Vous êtes sur la page 1sur 133

O discurso do extracénico: quadros de guerra em Eurípides

Autor(es): Carmen, Isabel Leal Soares


Publicado por: Colibri
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/2327
persistente:
Accessed : 18-May-2019 03:51:09

A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis,
UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e
Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de


acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s)
documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença.

Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s)
título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do
respetivo autor ou editor da obra.

Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito
de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste
documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por
este aviso.

pombalina.uc.pt
digitalis.uc.pt
Carmen Isabel Leal Soares

o Discurso do Extracénico
Quadros de Guerra em Eurípides

Edições Colibri

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
(Página deixada propositadamente em branco)
o DISCURSO DO EXTRACÉNICO
QUADROS DE GUERRA EM EURÍPIDES
Colecção: ESTUDOS 16- TORGAL, Luís Reis et alii-Ideologia,
Cultura e Mentalidade no Estado Novo -
Ensaios sobre a Universidade de Coimbra,
Livros Publicados: Coimbra, 1992.
17 - SEABRA, Jorge et alii - O CADC de
1- SCHEIDL, Ludwig-A Viena de 1900: Coimbra. A democracia cristã e os inícios do
Schnitzler, Hotmannsthal, Musil, Kafka, Estado Novo: /905-1934: uma abordagem a
Coimbra, 1985 (esgotado). pw1ir dos Estudos Sociais, Coimbra, 1993.
2- RIBEIRO, António Sousa et alii - A literatura, 18 - ANACLETO, Marta Teixeira - Aspectos da
sujeito e a história. 5 estudos sobre literatura Recepçüo de 'Los siete libros de la Diana'
alemã contemporânea, Coimbra, 1996 em França, Coimbra, 1994.
(esgotado). 19 - MARNOTO, Rita - A Arcadia de Sannaza/'()
3- BURKERT, Walter-Mito e mitologia, e o Bucolismo, Coimbra, 1995.
Coimbra, 1986 (esgotado). 20 - PONTES, 1. M. da Cruz - O Pintor Antônio
4- GUIMARÃES, Carlos e Ribeiro Fen-eira - Cameiro no Património da Universidade de
Filoctetes em Sófócles e em Heiner Miilter, Coimbra, Coimbra, 1997.
Coimbra, 1977 (esgotado). 21 -SANTOS, João Marinho dos - E~tildos
5- FERREIRA, José Ribeiro - Aspectos da sobre os Descobrimentos e a Expansüo
del11ocraciagrega, Coimbra, 1988 (esgotado). Portuguesa, Coimbra, 1998.
6- ROQUE, João LoUl-enço-A poplllaçüo da 22- LEÃO, Delfim Fen-eira-As Ironias da
freguesia da Sé de Coimbra 1820-1849, Fol1Lma - Sátira e Moralidade no Satyricon
Coimbra, 1988. de Petrôllio, Coimbra, 1998.
7- FERREIRA, José Ribeiro - Da Atenas do séc. 23 - SILVA, Maria de Fátima Sousa e (coord.)-
VII a. C. às Reformas de SóloH, Coimbra, 1988. RepresentaçiJes de Teatro Clássico no
8- SCHEIDL, Ludwig - A poesia política alemll P0/11lgal Contemporâneo, Lisboa, 1998.
no período da Revoluçüo de Março de / 848, 24 - MARQUES, Maria Alegria Femandes-
Coimbra, 1989. Estudos sobre a Ordem de Cister em Portu-
9- ANACLETO, Regina-O artista conim- gal, Coimbra, 1998
bricense Miguel Costa (1859-19/4), Coimbra, 25- SCHEIDL, Ludwig-Mitos e Figuras
1989. Clássicas riO Teatro Alemüo - do Século
10 - CRAVIDÃO, Fernanda Delgado - Residência XVI/I à Actualidade, Lisboa, 1998.
secundária e espaço mral. Duas aldeias na 26- BRANDÃO, José Luís Lopes-Da Quod
Serra da Lousã Casal Novo e Talasnal, Coim- Amem - Amor e Amargor na Poesia de
bra, 1989. Marcial, Lisboa, 1998.
11 - SOUSA, Maria Armanda Almeida e, 27 - CARDOSO, João Nuno Paixão Corrêa -
VENTURA, Zélia de Sampaio - Damiüo Sociolinguística Rural - A Freguesia de
Peres. Biobibliografia analítica (/889-/976), Almalaguês, Lisboa, 1998.
Coimbra, 1989. 28 - SOARES, Carmen Isabel Leal - O DiscumJ
12- JORDÃO, Francisco Vieira - Mística e do Extracénico - Quadros de Guerra em
Filosofia. O 1tinerário de Teresa de Ávila, Eur&Jides, Lisboa, 1999.
Coimbra, 1990. 29 - MONTEIRO, João Gouveia - Os Castelos
13 - FERREIRA, José Ribeiro - Participaçc70 e Portugueses dos Finais da Indade Média -
Poder na Democracia Grega, Coimbra, 1990. presença, pel.1il, conselvaçüo, vigilância e
14- SILVA, Maria de Fátima Sousa e OLIVEIRA, comando, Lisboa, 1999.
Francisco de - O Teat/'() de Aristófànes, 30 - SCHEIDL, Ludwig - Dez Anos Apôs a
Coimbra, 1991. Queda do Muro: A Unificaçüo Alel1/ü no
15 - CATROGA, Fernando - O Republicanismo Contexto Europeu, Lisboa, 1999.
em Portugal. Da Fonnaçüo ao 5 de Outubro
de /9/ O, Coimbra, 1992.
Carmen Isabel Leal Soares

o DISCURSO DO EXTRACÉNICO
QUADROS DE GUERRA EM EURÍPIDES

Edições Colibri

*
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Biblioteca Nacional- Catalogação na Publicação

Soares, Carmen Isabel Leal, 1970-

o discurso do extracénico: quadros de guerra em


Eurípides. - (Estudos da Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Coimbra; 28)
ISBN 972-772-085-4

CDU 821.14'02 Eurípedes.09(042.3)

Título: O Discurso do Extracénico


Quadros de Guerra em Eurípides

Autor: Carmen Isabel Leal Soares

Editor: Fernando Mão de Ferro

Capa: Ricardo Moita

Depósito legal n.o 138877/99

Tiragem: 1000 exemplares

Edições Colibri, Lisboa, Setembro de 1999


ÍNDICE

NOTA PRÉVIA.. .......... ......... ..... ...... ... ....... ......... ........................... ........ . 7

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES .. .. .. .. ...... .. .......... .... ............ ...... .... 11

INTRODUÇÃO ..... ............. ....... ............ .. .... ..... ....... .............. ... .. .. ...... ..... 13
Poética da tragédia grega: didacticismo e hedonismo.. .. ............ . 13
Tragédia grega: narrativa em fOlma dramática .......................... .. 19
A descrição: algumas considerações .......... .... .............. .. .. .. .. .. ...... 21
A descrição de um exército.. .......... .......... .......... .. .............. ........... 23

I - A MULHER E O FASCÍNIO DO ESPECTÁCULO BÉLICO 27


A sedução e o temor inspirados por um exército em marcha
(Fenícias 88-201) .. .... ........................................ .. ............ .... .. .. . 29
• Aproveitamento trágico da teichoskopia homérica ...... .. .. 30
• Fenícias 88-201............ .... .............. .. .......................... .. ....... 34
O ócio dos guerreiros (lfigénia em Áulide, 171-230) .................. 46

II - OBSERVAÇÃO DO EXÉRCITO PELA COMUNIDADE


GUERREIRA. ... .. ... .. .. ........ ... ......... .... .. ... .... ... ........ ..................... .. 55
A - Acampamento e preparativos para o combate............... 55
• Heraclidas 389-409 .. .. .............. .. ...... .. .... .. .. ........ .. . 56
• Heraclidas 667-79 .... .. .. ...... .. ...................... .... ...... . 61
B - O choque de falanges no relato dos mensageiros .... .... .. 63
Estatuto diegético e discursivo da figura
do Mensageiro ....... ... .... ......... ....... ......... ..... ..... ..... ........ ... 63
6 Carmen Isabel Leal Soares

A fala do Mensageiro ..... .. .................................. .... .. .... ... 65


Heraclidas 799-866 .. .. .. .. ................. .... .. .. .. .. .................... 69
Suplicantes 650-730 .... .. .................................................. 76
Ataque dos Sete contra Tebas (Fenícias 1090-1199) ... 83
Duelo fratricida e batalha final (Fenícias 1217-63
e 1356-1479) ...................................... .. ........................ .... 97
Preparativos para o duelo (1217-63) ................... 98
Duelo (1356-1424) .... .. .. ...................................... 103
Morte dos irmãos e suicídio de Jocasta
(1427-59)...... ................ ............ .... .. .. ...... .... .. ....... 107
Confronto dos exércitos (1460-79) .................... . 109

III - COMBATES IMPROVISADOS: ADES-CONSTRUÇÃO


DO MODELO ÉPICO ...... ............................................................ 113
Helena 1526-1618 .......................................... .. ...... .. .......... .. .. ....... 115
Orestes 1474-89 .................................................... .. ...... .. .. .......... ... 118

BIBLIOGRAFIA ................. ..... ............ ... .. ... .. ............................. .. ......... . 121


NOTA PRÉVIA

Remonta à licenciatura, mais exactamente às aulas sobre épica de


Literatura Grega II, o gérmen ainda impreciso do meu entusiasmo pela
descrição de um exército. Alheia aos comentários pouco elogiosos dos
anciãos de Tróia, Helena aceita o convite de Príamo e, abeirando-se das
muralhas da cidade, comenta a progressão do exército grego, nas figuras
distintas dos seus chefes. O porte da controversa filha de Zeus, a riqueza
pictórica e o potencial emotivo do quadro imprimiram na minha persona-
lidade de ouvinte e espectadora, in mente, a marca do fascínio. O que me
seduziu no artifício narrativo que é a teichoskopia foi a sua concepção e
entendimento como jogo de cumplicidade entre o emissor e o receptor.
Há uma personagem que com o olhar e o raciocínio filtra a paisagem
humana que a circunda; há outra (que é também o próprio ouvinte extra-
diegético) que lhe capta as observações e as aprecia.

Já no decurso do mestrado, a leitura completa das obras de Eurípides


veio confirmar o meu entusiasmo. A cena de Antígona e do Pedagogo
sobre as muralhas de Tebas deu o contributo definitivo para o desabro-
char pleno deste projecto de investigação. A situação, reformando-se, era
a mesma: uma voz feminina, uma planície rebrilhante de guen'eiros, um
público. No teatro a teichoskopia atingia a sua plenitude. Ao mesmo
tempo que se revelava pelos olhos de outrem, o extracénico facultava a
pluralidade de vivências que, por condição, lhe é intrínseca. Então o
âmbito de interesse alargou-se a todas as descrições do exército na obra
euripidiana. Desde logo a importância do tema da guerra na produção do
tragediógrafo pareceu-me sugestiva da oportunidade de um estudo con-
junto das representações das massas guerreiras.
A descrição do exército sem dúvida que a tragédia já a conhecia
antes de Eurípides, sobretudo através de Ésquilo, que a comédia aristofâ-
nica imortalizou como o poeta do 'drama cheio de Ares' (As Rãs, 1021).
Com a mestria de um artista pleno e a sensibilidade do homem que viveu
o período conturbado da Guerra do Peloponeso, o dramaturgo procura
oferecer ao público uma visão globalizante da presença e actuação de um
exército.
8 Carmen Isabel Leal Soares

Não sendo, no entanto, um dos principais motivos da produção euri-


pidiana, a frequência com que o poeta reCOlTe a quadros do exército e a
importância que esse corpo de homens armados adquire no seio da histó-
ria conferem-lhe um realce efectivo. Assim, de entre seis das peças que
do tragediógrafo até nós chegaram (Hemclidas, Suplicantes, Helena,
Fenícias, Orestes, (figénia em Áulide) são onze os passos em que o des-
creve.

Não é intuito do presente trabalho retomar questões de táctica mili-


tar, já abordadas por estudiosos para o efeito sobejamente credenciados .
Pretendemos sim fazer um estudo literário que permita avaliar em que
medida o poeta mantém e varia a apresentação discursiva desses quadros.

o estudo que agora se apresenta corresponde, com alguns ajustes, à


minha tese de mestrado, "A descrição do exército em Eurípides (proces-
sos discursivos)", apresentada à Faculdade de Letras em 1996. Preten-
dendo colocá-lo ao dispor de um público interessado, mas eventualmente
desconhecedor do texto grego, abundante nessa versão académica, apro-
veitei a oportunidade de publicar na Colecção Estudos desta Faculdade
para fazer uma revisão, que passou sobretudo pela substituição dos passos
originais por traduções I .

o presente opúsculo não teria, porém, sido possível sem o prestável


contributo de todos quantos me dispensaram o seu saber, atenção ou sim-
ples palavra amiga.
À Senhora Prof. Doutora Maria Helena da Rocha Pereira quero
agradecer não só as orientações e preciosos conselhos prestados - sem os
quais muitas das dificuldades teriam permanecido -, mas ainda a gentile-
za do empréstimo de diversos títulos bibliográficos, indisponíveis ou ine-
xistentes nos fundos consultados.
À Senhora Prof. Doutora Maria de Fátima Silva, que encorajou deci-
sivamente algumas hesitações, o meu sincero agradecimento.
Ao Senhor Prof. Doutor José Ribeiro FelTeira aqui fica a minha gra-
tidão pela presteza com que pôs ao meu dispor alguns livros, sem esque-
cer o ânimo dos seus incentivos.
Uma palavra também para os amigos que prontamente recolheram
no estrangeiro alguma bibliografia essencial. Aos professores e funcioná-

I Destinados a leitores mais especializados são os artigos que temos vindo a publicar
desde 1996 na revista Humanitas , também eles correspondentes a fascículos da tese de
mestrado.
o Discurso do Extracénico 9

rias do Instituto de Estudos Clássicos, pelo estimulante ambiente de tra-


balho e simpatia pessoais, fico também muito reconhecida.
Finalmente não poderia encerrar estas palavras de abertura sem tes-
temunhar o meu afecto por quem mais partilhou das alegrias e desalentos
desta investigação, o meu marido e os meus filhos.
(Página deixada propositadamente em branco)
OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

A edição utilizada para citação das tragédias de Eurípides foi a de


1. DIGGLE, Euripidis Fabulae I-III (Oxford 1984-94).
No que se refere às publicações periódicas, as siglas adoptadas são
as de L' année philologique.
(Página deixada propositadamente em branco)
INTRODUÇÃO

Poética da tragédia grega: didacticismo e hedonismo


Eurípides ... revela-se o mais trágico dos poetas: é nestes termos que
a voz, muitas vezes dissonante, de Aristóteles se refere ao tragediógrafo
(Poética 1453a 29 sq.)l. Esse louvor significa que o dramaturgo se ajus-
tava à poética trágica. Comecemos, portanto, por indagar quais os pres-
supostos e as expectativas que a enformam.
Antes de mais convém esclarecer que, à luz da poética do Estagirita,
a poesia tem como característica comum aos vários subgéneros (a epo-

I Pelo inventário dos passos em que, na sua Poética, Aristóteles se refere expressamente
às tragédias euripidianas ou ao próprio dramaturgo, reconhece-se que o poeta não era
um dos seus preferidos. Critica a falta de economia das suas peças (l453a 29), o trata-
mento desajustado que dá ao carácter de algumas das personagens (a vileza de carácter e
maldade de Menelau no Orestes, 1454a 28 sq. e 1461b 21; a incoerência psicológica da
lfigénia de ijigénia em Áulide, 1454a 31-2; a irracionalidade de Egeu na Medeia, 1461 b
20 sq.), a inoperância de algumas das suas intervenções (discurso de Melanipa, 1454a
31), a utilização do deus ex machina na Medeia (1454a 37-b2), o aniquilamento da
função de actor que o coro desempenhava nas peças de Sófocles (l456a 25-7) e a
preferência por termos correntes a eruditos (1458b 19-22). Quando considera o "reco-
nhecimento" e o relacionamento deste com a acção, o Estagirita revela-se, porém,
menos linear na sua rejeição. Se começa por admitir que o reconhecimento tem que ser
feito por ambas as partes (como é o caso de ijigénia entre os Tauros, 1452b 38), acaba
por censurar a forma como ele é apresentado para Orestes (uma vez que ele não se
baseia em sinais exteriores, 1454 b 31-5) e aplaudir a maneira como ele reconhece a
irmã (apontando-a como o melhor tipo desta cena, de todas a melhor anagnórise, 1455a
17-21). Da relação que o conceito de erro (á[.wpTla) tem com o reconhecimento e a
acção, o autor considera, uma vez que Mérope não executa o filho porque o reconhece
antes, Cresfonte um dos melhores exemplos do tratamento dado pelo poeta ao mito
(I 454a 4-7). O mesmo louvor cabe ainda a ijigénia entre os Tauros (ibidem), mas con-
sequentemente parece excluído de Medeia (cuja protagonista mata os filhos consciente
do seu acto, 1453b 28-30). À história geral da peça, herdada da tradição, o poeta acres-
centa ideias novas, os episódios (o modelo apresentado é o da loucura de Orestes em
lfigénia entre os Tauros, 1455b 2-15). Como paradigmas de tragédias de carácter, temos
uma vez mais um exemplo colhido em Eurípides: Peleu (título comum a peças de Sófo-
cles e Eurípides). Dignos de relevo são também a limitação dada pelo poeta aos temas
das suas obras (1456a 16-8) e o desenlace triste das mesmas (1453b 23-30). A estas
evidências textuais acrescente-se o facto de a própria insistência com que o nosso
dramaturgo é tomado por base de reflexão ser já por si um louvor.
14 Carmen Isabel Leal Soares

peia, a tragédia, a comédia e o ditirambo) o seu carácter mimético, pois


acontece que todas essas formas são, de um modo geral, imitações
(mimeseis, Poética 1447a 15 sq.). Através desse método do verosímil, o
poeta pretende despertar uma reacção no seu receptor, o público-leitOl-2 .
Circunscrevendo-nos à área da nossa reflexão, a poética dramática, note-
-se que essa reacção do auditório ao drama deve ser emotiva, residindo
nas acções o principal meio de a motivar: Mas, quando é preciso o poeta
proporcionar, por meio da imitação, o prazer (hedonê) decorrente da
compaixão (éleos) e do medo (phobos), é evidente que estes dois estados
resultam das acções (Poética 1453b 11-14). Com esta concepção prag-
mática da natureza da produção poética, não pretendia o autor, nem pre-
tendemos nós, como procuraremos demonstrar, fazer a apologia de uma
exclusividade da função emotiva em detrimento do valor didáctico (cog-
nitivo) da obra trágica3 .
Impõe-se, desde já, observar que o relevo dado à função hedonista
da poesia e do canto, dela inseparável, remonta à tradição da literatura
grega mais recuada. Em Hesíodo a produção poética tem como uma das
suas mais importantes funções ajudar o homem a esquecer os seus pro-
blemas: De facto, se alguém, acolhendo uma dor na sua alma, recém-
-experimentada no sofrimento, se deixa consumir pela angústia do seu
coração, pois então que um aedo, servo das Musas, celebre em verso os
feitos gloriosos dos homens do passado e dos deuses bem aventurados
que habitam o Olimpo; imediatamente aquele esquece o seu padecimento
e de nenhum dos seus cuidados se recorda; rápido lhe mudaram o espí-

