua reflexão são inimagináveis sem objetivação", tanto mais
primitiva", como um dado inerente à intencionalidade humana, não resultam
convincentes certas conclusões que identificam tôdas as formas de penSaI', que "as formas básicas da vida humana, o trabalho e a linguagem,
esvaziando-as de seu sentido histórico e progressivo, tudo se reduzindo a
mera articulação formal de estruturas. Quanto aos exageros da "m etafí-
sica estruturalista", cf. a s considerações expendidas por GEORGES GUSDORF um todo ai nd a não realizado; ela forma um sistema bem articulado ; inde-
em Les Sciences de l'Hrnnme sont-elles des Sciences Huma,ines?, SITas- pendente, sou tal aspecto, dêsse outro sistema que constitui a ciência, salvo
bourg, 1.967, págs. 119 e segs. N o tocante à historicidade da vida psiquica, v. a analogia formal que os aprox ima e que faz do p rimeiro uma espécie de
J. H. VAN DER BERG - Metablética (Psicologia Histórica), trad. de Van expressão me tafórica do seg undo" (op. cit., pág. 21).
der Water, São Paulo, 1965. Talvez haja exagêro nessa revelação de estrutura:; lógicas do "pensa-
26, L~VI-STRAUSS - La Pensée Sauvage, cit., págs. 16 e segs. Cf. me nto selvagem", ou no olvido de seu significado na seqÜência do processo
SIMPSON G. G. - PrincipIes of Animal Taxonomy, N. York, 1961, págs. 5 histórico-cultural, passando-se de extremo a ex tremo, da "ílogieidade totê-
e segs. N a mesma ordem de idéias, L. STRAUSS critica a "fabulação" do mica" para "o estruturalismo racional" . ..
totemismo alógico, ou a concepção da m agia como uma forma tímida c O qu e se podc inferir, com certa segurança, dêsse conflito de pontos
balbuciante da ciência. Diz êle que estaríamos impedidos de compreender de vista , é que o pensamento, no seu estado natural ou espontâneo ("selva-
o pensamento mágico se pretendêssemos reduzi-lo a um momento, ou 11 gem") já alberga estruturas de inegável validade lógica . Não se esqueçam,
uma etapa, da evolução técnica e científica: "Sombra antecipando-se ao a propósito dêstc assunto, as subtis e inovadoras análises de MERLEAU-PONTY
corpo, ela é, em certo sentido, t ão completa como êle, tão acabada e coe- sôbre a "percepç[w selvagem", como meio de r etôrno ao imediato, "ao
rente, na sua imaterialidade, como o corpo sólido por ela apenas precedido. mundo vertical, ao vivido" (cf. Le Visible ct l'Invisible, Paris, 1964, págs.
O pensamento mágico não é um início, um eomêço, um esbôço. a parte de 223 e segs. e 265 e segs.).
() Hlla:J'ru t"O;\-l O EXl'C;Hl~:~l'IA 47
46 MIGUEL REALE

têm, essencialmente, sob muitos aspectos, o caráter de objetivações. Abstração feita do problema prevlO da fundação espiritual
O trabalho não pode produzir-se senão como ato teleológico" 27. elo trabalho, C01110 expl'essüo primordial que é da qualidade essen-
Estas observações, de fundamental importância, vêm escla- cial do espil'ilo enquanto poder de síntese ordenador dos dados da
recer e valorizar uma das teses marxistas de maior alcance para e:-.:pel'iêncin j media ta , - o que demonstra a insuficiência do ma-
a compreensão das formas culturais, merecendo lembradas as pe- teriali smo históri co -, parece-me de grande alcance' a tese mar-
netrantes observações de Merleau-Ponty ao confrontar três tipos xista que põe cm evidência a ordem conatural à experiência pré-
de ordens, a física, a vital e a humana, mostrando como é o tm- -categorial como deconência de ser o trabalho, desde as suas for-
balho, - tomado êste têrmo em sentido hegeliano, para designar mas mais rudimentares, uma experiência espontânea e irrenun-
o conjunto das atividades mediante as quais o homem transforma ciúvel ele subordinação da .na tureza aos planos e intencionalidades
a natureza, - é o trabalho humano que inaugura uma terceira dia- da cspécic humana; bem como a correla ta afirmação de que a
lética, projetando, entre o homem e os estímulos físico-químicos o emancipação ética não pode ser concebida como tarefa de subje-
mundo da cultura, abrangendo desde os chamados "objetos de uso" tividades isoladas, mas envolve antes, digamos assim, "o homem
ou utensílios até a linguagem e as formas da arte 28. e a sua circunstüncia", o hornen1 e os seus condicionamentos sociais
e econômicos, na totalidade de sua experiência pessoal e comuni-
É de relevância essa conexão entre o trabalho e a linguagem
tária.
e o mundo cultural, como resultado da prévia compreensão da-
quele como "ato teleológico". Nesse sentido, a passagem de Das
Kapital, invocada por Lukács, é deveras decisiva, valendo a pena V
transcrevê-la, inclusive para dissipar certas interpretações dema-
. siado estreitas do "materialismo histórico": A EXPERIÊNCIA JURíDICA COMO OBJETIVAÇÃO
"Supomos o trabalho, adverte Marx, numa forma que pertence CIENTíFICA
exclusivamente a·o homem. Uma aranha realiza operações que se
§ 11. A inclinação natural do pensamento para a ordem,
parecem com as de um tecelão, e uma abelha pode fazer rubori-
discernível no plano da experiência imediata e espontânea, atinge
zar, pela construção de seus alvéolos, a mais de um arquiteto
.na experiência científica a sua forma mais objetiva e perfeita, a
humano. Porém, o que desde logo distingue o pior dos arquitetos da tal ponto que somos fàcilmente levados a olvidar a primeira, redu-
melhor das abelhas é que o primeiro já construiu a colmeia em sua zindo-a a uma fo rma incipiente e preparatória, como seria a da
cabeça antes de executá-la em cêra. No final do processo do tra- magia perante a ciência, nos quadros da antiga Antropologia.
balho produz-se um resultado que já existia no comêço do mesmo,
na representação do trabalhador, ou seja, idealmente. O traba- Na realidade, a experiência jurídica pré-categorial e a expe-
lhador não opera apenas uma transformação formal do natural; ri ência jurídica científica coexistem e se correlacionam, mais do
atua, ademais, os seus fins no natural, fim que êle conhece, que que o pe.nsamento mágico com o científico, pois é no mundo da
determina o tipo e o modo de seu fazer, como uma lei, e ao qual vida comum que está imersa a atividade do legislador e a do
tem de submeter a sua vontade" 29. jurista, e é dela que ambas recebem .valor e significado. De nada
valeria, em verdade, uma Jurisprudência esplendente na harmonia
Há, nesse passo, o reconhecimento de que o trabalho é ele- de seu s institutas e figura s, de seus esquemas e modelos, se em
mentopositivo e fundamental, como ato teleológico de objetivação conflito com ela fluí sse a vida co tidiana, e a máquina da Justiça
segundo fins que subordinam a si o processo natural, constituindo resolvesse, impassível e friamente, os seus problemas do procedi-
o "fator fundamental da vida cotidiana e de seu pensamento, ou mento. por motivos de pura economia operacio.nal, deixando sem
seja, do reflexo da realidade objetiva na cotidianeidade" 30. resposta as perguntas elo homem comum, quanto ao conteúdo e
à substância de seus interêsses vitais.
27. LUKÁCS, op. cit., pág. 39.
28. MERLEAU- PONTY - La Structure du Gomportement, cit., págs. 175
Até que ponto, aliás, - vem-me à mente indagá-lo - , já não
e sego construímos uma portentosa maquinaria jurídica, cujas ,necessi-
29. MARX - Das Ka.pital, Hamburgo, 1914, l, pág. 140, apud LUKÁCS, dades de funcionamento se sobrepõem às necessidades existenciais
loco cito (meus os grifos). da homem para que foram concebidas? Até que ponto o amor
30. LUKÁCS - op. cit., pág. 40. O que não se entende, positivamente, é das fórmulas e dos mitos, especialmente em assuntos de processo,
como essa complexa tarefa de "objetivação" possa ser singelamente expli- não se resolve apenas .na solução de problemas do aparelho ou da
cada. recusando-se a produtividade do sujeito e reduzindo-se as categorias a máquina, deixando em suspenso, ou truncando-os irremediàvelmen-
meros r eflexos da realidade objetiva mesma, t al como o pretende o mate-
rialismo dialético. (loc . cit., pág. 57) te, o plano dos valôres éticos e materiais objeto das lides? Quan-
48 MIGUf:L REALf: l) Dll~EITO CO:\IO EX í'EiUÊ.!'\ CIA 49

