mascarar a multiplicidade que os habita sob o perfil do unívoco, do mesmo, cristalizando identidades em torno de um eixo, o sexo bio- lógico, binário, “natural”. Definidor de corpos e papéis sociais, o sexo se desdobra em sexu- alidade normatizada, a heterossexualidade, cujo caráter reprodutivo confere-lhe o selo da normalidade. Interessa-nos aqui questionar as evidências e investigar os mecanismos de pro- dução das relações sociais, propondo como categoria de análise o heterogênero, que se enunciando revela a coerção da sexualidade em uma só direção. Todos seríamos, finalmen- te, queers?
Palavras-chave: Heterogênero, Queers ,
Sexualidade.
No quadro epistemológico da atu- onde se pensava haver encontrado um ca-
alidade, questionar, ampliar os horizon- minho. tes de um mundo cercado por “certezas” revela-se mais importante que buscar res- Neste sentido, a categoria identi- postas; inverter as evidências, como pro- dade concentra parte do debate acadê- punha Foucault (1971, p. 53), sacudir as mico feminista de forma transdisciplinar, verdades que nos definem e nos limitam, ligado aos problemas de ordem política, revela-se um caminho para o étnica e sexual. Onde estão as “certezas” desvelamento de uma realidade múltipla. de antigamente, que definiam o verda- deiro e o falso, o real e o ilusório, que Os problemas que aqui nos interes- designavam as raças e os sexos, “sem sam referem-se à vida que nos interpela sombra de dúvida”? Onde se encontra a com seus contornos plurais, construídos evidência da identidade sexual, do sexo a cada instante; nesta ótica, os paradig- biológico demarcador do feminino e do mas, os estereótipos, chocam-se constan- masculino como divisão maior do social? temente com o dinamismo e as nuances de um quotidiano feito em matizes di- Num passado não muito longínqüo, versos. As questões levantadas por esta as mulheres eram representadas como realidade que nos interpela exigem um menores de idade por toda sua vida e a olhar voltado para o novo, o criativo, o frase tantas vezes repetida: “Os adultos, contraditório, o paradoxal, ali mesmo as mulheres e as crianças” exprime uma
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realidade construída, mas instituída e Quantas vezes não a fizemos olhando jo- instituidora de práticas sociais que resul- vens e menos jovens que andam de mãos tam na inferiorização das mulheres na dadas ou abraçados? Meu olhar seria sociedade. Homem, mulher, criança, di- condescendente, acusador, cúmplice? visões bem estabelecidas, representações Seriam eles os queers? Que relação sociais que criam o verdadeiro e o “natu- teriam e que problemas apresentariam ao ral” na ordem do discurso, onde a famí- feminismo? Pode-se, hoje, afirmar uma lia é o eixo em torno do qual giram as identidade nuclear ou essencial? Gosta- pesadas engrenagens das relações soci- ria de trabalhar esta questão sob dois ais. Classificação tão “evidente” do hu- ângulos: o epistemológico e o político, mano, representações tão ancoradas no separados unicamente por uma preocu- senso comum, que é difícil visualizar sua pação de clareza, pois todos estamos construção, sua historicidade. Como su- conscientes da imbricação destas duas blinha Denise Jodelet (1994, p. 35) dimensões. Estas representações formam sistema e dão Já anunciei algumas categorias lugar à ‘teorias’espontâneas, versões da re- alidade encarnadas por imagens ou como realidade, representações sociais, condensadas por palavras, umas e outras identidade. Outras farão parte de meu carregadas de significação [...] estas defini- discurso, tais como imaginário, gênero, ções partilhadas pelos membros de um mes- sexualidade, homossexualidade, mo grupo constroem uma visão consensual heterossexualidade. da realidade para este grupo. Mas, inicialmente, finco alguns mar- O desafio hoje é auscultar as zonas cos teóricos: entendemos aqui o imagi- obscuras que acompanham os nódulos nário tal como proposto por Castoriadis “naturais” de inteligibilidade do huma- (1982) ou Baczko (1984), como uma fun- no, onde aparecem, com força e visibili- ção instituinte da sociedade. Ou seja, a dade, grupos e indivíduos que reivindi- sociedade que cria os sentidos circulantes enquanto verdades, normas, valores, re- cam uma identidade