Vous êtes sur la page 1sur 55

Franco, Divaldo Pereira, 1927 - F825 Filigranas de luz, ditado pelo espírito de

R. Tagore. Capa de Rogério Dias 2. ed. Salvador, Liv. Espírita Alvorada, 1977.
149 p ilust 18 cm
CDD 133.9
1. Espiritismo. I. Tagore, Rabindranath, 1861-1941.
/ fDIVALDO P. FRANCO

FILIGRANAS DE LUZ
DITADO PELO ESPÍRITO R. TAGORE
Capa de Rogério Dias
LIVRARIA ESPÍRITA “ALVORADA” EDITORA Salvador, 1977
C.G.C. (M.F.) 15 176 233/0004 - 60 - I.E. n°. 05007694-92a. edição
Do 90. ao 200. milheiro
Copyright 1966 by
Centro Espírita "Caminho da Redenção" "Mansão do Caminho"
Rua Barão de Cotegipe, 124 40 000 - Salvador - Bahia - Brasil
Impresso no Brasil Presita en Brasilo
Todo o produto desta obra é destinado à manutenção dos servi ços assistência is
da "Mansão do Caminho" (Salvador • Bahia Brasil) - Departamento do Centro
EspiVita "Caminho da Reden çáo".

RABINDRANATH TAGORE
“Senhor o tempo é infinito entre as tuas mãos. Não há ninguém para contar os teus
minutosn. — (Gitânjali)
Nada, nada havia na literatura lírica que se assemelhasse àqueles poemas de
inexcedível sensibilidade e beleza mística. Não se conhecia muito çobre o autor,
mas a verdade é que ali estava um livrinho, quase um folheto — "Gitânjali”, "A
Oferenda Lírica” —, capaz de, por si só, arrebatar às demais obras literárias,
classificadas pela Academia Sueca, o Prêmio Nobel. £ foi o que acabou por
acontecer, a 13 de novembro de 1913, quase por unanimidade de votos. Depois o
mundo literário veio a saber que o "Gitânjali” era apenas uma amostra da produção,
escrita em bengali, do então desconhecido e já laureado hindu RABINDRANATH
TAGORE.
Naquela época, uma nuvem escura envolvia nosso pobre planeta; uma atmosfera
de ódio e incompreensão pesava sobre a humanidade: corriam' os dias da primeira
Grande Guerra. Mas, Divina Providência!, mesmo nas entranhas do inferno vão os
anjos despertar os corações sofredores e em- perdemidos, suavizando-os com o
bálsamo do esclarecimento, a mostrar-lhes o Caminho da Redenção... Assim» das
margens do velho Ganges ecoou para o Ocidente aquêle canto suave, pleno de
esperança, fé e amor, como se o rio sagrado ampliasse seu leito até o infinito,
fazendo com que suas águas milagrosas passassem a lavar, também, o resto do
mundo, ao som do borbulhar macio de sua correnteza e da música dolente e mística
das flautas de bambu, tocadas às suas margens por devotos, em busca de Brahma.
Tivessem os responsáveis pelo sanguinolento conflito ouvido também aquele
canto oriental e a guerra não se teria travado, dando a humanidade gigantesco
passo no caminho da evolução.
Os candidatos recomendados ao Prêmio Nobel, todos do mais alto nível
intelectual, eram muitos naquele concurso, afigurando-se dificílima a escolha,
antes de surgir, quase ao acaso, aquela delicada poesia, cheia de luz e encanto, a
um tempo impetuosa e serena, vigorosa na fé e profunda na sabedoria. Os países
civilizados fizeram-se representar, interessando-se alguns governos mais
vivamente pelos respectivos aspirantes à glória máxima. Tagore, todavia, não
chegou a considerar seriamente as alusões oue ouvia sobre suas possibilidades. Na
tarde daquele dia 13, regressava de uma excursão com seus discípulos, quando foi
abordado por um estafeta, que lhe entregou despacho urgente de Estocolmo. O
Mestre, distraído, colocou-o no bolso e continuou a conversar coih os alunos. Mas o
funcionário do telégrafo insistiu em que o telegrama fosse aberto. Foi então aue
os discípulos, jubilosos e emocionados, homenagearam o Mestre, que, embaraçado
na sua humildade e apanhado de surpresa, explicava que a distinção era feita à
índia e não a ele.Ta gore, dali por diante, passou a ser lido e conhecido pelos
ocidentais como escritor de grandes méritos. Sua bagagem literária já era enorme
àquela altura. Mais tarde somaria, sem contar as escritas diretamente em inglês,
cerca de duzentas produções em língua bengali, entre poemas, peças teatrais,
contos, romances, ensaios, artigos e conferências, girando sobre os mais diversos
assuntos filosóficos, políticos, econômicos, sociais e religiosos. Até hoje ainda não
foi possível editar suas obras completas. Grande parte delas ainda permanece na
língua original, para ser traduzida.
Os méritos de Tagore não se resumem, porém, na sua vasta obra literária; êle
realizou muito de sua elevada aspiração, sempre acima de preconceitos religiosos e
sociais, preparando algumas gerações de moços para uma vida maior. Nele
sobressaía, ao lado do escritor, humanista e pintor, o educador emérito. Em 1901
criou a famosa escola ao ar livre de “Shantiniketan”, em Belpur, Bengala. Ali iniciou
importante experiência educacional, observando linhas não-con- vencionais. Mais
tarde a e s c o l a veio a se chamar “Visva- Bhrati”’, com a divisa: “Yatra Visvam
bhavati Eka-nidam” (onde o mundo inteiro encontra seu ninho).
Como 13.° filho do Maharshi Devendranath e neto do prínqpe Dwarkanath
Tagore, Rabindranath nasceu em Calcutá, índia, a 6 de maio de 1861. Em sua terra
natal deu os primeiros passos na educação escolar. Dotado de espírito inquieto e
turbulento, não chegou a ser o que se pode chamar de excelente aluno. Havia, para
si, maior aproveitamento no próprio lar paterno, onde se desenvolvia um clima de
elevada cultura e sadia religiosidade. Amava a natureza e revelava tendência
contemplativa, numa idade em que a criança pensa somente em folguedos. Seu pai
era respeitado como “Maharshi” (o santo) e fazia parte do movimento Brahmo Sa-
maj, iniciado em 1828 e que vinha revolucionando a vida religiosa da índia,
principalmente nas camadas mais cultas. Em 1839 Devendranath fundara o
“Tatwabodhini Sabha”, entidade destinada a divulgar a verdadeira religião hindu.
Como se observa, Rabindranath nascera rodeado de um halo místico, que se
revelaria em sua obra e nos seus ensinos.
Aos oito anos começou a transparecer nele a vocação poética. Sua primeira
viagem foi um verdadeiro encantamento: visitou os Himalaias em companhia do pai.
Em 1877 seguiu para a Inglaterra, a fim de estudar advocacia, mas acabou por dar
preferência a um curso de literatura inglesa, na Universidade de Londres. Logo
voltou à índia, onde passou a escrever nos jornais e revistas. Embora sem o diploma
universitário, não regressara de mãos vazias: ao seu ardor juvenil se juntavam
agora novos conhecimentos e muita disposição para a literatura.
Voltou a visitar a Europa em várias ocasiões. Esteve também no Japão e nos
Estados Unidos.
Aceitou o grau de nobreza inglesa, em 1915, mas a ele chegou a renunciar, em
sinal de protesto aos métodos empregados pelos ingleses na repressão de
distúrbios verificados no Punjab. No exato momento em que seu país, sob a lide*
rança de seu grande amigo, o Mahatma Gandhi, lutava pela libertação do jugo
inglês, Tagore pregava a harmonia e o respeito entre os povos, concitando-os a
criarem um órgão onde o saber e a boa-vontade haveriam de triunfar, unindo tôdas
as raças e credos. Condenava a escravização imposta pelas nações fortes e
recriminava a agressividade do Ocidente, mas, imparcial em seus pontos de vista,
não poupava seu próprio povo da recriminação, ao vê-lo enveredar por caminhos
perigosos, empolgado por excessos de nacionalismo. Num de seus discursos disse:
Uma das grandes figuras da humanidade, verdadeiro gênio e profeta, Tagore
desencarnou a 7 de agosto de 1941, na avançada idade de 80 anos, vividos quase
que inteiramente para o aperfeiçoamento moral e cultural da humanidade.
NÊLSON AFONSO <1>

FILIGRANAS DE LUZ
ENCHI minha alma de ansiedade, e sem receio parti à Tua procura.
Era manhã...
Abelhas ébrias do perfume da aurora fabricavam mel no meu bornel, para a
caminhada longa, e delicadas suce- nas estonteantes de vida deitaram-se no chão
para eu passar.
De um cipreste novo fiz arrimo, e com as peles de um leão forrei os pés. Da
cana do bambu delicado retirei água, e do bosque frondoso recolhi frutos.
Fiz da confiança um marco, e nas cordas do coração arranquei uma melodia de
exaltação a Ti.
Tudo era tão belo!
Parti.
De alegres aldeias a verdes campos, de pomares luxuriantes a montes escassos,
caminhei...
Ao meio-dia, sentei-me consado.
O peso do corpo, as feridas que surgiram no cafninho, as ansiedades que me
cruciaram na manhã, todos estouraram em mim.
Sofri dores do parto sem maternidade e verti lágrimas amargas sem umidade
nos olhos... mas prossegui.
A noite surpreendeu-me caído, sem estar vencido, amargurado sem desespero,
no caminho.
Surgiste, enfim, como se fossem FILIGRANAS DE LUZ, num Grande Rumo, que
estou a seguir. ..
R. TAGORE Salvador, 4 de fevereiro de 1963.

MÍSTICAS
1
INCLINA teu ouvido, meu amigo, e escuta a melodia da terra, derramando a
música da fartura!

1
(*) Todos os asteriscos são do Autor espiritual (Nota da Editora).
A cana de bambu, esvaziada de vida, também se dobra em busca do chão, para
enriquecer-se de melodia.
O teu pequeno sofrimento de soledade se mistura ao infinito sofrimento de
soledade do mundo.
E enquanto aos teus ouvidos não chegue a acústica da grande dor, a tua dor não
romperá a concha da acústica da felicidade de todos...
Toma da varo de bambu e sopra nela, qual uma frauta, e deixa que teu campo de
tristeza cante a tua dor, na tristeza de todas as dores que não podem cantar!
E enche... enche com a melodia que teus ouvidos captem da abundância do chão,
o vazio do teu coração deserto. ..
E verificarás, atônito, que o amor, quanto mais se doa mais se enriquece, e
quanto mais se esvazia mais se embebeda de amplidão. . .
❖* *
Encontrei-te um dia, amigo, e pediste para que eu cantasse .
A minha voz se perdia na sinfonia da Terra em festa, e eu não podia cantar!,
Chamaste-me "amigo", e a voz da tua melodia deu meloçiia à minha voz, para que
eu te chamasse "irmão"!
Acompanhei com os olhos a abelha, ébria de zumbido, no festival sonoro que a
Natureza cantava!
E vi-a avançar em redemoinho de festa até à última flôr de lótus, que
derramava perfume.
Avancei precipite e arranquei a débil mensagem da vida perfumada, e saí a
procurar-te, amigo, para recolher nas pétalas mimosas as tuas lágrimas, como o
orvalho de um irmão, na intimidade da terra que nos dava o lótus, como a fartura no
seu seio maternal.
E por isso, agora que o outono não mais nos podé atender, deixa-me segurar-te a
mão, para cantar contigo, na tristeza do nosso caminho, a sinfonia da esperança,
como abelhas do trabalho, embriagadas, na primavera, no festival das alegrias!

2
£RA noite em mim. . .
Caminhei sem Ti,
pelos caminhos pedregosos, cobertos de pó, sangrando e sofrendo,
sem ninguém comigo. . .
Desci as baixadas da vida
e sofri o lodo e o desengano, asfixiado na lama e perdido no pântano, e senti-me só.
..
Demorei-me na curva, tentando ascender, grangeando forças sem o conseguir, e a
ninguém vi. . .
Corri, cansado,
sob sombras crueis de maldade e tortura, e não tive comigo auxílio nenhum...
Parei...
estava perdido. • • sozinho!
Os campos sorriram espigas doiradas de luz, e a terra ferida gargalhou, sôbre os
sulcos que o arado deixou, flores miúdas e perfumadas...
Brilhava o sol.
Cantavam ventos nas folhas do "ashatlt"... (2) A sinfonia
de luz, de sons e cores derramava-se no mundo...
e... eu contemplava tudo... sozinho!
Recordo,
e tudo passa por mim,
sem atropelos, nem saudades, nem remorsos... Medito,
e revejo a vida que o tempo consumiu, mas que não acabou...
Sei agora, Senhor,
que Tu és o Testemunha meu!
Ninguém nunca está só!
Tu és em tudo!
Caminha comigo, agora e sempre...
Vem!...
Eu seguirei contigo!...

3
DEIXEI meu coração embrulhado, atirado na estrada, vestido da sombra de um
arvoredo.
***
Um cortejo passou reluzente, com seus pendões de ouro e seus chocalhos a tinir. .
.
Meu coração despedaçado e triste correu ao tronco da árvore e nem sequer fitou
o caminho. . .
A poeira da vaidade do cortejo cóbriu-lhe os olhos, e a sombra do arvoredo
revestiu-o.
A noite derramou seu manto, quando um cortejo de virgens, cantando hinos e
carregando lâmpadas, passou feliz, demandando longe. .
Meu coração galgou a árvore, escondeu-se na folhagem, despedaçado. . nem
suspirou!
De cordas partidas,
meu coração aguardou a luz,
para cantar o desespero de ser infeliz...

2 (1 )• Ashath - Planta trepadeira muito comum na índia.


4
ENCONTREI-A na manhã clara,
esvoaçante como uma liana ao vento. ..
Convidei-a a beber comigo da claridade do dia! Ela me olhou com olhos tristes,
derramados de lágrimas, e disse:
— Vou além!. .
Ao meio-dia encontrei-a outra vez, carregada de suor,
como uma espiga de trigo carregoda de grãos.
Novamente acenei-a, para junto de mim:
— Experimenta o calor do dia,
e prova todas as delícias do sol ardente —,
disse-lhe.
Seus olhos negros se voltaram outra vez, e cobriram o caminho de lágrimas, e
seguiu.
Na lua crescente do anoitecer, reencontrei-a num penhasco solitário, e convidei-a
a provar as delícias do luar e ser feliz.
Ela me respondeu:
•— Não posso!
— Vem comigo!
— Sigo além...
Vou ao festival das lágrimas, cantar as minhas dores..
§
... Eu sou a TRISTEZA!...