tas demandas, resolvidas sumana e preliminarmente, por motivos explicitanrlo a ordem pressuposta da natureza, do mesmo
sensíl .·f:'l .
formais de procedimento, não alienam da Justiça o problema do modo, nos domínios das ciências da cultura, a razão compreende
homem? e ordena o material da intu ição a.Tiológica, emergente da práxis,
Bastam essas perguntas para verificar-se como o assunto do dando-nos o sent ido concreto do todo.
direito como experiência científica anda indissoluvelmente ligado A essa luz podemos afi rmar, com Ernst Cassirer, que "a
com o da experiência espontânea, não se podendo sequer dizer que crítica ela razfto torna-se a crítica da cultura". Ela "procura com-
esta seja a sombra do corpo da ciência, para empregarmos a invo- preenclel' e demonstrar como cada conteúdo de cultura, tão logo
cada imagem de Lévi-Strauss, devendo antes ser ambas concebidas seja mais que mero conteúdo isolado, tão logo seja situado em um
como aspectos complementares de uma única realidade 31 . principio universal de [armas, pressupõe um ato original do espí-
Na relação entre experiência pré-categorial e experiência-cien- rito humano" 32.
tífica do Direito está implícita uma série de problemas, tais como Acrescenta Cassirer que tõclas as formas de cultura, lingua-
os da relação entre forma e conteúdo, ou entre o todo e as partes, gem, conhecimento científico, arte, religião, direito, obedecem a
tornando-se impossível uma resposta satisfatória quando se abso- um projeto comum, determinado pelo fim comum de transformar
lutízam tais conceitos, abstraindo-os do processo concreto e dinâ- o mundo passivo das meras impressões, no qual o espírito parece
mico que é a vida do direito, experiência sempre aberta à incidên- à primeira vista aprisionado, em um mundo que é pura expTessão
cia de novas atualizações valorativas que convertem o conteúdo do espil'Íto human'O 33.
de hoje na forma condicíonante de amanhã, ou fazem com que um
fator, até ontem secundário ou esquecido, dê colorido e ritmo à Feito o desconto dessa redução, de inspiração kantiana, das
totalidade da experiência. formas culturais a meras produções do espírito, - o que me parece
Se Hegel exagera quando nos diz que "ser é ser pensado", tão unilateral COn10 considerá-las resultados imanentes da causali-
não devemos olvidar que a razão tem isto de terrível que ela dade natural, 'Ou puros reflexos de uma ordem de coisas já dada,
converte em seu objeto e, por conseguinte, em racional, tudo aquilo _ o essencial é reconhecer que tôdas as expressõeS da cultura,
em que toca, como se o real só assim se tornasse pleno e concreto. como sínteses ontognoseológicas, isto é, subjetivo-nbjetivas e teó-
Muito embora se repila a identidade de pensamento e ser, seria rico-práticas -, se atualizam no concreto da experiência histórica,
absurdo rejeitar-se o valor da razão como instrumento culminante segundo uma dialética de complementariedade; e obedecem a um
e decisivo na objetivação das formas culturais. 1)rojelo comum da espécie humana, como projeção do valor univer-
Se improcede afirmar-seque a experiência comum nos deixa sal da r:~ess oa, que é o val'Or-fonte ele todos os valôres, e tornada
no limbo das intuições fragmentárias e contraditórias, pois já vi- possível pel a subjetividade transcendental doadora de sentido, vi-
mos que há sempre certa ordem ínsita em tôdas as modalidades sando a subordinar a natureza a seus fins, através de formas que
de ação, - tMa valoração implicando a postulação de fins, tôda constituem renovadas tentativas de compor e harmo.nizar o espírito
Axiologia pondo uma Teleologia -, não se deve esquecer que a e o mundo.
experiência jurídica, por ser fruto de uma exigência fundamental § 12. Poderia parecer que à medida que se processam e se
de ordem, envolve sempre certa medida ou proporção, isto é, uma apuram as objetivações, dá-se o alheamento do espírito em relação
ratio, que nutra coisa esta palavra não significa, em suas raízes, ao mundo, assim como o divórcio da experiência cotidiana. ~sse
senão cálculo, conta, método, regra, desenho, causa. é, sem dúvida, o pecadO mortal da ciência, a qual corre sempre o
Ora, se no plano da experiência natural a razão assume em si risco de encanta r-se com as suas categorias lógico-formais, conver-
e ordena, segundos leis e princípios seus, o material da intuição tendo-as em realidades absolutas, seccionadas as raízes que a pren-
31. Não me parece plausível dizer-se que a "experiência jurídica é um
dem ao fecundante húmus da vida comum.
estádio epistemológico anterior ao conhecimento totalmente compree nsivo, O estudo que Husserl realizou, com genial acuidade, focali -
porém conhecimento enquanto episteme, ou seja, enquanto constúncia, dis- zando a crise das ciências naturais, desde Galileu aos nossos dias,
tância do objeto jurídico em relação a nós" (SANCHEZ Df: LA TOIlIlE - En
Torno a la Cieneia Jurídica, 1962, pág. 67), Quer no tocante à Sociologia pondo à mostra a sua perda de significado para o homem, à medída
Jurídica, quer quanto à Jurisprudência, as respectivas elaborações consti- que as suas conquistas ia m sendo concebidas como válidas em si
tuem elementos integrantes da experiência jurídíca e nela e por ela se e de per si, poderia ser repetida no âmbito da Ciência do Direito,
aferem, mesmo porque, como bem pondera o citado autor, "a experiência
jurídica depende da conexão entre relação intersubjetiva e função juridica 32. E . CASSIIlEIl - The Philosophy 0/ SymboU.c F'orms, trad. de Ralph
dentro da sociedade global", caracterizando-se a investigação atual por
"considerar o vivo como um todo" (loc. cit.; cf., outrossim, SociologIa deZ Mannheim, Londres, 1953, vaI. l, pá g. 80.
Derecho, cit., págs. 23 e segs.l . 33. CASSIIlER - op. cit., pág. 81.
50 MIGUEL REALE

e com mais razã'O para alarme, visto tratar-se de uma ciência do


homem. Ensaio 111
É claro que a advertência husserliana não pode ser recebida
como uma condenação ingênua ou pseudo-romântica às construções
da razão abstrativa e generalizadora, pois só na aparência o homem
de ciência se aparta do real na medida em que êle capta as leis
que o governam e traduz os fe nõmenos em expressões matemáti-
cas. O problema da crise da ciência não é o de sua gênese ou do
instrumental lógico de seus conhecimentos, mas sim o da "perda
de sentido" do mundo circundante em que ela se situa, ou por ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS DO
outras palavras, resulta de considerá-la "uma totalidade", quando CONHECIMENTO JURíDICO
é apenas "uma parte" no todo da cultura.
Seria, por conseguinte, ridículo pretender diminuir o valor
das categorias lógicas com que a Escola da Exegese ou os Pan- SUMÁIUO ; I - A experiência jurldica sob os prismas transccn-
dectistas enriqueceram a Jurisprudência, dando-lhe uma estru tura dcntn! e empírico-positivo. II -- Espécies de pesquisas positivas
e uma economia técnica de formas, que constituem ponto inamo- elo direito. IH - Lógica jurídica e Lógica jurídica formal. IV
- Analítica e Dialética jurídicas.
vível de partida para a renovação da Dogmática Jurídica, recla-
mada por uma sociedade plural num Estado a serviço do bem-
-estar social e da justiça concreta. I
O que importa é não olvidar que as objetivações científicas do
Direito - incompreensíveis sem referência às formas espontâneas A EXPERlf;NCIA JURíDICA SOB OS PRISMAS
de ordenação inerentes ao viver comum, - são por sua vez ingre- TRANSCENDENTAL E EMPíRICO-POSITIVO
dientes da experiência jurídica, filtrando-se as suas soluções tipo-
lógicas, muitas vêzes, até às camadas subjacentes da vida cotidiana, § 1. Há problemas na Filosofia que, com o volver dos anos,
para determinarem novas exigências normativas. voltam a atrair a atenção dos estudiosos, quando já haviam sido
Dizer, porém, como é que se dá êsse processo de objetivação postos de lado como pseudoprobIemas ou como questões de so-
científica, como é que se articula com a experiência imediata, e menos importância. Um dêsses temas é o da divisão da Filosofia
como pode e deve ser o direito aferido como experiência, seria do Direito, conexo com outro de maior amplitude, qual seja o de
antecipar algumas das pesquisas que constituem a razão de se" determinar e, possivelmente, classificar, as diversas ciê.ncias que
dêste livro. O primeiro trabalho a fazer-se será o levantamento têm a experiência jurídica como seu objeto.
das diversas estruturas cognoscitivas constituídas em função dos Múltiplas razões explicam êsse renovar-se da pesquisa sôbre
aspectos fundamentais da realidade histórico-social do Direito, o uma questão que tinha sido relativamente descuidada, como se se
que será objeto do Ensaio seguinte. tratasse de um problema secundário, isto depois de já ter sido
pôsto no primeiro plano da problemática filosófico-jurídica, na
época em que prevalecia a preocupação positivista de oferecer-nos
uma "classificação geral das ciências". É claro que as exigências
pedagógicas implicam sempre a necessidade de uma discriminação
dos campos de estudo, assim como uma discriminação de pesquisas
não pode deixar de existir, pelo menos implícita, em qualquer
ordem especulativa, mas o que se nota, hoje em dia, é, digamos
assim, a atualidade do tema, a sua projeção ou valorização crescente.
Resulta esta do desenvolvimento atingido pelas indagações da Teoria
Geral do Direito, da Sociologia Jurídica, da Psicologia Jurídica,
etc., e do florescimento mesmo das múltiplas escolas e doutrinas
que têm caracterizado a Filosofia do Direito no decorrer de nosso
século, fato já apontado como um dos sintomas ou indícios da
crise de nosso tempo.
52 MIGUEL REALE o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 53