específica fora do gras de comportamento, que instaura esquema binário. Quem são elas/eles, que paradigmas e modelos, que decide o que vem quebrar meu Eu, o Nós, esta identi- é a realidade, que define a ordem e a dade tão laboriosamente estabelecida, desordem, o natural e a aberração, o nor- defendida, cujo custo não ousamos ava- mal e o patológico, a significação e o liar? Quem são elas/eles, que pronome nonsense. devo utilizar para nomeá-los, para ancorá- los no meu universo do familiar e do quo- Os sistemas de interpretação cons- tidiano? tituem de fato as redes de construção do mundo, pois as coisas tornam-se TAIS A difusão de imagens andróginas coisas em quadros precisos de interpre- na mídia, publicidade, cinema é extrema- tação. Assim, é a instituição da socieda- mente comum. Seres imaginários ou vi- de, de suas relações, de suas significações zinhos do andar de cima, estes seres que em limites precisos de interpretação que vem perturbar os esquemas delimitados determina o que é real e ilusório, o que é e tradicionais das identidades sexuais? natural ou contra a natureza, Mulheres ou Homens? Boa pergunta. o que é dotado de sentido ou se encon-
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tra em um lugar de não-significação. à monotonia de mais uma conexão biná- Castoriadis (1986, p. 226-227) afirma ria: eu e o outro. que: Os quadros de interpretação [...] toda sociedade é uma construção, uma constitutivos das condições de produção constituição, uma criação de um mundo, de nosso discurso se escondem a nossos de seu próprio mundo. Sua própria identi- olhos, as significações arbitrárias que dade não é nada mais que este ‘sistema de interpretação’, este mundo que ela cria. [...] alimentam nossos valores e tecem nossos E é por isso [...] que ela percebe como um caminhos desaparecem diante do perfil perigo mortal todo ataque contra este sis- imutável da Verdade, do natural. A tema de interpretação; ela o percebe como autoconstituição da sociedade se aninha um ataque contra sua identidade, contra ela no seio da evidência, do inquestionável. mesma. Gostaria, entretanto, de pôr em Em uma formação social, assim, questão estas evidências e colocar como nada é dotado do selo da verdade, do problemas a heterossexualidade, a famí- legítimo, do universal, nada é um dado lia, a homossexualidade, a identidade e natural e inquestionável e a ciência críti- porque não, a própria sexualidade. Fazen- ca de seus próprios instrumentos do isto, não tenho a pretensão de um conceituais o afirma hoje em todos os discurso inaugural, pois estas categorias domínios. foram e são ainda analisadas e discutidas por muitas autoras, desde a denúncia da A heteronomia das sociedades está heterossexualidade compulsória, até a diante de nossos olhos, mas que olhar Queer Theory: ao contrário, quero invo- pode enxergar? Os fantasmas do déjà là, car seus argumentos para dar apoio a da razão que imprime em sua lógica seus meu discurso. próprios limites, estão a nos assombrar e mesmo na crítica radical feminista quan- Identidade e sexualidade to à construção social dos gêneros en- contramos a presença de poderosos qua- dros de interpretação, já cristalizados em Comecemos pelo fim: identidade e formatos definidos. sexualidade.
Estou falando da interpretação bi- Não é preciso mais provar, atual-
nária do mundo, não somente em rela- mente, as diversas manifestações da se- ção aos sexos, homem/mulher (na or- xualidade no espaço e no tempo, isto é, dem), mas igualmente quanto à visão que o conceito e a prática da sexualidade manifesta-se diferentemente, seja ela dualista do que compõe a inteligibilidade centrada sobre o ato sexual, a procria- da vida: o bem e o mal, o bom e o mau, ção, o prazer, a sensualidade, o erotismo, o real e o imaginário, o puro e o impuro, o sado-masoquismo etc. A sexualidade, o claro e o obscuro, o verdadeiro e o fal- exercida igualmente como um dos atos so, o belo e o feio, o espírito e a matéria, do humano, ou; o ato humano, que faz a vida e a morte. As filigranas, as nuances parte do ser ou; e o próprio ser, de acor- que fazem o maravilhoso no desabrochar do com o sistema de representações que da vida são assim reduzidas ao silêncio e ordena a configuração social analisada.