2 A noção de que o poeta produz para um público, pelo qual se deixa guiar e de acordo
com os desejos de quem compõe, vem teorizada na próplia Poética (l453a 33-5). Mas a
primeira grande refl exão teórica sobre a interacção dramaturgo-espectador figura já em
um autor anterior. O frag. 23 D.-K. de Górgias dá conta do jogo de ficção (aTTáTT]) com
que pactuam o poeta, como autor do engano, e o espectador, que exibe sabedoria em
deixar-se enganar (ó aTTuTT]9ElS" ao<pWTEpoS"). Sobre esta questão cf. T. G. Rosenmeyer,
"Gorgias, Aeschylus, and Apate", AJPh 76 (1955) 225-60, especialmente 225-42, e
O. Taplin, Greek tragedy in action (Berkeley 1978) 166-71.
3 Discordando do entendimento marcadamente hedonista que M . Heath, em The poetics
of Greek tragedy (London 1987), faz da poética da tragédia, partilhamos da opinião de
N. T. Croally quando afinna: "Heath, no entanto, comete o erro de supor que o prazer
de assistir a um drama e as emoções que ele desperta impedem a possibilidade de nelas
residir qualquer apreciação intelectual da tragédia ( ... ) não há qualquer razão para que o
prazer e o conhecimento sejam mutuamente exclusivos" (Euripidean polemic. The
Trojan Women and the function of tragedy, Cambridge 1994, 23). Já mesmo antes de
Croally, a voz autorizada de S. Halliwell se erguera em defesa de que a proposta da
poética aristotélica entende o prazer estético da tragédia como um processo cognitivo e
didáctico -o que o autor designa por "a process of understanding and learning" (Aristo -
tle's poetics: a study ofphilosophical criticism, London, 1986,64; vd., sobre o "prazer",
especialmente 62-81). Cf. ainda O. Taplin, op. cit., 169.
o Discurso do Extracénico 15

rito as dádivas dos deuses (Teogonia 98-103). Embora de teor predomi-


nantemente trágico, as narrativas dos aedos homéricos despertam prazer e
satisfação entre os ouvintes. Mas, como propõe também Hesíodo, a
temática cantada não deve repOltar-se às vivências do auditório. Quando
toma como objecto de canto o infortúnio dos ouvintes ou entes deles que-
ridos, aqueles reagem emotivamente. Assim, desconhecendo a identidade
do hóspede estrangeiro do rei Alcínoo, Demódoco relata as desventuras
de Ulisses e deste modo despelta as lágrimas do Laértida (Odisseia 8. 83-
-92 e 521 sq.). Igual reacção tem Penélope em Ítaca, quando ouve Fémio
cantar o regresso funesto dos Aqueus (Odisseia 1. 337-64). Com a dife-
rença de esta ordenar ao aedo o cessar de tão penoso canto4 .
Também o carácter didáctico da poesia é um dado unanimemente
aceite. Mencionando apenas um exemplo dos muitos que a este propósito
podiam ser apontados, refira-se como o agôn das Rãs de Aristófanes
ficou como um testemunho literário do didacticismo da poesia e da tragé-
dia em particular. À frequência de formas do verbo oLoáCJKW ('ensinar')
ou seus compostos (1026, 1032, 1035, 1057, 1069, ... ), que aí encontra-
mos, sobrepõe-se uma expressão mais sublinhada do papel didáctico da
poesia. Perante os espectadores, discípulos dos poetas (964), estes apre-
sentam-se como seus professores (1054 sq.). À pergunta de Ésquilo: Por
que razão se deve admirar um poeta? (1008), Eurípides responde com
uma definição da utilidade do poeta na pólis: Pela inteligência e conse-
lhos, uma vez que tornamos os homens melhores cidadãos (1009sq.).
Como seu adversário nesta contenda literária, Ésquilo considera que a
produção euripidiana não preenche o requisito enunciado pelo oponente,
pelo que se intenoga: De que males não é ele responsável? (1078). É
também o venerando dramaturgo que faz remontar o didacticismo da
poesia às suas origens míticas com Orfeu e chegando a Museu e às famo-
sas produções de Hesíodo e Homero (1030-6)5 . Ou seja, o prazer
- enquanto emoção e resposta que é ao mundo - não pode ser entendido
como uma realidade acognitiva. Sublinhe-se que o prazer daquilo que se
vê (ou antevê, acrescentamos nós) deriva do estatuto mimético do objecto
e não da sua execução, cor ou razões de igual natureza (Poética 1448b
15-19). Nas artes miméticas não há prazeres exclusivamente sensuais,
pois até os que derivam directamente dos sentidos são mediados pelo seu
significado mimético.

4 Na sua reacção em favor do prosseguimento dessa histólia que lhe era dolorosa de
ouvir, Telémaco assemelha-se mais a Ulisses em idêntico contexto. Não esqueçamos ter
sido o náufrago a sugerir o tema de canto a Demódoco.
5 Contributos para uma reflexão mais aturada desta temática podem encontrar-se em E. E.
Sikes, The Greek vlew of poetry (London 1969, reimp.) I sqq. eM. F. S. Silva, Crítica
do teatro na comédia antiga (Coimbra 1987) 205-29.
16 Carmen Isabel Leal Soares

Uma primeira conclusão impõe-se: a tragédia é um género literário


regido por uma poética didáctico-hedonistaG.

Para um melhor entendimento do passo da Poética relativo aos


efeitos da tragédia nos espectadores, parece-nos aconselhável começar
por passar em revisão o conceito que de hedonê oferece o próprio Estagi-
rita. Dedica-lhe por inteiro o cap. 11 da sua Retórica7 . Por definição, o
"prazer" é um estado oposto ao "sofrimento" (ÀÚTTTj); caracteriza-se por
um celto movimento da alma e um regresso total dos sentidos à natureza
original (Retórica 1369b 33-35)8. A dor é um mal (KaKÓV), o prazer um
bem (à:yaeóv), Ética a Nicómaco 1153b 1-4. Se o "sofrimento" é o estado
contrário à hedonê, conclui-se que aquele seja necessariamente uma
situação oposta à natureza humana. Contrárias à natureza (cpÚCJLS) são a
imposição (~La) e a necessidade (àvaYKaLov), por isso com justeza se
afirma: tudo o que é imposto pela necessidade produz um estado de
sofrimento (Retórica 1370a 9-10)9. Esta regra invelte-se quando os actos
originados pela "imposição" ou pela "necessidade" são habituais, pois o
que é habitual é semelhante ao que é natural (idem 1370a 7, 12-14).
A hedonê não significa, por conseguinte, um sentir exclusivo do agradá-
vel. Além do mais, não experimentar o mal assume-se também como
uma forma de prazer (idem 1370b 7). Aliás a maior parte deste capítulo
dedica-a Aristóteles à análise pormenorizada dos vários tipos de prazeres
(idem 1370a 14 - 1372a 3). Assim a hedonê resulta da privação de sofri-
mento e de cuidados, do repouso, de que o sono é também uma variante,
dos divertimentos e de tudo aquilo que intimamente possamos desejar
(idem 1370a 14-16). Dentro do desenvolvimento dado aos desejos

6 Através da mimese poética obtém-se tanto prazer como conhecimento, e não um deles
em exclusivo. Pois, como resumem as palavras de N. T. Croally (op. cit., 33), "a
tragédia ensina, mas é igualmente uma experiência emocional e intelectual; fornece
conhecimento acerca do próprio, do outro, e suas construções; e ao fazê-lo dá prazer. De
uma maneira apropriadamente dionisíaca, por vezes proporciona o que é simultanea-
mente doloroso e agradável, mas que continua ainda a ser didáctico".
7 Trata deste conceito também em Ética a Nicómaco 7, 12-15 e lO, 1-5, de que referire-
mos, a título de comparação, eventuais divergências ou, como complemento, alguns
passos que se revelem interessantes para o nosso estudo. Embora nesta obra o autor
confira maior desenvolvimento à temática em análise, não nos parece, contudo, oferecer
informações que directamente se possam ligar à discussão dos fundamentos da poética
da tragédia.
8 Opinião contrária vem expressa em Ética a Nicómaco 1174a 16-19. A esta conclusão
chega-se pelo confronto da natureza imperfeita do movimento com a natureza perfeita
do prazer (idem 1174b 4 sq.). O prazer é um todo (idem 1174b 9-14).
9 A mesma ideia vem igualmente expressa mais adiante (Retórica 1372a 2 sq.).
o Discurso do Extracénico 17

(epithymiai) - subdivididos em irracionais 10 e racionais (idem 1370a 18-


-27) - destacamos três actos igualmente "agradáveis", a aprendizagem
(manthanein), o maravilhoso (thaumazein) e a imitação (mimetikón).
A imitação, pois é essa que nos interessa considerar, desperta prazer em três
das suas variantes artísticas: pintura, escultura e poesia (idem 1371b 4-8).
Consignando a nossa reflexão à tragédia, consideremos agora a defi-
nição aristotélica nesta matéria: Deste modo, uma tragédia é uma imita-
ção de uma acção de matéria elevada e completa, com uma certa exten-
são, apoiando-se num discurso (Poética 1449b 24-8) II . Para que a réplica
do público seja pronta e intensa é necessário que o unam ao mundo
figurado da cena sentimentos de sympatheia. A relação que se estabelece
entre o plano do fictício (o teatro) e o do real (o anfiteatro) é de "compro-
misso" ou "envolvimento". Espera-se que este reaja às emoções e expe-
riências das personagens e não que se identifique com elas. Se a hedonê
se define por contraste com o sofrimento, isto não significa, como vimos,
que não se possa obter o "prazer" por meio de emoções dolorosas 12 . De
facto, enunciados muito idênticos servem para definir medo e compaixão.
Confrontemo-los: o niedo é um sofrimento ou uma perturbação prove-
niente da imaginação capaz de provocar o mal, a destruição ou a dor
(Retórica 1382a 21-22); a compaixão é um sofrimento provocado pela
visão de um mal capaz de originar destruição ou dor em quem não as
merece (idem 1385b 13-14). Sendo ambos estados de dor, resultantes de
um mal capaz de provocar destruição ou sofrimento, o que difere é a con-
figuração que eles assumem. No caso do medo, trata-se de um distúrbio
da imaginação. Quanto à compaixão, é uma dor provocada pela visão de
um mal. Note-se, no entanto, que nem todos os males provocam medo ou
inspiram piedade. Só os que são tidos como próximos ou iminentes (idem
1382a 24-25 e 1385b 15-16).
O estímulo emotivo desejado deriva essencialmente da história
(mythos), isto é, do conjunto das acções realizadas (Poética 1450a 4-5) .
Além da fábula, há outras partes da tragédia às quais Aristóteles reconhe-
ce a legitimidade de originar prazer, os recursos cénicos e a música dos
passos líricos - pois, por causa delas, os prazeres tornam-se mais visíveis
(idem 1462a 15 sq.). Contudo, o autor não deixa de admitir uma maior

10 A sede e a fome, os desejos sensitivos - gustativos e tácteis - e os sentidos propriamente


ditos.
II Cf. também l452b 32 sq. Uma análise detalhada da interpretação das noções de medo e
piedade e do conceito "catarse" pode encontrar-se em D. W. Lucas, Aristotle. Poetics
(Oxford 1968) 273-90.
12 É uma ideia tradicional da Antiguidade clássica a de que a dor pode causar prazer
(cf. Ilíada 23. 98).
18 Carmen Isabel Leal Soares

importância ao arranjo dos acontecimentos face ao espectáculo propria-


mente dito, 'aquilo que se vê', por considerar que é através desse que o
autor de boa poesia deve despertar o phobos e o éleos entre o público
(idem 1453b 1 sqq.). Como notou Halliwell, a desvalorização do trabalho
de cenografia em favor do enredo é já um reflexo do domínio do intelec-
tual sobre o estritamente sensoriaJl3. Dentro dessa mesma linha, vem a
importância dada no teatro à linguagem, um instlUmento sedutor ao ser-
viço da mimese trágica. O discurso capaz de suscitar o prazer caracteriza-
-se pela posse de ritmo (rythmos), harmonia e canto (meios), idem 1449b
28-30. Os recitais individualizam-se dos passos líricos pela presença
exclusiva, naqueles, do metro e, nestes, da sua associação ao canto.

Após estas reflexões podemos inferir que tornar atractiva a sua pro-
dução exige do poeta uma releitura do mito e uma diversificação de téc-
nicas compositivas e recursos retórico-estilísticos. Pela força do verbo,
igualmente ricos de pathos podem ser os episódios que relatam factos que
não se vêem, mas se antevêem na imaginação de cada personagem, de
cada espectador. Como sublinha o Estagirita, na verdade é necessário que
a fábula seja composta de tal maneira que quem ouve contar os aconte-
cimentos, mesmo sem os ver, fique arrepiado e tomado de compaixão
(idem 1453b 3-5). Aliás, Aristóteles, numa provável reacção contra a
sobrevalorização dos recursos espectaculares na produção teatral da sua
época, afirma que o espectáculo, embora sendo o que mais seduz o públi-
co, é o que há de mais estranho à arte e menos próprio à poesia. Num
indirecto preferencialismo do texto face à mise-en-scene, o autor defende
que a tragédia subsiste mesmo sem recinto e actores (Poética 1450b 17-
-20). Como escreveu W. B. Stanford, "os poetas são altistas da palavra,
não dos efeitos visuais"14. São precisamente cenas de 'apresentação indi-
recta', aquelas em que a atenção do espectador é predominantemente
atraída para o texto, pois é ele que veicula as acções descritas e não repre-
sentadas diante dos olhos do público, as que cativaram o nosso interesse.
Há, no entanto, uma questão que, não obstante a menor valia confe-
rida pelo tratadista da Poética aos factores cénicos, o dramaturgo não
pode descurar. As suas peças são apresentadas para um público, cujo

13 S. Halliwell, op. cil., 67.


14 Greek lragedy and lhe emolions. An inlroduclO/)' sludy (London 1983) 76. Este livro
oferece um estudo bastante interessante sobre o papel central que desempenham as
emoções na poética trágica, sobre as condições de representação, sobre o canto, a
máscara, os sons, os gritos e os silêncios, sobre o contributo do elemento visual, bem
como do vocabulário, das figuras de estilo e da imaginação no alcance das emoções
trágicas.
o Discurso do Extracénico 19

favor se pretende conquistar, e muito em particular o do júri do festival


dramático, sendo o mais famoso as Grandes Dionísias realizadas em Ate-
nas l 5 . O poeta anseia pela coroa da vitória e, no desejo de a alcançar, não
deve correr o risco de desinteressar o auditório. Como evitar esse perigo,
se se oferecem extensos quadros extracénicos, que parecem fazer perigar
a dinâmica dramática e despeitar o enfado e a monotonia em quem assiste
à peça?
Estando na base da educação e formação cultural dos antigos Gre-
gos, os Poemas Homéricos nutrem o gosto pelas cenas grandiosas da
acção de um exército e são o selo de garantia do seu bom acolhimento por
patte do público. A flama da discórdia civil, que, nos últimos trinta anos
do séc. V, consumia os povos do Peloponeso, proporciona ao teatro de
temática bélica um contexto de aceitação mais imediata. Deste modo
estava, logo à partida, assegurado, senão o sucesso dramático, pelo menos
a empatia que os quadros das multidões armadas podem suscitar. Tam-
bém o facto de, desde os tempos imemoriais dos aedos até aos bancos de
escola da Atenas clássica, o grego estar habituado a ouvir e a apreciar
longas exposições ou recitativos tornam mais compreensíveis a sua
receptividade face a longas descrições.
Assim sendo, o paradoxo que parece, à primeira vista e sobretudo
pat·a o espectador contemporâneo, o relevo dado à descrição no texto
dramático desfaz-se, se considerarmos dois aspectos fundamentais: a
semiótica teatral antiga e o entendimento clássico de descrição como
"represen tação" .

Tragédia grega: narrativa em forma dramática


Assim como Aristóteles atribui, na sua Poética, a essência do modo
dramático à mimese, também Platão se serve, na República, do mesmo
critério para distinguir, dentro do conjunto dos textos literários, a narração
(diêgesis), entendida como simples narrativa, do drama (mímesis): Perce-
beste muito bem, e creio que já se tornou bem evidente para ti o que
antes não pude demonstrar-te; que em poesia e em prosa há uma espécie
que é toda de imitação, como tu dizes que é a tragédia e a comédia;
outra, de narração pelo próprio poeta - é nos ditirambos que pode
encontrar-se de preferência l 6 . Por imitação entende a "ocultação" do

15 Sobre os festivais dramáticos atenienses, veja-se A. Pickard-Cambridge, The dramatic


festivais of Athens (London 21991 , reimp.). Para uma visão da reacção e relação do
público com o espectáculo teatral cf. P. D. Amott, PubUc and perfonnance in Greek
Iheatre (London 1989).
16 M. H. Rocha Pereira, Platão. A República. Introdução, tradução e notas (Lisboa 71987) 118.
20 Carmen Isabel Leal Soares

poeta, ou seja a enunciação é da responsabilidade de personagens da


história (temos o discurso directo ou, na terminologia de Genette, "dis-
curso citado"). Esta consubstancia-se na tragédia e na comédia. Na nar-
ração é o poeta que fala, o que corresponde ao discurso indirecto e à pre-
sença da figura fictícia ou "ser de papel" que é o narrador. A nanação
pelo próprio poeta aparece nos ditirambos. Entende ainda que existe uma
modalidade mista da narrativa, que compolta segmentos das duas moda-
lidades anteriores e é a usada na composição da epopeia (e outra ainda
constituída por ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos
outros géneros, se estás a compreender-me, ibidemJl7. A grande diferen-
ça que se estabelece entre o drama e os outros modos literários, como
diria Aristóteles, reside na maneira de imitar. Considera que o tipo de
representação do drama é o mimético, pois não há uma personagem que
exerça funções de narrador. Em termos de terminologia moderna, de pro-
veniência anglo-saxónica, designa-se, modernamente, por showing a
representação dramática e por telling a representação narrativa I 8.
O desenvolvimento que os estudos literários sofreram, sobretudo
neste século, obrigam-nos a precisar conceitos milenares . De facto no
drama não há um narrador com estatuto extradiegético. Pode, porém,
haver uma personagem-narrador, com estatuto não diverso das outras
personagens. E, sobretudo ao nível mais restrito do discurso, os processos
técnico-compositivos da representação mimética são compatíveis com os
da narrativa. As personagens podem dizer em discurso directo o que
outra, ausente (ou não), pronunciara. Esta é a realidade que observamos
sobretudo nas falas dos mensageiros . É com base nesta realidade que
surge a distinção genérica que Segre apresenta para dois tipos de comuni-
cação - romance (inclUstamento do mimético, pela utilização do discurso
directo, no diegético) e teatro (o inclUstamento do diegético, isto é da nar-
ração, no mimético)1 9.
Ficamos, assim, prevenidos para a convergência de duas linhas
interpretativas da semiótica teatral , só aparentemente estranhas. Uma
delas associa a obra teatral ao conjunto das obras de tipo nanativo, justifi-
cando-se no facto incontestável de que todo o texto teatral narra eventos,
parcial ou totalmente imaginários, ligados entre si 20 . É nesta perspectiva
dialógica narrativa/drama que se justifica a aplicação de terminologia da

17 Sobre a distinção de géneros e modos literários, cf. V. M. Aguiar e Silva, Teoria da


Literatura (Coimbra 10 1988) 339-401.
18 P. Lubbock, The craji ofjiction (London 1939) 62.
19 C. Segre, Teatro e romanzo. Due tipi di comunicazione letteraria (Torino 1984) VII .
20 C. Segre, op. ciL, 15.
o Discurso do Extracénico 21

nanativa aos passos por nós considerados: "Uma tragédia grega é uma
narrativa apresentada em séries de actos formalmente separados"21 . Não
excluímos, contudo, a natural importância da orientação interpretativa
cuja tónica reside na "especificidade" teatral, a ausência de um nanador-
-mediador entre personagens e espectador-leitor. Contudo os trechos que
iremos considerar, por se referirem a actos passados fora da vista do
espectador, exigem sempre um natTador, intermediário entre o cénico e o
extracénico.