Quando um filósofo do Direito, como Norberto Bobbio, chega gorosamente realizada mediante o emprêgo do método fenomeno-
a afirmar que, pràticamente, não existe tratado de Filosofia do lógico} que nos permite afirmar que todo fenômeno jurídico se
Direito que o não seja, em maior ou menor parte, também de reduz a um fato (econômico, geográfico, demográfico, etc.), orde-
Teoria Geral do Direito, ou de matéria considerada como tal pelos nado, norrnatívarnente} segundo determinados valôres.
juristas; e que, da mesma forma, não há tratado de Teoria Ge!al Para o conhecimento integral do direito, quer de um ponto
que não o seja de Filosofia do Direito, ou pelo menos de questoes de vista estático, quer de um ponto de vista dinâmico, é indispen-
assim consideradas pelos filósofos I; quando um mestre como Julius sável, porém, que a descrição fenomenológica do direito se eleve
Stone nos apresenta a Jurisprudência como a ciência global do Di- ao plano da compreensão histórica. Nesse sentido, entendo que a
reito, uma verdadeira ciência omnibus} na qual três diversos âmbi- pesquisa fenomenológica não deve se infletir, afinal, .n a subjetivi-
tos de pesquisas se justapõem, desdobrando-se em análises subor- dade transcendental, visando aos "conteúdos intencionais da cons-
dinadas, figurando a Teoria da Justiça no mesmo plano da Juris- ciência" e culminando, assim, numa experiência reflexa ligada ao
prudência Sociológica ou da Jurisprudência Analítica 2; quando a eu puro ou à subjetividade transcendental, à maneira de Husserl,
Sociologia do Direito, padecendo do mal próprio a tôdas as ciências mas, ao contrário, não pode deixar de se mfletír no desenvolvi-
novas, varia de autor para autor o campo de seus objetivos, mister mento histórico das idéias ou da cultura. Em verdade, as doutri-
é que nos capacitemos da necessidade de pôr um pouco de ordem nas e os sistemas juridicos assinalam, através de seu encadeamento
em nossos domínios, o que é, sem dúvida, um dos objetivos do histórico total, a compreensão da subjetividade universal da espécie
trabalho científico. humana no concernente aos problemas do direito tais· como vêm
Em uma importante nota de seus Princípios Metafísicos da sendo vividos no decurso do tempo, como parte do projeto comum
a que aludi à página 49.
Doutrina do Direito} a propósito da divisão da Metafisica dos Cos-
tumes, põe Kant em realce a dificuldade inerente a tôda divisão Dêsse modo, como a experiência histórica do direito coincide
com a "objetivação histórica das intencionalidades constituintes
dêsse tipo, escrevendo: do direito", nenhuma descrição objetiva da realidade jurídica atual,
"A dedução da divisão de um sistema, isto é, a prova tanto de tal como se nos oferece no plano da consciência, poderá deixar de
sua integridade como de sua continuidade, ou dessa qualidade que refletir-se no desenvolvimento histórico das idéias, neste se inse-
nos permite passar sem salto (divisio per saltum) do conceito divi- rindo como momento necessário, e só assim logrando plenitude
dido aos membros da divisão em tôda a série das subdivisões, é de significado 4.
uma das condições mais difíceis a satisfazer por quem constrói um
sistema. Há também certa dificuldade em determinar o conceito § 2. Ora, essa análise, ao mesmo tempo fenomenológica e
fundamental dividido, na divisão do justo e do injusto (aut fas aut histórico-axiológica do dimito} leva-nos a discriminar na realidade
nefas): é o ato do livre arbítrio (Es ist der Akt der freien Wilkur jurídica três dimensões, mais do que elementos, que representam
uberhaupt). Da mesma forma, os mestres de Ontologia começam qualidades essenciais a tôda experiência jurídica e que denomino
a distinguir entre ser e não ser, sem se aperceberem que já apre- fato} valor e norma. O direito é, com efeito, "uma realidade his-
sentam os membros de uma divisão, à qual falta ainda o conceito tórico-cultural tridimensional de natureza bilateral-atributiva", ou
dividido, que não pode ser outro senão o de Objeto em geral" 3. seja, uma realidade espiritual (não natural, nem puramente psíqui-
Muito embora a natureza mesma da realidade jurídica importe ca, ou técnico-normativa, etc.) na qual e peja qual se concretizam
em correlações e interdependências entre setores científicos apa- historicamente certos valôres} de sorte que as relações intersubje-
rentemente estanques, tornando injustificados quaisquer cortes ine- tivas são sempre ordenadas segundo sistemas de regras que repre-
xoráveis nos distintos campos de pesquisa do direito, não será sentam "sínteses históricas de fatos e de valôres".
errôneo dizer que muitas das confusões reinantes podem ser supe- Fato} valor e norma são, por conseguinte, elementos ou di-
radas se partirmos de uma rigorosa análise dos elementos da mensões da experiência jurídica, o que não só é reconhecido, de
juridicidade. Essa "descrição objetiva" do direito só pode ser ri- uma forma ou de outra, por jurisfiJósofos filiados às mais diversas
correntes doutrinárias, como Emil Lask, Gustav Radbruch, Wilhelm
Sauer, Roscoe Pound, Julius Stone, Paul Roubier, Jerome HalI,
1. BOBBIO, Studi Bulia Teoria Generale deZ Diritto, 1955, pág. 28.
2. STONE, The Province a.nd Function of Law, 2.' ed., 1950, págs. 19 4. Sõbre essa correlação que faço entre análise fenomenológica e re-
e segs. flexão histórica, v. o estudo "Ontognoscologia, fenomenologia e reflexão
3. KANT, Metaphysische Anfcmgsgründe der Rechtslehre, ed. Cassirer, critico-histórica" que publiquei no fase. 62 da Revista BrasileiJ'{j, de Filosofia ,
vol. VII, pág. 18, n.' 1. 1966, págs. 161-201.
34 MIGUEL REALE " DWEITll CO~IO EXPER1ÊNCIA 55

flecaséns Siches, Luigi Bagolini, Carlos Cossio, Cabral de Moncada, uma adesão ao seu apriorisll1o formal que, como já disse, não se
Sduardo GarCÍa Maynez e Legaz y Lacambra, mas também por harmoniza com a concretitude elo pensamento contemporâneo.
lquêles que, como Kelsen, embora considerando metajurídicos os Feita essa discriminação entre o plano positivo e o transcen-
~studos sôbre o Direito como fato social ou como justiça, nem por dental, o primeiro problema, ou melhor, a primeira série de pro-
lSSO ignoram a possibilidade de "três ordens fundamentais e dis- blemas que se impõe à análise, diz respeito à consistência mesma
tintas de pesquisas" 5. da realidade j urídica e sua correlativa determinação conceitual.
Isto pôsto, é preciso, desde logo, distinguir entre o tratamento Essa Parte Geral, prévia, corresponde nos planos filosófico e
filosófico e o científico-positivo da realidade jurídica. Como Hus- positivo, respectivamente, às ordens de pesquisas que denomino
,erl nos esclarece, · a atitude natural da ciência é sempre realista, Ontognoseologia Jurídica e Teoria Geral do Direito) de conformi-
no sentido de que não reduz, nem subordina a realidade a condi- dade com o quadro anexo 7.
;;ões subjetivas, nem faz da correlação sujeito-objeto um problema A Ontognoscologia Jurídica é a parte geral da Filosofia do
essencial e prévio6 • Ao contrário, a Ciência Positiva, como ciên- Direito destinada a indagar das condições subjetivas e objetivas
cia de realidades, parte do pressuposto metodológico da autonomia da experiência jurídica. Estuda, por conseguinte, o direito a parte
do objeto, como dado empírico, cujas leis procura explicar. O subjecti e a parte objecti, dada a essencial correlação que, necessà-
mesmo ocorre .no domínio da Ciência Jurídica, o que torna com- riamente existe entre sujeito e objeto do conhecimento, os quais
preensível a. natural tendência do jurista, enquanto tal, no sentido estão entre si numa funcionalidade dialética de implicação e pola-
de acolher com mais simpatia as interpretações filosófico-positivas ridade. Donde resulta que não é possível determinar-se o conceito
do direito, aquelas, isto é, que não põem qualquer distinção essen- do direito sem se determinar ao mesmo tempo a sua consistência:
cial entre Ciência e Filosofia. Sob êsse prisma, já foi dito com trata-se de problemas correlatos, que correspondem a uma unidade
razão que o "positivismo jurídico" · é o "lugar geométrico" da men- de ordem, o que exclui a possibilidade de um conceito puramente
talidade do técnico · ou prático do direito. formal do direito, assim como a sua reduç.ã o a um fato puro.
Já é diverso o plano em que, a meu ver, deve colocar-se o Graças ao método que denomino "crítico-histórico", - por-
filósofo, ao converter a .própria Ciência positiva em um de seus que correlaciona os dados da análise fe.nomenológica com o pro-
problemas, e ao' apreciar a realidade jurídica em sua conexão essen- cessus do direito no plano da história - , torna-se, no meu modo
cial com o sujeito cognoscente. Uma indagação do objeto, que de ver, possível determinar que o direito é essencial e dialetica-
ponha entre parênteses a sua referência ao sujeito, para conside- mente tridimensional.
rá-lo metodologicamente ab extra} é, repito, a atitude natural e
inevitável do conhecimento positivo. Em Filosofia, ao contrário, § 3. Concebido o direito como tato, como valor e como nor~
não é admissível aextrapolaçilo do objeto, necessàriamente corre- ma, a Ontognoseologia Jurídica se discrimina, ou melhor, se desen-
lacionado com o sujeito cognoscente, ambos exigindo-se recipro- volve em três subdivisões de estudos: a Deontologia Jurídica estuda
camente no processo ontognoseológico, o qual é em si uno e con- o direito segundo seus pressupostos axiológicosj a Culturologia
creto. A rigor, mesmo o positivista, para chegar à sua conclusão Jurídica estuda o direito segundo seus pressupostos ônticos}' e a
Epistemologia Jurídica ou Teoria transcendental da Ciência do
de monismo metodológico, não pode deixar de partir de uma ati-
tude crítica que ponha em dúvida, ou em crise, a "atitude na- Direito estuda o direito segundo seus pressupostos lógicos. Tais
tural" do conhecimento, indagando da condicionalidade do objeto partes especiais .n ão são domínios estanques: constituem, antes,
momentos que se integram necessàriamente na global visão ontog-
pejo sujeito, ou vice-versa. Essa atitude crítica é peculiar à Filo- noseológica e dialética do direito 8.
sofia, uma de cujas pesquisas se refere aos supostos ou pressupos-
tos das ciências, devendo, em tal caso, se denominar t1'anscendental, Paralelamente a êsse desdobrar-se de perspectivas no plano
expressão coma qual se reconhece a contribuição decisiva de Kant transcendental, e como seu necessário complemento, põe-se, 'como
na reformulação do problema gnoseológico, embora não signifique veremos melhor no ensaio seguinte, o problema da Teoria Geral do

5. Para a compreensão da minha teoria em confronto com as demais 7. Dada a importância fundamental do assunto, destino um Ensaio
especial (págs. 75 e segs.) para o estudo das relações entre a Filosofia
doutrinas t ridimensionalistas, implícitas ou explícitas, v. os meus livros Teo- e a Teoria Geral do Direito.
ria Tridimen~ional do Direito, São P aulo, 1968 e Filosofia do Direito,
4.' ed., cit., págs. 433 e segs. S. Sôbre essas discriminações, v. minha Filosofia e Direito, 4.' ed.,
cit., págs. 266 e segs. Quanto à posição da EpistemOlogia Jurídica no âmbito
6. V. HUSSERL, Idées Directrices plJlW Une Phénoménologie, trad. de da Ontognoseologia, v. infra, págs. 84 e segs.
Paul Ricoeur, 4.' ed., págs. 32 e segs.
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'g't:l~ Direito, que é uma forma de conhecimento positivo determinado no
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cendentalidade. como condição universal das experiências possíveis),
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princípios que, por mais genéricos que sejam, não perdem o seu
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estruturas de ordenamentos jurídicos em vigor em certa épo-
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,....L- ,......a- r-&- ca. O problema, por exemplo, das fontes ou o', da interpre-
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.... do Direito, ao contrário, indaga das fontes e dos processos inter-
:s..... pretativos vigentes em nossa época, discriminando-lhes as formas,
o:: as modalidades, os limites e as funções nos quadros do ordena-
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.... mento jurídico pátrio, em confronto com os dos países de correlato
O sistema cultural, assim como pode desenvolver tais estudos em
,....-l- função, por exemplo, dos ordenamentos jurídicos do Egito ou de
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9. Fá cil é perceber que emprego sempre o têrmo "Te01'ia Geral do
Direito" em seu sentido especifico, para indicar um campo autônomo e de-
finido de pesquisa do direito, distinto do da Filosofia Jurídica. Às vêzes
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1---1 ~.~ aquêle têrmo é usado. por motivos didáticos, para Significar uma visão
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r.. ....Oc: <li ...
técnicos, o que só pode ser feito sem olvido da acepção específica e própria.
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58 MIGUEL REAL E o DIREITO COMO EXPERlltNCIA 59