5
PEGUEl todos as tuas dores,
e vesti-as com a música da minha solidão.
O vento me deu cordas para o alaúde da saudade, e de longe a voz da angústia dos
tristes soprou em mim a frauta do desespero humano
Uma sinfonia de dor ergueu-se da Terra...
«JC íjc 3$£
Mas, quando o vigilante derramou seus olhos, vestiu de alegrias o mundo. . .
— Vem, meu Rei!
Toca, no desespero da humanidade, a leve música da tua frauta bela, e enche de
júbilo o caminho da vaidosa poeira do mundo!
— Vem, meu Rei!
E, vigilante, toma de nossas mãos, levando-nos aos tristes, para, com eles,
encontrar a fímbria da esperança que nunca se apaga!
6
APÔS a festa das dores.
encheste minha taca de esperanças, com as pétalas das rosas do teu jardim de
bondades.
Falaste, aos meus ouvidos, silêncios de vozes amigas, e turbilhonaste minha cabeça
com as carícias dos teus segredos.
Enxugaste meus olhos
com o manto de ternuras sem nome,
e banhaste minha testa
com orvalhos matinais extraídos do ar caminheiro.
Tomaste minhas pequenas mãos, e, das tuas gloriosas conquistas, deste-me as
rédeas, para conduzir o carro da aventura nesses caminhos sem fim.
Calçaste meus pés
com os reflexos de ouro da tua graça,
e me ergueste na carícia do teu auxílio forte,
para que eu tocasse o sonho que, alto, nunca pude afagar.
Deixaste-me fruir da tua felicidade longas horas de encantamento,
e depois reconduziste-me à realidade da minha romaria solitária.
O amado, desconhecido coração!
Como seguirei agora,
sem a febre da ansiedade.de reencontrar-te, nem o estímulo do encorajamento,
que me falem de tua volta a mim?
Responde-me: onde estás?
Para que eu possa empurrar meu corpo em tua direção, ó tênue ventura, que tão
rápida passou!

7
A minha choupana de bambu se enfeitou de luzes, quando chegaste.
Febris, os colmos superpostos falaram palavras vegetais, e tremeram de
contentamentos inesperados, na multidão gloriosa de alegrias sem termo.
Toda a escuridão foi varrida da casa, quando Tua luminosa figura saltou do carro,
e, pisando o chão amassado, se agigantou junto à minha ínfima condição.
É certo que Te esperava!
Por isso mesmo, arranquei jasmins,
e, estrangulados em minhas mãos nervosas, preferiram embalsamar o ar que irias
respirar, embora morressem entre os meus dedos, para que o calor do dia fosse
aplacado àquela hora da noite, quando chegarias...
No vasilhame de oferendas, deixei cair retalhos de sândalo, para saudar Tua
chegada, e roguei a Indra ( 3 ) para que atirasse pelos caminhos suas frechas
luminosas,
para livrar Teu coche de tombos no escuro da noite.
E diante de Ti,
toda trêmula de pudor,
por desejar-te tanto,
ajoelho e choro pedindo o Devas (4)
que me faça digna
da presença luminosa de Teu esplendor.
atirava flechas luminosas.

8
ENCONTREI-A deitada na lama, sem colares nem pulseiras, envolta em feridas,
sob o vento tormentoso, além das paredes do Templo. . .
A pobre bailarina bengali, chorando,
contou-me o abandono
que Siwa (5) lhe dera ao coração:
solidão e dor..
Enlaçando-a no amor puro da compaixão, em doce industani, recordei-lhe o Deus
Sem Nome, que nunca despreza ninguém,
e fi-la feliz!...

9
De filigramas de oiro
Teceste a luz de meu poente
E de tão verdejantes avenças vestiste o meu dossel para o sono da noite, ó
Imanente Transcendência, que exulto nesta madrugada dilacerada de luz!
As águas escuras do rio da morte, lambendo meus pés,
arrastaram-me para o abismo do esquecimento por vales sombrios.. .
Um céu pesado de negras asas atirou gargalhantes tormentas sobre meu coração.
..
Mas no pavor do meu degredo, ouvi o sopro sonoro do frautista, clamando e
cantando os versos áureos do
Teu amor, vestido da
Luz que me reconduziu a Ti

3 Entidade da era védica que, distendendo o arco, atirava flechas luminosas


4
( 3 ) - Devas - Entidades benfazejas.
5
(4 ) - Siwa * Terceira pessoa da Trindade hindu.T\t filigranas de oiro m teceste Q
Luz de meu poente, o Causa Incausada!
10
NO seu cortejo de plumas, passou por mim, sem erguer o.véu para me fitar.
E eu que lhe ficara a espera, no pó,
humilhada e só, por dias a fio. . .
Quantos me viam, faziam-me corar. .
Eu, porém, esperava!
E passaste,
sem me fitar sequer,
para te unires
no matrimônio incandescente da aurora além. . .
E eu que,
noite sem luar nem estrelas, tanto necessitava de ti, ó Luz!...

11
RECORDANDO os mujlis (6) agradáveis da infância, revejo,
no orvalho da saudade,
o rosto da inocência dos tempos que se foram: poetas cantando, pensamentos
voando, coração a pulsar. . .
E, sentado à porta aberta do sonho, minh'alma viajando por longes terras, aonde
só o pensamento vai.. .
Passaram-se os anos, como bailarinas que se cansam junto aos altares, e
.fugiram as esperanças, quais nuvens que se escondem nos céus. . .
E, sentado à porta aberta do desejo de ser feliz, fico a recordar. . .
As dores calçaram-me os pés com chagas doridas, e a realidade cobriu-me a
cabeça com o véu das desilusões... Os mujlis foram substituídos pela algazarra, e a
poesia, morta em bocas sem voz, não mais reinou nas salas. . .
Tudo mudou tanto!
—Somente eu permaneço
sentado o porta aberta,
olhando os caminhos sem nome,
e seguindo com o pensamento
as estrelas do sonho,
que, negro, me apavora agora,
como fantasma de que desejo fugir..
Somente eu permaneço e Tu,
ó Conservador incansável, no intérmino labor de esperar...
As espigas cansaram de produzir, e jazem desdentadas. As flores de abril

6
( 5 ) - Mujlis - Palavra bengali que significa reunião em família, sem convite
prévio.
morreram, embriagadas de luz e de calor, queimadas pelo verão, e das sebes e
palmeiras só existem folhas arruinadas.
Há tanta treva no lar e tanta dor no coração do homem, que acendo a minha
lâmpada, e derrubo luz no caminho, para os viajeiros do remorso.
Só eu permaneço, e Tu...
Eu
porque sofro,
mas espero por Teu ósculo de suave perdão;
E Tu,
porque nunca Te cansas de omar?...

12
•TRAGO o coração triste, em noite fechado, qual mata virgem sem clareira nem
luz..
Não canta, nas fibras minhas, a voz canora das aves gárrulas, nem dos
passarinhos tristes ouço o pio...
Longe, um rouxinol com mavioso canto embelezo o bosque; mas nos ramos da
árvore da minha vida, só a graúna pousa as negras asas suas...
Como hoje está triste meu pobre coração!
Deixei que a vida me fosse, até aqui, um barco deslizando num rio sob sebes
frondosas, onde busquei colher versos, contemplando a crista das pequenas ondas.
Outras vezes sai* entre as árvores da ferra, a catar frutos de encantamento
em suas copas verdejantes...
E, apesar disso tudo, trago um coração triste...
Talvez porque o mundo, cheio de crianças sem rumo, representa uma grande
noite de tristeza imensa, na civilização religiosa, mas que não tem Deus!

13
MEUS pensamentos passam céleres, como cavaleiros pressurosos, que se esfumam
no pó da estrada além...
E nem me recordo das ideias que eles carregavam...
Dobro-me sobre minha fronte cansado. e choro todas as esperanças fugidas...
Desde há muito preparara minha cabeça com coroas e plumas, cobrindo os
cabelos esbranquiçados com mantos de alegria, para aguardar a hora marcada da
felicidade.
E no entanto, de surpresa, como ladrão, chega-me ao coração o anfitrião que me
vem buscar, e me encontro sem nada, sem os pensamentos que apressados correm
e se perdem.
Onde estão meus pendores puros, nesta hora inesperada, ó pobre coração?
O eco de montes longes respondem tristes, que o vento e o tempo levaram e, só,
me encontro desnudo, na porta da minha eternidade...
Como esperanças que voltam, minha alma exulta, e sonho..,
O anfitrião de minha vida ama-me e ajuda-me...
Alegro-me, então!

14
DE aldeia em aldeia oferecendo, procurei dar o presente que carregava.
Era a hora da sesta, e todos dormiam, sempre que eu em algum lugar chegava.
Bati em muitas portas à manhã claro, e ninguém recebeu o donativo meu...
Cantei às janelas das choupanas, à tarde morna, ofe* recendo a prenda minha,
mas todos estavam desinteressados.
Saí, então, sem rumo.
Amigos zombavam de mim, mas não me incomodei.
Pela estrada, o vento dobrava o capim leve, que murmurava revolta baixinho,
contra minha pessoa.
Espinhos agudos corriam e, buscando meus pés, aplicavam golpes.
E não me incomodei.
Segui sem rumo e não sofri.
Pois se eu carregava comigo o poema das dores, e desejava doá-lo aos outros,
dizendo-lhes que somente é feliz, verdadeiramente, quem sofre...
Como iria reclamar?

15
OLHA, meu amado, para a oferenda que trago—
São frutos arrancados dos braços da mocidade, que, ansiosos, se iam
apodrecer nos desejos.
Reuni todas as promessas do meu sonho em uma fantasia de infância, e, depois
de tecer um colar de hastes tenras e perfumadas, recordei-me, num
deslumbramento, de debruçar nos teus ombros e coroar-te o pescoço.
Enquanto corri, fora da choupana, a buscar miúdas flores de laranjeira, um
vento mau entrou pela janela aberta, e pisou, selvagem, os seixos arrumados,
despeda- çando-os no chão.
Quando retomei, com as mãos exuberantes do perfume leve, encontrei caídos
todos os carinhos meus.
Fechei a choupana e, comovida, apanhei do pó todas as minhas ternuras, e voltei
a tecer outra prenda.
Como pouco vale a minha oferendo, amado meu! Olha-a e deixa-me sacrificá-la,
espalhando seus pedaços no chão, para que os teus pés caminheiros escorreguem
sobre essas flores mortas da minha ansiedade, e ninguém saiba que te não pude
cingir os ombros...
16
"DEVERIA ter-me preparado, com vestidos brancos e diademas de oiro, paro
esperar o meu Rei à porta de Seu palácio reluzente. . .
Todavia, a tarde morna cansou meu corpo e o esmaecido do céu perturbou-me a
identificação das horas...
Quando me chamaram, para untar o corpo com perfumes, acreditei não ser
chegado o instante, e alonguei-me na sesta pesada.
Somente quando o sopro das trompas anunciava Sua entrada no pórtico do
jardim, ergui-me assustado para o dever...
Agora, que o Rei chegou e não o posso receber, abaixo a cabeça e fujo para que
Ele não veja, em minha face, diante de Seu enérgico olhar, a pobreza de minha
vontade e a riqueza de toda a minha pobreza...
A hora entrou correndo, e correndo saí fugindo do meu Rei, pela porta aberta
da noite, e perdi-me no escuro de meu próprio erro, sem ninguém comigo...
De longe, vejo em festa o palácio iluminado, com o meu Rei feliz, junto dos que
O aguardaram fieis...

17
0 peitoril da janela partido, e ela, triste, a pensar.
Seus olhos correram pela estrada muito longe, em busca do amado que se foi.
Era tão silenciosa d noite, que as gotas do orvalho da lua pareciam lágrimas de
uma mãe sôbre o filho que o pai encolerizado pune.
E ela pôsv-se a chorar de dor.
Pela primeira vez, no imenso silêncio, ela encontrou o amante que nunca amara,
e o amor que nunca fora amado.
0 seu Rei, vestida de dia, abraçou-a no silêncio da noite, sob as lágrimas dá
orvalho da lua.
E partiu também pela estrada, em busca do Seu amor, só, cavalgando a
mensageira da morte. .

18
NÃO deposites o janela tua lâmpada, ó virgem ansiosa, porque teu noivo não pisará
esse caminho...
Desmancha tuas longas tranças, espalha teus cabelos, veste a tua branca
túnica, e aquieta o coração. ..
Bem sabes que a noite é longa, quando se espera o amor que não chega!
Aproveita as horas, corre ao Templo, e transforma tua alma num círio,
derramando-te em Fé pela estrada longa e escura.
Há muitas vozes perdidas na escuridão, sem caminho nem amor, procurando a
Esperança...
***
Por que choram tantas dores teus olhos escuros, virgem desiludida?
Não sabes que o verdadeiro amor não te pertence?
Liberta-te desse amor que possuis, e vai amando tudo o que sofre, cantando tua
solidão junto a outros tristes que não sabem amar.
É o mesmo, o roseiral dos que amam demais: folhas verdes, espinhos duros, e
raras flores de alegria.
Transforma tuas folhas de esperanças e quebra teus espinhos de lancinantes
dores, e sê perfumada rosa nesse jardim de desiludidos, onde teus desejos,
morrendo, socorram os desejos dos que não querem morrer.
Só um grande sacrifício fala a linguagem sublime de um grande amor que se
soube dar. . .

19
TU me falaste ao coração, bailarina da aldeia, como uma corda vibrando no silêncio
do ar...
Parecia-me, ao ser, oguardar-te há muito, qual amigo saudoso, à sombra de um
arvoredo, outro amigo aguardando ansioso...
Não tive dúvida de que eras tu, a quem tanto buscava em toda parte, sem,
porém, saber onde estavas!
Sentia cansaço no corpo e agonia no peito, e temia-a, chorosa e enlutada, que se
achegava a mim com sua tristeza colante...
A princípio, foi o ritmado som dos teus brincos e o ruído rouco dos tambores
aos teus pés.
Depois o tua voz, de longes terras, pura como uma aurora e suave qual aroma de
violetas perdidas no bosque, murmurando, em bengali, (7) a minha infância doce e
triste, que me falou de ti.
Revi-me a correr, procurando a vida na terra frondosa onde eu nasci...
... as águas do Ganges...
.. .as aldeias pobres, as viagens longas..
.. .Tudo cantavos no idioma bengali...
Amo-te, agora, bailarina da aldeia!
Amo-te, sem fogo, sem desejo, sem ardor!. .
Com carinho e ternura, porque teu canto me falou também de ti, que amas sem
experiência e que te deste aç templo, qual um perfume à flor. ..
Amo-te, sim, porque tu, orando, donçando e cantando, sopras a fé nas almas e a
confiança nos corações...
Graças à tua inocente mocidade, bailarina de meu país, voltei à infância e
reencontrei-me a mim!