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No Ocidente, há muitos séculos, a Mesmo negando-a, coloco-me face sexualidade foi apanágio do masculino à sexualidade, onipresente, deusa à qual enquanto ato e do feminino enquanto todas as oferendas são devidas, eixo de locus: a mulher era o sexo – substantivo exercício do poder, lugar de produção de – sobre o qual se estendia a sexualidade verdade sobre os corpos e sobre as iden- masculina – o verbo, a ação. Mas estamos tidades (FOUCAULT, 1988, p. 236). Mas em pleno domínio do binário. E as práti- de que direito à sexualidade erige-se em cas sexuais que não pertencem à ordem rainha, centro do ser, fonte de todas as inquietações, de todas as preocupações, da sexualidade dual? Desvio, perversão, senão devido à importância que lhe é desregramento: estas práticas vão ser dada. Senão pela produção da verdade categorizadas para serem assim melhor sobre o corpo e sobre o exercício correto excluídas da norma, do “normal”. A se- da sexualidade? xualidade vai constituir, aos poucos, o locus de domesticação e de controle so- Theresa de Lauretis (1987, p. 12) cial, locus também de fixação do afeto e retoma esta idéia e indica as da emoção, cadinho de todas as signifi- “tecnologias”, os procedimentos e técni- cações, chave de uma ordem que se ale- cas sociais que produzem a sexualidade ga divina, racional, biológica. tal como a vivemos, em um mundo de representações urdido pelos discursos, A psicanálise reafirma esta ordem, imagens, saberes, críticas, práticas coti- na medida em que a sexualidade torna- dianas, senso comum, artes, medicina, se a verdade do ser, dita, explicada, nar- legislação. rada, analisada, entre mãe devoradora e Como esquecer os investimentos pai desejado; falar do sexo, finalmente, é econômicos e midiáticos em torno do falar de ego, de super-ego, de id, de mim, sexo, das imagens que nos assaltam a e quem sabe, de nós? Quem sou eu, que todo o momento, das mensagens explí- falo de um sexo, a partir de um sexo, de citas e implícitas que ativam todo um que sexualidade somos o produto? E que campo conotativo em torno da sexuali- sexualidade produzimos, em nossas res- dade, da juventude, beleza, prazer e emo- postas às interpelações do social? ção? O indivíduo, assim interpelado, acei- ta e incorpora a imagem que lhe é ofere- Foucault denomina “dispositivo da cida e as opções que lhe são reservadas sexualidade” este conjunto de investimen- como sua própria representação; torna- tos sociais que a constroem como centro se assim a encarnação da representação do discurso contemporâneo, centro igual- social, auto-representação de uma iden- mente de nossas vidas e de nossos pen- tidade que lhe é conferida. Baczko (1984, samentos. Segundo Foucault (1988, p. p. 32) observa que a produção dessas 244), é imagens e representações no quadro de um imaginário específico a uma certa um conjunto decididamente heterogêneo que compreende discursos, instituições, or- coletividade ganizações arquiteturais, regulamentos, leis, [...] designa sua identidade elaborando uma medidas administrativas, enunciados cien- representação de si; marca a distribuição dos tíficos, proposições filosóficas, morais, filan- papéis e posições sociais; exprime e impõe trópicas. Em suma, o dito e o não dito são certas crenças comuns implantando princi- os elementos do dispositivo. palmente modelos formadores [...].