que não se deve estranhar, dada a natureza da matéria' e peja Em suma, a minha tese é a de que fato, valor e norma são
razão fundamental que quando falo em "condições transcendentais dimensões essenciais do direito, o qual é, dêsse modo, insuscetível
do direito" não me refiro a algo transcendente, desligado ou su- de ser partido em fatias, sob pena de comprometer-se a natureza
perior à experiência, mas, sim, a algo que só do ponto de vista especificamente jurídica da pesquisa.
lógico ou axiológico se põe antes da experiência, como condição
de .sua possibilidade. Não basta descobrir no direito três elementos, ou fatôres, nem
mesmo considerá-los "dimensões" distintas de uma única reali-
Ê óbvio que tôdas estas minhas distinções dependem da irre- dade, porque a tridimensionalidade jurídica pode assumir feições
dutibilidade que, a meu ver, existe entre a Ciência e a Filosofia, diversas, desde um tipo estático e abstrato a um outro dinâmico e
parecendo-me que, para serem coerentes consigo mesmos, os adep- concreto. Ao primeiro tipo pertencem as doutrinas que decompõem
tos do monismo gnoseológico, que concebem a Filosofia como uma a experiência do direito, por abstração, nos t rês campos ou facetas
versão qualquer do conhecimento científico, deviam identificar acima discriminados, destinando-se cada um dêles a uma Ciência
tout court a Filosofia do Direito com a Teoria Geral do Direito. diversa: a norma seria o objeto da Jurisprudência Dogmática ou,
conforme a terminologia anglo-saxônia, da Jurisprudência Analí-
tica; o fato seria estudado pela Sociologia ou Psicologia Jurídica,
TI etc.; e, por fim, o valor do Direito seria objeto da Teoria da
Justiça ou Axiologia Jurídica e, no plano empírico e imediato, da
ESPÉCIES DE PESQUISAS POSITIVAS DO DIREITO Política do Direito.
Em contraposição a essa discriminação abstrata, penso que
§ 4. Como ainda resulta do quadro supra, pág. 56, é pos- qualquer conhecimento do direito é necessàriamente tridimensio-
sível discriminar, no plano empírico, tres ramos especiais de pes- nal, e que, em cada ciência particular, o que se verifica é a orien-
quisas, que se ligam, respectivamente, à problemática do fato ju- tação do estudo em função de um dos três elementos apontados,
rídico (p. ex.: Sociologia Jurídica e História do Direito); à pro- distinguindo-se pelo sentido de seu desenvolvimento respectivo, de
blemática das regras de direito (Ciência Jurídica ou Jurispru- conformidade com o sentido vetorial de cada tipo fundame.ntal de
dência) e à problemática dos valóres jurídicos (Política Jurídica). pesquisa, a saber:
Põe-se aqui uma questão que requer exame todo especial.
Em geral, os autores que concordam em discriminar no direito Fato ~ Valor ~ Norma (vigência)
os tres citados elementos (fato, valor e norma), são levados a Valor ~ Norma ~ Fato (eficácia)
considerar cada um desses fatôres isoladamente, transformando-os
Norma ~ Fato ~ Valor (fundamento)
em objetos de três ciências distintas. À primeira vista, poder-se-ia
tirar tal conclusão, como ocorre nas doutrinas que considero "tri-
dimensionais abstratas", mas com sacrifício da unidade existente Cabe notar que essa compreensão dialética dos elementos que
na experiência Jurídica. compõem a experiência jurídica resulta da natureza dialética do
próprio direito, como realidade 'ou fato histórico-cultural, con~
Seria mais cômodo dizer, com efeito, que a Sociologia Jurídica soante terei oportunidade de esclarecer em diversos tópicos dêste
cuida do direito como fato e a Ciência do Direito dêle se ocupa livro!l. Tudo que o homem constitui, valendo-se de dados da
como norma, se não surgisse, imediatamente, a dificuldade lógica natureza, para satisfazer a certos fins) adquire existência objetiva,
de conceituar-se uma Ciência Jurídica cujos juízos ou proposições não podendo êsse tipo de realidade ser concebido ou interpretado
não estejam referidos sempre a dado sistema de normas, ou seja, sem se levar em conta a concretitude ou a complementariedade
a normas consideradas jurídicas e que, como tais, envolvem uma dos elementos que o integram. O mesmo ocorre no caso do direito.
referência necessária a dadas situações de fato e a dada ordem
de valôres consagrados positivamente no ordenamento vigente. O Trata-se, como se vê, de uma unidade de processo, podendo e
mesmo se diga da Sociologia Jurídica, a qual seria apenas Sociologia devendo cada um dos momentos da experiência jurídica ser objeto
se o fato social, objeto de sua indagação, não envolvesse uma ne- de estudo, em correlação ou implicação com os demais, já que
cessária referência a normas e valôres de natureza jurídica 10. nenhum dêles poderia ter "qualificação jurídica" erradicado ou
abstraído que fôsse daquela totalidade a que pertence.
10. Coincidindo com êsse meu ponto de vista, v. RECASÉNS SICHES,
Tratcuio General de Fi108of ia deZ Derecho, 1959. págs. 160-164. 11. v., especialmente, os Ensaios VII e VIII.
60 MIGUEL REALE ti n l HI.; I TO ('0:\10 EX P Bl:lI~NCL\ (il

Assim sendo, embora o direito seja sempre uma ordenação llodcl', o qual lhe assegura vlgencia .n as conjunturas espácio-tem-
1wrmatíva da realidade social segumdo certos valôres, ou, o que porais. (~uando o poder social ou o poder estatal, em virtude de
vem a dar no mesmo, umareaUdaàe social normativamente orde- seu ato decisório, aperfeiçoa o nascimento de uma norma costu-
nada em função de experiências a$iológicas, é possível considerá-lo meira ou legal, uma certa ordem de valôres resulta consagrada,
objeto de três ordens fundamentais de estudos, das quais a Ciência tomando-se obrigatória : a norma não é, assim, um "objeto ideal",
do Direito, a Política do Direito e a Sociologia Jurídica são as mas uma realidade cultural, inseparável das circunstâncias de fato
expressões mais relevantes. e do complexo de estimativas que condicionam o seu surgir e o
Não se trata, evidentemente, de uma solução eclética, como seu desenvolvimento, a sua vigência e, à luz desta, a sua eficácia.
poderia parecer aos menos avisados . ou aos críticos superficiais, A norma juridica não pode, porém, ser pensada como um
mas de uma solução que se caracteriza exatamente pelo supera- im'entál'io de atos passados: a sua destinação é reger atos futuros,
mento de posições abstratas ou transistemáticas, tanto assim que o que demonstra não poder ser estudada segundo os padrões das
culmina num normativismo jurídico concreto, no qual fatos e va- ciências .naturais. Não disciplina, de outro lado, os fatos futuros
lôres se implicam dialeticamente. como um esquema estático: ela não pode deixar de sofrer o impacto
Há duas verdades correlatas a serem preservadas. De um de novos e imprevistos eventos e valôres, cuja superveniência
lado, torna-se necessário firmar que os pontos de vista do sociólogo implica uma nova compreensão normativa, liberta do formalismo
ou do filósofo não podem coincidir com o do jurista, sob pena de que caracterizou a Jurisprudência conceitual.
tudo se comprometer numa unidade amorfa e indiferençada. Não cabe aqui estudar o que denomino nrn'mativismo jurídico
concreto 12, correspondente à concepção tridimensional especifica e
Por outro lado, se a tridimensional idade é da essência mesma concreta, mas as considerações acima bastam para demonstrar
do direito, compreendido como experiência social e histórica, aquê- em que sentido considero normativa a Ciência do Direito: sua
les três pontos de vista distintos sôbre o direito não podem fazer ( normatividade não a converte em uma Lógica Juridica formal,
abstração de uma qualidade intrínseca à própria juridicidade, mas, porque envolve permanente referência aos fatos e valôres de que
ao contrário, devem determiná-la e expressá-la de modos diversos, pro mana, assim como aos fatos e valôres a que '. tende. Esta colo-
segundo as três direções de pesquisa acima apontadas. cação do problema é fecunda, a meu ver, em conseqüências prá-
ticas. notadamente no que se refere à interpretação e à aplicação
§ 5. Firmados tais pressupostos, procuremos verificar, em )
do direito,C'omo a seu tempo se verá.
linhas gerais, como é que, na compreensão dialética do direito, se ~ § 6. Pois bem, se a Ciência Jurídica é normativa, como di-
'~
apresenta cada um de seus momentos ou fatôres, a fim de deter- reção dominante e essencial da pesquisa, já a Sociologia Jurídica
minarmos o objeto de cada uma das disciplinas juridicas funda- ~ se desenvolve no sentido do fato jurídico, ou, pnr melhor dizer, ela
mentais, bem como . das exigências metodológicas que lhes cor- é dominada pelo elemento de eficácia ou de. efetividade do direito
respondem.
É inegável que, do ponto de vista da pesquisa de caráter cien-
tífico, é o momento regulativo ou normativo da experiência jurídica
aquêle que tem sido alvo de estudos mais ordenados e objetivos,
, ("faticidade do direito") . O sociólogo do direito não pode analisar
um fa to qualquer como sendo jurídico a não ser mediante refe-
rências a valôres e a regras : se assim não fôsse, o seu estudo seria
oferecendo um cabedal de categorias conceituais e de processos
técnico-lingüísticos do mais alto alcance, apesar das divergências
e contrastes que a sua vivência e aplicação suscitam no decorrer
"
-I
j
1
sociológico, e não sociológico-jurídico.
Para o sociólogo do direito, com efeito, o punctum salicns do
processo dialético da positividade jurídica é representado, não pelo
elemento regulativo, mas sim pelo factum da conduta, cuja com-
da história. Êsse é o aspecto sôbre o qual o jurista concentra a !
~
preensão reclama, todavia, a referência aos outros dois fatôres, a
sua atenção, a tal ponto que, se há exagêro na identificação do ~ fim de que se possa falar em fato especificamente jur'ídico, e não
direito à regula juris, baldadas e infrutíferas têm sido tôdas as
tentativas de esvaziar a Jurisprudência de sua essencial normati- I
I
em fato genericamente social: é a tridimensionalidade que explica
e legitima a autonomia de uma Sociologia Jurídica no âmbito da
vidade. Sociologia Geral.
A Jurisprudência ou Ciência do Direito é dialética e concre- Quando se afirma que a Sociologia Jurídica tem por objeto o
tamente normativa, assim como o jurista, como tal, só pode pensar estudo do direito como fato social, ou segl,lndo os efetivos compor-
S1lb specie regulativa, subordinando fatos e valorações à medida
integrante que se cohtém nas regras de direito . Cada norma jurí- 12. Cf. infra, o Ensaio intitulado VII sôbre a vida e a gênese dos modelos
dica, considerada em si mesma, constitui uma integração racional jurídicos (págs. 187 e se gs.) , bem como o meu livro Teoria Tridimensional
de fatos e valôres, tal como se aperfeiçoa graças à mediação do 1 do Dimito, cito
62 MIGUEL l!EALE O DIREITO COMO EXPERJeNCIA 63