7
(6 ) - Bengali - Dialeto de Bengala (Índia).♦ * *
Como sonha minha imaginação, ó tu que me conheces?
Bem sei que essa bailarina é a alma da dor que trago romigo, procurando
tanger...

20
E eu, que a tive nas mãos vêzes tantas!...
Quando pude volitar nos ramos das árvores de bétel, (8) demorei-me na sala,
fitando os galhos no ar.
Á hora do sol poente, entre nuvens rasgadas pela luz doirada, podendo cavalgar
nàs asas abertas do cisne celeste, deitei-me no chão.
Diante da liberdade dos rios, que riscavam traços molhados no chão, buscando
o mar imenso, fiquei parado.
Ante o zumbido dos insetos, que pareciam gotas de vida, flutuando no leito da
natureza, sacudi as mãos com desdém.
Agora que, sendo livre, sou escravo da minha liberdade, e, não podendo voar,
desejo plainar perto das carroças entulhadas de nuvens, quando o dia nasce,
perdi-te definitivamente.
Será que me ouves indagar ávido:
— Onde estás, felicidade, tão longe que desconheço o caminho?

21
'EVTA, fita meus olhos, claro rosto de manhã grinaldada de luz, e responde-me se
neles encontras uma tinta luminosa de felicidade!?
Espalha-te, espalha-te e lava minhas mãos, água corrente de riacho, e dize-me
dos calos que denotam trabalho e dor, se traduzem felicidade!?
Corre, corre, ansiedade minha, conduzindo meus pés para além dos braços das
montanhas cansadas, e fala se é feliz a minha vida, para que escute o campo,
túmido de vegetação como o céu de verão, coroado de luz!?
Penetra, penetra em meu coração, ilusão, varre todos os cantos da alma minha
e, de volta, informa se ali viste alguma coisa diluindo-se em felicidade!?
Pobre de mim, felicidade!
Cambaleio de ânsia em ânsia, abrindo os braços a ventos correntes, e quando
lhes quero falar, oh!... foram- se ligeiros. . .
Tomo as manhãs em meus olhos e alago de luz meu rosto.
Todavia, se tormenta risca o ar, e tropas invasoras de nuvens bravas chegam,
escureço também e fico sem luz.
Seguirei o caminho, felicidade, sem pedir, como o céu doador, sem esperar o

8
( 7 ) - Betei - Espécie de pimenteira utilizada como mastigador: provoca irritação
na boca, garganta e abala os dentes.
tempo, como a flor vencida, sem receber, como o chão generoso.
Passarei na minha vivenda, agora fechada, e irei aonde a dor do meu eu possa
estuar suas cordas de corry preensão, junto às harpas quebradas dos mais tristes
que eu...
. . . E sofrendo no amor, serei feliz, então!...

22
TOMA o laço, e prende, ao carro da luz, o corcel do de- sespero, viandante a pé!
Sacode a poeira da estrada serpenteante e difícil, e desliza no ar, domando o
fogo do teu ginete de ansiedade, Contempla de cima a paisagem, descobre o mundo!
o borboleta vaidosa, alçada pelo vento; o polem ousado, fecundando a virgem flor; o
regato sigelo, vencendo distâncias; a terra úmida, exultante e perfumada; as
ovelhas mansas, vestindo as chapadas verdes; as árvores, como lágrimas vivas da
terra, prenhes de folhagem e flor, cobrindo-se de frutos;
e o vento, correndo e cantando, e arrancando perfume, para acariciar a face
crestada de sol do pastor madrugador.
Laça, laça o animal do teu ansioso coração, ao luminoso carro do dia, e vence tua
tristeza, solitário andante! Conhece a vida!

23
ONDE brilhe a esperança, chego eu.
Na mata virgem, vejo promessas de vida.
Nos jardins perfumados, descubro existências zumbindo no mel.
Nos grandes rios, descubro estradas para terras muito longe.
No ar leve do dia, surpreendo-me com caminhos infinitos de esperança,
correndo na claridade.
Onde haja uma esperança para um coração solitário, aí estarei eu!

24
TINHA que fugir da dor,
escrava que era do sofrimento.
Lá fora tudo exultava pleno de liberdade: o rio, quebrando barrancos,
as sombras das árvores, como manchas de tinta no chão,
o ar caminheiro, a luz esfuziante, o perfume vagabundo, as estrados sem fim...
Saiu a correr vencendo distâncias, louca de liberdade!
Mas o cansaço venceu-a na luta, e continuou escrava...

25
DEBRUÇADO em soledade, na janela da angústia, o amante esquecido recorda..
O amor passara ligeiro, no porta de sua cabano, com pés de vento,
e despedaçara as flores brancas de laranjeiras, que se consumiram no pó.
Atirou ao solo o sinal vermelhão e o laço do compromisso se desfez,
e o amado em soledade mergulhou os olhos na trevo espessa, inquieto como o raio
da manhã, e nenhuma voz, da escuridão voltou para lhe falar de ternura. . .
O delicado e transparente cristal da esperança se arrebentou no pó,
e, embrulhando o fogo do seu amor nos mantos tristes, ergueu-se cambaleante
como menino sem força e pôs-se a marchar.
Nem uma baga de luz, nem uma gota de orvalho do céu! Silêncio e soledade em a
natureza, falta de festa e de alegria —
Sem desespero nem inquietude, ferido pelo punhal da amargura,
arrancou do alaúde dolorido do coração duas cordasf e envolveu-as em débil cana
de bambu fez uma frauta, e pôs-se a cantar. . .
Zagal do infortúnio, saiu,
levando sua melodia, até que o rosto infantil da madrugada derramou a ânfora de
luz no poente, arremessando do poder virginal as nuvens ligeiras que o
vento soprava para além. . .
E sem amor, sem ninguém, o pobre zagal saiu, soprando sua soledade,
como o amante de todos os infortunados do mundo!. . .

26
A noite caía então...
Mas tua frauta continuava chamando... Deslumbrado e atônito, vi-a arquejante
e triste, talvez porque eu não a ouvisse há mais tempo.
Pelos meus olhos já cansados, correram mansas duas lágrimas quentes, e caíram
silenciosas numa folha de violeta. .. Brilharam por um pouco ao reflexo do luar e,
depois de tremeluzirem, deslizaram, misturando-se ao pó.
Elas representavam as ilusões,
que se perdiam para sempre em mim.. .
Nessa hora, eu já não dormia nem sonhava... E segui tua frauta, chamando por Ti!

27
MAGRO e alquebrado, sacudido por estertores violentos,
o enfermo seguia com a multidão em busca de Benares.
Vinha de longe, cruciado de dor, para banhar-se de vida nas águas sagradas.
Aos seus lados, homens e mulheres, crianças, moços e velhos, cantavam alegrias
em hinos ritmados, ao som de cítaras e alaúdes, batuques e frautas.
Sua dor e ansiedade no corpo e nos olhos, falaram-me um chamado.
Acerquei-me e o acompanhei.
Suores e lágrimas marcavam seu caminho, e o sangue dos pés deixava tristes
sinais no chão revolucionado por outros pés.
Perguntei-lhe sob o sol chamejante, também a suar:
— Quem és tu?
— Sou a dor...
— Que levas contigo?
— A crença. . .
— Para onde vais?
Parou, olhou-me, e após perder-se num mergulho interior, respondeu:
— Ao jardim do esperança, aspirar o perfume da tran- quilidade. . .

28
— QUE procuras, jovem Radjiputana, por tão longes terras de Udaipur?
Não vês que a madrugada ergueu do rosto do dia o grande véu de névoas que
acobertava as torres do palácio de teu rei?
Que buscas nessas estradas tortuosas, atapetadas de pedras, sem orvalho
algum de rosas quentes e perfumadas?
Olha como sangram teus pés, jovem Mishnah (9) do amor, e verifica que nem os
braceletes, nem os adornos de teus pés descalços, tilintam no mesmo ritmo de
mocidade santa!
Que fizeste de tua vida, jovem Radjiputana, que jor- nadeias por terras sem
nome, em busca de algo que tu mesmo nem sabes?
*É*
Assim falava um poeta dos altos picos de Udaipur, vendo uma jovem que descia
à cidade, e se perdia nas curvas do caminho.
A jovem de Radjiput seguia em busca de um destino que não sabia, provando o
amargo fruto da solidão.
E o jovem poeta, contemplando lá longe o sol ardente, ainda uma vez perguntou
à jovem que não tinha rumo:
— Para onde segues tu, jovem Radjiputana? Voltandoí-se para trás, a jovem
murmurou, no divino
urdu, (10) uma resposta simples, que evocava um amor ardente, inspirado no orgulho
da casta sua:
— Crishna (11) me abandonou! Sigo em busca ç\o festival dos desgraçados,
que não têm ninguém, no meio-dia do seu desespero!. . .

29
MURMUREI todas as queixas aos teus ouvidos, esperando

( 8 ) - Mishnah - Instrução. Ensino da lei oral (Judaica). Por simbolismo: sábia


9

deusa.Era leve como a primavera ondulante, e triste como Uma noite solitária. . .
10

11
(10) - Crishna - Deus excelso para os hindus.
que meus lábios pudessem traduzir as ansiedades de meu coração inquieto.
Escutaste minhas dores, como generosa amiga, que se acostumou a entender.
Roguei expressões de carinho, para pensar, com bálsamos de auxílio, as dores
da minha solidão.
Sorriste, porém, num misto de entendimento e perdão, derramando o olhar de
socorro, que me não trouxe o calor da coragem para o grande frio.
Retornei ao teu seio,, procurando repetir em murmúrio todas as minhas
permanentes ansiedades, e seguiste além...
Desde então, parti igualmente em busca do esquecimento, que me não quiseste
dar.
No sol poente, que incendiava o ar, segui com os olhos a andorinha emigrante, e
meu pensamento seguiu-a desesperado.
Aguardei, então, através do tempo, tua volta necessária, mas jamais chegaste.
Hoje, sozinho e encanecido, despeço-me da tua distância, mocidade rápida e
fugidia.

30
QUANDO ouvi a canção da Tua frauta, não sei o que senti.
Recordo que dormia e sonhava.
Desde então, por muito tempo, procurei-Te em toda parte.
Um pássaro solitário, chilrando/ disse-me que Tu estavas longe.
A brisa, sussurrando ao meu ouvido, convidou-me alegre a segui-la.
As árvores, felizes, abriram-me seus ocolhedores braços e ofereceram-me
suas frondes.
Recordo que adormeci e sonhava.
A manhã sorria sobre os montes e o córrego cantava sobre as pedras.
Encontrei na estrada uma grinalda de jasmins, e desejei coroar-Te o cabeça
Misericordiosa.
Tomei-a nas mãos e segui.. #
Mas recordo que dormia e sonhava.
Quando o sol murchava ao entardecer, e o vento corria, buscando o silêncio da
montanha, ouvi novamente a Tua f rauta.
Pensei que fosse um pastor, recolhendo os ovelhas, receoso da noite. Acurando,
porém, o ouvido, percebi que os notas, que o vento trazia, cantavam minha canção.
Ergui-me às pressas, sacudi o pó, que a estrada recolheu carinhosamente, e saí
a procurar-Te.

31
RASGASTE minha alma, grande amor, como um dardo de * luz sangrando as trevas.
Encheste minha vida, eterno amor, como a primavera inunda de perfume a flor
ansiosa.
Invadiste meu coração, indestrutível amor, como uma esperança sonhadora que
empolga a imaginação.
Conduzo-te comigo como a brisa carregada de polem derrama em toda parte a
maturidade da flor.
Queria seguir-te agora, amor caminheiro, arrostando comigo a grilheta que me
amarra. A ilusão de ontem ainda se demora em minha mente.
Desejaria dar te, amor generoso, tudo quanto eu tenho, sem a ambição que se
apega ao meu ser.
Liberta-me grande amor!
***
O tempo correu calçado com leves sapatos e tudo passou. Eis-me livre, amor
vitorioso.
No entanto, vives em mim, amor verdadeiro, como a luz no Céu e a água no mar.
Deixa-me contigo!. . .

32
MUITO longe de minhas tribulações / reservei um recanto . para falar
contigo, Senhor meu e Rei de minha vida. Cerquei-o de cuidados e carinhos,
cobrindo-o de alegres promessas, para que ali desabrochassem flores puras, na
virgem floresta selvagem de minha existência.
. . .Onde ninguém nos visse, comentando assim a ousadia de minha boca,
cantando junto do Teu ouvido. . .
Trago, com avareza, melodias tristes, compostas com notas de silêncio,
escritas em papel descolorido pela luz.
Nunca as ouviu ninguém, pois foram geradas na dor do meu peito, só para a Tua
complacência.
Por isso, reservei um recanto, para falar contigo. . .
—Muitos me dizem:
— O trovão gargalha dos fracos, rasgando as nuvens, que se desfazem
chorosas. .. Onde escondes a tua fúria, desesperado?
Ninguém sabe, que meu desespero só a Ti confio, e que só em Teu pranto me
desfaço em lágrimas, quando conversamos em nosso recanto separado.
* — Por que sçrris na noite, se caminhas com a lâmpada apagada? — Perguntam
os transeuntes, com revolta na voz.
E nada lhes digo. ..
Não sabem que, no coração, tenho aceso um lume, in- candescido pelo atrito das
Tuas mãos, quando me acarinham no recanto separado, onde nos encontramos.. .
Hoje cantarei para Ti, Senhor meu e Rei de minha vida, e ao ritmo da melodia,
bailarei, com a música dos guizos atados aos meus pés...
Espera um pouco, meu Senhor, enquanto afugento os meus pensamentos, para
que não me sigam ao reservado recanto que tenho para falar contigo!. ..