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Nomeação, designação: quando se Muito mais que um mecanismo negativo de designa, cria-se uma identidade material exclusão e rejeição, trata-se de criar uma rede sutil de discursos, de saberes, de prazeres, em torno da sexualidade e em seguida de poderes; [...] de processos que dissemi- ela é nomeada: heterossexual, gay , nam (o sexo) na superfície das coisas e dos lesbiana, travesti, transexual etc. Mas a corpos, que o excitam, manifestam e fazem- norma, o paradigma de referência é sem- no falar, implantando-o no real e conjuran- pre a heterossexualidade. E cada tipo de do-o a dizer a verdade. sexualidade, assim narrado e analisado tornar-se-á um todo identitário, dotado As evidências ligadas à sexualidade de uma coesão intrínseca, essencial, por- abrigam uma pluralidade de sentidos, que não “natural”, de uma natureza boa cuja cooptação pelo sexe-gender-system ou má, segundo o caso. Theresa de (DE LAURETIS, 1987, p. 5) tende a redu- Lauretis, neste sentido, indica a represen- zir a polissemia. Apelando à intensifica- tação como sendo o local da construção ção da atividade sexual, chega-se à proli- do gênero sexuado: feração de formas de sexua-lidade em seguida trazidas à ordem de um imagi- O gênero é a representação da qual não se nário normativo, que reduz sua força de pode negar as implicações reais e concretas transformação de um sexual binário. no social e o subjetivo compondo a vida material dos indivíduos. Ao contrário. A re- Neste sentido, as relações homos- presentação de gênero é sua construção e sexuais perdem seu poder de inserir o em um certo sentido pode-se dizer que a novo, de quebrar as normas das relações cultura e a arte no Ocidente são as marcas da história desta construção (DE LAURETIS, estabelecidas no quadro do gênero biná- 1987, p. 3). rio, quando se instalam no “casal” parti- lhando os valores morais dominantes, Um nome, um perfil, uma classifi- assim como suas ambigüidades. Mas a evidência da noção de “casal” se estilha- cação, uma tipologia nos é dada? Dizem: ça logo que começamos a interrogar com os homossexuais. Nós as adotamos e des- maior acuidade sua constituição: com te lugar de fala iremos reivindicar a exis- efeito, o que é um casal? Duas pessoas tência social. Em que medida, entretan- que se amam? Que vivem juntas? Que to, esta adoção não irá reproduzir o es- dormem na mesma cama? Sua formação quema binário do casal, da está baseada em uma relação sexual? Ou monossexualidade, da moral corrente, quando há uma emoção partilhada? Que das relações de poder e de dominação? gênero de emoção? Física? Todas as op- ções? Uma só dentre elas? Quantas du- Porque deveríamos aceitar que nos- plas heterossexuais ou homossexuais não sa identidade seja aquela ligada à sexua- dormem mais juntos, não “fazem mais lidade? Em que medida o “sexual” é per- amor” e são vistos/as sempre enquanto tinente para classificar as relações entre um casal? E todas estas questões não se as pessoas? No assujeitamento à sexuali- colocam no vórtice de um imaginário so- dade podemos identificar o “dispositivo” cial que se constrói no momento de sua agindo, ao qual se refere Foucault (1976, enunciação? A evidência da noção de p. 97): “casal” se esconde no esforço mesmo de sua definição.
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E os queers? Queer, em um primei- mária das relações humanas. Era preciso, ro momento, foi o nome dado aos ho- entretanto, levar o raciocínio às suas últi- mossexuais, os “bizarros”; em seguida, mas conseqüências, a seus últimos um novo fenômeno se introduz no dis- bastiões, ou seja, pensar igualmente o curso e a prática correspondente se reve- sexo biológico como fazendo arte de uma la, tomando para si esta denominação: o representação social. Para isto, Ingraham bissexualismo (WEISE, 1992). propõe a noção de heterogê-nero.
Este seria um movimento para Assim, e se tentássemos aprofun-
ultrapassar os limites, quebrar as barrei- dar o que de fato dá à heterossexualidade ras impostas pela domesticação de sexua- o selo da normalidade? O sexo biológico determina verdadeiramente uma “relação lidades diversas, seria finalmente, em sua natural”? ambigüidade, a resposta à emoção marcada incontornavelmente pelo binário? Elisabeth Daumer (1992, p. 96) ten- ta responder esta questão com uma ou- Mas qual o desafio, em relação ao tra interrogação: a heterossexualidade é feminismo? De fato, o quadro conceitual uma relação de penetração? E eu acres- vai além de uma certa prática sexual cento: que tipo de penetração? Se não ambígüa: a heterossexualidade compul- há penetração vaginal, mesmo entre ho- sória, “natural” é posta em questão em mem e mulher, sua relação é ainda uma uma nova política da sexualidade, onde relação heterossexual? o binário obrigatório vê-se contestado. A heterossexualidade compulsória já vinha A heterossexualidade tem por fim sendo denunciada pelas feministas des- a procriação, é centrada na perspectiva de os anos 70, entre as quais Gayle Rubin reprodutiva? Se não, porque o heteros- sexual seria “normal”? Caso afirmativo, (1975) Adrienne Rich (1981) e Wittig um casal que não pode ter filhos seria (1980), entre outras; mas, na prática, o heterossexual? homossexualismo reproduzia em parte o binarismo social. Com efeito, o “natural” do sexo bi- ológico reside, sobretudo na possibilida- Chrys Ingraham (1996, p. 169) de de procriação e esta perspectiva está enfatiza a importância da imaginação na ordem de valores, da moral, logo, heterossexual particularmente presente construída social e historicamente, em na estruturação da noção de gênero, bi- nária, que bloqueia assim toda análise uma rede de sentidos que faz circular as crítica da heterossexualidade enquanto normas datadas como sendo verdades instituição organizada e culturalmente universais, “naturais”. Instinto, diriam al- construída. guns? O instinto evocado em matéria de procriação não é senão um fator de ex- Desta forma, os estudos sobre o clusão para os que não o percebem as- gênero, durante longo tempo, viram a sim: por exemplo, a mulher que não é heterossexualidade como uma realidade mãe, nem quer sê-lo, não é uma “verda- dada, natural, sem questionamento, liga- deira” mulher. É uma forma de se funda- da ao sexo biológico, enquanto que o mentar em uma pretensa “natureza” dos gênero, o papel social era concebido seres, que os estudos sobre o gênero vêm como construto social e organização pri- desconstruindo.