tamentos coletivos, não se está dizendo outra coisa, mas sem clara a Sociologia Jurídica deve ser situada entre as clencias "puramente
consciência teorética.. Com efeito, um fato social só pode ser con- compreensivas", visto como as leis que determina, como "conexões
siderado jurídico por apresentar algo de especifico: a especificidade de sentido", não desempenham uma função regulativa, não se des-
do · factum, juridicum decorre de sua qualificação normativa, .de tinam a reger atos futuros, em virtude da opção feita pela obriga-
nexos de imputabilidade, e de sua correspondência a interêsse e toriedade de "certo sentido".
valôres, que .se reconhecem merecedores de garantia específica.
Se se fizesse total abstração dêsses "elementos de r eferência". § 7. Ê deveras significativo, - como demonstração do esva-
perder-se-ia a nota específica da juridicídade. ziamento axiológico a que o naturalismo do século XIX submeteu
Não é, pnis, certo dizer que ao sociólogo só interessa a efeti- as ciências sociais - , o fato de se ter perdido a noção de que o
vidade ou a eficácia do direito) v. g., o direito como conduta empi- direito pode e deve ser estudado cientificamente também sob o
ricamente observável : a eficácia, por mais que seja dominante na prisma do valor: tal ordem de estudos corresponde à Política do
compreensão do sociólogo, envolve uma correlação necessária com Direito.
a vigência (qualidade técnico-formal da norma jurídica) e com o
fundamento (qualidade axiológica da norma jurídica) 13. Frise-se, desde logo, que não me refiro à Filosofia Política,
enquanto referida ao direito, mas sim a uma pesquisa de natureza
Não se trata, porém, de simples questão de grau - embora empírico-positiva, que se situa no mesmo plano da Jurisprudência
evidentemente haja uma diferença também quantitativa - , mas e da Sociologia Jurídica. Pode-se dizer, aliás, que a Política do
antes de uma diferença ' de momentos na captação do processo de Direito representa a conexão entre a Ciência Política e a Ciência
positivação jurídica, ou de ((realizabilidade normativa de valóres)}. do Direito, como penso ter demonstrado em estudo sôbre as formas
Embora nosso estudo não tenha, por ora, em vista senão fixar do conhecimento político, constante de minha T eoria do Direito e
as notas caracterizadoras de cada tipo de pesquisa científico-posi- do Estado. É na Política do Direito, que se analisam as "conveniên-
tiva do direito, vale a pena salientar que a Sociologia Jurídica cias axiológicas", em função das quais o poder é levado a optar,
não é uma "ciência natural" como poderia parecer à vista de seu por exemplo, por um determinado projeto de lei, eliminando da
prevalecente interêsse pelo elemento fático. O fato de que cuida o esfera da normatividade jurídica tôdas as outras soluções propostas.
sociólogo do ' direito é, porém, um fato cuja qualificação jurídica A necessidade de reexaminar a problemática da Política Jurídica,
implica essencial referência a uma ordem de valôres e de normas. como uma ciência centrada na "prudência das valorações concre-
A meu ver, aliás, a Sociologia já é de per si uma ciência his- tas", parece-me cada vez mais evidente, diante das funções do
tórico-cultural, e, "como tal, compreensiva (e não causal-explicativa) Estado que, no plano legislativo, assumem caráter eminentemente
o que se torna ainda . mais evidente quando se estuda qualquer das técnico 15.
Sociologias especiais, '" como a do dir eito, da arte ou da economia, O cultor da Política do Direito ou Política Legislativa, que
cujos objetos são. produtos históricos, realidades constituídas pelo procura a vivÊmcia dos valôres nas conjunturas e contingências
trabalho cria,dor da espécie humana.
espácio-temporais, a fim de eleger a regra de direito mais oportuna
Se, como veremos mais pormenorizadamente, em ensaio pró- e necessária, em função dos interêsses atuais da comunidade, põe
prio, a Jurisprudência é uma ciência "compreensivo-normativa" 14, a nota tónica no momento da valoração. O legislador ou o teórico
da Política do Direito não analisa, porém, valôres no plano trans-
13. :f:sse plexo de referibilidades normativas é reconhecido expressa- cendental, mas, sim, valorações na órbita empírico-positiva, rea-
mente por G. GURV1TCH quando diz que a Sociologia Jurídica procede a lizando um trabalho de aferição de diretivas axiológicas em função
partir de esquemas simbólicos jurídicos prefixados, como direito organizado, do possível político.
procedimentos e sanções, até chegar a símbolos jurídicos prôpriamente ditos,
como regras flexíveis e direito espontâneo. (Cf. Introduction à la Sociologie Com isto se previne o equívoco de pensar que seja sempre de
du Droit, Paris, págs.47 e segs.). É exatamente em virtude dessas e de caráter filosófico-jurídico tôda e qualquer consideração do fato ju-
outras conexões entre Jurisprudência e Sociologia Jurídica que, como ve-
remos, ambas se subordinam a uma mesma Teoria Geral do Direito, de r ídico sob prisma axiológico. Uma coísa é o estudo dos valôres
cujo âmbito deriva, por especificação, a Teoria Dogmática do Direito (cf. como "condições transcendentais" da experiência jurídica (plano
infra, págs. 88. e .s egs.J.
14. Cf. infra, págs. 111 e segs. Cf., outrossim, F ilosofia do Direito,
4.' ed., cit ., págs. 227 e segs. Sôbre as relações entre Jurisprudência e 15. Sôbre a Política. do Dire ito, no seu duplo aspecto deontOlógicO e
Sociologia Jurídica, sob o prisma desta disQiplina, v. ANGEL SANCHEZ DE LA técnico, v. o estudo de ROUlllER às págs. 150 e segs. de Travaux de la Semaine
TORRE - Sociologia deZ Derecho, Madri, 1965, págs. 17 e segs.; e EVÁRISTO lnternat i onale de Droit, P aris. 1954. Para maiores esclarecimentos v. MIGUEL
DE MORAIS FILHO - O Problema de uma Sociologia de Direito, Rio, 1950. REALE, T eoria do Direito e do Estado, 2.' ed., S ão P a ulo, 1960, págs. 335 e scgs.
64 MIGUEL REALE o rH/:EITO COMO r-;XPEfll(;N CIA 6:)

de pesquisa do filósofo do direito); outra coisa é a indagação das III


valorações atuais, ou seja, da vivência psicológico-social de valôres
na condicionalidade empírica em que o legislador deve se colocar
como intérprete das aspirações coletivas (plano de pesquisa do LóGICA JURíDICA E LóGICA JURíDICA FORMAL
político do direito).
§ 8. Dir-se-ia que, nos quadros de uma compreensão do
Os problemas da Política do Direito, como se depreende do direito como experiência, não resta lugar para a Lógica Jurídica
exposto, correspondem, principalmente, aos formulados de lege te- formal. l'\ão procede tal conclusão.
renda, assim como a Ciência do Direito se desenvolve sobretudo de
lege lata) pela interpretação, construção e sistematização das re- É evidente que, pôstoo problema da experiência do direito
gras jurídicas vigentes, sem que esta complexa tarefa seja confinada no centro da Epistemologia J uridica, não há como confundir a
à mera análise da linguagem do legislador. Lógica Jurídica com a Lógica Juridica formal, mesmo porque a
norma de direito, como expressão de um processo histórico-cultu-
A tarefa da Política do Direito, ponto de interseção do saber ral, não pode ser rec'.uzida a uma simples proposição lógica, elimi-
jurídico com o saber político, tem sido, infelizmente, excluída da nando-se o seu conteúdo fático-axiológico. Como se verá, uma
cogitação científica, tornando-se cada vez mais necessário resta- coisa é fazer-se abstração dêste conteúdo para indagar-se da estru-
belecer uma tradição de estudos que uma concepção positivista de- tura IógÍC'o-formal ele uma regra de direito; outra coisa é confundi-la,
masiado estreita pensou poder substituir pelas Sociologias Jurídica sumàriamente, com os seus valôres proposicionais ou lógico-sintá-
e Política. Estas, na realidade, fornecem dados e elementos com ticos.
os quais, em conexão com outros fatôres de ordem psicológica,
econômica, etc., o legislador deve orientar-se no ato da emanação Antes, porém, de tecer breves considerações sôbre esta ma-
da regra jurídica, segundo exigências axiológicas de prudência, de téria, duas observações desde logo se impõem. Em primeiro lugar,
oportunidade e de conveniência, tais como se configuram nas di- seria fonte de graves err os conceber-se a Lógica Jurídica como
versas conjunturas históricas e mesológicas. um dos ramos ela Filosofia do Direito, sem se levar em conta a
O que motivou o descrédito da antiga Teoria da Legislação, nos distinção dos planos de pesquisa, reiteradas vêzes assinalada neste
moldes das obras clássicas de Bentham ou de Filangieri, foi o seu estudo, o transcendental e o empiric'o-positivo. Em função da
caráter abstrato iluminístico 'Ou moralizante, dada a carência de Epistemologia Jurídica, - entendida como especificação da Ontog-
conhecimentos psicológicos, sociológicos e econômicos sôbre os fatos noseologia ou Lógica transcendental, ou seja, como teoria das
condicionadores da ação legislativa, como, por exemplo, sôbre a primordiais condições lógicas da Jurisprudência -, é que se põe
opinião pública, as ideologias, os grupos de pressão, bem como a a Lógica Jurídica no plano da ciência positiva. Quando se falar,
falta do sentido de síntese que deve possuir quem, no plano da por conseguinte, em Lógica Jurídica deverá entender-se a expressão
praxis, não cuida genericamente dos valôres, mas, sim, da proble- no sentido de um campo de investigação situado integralmente no
mática dos meios e dos fins, no âmbito de uma determinada con- âmbito da Teoria Geral do Direito e da experiência jurídica, cujos
vivência e nas coordenadas de uma singular situação histórica. fundamentos ou pressupostos ontognoseológicos nos são dados, to-
davia, pela Lógica-Jurídica transcendental, que melhor será deno-
Se, como escrevi alhures, 'o fim é, no fundo, o valor enquanto minar, pura e simplesmente, Epistemologia Jurídica (cf. figura
reconhecido racionalmente como motivo de conduta, a Política do de pág, 56).
Direito assinala o momento teleológico que prepara e exige a opção
É claro que nem sempre será possível traçar uma nítida linha
por determinada solução legislativa, com exclusão ou preterição de
outras vias possíveis, o que tudo implica o estudo objetivo da cor- divisória entre a Epistemologia Jurídica e a Lógica Juridica, mas
relação entre os meios idôneos e os fins reclamados pela coleti- tal fato .não deve causar estranheza, máxime se se partir da conside-
vidade. ração, a meu ver fundamental, de que o conhecimento é um "pro-
cessus", que se desenvolve a partir das já apontadas "condições
Não há, pois, como confundir o plano filosófico do valor, visto transcendentais de possibilidade", visando a determinar, através de
com condicionalidade transcendental da experiência ética em sua objetivações e especificações racionais progressivas, a· integralidade
universalidade, com o plano científico-positivo das condicionalidades da experiência, correspondente a cada "ontologia regional", cons-
empíricas, a que se subordinam processos concretos de valoraç'ão, tituindo-se, assim, os diversos r amos em que se discrimina e nã'O
o que quer dizer, de conexões teleológicas que tecem a trama da cessa de se discriminar o saber positivo. ~e processo de objeti-
positividade jurídica, vação cognoscitiva, correspondente ao conjunto . ou sistema das
66 MIGUEL REALE o DIREITO COMO EXPERIÊNCiA 67