33
AJOELHADA no chão batido, mastigando folhas de bétel,
fiava o longo colar da saudade, espiando, pela janela aberta, o caminho sofrido
que se retorcia entre os tufos de palmeiras, perdendo-se além...
Já não chorava...
Pulsava de amor e, vergastada, diafanizava-se, para evolar num risco de luz
estrelada, perdendo-se na amplidão da noite...
As mãos ligeiras enfiavam gemas arrancadas do relicário do "eu", e outras jóias
de amor perdido fluíam sem cessar.
Onde estás, ignoto amor, que o sorriso de tua música, cantando no coração, não
embeleza meus ouvidos?
Que fias, longe de mim, amado, que tuas malhas não me envolvem mais?
Vejo a boca da noite, oo entardecer, encher-se de estrelas, como dentes
brilhantes, mas não retornas!...
Recebo a madrugada derramando luz, e recompondo minhas vestes amassadas,
percorro a casa vazia e não te encontro!
A mangueira velha bordou-se de pontos perfumados, e seus cabelos mudaram
de cor muitas vezes, desde que te foste
A lâmpada votiva morreu, e a casa vazia encheu-se de mais solidão.
Tenho as mãos à espera, para pentear teus crespos cabelos, ho! sonho irreal,
que já não acalento mais!
— Voltarás! — fala o riacho do quintal lambendo raízes.
— Voltarás! — repete a harpa dorida do meu coração.
Só os teus olhos me dão a visão da vida, e só a minha vida dará olhos para tua
visão...
Bem sabes, ignoto amor: sou tua FÉ!. ..

34
ATÉ onde chegue o pensamento, envio minha mensagem
ao mundo, coroada de encorajamento.
Desde os primeiros bocejos matinais do sol, ergo meu espírito que ama, e
conduzo o carro das horas, cobrindo as estradas do dia com encantamento e júbilo.
Em cada parada da minha marcha procuro um ser que não sabe amar, e digo:
— Alegra-te, viandante triste!
Ou:
— Ergue-te e louva a vida, homem desalentado!
E vou além...
Não me demoro em parte alguma, embora retorne sempre às mesmas regiões e
pessoas.
—Trago comigo uma mensagem de amor e, até onde vá meu pensamento, a minha
mensagem irá também.
 noite, quando o medo caminha silencioso no corredor da escuridão, ainda
envio minha mensagem.
Bebo o licor suave do cálice das estrelas e bendigo a noite.
Recolho meditação da alma noturna silenciosa, e em- briago-me.
Galopo no vento sem noite, e quando salto junto ao regato do sonho para fitar
ao reflexo da lua, a vibração do meu canto nas águas, deixo que meu pensamento
siga, levando minha mensagem.
Amo a vida! — Eis a mensagem que não cesso de mandar, até onde meu pensamento
vá. . .

35
SEJA meu amor pelo vida uma oração perene de respeito à vida.
Fale então minha boca, palavras de ouro do louvor prudente.
Busquem minhas mãos ansiosas, braços de dor quebrados .
Pense minha mente, brandura, que lave o coração. Cante minha alma a canção
sem rima de adoração ao Bem.
Sofra meu corpo todas as dilacerações do uso grotesco do pecado, sem gozar
nem pasmar.
Experimentem minhas alegrias a singeleza da ordem ritmada do equilíbrio.
Vejam meus olhos o mal, como o cego errante, sem o enxergar, e descubram a
virtude, com o inquieto brilho da criança trêfega.
Perceba meu olfato o cheiro ondulante da exemplificação.
Ofereço meus cuidados a limpar os pés dos dias, em sinal de respeito, quando
se deitar na alcatifa da noite, pos- tando-me em devoção.
Seja o meu amor à vida uma oração de respeito à vida, para que, na encarnação
futura, o meu amor seja a própria vida.

36
DESEJEI fitar o teu rosto ansiosamente, Beleza Sutil e
Divina, e despedacei, com mãos ansiosas, todos os véus que te cobriam.
Quando os meus olhos lograram encontrar tua face, não descobri o colorido que
se perde no poente, mas fui surpreendido com a palidez do raio de luar, debruçado
numa úmida folha de lótus.
Havia um nácar na pele, tão diáfano, que receei vê-lo diluir-se, queimado pelo
fogo da minha visão.
E agora, que sei possuir tua face a frescura da virtude, não cobiço possuir-te
para mim, detendo tua jornada.
Ainda existe muito calor nos meus desejos, para ser aplacado.
Quando os vencer, nesse dia, serás tu, Musa Divina, quem, soprando tua frauta
de cana verde, arrancará, com vento de música, os panos de minha cegueira, e
contemplarás os olhos que voltarão a brilhar!

37
FIQUEI ajoelhado, à espera do amor, como o bambu de hastes submissas, ao
capricho das mãos poderosas do vento.
Quando as vozes dos servos passaram, entoando hinos, arranquei o meu colar
de pérolas e atirei-o ao pó, por onde ele ia passar.
Enrolei-me na alegria, e fitei ansioso a oferenda, enquanto os ruídos de seus
pés, ornados de cadeias doiradas, chegavam aos meus ouvidos atentos.
Estou triste, com a noite no coração e, desolado, recolho as pérolas desfiadas e
desfeitas, pelas rodas indiferentes do seu carro de alegrias.
E ele nem sequer recolheu as lágrimas de pureza, com que o meu sentimento
atopetou os caminhos de sua passagem.
Continuo ajoelhado, aguardando o anjo amado que me desdenhou.
Somente, não tenho mais o colar, porque, no seu lugar, as pérolas desfeitas no
pó, mancharam a terra de lama desprezada.

38
NÂO durmas agora, sentinela ciosa dos deveres: a noite se alonga e a quietação
cambaleia ambulante.
Vigia, ainda, o caminho que não enxergas, mas que deves observar ccm desvelo.
O spno é ladrão perigoso, que se veste de treva, e busca os cansados ncs seus
postos.
Vence o desejo do repouso, e amarra a fadiga com as cordas do movimento, e
afasta as asas suaves dessa ave soturna.
Não durmas ainda, vigilante! Logo mais a manhã, sorridente como criança,
desejará beijar-te a face fria com lábios de morno calor.
Valerá o esforço da espera longa, o encontro ansiado.
Aqueles que vigiam nas seteiras e nos picos, descobrem o Amado no caminho, antes
que Ele chegue e peça repouso.
Espera-o vigilante,, e repousa ao seu lado, depois da noite demorada e solitária.

39
QUEM é este bem-amado, que anuncia a chegada com arautos, trombeteando
primavera, no carro doirado do sol?
Desde cedo, sentado na cabana de palha à margem do rio, tenho seguido os
acontecimentos com ansiedade crescente .
Pelas águas mansas passam deslizantes, na crista das ondas, jovens guirlandas
de flores, desmanchadas por mãos contentes, e o perfume estranho da camomila
se mistura, zombeteiro, ao aroma das mangueiras arrebentadas em miúdas flores
claras, fazendo uma festa diferente junto de mim.
As sombras do matagal bateram em retirada, fugindo com pés silenciosos,
quando chegou a mensagem esfoguea- da no rosto do sol.
Quem será esse estranho hóspede que, desconhecido embora, sacode o meu
coração, fazendo-se bem-amado?
Colhi, com mãos nervosas, flores brancas de jasmim, e deixei minhas ocupações
na esteira do chão, para tecer ofanosamente a coroa, com que lhe ornarei,
respeitoso, a cabeça, após a longa viagem.
Que chegue logo, com sua abençoada face de primavera rósea, esse alguém
bem-amado, que sacode o meu coração!. . .

40
ABRE-ME teus braços, amplidão, e com as mãos poderosas
do teu infinito quebra as barras da prisão, que me es- treita no quarto escuro
da agonia.
Ensina-me a cantar a melodia do teu gozo, e espreme até à aflição toda a
ventura que esta primavera esvoaçante me oferece.
Entra no meu coração, amplitude da vida, e liberta minha existência das
cadeias, que fazem de mim um escravo.
Deixa-me voar contigo, no teu corcel alado, e, com as promessas da ventura,
acende na minha cela a candeia luminosa do teu poder.
Despedaça, amplitude, as fortes correntes que me detêm, no presídio, e
deixa-me correr contigo nas estradas amplas do teu infinito.
Ensina-me a cantar o hino da liberdade, vida gloriosa, e deixa que o meu altar
ofereça o culto selvagem do sacrifício de todas as misérias, que me encarceram na
noite da aldeia onde sou escravo.

41
NA escuridão da noite, entre os seus espessos cabelos tintos, lancinante grito
feriu o silêncio.
— Vem!
As casas acenderam suas lâmpadas de barro e o palácio, engalanando-se,
brilhou na luz das lamparinas de cristal a arder.
Os ouvidos da noite puseram-se à escuta, e a mão da vigília, vasculhando a
treva, saiu em busca.
— Vem! — gritou novamente, em agonia, amargurado apelo.
A própria treva rasgou-se, inquieta, pelos ípiros raios da madrugada, para
atender à voz desesperada.
— Vem! — gritava mais.
Em todo lugar se escutou o grito, procurando-se em vão a garganta dorida de
gritar.
— Vem!. . . — continua o gemido.
— Quem assim, sofredor e solitário, grita sem parar? — inguire virgem
lacrimosa.
— O amor! Choro em ânsia incontida, de reencontrar Alguém, que o mundo
expulsou...

42
ORA comigo, alma inquieta, em silêncio,
abrindo a boca sem voz de teu coração, e dize:
Eu Te adoro, Construtor das estrelas, e deslumbro-me na luz dos olhos faiscantes
delas, por onde me vês.
Contemplo o mar e, no seu vozeirão, escuto Tua boca poderosa soprar nas ondas
nervosas, que se despedaçam receosas nas areias brancas. Ouço os ventos,
e entendo a linguagem andante de Teu poder.
Oh! clara manhã,
afoga minha noite nos teus olhos de luz!
Oh! gota d'água,
umedece os lábios queimados da minha indignidade, para chamar pelo meu Senhor!
Oh! amor, rompe, rompe meu peito, com tuas adagas e floretes,
para que Seu grande Amor vença minha infinita pequenez,
mergulhada nas águas turvas dos meus erros!
Ora assim, coração,
em silêncio de fora e em cântico por dentro, no Templo da Natureza, onde Ele
reside!. . .

43
ENQUANT0 eu coletava as bagas de prata do estrela
lacrimejante, demorei*me no caminho, procurando descansar.
O vale derramou o vento perfumado sobre o campo, e eu quase não percebi.
Saíra fascinado pela noite, buscando a paz; e, embora a quietude, eu sentia
minha agitação, sacudindo o panorama deslumbrante.
Antes, eu supunha que a felicidade fosse uma donzela adornada de gemas e,
desejando-a, fiz-me ladrão.
Reuni moedas, guardei pedrarias, e minha ansiedade roubou-me a paz.
Pensei que a ventura viesse com o amor, e quando lhe fruí os anelos, descobri
que perdera a serenidade.
Desejei o monte, sem vencer a várzea.
A fortuna escorregou pelos meus dedos, como as águas do rio pelas frinchas
das rochas, e o amor partiu, ligeiro, buscando novas emoções .
Fiquei só, dentro da noite, com a noite dentro de mim...
Peço à estrela solitária que me entenda, e ela, com lágrimas de prata, me diz:
— Segue adiante... Segue adiante...
Enamoro-me da esperança, tomo o arnez do trabalho, e sigo adiante, buscando
no silêncio do dever a paz que eu perdi... ,

44
A lua crescente bordava as folhas do arvoredo com franjas de prata quando a
silhueta dele correu no silêncio da noite.
Calçava sandálias de veludo que deslizavam sobre o alcatifado de flores caídas
no chão.
Cantavam, muito longe, as ansiedades da noite vestida de luz.
***
Fiquei solitário e triste, mergulhado na noite, nos dias que se seguiram e
durante muito tempo.
Assisti ao plenilúnio e chorei à sombra dos ramos do olmo.
Suaves perfumes corriam ligeiros nos longos rios do vento e meu coração
seguiu oflito, mas, em vão...
***
Passou a noite de saudades. Só uma dor muito grande se agita em mim, como
serpente coleante, discreto mas cruel.
Volta, amor fugidio, e aquece outra vez o meu triste coração!
Penetra no meu quarto e deposita o teu ósculo sobre a coroa de flores de
laranjeira que retenho a murchar na esteira dilacerada, no piso de bambu.
Da janela contemplo o rio, brilhando aos beijos do luar, cantarolando suave
melodia que as mãos do vento tangem sem cessar.
Volta, amor ditoso, e fala ao meu espírito em prece ardente de fé, como ramo
seco a crepitar em incêndio vigoroso.
Calarei minha boca à tua chegada e só a noite de lua crescente saberá do nosso
colóquio que me acalenta e vitaliza.
Conduze-me contigo, amor viajeiro, e leva-me aos pés do dever divino,
afogando-me nas águas da tua corrente.

45
ALMA minha, sorve o hálito leve da alvorada, e parte com pés velozes e lento
anseio, em busca da nova manhã.
A noite descoloriu suas tranças negras e sucumbiu nos braços do amante solar.’
A gazela quebrou a imobilidade, e, como frecha disparada, buscou o córrego,
cantando ignoradas melodias que ardiam de luz.
As vozes da véspera se calaram como as lembranças que se escondem, para
ressurgir depois. . .
Semeia, alma minha, grãos de luz no teu dia, enquanto vences as horas para o
amanhã.
Verguei o corpo da tua ansiedade, alma minha, e, tomando um arco, fiz arma
vigorosa para libertar, de um só golpe, a verdade da vida, da prisão onde se
esmagava.
Sorve, sorve, alma minha, em haustos ligeiros, o oiro desta manhã que te
enriquece de sabedoria, e corre, deslizando com ligeiros pés, para o amanhã.
Meditaste muito, e agora sabes.
Nada mais desejas, alma minha. . .
Nesta madrugada, sonho de ontem, já és!

46
A QUI está, Amigo, minha casa vazia e meu cheio coração: é o quanto resta, após a
tempestade da véspera. Durante muito tempo, reuni objetos que a convenção
valorizou, e de ornamentos inundei o lar, fazendo-o deslumbrante e belo.
Muitas vezes desejei deter o sol triunfante, para que minhas águas se
doirassem ao seu beijo, quando seus raios desciam a mirar-se no lago do meu
quintal. Todavia, fagueiro ele corria pelo céu, e, ocultando-se, fazia-me chorar de
emoção, ao vê-lo emoldurando nuvens brincalhonas.
Vezes outras, roguei à pálida virçjem da noite descesse seus cabelos de prata,
e os umedecesse no orvalho, guardado nas pétalas do meu roseiral. No entanto,
ei-la no lago, a deslizar nas águas paradas, despedaçando-se sob as rodas do carro
do vento.
Às aves do arvoredo, supliquei sempre cantassem à janela do meu quarto,
despertanda-me com o gorjeio das suas vozes canoras. Mas, quando as tive perto,
no peitoril da janela, tornei-me ladra o, roubando-lhes a liberdade, para sempre as
ouvir cantar.. . e, daí por diante, sempre estiveram a chorar a perda do céu sem fim
e do arvoredo musical, que a brisa oscula e a noite acalenta.
Tudo quis: nada tive.
Quando, porém, a dor de muitos chorou à minha porta, qual tempestade de
desesperos, dei todos os objetos, ornamentos e valores que a humana condição
venera. . .
E libertei-me da rapina, libertando as aves.
A dor dos estranhos me falou tanto, que me fiz mendigo, rico que fui, para dar.
E agora que chegas, Amigo, tu a quem amo. . . Somente posso oferecer-te minha
casa vazia e meu cheio coração, eu que antes era dono de uma casa cheia e de um
vazio coração.