A descrição: algumas considerações


Estaria fora do âmbito deste trabalho fazer uma apresentação exaus-
tiva da evolução histórica da descrição enquanto conceito literário ou até
mesmo pormenorizar perspectivas várias. Não obstante, à luz da realidade
do drama clássico, e em patiicular da tragédia, é pertinente levantar
algumas das questões que a análise da técnica descritiva dos passos em
questão irá colocar no seguimento do nosso estudo. A primeira ilação
óbvia é que "não se descreve em teatro como se descreve num texto, nem
com os mesmos fins, nem pelas mesmas razões"22.
Reproduzir em discurso aquilo que se vê, ou viu, é, em sentido lato
do termo, descrever. É esta acepção abrangente do termo que tomamos
no nosso tema de reflexão. Mas, no âmbito das técnicas discursivas usa-
das pelo poeta, devemos também considerá-la enquanto processo de
enunciação. À tradicional díade natTação/descrição ligam-se os pares
igualmente antagónicos acções/paisagens e sujeit%bjecto. Entende-se
que a narração trata de acções e da instância do sujeito. À descrição, por
sua vez, dizem respeito as paisagens e os objectos. No plano da morfolo-
gia, o uso de adjectivos na descrição opõe-se ao de verbos na nanação.
Na verdade, conforme se tem insistido em estudos recentes, é empo-
brecedora essa concepção, pois "o descritivo não tem qualquer laço teó-

21 M. Heath, op. cit., 137. Se se entende a designação acto como sinónima da grega
epeisódion, o juízo de Heath torna-se incorrecto. De facto as intervenções corais
também podem assumir um teor narrativo. Contudo, na definição que de tragédia grega
nos dá, cont1rma a proximidade existente entre os modos literários narração e drama:
"A tragédia grega é uma narrativa em forma dramática" (124).
22 'Texto' é aqui tomado como sinónimo de texto literário não dramático, cf. Ph. Hamon,
Du descriptif(Paris 1993) 86. Sobre a evolução histórica do conceito 'descrição' , feita a
partir das principais obras de retórica da época clássica e pós-clássica, veja-se esta
mesma obra, cap. I - 'Éléments pour une histoire de l'idée de description' . Para
confrontar a concepção actual e posições teóricas tomadas por di versos estudiosos cf.,
ainda, a entrada 'Descrição' em C. Reis e A. C. Lopes, Dicionário de narrat%gia
(Coimbra 1990) 87-97 e bibliograt1a aí indicada.
22 Carmen Isabel Leal Soares

rico necessário com os objectos ou os espaços referenciais ... "23. Não se


trata de uma relação necessária, mas será, por certo, privilegiada. Se se
entende por descrição "os fragmentos discursivos portadores de informa-
ção sobre as personagens, os objectos, o tempo e o espaço que configu-
ram o cenário diegético ... [esses fragmentos são] tendencialmente estáti-
cos, proporcionam momentos de suspensão temporal, pausas na
progressão linear dos eventos diegéticos" e por narração "aquele proce-
dimento representativo dominado pelo expresso relato de eventos e de
conflitos que configuram o desenvolvimento de uma acção"24, não que-
remos com isso significar que a descrição é um procedimento radical-
mente oposto à narração. Pelo contrário, descrição e narração são duas
tendências textuais complementares 25 .
Já na Antiguidade se percebe essa ausência de fronteiras rígidas. De
facto, com base na técnica descritiva evidenciada nos Poemas Homéricos,
sobretudo para os objectos attísticos (onde seria natural esperar uma des-
cnçao na sua acepção normal de ausência de movimento), atesta-se
a inviabilidade da oposição estatismo-descrição/movimento-narração .
A descrição é, por conseguinte, entendida como uma "representação".
Daí a presença de verbos de movimento e de som, pois " ... na Antiguida-
de, o que se admira é a aparência de vida, o movimento e o barulho suge-
ridos pela arte, a qualidade de representação, ou seja, em termos gregos,
a qualidade da mimese"26.
Ao considerarmos a etimologia latina do termo, concluímos que o
significado primeiro de de-scribere é o de "escrever segundo um mode-
lo". Quando descreve, o poeta serve-se de um conhecimento prévio do
mundo e do verbo. Dos modelos a partir dos quais recria fazem muitas
vezes parte textos já escritos. A descrição pode, então, ser considerada um
lugar de re-escrita, um "operador de intertextualidade". Sempre que iden-
tificável, essa será mais uma vertente a considerar.
Típico da descrição é ainda o seu carácter informativo e ornamenta-
lista. De um modo geral, e em particular os passos a considerar, invali-

23 Ph. Hamon, op. cit., 87.


24 C. Reis e A. C. Lopes, op. cit., 87.
25 Incomodado pelo tradicional significado do conceito, P h. Hamon (op. cit. , 9l) propõe
uma nomenclatura substituta, o "descritivo": "Em vez de descrição, seria melhor, então,
falar de descritivo, e considerar, uma vez mais, este descritivo como uma dominante em
determinados tipos particulares de textos". Apesar da carga semântica que a tradição
encerra, e talvez pela imposição da ancestralidade do termo, continuamos, no entanto, a
preferir falar de "descrição".
26 A. Delrieu, D. Hilt e F. Létoublon, "Homere à plusieurs voix. Les techniques narratives
dans I' épopée grecque archa"ique", Lalies 4 (1984) 18 1.
o Discurso do Extracénico 23

dam ou a atribuição puramente ornamental ou factual que lhe pode ser


dirigida. Descrever é sempre informar. A título de exemplo, note-se que a
descrição dos guen'eiros pelasgos na teichoskopia de Fenícias não se
limita à função ornamentalista que a profusão de pormenores, sobretudo
pictóricos, sugere. De igual importância é a função explicativa que a
escolha verbal <ppáaw ('explicarei', v. 95) não deixa passar despercebida.
Inversamente, no caso específico da descrição do exército em Eurípides,
mesmo nos textos que procuram ser mais objectivos, como são as falas
dos mensageiros, subjaz-Ihes sempre, de forma variável, uma natureza
decorativa.
Tornar "naturais" esses momentos, pejorativamente considerados
"hiatos" no progresso da diegese, significa conferir-lhes motivação.
A descrição deve surgir como uma consequência ou uma causa, mais ou
menos evidente, das circunstâncias da história. A oportunidade de empre-
go e a opção pelo processo de enunciação descritiva têm de ser pondera-
das caso a caso. Do ponto de vista do valor pragmático da descrição, a
personagem enunciadora domina um conhecimento que a personagem-
-ouvinte e/ou os espectadores-leitores não possuem, mas desejariam pos-
suir. Logo, há motivação para descrever e motivação para ouvir descre-
ver.

A descrição de um exército

1. Do discurso à imaginação
Conforme de imediato testemunha a relação etimológica com o
verbo 8páw ('agir'), a essência do drama reside nas acções. Como escre-
veria Aristóteles, sem acção não pode haver tragédia (Poética 1450a 23-
-4). Das seis componentes que constituem a tragédia, a acção (praxis) é a
privilegiada (idem 1450a 9 sq. e 23-25), pois o mythos é o princípio
(archê) e a alma (psychê) da tragédia (idem 1450a 38 sq.)27.
A acção pode ser encenada diante do público ou apresentada indi-
rectamente pelo discurso das personagens. Pelos limites que lhe eram ine-
rentes, nomeadamente o número reduzido de actores e a observância da
lei do decorum, a tragédia clássica não podia trazer à cena um exército
ocioso ou preparando-se para o combate, nem tão-pouco o espectáculo
grandioso e sangrento do choque de falanges. Nestes casos o foco dramá-
tico transpõe o espaço teatral - 'através do discurso narrativo [o drama-
turgo grego] pode expandir muito mais o seu campo de operações e tratar

27 As outras partes são: os caracteres, a elocução, o pensamento, o espectáculo e o canto.


24 Carmen Isabel Leal Soares

acontecimentos que não poderiam ser contados directamente ... Se a sua


retórica descritiva e narrativa é suficientemente poderosa, até pode ultra-
passar estes limites técnicos, alargando o seu campo de operações sem
perda de força emotiva ou dramática"28.
É, por conseguinte, nos momentos em que a representação da acção
(showing) é substituída pela sua apresentação através da palavra (telling)
que ao poeta é exigida uma mais viva expressividade na linguagem.
E ainda ao discurso que o espectador/leitor vai buscar as coordenadas que
lhe permitem reconstituir a história de quadros extracénicos. Daí que,
devido a essa limitação cénica, os retratos plurívocos que dá do exército
apelem aos "olhos da imaginação" e, por circunstâncias históricas, aos da
alma de um público ateniense dilacerado pelos conflitos da guelTa civil.
Circunstanciados, embora, pelas palavras do texto, aos destinatários da
enunciação (personagens ou espectadores) assiste-lhes uma liberdade
visual, perceptiva e recriadora, cujos limites residem apenas na imagina-
ção de cada um.

2. A varia tio narrativa e discursiva


Perspectivando a descrição do exército em dois momentos essenciais
(antes e durante a refrega), o dramaturgo descreve, por um lado, a marcha
sobre o inimigo (Fenícias 88-201), o ócio dos guerreiros (lfigénia em
Áulide 171-230) e o acampamento e preparativos para o combate (Hera-
elidas 389-409 e 667-79) e, por outro, o inevitável confronto de falanges
(idem 799-866; Suplicantes 650-730; Fenícias 1090-1199, 1217-63 e
1356-1479). Muitas vezes elogiado ou criticado pelo realismo com que
tratou os temas das suas peças, Eurípides não poderia ter omitido a visão
anti-heróica, mas verídica, das lutas entre os homens. Num mundo em
que os ideais dos áristoi da épica se diluíam cada vez mais, o indivíduo já
não se digladia por valores colectivos; antes deixa-se mover pelos interes-
ses mesquinhos - contudo compreensíveis - do seu egoísmo (Helena
1526-1618; Orestes 1474-89).
Se ao nível da história a variação é a que acabamos de enunciar,
também nos campos da narração e do discurso alcança-se uma plurali-
dade de realizações complementares. O acto de enunciação desses even-
tos, forçosamente extracénicos, é sempre da responsabilidade de um nar-
rador-testemunha. É da percepção directa dos factos descritos que resulta
em grande medida uma narração o mais verosímil possível. Desse modo
o poeta escolhe a focalização interna por ser a técnica enunciativa ade-

28 M. Heath, op. cit., 153 .


o Discurso do Extracénico 25

quada ao cunho de realismo que acompanha tais relatos. Porém, ao parti-


lhar o foco por mais de uma personagem - de que resulta a focalização
interna variável - , torna coexistentes perante um mesmo quadro duas
vozes distintas (as de Antígona e do Pedagogo na teichaskapia de Fení-
cias) . Do ponto de vista da relação tempo/acção, assistimos ao que pode-
remos designar, à luz de conceitos narratológicos, "descrição simultânea"
ou "descrição ulterior". O potencial emotivo, o interesse e atenção do
espectador saem valorizados no relato imediato, ou seja, quando o tempo
do discurso coincide com o da história. É este tipo de descrição que, na
teichaskapia de Fenícias, nos oferece o autor. Como veremos no decurso
da nossa análise, fazer dos sujeitos da enunciação figuras comprometidas
com o descrito tem uma dupla consequência: conferir subjectividade ao
discurso e, através dessa pessoalização dos eventos, tornar mais atractivos
e estimulantes quadros necessariamente estereotipados segundo os
modelos épicos - intertexto natural das cenas bélicas - e que, numa pers-
pectiva de drama, poderiam correr o risco de se revelar ineficazes. Quanto
à sua natureza, os discursos distinguem-se em elocução (Heraclidas,
Suplicantes, intervenções dos mensageiros de Fenícias), canto (lfigénia
em Áulide e Orestes) ou coexistência dos dois (cena do Pedagogo e Antí-
gona em Fenícias).
Partindo de uma técnica constante de apresentação do geral (todo o
exército) para o patticular (parcelas do exército e/ou seus generais), o
poeta distingue a cor e o som numa percepção sinestésica da paisagem
descrita. O emprego do presente e do discurso directo, bem como as evo-
cações do tu-destinatário, são os artefactos sintácticos que lhe permitem
colmatat· a repetitividade inerente a descrições apoiadas na enunciação
tipo 'lista' ou 'catálogo'29. Essa variatia ou, à grega, paikilia, sinestésica,
linguística e discursiva serve nitidamente para compensar a debilidade
dramática intrínseca ao relato de episódios extracénicos .
A guerra e os seus protagonistas são realidades complexas. Donde se
compreende a variedade de discursos encontrada: são as vozes que se
polarizam em "guerreiros" e "civis", com o acréscimo de pathas no facto
de estes poderem ser donzelas. Entendemos, de acordo com este critério,
abordar no capítulo I os retratos que nos dão dos exércitos as mulheres.
Pela fragilidade tradicionalmente inerente a umas e pela não-valia
imposta pela provecta idade a outros, a escolha de personagens civis recai
de preferência em mulheres e velhos. Aliar a curiosidade inata ao sexo
feminino à sua juventude foi a escolha tomada por Eurípides para tornar

29 Para um estudo dos conceitos 'lista' e 'catálogo ', veja-se C. R. Beye, "Homeric battle
narrative and catalogue", HSPh 68 (1964) 345-73.
26 Carmen Isabel Leal Soares

mais real a sedução óptica que um exército pode despertar nas jovens
coreutas de lfigénia em Áulide ou em Antígona parthenas, isto é, 'virgem'
(Fenícias 106). No caso de Antígona, à sedução óptica alia-se também o
sentimento de afecto e saudade por um irmão há muito exilado. É ainda
em Fenícias que uma figura de ancião e pedagogo se apresenta como
detentora do conhecimento necessário para informar e guiar a princesa
cadmeia na descrição do exército sitiante. No capítulo II analisam-se os
quadros apresentados por personagens peltencentes ao grupo militar
(Demofonte, rei de Atenas, e o mensageiro, soldado de Hilo, ambos em
Heraclidas; mensageiros de Suplicantes e Fenícias) . Porque é menos
clara a atribuição de um estatuto "civil" ou "guerreiro" aos mensageiros
de Helena e Orestes e porque há uma nítida subversão do modelo épico
que inspirou as cenas descritas, entendemos abrir um III capítulo a dar
conta dessa desconstrução. Na verdade, o Frígio de Orestes é um servo
(138), cuja função é abanar o leque da sua senhora (1426-30). E mesmo o
facto de trazer consigo um punhal (1482) não o torna um membro da
comunidade guerreira. O mensageiro de Helena, por seu turno, é um
servo de Teoclímeno, remador da nau da rainha grega.
A característica de marca comum aos passos que iremos analisar é,
portanto, a variatia a todos os níveis - fábula, nalTação e discurso.
I

A MULHER E O FASCÍNIO
DO ESPECTÁCULO BÉLICO

Pela condição do seu sexo, estava vedada à mulher a presença em


campo de batalha. Embora nele não possa penetrar para combater, pois,
como é óbvio, não há o estatuto de mulher-soldado, isso não impede que
esta esteja, de forma sobretudo indirecta, intimamente ligada ao fenó-
meno bélico: como causa (assim é evocada Helena na lfigénia em Áuli-
de), vítima inocente e salvadora da pátria (Ifigénia que sacrifica a sua vida
pelo prosseguimento de uma empresa militar vaticinada ao impasse, na
Áulide) ou vã mediadora da paz (J ocasta em Fenícias, 81-85)). Quando

) As mulheres "reportam-se insistentemente à realidade bélica, quer como causa quer


como vítima dela" (P. L. Furiani , "Donne tragiche in gueITa: passività e trasgressione in
Sofocle e in Euripide", Euphrosyne 20, 1992, 29). O que não impossibilita que, em
situações muito particulares, a mulher possa combater. De facto, "o momento da
verdade chegava quando a cidade era cercada ou saqueada; esta era a ocasião na qual as
mulheres combatiam ou fugiam ou preferiam a morte à den·ota. Tratava-se de reacções
extremas e raras" (D. Schaps, "Le donne greche in tempo di guerra", in G. Arrigoni
(ed.), Le donne in Grecia, Roma 1985,411). Há, porém, exemplos míticos ou literátios
de mulheres que vão para a gueITa. Como resume Y. Garlan, "Só no universo mítico das
Amazonas, ou no mundo utópico da República platónica, é que se transformam em
mulheres-soldado, mas essa conversão ou é condicionada pela sua dessexualização
parcial (ablação do seio esquerdo para poderem manejar o arco), ou é limitada às
virgens (parthenoi) que ainda não encontraram no matrimónio a realização normal do
seu ser" ("O homem e a gueITa", in 1. P. Vemant, O homem grego, Lisboa 1994,65).
No âmbito da literatura, Heródoto deixou-nos dois retratos singulares de mulheres
combatentes, ou de segura otigem bárbara (Tómiris, I. 205-14), ou também de origem
grega, aliada ao monarca bárbaro Xerxes (Artemísia, rainha de Halicarnasso, Cos,
Nisinos e Calymnos, VII. 99). Sendo ambas rainhas viúvas, assumem as funções gover-
nativas e militares de seus maridos. O prestígio da acção bélica de Tómiris sai mais
evidenciado pelo facto de ter sido em batalha contra o seu povo, os Masságetas, que
Ciro pereceu e de ter sido às mãos dessa rainha que ele sofreu uma vingança aviltante
(I. 214). Sobre esta figura veja-se A. L. C. A. do Amaral , 'íómiris: a voz da
vencedora", Diacrítica 8 (1993) 285-98. Admirada pelo histOliador, apesar da sua
condição feminina (VII. 99, 2 sq.), Artemísia recebe um tratamento mais pormenorizado
que a figura antelior. Tida entre os melhores dos seus aliados (VIII. 69, 5 sq.), Xerxes
28 Carmen Isabel Leal Soares