"ciências particulares", realiza-se graças às duas formas primor- para o jurista chamado. a interpretar e aplicar as normas jurídicas
diais de objetivação cognoscitiva, - pertinentes, respectivamente, numa experiência concreta 16.
às condições formais e às condições subjetivo-objetivas do conhe- Não que eu repute de somenos o papel da Lógica Jurídica
cimento - , que são a Lógica formal e a Metodologia. formal, pois, com a consideração da norma jurídica co.mo um bem
Trata-se de duas esferas de investigações distintas, embora es- ou objeto cultural de sl~porte ideal (uma pro.posição normativa,
sencialmente correlatas, devendo-se evitar a denominação de "Ló- graças à qual se fixa e se comunica um de~'Cr ser de conduta) co
gica aplicada" às vêzes dada à Metodologia, para não pensá-la em ipso se reconhece a necessidade de estudar-se a forma ou a estru-
têrmos de mera aplicação subordinada e segunda de estruturas ló- tura lógica do direito, de per si, como um de seus aspectos funda-
gico-formais, quando o certo é que ela, não obstante a sua necessária mentais: o que me parece inadmissível é tão.-somente julgar que a
adequação às formas lógicas, desenvolve-se de maneira autônoma, Lógica Jurídica se exaura na pesquisa de seus elemento.s lógico-lin-
constituindo as suas próprias estruturas e instrumentos de pesquisa gÜÍstico.S 17.
em função do conteúdo peculiar a cada campo de experiência Parece-me que, para se compreender, co.m o devido. rigor, o
possível. Poder-se-ia talvez invocar a antiga denominação de Ló- objeto. de Lógica Jurídica formal torna-se necessário lembrar, con-
gica material, com os devidos cuidados e ressalvas, apenas para
tornar claro qual é o âmbito de "objetivação cognoscitiva" re- soante tenho salientado em meus escrito.S, - que to.do. o.bjeto cul-
presentado pela· Lógica como ciência positiva, em seu conjunto. tural é constituído de um suporte e de um significado, podendo
aquêle corresponder a um objeto ideal, como acontece no. caso das
Por aí se vê que, por via de conseqüência, a Lógica Jurídica normas jurídicas. Ao contrário do que geralmente se expõe no.s
deve abranger tanto os aspectos formais como os funcionais da domínios da Culturologia, nas pegadas dos ensinamentos de Ernst
experiência jurídica, sendo estas duas ordens de pesquisa subordi- Cassirer, - para quem o suporte de um bem cultural só pode ser
nadas ao prévio estudo epistemológico sôbre as suas condições de ordem real ou psicológica - , penso que se deve admitir uma
transcendentais de p'Ossibilidade. terceira hipótese, da qual a norma jurídica é exemplo caracterís-
Além dessa observação, quanto à ubiquação dos estudos ló- tico, isto é, a de bens culturais constituídos pela ligação ou ade-
gico-jurídicos, cabe ainda ponderar que a Lógica Jurídica não pode rência de um significado axiológico a um suporte ideal.
ser estudada apenas em função da Jurisprudência, pois o seu estudo
se impõe com referência a tôdas as formas de conhecimento da
experiência jurídica, havendo aspectos diversos a considerar sob o 16. Não são apenas os partidários de uma "Lógica do concreto", como.
prisma sociológico, histórico ou dogmático. As investigações ló- p. ex., CHAIM PERELMAN (v. "Logique Formelle, Logique Juridique", em
Logique et Ana.lysB, 3, 1960, págs. 226 e 230) que não admitem possa a
gico-jurídicas possuem por certo maior relêvo na órbita da Ciência Lógica Jurídica, enquanto Lógica formal, constituir uma ciência especial,
do Direito,- e sob êsse ângulo elas têm-se desenvolvido quase que mas também logicistas como ULRICH KLUG, segundo o qual a Lógica Formal
exclusivamente-, mas isto não deve induzir os cultores da Lógica seria "a Lógica rmra ou teorética,", e a Lógica Jurídica uma "Lógica prá-
tica". (Cf. Juristische Logik, 3.' ed., Berlim, Heidelberg, Nova-Iorque,
Jurídica anão tomar conhecimento das exigências peculiares, por 1966, pág. 7). Em sentido contrário: KALINOWSKI - "De la Specificité de
exemplo, à Sociologia Jurídica. A ponderação ora feita corres- la Logique Juridique", em ATChives de Philosophie du Droft, t. XI. págs.
ponde, aliás, à já apontada necessidade de alargar-se o conceito de 7 e segs. e E . GARcfA MAYNEZ - La Lógica del Raciocínio Jurídico.
Teoria Geral do Direito, assunto que melhor será analisado no México, 1964.
Ensaio IV dêste livro, de modo a não ficar circunscrita às investi- Quanto ao "alto custo teórico" de complicados algoritmos para resul-
tados de minguado alcance, também são coincidentes as reservas de alguns
gações que se operam nos quadrantes exclusivos da Jurisprudência. especialistas da Lógica Jurídica e de jurisfilósofos. Cf., por exemplo. NOR-
BERTO BOBBlO - "Diritto e Logica", na Riv. lnternazionale di Filosofia dei
Diritio, 1962, I-lU, pág. 42 e GIUSEPPE LUMIA - 1l Diritto tra le Due Cul-
§ 9. Ainda reina a maior discrepância entre os cultores da ture, Milão, 1966, pág. 134.
Lógica Jurídica no co.ncernente à extensão de seu objeto ou aos
17. Sôbre essa compreensão da norma jurídica com um bem cultural
seus títulos de "ciência autônoma". Parece-me ainda arriscado, de suporte ideal, - ponto em que diVirjo de quantos só concebem a cultura
a esta altura de pesquisas que se desenvolvem em ritmo acelerado, como formada de objetos de suporte natural, físico ou psíquico - . v.
dentro. e fo.ra dos domínios da Lógica Simbólica, pretender delimitar minha Filosofia do Direito, cit., págs. 203 e seg., 272, 338, 499 e segs., onde
co.m rigor o. campo. próprio da Lógica Jurídica, mas não me parece delimito o âmbito da Lógica Jurídica formal, reconhecendo não só a sua
autonomia como o seu significado primordial no campo dos estudos.
haver dúvida quanto. à necessidade de se lhe conferir uma tarefa
mais ampla do. que a de elaborar meros cálculos proposicionais, Só por equívoco pôde SíLVlO DE MACEDO declarar, em sua LÓ.'1ica Ju-
rídica, Maceió, 1966, pág. 138, que eu teria subestimado "o papel da Lógica
que podem satisfazer aos lógico.s puros, mas têm alcance relativo na explicação dos mecanismos da vida jurídica" . ..
o DIREITO COMO f;XPEíl!ENCIA 69
68 MIGUEL REALE