47
BEBE, sôfrega, meu hálito de cansaço, jovem manhã, e entorna em minha noite tua
garrafa de luz, manchando as nuvens claras, com tuas tintas de alegria.
Corre tão lento e pobre o rio de minha vida, que me entorpeço nas curvas das
provações.
Quando desvelarei minha face, arrancando essa túnica de soledade?
Faz tanto tempo o amor voou, deixando-me vazio!...
Penso, porém: que vale um amor, na torrente da vida, que pode soprar, em
hastes de bambu caído, novos e tantos amores?
Dize-me, doce rosto da manhã solitária:
— Que é o amor? Como retê-lo?
— É chama que se extingue, ou gota que se dilui, para a felicidade do amado —
falou o orvalho ciciante, caindo da folha e perdendo-se no chão.
— Na força da renúncia retém-se o amor — respondeu a rosa,
despedaçando-se ao vento, que lhe roubou, o perfume.

48
A FLITO, como uma folha no ar, perguntei um dia:
— Ô julgador implacável, por que não te apartas de mim?
Nada me respondeu...
Na janela da minha mente, porém, pus-me a recordar...
Caminhando para o ontem, eu a vi passar na minha vida, vestida de
encantamento e de dor. . .
Belo era seu corpo, como uma maçã amadurecida aos beijos do alvorecer. ..
Seus olhos derramavam luz, com o encantamento de uma cascata que os dardos
do sol penetram e devoram.
E, grácil de caminhar, passava, chamando-me na sua jornada, para que a
seguisse em pós.
E me fui...
Amei-o sofregamente...
Vivi-a tão intensamente!
Era tudo o que eu via na janela da minha mente no ontem/ ao recordar...
E o julgador implacável, erguendo o seu chicote de juiz, me faz chorar até aqui.
Batido, como a rocha pelo vento dos séculos em fora, per- gunto-me por que não me
deixas amar...
E, olhando a janela de minha mente, hoje eu a vejo flutuar apodrecida e velha,
sobre a crista das ondas batidas do meu oceano de desgostos.
Os anos premiaram-me de desencantos, as noites de treva e dor, e a vida
apontou-me uma réstia de luz muito longe...
Estou tão cansado, julgador implacável... por que não me deixas mais?
E, quando estou quase a dormir, a voz do julgador se ergue, e meu cadáver no
oceano de abandono ouve-a gritar:
— Eu sou as tuas ações... chamo-me ILUSÃO!...
49
CHOREI muito e muito, quando a mocidade cantava em minhas carnes.. .
Pelas veredas da juventude, corri até à exaustão, procurando consolo e paz.
Chorei muito, muito mais, no corredor da idade adulta, quando passei a ensinar,
aprendendo a sofrer, procurando consolo e paz.
Chorei muito e muito mais ainda, na sala estreita da velhice, descobrindo, na
sabedoria, a. ignorância minha, e na pureza da infância, a sabedoria tua,
procurando consolo e paz.
Choro ainda, e agora muito mais, porquanto consolo e paz, não terei jamais.
Tu me vestiste o coração na luz da tua vitória, e a dor de todos me chama,
dizenda-me que não poderei ter consolo e paz, entre as dores e os desconsolos dos
caminheiros que perderam as vias de felicidade!

50
AH! meu filho, como gostaria de tecer com os meus dedos, v na singela roca, as
grandes malhas da túnica da felicidade para a tua cabeça!
E tu és tão trêfego, meu filho!. . .
***
Oh! meu filho, como desejava para ti a liberdade das ondas e a felicidade do
perfume dos bosques!
E tu és tão escravo de ti mesmo!. . .
Oh! meu filho, como gostaria que os deuses cantassem, tocando longas harpas
diante do teu berço à hora do adormecer!
E pesadelos sombrios enegrecem tua alma quando dormes, tantas vezes!. ..
Oh! meu filho, como gostaria de dar*te brinquedos cc- loridos como as
borboletas do ar e as folhas da mata virgem! E tu és tão pequeno, com tão exíguas
mãos!...
Oh! meu filho, como feliz eu seria se te pudesse legar o amor sem mácula e o
anseio sem sofreguidão e o apelo sem desespero, que fazem o homem ditoso no
mundo!
E tanto ainda tu tens que aprender!...
* * * ..
Oh! meu filho, recebe a haste do meu bambu, veste a túnica de açafrão,
renuncia a todos os tesouros que o mundo te deu, e vai em busca da corda partida,
da harpa dedilhada por Buda, o Príncipe sonhador, que morreu para a felicidade do
mundo...
E, da extrema mendicância tua, terás todos os tesouros que te não possa dar!...

51
AGUARDANDO o bem amado teci, com as brancas flo- res de laranjeira do quintal
uma coroa perfumada para depositar-lhe na cabeça.
Aguardei-o ansiosamente à janela do coração, espiando as curvas do caminho
por onde ele deveria chegar.
Passou o carro do Rei com plumas ao vento e campainhas soando no ar. Nem
sequer me detive a olhar o cortejo real
Pobre mendigo da rua veio à minha procura, mas, preocupado com o bem amado
não o pude socorrer. . .
Pelo meu amado, eu que era senhor fiz-me mendigo, sendo livre tornei-me
escravo.
Esqueci os sonhos que me doiravam a esperança e espremi todas as uvas da
minha ambição, para servir na taça da minha alegria o licor de todos os meus
júbilos...
Fugi do mundo para aguardar o meu amado e, retraído e só, fiquei à espera...
Quando a madrugada sorriu no rosto do dia e o arvoredo se adornou de luz
compreendi que a noite fugira sem que o meu amado chegasse.
A guirlanda murchou e o perfume das miúdas flores se apagou no ar, sorvido
pelo dia reinante.
Oh! bem amado, por que não vieste ao meu coração? Sinto frio na alma e
dilaceração no ser. Onde estás, amor desconhecido que tão só me deixaste na
porta da vida?
Olhando os pequeninos botões de infância que brincam no rio que murmura à
porta da minha casa de bambu, por fim compreendo que o bem amado que eu
aguardava não poderia vir a mim. Pois eu fugira do mundo para a masmorra do
solidão onde se demora minha ilusão fugaz.
Corro agora com o vento à busca do amado meu.
Onde haja uma dor a chorar aí me encontro à busca do meu amor que se compraz
em socorrer, no seu carro de luz, a dor dos deserdados do seu reino de compaixão.
A sombra da noite correu chorando, quando o dia jubiloso cantou a sua claridade.

52
As madressilvas humildes rasgaram seus perfumes, e a Natureza sorriu
vitoriosa.
Eu não mais ouvia o gemido de minha solidão, nem a triste agonia de minha
desdita.
Estava sorrindo...
Antes, o tempo me contava páginas mortas de desesperos passados.
Meu peito sofria.
Nem a voz da minha frauta arrancava sorrisos da minha tristeza.
Depois, tudo mudou. ..
A juventude iluminou minha cabeça envelhecida, e o orvalho da esperança
voltou a mim.
Descobri novamente os alvos dentes de Luz da alvorada e compreendi a
mensagem do lúgubre manto do anoitecer.
Quando o vento murmurava, antes, eu chorava ao lhe ouvir as queixas e, se o seu
pente penteava o capinzal, minha vista sofria, ao ver o dorso das plantas
receber-lhe a carícia impetuosa.
Agora, não!
Se a madrugada canta e a floresta desperta jubilosa e a voz do vento me
chama, eu os escuto...
Ouço-os passarem velozes, nos seus corceis ligeiros, e, quando no dorso deles,
cantando a Bondade, me deixo conduzir, posso enxugar as lágrimas, e suprir de
sorrisos as tristes expressões dos tristes.
Exulto, enfim!
Não sofro mais!
Encontrei-Te, desconhecido animador da vida!
Partilho da Tua luta e corro já, para o combate, o Teu Bom Combate...
Poderei seguir-Te, Invisível Senhor?

53
QEIXA -ME adorar-Te, Senhor.
Do meu sacrifício ofereço-Te a lira partida do meu coração que ainda guardo
comigo.
É a última oferenda que a vida me fez: uma lira de versos, cantando vibrações
de amor que a sepultura não mc roubou.
Muitos Te oferecem mirra desde há muito. . .
Outros Te presenteiam ouro e incenso. . .
Desde as primeiras doações sorriste, indiferente, e tomaste uma cruz em que
Te imolaste.
Deixa-me adorar-Te, Senhor.
£ tão profunda a minha afeição e tão sublime o meu amor que, dando a lira
ofereço-Te a mim mesmo. Recebe minha oferta.

54
ENQUANTO longe Te buscava jamais Te encontrei.
Ao perguntar aos bosques, o farfalhar das folhas apavorava-me .
Ao indagar ao arrozal, trêmulo este dobrava o dorso, quedando-se silencioso.
Inquirindo às águas cantantes do riacho, despencavam- se ligeiras,
aparentando não me ouvir.
Examinei a terra, perguntei às gentes e tudo me pareceu indiferente. ..
***
. . . Um dia examinei minfValrha e lá encontrei-Te, enfim.
55
PARTI cedo e só, em busca de Ti.
Em toda parte procurei achar-Te.
O vento que passava não me atendeu.
O passaredo alegre permaneceu sorrindo, mas não me respondeu.
A gozela célere passou altiva, e quando eu indaguei,' seguiu sem responder-me.
Fiquei mais só, mais triste...
Busco-Te, Soberano, em toda parte. Saio todo o dia, contemplo o sol e a terra,
as árvores e o mar.
Por Ti pergunto, por Ti pergunto, por Ti indago. . .
Nada ouvindo, retorno desesperado, recolho-me cansado, e, à noite negra,
medito e sofro.
Nada me pertence na terra. Vivo sem a vida, falo sem a voz, sofro sem a dor.
Sou errante.. .
Mas quero-Te, porque algo me diz que Tu existes!
Então, Tu que és Vida, Calor, Poder, atende-me e abraça-me, junto ao Teu seio
de Bondade, porque, sem Ti, tudo é treva e morte.
Oh! Atende-me, Senhor! Porque, embora tudo permaneça em silêncio, eu
continuo ouvindo Tua voz, que fala na minha carne; pois que, se ela é frágil, Tu a
fortificas com o sopro da alma que a anima e vitaliza.
Atende-me e salva-me!. . .

56
INDA permaneço à janela da minha alma, contemplando os Cimos. Busco ver e ouvir
a música da vida universal e os titãs da construção do mundo.
Correm nos Céus os ventos transparentes.
Perco-me na contemplação do infinito, e sonho.
Sinto, então, que a grande noite do mal passou e que, prenunciando um estilo de
paz, as cítaras plangem divinas harmonias.
Cantam esperanças em toda parte. Movimentam-se obreiros para o trabalho.
As árvores descem os braços e confraternizam com os homens.
A madressilva cresce e confraterniza com o vento, oferecendo-lhe perfume.
E na aldeia do meu coração, minha alma abre mais a sua janela, para contemplar
a Tua Suprema Bondade, que se manifesta novamente sobre a Terra toda,
cobrindo-a de felicidade para os homens cansados.
As virtudes se exaltam e redimem os infelizes.
Faz-se uma grande espera em todo lugar: as ondas murmuram melodias nas
areias alvas; o sol ajuda a terra, libertando-a da umidade; o estio de paz consola as
criaturas.
E Tu chegas, enfim. . .
LEMBRANÇAS... PROFANAS
E PENSAMENTOS
I
PASSAVA leve, qual uma chama de oiro a arder ern castiçal de prata, no silêncio da
solidão.
E era tão bela e pura que, encantado, a segui, na poeiro que se erguia à sua
passagem.
Fascinado, após contemplar-lhe o vulto, de muito perto, atirei-me à frente, e,
ajoelhado, roguei-lhe a carícia de um sorriso seu.
Havia um límpido silêncio do ar, somente interrompido pelo estalido leve das
estrelas ridentes, longe, muito longe. . .
Fitou-me, e notei-lhe a tristeza infinda:
— Não posso acariciar-te mais, amigo. . . Vou além... Os anos coroaram-te a fronte
de sabedoria. . Deixa-me seguir!
— Quem és?
— MOCIDADE, vestida de ilusão!

II
VIVI numa cidadela dentro da cidade, e muito longe dela.
Teci meus desejos com as visões longínquas das luminosas estrelas do céu.
Sem amor, sem carinho, construí um mundo solitário em mim, onde não havia lugar
para felicidade nem ambição.
Em velhas páginas do Ramayana (12) chorei copioso pranto de emoção, cavalgando
corceis de nuvens perdidas no ouro do poente.
Do meu balcão, só poucas vezes saí, pelo pensamento, olhando um pouco além os
busti (13) de miséria e degredo.
Em mãos pequeninas e trêmulas embalei meu coração, orando à noite, e crescendo
de dia.
Não sendo amado, porém, pude amar, como um pássaro cativo, a floresta longe,
muito bela, o leve ar, muito rápido, a água azul, muito clara...
Não me arrisquei, porém, a voar...

12
(11) - Ramayana - Poema sânscrito religioso e épico, atribuído a Valmiki, em 50.000 versos e 7 kandas (ou
livros).

13
(12) - Busti - Área onde palhoças humildes ou barracões miseráveis se avizinhavam dos palácios. Comuns
em Calcutá.
***
Olhando para trás, ainda vejo as palmeiras velhas, com seus cabelos sujos de pó,
penteados pelo vento brtindo das madrugadas ridentes.
E as raízes entrelaçadas da figueira que depois morreu e não mais refletiu na
piscina, também já morta, as lianas balouçantes. . .
***
. . . Uma poeira de lembranças, agora se ergue dos cômodos da minha memória,
longe, muito longe. . .
Mas sou muito feliz!
Na solidão, de garganta emudecida, pude escutar o hino do cantor, e,
transbordante, derramei minha taça de rimas pela vida, como um pássaro ligeiro
que, contente, podia trinar.
***
Não chores, pequenino, engaiolado na dor, na cidadela onde vives, na cidade e fora
dela.
O dia começa ao amanhecer, e a felicidade é maior, quando sofremos na madrugada
do viver.
Debruça-te no balcão, criança, olha além. . . e fica certo de que teu dia começará
após este anoitecer...