nela se envolve é alvo da maledicência dos soldados (Ijigénia em Áulide,


825 sq., 1029 sq.). São mesmo as próprias mulheres a criticar semelhante
atitude a uma sua igual (Fenícias 195-201). Isto não significa que as
mulheres se auto-excluíssem desse mundo, onde ousam entrar, levadas
pelo empolamento das horas de crise (assim fazem Jocasta e Antígona,
idem 1264 sq. e 1279). Um papel bem diferente, o das cativas aprisiona-
das no acampamento inimigo e ao mesmo tempo vítimas da guen"a,
desempenham as antigas senhoras de Tróia. Esses casos encontramo-los
em peças sobre as quais não nos debruçaremos neste trabalho, mas que
convirá apresentar, para se fazer uma imagem mais abrangente da presen-
ça da mulher na guerra. Na Hécuba, a antiga rainha de Tróia, oferece o
retrato da mater dolorosa: assiste ao sacrifício voluntário de sua filha
Políxena, junto ao túmulo do mais terrível dos inimigos, Aquiles, e recebe
a notícia de que o filho, Polidoro, que ela julgava a salvo junto do hóspe-
de Polimestor, se encontrava morto, alvo da cobiça de quem o devia ter
protegido. Melhor fortuna não teve a nora da Hécuba. Perdido o legítimo
esposo na guerra contra os Aqueus, Andrómaca, da peça homónima do
nosso tragediógrafo, é arrastada como escrava para a Ftia, onde servirá o
leito de Neoptólemo, o filho do assassino de Heitor. A desventura das
mulheres da família real de Tróia e das suas conterrâneas é o tema central
de outra drama, As Troianas. Temos de novo Hécuba a arcar com o
infortúnio dos seus e com o próprio, numa vã resistência ao destino que a
espera, servir como escrava o inimigo mais hábil no exercício do discur-
so, Ulisses.
Mas cingindo-nos às peças do nosso estudo, observe-se que ao
espectáculo sangrento da luta são admitidos, de forma quase exclusiva,
actores e espectadores masculinos. Em suma, a sedução das jovens pelo
exército concretiza-se em "espreitar" o desconhecido e interdito, um
mundo proibido, mas desejado. É na hedonê que de uma tal observação
retiram que reside a causa e o elemento motor da sua 'ousadia'. Para o
Pedagogo configurou-se como uma clara satisfação pessoal da princesa a
sua subida ao topo das muralhas da cidade de Tebas . Desse sentimento dá
nítida conta a sua derradeira advertência: Filha, recolhe ao palácio e à

reconhece-lhe o mérito de boa conselheira (VIII. 101 , 6) -numa ocasião esse conselho
é ignorado (VIII. 68-69) e noutra acatado (V III. 103). O louvor do monarca persa passa
pelo reconhecimento naquela mulher de atributos masculinos (de que os homens, na sua
comparação, saem diminuídos, VlII. 87, 14 sq.) e por lhe contiar o acompanhamento
dos seus próprios tilhos até Éfeso (V lll. 103,4). Com estas duas distinções, o rei persa
reconhece a plenitude de Artemís ia numa dupla faceta, enquan to estratega e mulher.
Sobre a patticipação da mulher da Atenas clássica na vida pública, social e económica,
cf. o estudo sintético e bibliograticamente bem documentado de D. Cohen, "Seclusion,
separation, and the status 01' women in classical Athens", G&R 36 (1989) 3- 15.
o Discurso do Extracénico 29

segurança de um tecto, permanece nos teus aposentos, pois já alcançaste


a satisfação do teu desejo de observar (193-5). Maior significado emo-
cional adquire idêntica confissão das coreutas de lfigénia em Áulide, pois
não só é pronunciada pelas próprias, como também sai enfatizada pela
repetição. Começando por apresentar o objectivo da vinda àquelas praias
(para vermos o exército dos Aqueus, 171), definem, alguns versos adian-
te, o quadro observado como um espectáculo admirável e apaixonante
prazer para os seus olhos femininos (232-5).
Para estas mulheres um corpo de homens armados, quer em avanço
contra a sua própria cidade (Fenícias, 88-201) quer durante uma pausa
lúdica anterior às agruras da campanha (lfigénia em Áulide, 171-230),
configura-se como um espectáculo admirável. A expectativa do observa-
do e até um certo gozo de transgressão são dados psicológicos que o
mbor das faces destas últimas sugere para aquela afluência ao porto da
Áulide (187 sq.) .

A sedução e o temor inspirados por um exército em marcha


(Fenícias 88-201)
A mína de Etéocles e Polinices, os últimos varões Labdácidas, e o
cerco e guena de Tebas são, em termos de história, a trave-mestra de
Fenícias. Em um monólogo informativo, do tipo que se tornou conven-
cional no prólogo euripidiano, Jocasta recorda a conduta ímpia e leviana
de Laia - que, contra a vontade divina e levado pelo estonteamento do
prazer e do vinho (Fenícias 15 sq.), tivera descendência - e a ignorância
fatal de Édipo, que contraíra um casamento incestuoso com a mãe2 . Desta
união poluta nascem dois filhos varões, que vão prosseguir uma tradição
familiar de mortes trágicas. Laia sucumbira às mãos do filho rejeitado.
Ao privar-se primeiro da luz e optando pelo exílio no final da peça, Édipo
obriga-se voluntariamente ao aniquilamento. Também Etéocles e Polini-
ces se matam um ao outro, gesto em que são secundados pelo suicídio da
progenitora, consumando assim o processo de extinção quase total de
uma família maldita.

2 Dentro da sua preocupação em humanizar os temas herdados do mito e da tradição


literária, Eurípides aposta numa caracterização psicológica mais aprofundada das suas
personagens, dotadas de uma personalidade individual que marca as suas opções
enquanto agentes. Assim, ao invés de Sófocles no seu Rei Édipo, a impiedade de Laio
vem acrescentada de razões psicológicas e pessoais - "Entregando-se ao prazer e
cedendo ao vinho, gerou-nos um filho", 214 sq. O orgulho demonstrado' por Edipo no
seu encontro com o pai desconhecido e subsequente assassinato são a forma de o
dramaturgo tornar o herói participante do seu destino, dando-lhe um toque de personali-
dade individual.
30 Carmen Isabel Leal Soares

A função protática desempenhada por Jocasta não se restringe à


lembrança de acontecimentos de um passado relativamente afastado.
A personagem pranteia ainda acontecimentos recentes e decisivos para a
discórdia que se instalou na sua família e, paralelamente, para o estado de
guerra que, no momento em que começa a tragédia, coloca como adver-
sárias Tebas e Argos. A fim de anular a maldição lançada contra eles por
um pai desvairado de sofrimento, Etéocles e Polinices tinham decidido
encarcerá-lo no interior do palácio e partilhar, por períodos alternados de
um ano, o governo da cidade entre si. Deste modo evitariam perecer às
mãos um do outro. Completado um ano, Etéocles recusa renunciar em
favor do irmão, entretanto refugiado em Argos, onde contraú·a núpcias
com a filha do rei Adrasto. O monarca fornece-lhe o apoio militar neces-
sário para uma empresa, que seria dirigida contra compatriotas e familia-
res. Privado do direito de governar a cidade heptápila, conforme acordo
firmado com o irmão, no momento em que abre a peça, Polinices marcha
contra a terra pátria.
É a descrição viva que desse contingente bélico fazem Antígona e o
Pedagogo o objecto da nossa reflexão. Incluída no prólogo, esta conhe-
cida e não menos controversa cena da teichoskopia revela um potencial
dramático e emotivo de impressiva singularidade. Tanto quanto ao nosso
conhecimento, bastante fragmentado, da literatura grega é dado saber,
Homero é quem fornece, no canto III da Ilíada, este modelo discursivo,
dialogado e de conteúdo semântico preciso. Como indica a etimologia,
trata-se de uma observação (skopia) feita do cimo das muralhas (teichos)
de uma cidade. O modelo homérico preconiza como "objecto" de descri-
ção um exército sitiante, individualizado no retrato dos seus chefes.
Eurípides tinha ainda ao seu dispor um igualmente famoso modelo
trágico para o cerco da cidade de Cadmo, Os Sete contra Tebas de
Ésquilo. No entanto, em telmos discursivos, é para com a Ilíada (essa sim
contém uma teichoskopia) que a dívida de intertextualidade é mais signi-
ficativa. Pelo que lhe dedicamos um estudo comparativo mais detido.

• Aproveitamento trágico da teichoskopia homérica

A escolha de um modelo épico célebre, como seria para os contem-


porâneos de Eurípides o da teichoskopia, tem como resultado exógeno o
engrandecimento da peça e do próprio poeta. À luz do pensamento clás-
sico, não há quaisquer traços de plágio a enformar o conceito de imitario.
Antes pelo contrário, tratar um tema já anteriormente tomado, sobretudo
se por um poeta de renome, é uma prática prestigiante para o emulador.
o Discurso do Extracénico 31

Retomando e concretizando, agora no texto, algumas das ideias ante-


riormente apontadas, a descrição, exibição de um saber, encontra a sua
razão de ser numa motivação de natureza antagónica, um não-saber.
À semelhança de Homero, o dramaturgo apresenta um par de persona-
gens a polarizar essa posiçã03 . Na llíada é o membro feminino que detém
o conhecimento do objecto descrito; em Fenícias, o masculino. Pela sua
naturalidade grega, cabia a Helena a função de identificar os chefes das
tropas aqueias. O rei troiano, no papel de desconhecedor da realidade
observada, é quem indaga. Ao inverter as atribuições em termos de saber,
Eurípides fá-lo em favor da verosimilhança. Não era credível que uma
jovem, quase sempre confinada ao gineceu, conhecesse os chefes inimi-
gos a ponto de os identificar e caracterizar. Assiste ao ancião esse conhe-
cimento, possibilitado pelo contacto que o pedido de tréguas junto do
adversário lhe facultara (Fenícias 96-8).
Eurípides mantém a técnica enunciativa do seu modelo, o diálogo.
Confere-lhe, no entanto, pelo recurso a falas mais curtas, maior vivaci-
dade e dinamismo. Expediente este que lhe permite um envolvimento e
uma atenção acrescidas do público. Se juntarmos ao uso frequente de falas
de dois ou três versos, o emprego, diversas vezes verificado, da antilabê,
facilmente concluímos do ritmo movimentado do diálog04 •
Na sua essência, a estrutura discursiva do diálogo homérico irá ser
observada pelo tragediógrafo. Podemos dividi-la em três partes: introdu-
ção, desenvolvimento e conclusão. Na primeira apresenta-se o assunto e
as figuras do diálogo, o que corresponde, aproximadamente, à primeira
fala (llíada 3.161-70; Fenícias, 88-105). Por desenvolvimento toma-se a
identificação e caracterização das figuras que se destacam no horizonte
contemplado. Finalmente a retirada das figuras do seu posto de observa-
ção (só indicada em Fenícias, 193-202). Na Ilíada subentende-se a saída
de Helena, de quem se deixa de falar. Cabe, por isso, a conclusão do
motivo ao seu desapontamento em não ver os irmãos (236-42). Quanto ao
desenvolvimento, ou retrato dos chefes, podemos considerá-lo, grosso
modo, estruturado de acordo com três segmentos técnico-semânticos:
pergunta-resposta-comentários 5 .
No que se refere ao objecto da observação, ele é um espaço humano
de carácter bélico. O respeito que o dramaturgo necessariamente revela
por este motivo não o impede, contudo, de imprimir o seu cunho pessoal.

3 Sobre o estudo comparativo das duas teichoskopiai, leia-se M. F. S. Silva, 1985-86: 15-18.
4 Antilabê é a divisão de um mesmo verso por duas falas de personagens diferentes (nos
vv. 122,132,133,161,171,180).
5 Leitura já notada em E. Basade, "Canto tercero de la Ilíada", Hell11antica II (1960) 419.
32 Carmen Isabel Leal Soares

Em Homero é o individual (pelo retrato dos chefes) que domina (quase)


exclusivamente o interesse das personagens dialogantes. Embora valori-
zando essa tendência, Eurípides consegue dar mais relevo ao colectivo
(exército enquanto massa anónima de guerreiros) do que o seu modelo.
Esta diferença ressalta de imediato nas falas de abertura. Pela ordem em
que enuncia a Helena o grupo de homens que vislumbram, Príamo esta-
belece um decréscimo de impottância. Quem aparece a encabeçar a
sequência é o primeiro marido da Tindárida, logo seguido dos familiares
por afinidade e finalmente pelos philoi (163), alusão de carácter mais
genérico, que habitualmente se traduz por 'amigos' , mas que verdadeira-
mente inclui todos aqueles que estão ligados por laços de dependência,
familiar ou social. O que desperta a atenção das duas personagens obser-
vadoras são os chefes, aqui na figura de Menelau, e não o conjunto dos
guerreiros 6 . De forma diversa, a observação do exército enquanto corpo
colectivo define-se em Eurípides desde o início do diálogo. Atente-se no
incitamento do Pedagogo: Observa, junto da corrente do Ismeno e tam-
bém das nascentes do Dirceu, o exército imenso dos inimigos (101-2).
O destaque colocado no colectivo, repete-se na sua fala seguinte (107-8) e
é confirmado por Antígona, ao mencionar que a planície inteira rebrilha
coberta de bronze (11O-1?
As heroínas de ambos os passos saem frustradas no seu desejo de
ver os irmãos. Há, contudo, uma diferença de grau nessa frustração, signi-
ficativa de uma maior complexidade psicológica e patética da persona-
gem trágica. Se a Helena é negada toda a possibilidade de ver os Dioscu-
ros (236), Antígona disfruta de uma visão algo imprecisa de Polinices
(vejo-o, mas não nitidamente, 161). Eurípides consegue, assim, um
aumento de pathos interno (da personagem) e de pathos externo (dos
espectadores). Pois o auditório não vê a cena descrita, mas testemunha a
reacção por ela causada na personagem. Os versos 243 sq., que seguem
de imediato as últimas palavras de Helena, permitem dar a saber ao
auditório o real significado da ausência dos irmãos da heroína épica. Já os
cobria a tena-mãe. O estado de ignorância da esposa usurpada de Mene-
lau é mais dramático. Não só lhe está vedada a possibilidade de ver os
Dioscuros, como também desconhece o destino deles. Revelada pelo nar-

6 Quando se registam referências ao colectivo elas são de natureza secundária. Ou seja, o


poeta fala das linhas dos homens apenas para localizar Ul isses e nomear a sua actividade
(196). Do mesmo modo apontam-se os guen'eiros cretenses, entre os quais se encontra
Idomeneu (229-30). Já a terminar a sua intervenção na teichoskopia, a divina Helena
menciona a multidão de Aqueus 'de olhar vivo' (234), mas sem os tomar como centro
de caracterização.
7 À semelhança de Homero também encontramos em Fenícias a referência secundária ao
exército, tomado por enquadramento do respectivo comandante (148-9).
o Discurso do Extracénico 33

rador ao auditório a morte das duas figuras, o pathos externo é superior


ao pathos interno.
O esquema pergunta (Príamo)-resposta (Helena)--comentários
(Príamo), utilizado para as figuras de Agamémnon, Ulisses (com a
variante de os comentários pertencerem, neste caso, a um terceiro interlo-
cutor, Antenor8) e Ájax (onde à brevidade dos versos que lhe são
dedicados se junta a ausência de comentário) é observado pelo tragedió-
grafo. Sendo o esclarecimento da autoria do servo, a pergunta bem como
o comentário são geralmente da responsabilidade de Antígona. Exceptua-
-se, no entanto, Tideu, caso em que não é a personagem carente de
conhecimento, Antígona, a questionar sobre a sua identidade, mas é o
servo que chama para ele a atenção dajovem (131 sq.)9.
Pelo carácter distinto das figuras retratadas, o diálogo é necessaria-
mente diverso nos dois autores. Contudo, porque imposta pela história,
esta divergência informativa não constitui um diferença ponderável para
o nosso estudo. Apesar dos pontos comuns acabados de enunciar, o que
permite, então, individualizar o tragediógrafo é o tratamento que confere
ao discurso e a concepção estética que deste transparece.
Do modelo épico depreende-se que todos os chefes se situam numa
mesma linha de horizonte. Por um lado não há qualquer indicação do
contrário; por outro a única nota da disposição relativa das figuras na pla-
nície confirma-o: Idomeneu está ao lado de Ájax (230) . Dos chefes
aqueus é dada uma imagem de estatismo, pois ou está ausente da sua
caracterização qualquer indicação de movimento (Agamémnon e Ájax)
ou sublinha-se a sua imobilidade (Idomeneu, 231). Há, no entanto, uma
figura que vem contrariar este princípio. Não foi, concerteza, gratuita-
mente que se lhe dedicou maior número de versos. De facto, a presença
activa de Ulisses é sentida pela própria personagem focalizadora como
um elemento estranho, de oposição ao quadro geral. O discurso revela
esta ideia pelo uso da adversativa, que distinguindo, embora, o movi-
mento do sujeito da inércia das armas (enquanto as suas armas repousam
sobre a terra fecunda, ele, por seu lado, tal qual um carneiro, passa em
revista as fileiras dos seus homens 10, 195-6), sugere também a singulari-
dade da sua postura em todo o quadro.

8 O comentário de Antenor sobre o contraste do aspecto exterior pouco imponente do


Laéltida e da superioridade dos seus dotes oratórios, quando comparado com Menelau,
está diegeticamente motivado. O seu conhecimento do rei de Ítaca remonta ao contacto
que com ele tivera quando o recebera, outrora, como hóspede (207-8). Em 11. 138-42,
contlrma-se que Antenor conhecera Ulisses antes da guelTa de Tróia.
9 A mesma técnica fora utili zada por Helena na figura de Idomeneu (230- J).
10 O movimento aqui sugerido sai reforçado pela comparação de Ulisses com um carneiro
que passa em revista o seu rebanho.
34 Carmen Isabel Leal Soares

De acordo com o ideal guerreiro, as características físicas e psicoló-


gicas sobrevalorizadas nos chefes consubstanciam-se nas isotopias do
poder e da singularidade de aparência e nas suas qualidades (como a
nobreza de carácter, a bondade, o engenho e a esperteza). Essa adjectiva-
ção épica, pelo seu carácter genérico e de forma alguma distintivo, não
prima pela identificação individualizadora dos sujeitos. Por sua vez, a
experiência literária que medeia entre Eurípides e Homero e, sobretudo, a
criatividade do dramaturgo permitem-lhe legar-nos uma descrição
(ékphrasis) plena de frescura e sedução. "O sumário das grandes novida-
des da teichoskopia euripidiana - a distinção dos planos, o movimento
das figuras, a sugestão de sentimentos pelas atitudes exteriores dos heróis
- apresenta um paralelo flagrante com as técnicas que, na segunda metade
do séc. V, revolucionaram a pintura, por intervenção de Polignoto" I I.
Influenciado, ao que parece, pelas tendências pictóricas contemporâneas,
Eurípides reflecte na descrição de um exército em marcha uma atitude
idêntica à dos artistas das tintas. Veremos quais as características psicoló-
gicas e como são extraídas do aspecto físico dos chefes.

• Fenícias 88-201
A posição da crítica textual quanto à autenticidade dos versos em
questão não tem sido unânime. Com base no argumento 3, onde se lê que
a cena de Antígona a observar a partir das muralhas não faz parte do
drama, Verrall foi o primeiro a impugnar a originalidade da cena l2 . Ale-
gando razões de diversa ordem, outros se lhe têm seguido. Não está den-
tro do âmbito do presente trabalho fazer uma avaliação aturada dos argu-
mentos contra ou a favor da origem euripidiana do texto. Há, no entanto,
uma série de factores internos à peça favoráveis a esta última posiçãol 3 .
Estamos a pensar na estrutura do prólogo em Eurípides, que, normal-
mente, na segunda ou terceira cena, quando a há, contém - como aqui -
metros líricos e anapestos. Ainda tipicamente euripidiana é a repartição
do amebeu pelos trÍmetros de uma voz masculina e o canto de uma femi-
nina. A própria "ingenuidade da cena", como lhe chama Mastronarde,

II M. F. S. Silva, op. cit., 18 sq.