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O estado civil naturalmente simpli- apresenta uma oposição conceitual rígi- fica as coisas no que se refere à noção de da e estrutural dos dois sexos biológicos; casal, mas como classificá-los quando, sublinha, entretanto, seu caráter de como no Canadá, muitos direitos são con- construto sociocultural, aparelho cedidos aos casais do mesmo sexo? semiótico e sistema de representação que dão uma significação – identidade, valo- A noção de heterogênero adotada res, prestígio, status etc. Assim, para esta por Ingraham leva-nos à equação: autora, “[...] a construção do gênero é heterossexualidade / natural e gênero / ao mesmo tempo o produto e o proces- cultural, ou seja, a prática da sexualidade ligada ao sexo biológico remete à cons- so de sua representação” (DE LAURETIS, trução social, da mesma forma que os 1987, p. 5). Com efeito, a apreensão do papéis sociais do feminino e do masculi- sexo biológico não é no (INGRAHAM, 1996, p. 169). Eviden- necessariamente realizada da mesma ma- temente, a sexualidade foi trabalhada nos neira, na imensa pluralidade das forma- estudos sobre o gênero, tendo em vista a ções sociais: assim, os hermafroditas, por divisão binária do humano a partir das exemplo, poderiam ser considerados construções baseadas sobre o sexo; a prá- como os seres existentes mais perfeitos. tica heterossexual, entretanto, subtende- No imaginário social, o Um, neste caso, se nestas análises em torno dos grandes seria muito mais importante que o Dois, esquemas de poder social: casamento, da relação binária entre os sexos. família, maternidade, contracepção, vio- lência, abuso, prostituição etc. Assim, Neste sentido, analisar o gênero na para Ingraham (1996), a noção de representação binária não é suficiente, heterogênero é mais central que a de pois o processo não está interrompido; gênero apenas, pois esta lhe é subordi- enquanto que a diferença seria colocada nada. entre mulher e homem no cultural e no biológico, o referente será inevitavelmen- O que a autora insiste em sublinhar te o masculino e a cadeia de representa- é o fato que, apesar de sua extrema im- ções continuará a se desenvolver. Um cer- portância na análise das relações sociais, to feminismo se esfalfa assim em um ima- a categoria gênero elide a instituição da ginário social que muda as posições das heterossexualidade e contribui, assim à cartas, mas mantém seu valor intrínseco. manutenção da ordem que critica. Segun- do esta autora, No quadro teórico proposto, de um imaginário instituindo as relações sociais [...] esta participação ao imaginário heteros- a partir de representações generizadas, sexual não faz senão reproduzir as condi- chega-se à mesma conclusão que ções sociais que elas querem interromper (INGRAHAM, 1996, p. 179) Monique Wittig (1992, p. xiii): a heterossexualidade se funda na ordem do político, na fundamentação do poder. Isto significa que a ordem Com efeito, no sistema classificatório que hegemônica dos valores se rearticula na marca as práticas e as identidades sexu- afirmação da atração “natural” entre dois ais, existe uma imensa confusão entre opostos, à parte de toda produção so- zonas erógenas, órgãos de reprodução e cial. Para de Lauretis, o sex gender system determinação sexual.