III
DERRAMADO em raízes no velho muro de pedras do quintal, o ashatfi dizia aó
vento:
— Leva-me contigo!. .. Em asas de pluma branca desejo voar.. . Seria feliz se
amar pudesse sem limitação, sem esta cruel prisão!. . .
E o vento, correndo, levou o lamento da planta à crista espumosa das águas que se
despedaçavam no chão.
***
Contemplando o velho muro, onde, derramado em raízes, meu ashath estava,
escuto meu coração a dizer:
— Tenho ânsias de amar! Quero crescer, como um vento que se estende no
ar!
E algo muito distante responde:
— Não poderás voar ainda! Eu sou o solo fecundo da dor, onde tuas raízes
estão amarradas. .
E me ponho a choror. . .
***
Fora a primavera. .
Sob o tórrido verão, meu velho ashath, sem orvalho nenhum da noite cálida, está
morto nas paredes do muro. . . Quando o vento abrasador passou nos galhos secos,
ele nada mais falou.
***
Como o velho muro, em que o ashath se esparramou, eu sou...
Minh'alma tem âsias de voar nas asas de uma oração, mas meu corpo envelhecido,
de indiferentes pedras cheio, não a pode libertar.
***
No velho muro do meu quintal, nem mais esparramadas raízes do ashath existem lá!
No vento perfumado e na brisa, ele agora canta, roçando levemente as flores do
jardim...
Também eu, sou assim!
***
Morreu meu ashath, esparramado nas pedras do muro do meu quintal. . .
E meu corpo, tombado no caminho, libertou minh'alma que voa nas asas da oração,
em busca dos ventos dos céus!

IV
ABRAM, amigos, as grandes portas trabalhadas, que oõo acesso o sala do escrivão
do rei, para que eu possa fazer o testamento do fim dos meus dias.
Ó guardas vigilantes, olhai lá fora os pátios, e afastai de perto todos aqueles
que espiam os segredos do coração.
E tu, meu coração, não deixes que ninguém descubra antes da hora, os segredos
teus.
No silêncio das tuas dobras, alma minha, guardei todas as alegrias, para aqueles
que não são felizes e, nas curvas mais profundas do meu amor, ó pequeninos do
caminho, crianças pobres e abandonadas — débeis flores do jardim da amargura —
eu reservei uma porção de orvalho, arrancado do seio abundante da madrugada
prenhe de luz. Todo esse orvalho, guardo para matar-lhes a sede, no dia ardente
da ingratidão dos homens.
Nas páginas da minha vida, tôda de desejos e nobres ideais, grafei, com as
tintas dos meus encantos, as melodias ainda não tocadas da minha satisfação, para
arrebatamento dos ouvidos de pequeninos, não povoados pela felicidade dos
sorrisos maternais.
—Crianças!... Ave zi tas, que a noite da orfandade açoita, para primaveras
longínquas, que raramente encontram... ou primaveras que soo outonos tristes,
início de danosos invernos.
Crianças sem pais!... pássaros implumes, dependurados na árvore da vida,
expostos às pedradas petulantes de meninos felizes, de outros companheiros da
rua.
Meninos, frutos da impiedade.
Meninos, amarguradas flores do canteiro da orfandade de pais vivos, musgos
incolores da floresta sombria dos erros.
Eu vos ofereço meu canto: canto de dores, canto de alegrias.
E grito a este dia, que se esconde envergonhado: Vinde abrir o leque de luz, e
povoai de claridade os caminhos por onde os pequeninos pés caminharão, sem
auxílio de ninguém!
Vinde, sol-esperança, apontar-lhes os cominhos!
Assim talvez haja, no amanhã, delicados ninhos de entendimento, no coração,
para guardar os que de cedo se acostumam a coletar lágrimas e recolher
imprecações da revolta alheio, estrangulando o peito pequenino, para não mais se
abrir à felicidade. Talvez!. . .
Este é o meu testamento, ó escrivão do Rei!

V
Q vento trazia o som metálico dos seus adornos, e todos corriam atrás db seu
vulto esguio, coberto no sari (14)
•azul.
Eu olhava e sorria de longe.. .
Estava seu corpo cheio de mocidade e viço, como uma borboleta nova vagando
no ar da manhã.
Falava-se seu nome, e comparava-lhe a beleza com as virgens das margens
sagradas do rio.
***
Corréu o tempo nos olmos do canavial.
Fugia a multidão, ao escutar o toque da sua sineta de lepra, apupando a infeliz a
pedradas crueis.
Segui-a, então, chamando-a de irmã. . .

VI
ERG0 minha lâmpada, e a luz bruxuleante joga manchas
vermelhas nas figuras sombrias do caminho.
Ouço seus adornos tilintarem ritmados, e a voz das suas sandálias, arrastadas
nas pedras da estrada, trazem a música dos seus pés.
Ergo minha lâmpada fraca, e vejo-a extinguir-se, morrendo a luz.
Por que me perco nas trevas do caminho, no momento do encontro aguardado
com tanta ansiedade?
Oh! agonia minha!
Foge, última alegria, e vai cantar-lhe aos ouvidos atentos a música desta
solidão!

14
(13) - Sari - Espécie de chale que envolve o corpo, usado na Pérsia e na índia.
VII
RECEBI do teu amor todas as prendas, mas não as pude " guardar: quais perfumes
da floresta passavam entre minhas mãos, como aragens que se dissipavam além. ..
Procurei reter todas as tuas bondades no coração: todavia corriam e
escorriam, como águas puras, que procuram os rios, e se perdem no mar, mais à
frente.
Tentei memorizar tuas belas expressões, talhadas no rosto matinal: no
entanto, quais miragens do meu deserto espiritual, diluíram-se, com c chegada da
realidade dos tempos.
Ajuntei todas as tuas cartas, para fazer delas um livro de cânticos místicos:
porém, quando as folheei, estavam brancas e manchadas pelas negras lembranças
de muitos noites.
Coordenando as palavras do teu adeus, na noite em que os raios da lua saltavam
entre os orvalhos do meu roseiral, verifiquei que nada retivera: as palavras
estavam caladas e sem vibração na minha memória.
Procurei chorar saudades. . .
Cantei sorrisos, na minha alma, como uma canção infantil, que estruge do imo,
arrebentando-se em palavras coloridas e inocentes, por lábios não profanados.
E verifiquei que nosso amor foi uma irrealidade, filha da mentira de um ideal
que nunca existiu. . .

VIII
APAGA esse olhar triste e sonha, menino cansado e sofredor. .
Cerro os persianas de tua vista, guardo a claridade do dia no teu coração.
Deixa que tua alma galope nos corceis velozes que o vento carrega nos céus.
Não te apavore o silêncio de fora, na noite escura da vontade humana.
Ninguém está só no mundo, menino triste de olhar negro.
Anjos generosos e compassivos jornadeiam de longe, acompanhando os passos
solitários de quem não tem ninguém.
Contempla o vento que beija a folha e a orranca do pedúnculo, e que, no ar, tece
uma grinalda de encanto- mentos, para doirar nos últimos reflexos do sol.
Pergunta ao córrego risonho, que lambe pedras e beija flores, por que não para de
correr.. .
E segue também tu, menino pobre de pés descalços, olhar triste e negro, para o
teu porto sem fim. . .
Agora, porém, que a orfandade te marcou a alma, vestindo- te de negro manto,
dorme e sonha, menino. . .
E deixa que tua alma galope nos corceis de nuvens coroadas de sol no seio de Deus.
IX
DESEJEI afagar o teu colar de virtudes, com a luz, que acaricia sonhos. .. E, por
pouco, não o despedacei, ao frêmito inquieto das minhas mãos!
Nem sequer me censuraste com um rubor de faces ou, com natural receio,
fugindo de mim.
Animei-me, então, a acariciar-te os anseios, e nem sequer os pude sentir.
Fitaste-me então. E, no olhar de bondade, disseste-me somente, com
lamentação na voz:
— Oh! Pobre! Ébrio de ansiosa felicidade, atiras a cabeça ao Céu e, bêbedo de
paixões, deténs-te no lodo... Como me apiado de ti...
E foste além..

X
ESGUEIRANDO e correndo, escorro ligeiro, procurando fugir.
Fustigado pelos açoites da ventania, debato-me nos ramos longos do arvoredo e
temo, tremendo.
Esta longa noite chorosa de chuva não passa, nem se aclara ao menos com um
pirilampo de estrela vagabunda no firmamento.
Tento fugir, e debato-me na densa treva.
Gostaria que brilhasse a luz, e receio o sorriso da claridade.
Grito... ninguém escuta!
O vento tapa minha voz com sua garganta arreganhada, gargalhando do meu débil
ruído.
— Por que me envolves com teu manto viscoso e sinistro, ó perseguidor irredutível
e mau?
Há quanto tempo me roubaste a paz, apossando-te do reduto de minha suave
tranquiidade!. . .
***
Deixo-me arrastar nas tuas garras, e sofro, e choro a pressão de teus férreos
dedos na minha consciência..
Esta noite não tem fim, e meu receio não se acaba!
— Rompe, rompe meu seio, e arrebata teu martírio, dei- xando-me então a sós,
rasgado, insaciável vingador!
Sei que tua ânsia não cessa.. . Não tentarei mais fugir, até que te canses e
esgotes a taça da sina tua!
Pobre que sou. .. Por que deixei que o crime morasse em mim e que tu, remorso
infindo, me roubasses a serenidade?
XI
DOBRADA ao peso da saudade, chorava orações pungentes fitando a urna, onde
dormiam as sagradas cinzas de seu amor, que o beijo frio da morte fanara.
Diariamente, ao desdobrar do manto escuro da noite, a alma solitária partia as
cordas sonoras de sua dor, e dilacerava as emoções em harpejos de lancinantes
imprecações.
Longe, no fundo do bosque, as malhas da noite impassível recolhiam todas
aquelas estranhas orações, para despedaçá-las, no dia seguinte, na dominação da
luz. . .

XII
TÃO frágil ..
e embebeda o mundo com ânforas de mentiras!
Tão rápido. . .
e enlouquece o homem com promessas irreais!
Tão diáfano. ..
e envolve a alma com fitas de traição!
Tão insustentável. . .
e consegue manter esperanças impossíveis!
Tão insaciável. . .
e conserva semblante de impossível satisfação!
Tão impiedoso.. .
e sorri com benignidade!
Pobre alegria dos desgraçados,
Por que te chamam, tão injustamente, prazer?

XIII
RASGUEI minha alma com o punhal da esperança, para " que o medo jamais
voltasse a escurecer-me o coração. . .
***
Cingi meus olhos com a névoa das lágrimas, e o sorriso da alva secou-me o tecido
de todas as dores...
***
Guardei todas as dores no meu cofre de desencantos, todavia o desejo de ser
feliz roubou-me todas as tristezas...
***
Apanhei nas mãos as gotas do desespero teu, e embora o carinho que te quis
dar, conservo feridas as carnes minhas.
***
Orvalhada pela noite, a rosa aguardou o sol, para presenteá-lo com diamantes
líquidos.
***
Sorrindo, a cascata penteava seus cabelos longos, nos pedras pontudas, em sua
queda sem cansaço.
***
Falei, com o meu amor, as expressões do melhor afeto, durante a vida inteira. .
. e não disse muito.
***
Trago, ainda, vibrando no corpo, a melodia de teus encantos, gorjeante como
sopro de aves, em jardins perfumados .