121\. W . Verrall, Euripides the rationalist. A study in the histOfY of ar! and religion
(Cambridge 1913) 249 sqq.
13 Sobre a defesa da autenticidade do passo, cf. D. L. Burgess, "The autenticity of the
teichoskopia of Euripides' Phoenissae", C183 (1988) 103-13 e D . 1. Mastronarde (ed.
comm.), Euripides. Phoenissae (Cambridge 1994) 168-73. De notar que a edição de
Diggle aceita na globalidade a teichoskopia como original de Eurípides, com a excepção
de alguns versos (118,122 sq., 132, 141-4).
o Discurso do Extracénico 35

revelada na escolha do metro e das figuras enunciativas, assim o indicam.


Porque um excerto nunca deve ser considerado fora da globalidade do
texto, é na sua efectiva funcionalidade dramática que devemos procurar
mais uma prova de autenticidade.
Falar de funcionalidade dramática é falar de motivação. A cena da
teichoskopia não se afigura insular em relação ao contexto em que apa-
rece inserida. Aborda com clareza o tema da justeza da ofensi va de Poli-
nices (154); Antígona dá um retrato positivo do irmão; revela o amor
devoto que lhe tem e de que dará provas quando acompanhar a mãe por
entre as falanges inimigas numa derradeira despedida do moribundo e
quando se comprometer a dar-lhe, à revelia dos desígnios de Creonte,
sepultura. Grito de dor e pungente súplica aos deuses, as derradeiras pala-
vras do monólogo de Jocasta - mãe e rainha - ecoam ainda aos ouvidos
da assistência. Dando conta do avanço do exército argivo sobre Tebas,
não esconde a sua preocupação com a salvação da cidade (77-80). Na
sequência da tragédia, a teichoskopia aparece, assim, como o desenvol-
vimento de um motivo já resumidamente tocado - a marcha dos sitiantes
contra Tebas l4 .
Aceite no seu conjunto a autenticidade do passo, podemos passar à
análise técnico-compositiva e retórico-estilística do mesmo. Pelo seu
carácter eminentemente estático, o desempenho dramático de Antígona e
do Pedagogo contrasta com a cena que pelas palavras evocam no pensa-
mento dos espectadores. Porque permanecem imóveis, ou seja no mesmo
local, perante um panorama ou objecto móvel ou mutável, os dois prota-
gonistas da cena adquirem o estatuto de "personagens fixas"ls. O sentido
que colocam ao serviço da percepção do quadro é a visão, facilitada pela
perspectiva elevada de que dispõem, pois encontram-se no último andar
do palácio (90). Neste visualismo ostensivo da cena reside a divergência
fulcral de Eurípides face ao párodo dos Sete contra Tebas, onde, domina-
do pelo medo da tomada da cidade, um coro de mulheres tebanas extra-
vasa em um canto-pranto o pânico que nelas suscita a aproximação do
inimigo. Só que aí a percepção do movimento é apenas reconhecida por

14 Como já notara U. Albini , " Na verdade, a cena de Antígona serve de excelente contra-
ponto a um prólogo denso e opressivo". A teiclzoskopia funciona como contrapattida do
prólogo, pois "a informação sobre a situação interna" - fornecida por este - "é comple-
tada pelos dados da situação externa" que aquela contigura ("Miracolo e avventura nell '
Elena", pp 28, 1973-74, 394).
15 Na Ilíada, essa imobilidade é especiticada por Príamo, ao incitar Helena nos seguintes
termos: senta-te junto de mim (3. 162). A situação contrália, ou seja, quando uma
personagem passa em revista um cenário tixo mas complexo (rua, paisagem, monu-
mento), serve o conceito de "personagem móvel" (passeante, visitante, turista, explora-
dora). Cf. Ph. Hamon, "Qu' est-ce qu' une description?", Poélique 12 (1972) 468 sq.
36 Carmen Isabel Leal Soares

coordenadas auditivas. É de tal forma impressiva a sugestão sonora desse


deslocamento que o coro, por uma operação de metátese dos sentidos,
tem a capacidade de visualizar aquilo que apenas ouve, eu estou a ver o
estrépito [dos escudos] (103)16. À incerteza que nos corações oprimidos
das coreutas desperta um perigo apenas ouvido e, pOltanto, imaterializa-
do, contrapõe Eurípides uma força ofensiva bem delineada nos seus con-
tornos. Tendo um melhor conhecimento da realidade que as cerca e um
sentimento de segurança que lhes dá a protecção das muralhas (114-7), as
personagens euripidianas demonstram menos o pânico 17 . Este empobre-
cimento de tensão tem, porém, um reverso vantajoso: uma maior nitidez
descritiva da cena. Atribuir a descrição desta invasão sob a forma de
canto a personagens individuais é ainda uma marca da tendência euripi-
diana, da última fase da sua produção, em transferir o lirismo do coro
para figuras protagonistas l8 .
Porque o discurso veicula uma informação resguardada da vista do
público, um dos aspectos a ter em conta é, sem dúvida, o distanciamento
das instâncias discursivas face ao descrito. Em termos de tempo não há
qualquer distanciamento, uma vez que o tempo da enunciação é simultâ-
neo ao da diegese. Questão menos linear é a da representação da informa-
ção, o mesmo é dizer da focalização. Quando determinada realidade é
apresentada por interposta pessoa, ela passa incondicionalmente por um
filtro quantitativo e qualitativo. No caso concreto do nosso texto, o
espectador só tem acesso ao que Antígona e o servo identificam e como o
identificam. O que se afigura à partida como um elemento limitador de
conhecimento acaba por se assumir como um trampolim para a recriação
individual. A informação fornecida pelos observadores directos do "espa-
ço", físico e humano, desenha apenas os contornos desse "mundo imagi-
nado" .
Do ponto de vista estmtural o motivo da teichoskopia apresenta-se
como uma cena fechada. As personagens que nela intervêm só agora
entram em cena e saem quando ela termina. A fala de abertura e a final,

16 A úni ca percepção visual que tem do exército é a poeira que ele na sua marcha eleva
acima das muralhas (8 I).
17 Este pormenor será analisado mais adiante (cf. pp. 38,41 e 46).
18 "De facto os actores tornam-se os herdeiros do palhos que na tragédia de Ésquilo
impregnava os kOl11l11oi corais, e, para nos convencermos di sso, basta observar a
reelaboração diversa que de um mesmo motivo, a descrição dos exércitos dispostos em
torno de Tebas, assunto do vivo kommos de Ésquilo e do párodo da Antígolla sofoclia-
na; ela é apresentada, por sua vez, em Eurípides através do dueto entre Antígona e o
pedagogo, cena em que é protagonista e o coro é suprimido" (M. Baldi, "Cm'attere,
funzione ed evoluzione deI lirismo euripideo", Dioniso 16, 1953, 123).
o Discurso do Extracénico 37

ambas pronunciadas pelo Pedagogo, desenvolvem temáticas introdutórias


e temáticas conclusivas, respectivamente. Embora em número de versos
desigual, as duas falas tocam motivos que se correspondem ou por sino-
nímia ou por antonímia:

a) definição da natureza visual do episódio (91 e 195);


b) regras de comportamento social impõem à jovem que se proteja
da vista de terceiros (92-5; 196-7);
c) entrada vs. saída de Antígona, ordenadas pelo Pedagogo (100 e
193).

A quase centena de versos que medeia entre os dois momentos não


permite um paralelismo absoluto na abordagem dos seus pontos comuns.
Se na introdução para o Pedagogo o objectivo da presença da donzela
naquele posto de observação se define como um desejo de ver um espec-
táculo de homens imponentes - quadro inédito para uma jovem normal-
mente enclausurada, situação agravada pelo estado de guerra que vive a
sua cidade -, na retirada de cena ele tem dados para ser mais explícito na
motivação afectiva que despertara na princesa a ousadia do seu gesto.
Conforme já anteriormente referimos, os comentários ouvidos da jovem e
a ansiedade declarada em ver o irmão levam-no a interpretar o interesse
da princesa pelo exército inimigo como um pretexto para matar saudades
de Polinices (194 sq.).
A presença da princesa naquela parte do palácio, longe do acon-
chego do gineceu, suscita, tanto da sua parte como da do Pedagogo, cui-
dados. Ela deve procurar um caminho solitário, para não ser vista naquele
lugar e alvo da censura dos cidadãos (93-5). A postura de observadora
que assume tem um valor indiciaI. Ou seja, deixa que a previsibilidade
das suas acções fique de certo modo assegurada. Não se pense, no entan-
to, que o estatuto de observadora implica necessariamente um carácter
passivo, acomodado e incapaz de tomar iniciativas. Esse papel apagado
reservou-o a tradição literária à figura de Ismena, aqui esquecida. A timi-
dez inerente à verdura dos anos é contrabalançada pelo afecto que sente
por Polinices e pelo próprio empolamento e entusiasmo juvenis em
observar um grupo de homens-guerreiros imponentes, a que se junta um
pouco de apreensão natural pelo perigo que eles representam. É esse
misto de sentimentos que dá forças a Antígona para afirmar uma vontade
contrária ao código comportamental feminino. Habitualmente lê-se a
entrada cautelosa de Antígona em cena como sinónima de timidez. Ela só
viria a abandonar e até mesmo a refutar esta característica, quando avan-
çasse por entre as linhas inimigas para se despedir do irmão moribundo.
38 Carmen Isabel Leal Soares

Estas seriam provas para considerar Antígona um carácter em evolução l9 .


Em nosso entender, não estamos perante um caso de personalidade em
formação. Não porque julguemos vinte e quatro horas tempo insuficiente
para essa transformação se operar. O estado de guelTa vivido, a morte de
dois irmãos, o suicídio da mãe e a partida do pai para o exílio, tudo con-
centrado num só dia, são momentos de crise, sofrimentos-limite, capazes
de desencadear alterações no psíquico de qualquer ser humano. Mas
Antígona é tão-só isso: um ser humano. Detentora, no entanto, de uma
determinação capaz de fazer frente aos códigos comportamentais da
sociedade a que pertence. Eis porque apenas se ausenta do gineceu
mediante permissão materna. Contudo, se a obteve, tenhamo-lo presente,
foi graças à insistência das suas súplicas (91). A visão imprecisa do vulto
do irmão na planície tebana inspira-lhe o desejo de quebrar as amarras
desse estatuto de espectadora imóvel - o único que no momento lhe era
viável - e, veloz como o vento, atravessar em corrida os céus ao seu
encontro. Mais do que devido ao seu estatuto de donzela, por uma ques-
tão de segurança que afecta todos os sitiados, Antígona transpõe as balTei-
ras, que a distância real que a separa do irmão representa, apenas por
meio da palavra. O plano do verbo é, por conseguinte, o único que a prin-
cesa tem ao seu alcance para fazer face à convenção.
A primeira e última falas fornecem ainda informações espaciais pre-
cisas. Na abertura do episódio, Antígona vem do gineceu (89) para no
final ouvir do Pedagogo o conselho de aí permanecer (194). A entrada e a
saída da princesa são propiciadas por situações contrastantes. No primeiro
caso foi um ambiente solitário. No segundo é a afluência de um grupo de
mulheres que vem pôr um termo natural ao episódio (196 sq.). Estabele-
ce-se uma distinção nítida entre espaço da descrição (o telTaço ou primei-
ro andar do palácio, 90)20 e espaço descrito (a planície tebana, 101 sq.) .
Duas isotopias permitem sublinhar a oposição tópica entre emissores e
objecto da descrição. Do lado daqueles dominam as formas verbais per-

19 Esta opinião é partilhada, nomeadamente, por D. J. Mastronarde, op. cit., 170-1, e E.


Craik (trad. comm.), Euripides. Phoenician Women (Warminster 1988) 174.
20 Esta indicação não é passível de uma leitura unívoca. Pode referir-se ao segundo andar
ou à parte mais elevada do palácio (D. 1. Mastronarde, op. cit., 180 sq.). Os dados rela-
tivos ao cenário não são muito abundantes, "mas, uma vez que esses textos eram escri-
tos para serem representados e não com o intuito de ajudar o público leitor a visualizar a
cena ou até mesmo com o desígnio de ajudar o subsequente produtor numa encenação
pormenorizada, as indicações mais precisas geralmente referem-se, de certo modo para-
doxalmente, ao que o auditório não via ou que via de forma tão rudimentar que neces-
sitava de ajuda na sua interpretação" (A. M. Dale, "Seen and unseen on the Greek
stage", in Collected papers, Cambridge 1969, 119).
o Discurso do Extracénico 39

tencentes ao grupo semântico de "ver"21 . Do espaço descrito destaca-se


um número muito idêntico de ocorrências do campo semântico de "movi-
mento". Numa perspectiva global do adversário, é todo o exército dos
Pelasgos que assume um movimento progressivo e disjuntivo. Diz o
Pedadogo a Antígona: Chegaste na altura exacta: acontece que o exérci-
to pelasgo começa a movimentar-se e afastam-se os batalhões uns dos
outros (107 sq.). O foco estreita-se nos seus generais. Temos Hipomedon-
te a caminhar à frente do exército (120); Tideu atravessa a COlTente de
Dirce (131); Partenopeu contorna o túmulo de Zeto (145), seguido ime-
diatamente atrás pelos seus homens (148 sq.); o adivinho Anfiarau con-
duz o calTO que o transporta (171 e 178). Dos sete chefes que avançam
contra a cidade, há no entanto dois que se caracterizam pela imobilida-
de22 . São eles Polinices, que se encontra junto à sepultura das sete filhas
de Níobe (159 sq.), e Capaneu, que calcula mentalmente a altura das
muralhas de Tebas (180)23. Resulta, pois, que esta ausência de movi-
mento é um elemento de natureza "cénica" comum às figuras que em
Antígona despertam emoções mais fortes e antagónicas. A impressão que
causam na donzela - no caso de Polinices motivada pelo amor fraterno e
no de Capaneu por um ódio visceral - encontra-se enfatizada na maior
extensão discursiva que é conferida a ambos os retratos face aos restantes.
Esta é uma situação opOltuna para, pela boca da sua personagem, o
dramaturgo dar voz a uma misoginia de que tantas vezes foi acusado na
comédia aristofânica24 . As mulheres são o sexo da maledicência, que,
numa evidente mostra de falta de solidariedade, se orienta para elas mes-
mas: A maledicência é própria da raça feminina; se apanharem umas
míseras partes de uma conversa, alteram radicalmente o seu sentido
(198-201).
A teichoskopia euripidiana reparte os focos de interesse do especta-
dor por um dinamismo teatral, como acabámos de ver, e pelo deleite
artístico da profusão pictórica. O brilho brônzeo das armas dos guen'eiros

21 Vv. 9 1,96, 101, 118, 127, 131, 142, 144, 147, 161, 195.
22 Aqui só se retratam seis deles, pois Adrasto é apenas nomeado como ponto de referência
para Antígona situar Polinices, que se encontra próximo daquele (160).
23 Mesmo que Capaneu se deslocasse para fazer esta relação, o elemento móvel não é
relevante para o seu retrato.
24 Cf. M. F. S. Silva, "A mulher, um velho motivo cómico", in F. Oliveira e M. F. S. Silva,
O teatro de Aristófanes (Coimbra 1991), especialmente 233-8. Passo exemplar da paró-
dia à maledicência feminina é o seguinte: ... vamos nós mesmas e as nossas escravas
arranjar, em qualquer lado, umas cinzas para lhes tirarmos os pêlos das vergonhas,
para ela aprender, já que é mulher, a não dizer mal das mulheres daqui em diante (trad.
de M. F. S. Silva, As mulheres que celebram as Tesmofórias, Coimbra, 21988, vv. 537-9).
40 Carmen Isabel Leal Soares

é, como já notámos, a imagem que da planície circundante de imediato


sobressai (110 sq.). Aliás, mais do que o barulho e as nuvens de poeira
levantadas por homens e cavalos, era o brilho das armas e da armadura o
elemento característico das descrições homéricas do campo de batalha.
De facto, não podemos esquecer que, graças à sua panóplia, os hoplitas
gregos da época arcaica ficaram conhecidos entre os outros povos como
"homens de bronze"25. A noção de uma luminosidade que se estende a
toda a superfície do terreno observado tem apoio na chamada de atenção
do Pedagogo para a grandiosidade, em termos quantitativos, do aparato
bélico inimigo - Não foi armado à ligeira que Polinices veio à nossa
terra, pelo contrário, não só chegou com uma multidão de cavalos, como
jàz ressoar milhares de armas (1112 sq.) . Ao invés do que se passara
com Antígona, o sentido que nele desperta o ajuntamento da cavalaria e
infantaria é auditivo.
Obedecendo a um princípio da técnica descritiva do catálogo, temos
a apresentação sucessiva de determinado número de figuras. No presente
caso os elementos identificativos podem ir desde o nome, a farrulia (dada
pela indicação da paternidade, da maternidade e/ou da raça) e o aspecto
exterior, até à proveniência geográfica. Este esquema não tem por resul-
tado uma identificação e caracterização estereotipada e objectiva de figu-
ras. Antes pelo contrário, as personagens enunciadoras produzem um dis-
curso pessoalizado, com marcas claras da sua presença. Donde temos a
(co )existência de vários registos do discurso subjectiv026 .
A procura de variatio verifica-se igualmente na ordem em que são
apresentados os chefes. Estamos a falar na atribuição, alternada pelos dois
locutores, da responsabilidade de introduzir determinado guerreiro na
sequência dialógica. Na esmagadora maioria dos casos (cinco contra um)
cabe a Antígona dar o "mote". Este baseia-se ou (a) num pormenor da
aparência, tido como singular, ou (b) na curiosidade por alguém que já se
conhece. Assim:
Instância de enunciação Chefes (pela ordem de apresentação)
Antígona (a) Hipomedonte
Pedagogo Tideu
Antígona (a) Pmtenopeu
Antígona (b) Polinices
Antígona (a) Anfim'au
Antígona (b) Capaneu

25 Cf. H. van Wees, '"The Homeric way of war: The Iliad and the hoplite phalanx", G&R
41 (1994) 131.
26 Sobre a distinção entre discurso subjectivo e objectivo, bem como sobre os vários tipos
de registo que aquele pode oferecer, veja-se C. Reis e A. C. Lopes, op. cit. , 340-5.
o Discurso do Extracénico 41