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Assim, se o binário não é senão uma identidades múltiplas, não apenas deter- construção social erigida em saber minadas pela personalidade ou pela se- inquestionável, em fato biológico, é pre- xualidade, mas que se manifestam pelas ciso saber qual é a significação atribuída necessidades ou expressões diversas, se- ao conceito de “natural” aplicado ao sexo. gundo os contextos e os momentos. As Quais os efeitos de poder que fundamen- performances sociais adequadas, segun- tam a naturalização do sexo biológico? do as normas, resultam em uma identi- Que força poderosa é tirada da dade que nos torna visíveis ou que nos domesticação do múltiplo, da repetição permite ser reconhecidos por aqueles que do Mesmo identitário? chamo “os meus”. Os movimentos ho- mossexuais, adotando a diferença que A noção de heterogênero propõe, lhes é imposta, constroem igualmente um na ordem epistemológica, um núcleo identitário – ser lesbiana ou gay, questionamento tão radical das relações no sentido ontológico – e criam assim um sociais quanto o da teoria da construção novo espaço de exclusão: os bissexuais dos gêneros, em sua época. seriam assim os queers dos homossexu- ais, da mesma maneira que estes últimos Nesta perspectiva, para De Lauretis seriam os queers dos heterossexuais. A (1987, p. 10), o sujeito do feminismo tor- bissexualidade seria esta nova forma de na-se um construto teórico que se encon- amor que “não ousa dizer seu nome”? tra no interior e no exterior da (GOLDMAN, 1996, p. 175). E porque ideologia do gênero, “[...] consciente que devo dizer “amor” quando falo de sexu- assim é, consciente desta dupla impres- alidade senão para acentuar os valores são, desta dupla visão, desta divisão”. culturais ligados ao sexo? Isto nos leva a uma outra dimen- Elisabeth Daumer (1992, p. 90-95) são, da identidade fluida nas práticas so- criou um personagem bissexual, Cloé, que ciais, que é a afirmação da bissexualidade sonhava com pessoas sem gênero ou sem enquanto ambigüidade assumida. A sexo, ou mesmo andróginas, apenas hu- mídia se apodera do tema, o V Congres- manos com os quais ela não seria “mu- so de Bissexuais ocorreu em Boston entre lher” ou “lésbica”; não imaginava uma os dias 3 e 5 de abril de 1998, na Internet instabilidade ou uma indecidibilidade, os chats bissexuais se multiplicam, o mun- mas uma intimidade não-normatizada em do do espetáculo se descobre e se revela quadros ostensivos de identidade sexual enquanto tal. Mas seria uma identidade, que se tornaria assim uma criação contí- dizer-se bissexual? nua. Uma liberação enfim dos limites Um princípio positivista identitário identitários e da identidade ligada ao muito simples pode ser assim enuncia- sexo. Esta autora considera, entretanto, do: “O que é, é; o que não é, não é”. Esta os aspectos positivos e negativos desta fórmula ingênua e totalitária é ao mes- bissexualidade Queer. Por um lado, o mo tempo negada pela multiplicidade do risco de uma falsa unidade na qual to- real e reivindicada por todos os movimen- dos os Queers estariam contidos: o tos de identificação. deslizamento para o sentido de uma co- munidade, de uma identidade alternati- De um lado, como sublinha Jean va, de uma terceira opção que apagaria Carabine (1996, p. 50), os indivíduos têm as diferenças e o poder que delas advém.
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Por outro lado, a denominação – bilizada para realçar as escolhas pessoais bissexual – pode ainda ser uma identifi- da experiência no sentido apontado por cação no quadro binário de gênero, pois De Lauretis: aí permanece a noção que divide a pes- soa, homo ou heterossexual, segundo as [...] o conjunto de efeitos de significação, polaridades do momento. É uma mudan- de hábitos, de disposições, de associações e de percepções que resultam da interação ça de identidade sem efeito transforma- semiótica de si e do mundo exterior (DE dor na medida em que os papéis de gê- LAURETIS, 1987, p. 18). nero podem se reproduzir em uma rela- ção homossexual. Enquanto a Daumer (1996, p. 98) propõe a bissexualidade será colocada como esco- bissexualidade não como um movimen- lha entre dois pólos baseados sobre o sexo to de integração do heterossexual e do biológico e o gênero cultural, seu poten- cial subversivo, no âmbito epistemológico homossexual, mas como ponto epistemológico e ético a partir do qual ou moral será reduzido. pode-se examinar e desconstruir o qua- No que diz respeito ao homossexua- dro binário do gênero e da sexualidade. lismo, esta escolha aparece como uma Integra assim bissexualidade e queerness, expressão oportunista das vantagens de na medida em que sugere a abertura de ambos. De forma global, a bissexualidade um novo universo de percepção – sexual, tende a obscurecer a opressão das mu- emocional, erótica – contemplado na lheres demonstrada pela categoria do multiplicidade de suas escolhas tópicas. gênero e de tornar ainda mais invisível o A ética queer seria assim a articulação das diferenças individuais, colocando em cau- mundo gay. Aliás, a apropriação da pala- sa toda identidade fixa, imutável vra gay para indicar os homens homos- (DAUMER, 1992, p. 103), desestruturan- sexuais é também um sinal de uma divi- do, de fato, a categorização do mundo são generizada e talvez valorativa. A pa- em masculino e feminino. lavra gay desloca os termos pejorativos usados para designar a pederastia, en- Finalmente, qual a significação dada quanto que “lésbica” distila conotações a palavra Queer? Quais são as represen- negativas. tações que a compõem?