Como hábil cirurgião, o vento arranca,dentes da terra, e prostra as pobres
árvores com raízes para o céu.
* **
A chuva corre entre os capins rasteiros, como soluços embaraçados nas
entranhas de virgens saudosas.
***
Abraçadas, as folhas de um trevo pentagonal sorriem da felicidade de
encontrarem num jardim um trevo de cinco folhas.
***
Revérberos além dos montes, mensagens derradeiras do sol viajante.
***
As boninas enrubesciam lentamente, o medida que a luz da manhã lhes beijava
as fibras frias.
***
A ternura materna cobria o filho como um sori estampado sobre uma virgem.
***
Franjas de luar escorriam no manto veludoso da noite, para acalentar orquídeas
solitárias, em árvores quase mortas.
***
Confiava tanto no amor, que falava ao perfume do ar em murmúrios apaixonados
que chegavam a êxtases sem fim.
A lâmpada humilde, ante a alvorada, escondeu sua luz, para contemplor melhor
o dia, e, tímida, banhou-se de claridade.
— PÕe o traço vermelhão na tua testa, delicada irmã!
— Não tenho direito: sou solteira e só. . .
— E eu que te julguei casada com o amor!
— Desce o véu, sem receio, constante amiga: o sol deseja purificar-te!
— Ê proibido despir o rosto para estranhos: é imoral...
— Cobre teu pensamento, pobre menina! Tua mente, tua conduta! O caráter
desdenha os véus.
***
— Espia as horas, e não as deixes passar, infante descuidado!
— Eu sei dos meus deveres. . .
— Perdeste um tesouro, meu filho! Nunca mais recuperarás a hora que
passou. . . Pobre de ti!
***
Cavalgando os corceis alvos de nuvens, os raios solares sofregamente absorvem
os beijos úmidos do orvalho da noite.
***
Na varanda da casa tristonha, a lâmpada apagada vol- ta-se para a última réstia
da lua e murmura com desalento:
— '"Também tu te vais apagar no incêndio terrível do dia que surge"?
***
Ouço vozes longínquas. . . rumor de passos. . .
Devem ser as fiandeiras do porvir que se aproximam... Quedo-me a esperá-las.
Oh! Deixa-me apagar as chamas da inquietação, que me devoram a alma!. ..
***
— Que esperas, homem cansado, coberto de pó, à orla da estrada?
— A ventura que a mocidade carregou, e a velhice prometeu devolver!
— Pobre de ti, ó pobre velhinho!
***
Deixa-me coroar-te de luar, fronte suada de minha vida! Olha as crianças em
ciranda, saudando a serenata das estrelas, olhos meus, e sorri.
Aquieta-te aos dentes que te penteiam, cabelos revoltos que o vento sacode e
acomoda-te!
Debruça, coração, nas janelas da serenidade, e recebe o prêmio das lutas, com
a coroação da fronte, ornada do suor brilhante de luar.
***
Dependurada no céu, uma lágrima doirada, que não queria cair, apegou-se
sofregamente numa estrela, e foi devorada pela palidez da sua luz. . .
***
Um homem era tão forte, que desafiou, em cólera, a noite, para uma luta, no
palco da vida.
Houve um silêncio de ansiedade na noite escura, sem resposta nenhuma.
Tempo depois, em noite de tormenta, o homem foi tragado pela# morte e
vencido, sem luta nem resistência.
***
Olhando a ravina lá em baixo, Deus derramou seu hálito, e a Terra emocionada
se cobriu de flores.
***
Balindo, sozinha, a ovelha, num penhasco, olhou o abismo lá em baixo, e o apelo
instintivo da saudade fê-lo recuar em busca do rebanho distante.
***
Também o coroção solitário é uma ovelha, no abismo imenso, contemplando o
despenhadeiro que a saudade chama para o rebanho que não a quer...
Olhando a humanidade caminhar, Deus insuflou Sua respiração e o Amor reuniu
os homens. . .
***
Depois que o céu chorou sobre o jardim, as roseiras comovidas fizeram um coro
de lágrimas, derramando pétalas na enxurrada do chão.
***
Velhas mangueiras do pomar, cansadas de produzir, rasgaram seus braços, para
que seus frutos não fossem sacrificados no futuro, com a abundância de outros
frutos.
***
Distraídas no firmamento, derramando lampejos prateados no infinito, as
estrelas murmuram canções de amor distante, que nunca se tornarão realidade,
♦**
Só, no grande silêncio do infortúnio, o homem escuta a voz de sua infinita
solidão.
***
A borboleta confiante, depois de voejar entre pequeninas flores, galgou os
ares desprevenida, para beijar a luz do dia, quando um vento inesperado a levou,
em corrente voluptuosa, ao imenso pavor do despedaçar da vida.
***
— Abraça-me, ó vida! Dizia a flor que teimava em não morrer...
Mas a vida passou, e a flor, fanada, em breve desaparecera ...
Seu perfume, que um dia impregnara o ar, o correr, agora vara o abismo da vida,
sem jamais se apartar...
— Leva-me contigo, ó rio!
Dizia a árvore a chorar.
O rio prosseguiu. . .
Quando suas águas cresceram e arrancaram da margem a árvore, reclamando, a
mesma voz dizia:
— Por que e para onde, matando-me, levas-me tu?
***
— Deixa-me sonhar!
Dizia o orvalho, na folha do arvoredo...
E, tremeluzindo, Qdormeceu...
O sol da manhã, despertando-o do deleite, sugou-o com um ósculo de realidade!
PARÁBOLAS
1
AS montanhas enrubesciam, com a visita do dia, como semblantes de donzelas
pudorizadas tomadas de emoção. As últimas tintas da noite diluíam-se banhados
de luz. E Ele meditava no cimo do monte. Vestido do dia, era como um fio de ouro
envolvendo umn pérola solitária.
Deixara a multidão no vale, e a noite toda gastara ensimesmado, perdido,
buscando a luz de Seu ftji.
Difícil viver com os homens. . . aturá-los e amá-los! Oferecera claridade a olhos
vedados, som a ouvidos silentes, e movimentos a membros hirtos. Nada pedira.
Perfumara como flor silvestre, sem preocupar-se até onde chegaria o aroma. Dera
tudo, sem olhar sequer a quem o dava.
. . . e sofria!
A noite chegava-Lhe, vestida de cansaço, e cobria-0 de dor. A dor da
ingratidão que sempre esperava; do esquecimento do benefício, e do retorno à
enfermidade.
"Amar aos inimigos".. .
"Nem sequer ter inimigos". . .
"Ser irmão do adversário". . .
"Ajudar mesmo a quem não se ajuda". . . dissero-o, antes, aos ouvintes.
***
A manhã ergueu o archote do dia e ateou fogo na Terra.
Desceu ao vale e, sob o calor e o cansaço, continuou a amar os homens!

2
FOI no meu pomar de ilusões — faz tanto tempo! — que eu as ouvi conversar.
A terra sorria flores e o sol contava luz!
Eram três gráceis deusas, a murmurar:
— Eu sou a esteira de luz, que conduz à felicidade o homem que por mim
caminha! — disse a primeira.
E da grande caneleira que as guardava na sua sombra, miúdas flores no chão caíam,
embalsamando o ar. ..
— Eu sou o estímulo, que conduz o homem que por ti caminha! — sorrindo a
outra respondeu.
E um vento brando, penteando o campo, trouxe o perfume do longínquo bosque
florido e embalsamou o ar. . .
— Eu sou a felicidade, a própria vida, o paraíso, aonde o homem deseja
chegar! — falou a derradeira.
E as folhas, derramando música, vestiram de uma sonata de amor o meu pomar de
ilusões, onde eu as ouvira falar.. .
De olhos fechados, deslumbrado, quedei-me a meditar!
E quando franjas de prata caíram sobre o mar, e o rócio do anoitecer me
despertou, eu compreendi. . .
As deusas que vieram ao meu pomar, eram a FÉ, a ESPERANÇA e a CARIDADE!

3
A DORNADO de vaidades, o tribuno, com palavras de fogo
chicoteava os ouvintes, pregando a revolução política.
Todos os ouvidos, vibrando emoções vitoriosas, martelavam cérebros cansados
de lutas inglórias.
Como relâmpagos nos céus, as palavras elétricas do orador percorriam os
finitos-infinitos ouvintes, iluminando- os e obscurecendo-os depois.
Quando encerrou o comício, o ardente pregador da luta admoestado por
andrajoso rabi, engalfinhou-se em contendo inútil, exibindo pérolas falsas de
palavras ocas.
Todos compreenderam. .
Não era um líder quem falara antes, mas um guerreiro que batalhava consigo,
sem conseguir vitória, ansioso por atear fogo à paz dos resignados.
$**
No mundo, muitos pregam a guerra exterior, de irmão contra irmão, porque
ainda não puderam ser a paz em cada coração. . .

4
DIARIAMENTE dedicava, ao deus do seu culto, oferendas e preces,
esperando conseguir, com as flores frágeis, uma dádiva valiosa.
Ajoelhado, desfiava o rosário de súplicas, e tecia coroas de miúdas flores
silvestres, perfumando o ídolo indiferente aos apelos da vaidade.
Com o passar do carro do tempo, na estrada das experiências, a poeira da
dúvida se foi acumulando no coração do crente, cobrindo-lhe a fé, debilitada pela
aflição da posse.
Estrangulado pela corda impiedosa da revolta, abandonou o deus, deixando de
doar-lhe presentes, porque nunca havia recebido nada.
Sonhou, então, com o deus, perguntando-lhe quanto valia a vida que carregava,
nos dias da carne, em troca da qual nunca dera nada. . .

5
IMERSO na solidão,
o lavrador apoioose no instrumento rude de revolver a terra, e, fitando o
poente ensanguentado, banhou-se das últimas rajadas luminosas do entardecer.
Em derredor,
tudo se cobria do mistério da noite penetrante.
Fitando as árvores longe,
os pássaros a cortar o ar, a noite bocejando trevas,
mergulhou em meditação o rude filho da terra. . .
Com olhos banhados de sorrisos,
recordava as quantas vezes ouvira, deslumbrado,
Gurus (15) errantes e Sadus (16) pregadores.
E quantas vezes retornara ao lar, preso a inquietude e desolação? Interrogava a si
mesmo.
A meditação — afirmavam todos — é um tesouro raro, que somente se consegue
com luta e dor.
E foi na meditação — recordava — enquanto lavrava o campo arroteando o solo, que
descera a si e entendera o que a linguagem de outras bocas não lhe pudera dizer.
Agora, aclimatado a solilóquios,
lutava contra si mesmo,
buscando vencer, repetindo na mente:
o inimigo maior não é o declarado, mas o oculto. . . o inimigo que se deve vencer não
é o de fora, mas o de dentro da alma; o feroz inimigo não deve ser odiado e
perseguido, mas amado e superado;
quando livre dos inimigos de dentro, ocultos no coração, o homem liberta-se dos
adversários de fora, porque aquele que se vence, o mundo inteiro vence. . .
Só então, aos lampejos das estrelas, voltou ao lar banhado de paz, para mergulhar
na vida!

6
COLHENDO flores, com mãos hábeis, oferece sorrisos às
hastes, trucidados por seus dedos ligeiros. . .
Afagando as flores cortadas, tecia uma "corbeille" de encantamentos. . .
E, espalhando olhares pelo canteiro, desnudo de suas belezas, permitia
sorrissem seus olhos meigos, que brincavam de júbilo, fitando a virgem de pedra,
que pretendia adorar. . .
Fez mais um ramilhete. . .
E, quando desejou coroar de flores a virgem preciosa, que não podia falar, a
donzela, ensimesmada, ajoelhou-se em oração.
Porém as flores felizes, entre as duas virgens, como se estivessem
emocionadas, dobraram-se para a ambas adornar.

15
(14) - Guru - Guia espiritual; mestre.
16
(15) - Sadu- Homem santo;asceta.
7
SANDANAN, o pregador itinerante, buscou a clareira da
floresta e fechou-se em meditaçpo.
Pandita Supryiá, ajoelhando-se a seus pés, murmurou jubilosa:
— Desejo servir-te, meu Mestre. Quero beber, na fonte de tua sabedoria,
todas as gotas de conhecimento para minha alma vazia.
Era no mês sagrado dos banhos e, lá em baixo, fluía o Ganges calmo, vestido de
peregrinos e festas.
Sandanan medita e fecha-se no seu eu, na clareira vertida de luz da floresta.
Pandita Supryiá volta a dizer:
— Senhor, Mestre meu, no silêncio de tua boca e na quietude de teu corpo,
encontrei o tesouro que me faltava. Toda quietude encerra mais sabedoria na boca
de um sarv to, do que toda a sabedoria gritada na boca de um desesperado. Tenho
agora tudo, Senhor, abençoa-me para partir. Irei em busca de meu povo, na aldeia
vestida de sol, e de ti a eles todos falarei.
0 santo homem abriu os olhos. Gotas de orvalho, filhas da noite, beijavam as
pétalas das flores. O Ganges, a correr, fechou o seu dorso em silêncio, e as vozes
das festas emudeceram na noite. Só uma réstia de luar impertinente ofereceu a
Pandita Supryiá a visão calma dos olhos de seu pastor.
Ergue-se Sandanan e, zagal itinerante, responde à discípula atenta:
— Tudo te dei: tesouros do mundo, em filosofias do meu exemplo. Mas algo
te falta. . .
— Dá-mo, então, Mestre! — grita Pandita Supryiá.
— Ninguém to pode dar. Só tu o poderás encontrar. Busca, antes, realizar
em ti a felicidade mínima de matar a ambição máxima, e serás feliz. Teus serão o
mundo, a sabedoria e a vida, porque já não desejarás algo possuir.
E, apoiando-se no cajado; o santo homem abandonou a clareira da floresta
banhada de luar, e partiu sem rumo, deixando Pandita Supryiá meditando, no lugar
onde o Mestre orara.

8
SANDIP, o narrador, com seu vulto esguio como uma cana
solitária, aconselhava, na praça, a roda inquieta de homens e mulheres, que o
envolviam em problemas.
Por isso, sua taça estava sempre cheia de palavras, que se derramavam a
qualquer apelo.
Pálido, da cor do feno, pregava a abstinência de prazeres, concitando à
pobreza, e o povo alimentava-o amorosamente, e qual uma primavera, a esperança
dos que muito sofrem nomeava-o de Benfeitor e Santo.
Sua mansa voz era qual balido de ovelha, embora os olhos ardentes falassem
alto a voz dominadora de forças poderosas.
Sorria pouco e muito chorava.
— Piedade pelos sofrimentos humanos! — afirmavam seus admiradores.
***
Tendo morrido o Marajó que lhe ouvia os conselhos, legou oo santo homem suas
terras e haveres.
A pobreza exultou, qual jardim cansado de verão, quando a chuva lhe entorna
cântaros cheios.
— Estaremos felizes! Sandip dividirá, certamente, os tesouros seus, como o
rio cheio se espraia generoso por terras distantes! — concordavam todos.
***
— A fortuna é uma bênção dos deuses, para multiplicar a felicidade dos seus
beneficiários — comunicava o honrado Sandip aos que lhe batiam à porta do
palácio, vergados de sofrimento, como o arco repuxado, prestes a dispara certeira
flecha.
E escondia-se, meditativo e farto, nos coxins veludosos e macios.
***
Palavra que canta pobreza, em boca pobre, e prega renúncia, em corpo
desnutrido e nu, precisa da ardência da riqueza e fogo de poder, para sentir o
espinho, no pé do conceito emitido.
Ninguém reclame contra a opulência dos ricos, em nome da miséria dos pobres.
Fite, antes, o espelho da própria vida, e aconselhe, em silêncio, sobre alparcas de
sacrifício voluntário, dando- se sempre.

9
QUANDO Simla Babade ia depositar o último lótus do inverno no altar de Siwa,
tremeu e chorou.
O ouro, reluzindo rio deus, e o silêncio, aprisionado nas colunas do Templo,
correram com brilho nos seus olhos e, com terrível quietude, nas suas fibras.
Tudo frio e morto, diante do altar e em torno do deus, e Simla Babade a
tremer, com o lótus vivo e perfumado na mão...
Era a derradeira flor da quadra, e a mais cobiçada do jardim.
O bafio do orgulho retido na cúpula gelada da igreja encheu-o de descrença, e a
vaidade esculpida em pedras ornadas magoou-lhe o coração.
Sem saber o que fazer, orou Simla Babade ao Deus sem templo, sem altar, nem
ouro. . .
... Ouviu o canto do zagal lá fora, olhou a natureza e, com muito carinho, nos
cabelos de uma criança prendeu seu último lótus de inverno.
E sorriu junto desse deus, filho do Grande Deus!
10
O coro calou a boca na Gurdvara, (17)e todos, ajoelhados no pó, murmuraram em
urdu o recitativo do Mestre,
Lá fora, o chicote violento da tempestade, encrespando as águas do rio sagrado,
uivava e gemia.
A noite, guardada no medo, desejava fugir em busca da manhã.
Eram o vento e o recitativo. . .
Na Gurdvara a lâmpada estava acesa, e a prece dos crentes ardia em todos os
lábios.
Ele, porém, não estava ali. . .
Hs * *
Na noite ululante, sob a miséria sua, amparando o filho, corria aquela mulher,
e, sob os quebrados galhos de uma árvore, que não ousava apontar os céus, se
guardou.
Ali, porém, Ele estava,
com a desdita e a desgraça. . .