Ou seja, quando não alterna a instância de enunciação, alterna o


pormenor que desperta a atenção da personagem enunciadora.
Temendo pela segurança da cidade, que vê ameaçada por um con-
tingente tão poderoso, o coração da jovem oprime-se. A angústia, que a
invocação a uma divindade apotropaica, Hécate, adianta (109-10), é de
seguida materializada em palavras - Por ventura estão as portas cerra-
das e as trancas de bronze fixas à muralha de pedra, obra do trabalho de
Anfíon? (114-6) A tintura dominante do quadro continua ainda a ser a
brônzea. Tranquilizada pelas palavras do seu interlocutor (Fica tranquila.
Por dentro a cidade está em segurança 117), a princesa adquire a predis-
posição necessária para passar uma revista orientada aos baluartes das
hostes inimigas. À semelhança do que sucedera no caso do exército no
seu conjunto, ao deter-se em figuras individuais, o olhar da princesa con-
tinua a ser estimulado por impressões cromáticas. Destaca-se o penacho
branco de um elmo e o refulgir de um escudo todo em bronze, sustentado
em tomo do braço do guelreiro (121 sq.). Refira-se que, mais do que uma
função decorativa, o penacho serve como inspirador de med0 27 . A emer-
gência do brilho enfatiza-a o poeta pelo emprego do hápax do adjectivo
ÀEuKoÀócras-, que significa 'de penacho branco' (119), e uma vez mais
pela presença do bronze. A dualidade do brilho reflecte-se pela fusão na
mesma figura do branco luminoso e da tonalidade acobreada. A forma
sucinta com que o Pedagogo o identifica - um chefe, 122 - em muito
pouco esclarece a curiosidade da jovem. Na verdade, esta, ao observar
que ele era aquele que caminha à frente de um exército (120), já pudera
adivinhar a sua função militar. Marcas de insatisfação ou até mesmo de
impaciência perante a resposta evasiva do interlocutor sentimo-las na
construção anafórica do pronome interrogativo (TLS-), visível no original,
e na exortação, acompanhada do vocativo, da sua fala seguinte: Qual é a
sua origem? Responde, ancião, como se chama ele (123 sq.). Respeitan-
do a ordem das questões, o Pedagogo identifica primeiro a raça - este diz-
-se que é Micénio de raça - e completa-a com a origem geográfica
- Argos - daquele que denomina 'rei Hipomedonte' (125 sq.). O uso de um
verbo de "opinião" na forma impessoal 'diz-se' veicula um conhecimento
limitado por parte da instância enunciativa. O recurso ao registo modali-
zante da enunciação está ao serviço de um princípio essencial na tragédia,
a verosimilhança (Aristóteles, Poética 1454a 33-7). De facto o conheci-
mento que o Pedagogo tem dos chefes argivos é necessariamente defec-
tivo. O seu contacto com a hoste inimiga foi temporário e, tanto quanto
afirma, estritamente formal. Limitou-se a ser o intermediário na proposta

27 Cf. H. van Wees, op. cit., 137.


42 Carmen Isabel Leal Soares

de tréguas (96-8)28. Bastante evidente no comentário de Antígona à figura


de Hipomedonte é uma das características já atrás indicada como inova-
ção euripidiana face à teichoskopia homérica. Consiste ela em extrair do
aspecto físico da figura descrita conotações psicológicas. Da estatura
desmesurada do chefe a donzela colhe uma impressão de altivez e terror:
Ai, ai, como está confiante, como provoca pavor a sua visão, semelhante
a um gigante nascido da terra, refulgente como as estrelas nas pinturas,
em nada se aparenta com a raça dos efémeros (127-30). A comoção sen-
tir-se-ia na sua voz, como sugere a dupla inteljeição e a construção anafó-
rica do advérbio de comparação. A presença de adjectivos, típica do
registo avaliativo, que pelo seu conteúdo de limitação cognitiva se
apropria também ao registo modalizante, faz deste chefe um ser excluído
da raça humana. A imagem continua a fascinar pelo brilho que emana,
um brilho sobrenatural (porque de um gigante) e celeste. A opção pelo
discurso de registo modalizante é uma opção inerente ao comentário. Este
é sempre uma forma limitada e pessoal de construir a realidade 29 .
As reflexões de Antígona são interrompidas pela introdução de um
outro comandante, desta vez por iniciativa da voz masculina. As referên-
cias geográficas fornecidas para mais fácil identificação da figura vêm
engrossar os dados topográficos de um quadro precisado nas suas coor-
denadas espaciais 30 . O elemento pertinente do retrato do guerreiro conti-
nua a ser o seu armamento. Não se trata, contudo, de um pormenor da
indumentária, como acontecera no caso anterior, mas da sua configuração
geral: outro, outro é o aspecto das armas deste. Quem é ele? (132 sq.) .
Os critérios de identificação residem, agora, na paternidade e uma vez
mais no nome: É o filho de Eneu, Tideu, que no peito tem Ares etólio
(133 sq.). Por meio da metáfora Ares etólio, que traduz 'o furor bélico dos
Etólios', o Pedagogo informa da sua bravura guerreira. A impressão cro-
mática que se projecta de Tideu não é definida na sua cor, mas merece
referência por se contrapor aos dados pictóricos anteriores - como é
diversa a cor das suas armas (138). O lugar de destaque que, pela
aparência, esta figura ocupa no corpo armado descrito transparece no

28 Esta ideia é retomada nos vv. 141-4, quase unanimemente julgados espúrios (cf. D. J.
Mastronarde, op. cit., 192-3).
29 "Na tragédia, referências feitas a algo apenas visto na arte pode significar implicita-
mente a falta de uma experiência em primeira mão da personagem [que descreve] ou a
monstruosidade ou estranheza do objecto referido" (D. 1. Mastronarde, 017. cit. , p. 187).
Assim, Antígona compara Hipomedonte a um gigante figurado na pintura para realçar a
singularidade do porte e o seu desconhecimento de tal figura no mundo real.
30 D. 1. Mastronarde, op. cit., 647-50, fornece um estudo pormenorizado da geografia de
Tebas.
o Discurso do Extracénico 43

adjectivo que, no mesmo verso, o define como meio-bárbaro. O grau de


parentesco que o liga a Polinices, de quem Tideu é cunhado, é o único
tipo de observação do foro pessoal pronunciado por Antígona. Quem,
contudo, profere a última palavra a respeito deste chefe é o Pedagogo.
Numa observação de carácter sentencioso, típica do registo abstracto,
revela os atributos e funções militares dos Etólios: Todos os Etólios tra-
zem escudo, filha, e são os mais hábeis atiradores de dardos (139 sq.).
Concentrando numa só intervenção as características até agora
repartidas pelos dois interlocutores, Antígona indica a posição geográfica,
as singularidades físicas e a função militar de um novo comandante (145-
-9). À imponência do vigor físico de Hipomedonte e furor bélico de
Tideu acrescenta-se a beleza estatuária de um jovem, Partenopeu3 1• Pare-
ce ser este o chefe que a donzela vê de mais peIto, pois claramente
distingue as linhas de uma cabeleira encaracolada e o brilho terrífico do
seu olhar. Características essas que lhe dão a aparência de um jovem.
A adjectivação ('terrífico') e a modalização ('parecer') estão ao serviço
de um discurso subjectivo de configuração avaliativa e modalizante. Pela
primeira vez Antígona atreve-se a amaldiçoar um chefe inimigo, identifi-
cado uma vez mais pelo nome e farru1ia (Esse é Partenopeu, filho de
Atalanta, 150). Suplica a Áttemis a morte daquele que veio para destrui-
ção da minha cidade (153) . A carga afectiva que transfere para a paisa-
gem descrita torna-se mais flagrante pelo uso do registo pessoal, denun-
ciado no possessivo 'minha'.
Como se tem procurado comprovar passo a passo, o diálogo está
fOltemente marcado pela presença das instâncias enunciativas. O que não
exclui, numa análise mais aprofundada, a legitimidade de estabelecer uma
escala de subjectivismo diversa para cada uma das vozes. Na sua função
de intérprete de um objecto conhecido diante de uma figura que carece
desse saber, o Pedagogo pronuncia um discurso relativamente isento,
descomprometido e por vezes imparcial. Se, enquanto cidadão tebano, é
natural que ele partilhe do desejo de salvação da cidade, na qualidade de
informador, porém, não deixa de reconhecer a justeza da ofensiva de
Polinices e de temer igual opinião da palte dos deuses . Daí que, perante o
desejo de Antígona de que Pattenopeu pereça às mãos de Áltemis (151
sq.), o ancião desabafe: Assim seja, donzela. Porém com justiça invadem
a nossa terra; e eu receio que os deuses levem isso em conta (154 sq.).
Ao invés, a posição de Antígona é, sem dúvida, bastante comprometida e
por vezes apaixonada (como vimos para os casos de Polinices e Capa-
neu).

31 A beleza de Partenopeu é um dado presente também nos vv. 1159-62 desta peça e em
Suplicantes 889, 899 sq. e Ésquilo, Os Sete contra Tebas 532 sq.
44 Carmen Isabel Leal Soares

Da antevisão da dor da cidade para a consumação do dilaceramento


familiar e pessoal a passada é curta. De imediato Antígona transfere os
seus pensamentos e preocupações para a figura querida do irmão exilado.
O amor e ternura fraternais brotam espontaneamente. Desde logo na perí-
frase que o evoca sobressai essa relação umbilical: Onde está o que para
mim nasceu de uma mãe única, fadado a muito padecer? (156 sq.)
A emergência do ego, na fonna do pronome pessoal, caracteriza um dis-
curso fortemente pessoalizado. Só em seguida pronuncia o nome próprio,
para requestar o seu paradeiro na planície circundante (158). Um desejo
demasiado intenso pode revelar-se contraproducente. Parece-nos, pois,
que o excessivo, mas humanamente compreensível, empenhamento emo-
cional da jovem constitui um impedimento psicológico para um seguro
reconhecimento do irmão. Contudo, como se pode ver pela localização
aproximada que dele dá o Pedagogo - Ele encontra-se junto do túmulo
das sete filhas de Níobe, estacionado próximo de Adrasto (159 sq.) -
mais do que condicionalismos da emoção, a imagem desfocada, o reflexo
da sua forma, com a particularidade de uma nítida semelhança do peito,
são os únicos elementos que a distância oferece ao olhar da jovem (161
sq.). Pela selecção vocabular, adverbial ('não claramente') e nominal ('os
contornos da forma' e 'semelhante'), o registo modalizante deixa transpa-
recer essa imprecisão - derivada do gosto do poeta pelo realismo no jogo
de planos.
O poder dramático de Antígona vem-lhe do verbo. Ou está impos-
sibilitada de agir ou, quando age, age em vã0 32 . O único meio que tem de
se libertar dessas grilhetas é o do desejo, de uma vontade que não se
silencia: Qual nuvens velozes como o vento, oxalá eu pudesse correr
pelos céus para junto de meu irmão, o triste exilado, e, ao menos por
breves instantes, lançar os meus braços em torno do tão amado colo
(163-7). A imagem de nuvens velozes como o vento simboliza a urgência
do reencontro. Pela sua rarefacção, ao mesmo tempo evoca um desejo
inconsequente, ilusório. O toque físico, o estreitar dos braços no colo que-
rido, ainda que breve, seria o suficiente para apaziguar a chama da sauda-
de. O subjectivismo da protagonista fica linguisticamente versado na
congregação de três tipos de registo: o pessoal, o figurado e o avaliativo .
Todos eles estão, por sua vez, subordinados ao registo modalizante, que o
optativo desiderativo grego, correspondente ao nosso conjuntivo imper-
feito, comporta.
Porque o material se sobrepõe à emoção, a referência ao armamento

32 "Frequentemente [as personagens principais] agem em vão ... Antígona e Polinices só se


reencontram no momento em que este mon'e" (D. 1. Mastronarde, ap. cit., 10).
o Discurso do Extracénico 45

que Polinices enverga aparece a fechar o seu retrato. O quadro enriquece-


-se com mais uma tonalidade, a do ouro, enfatizada pela comparação -
Como se distingue com as suas armas de ouro, ancião, brilhando como
os raios matutinos do sol (168 sq.). Note-se que o uso de metais preciosos
na confecção das armas, mais do que uma realidade histórica, reflecte o
gosto dos poetas por um "efeito decorativo"33. Procurando animar uma
alma dilacerada pela saudade, o Pedàgogo dá esperanças da concretização
desse reencontro (170 sq.).
Função de "intermezzo" emocional adquire o retrato sóbrio de
Anfiarau, que assim surge a separar a imagem amada, Polinices, da amal-
diçoada, Capaneu. O elemento emblemático do grupo pictórico do adivi-
nho é o seu carro branco (172). Associada à figura de um ministro divino
de conduta piedosa, a alvura do carro adquire um valor simbólico inegá-
vel. Dos pescoços das vítimas propriciatórias jorra sobre a terra sedenta a
cor rubra do sangue. Mancha que preanuncia uma dor maior, da farrúlia
real, dos civis, dos guerreiros.
Figura central desta tela é ainda Capaneu. Nos antípodas do coração
de Antígona, o insolente guerreiro merece-lhe os mais ferozes ataques -
Onde está aquele que dirige terríveis ultrajes a esta cidade, Capaneu?
(179 sq.) e acusa-o de possuir uma jactância soberba (184). Como fora
próprio evocar para um modelo de sensatez e piedade divina - Anfiarau -
a filha da luz, Selene (175 sq.), evocam-se agora as trevas, personificadas
em Némesis, e a força destruidora dos trovões e raios de Zeus (182 sq.).
O medo da sujeição à escravatura, presente no párodo esquiliano, sai aqui
desenvolvido numa perspectiva pessoalizante. Da evocação da escrava-
tura como destino comum a todas as mulheres tomadas pelos Argivos,
Antígona passa à expressão do seu receio individual: É este que ameaça
levar, pela força da sua lança, as cativas tebanas para Micenas < ... >34 e
para a fonte de Lema, entregando-as à servidão das águas posidónias de
Amimone 35 . Nunca, nunca, essa servidão, ó soberana, de áurea cabelei-
ra, rebento de Zeus, Ártemis, eu venha a sofrê-la (185-92) .

33 Cf. H. van Wees, op. cit., 134.


34 Lacuna no texto.
35 Amimone era a mais célebre fonte de Lema, cuja designação, segundo o mito, derivaria
do nome de uma das 50 filhas de Dânao. Deixada a Lídia, Dânao instalou-se com as
suas filhas em Argos. A região não tinha água, porque Poséidon, para se vingar do facto
de ser Hera e não ele a divindade adorada, a privava desse bem. Enviada pelo pai em
busca de água juntamente com as suas irmãs, Amimone, fatigada, acaba por se deixar
adormecer no campo. Um sátira surpreende-a e tenta violentá-Ia. Quem salva a jovem é
o próprio Poséidon, arremessando o tridente ao sátira. Ao cair por terra, o tridente atinge
uma racha de onde jorra uma fonte. Essas águas, além da denominação de fonte de
Amimone ou Tridente, podem também ser chamadas de águas de Poséidon ou posidónias.
46 Carmen Isabel Leal Soares

Vítima real dos flagelos da guelTa, Antígona não podia aliviar as


cores intensas desse espectáculo. O brilho ofuscante do branco e do dou-
rado, salpicado pela impertinência do rubro, fere e seduz um olhar de
jovem, que é simultaneamente um olhar da experiência humana da dor36 .
A profusão pictórica do quadro confere à teichoskopia um tom
sobretudo plástico e, simultaneamente, despe a imagem de aproximação
do exército argivo da ideia de urgência do perigo. Não esqueçamos que o
Pedagogo começara por tranquilizar a jovem quanto à segurança da cida-
de (117), predispondo-a, desse modo, para uma apreciação exterior dos
chefes inimigos. A comparação entre a perspectiva euripidiana e a dos
Sete contra Tebas de Ésquilo - onde o coro percepciona os sinais acústi-
cos do avanço dos sitiantes com nítido pavor e angústia - leva-nos a
interpretar como propositada e voluntária a ausência do perigo do quadro
do nosso dramaturgo.

o ócio dos guerreiros (Ifigénia em Áulide, 171-230)


Retida nas costas da Áulide, a expedição grega destinada a resgatar
Helena vê ameaçado o seu desejo de acção e postas em risco as compen-
sações materiais de um saque que as riquezas de Tróia deixavam antever
promissor. Segundo interpretação do adivinho Calcas, os ventos neces-
sários à navegação só voltariam a soprar, quando Ifigénia, a filha de
Agamérnnon, o comandante do famoso exército aqueu (v. 332), fosse
imolada à deusa Ártemis. Forçados a esperar pelas condições favoráveis à
partida, os guerreiros entregam-se aos deleites do ócio, que a iminência
dos trabalhos da guerra faz disfrutar com mais intensidade. É esse breve
quadro de descontracção que os olhos das coreutas filtram com avidez.
A perspectiva temporal que elas assumem relativamente à história é
retrospectiva; apresentam à imaginação do espectador uma cena situada
no passado. O relato indeferido, próprio da "descrição ulterior", perde,
certamente, em termos de tensão suscitada no público. Do nosso ponto de
vista, esta carência é, contudo, minimizada por uma opção emocional-
mente rica: a escolha de um coro feminino.
A descrição que as mulheres da Cálcide fazem do exército aqueu
assume-se como um fragmento discursivo motivado. Assim como houve
uma motivação para observar - a curiosidade feminina pelo que desco-
nhece (190 sq.)37 - há também uma motivação dramática para o espectá-

36 Para uma interpretação de imagens de luz e visão, abundantes na teichoskopia, como


símbolos de promessas de esperança e sucesso ou vitória para as personagens, leia-se
A. 1. Podlecki, "Some themes in Euripides' Phoenissae", TAPhA 93 (1962) 357 sq.
37 A motivação para descrever comum à Antígona de Fenícias e ao coro da presente peça
o Discurso do Extracénico 47

culo aludido pelas palavras. Quanto à estruturação do "mundo possível"


desta história, a descrição do acampamento grego em Áulide constitui-se,
sem dúvida, como elemento fundamental no delinear das suas coordena-
das espácio-humanas. Toda a acção da peça se passa em Áulide e a pres-
são da soldadesca ausente da cena condiciona os compottamentos de
figuras tão importantes como Agamémnon (352 sqq., 514, 1012, 1259-
-70), Aquiles (814-8, 1348, 1352 sq.) e Ulisses (1364)38.
Da totalidade do canto de entrada do coro em cena, o chamado
párodo, apenas os vv. 171-230 são a descrição de um exército. Ultrapassa
o âmbito da nossa proposta o epodo final, correspondente a um catálogo
do contingente náutico dos Argivos, motivo de nítida inspiração homérica.
Impõe-se uma análise aos versos que formam a estrofe inicial, uma vez
que servem para introduzir as coreutas, o exército e resumir o assunto do
seu canto. Os sete versos de abertura da primeira estrofe do párodo fazem
referência a espaços extracénicos: a costa arenosa da Áulide (164-65) e o
local de origem das coreutas, a cidade marítima da Cálcide, berço da
venerável Aretusa (168-70).
O desejo de perscrutar das coreutas tem dois alvos. Primeiro querem
ver as tropas e depois a frota. Como já foi notado para a teichoskopia de
Fenícias, o foco de observação começa por fixar-se em um grande plano
- o exército aqueu e o seu acampamento - para posteriormente centrar o
ângulo óptico em perspectivas parciais do colectivo ou figuras indivi-
duais. Uma vez mais, Eurípides põe na boca de testemunhas o relato des-
ses elementos da história. O carácter testemunhal da descrição é dado
pelo uso de um discurso de primeira pessoa e sublinhado pela referência à
situação oposta, conhecimento de uma realidade através de terceiros. Ou
seja, ao mesmo tempo que descrevem aquilo que viram - a armada -, as
mulheres da Cálcide mencionam sumariamente o que ouviram dizer da
parte dos seus maridos - a razão da expedição argiva contra Tróia: res-
gatar Helena, outrora oferecida por Afrodite a Páris (173-84).
Também no presente caso o tragediógrafo buscou para o seu quadro
inspiração no modelo homérico de divertimento dos homens de armas.