Mas tendo em vista que a ambigüi- Queer, no sentido aqui proposto,
dade e o paradoxo fazem parte integran- não é somente uma sexualidade alterna- te do mundo, a bissexualidade queer, por tiva, mas um caminho para exprimir os um lado, acentua a descontinuidade en- diferentes aspectos de uma pessoa, um tre os atos sexuais e as escolhas afetivas, espaço também, para a criação e a ma- mas por outro, reafirma a política de iden- nutenção de uma polimorfia de um dis- tidade, como sublinha Daumer (1992), no curso que desafia e interroga a artigo mencionado. Mas esta ambigüida- heterossexualidade. de mesma contribui a aprofundar a per- A queerness desafia igualmente a cepção das diferenças, culturais, sexuais, noção de identidade, nega o essen- generizadas, abrindo o caminho à cialismo generalizado ou homossexual, na multiplicidade (GOLDMAN, 1996, medida em que se organiza na p. 176). A sexualidade enquanto verda- performance de identidades plurais, que de intrínseca do ser fica assim desesta- se constroem a cada dia. A identidade
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seria assim uma construção em perma- atitudes individuais, o paradigma está nência, um processo sem margens e sem quebrado, a coragem de assumir suas limites (GOLDMAN, 1996, p. 173). Neste emoções se propaga. Paradoxalmente, a sentido, a identidade não é o sexo, não é bissexualidade poderá talvez quebrar os a sexualidade, eu não sou um ser grilhões da prisão da sexualidade generizado ou desviante da norma, EU generizada, da identidade sexual, arma- SOU EU. dura invisível que nos entrava os passo, no momento em que nos julgávamos li- No mundo das representações so- vres. ciais, como mudar a imagem do corpo, a imagem do outro, refente a minha pró- Uma percepção do corpo como um pria imagem, como quebrar a norma que todo de sensibilidade e de sensualidade, cristaliza o comportamento? Como inici- uma desestabilização da sexualidade ar um contra-imaginário que abre os ho- centrada nos órgãos genitais, uma rizontes das relações humanas, além dos abertura para a emoção que atravessa os papéis preestabelecidos, do poder maci- olhares, seria uma nova erótica social? ço que investe as polarizações de gêne- Identidade sem limites e sem definições. ro, como criar o novo nas redes de senti- A âncora está partida, o apelo do largo do atravessadas de tradições, de marcas, nos traz o gosto da descoberta. de escansões que acompanham nossas vi- das? O princípio é: no universo queer, todo o mundo não é queer da mesma A teoria introduz as questões, mas maneira (DAUMER, 1992, p. 100). Somos a prática social já está presente em uma sempre o queer de alguém, a diferença política que atravessa de seu poder o sem fundo, o simulacro apontado por domínio estereotipado do imaginário so- Deleuze. O Universo Queer é a da dife- cial: pouco importam os lados negativos rença, desafio para os próximos anos do da bissexualidade, pouco importam as feminismo.
Abstract: Discourses on the “real” tend to hide
out the multiplicity that inhabit them by enhancing the univocal feature of the same, and crystallizing identities on the axis of “na- tural”, binary, biological sex. It itself defines bodies and social roles, and stamps heterosexuality – because of its reproductive character – as normal sexuality. We here wish to put into question evidences and investigate the mechanisms of social relations production through “heterogender” as analysis category, revealing the one-sided coercion of sexuality. Are we all queers after all?
Keywords: Heterogender, Queers, Sexuality.
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Referências
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