Na realidade, tôda norma jurídica compõe-se de dois elemen- na expenencia jurídica" 20 - , seria er rôneo alargar o seu objeto
tos: de uma proposição ou juízo lógico (o supedâneo ou veículo além de seus limites naturais, convertendo-a em um abst rato suce-
através do qual se enuncia um dever ser) e da correlação fático- dâ neo ela Teoria Geral do üireito ou da Epistemologia Jurídica.
-axiológica determinante dêsse enunciado, o que se verifica, aliás, A Lógica Jurídica encontra-se, em verdade, exposta a dois
em tôdas as formas de atos normativos de conteúdo ético. riscos igualmente comprometedores, o de se estiolar em cálculos
proposicionais cada vez mais divorciados da vida do advogado ou
Que é que pode ser formalizado na "norma jltrídica." e quais do juiz, ou, então, de converter-se em um conglomerado de noções
são os limites dessa formalização? Como situar, no plano elas difusas, de mistma com categorias filosóficas e dogmático-jurídicas.
relações lógicas, a norma moral ou a norma juridica enquanto pro- A Lógica Jurídica não pode ser um vaso adiMoro capaz de receber,
posições dotadas de sentido, às quais é inerente a vetoriaJielade de indiferentemente, tudo o que se queira pôr nela; e, se tem títulos
um caminho a ser seguido? Eis aí problemas nucleares com que para ser mais do que mera aplicação da Lógica formal, a especifici-
se defrontam tanto a Semiótica Jurídica quanto a Deôntica Jurídica, dade de sua tarefa deve ser claramente delimitada no âmbito da
expressão relevante da Lógica Deôntica ou da Lógica Normativa, experiência jurídica, em correlação com os demais campos de
talvez a esfera mais promissora das investigações lógico-formais
da experiência jurídica. pesquisa do direito.
Pois bem, se as investigações até agora desenvolvidas nesse
É evidente que a Lógica Jurídica formal não pode deixar de setor já nos autorizam a reconhecer que elas não podem ficar
fazer abstração do variável conteúdo axiológico das regras de direito, circunscritas à análise dos elementos lingüístico-formais, torna-se
assim como de sua mutável cond'icioJ1alidade fática) mas tem sido imprescindível dar' mais clara razão da chamada "Lógica do con-
fonte de graves equívocos identificar norma com proposiçâo nOT- creto", que, se uns têm reputad'O a "substancial" ou a mais relevante,
'mativa, como o faz, por exemplo, Georges Kalinowski, para quem por se referir à destinação prática da Jurisprudência, outros tim-
"a norma é uma regra de conduta que não é nem um imperativo, bram em relegá-Ia a uma posição acessória ou complementar, con-
nem um juízo de valor", mas apenas e tão-somente uma estrutura ferindo-lhe, repito, uma paradoxal natureza "a-lógica" ou "ex-
proposicionalI8 • Não creio que, para a análise dos valores sintá- tra-lógica" .
ticos ou semânticos da linguagem do Direito (Scmiótica Jurídica), Antes de examinar êsse aspecto fundamental, não será demais
ou para determinar as relações de inferência entre as normas de advertir que a Lógica Jurídica não pode ser um fim em si, no
direito 'ou a tipicidade dos "raciocínios normativos" (Deôntica J1L- sentido de converter-se em tarefa para lógicos puros, inteiramente
rídica) se deva imprescindivelmente reduzir a norma ao seu su- alheios à problemática do Direito, até porque, como nota Perelman,
porte proposicional, relegando-se para um estranho estudo "a-ló- mesmo "as análises e as formalizações que a Lógica Deôntica nos
gico" ou "extra-lógico" a consideração dos problemas que mais apresenta, e que nos esclarecem sobre certos usos p·ossíveis dos
diretamente interessam ao jurista 19. operadores deõnticos, aplicam-se a t odos os enunciados que com-
Por outro lado, se a Lógica Jurídica, sobretudo em sua ex- portam elementos prescritivos, e não apenas aos enunciados jurí-
pressão deôntica, pode trazer preciosas contribuições à determi- dicos" 21. Embora considere que tal fato não exclui que a especi-
naç.ão dos conceitos jurídicos, da estrutura da norma juridica, do ficid ade da experiência jurídica comporte tratamentos lógicos pró-
silogismo prático e dos nexos de inferência entre as proposições prios, o certo é que não terá sentido falar-se em Lógica Jurídica
normativas, em geral, bem como à elucidação das figuras de quali- tão-somente em virtude de ser o material da análise extraído de
ficação jurídica e das condições indispensáveis à configuração do preceitos jurídicos e não ele preceitos morais "Ou religiosos. O que
direito como "sistema" e "ordenamento", - e, com isto, através de assegul'a especificidade à Lógica Jurídica é o sentido vetorial a que
técnicas mais aperfeiçoadas do pensamento lógico, possibilitar ao já me referi nas púginas anteriores como inerente à experiência
cultor da Jurisprudência "uma penetração racional mais profunda jurídica em seus nexos de atributividade.
Essa mesma ordem de considerações deve prevenir-nos contra
18. KALINOWSKI - Introduction à la Logique Juridique, Paris, 1965, o exagêro 'Oposto ao do "neutralismo lógico", consistente, digamos
págs. 82 e segs. assim, na total "juridicizaçào" da Lógica Jurídica, privando-a de
19. Sôbre as funções da Semiótica e da Deôntica Jurídicas, já é seu caráter instru'tnental e propedéutico da Teoria Geral do Direito
imensa a bibliografia. Para uma visão de conjunto, v., além da citada obra
de KALINOWSKI, as relacionadas por AMEDEO G. CONTE na Riv. lnt enUtzionale
di Filosofia del Diritto, 1961, págs. 119-144, e o volume XI dos Archives de
Philosophie du Droit dedicado ao assunto. Cf. infra, págs. 173 e scgs. e 209 21. C. PEIlELMAN - "TI,aisonnement Juridique et Logiquc Juricliquc",
e segs. em Archires de PhiIosophie rin Droit. 1966, t. XI. pág. 2. Cf.. Olltross;m.
20. r. TAMMELO - Sketch for a Symbolú; Juristic Logic, 1955, pãgs. do mesmo autor "Qu'es t-ce que la logique juridique?". no Jou/"nd eles Tri-
304 e segs. bu.nau,T, 9-3-968, págs. 161 e scgs.
70 MIGUEL REALlI: o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 71

ou da DogmátiCa Jurídica: ao ler certos autores, empolgados com estruturas sociais ou culturais que ela faz aparecer e nas quais se
a "novidade" da Lógica Jurídica, estaria esta fadada a absorver em aprisiona. Mas os seus objetos de uso e os seus objetos culturais
si a atividade tôda do jurista, até agora desenvolvida nas esferas da não seriam o que são se a atividade que os faz aparecer não tivesse
Dogmática Juridica ou da Ciência do Direito ... também o sentido de negá-los e de superá-los" 24.
Importa, por conseguinte, reconhecer que a tarefa própria da Já se vê que, no meu entender, a chamada Lógica do concreto
LógiCa Jurídica não é a de penetrar no conteúdo da experiência não pode, por sua vez, reduzir-se a uma teoria da argumentação ou
juridica, mas antes a de permitir condições mais técnicas e seguras do discurso persuasivo, sendo esta antes uma conseqüência da
para que a Ciência do Direito possa fazê-lo e, ao fazê-lo, seja dado dialeticidade da experiência jurídica, em correlação com a qual
ao jurista elaborar com mais rigor os princípios e as estruturas deve ser pãsto também o problema da Lógica Jurídica formal, pelos
que governam a experiência jurídica como sistema normativo, isto motivos a seguir aduzidos.
é, a Dogmática Jurídica, consoante acepção dada a êste têrmo nos Não só, por conseguinte, não me parece plausível a alternativa
parágrafos anteriores, o que melhor -será explanado no Ensaio VI. que, vez por outra, se levanta entre a "Lógica Jurídica do concreto"
e a "Lógica Jurídica formal", como se fôsse imperioso optar por
uma delas, mas é imprescindível rever-se o conceito da primeira,
IV que tem sido vista como Lógica material (a Sachlogik de Karl
Engisch, p. ex.) como Tópica (Viehweg) como Lógica do razoável
ANALíTICA E DIALETICA JURíDICAS (Recaséns Siches) como Teoria da Argumentação o-u Retórica (Pe-
relman) etc., quando importa penetrar mais a fundo no problema,
§ 10. Reconhecida, pois, a insuficiêncía da Lógica formal a partir da razão pela qual o lógico não pode deixar de levar em
para a compreensão da experiência jurídiCa, e não podendo esta conta as "exigências axiológicas" e as "estruturas fáticas" da reali-
deixar de ser e studada com o possível rigor lógico, o delicado pro- dade jurídica, isto é, da natureza dialética e problemática da expe~
blema que se nos antolha é exatamente o de determinar o que se riência jurídica.
deva entender por Lógica Jurídica concreta. Analítica Jurídica e Dialética Jurídica constituem, a meu ver,
Em geral, verifica-se serem duas as questões que mais têm as duas partes fundamentais da Lógica Jurídica, correspondendo,
preocupado os estudiosos, a da aplicação das normas aos casos con- respectivamente, à "razão analítica" e à "razão dialética" que,
cretos, com · o prévio estudo de sua interpretação ou do processo como tem sido justamente observado em outros planos das ciências
hermenêutica 22, - e a teoria do "discurso jurídico", notadamente dos culturais, como nos da Sociologia e da Antropologia, longe de se
elementos lógicos ' que presidem à técnica de argumentação e de contraporem, se exigem e se completam 25.
,persuasão 23. - Como foi ponderado por Gurvitch, é necessário superar a pre-
Pois bem, se tais assuntos são inegàvelmente substanciais na venção existente em certos círculos quanto à compreensão, não
vida da Jurisprudência, penso que o seu estudo não exclui, mas apenas filosófica, mas também científica dos fenômenos culturais
antes pressupõe o da nomogênese jurídica, isto é, a consideração dos em têrmos d-ialétícos, sem os preconceitos e reservas talvez resul~
aspectos lógicos do ' direito in fieri sem o qual a práxis jurídica
J
t antes da carga ideológica unida à dialética de tipo hegeliano ou
quedaria sem sentido. Com razão Merleau-Ponty adverte que "o marxista 26. Tal prevenção tenderá a desaparecer, penso eu, por
que define O ' homem não é a capacidade de criar uma segunda
natureza, - econômica, social, cultural - , _além da natureza bio- 24_ M. MERLEAU-PONTY - La Structure dou Comportement, 5.' ed., cit.,
lógica, mas principalmente a de superar as estruturas criadas para págs. 189 e sego
criar outras". Por isso, acrescenta o pensador francês, a dialética 25. Nesse sentido, v_, especialmente GEORGES GURVITCH - Dialect-ique
da ordem humana é ambígua, pois "ela se manifesta, antes, pelas et Sociologie, Paris, 1962 e CLAUDE LÉVI-STRAUSS - La Pensée Sauvage, cit.,
págs. 324 e segs.; ANGEL SANCHEZ DE LA TORRE - Sociologia dei Derecho, cit.,
22_ Nessa linha predominante de interêsse desenvolve-se, p. ex., o pen- págs. 242 e segs.; MORRIS R. CoHEN - Reason and Law, 1950, Pa88im.
samento de E.GARCIA MAYl'o'EZ em suas três obras complementares (Lógica 26. Essa prevenção ideológica é transparente, por exemplo, na resposta
deI Juicio Jurídico, Lógica deI Concepto Jurídico e Lógica deI Raciocínio dada por T. VIBHWEG à pergunta do A1'chive8 de Philo8CYphie du D1'Oit sôbre
Jurídico, Mpxico, 1955, 1959 e 1964) assim como o de KARL ENGISCH (v. a aplicabilidade, em Lógica Jurídica, da "Dialética", no sentido moderno
nota 29, infra) ambos concilia ndo tais estudos com os de Lógica formal. hegeliano e marxista dessa palavra: "não é utilizável do ponto de vista
23. É o sentido predominante da obra de VIEHWEG, PERELMAN e ESSER. os jurídico senão quando se aceita a concepção do mundo que ela pressupõe"
quais pràticamente reduzem a Lógica Jurídica. m.utatis mutandis, ao pensa- (Rev. cit., t. XI, pág. 209). :É pena, aliás, ' que o referido questionário tenha
mento tópico-retórico, ou seja, a uma "técnica de pensar por problemas". se limitado a indagar apenas da contribuição de um tipo de dialética, a
como diz o primeiro (v. nota 29 infra) _ h egeliano-marxista.
72 MIGUEL REALE o DJr.EITO COMO EXPERIÊNCIA 73