continua a ser a curiosidade. Como observa H. van Looy, "nos seus dramas tardios,
Eurípides mostrou uma predilecção bastante pronunciada por um coro composto de
estrangeiras -estrangeiras em relação ao protagonista. É este o caso de Fenícias e
também o de lfigénia em Áulide, onde as mulheres chegam da Cálcide e, como único
motivo dessa vinda, indicam a curiosidade" ("II coro deli' lfigeneia iI! Aulide", Dioniso
55, 1984-85,250).
38 Ficam ainda disseminadas pela obra alusões a um condicionamento social dirigido a
lfigénia e sua mãe, presenças femininas impróprias em um acampamento guerreiro e
cujo contacto com os seus elementos pode ser alvo de repreensão (678, 753, 825 sq.,
830,993,998-1001,1338-40,1357).
48 Carmen Isabel Leal Soares

Na verdade, o épico dedica aproximadamente dois terços de um canto aos


jogos fúnebres em honra de Pátroclo (Ilíada 23). Estas provas desportivas
estão inseridas num concurso; os seus participantes são instigados por um
espírito competitivo, satisfeito na recepção dos prémios. Mas as activida-
des a que se dedicam os chefes aqueus na lfigénia em Áulide estão isentas
de tais princípios. Donde se conclui que não foi este o modelo directo de
inspiração do nosso poeta. Contudo devem salvaguardar-se, desde j á,
alguns elementos de intertextualidade com este passo épico. A corrida de
carros, a corrida a pé e o lançamento do disco são algumas das provas
retomadas por Eurípides. Além de conjugar a corrida de carros com uma
versão pruticular da corrida pedestre, a cena de disputa de velocidade
entre Aquiles e os corcéis do auriga Eumelo é a que, pelo seu visível espí-
rito competitivo, mais deve ao modelo épico dos festivais fúnebres .
É, então, em passos mais breves que Eurípides parece ter encontrado
o seu principal paradigma. Do catálogo das naus do canto II da Ilíada , os
guerreiros mirmidões são os únicos que, por determinação do seu coman-
dante, se ausentam de combater os Troianos. Aquiles, o mais valoroso
guerreiro dos Dânaos, permanece em repouso junto às recurvas naus
(772). A mesma inactividade caracteriza os meios de guerra, os cavalos e
os carros (775-77). Os seus homens ocupam o tempo disfmtando do lan-
çamento do disco, do dardo e das flechas. Estas são práticas lúdicas em
momento de guerra. Em Odisseia, 4. 624-29, temos, protagonizado peJos
pretendentes de Penélope, um idêntico quadro de entretenimento, mas,
contrariamente ao anterior, situado em tempo de paz. Também afastado
das dores da guerra, mas não das da elTância, Ulisses assistira e partici-
para em jogos na terra dos Feaces (Odisseia, 8. 100-194).
As actividades desportivas do lançamento do disco (comum aos três
últimos passos épicos e ao da tragédia), dardo e flechas têm por objectivo
o prazer dos seus praticantes. Assim o indica a selecção verbal dos Poe-
mas Homéricos do gmpo semântico 'usufmir', TÉpTTúl (Ilíada 2. 774 e
Odisseia 4.626 e 8.131) - bem como a do tragediógrafo, que, no entanto,
apresenta variantes semânticas, derivadas de 'gozar, sentir prazer' ,
~80I-laL, e 'alegrar-se', XaLpOl-laL (199 sq.). O prazer resultante do jogo
dos dados ou do disco é formalmente enfatizado pelo poeta. No primeiro
caso através da posição central e reversível do pruticípio presente em
relação às duas figuras com que concorda - Protesilau e Palamedes: Pro-
tesilau e Palamedes divertiam-se com as figuras complicadas dos dados
(192-9). Da presença em uma só oração de um substantivo e de um verbo
desse mesmo campo semântico advém idêntico efeito nos versos 199 sq.:
[vi] Diomedes que se alegrava com os prazeres do lançamento do disco.
o Discurso do Extracénico 49

Procuraremos de seguida apurar o desenvolvimento muito mais


amplo - como desde logo se vê pelo simples confronto do número de
versos do passo épico do canto II (771-9) com o do trágico - dado por
Eurípides ao motivo do ócio dos guen'eiros (59 vv.).
Nos primeiros quatro versos da antístrofe, o coro fomece coordena-
das espaciais e autocaracteriza-se. O emprego, lado a lado, de dois verbos
do campo semântico de "movimento", um sob forma predicativa ('vie-
mos') e outro nominal ('apressando-nos' 186), são reveladores da ansie-
dade das jovens, da pressa que tinham em concretizar o objectivo daquela
deslocação (189-91) . Como já anteriormente notámos, a juventude do
coro depreende-se do pudor juvenil que afirmam enrubescer-lhes a face
(187 sq.) bem como dos termos 'donzelas' (1310) e 'jovens' (1467 e
1491), que lhes dirige Ifigénia. Não só a idade e o esforço da corrida,
como também a vergonha, inerente ao facto de observarem um mundo
exclusivo dos homens, podem justificar as cores afogueadas que lhes
cobrem o rosto. Pela adjectivação que qualifica a notação de espaço que
as coreutas transmitem - o bosque sagrado de Ártemis, rico em sacrifí-
cios (185 sq.) - este assume-se como um indício do tema central da peça,
o sacrifício de Ifigénia.
Obedecendo a um princípio que se tem revelado comum para a téc-
nica descritiva em consideração, assistimos a um estreitamento progres-
sivo do foco ocular. O que, de forma genérica, desperta a curiosidade das
jovens é a pluraliddade dos apetrechos bélicos do acampamento. Em
paralelismo com a linha de navios primeiramente demarcada através dos
remos (172), o coro dá conta de uma linha fortificada do exército, forma-
da pelos escudos, delimitando o acampamento dos guerreiros (189).
Componente emblemática de um aquartelamento são as tendas, que as
observadoras notam estar repletas de armas (189 sq.). Pelo seu elevado
número e admiração natural que desperta, a cavalaria é o terceiro dos
elementos destacados no horizonte (191). As perspectivas criadas nos
ouvintes desta descrição só em parte, e à primeira vista, parecem ser con-
trariadas pelo discurso compreendido nos restantes versos da antístrofe.
Pois, embora não se assista à descrição anunciada dos "utensílios" do
guerreiro, mas sim à do próprio, o destaque conferido ao retrato dos cor-
céis da quadriga de Eumelo (218-26) supera em muito, como veremos,
pelo número de versos e riqueza linguístico-retórica, o retrato do compo-
nente humano.
De acordo com um processo descritivo que podemos designar por
"segmentação" de um quadro, o exército aqueu é reconstituído na mente
dos espectadores através da acumulação de "parcelas" sucessivas do todo.
O número de versos dedicado a cada uma dessas partes aponta para o
50 Carmen Isabel Leal Soares

relevo assumido pelo par Aquiles-Eumelo (ao qual são dedicados 23 ver-
sos contra uma média de 3 para cada outro dos pares), cuja posição em
final de estrofe é indiciadora de um estatuto de corolário, de motivo cen-
tral do quadro.
Do ponto de vista da técnica enunciativa, o tragediógrafo confere ao
texto características semântico-retóricas próprias do designado efeito de
"catálogo". Isto é, assiste-se à enumeração de cinco pares de sujeitos,
retratados mediante alguns requisitos comuns. Procurando conferir varia-
tio a um tipo de enunciação por natureza repetitivo, o poeta, pela oposição
movimento/estatismo e pela não utilização simétrica dos requisitos para
caracterização das diversas figuras, distingue os pares. Assim, o primeiro,
segundo e terceiro pares de guerreiros são representados imóveis. Os dois
Ajantes estão sentados juntos (192)39; Protesilau e Palamedes são descri-
tos na mesma posição, como indica o complemento de lugar 'sobre os
bancos' (195); de Ulisses e Nireu não há qualquer informação sobre a sua
actividade, tão-só da sua proveniência geográfica (vindo das montanhosas
ilhas, perífrase de Ítaca, 203). Contrariamente a estes, os restantes dois
pares irmanam-se pelo movimento que os caracteriza. No que diz respeito
a Diomedes e Meríones é apenas ao primeiro que se atribui acção (o lan-
çamento do disco, 200), o que não retira ao grupo o movimento como
elemento de realce, pois Meríones parece estar ali unicamente com a
finalidade de fazer parceria de observador, conforme sugere o comple-
mento de lugar junto dele [estava] Meríones (201) . No retrato do Pelida,
aos epítetos de significação motora - de pés rápidos como o vento e veloz
(206 sq.) - somam-se formas predicativas ou nominais de verbos do mes-
mo campo semântico: vi ... Aquiles em corrida pela praia pedregosa (208-
-11), contornando a marca da vitória (215), agitava-se (226). Do todo
que formam o auriga e o seu carro, a noção de movimento vem atribuída,
através do substantivo 'corrida' (8pó~0S' , 224), ao elemento que mais se
evidencia e maior fascínio exerce no coro (o mesmo é dizer junto do
poeta), os cavalos.
São dois os aspectos comuns contemplados no retrato das várias
figuras de guerreiros: ascendência e epíteto(s) . Se exceptuarmos o caso de
Eumelo, para quem o apelido Feretíada indica o nome do avô 40 , todas as

39 A apresentação dos dois Ajantes lado a lado é de nítida inspiração homéIica. De facto
são numerosos os exemplos registados na Ilíada para esta realidade (2. 406; 4. 273 e
280; 5. 519; 6. 436; 7. 164; 8. 79 e 262; 10. 228; 12. 265, 335 e 353; 13.46,47, 197,
201 e 313; 15.301 ; 16. 555, 556; 17. 531 , 668, 707, 732 e 752; 18. 157 e 163), com
especial relevo para o símile dos bois, sinónimo da inseparabilidade dos dois guerreiros
(17. 703-8).
40 Seu pai era Admeto (Ilíada 2. 714).
o Discurso do Extracénico 51

outras indicações de progenitura coincidem com a filiação. Note-se, con-


tudo, que geralmente do par só a um se junta esta informação. É o que
acontece com Palamedes ifilho do filho de Poséidon, 198 sq.), Meríones
(rebento de Ares, 201 sq.), Ulisses ifilho de Laertes, 204) e Aquiles
(aquele que Tétis deu à luz, 208) . A identificação deste último vem acres-
cida da menção de Quíron, centauro que o educara de forma modelar
(207 sq.). Deste modo, Eurípides varia a apresentação do requisito da
ascendência. Porque Ájax é nome comum às duas figuras que abrem este
desfile, há que distingui-los: o filho de Eleu e o de Télamon (193).
O discurso das coreutas é nitidamente subjectivo. Não apresentam
uma descrição isenta do observado e elaboram um discurso pessoalizado.
Facto este materialmente expresso no recurso à primeira pessoa gramati-
cal dos verbos ou ao pronome possessivo (187). Ao registo pessoal jun-
tam-se ainda o avaliativo e o figurado, de que a abundância de adjectivos
e epítetos dão respectivamente conta. O par ProtesilaulPalamedes é, neste
caso, a excepção à presença de epítetos na caracterização das diversas
figuras dos sucessivos "subquadros" apresentados aos nossos olhos.
O emprego do epíteto é aproveitado de forma variável: pode servir para
compensar a não indicação da origem farnifiar (Nireu); pode aplicar-se
apenas a um elemento do par (Meríones, Nireu, Aquiles); pode acumular-
-se com a filiação (dois Ajantes, Meríones, Aquiles); ou pode, no caso
singular que são os corcéis de Eumelo, transferir-se do guerreiro para os
seus ammms.
Eurípides revela mais originalidade ao nível da selecção linguística,
e consequentemente semântica, quando retrata o quadro de Aquiles e
Eumelo. Ao passo que os epítetos que acompanham Ájax, filho de Téla-
mon, Meríones e Nireu têm uma nítida relação de intertextualidade com
Píndaro, no caso do primeiro (Píndaro Nemeia 4. 47), e Homero, para os
restantes dois41 , os adjectivos compostos, qualificativos de Aquiles e dos
corcéis, só estão registados para os textos do trágico e nestas mesmas
ocorrências (excepto ornados de ouro, cf. Aristófanes As mulheres no
Parlamento 972).
À semelhança da técnica de apresentação das figuras já descritas,
Aquiles e Eumelo são identificados (208 sq. e 217) e é referida a sua acti-
vidade (212, 216 e 226). Já não é só a excepcionalidade dos sujeitos que

41 De Ares rebento é variante da forma homérica muito comum rebento de Ares. Também
a expressão maravilha entre os mortais é uma modificação da homérica maravilha de
se ver. Note-se que neste último caso parece-nos que essa alteração resulta de um
acréscimo na superlativização do chefe. Como homem que era, o termo de comparação
são os mortais, para quem ele surge como algo admirável. Quanto à beleza de Nireu
(205), ela figura já na Ilíada como seu plincipal atributo (2. 673 sq.).
52 Carmen Isabel Leal Soares

se evidencia, mas também o carácter inusitado da prova desportiva que


realizam. Aquiles corre revestido pelas suas armas (211), pratica a corrida
designada por hoplitodromos42 . Em termos de caracterização do herói, a
sobrecarga do armamento, coadjuvada pela agressividade do terreno
(210) e a superioridade física do adversário (uma quadriga, 214), serve
para sublinhar a dificuldade de uma prova que só o esforço de quem pos-
sui uma velocidade sobrenatural (206 sq.) pode superar.
Tendo por adversária a quadriga de Eumelo, o Pelida funde a "cor-
rida com armas" com a corrida de carros. Na Ilíada, o filho de Admeto é
o primeiro a apresentar-se para a corrida. Apesar da fama de excelente
condutor (23. 288 sq.), acaba por ver o seu carro separar-se dos cavalos
(391-97) e chegar em último lugar. Este desaire não atinge o seu renome,
pois Aquiles continua a julgá-lo o melhor dos aurigas (532 sq.). Dando-
-lhe como adversário um chefe que a tradição literária e mitológica assim
distinguira, Eurípides contribui uma vez mais para sobrevalorizar a valen-
tia do seu herói. Do hipódromo improvisado à beira-mar, destaca-se a
meta que tem de ser contornada (215). Ao movimento acelerado que esta
dupla transmite dedica o poeta essencialmente os três versos finais da
antístrofe. Todo o seu empenhamento poético, como veremos de imedia-
to, transpira do contraste das tintas que agitam e projectam do todo "céni-
co" os corcéis. Pelo que se nos impõe constatar que a sensibilidade pictó-
rica do attista se assenhoreia da do dramaturgo.
Ao nível da perspectivação do observado, é curioso notar que,
mesmo na descrição de uma "parcela" do quadro, Eurípides recorre à
apresentação mediante a redução progressiva do "foco". O coro primeiro
dá conta da sua apreciação geral da quadriga: vi os mais belos corcéis
ornados de ouro (218-20). Se, pela alusão ao brilho dourado do ouro, se
demonstra a sensibilidade do attista plástico à cor, o elemento - 8a(8aÀToS'
('ornado') do adjectivo composto XPvCJo8a(8aÀToS' (ornado de ouro)
sugere o fascínio pela arte do cinzelador. Ao apelo visual alia-se, pelo tra-
balho das mãos, o táctil. Uniformizados que ficam pelos arreios que lhes
circundam a boca, logo as jovens mulheres destacam elementos distinti-
vos nos cavalos. A parelha central opõe-se à lateral. Esta está presa ao

42 Esta modalidade foi adicionada ao programa dos Jogos Olímpicos de 520 a. C. Segundo
o escoliasta de Aristófanes As aves 292, os concon·entes envergavam o elmo, a que se
juntavam ainda o escudo e as grevas (W. E. Sweet, Sport anel recreation in Ancient
Greece, London 1987,31 sq.). Sendo desconhecida a data exacta do aparecimento, a
nível não oficial , desta modalidade, e estando Aquiles num acampamento militar, a
apresentação de semelhante prova desportiva não nos parece necessariamente um
anacronismo do poeta em relação ao tempo mítico da história. Configura-se, antes,
como uma forma de sublinhar a excepcionalidade daquele que em Homero recebe o
epíteto distintivo de pés velozes.
o Discurso do Extracénico 53

jugo, enquanto aquela apenas está fixa às rédeas (daí chamarem-se


' atrelados', ou seja, O"ELpocpápouç, 223). Nenhuma delas é caracterizada
por um colorido único para todo o corpo. A visão marcadamente impres-
sionista de Eurípides é atraída para superfícies de cor imprecisa, supelfí-
cies manchadas (a crina e os cascos). O tom dominante das malhas é que
diverge. O contraste entre o branco luminoso das crinas dos corcéis jun-
gidos e a cor de fogo dos seus companheiros fere os olhos. A atenção das
observadoras vai sendo atraída para as extremidades coloridas dos ani-
mais. Depois das crinas são os cascos da parelha exterior a merecer
comentário. Rente aos cascos a pele oferece uma mistura de tons digna de
nota: Gritava Eumelo, neto de Feres, a quem vi os mais belos corcéis
ornados de ouro, na boca feridos pelo aguilhão: os do meio, fixos ao
jugo, com a crina sarapintada de branco, os de fora, atrelados, ficavam
de frente um para o outro nas curvas da corrida, tinham o pêlo cor de
fogo, mas debaixo dos cascos a pele era de outra cor (217-26).
Procurando sempre tornar esteticamente atractivos os seus quadros
extracénicos, Eurípides coloca ao serviço de um desejo de variatio um
discurso linguística e retoricamente enriquecido pela herança literária e
pela sua própria originalidade. Esta revela-se sobretudo, e como acabá-
mos de constatar, na paixão pela descrição sinestésica. O apreço e o gozo
do trágico face à arte visual por excelência - a pintura - fazem da visão o
sentido mais solicitado, não ficando, contudo, esquecidos o tacto e a
audição - todos eles elementos que conferem vi vacidade ao retrato de um
exército.
(Página deixada propositadamente em branco)
II

OBSERVAÇÃO DO EXÉRCITO
PELA COMUNIDADE GUERREIRA

A - Acampamento e preparativos para o combate


Sob a designação atribuída a este subcapítulo incluem-se dois passos
da mesma peça: Heraclidas, 389-409 e 667-77. Os porta-vozes destes
quadros extracénicos são, respectivamente, Demofonte, líder ateniense, e
um escravo de Rilo. Membros activos da comunidade bélica e conhece-
dores desse cosmos, tais personagens produzem um discurso predomi-
nantemente informativo; por conseguinte menos revelador da acuidade
poética do dramaturgo quando comparado com os passos acabados de
analisar. O servo de Rilo preocupa-se mesmo em vincar esse domínio da
informação: define a actividade intelectual dos ouvintes como um apren-
dizado (lla8Elv, 667), facultado pela função explicativa das suas palavras
(<ppáum, 669) 1. A veracidade do descrito é validada por uma preocupa-
ção das personagens em sublinhar a natureza testemunhal dos seus dis-
cursos. Daí as marcas pronominais e verbais da primeira pessoa: eu pró-
prio vi (389); eu estava preparado (398); supúnhamos... mas não
ouvíamos nitidamente (677).
Ao nível da sua estmtura conteudística, constata-se a existência de
uma bipartição da referencialidade dos dados entre tropas atenienses
(398-401) e aliadas (668-73) versus tropas inimigas (389-97; 674-77).
Uma vez mais a dinâmica-da descrição é dada pelo recurso a verbos
de moviment02 e enfatizada, em Heraclidas 667-77, por um discurso
dialógico e esticomítico. Continua a sobressair como primeira faculdade
dos enunciadores em exercício a visão: ser visto com nitidez (675), vi
(390) e ver (392)3.