11
QUANDO o príncipe Siddartha ( 18 )escutou a Voz de seu coração chamá-lo a
sofrer, rasgou as alegrias, e, vestido de profunda .compaixão, perdeu-se a meditar
em espessas florestas. ..
Vagou por caminhos nunca andados, povoou matas jamais habitadas e iluminou
terras nunca aclaradas. ..
Conversou com as árvores do bosque, e misturou lágrimas candentes a resinas
perfumadas. . . procurou murmurar carinhos a flores desdenhadas, e ergueu-as do
pó. .. acariciou feras e isolou-se com elas.
Caminhou, meditou, parou. . .
Chorou e sofreu. . .
$|c

Um dia, num grande monte, surgiu uma luz inatingível, e uma voz gloriosa, leve e
pura como um som de frauta, por sobre matas se espraiou, comovendo o mundo e
felicitando corações.
Multidões se ergueram, e rumando pelas encostas dos montes, pelas franjas dos
rios, foram amadas e curadas, consoladas e guardadas, quais avezinhas por mães
zelosas, e nunca mais ninguém sofreu. . .
Até hoje a luz inatingível ilumina e brilha, e Buda, chamando os homens, é a
felicidade em busca do Senhor!

17
(16) - Gurdvara - Igreja; lugar de oração.
18
(17) - Siddartha (Gautama).- Fundador do Budismo, também chamado “Buda”, o Iluminado.
12
GUNENDRA, meu filhinho, por que te foste para esse país sem nome,
desconhecido e bravio, sem tornares a mim?
Como árvore desfolhada, tenho rasgados e nus os braços, erguidos em súplica que
ninguém atende. . .
A primavera nunca mais aorriu junto ao meu seio, engrinaldando meus lábios com
miúdas flores de sorrisos breves; nem as aves cantaram na minha boca leves
murmúrios festivos, como nos dias do nosso mujlis, no lar aquecido pelo fogo do
amor reunido na lareira da amizade...
Velha, como um córrego que não mais encrespa as águas a dormirem num leito
construído, sofro e choro, clamo e espero, e tu não voltas!
Ó filhinho amado, olho minhas mãos rugosas e reoordo teus alvos dedos apontando
os céus, cobertos de carneiros de nuvens correndo no além, e novamente choro!. . #
Os olhos, sem luz quase, descortinam, na dança das sombras, ao escurecer, teu
vulto imberbe à porta da entrada na cabana onde vivo, e gritando corro para
abraçar-te. . .
E tu, filhinho, te diluis na bruma que se perde junto às canas de bambu do jardim,
e outra vez choro!. . .
E, quando à noite, fitando a luz das estrelas vestidas de encantamento para o baile
suntuoso do luar, meu espírito se desgarra e, voando, te procura, como estrangeiro
desvairado na terra onde te refugiaste desde há tanto, não te vê!
E choro ainda!. . .
Õ Gunendra, meu filho, volta, para cobrir, de clara e suave luz, a alma dobrada de
sofrer, como uma liana sacudida e sem amparo, desta tua pobre mãe que te não
pode esquecer nunca!
Vem, desse país sem nome, desconhecido e bravio, filhinho! Vem para mim, e
contigo leva-me também. .
Desejo partir, seguindo a teu lado, meu filho. . .
Oh! vem!...

13
VEJO luz, ao longe, tremendo e apagando, no silêncio da escuridão, falando com a
noite. . .
Deve ser algum viandante retardatário nos caminhos, sacudindo sua lanterna.
A luz vermelha do archote tremente passa, derramando sombras no chão,
desenhando o fantasma do caminheiro noctívago, que segue veloz.
— Empresta-me tua frouxa luz, companheiro! — rogo-lhe ao passar nos limites
de minha porta. Vê como está sombria a casa que habito, e como a noite cobriu de
crepe a janela, que está tão triste, sem pedaços de luz que lhe deslizem pelo
buraco quadrado ,caindo e beijando a folha vaidosa do jardim!.. .
— Não posso!
— Entra em minha casa, e pinta-lhe o piso e a polha do teto, com essa luz
valiosa que carregas nas mães, amigo! — suplico-lhe.
— Não tenho tempo!
— Canta, então, a melodia da noite, à entrada de minha casa, para que o
silêncio se quebre com zoada, e a quietude fuja em desabalada correria! — insisto.
— Não me importo contigo!
— Deixa-me, por favor, retirar a poeira dos teus pés cansados, meu primo! —
ajoelho-me resignado.
— Agradeço-te, desconhecido.
***
Já não vejo luz no caminho, e tudo é noite.
Deito-me em esteira, e mastigo frutos, sob constelações divinas, lá de longe. . .
E, no meu meditar, vejo caírem estrelas, no meu jardim, para brincar com as folhas
e flores vaidosas, quase no chão.
Escuto uma voz, como som de frauta prateada:
— Vem brincar comigo, meu irmão!
É uma estrela, ornando minha casa vazia com gotas de luar...

14
SORRINDO, o jardim enfeitava-se de flores coloridas, e a relva verdejante,
debruçada sobre o regato ligeiro, tentava abraçá-lo com humildade.
Junto a grotesca pedra, jovem mulher ajoelhada ora, e enfeita o altar de seu
deus.
Sanakan, discípulo de Siddartha, passando perto, indaga sereno:
— Que fazes, abençoada mulher?
— Adoro o meu deus, cobrindo-lhe os pés, de flores. — Pobrezinha! Como podes
crer que o teu deus, ante um templo ajardinado, povoado de vivas flores, possa
receber a oferta morta, que teus irrequietos dedos lhe expõem? — Assim me
ensinaram a honrar o deus.
Vem comigo, diz Sanakan, e torna-te oferta viva, ajudando a dor em teu
caminho. Far-te-ás, assim, templo do teu deus, que abandonará o mundo para viver
contigo.

15
BALOUÇANTES, as anémonas compunham um bailado mágico sobre o verdor des
folhas e sob as mãos carinhosas do vento
Zumbindo, miríades de pequeninos seres cantavam a madrugada de perfumes.
O pobre sadu, porém, contempla a festa da vida e caminha .
A vara que o arrima corta-lhe a mão cansada, e, sem amparo nos pés, chagas
antigas deixam ósculos escuros nas pedras da estrada.
Caminha sem cansaço, avança com dor.
Vencendo todas as suas alegrias, fez-se a alegria de todos.
Fitando a festa da Natureza, exalta a Natureza da festa, que leva consigo, na
pobreza e na dor, júbilos seus, de carregar para o mundo a Mensagem Perfeita:
RETIDÃO!...

16
AMAVA a verdade e a queria para si, devorado por insopitável anseio.
Quando criança, escutou a voz do pastor conclamando o povo à luta sem
tréguas.
— Ofereço-me para a batalha do amor sem repouso — disse cheio de
mocidade.
— £ cedo — respondeu o enviado do General Desconhecido.
E o jovem, chorando, entregou-se a profunda mágoa. * * *
Quando a força desatou os nós dos músculos engelhados e o licor da saúde se
derramava da ânfora da maturidade dos anos, o discípulo foi convocado para a
batalha.
— Não posso — retrucou o jovem —, estou muito ocupado. Ficará para depois.
O missionário solitário se retirou.. .
***
A velhice começava a derramar flocos de algodão e desengano no ambicioso
procurador da verdade quando rogou ao mensageiro do Rei Desconhecido, guarida
e repouso entre os combatentes condecorados.
— Não posso agora — respondeu o caminhante — estou ocupado com aqueles
que me atenderam ontem.
E prosseguiu, deixando aflito, o velho a meditar.

17
TRAZIA tudo para ser asceta, afirmando que desprezava avida, em busca da
Vida.
A família esquecida chorava sua falta, na dor e no frio, como a noite triste, em
agasto, soluça inquieta, com saudade das claras manhãs primaveris.
Procurava entregar-se a Deus, cavalgando impiedoso o corpo, chicoteado pelo
desprezo.
E dizia fazê-lo em nome do amor!
Como cana de bambu carcomida, tombou, mais tarde, ao guante da miséria.
Descobriu, porém, nos caminhos além do túmulo, que o seu ascetismo fora
condenável suicídio, nas águas venenosas da covardia egoísta.
Desencantado e trôpego, retornou sedento ao caminho da vida, procurando
aflito o amor para a Vida.

18
APOIADA à cornija do pátio, onde fitava o céu, o coração saudoso, em brumoso
crepúsculo, deixou-se abater.
Os dentes alvos de estrelas brilhantes, e as pálidas rajadas da lua por entre
nuvens, desceram à desdita do coração, onde a agonia fizera seu cerco e, ao
Nirvana, (19) um anjo de luz conduziu a mulher enlutada.
No jardim das delícias, à alfombra de celestes musas, deu-se o encontro dos
amores dilacerados pela distância.
— Não acredites, em tua dor, que estejamos longe. . . Meu espírito canta as
melodias do amor, e derrama, na tua saudosa agonia, o perfume de afetos que não
cansam! — murmurou ó amado, antes ausente.
— Sigo a sós, sem esperança — respondeu a alma. Que será de mim?
— Nunca estamos sós quando amamos. . . Como raízes na madre da terra,
estamos entrelaçados pelo tempo... Contempla o céu.. . Respira o ar.. . Escuta a
melodia da Natureza.. . Confia no amor que não cessa. . . Canta a esperança, na
ausência breve, e apercebe-te de que a vida, na morte, nada mais é que nuança
nova, em início de.alvorada sem fim. . .
. . . E a alma, extasiada, que reclinara no amor, como um perfume em corola
delicada, despertou na noite fria, aos abraços do vento, para continuar a viver!

19
CASCATAS de luz se despedaçam sobre a cabeça da virgem em oração/
adornando-a de claridades diamantinas.
A face emoldurada expressa o colóquio com o Ouvinte Atencioso num silêncio
que grita vibrações mais fortes do que os sons dos braceletes da bailarina
sagrada.
Os ouvidos do Zagal Divino registam a voz do coração mergulhado na confiança
plena e o Glorioso retribui a súplica com as fulgurações célicas com que veste a
crente.
Mistérios da confiança virginal e insondáveis segredos do Buscado Inatingido!.
..

1 8 ) - Nirvana - Estado de felicide interna total, pela ausência de desejos e pelo . desapego de tudo, inclusive
19

do próprio eu, somada à unificação absoluta com Deus.


20
PEQUENINO, saltitava ao amparo de u'a muleta. Aproximou-se da Luz.
Banhado de claridade interior, e vestido de saúde, tornou ao caminho. . . e
perdeu-se na dissolução da invigi- lância, já adulto.
***
Pregava o amor e deixava lágrimas copiosas banharem os conceitos brilhantes.
Incompreendido pelos ouvintes, odiou o mundo até a morte...
***
•— Quem tiver reclamação, apresente-a, e estou pronto a escutar!
— Fui maltratado! — clamou um servo em pranto, — por vossas
próprias mãos, Senhor.
— Como ousas chamar-me de injusto, se vens a busca de auxílio?
***
— Tem coragem na dor, ó companheiro doente!... — aconselhava
sempre.
— Como Brama pode ser tão cruel comigo, presen- teando-me com
essa pertinaz enfermidade?! — murmurava no leito, adoentado.
***
— Vem comigo, irmão, e ajuda-me a construir meu lar.
Obrigado, amigo, pelo auxílio que me deste até aqui: ajudar-te-ei, companheiro,
na tua adversidade.
Passam os dias.. .
— Quem me incomoda no reduto doméstico a estas horas, batendo-me
à porta ?
— O irmão que ontem te ajudou, o amigo a quem agradeceste, o
companheiro a quem prometeste socorro. .. Venho à cata de ajuda, agora que
necessito de ti.
— Não vos conheço!
— Mas prometeste ajudar-me!
— Sim, porém ontem. . . — e não abriu a porta.
***
Imprecando contra as leis, ensinava à turba rebeldia e violência, como
tempestade desvairada em arbustos frágeis.
No lar, era algoz da esposa e implacável senhor dos servos.
— Ajuda o companheiro — falava arrebatado —. Mesmo com sacrifício
— arrematava — é teu irmão!
— Dá-me de beber: tenho sede!
— Não posso! A água que tenho é só para mim e para os meus!. ..
***
Sonhova com os constelações fulgurantes e se acreditava herdeiro do Senhor.
Caminhava nas trilhas empoeiradas e sentiase verme a rastejar.
Desdenhava o solo por onde seguia e buscava o Senhor aonde não podia ir.
No entanto, das estrelas distantes Deus o fitava enternecido ao tempo em que
o seguia junto aos vermes do caminho.
***
Tomou a rosa em mãos nervosas e se empolgou com a majestosa tessitura das
pétalas perfumadas.
Encontrando-a morta, depois, atirou-a fora com desdém.
Pobre visão! Exalta a vida à véspera da morte e desdenha a vida na fermentação
da morte.
***
Enquanto pisava os tapetes e se adornava de jóias a pobre criatura triunfava na
Corte.
Quando se despiu de tudo e vestiu a verdade foi despejada dos aposentos da
ilusão pelas mesmas mãos que antes lhe trançavam os negros cabelos..
Sem adoradores, porém, encontrou a ventura, e, mensageira da Divina Corte
vestiu-se de luz, clareando a noite dos amigos que a abandonaram.

21
TUDO era belo, no dia em que Ele me veio buscar!
A manhã sorria uma gargalhada de luz e um vento leve sussurrava entre folhas,
todas as inaudíveis sinfonias da Natureza branda...
Aves gárrulas cantavam no roseiral, e o vento, acarinhando o trigal maduro, lá
longe, arrancava uma poeira de ouro, que ia fecundar outra vida mais longe. ..
Cascatas líquidas compunham harpejos de beleza multicolores, e raios filtrados
por um ar balsâmico pareciam dardos sublimes que se cravavam nas folhas
verdejantes das violetas miúdas.
As flores mais perfumadas se arrebentavam em guirlandas
coloridas, que o vento suave desfolhava...
Apoiado na janela outonal de minha vida, somente eu chorava...
Os olhos pejados de lágrimas, como uvas cansadas de vinho, a alma embrulhada em
dores, como a terra vestida de capim. .. o peito doído como um solo sulcado, e uma
tempestade rugindo no coração, como um trovão descendo as escadas dos céus,
empurrado por Deus...
E Ele chegou!
Leve como um aroma e bom como um favo de mel...
Não disse nada.
Qualquer palavra rebentaria a harmonia que cantava muda
no sussurrar de todas as vozes quietas...
Olhou-me, e duas réstias de dor saíram dos Seus, e nos meus
olhos se cravaram...
Aquele rosto pálido, como uma folha de feno amadurecida,
se apresentou tão triste, como um céu que chora noite, ou
como uma criança que sorri na dor!
E eu O vi, e me ergui e O segui!
Minha outonal janela de dor se arrebentou num ocaso
triste...
E uma primavera de luz rosada como um rosto de criança
feliz, se entreabriu de esperanças no caminho de minha
vida!

Vous aimerez peut-être aussi