duas razões: primeiro, ao reconhecer-se que a dialética hegeliana cerebrina, qua ndo, na realidade a argumentação ou a tópica jurídicas
ou marxista não é senão uma das dialéticas possíveis e a menos chegam a resultados "plausíveis" , "prováveis", "razoáveis" ou "con-
adequada, a meu ver, à compreensão da experiência jurídica ; e, vincentes", como pretendem os que subordinam tais processos a um
em segundo lugar, se se levar em conta que também nos domínios tratamento lógico adequado, exatament e porque êles encontram
das Ciências positivas eminentes cientistas e filósofos da Ciência, correspondência na est rutura da práxis juridica, ou, como diz Vit-
como Niels Bohr, Louis de Broglie, Philipp Frank, Gaston Bache- todo Frosini, porque se verifica "uma correspondência Ísomórfica
lard e F. Gonseth, sentem a necessidade de recorrer a um nôvo tipo entre a expericllcia vivida e a consciência reflexa" 30.
de dialética, a de complementariedade, para explicar problemas in-
suscetíveis de solução em têrmos de Lógica axiomática 27. § 11. A redução, que aqui se faz, da Lógica do concreto ou
Felizmente, parece que mesmo entre filósofos do Direito e da Tópica jurídica aos têrmos de uma Dialética Jurídica não exclui,
juristas já vai se dissipando essa resistência à compreensão dialética, tal como já foi observado, mas antes exige uma Analítica Jurídica,
cuja importância não escapou à sensibilidade de Michel VilIey ao palavra com a qual designo os estudos semióticos e deônticos rela-
escrever: "Ao lado da Lógica formal, que ocupa um lugar evidente tivos à expericncia juridica.
em nossa vida jurídica presente, pedimos que se preste atenção a A êsse propósito, cabem algumas observações prelimina res,
esta Lógica dialética, que nos parece preencher de fato a função para dar a r azão peIa qual a razão analítica e a razão dialética se
mais substancial" 28. exigem e se completam no âmbito da Jurisprudência.
Não devemos, porém, pensar que tal papel de relêvo só esteja Como melhor será analisado nos Ensaios sôbre a "Dogmática
reservado à dialética tópica ou retórica, no sentido aristotélico da Juridica" e o "Normativismo jurídico concreto", a experiência ex-
palavra, de inegável alcance no tocante à t eoria da argumentação pressa-se, histôl'icamente, a través de sucessivas e contínu as aobje-
prática, demonstTativa ou peTsuasiva 29, pois, como me parece re- tit'ações normativas", as quais compõem o equilíbrio possível e ra-
sultar dos estudos reunidos neste livro, aquêle tipo de dialética, no zoável de asoluções nonnativo.s" que, de conformidade com as di-
fundo, não r epresenta senão um dos aspectos da dialética da com- versas mutações e conjunturas históricas, integram em unidade
plementariedade ou de implicação-polaridade aplicada à experiência dinâ mica as exigências fáticas e a:riológico8, próprias de uma socie- .
jurídica, vista necessàriamente como experiência fático-axiológico- dade que, consoante se tem dito com sabedoria, precisa ser estável,
·normativa. mas não pode ser estática.
Se, em verdade, a experiência jurídica não fôsse em si mesma Apreciando êsse aspecto da experiência histórica, diz Claude
dialética , não seria possível interpretá-la dialéticamente, a não ser Lévi-Strauss que a razão dialética, que é sempre constituinte, cor-
que o processo dialético se reduzisse a uma construção artificial e responde aos perpétuos esforços que a razão analítica deve fazer
para reforma r-se, se pretender dar conta da linguagem, da sociedade
e do pensamento, de tal sorte que a distinção entre elas não se
27. Para uma vIsao do estado atual dos estudos dia léticos nos quadros funda senão sôbre o afastamento temporário que separa a razão
la Ciência pos itiva e da Filosofia contemporânea, e a respectiva bibliografia,
'. meu t rabalho "Ontognoseologia, Fenomenologia e Reflexão Critico-His- analítica da inteligência da vida 31.
órica", separata da Revista Brasileira de Filosofia, 1962, fasc. 62, § 4, págs. No desenvolvimen to dessa função constituinte, o papel da razão
176-185. Cf. GASTON BACHELARD - L e Nouvel Esprit Scientifique, Paris,
1.9G6, 9.' ed. e MERLEAU-PONTY - Le Visible et l'Invi,sible. PaJ'is, 19tH. sobre- cliah;tica, segundo Lévi-Strauss, é pôr as ciências humanas na
udo págs. 124-130 sôbre a "dialética sem síntese". Quanto à aplicação de posse ele uma realidade que t ão-somente ela é capaz de lhes for-
'di alética de complementariedade", no Direito, v. infra, Ensaio VII, § 6.· e necer, consistindo, porém, o esfôrço propriamente científico em
<:nsaio VIII.
decompó-Ia e depois recompô-Ia, seguindo um outro plano: de
28. MICHEL VILLEY - Al'chives, cit., t. XI, pág. XV.
certo modo tôda a razão é dialética, aparecendo como a razão ana-
29. Cf. entre outros, CHAIM PERELMAN - Justice et Raison, Bruxelas, lítica em marcha 32.
963; Études Philosophiques, Bruxelas, 1965; T. VIEHWEG - Topik und
furisprudenz, Mônaco, 3.' ed., 1965 (trad. italiana citada, Milã o, 1962); KARL Embora foc alizando o problema dialético sob outro prisma,
~NGISCH - Introdução ao Pe1Ulamento Jurídico, trad. de J . Baptista Machado,
, isboa, 1964; LogiscJw Studien zur Gesetzesanwendung, Heidelberg, 2.' ed., parece-me que, efetivamente, o processo dialético atinge sucessivos
960; GARciA MAYNEZ - Lógica deZ Raciocínio Jurídico , ci t .; J. ESSER -
'rincipio y Norma, trad. esp., Barcelona, 1961. Sôbre a nova R etórica, V.
~. PERELMAN e L. OLBRECHTS-TYTECA - Traité de Z'Argumenta t ion, Bru- 30. V. FROSINI - La Slndlum deZ Dirit to, Clt., pàg. 36.
:elas, 1958. Quanto à "Lógica del razo1Wble", de L. RECAS~NS SrcHEs, V. 31. LÉvI-S TnA uss - L a Pens(;e S(!Uvage, págs. 325 e 326.
{ueva F'ilosofía de la I nterpretación deZ Derecho, México, 1956. 32. Ibidem, págs. 331 c scgs.
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estágios de objetivação (digamos assim) que representam formas,


ou melhor, ({estruturas objetivadas" ou ({sistema de significações", Ensaio IV
inseparáveis geneticamente do processo constituinte, mas que podem
e devem ser objeto de "decomposição e recomposição" pela razão
analítica, tal como, em se tratando da experiência jurídica, é feito
sob ângulos diversos, pela Lógica Jurídica formal e pela Dogmática
Jurídica, na medida e enquanto ambas se destinam a captar, sob
ângulos diversos, o sentido de uma experiência humana estadeada
em um "sistema normativo" ou "ordenamento jurídico".
É graças a essa correlação entre a "estrutura da práxis" e 'Os
seus "modos de compreensão" que, repito, a Analítica Jurídica e FILOSOFIA JURíDICA, TEORIA GERAL DO
a Dialética Jurídica se desenvolvem em uníssono, não passando de DIREITO E DOGMÁTICA JURíDICA
produto inteIectualístico a antinomia que entre uma e outra se
queira suscitar 33.
SUMÁRIO: I - A Filosofia Jurídica e o papel da Jurisprudência
- A crise do Direito. II - Ontognoseologia e Epistemologia
Jurídicas. IH - A Teoria Geral do Direito como teoria positiva
de tôdas as formas de experiência jurídica.

A FILOSOFIA JURíDICA E O PAPEL DA JURISPRUD:ê:NCIA


- A CRISE DO DIREITO

§ I. Tôda pretensão de apresentar a Ciência do Direito in-


dependente de quaisquer pressupostos filosóficos, ou os subentende
inadvertidamente, ou se resolve num equívoco agnosticismo filosó-
fico que já equivale a uma contraditória tomada de posição espe-
culativa.
Essa ponderação vem-me à mente sempre que se cuida de traçar
uma linha demarcatória rígida entre a Filosofia do Direito e a Teo-
ria Geral do Direito, concebendo-se esta como algo de pleno e vá-
lido em si e por si, com total abstração, não só dos vaIôres metafí·
sicos ou da cosmovisão que cada jurisfilósofo necessàriamente pos-
sui, mas também dos principios condicionadores de qualquer tipo
de conhecimento dotado de rigor e de certeza.
É nesse equÍvoco que me parece incidir, por exemplo, Werner
Goldschmidt, ao distinguir entre uma "Filosofia do Direito Maior"
e uma "Filosofia do Direito Menor", coincidente esta com a Teoria
Geral do Direito, identificada, por sinal, com a modalidade abstrata
de "teoria tridimensional do direito" por êle exposta, a qual, a seu
ver, representaria a única "teoria tridimensional" válida ... 1

33. No Ensaio VII, sobretudo no § 6.", e no Ensaio VIII, examinarei, 1. Cf. WERNER GoLDSCHMIDT - "Das SeinsolJen in der juristischen Welt
de maneira mais direta, a experiência jurídica à luz da "dialética de comple- gemass der trialischer Theorie", em Archiv tür Rechts und Bozialphilosophie,
111entariedade". 1965, págs. 148 e segs.; "A teoria tridimensional do mundo jurídico", Revista

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