1 Embora circunscrita à incapacidade de indicar o número de aliados trazido por Hilo, a


presente actualização do verbo <ppá(ElV, 'explicar', define o objectivo da intervenção da
personagem.
2 Chegou, 389; enviou, 393; estão a ser levados, 673;fazendo .. . dispondo , 676.
3 O exercício desse mesmo sentido é apresentado como a actividade de um dos sujeitos
observados, Euristeu: observa (395) .
56 Carmen Isabel Leal Soares

Heraclidas 389-409
Depois da apoteose de seu pai, os Heraclidas são alvo da persegui-
ção de Euristeu, o novo senhor de Argos, e inimigo mortal de Héracles.
Obrigados a procurar protecção no exílio, os filhos do herói, guiados pelo
velho companheiro de aventuras do pai, Iolau, e pela avó, AJcmena, aca-
bam por chegar a Maratona. O rei de Atenas, Demofonte, oferece o apoio
dos seus guerreiros a Hilo, o Heraclida primogénito. Euristeu acabará por
ser feito prisioneiro e receber a condenação à morte.
Nos versos 389-409 é chegado o momento de Demofonte apresentar
as medidas práticas que anunciara providenciar para segurança da família
suplicante de Héracles (335-40). Contra a investida do exército argivo e
do seu rei faz os preparativos segundo três itens:
a) convocatória dos cidadãos para o combate (335);
b) vigilância dos movimentos do adversário (337-38);
c) realização de sacrifícios (340).

De que é apresentada a Iolau a seguinte concretizaçã04 :


a) cidade está armada (399);
b) chegada dos soldados argivos às planícies da Ática (389);
c) sacrifícios prontos a ser realizados (399-401).

As linhas de conduta acabadas de sintetizar remetem para alguns


conceitos e práticas da vida militar cuja análise exaustiva está para além
dos objectivos do actual trabalho. Contudo não podemos deixar de aflorar
as suas principais implicações, uma vez que, como já dissemos, nos
situamos num discurso de teor predominantemente informativo.
"Um cidadão é, por definição, um soldado"5, ou seja, o membro da
pólis é, por condição inerente, um homem de armas . De facto verifica-se
haver uma relação de equivalência muito estreita entre a vida política e a
vida militar - "Para as mais elevadas classes, os mais altos cargos" Ohi-
dem)6. Em primeiro lugar a atribuição de cargos militares era feita de
acordo com o rendimento censitáriodos indivíduos e não segundo as suas

4 Porque nos vv. 335-40 se trata de anunciar intenções, o tempo em que elas são expressas
é o t'uturo:farei (335), disporei (336), enviarei (338), sacrificarei (340). A mesma ideia
é ainda veiculada pelo recurso à oração consecutiva (de maneira que enviarei, 336 sq.) e
à tinal (para não ser surpreendido, 338). A concretização destas medidas é colocada no
passado, pois estamos perante uma "descrição ulterior": vi (390).
5 Y. Garlan 1972: 63 .
6 A propósito do relacionamento estreito entre política e guerra, cf. ainda C. Mossé,
Dictionaire de la civilisation grecque (Bruxelles 1992) 244.
o Discurso do Extracénico 57

qualidades bélicas propriamente ditas 7 . A opinião de autores da época


aponta ainda para uma maior predisposição de determinadas condições
sociais para a vida militar que outras. O agricultor e o pai de família são
os que mais experiência, formação e motivação têm para defender a sua
pátria. Isto porque a posse da tena os incita a proteger aquilo que é seu e
"porque a agricultura nos ensina a comandar os outros, inculcando o
sentido da ordem, da oportunidade, da justiça e da piedade"8. Quanto ao
pai, pela guena, ele procura preservar a liberdade da família9 . Porém os
artesãos, amolecidos pela vida caseira de suas profissões, são tidos como
"maus defensores da sua pátria" 10.
À preparação física dos homens para a guena (aqui simbolizada pela
imposição do armamento) junta-se, como componente essencial, a moti-
vação psicológica, facultada pela comunhão e sanção do divino diante
dos empreendimentos bélicos. Incluídos no "ritual sagrado" da guena
estão os sacrifícios de animais. Duas designações - a que conespondem,
como veremos, conceitos diversos - são atribuídas aos sacrifícios que
antecedem a realização de um combate. Se, como observa Pritchett
(1971:110), os sacrifícios que envolvem adivinhação, chamados hiera, se
fazem geralmente acompanhar do verbo 8úEa8m ('sacrificar') e são reali-
zados ou em campo de batalha ou até mesmo na cidade, mas antes da
partida para o combate; aqueles que se designam por sphágia fazem-se
geralmente acompanhar do verbo a<paYLá(Ea8m ('degolar') assumem a

7 "É assim que em Atenas, no séc. V, os membros da primeira classe censitária (penta-
kosiomedimnoi) tinham o privilégio da trierarquia, a principal das liturgias, que lhes
conliava o armamento da frota; para se ser escolhido como cavaleiro, era necessário
pertencer pelo menos à segunda classe, a dos hippeis, e para fazer parte da falange dos
hoplitas, possuir pelo menos o censo da terceira classe, a do zeugita; ao passo que os
mais desfavorecidos, os tetas, apenas podiam prestar serviço na infantaria ligeira ou
serem remadores." (Garlan 1972: 63).
8 Y. Garlan 1994: 66.
9 Sentimento que, segundo Platão, tem em comum com os outros animais, pois, como se
pode ler em República 467b: "Além disso, todo o animal luta por forma excepcional, se
estiver perante a sua descendência" (trad. de M. H. Rocha Pereira, 017. cit., 240). Daí que
o guen·eiro devesse fazer-se acompanhar dos 1ilhos para ter mais vigor no combate.
10 Para a rel ação agticu ltura/guerra cf. os capítulos IV e V do Económico de Xenofonte.
Entre os Persas, a caça era tida como a ocupação que mais semelhanças tinha com a
guerra (idem I. 2, 10). As reservas que uma obra como a Ciropedia, de nítidas aproxi-
mações ao actualmente designado romance histórico, pode suscitar sobre a veracidade
das suas alirmações podem ser colmatadas pela colação com uma reflexão mais extensa
do mesmo autor em um pequeno tratado sobre a actividade venatória. A caça não só
permite o melhor treino para a guelTa (Ciropedia 4. I , I) como também é dos homens
que se exercitam em tal prática que nascem bons soldados e generais (idem 4. 12, 8).
Além de uma preparação física adequada, a caça ajuda ainda a enformar um carácter
con·ecto (idem 4. 12, 7).
58 Carmen Isabel Leal Soares

natureza propiciatória de uma súplica e são realizados imediatamente


antes de o confronto se iniciar ou mesmo depois de as tropas terem avan-
çado (ibidem). Em relação ao primeiro tipo de sacrifícios, o autor acres-
centa que a batalha só podia iniciar-se depois de os omina serem
interpretados como favoráveis.
A principal diferença que se estabelece entre os dois actos sacrifi-
ciais reside no facto de aos hiera assistir um valor premonitório e aos
sphágia apenas uma intenção propiciatória ll . Estão-lhes associados ver-
bos diferentes, pelo que se conclui que Demofonte em 399-401 fala nos
dois tipos de sacrifício. Como teremos oportunidade de confirmar, os
sphágia aqui preparados são de novo referidos em 673 e realizados em
819-22 12 • As palavras do servo - e as vítimas são levadas para longe das
linhas de combate, 673 - confirmam que a situação privilegiada para rea-
lização destes sacrifícios de sangue era em pleno campo de batalha. Note-
-se que, como geralmente sucede, também aqui permanecem no anoni-
mato os deuses cuja bênção é solicitada l3 . Eles são apenas referidos como
aqueles de entre os deuses a quem é preciso fazer sacrifícios de sangue
(400). Ao passo que esses rituais já se realizaram, em simultâneo com o
acto de enunciação, conforme indica a utilização do presente, decorrem
os hiera: a cidade realiza sacrifícios pelas mãos dos seus adivinhos.
Neste último caso, e como sucedera em 340, há referência à figura do
j.l.ávTLS' ('adivinho'). A sua presença é importante pelo papel que tem de
intérprete dos desígnios divinosl 4 . O papel do sacrificador é fundamental
em termos de equação do fenómeno sacrificial, pois "um dos traços dis-
tintivos do sacrifício é, por conseguinte, o facto de ele se desenrolar entre

II No entanto fontes clássicas, sobretudo históricas, demonstram não ser absolutamente


correcto estabelecer fronteiras rígidas entre estes dois tipos de ritu ais sacrificiais (M. H.
Jameson, "Sacrifice before battle", in V. D., Hanson, Hoplites: the classical Greek
baule experience, London 1991, 205-9).
12 Por ocasião da reflexão sobre Heraclidas 800-42, esta última indicação será analisada
mais detidamente.
13 A propósito da ausência de denominação do deus propiciado, cf. M. H. Jameson, op.
cit., 209. Como recorda Burkert 1993: 135: "De resto, a maior parte das vezes, nos
relatos não é nomeado qualquer deus, mas apenas o facto de, com o exército à vista, os
comandantes de campo ou os videntes que acompanham o exército cortarem a goela a
animais". A execução do ritual por um chefe do exército fica atestada para a presente
peça através da forma 8úaof.LaL proferida por Demofonte (340).
14 De acordo com A. Henrichs,"Human sacrifice in Greek religion: three case studies", in
O. Reverdin et B. Grange, Le sacrifice dans l' Antiquité, vol. 27, Fondation Hardt
(Vandoeuvres 1981) 213, "Os mpáYLa eram manifestamente diferentes dos regulares
sacrifícios olímpicos, na medida em que o oticiante não era um sacerdote (LEPEÚ<;'), mas
um adivinho (f.LávTLS")". Sobre a arte da adivinhação e a figura do mantis na guerra, cf.
Pritchett 1979: 47-90.
o Discurso do Extracénico 59

três termos, servindo o objecto consagrado de intermediário entre o sacri-


ficante e a divindade. Neste sentido, o sacrifício distingue-se das formas
de contacto directo entre homens e deuses"15.
O denamamento de sangue antes do combate tem um importante
significado para a psicologia do guerreiro, desempenhando o papel de um
encorajamento simultaneamente ideal e realista. Se o favor dos deuses
inspira confiança, o espectáculo de mOlte oferecido aos olhos do guenei-
ro pode converter-se num destino de que ele é actor principal e vítima l6 .
Como tivemos oportunidade de sublinhar no capítulo anterior, a
condição feminina, embora impeça a mulher de combater em campo de
batalha, não a exclui de um papel determinante para o sucesso da empresa
bélica. Tendo já sido apresentados exemplos dessas circunstâncias, reto-
mamos essa temática no seu intrincamento com o prelúdio sacrificial para
a guerra. Nos vv. 389-401 ficaram apresentados, como acabámos de ver,
os preparativos levados a cabo pelo chefe ateniense para o confronto. De
entre estes individualizámos a realização de sphágia, obviamente entendi-
dos na sua acepção COlTente de degolamento de animais. Atendendo a um
dos motivos centrais da peça - o sacrifício humano l7 - impõe-se-nos,
contudo, levar a consideração da fala de Demofonte até ao v. 409.
Não pretendendo afastar-nos do objectivo fundamental do nosso tra-
balho - análise das técnicas discursivas da descrição - faremos uma
sucinta reflexão sobre esta variante do ritual do "sacrifício de sangue".
A consulta de diversos oráculos resultou em predições muito diferentes,
que, por sua vez, confluíam para uma ordem comum: ordenam que eu
degole uma virgem àfilha de Deméter, uma que tenha nascido de um pai
nobre, protectora contra os inimigos e salvação para a cidade (402, 408 sq.).
A pelfeição é um dos requisitos exigidos à vítima, quer esta seja
animal ou humana. Para o presente caso, incluem-se nessa condição a

15 l.-P. Vernant, "Théorie générale du sacrifice et mise à mOlt dans la 8vcy[a grecque", in
O. Reverdin et B. Grange, Le sacrifice c/alls L' Antiquité, vol. 27, Fondation Hardt
(Vandoeuvres 1981) 2.
16 "S inistros e diferentes, os sphagia antecipavam o derramamento de sangue da batalha e
marcavam o seu início ritual" (A. Henrichs, op. cit., 2 15 sq.). "A matança, quase inofen-
siva, acessível, é uma antecipação premonitória da batalha com os seus perigos impre-
visíveis, é um iniciar" (B urkert 1993: 135).
17 Sobre o sacli fíc io humano em geral veja-se M. H. Jameson, op. cit., 213-17, R. Aélion,
Euripide héritier d'Eschyle (Paris 1983) 171 sq. (para MacáIia) e 201-3 (para Meneceu)
eM. F. S. Silva, "O sacrifício voluntário: teatralidade de um motivo euIipidiano", BibLos
67 (1991) 15-41. Para o de donzelas em pmticular, atribuímos pmticular destaque às
seguintes referências bibliográficas: A. Henrichs, op. cit., 195-208; Burkelt 1983: 58-72
(sobretudo 65-7); 1. Wilkins, "The state and the individual: Euripides' plays of vo luntary
sell~sacIitice", in A. PowelI (ed.), Euripides, women and sexuality (London 1990) 177-94.
60 Carmen Isabel Leal Soares

virgindade e a ascendência nobre (TTaTpàs- EUYEVOUS-)18. Aos sphágia


prontos a ser executados (389) vem, assim, acrescentar-se, como garantia
apotropaica e salvaguarda da cidade (402), o degolamento de uma vítima
de eleição. Ao contrário daqueles - para os quais os deuses propiciados
permanecem anónimos - adquire lugar de destaque, pelo recurso ao
enjambement, a divindade que requer e ao mesmo tempo é agraciada com
o sacrifício de uma vítima humana: Perséfone, rainha do Hades, figuração
da própria morte. À queda em campo de batalha empunhando armas, a
jovem virá a comparar o seu suicídio voluntário, também ele uma forma
de morrer, no feminino, pela pátrial 9 .
Deixámos para o fim a consideração do ponto b) do esquema atrás
apresentado (p. 56) por ser o que mais dados fornece relativamente às
características da enunciação e que, consequentemente, permite concluir
da variedade de registos que configura o discurso em causa. Demofonte
não se limita a fornecer dados objectivos sobre a localização do inimigo
no terreno (sua chegada, 389; estacionamento num posto de observação
elevado, privando-se ainda de penetrar nas planícies do adversário, 394).
Da atitude observadora do general argivo, ele permite-se tirar conclusões
pessoais, a que, por isso mesmo, atribui uma verdade circunscrita à sua
opinião individual. É o que se torna patente por meio do registo modali-
zante que subjaz à oração sobre isso posso dizer-te a minha opinião
(395), cedência da personagem (e do poeta) ao princípio orientador de
toda a arte mimética: a verosimilhança.
Um discurso que, à primeira vista, parecia, graças ao domínio da
função informativa, objectivo, contém raios de subjectividade inerentes à
condição humana do sujeito da enunciação. Na verdade, em relação às
estratégias do inimigo, Demofonte apenas pode aventar conjecturas
mediante aquilo que exteriormente lhe é dado observar. Do avanço cau-
teloso de Euristeu ele conclui a preocupação do adversário em encontrar
um lugar seguro para instalar os seus homens.
A relação que se estabelece entre descrito-discurso-sujeito da enun-
ciação é equacionada em 390-2 sob uma perspectiva pertinente não só
para o significado do passo, mas sobretudo para a reflexão futura das
falas dos mensageiros. Demofonte refere em discurso abstracto uma
máxima, fazendo-se por conseguinte eco de uma verdade universal como
tal aceite pela opinião pública: o bom general é aquele que presencia os
acontecimentos; não aquele que os "vê" através dos olhos dos mensagei-

18 No segundo estásimo a eugenia da filha de HéracIes é elogiada pelo coro (626).


19 Parece-nos significativo que dos quatro exemplos euripidianos de suicídio voluntário
(Itigénia, Políxena, Macári a e Meneceu), apenas um, o do jovem filho de Creonte, seja
masculino.
o Discurso do Extracénico 61

ros (392). Fica deste modo explicitado pelas próprias personagens um


princípio teoricamente aceite e fundamental para a descrição de quadros
extracénicos: a veracidade do descrito (e a do discurso) está intimamente
dependente do estatuto de testemunha directa que assume o sujeito da
enunciaçã0 2o .

Heraclidas 667-79
Depois de a filha de Réracles se ter retirado para execução do seu
sacrifício voluntário, o coro, Iolau e os restantes descendentes do semi-
deus permanecem em cena abatidos por tamanho infortúni021. Quando
tudo parece perdido, quando uma mOlte assim inesperada anula as espe-
ranças de vida, eis que surge um servo de Rilo com notÍCias capaz de dar
novo alento à frente ateniense. O seu senhor chegara com tropas aliadas,
uma promessa de maior à-vontade no confronto do inimigo.
A Iolau cabe a iniciativa de interrogar. Certamente por razões afecti-
vas, começa por querer saber de Rilo, em particular, para só depois ques-
tionar sobre o seu exército, em geral. Também o interlocutor não isenta o
seu discurso informativo de notas de limitação cognitiva. Desde logo à
pergunta sobre a quantidade de aliados trazidos pelo seu chefe (668) ele
responde com um genérico 'muitos', admitindo, de imediato, a impossibi-
lidade de precisar o número. Continuamos a ter o discurso modalizante ao
serviço da verosimilhança, pois seria pouco provável que o guerreiro
conhecesse com exactidão tais dados. Ainda inserida nesta restrição de
conhecimento, surge a fala: seguinte de Iolau: Estão a par dessa situação,
julgo eu, os chefes atenienses. Note-se que a estrutura pergunta-resposta
linha a linha, de verdadeira configuração esticornítica, adquire, nestas cir-
cunstâncias, uma variante estilística dinamizadora do ritmo do discurso.
Iolau não questiona sobre o conhecimento que os generais aliados têm da
ajuda trazida por Rilo, mas apresenta esse elemento como um facto, em
seu entender, adquirido. Não deixando, contudo, a fala do antigo compa-
nheiro de Réracles de ser sentida como uma interrogativa22 , o servo de
Rilo, repetindo em anáfora a forma 'LcYaO'LV ('estão a par, sabem'), confir-

20 Em outros passos da sua produção trágica, Eurípides põe na boca das suas personagens
o contraste existente entre "ouvir dizer" e "testemunhar com os próprios olhos"
(cf. Helena 117 sq. e Troianas 481-84).
21 A filha de Héracles permanece como figura anónima na peça. O nome Macária remonta
ao argumento que lhe foi posteriormente adicionado, bem como à lista das drama tis
personae (cf. Wilkins 1993: 111 sq., n. 474).
22 Aliás, das edições consultadas, duas delas, as de Garzya e Méridier, optam pela inter-
rogativa, grafia que melhor exprime o valor inquiridor que subjaz ao presente verso.
62 Carmen Isabel Leal Soares

ma a sua hipótese e acrescenta informações relativas à posição das tropas


do Heraclida: e Rilo tomou lugar na ala esquerda, 671. A preparação
física dos homens para a guerra aparece, também aqui, estreitamente
ligada à sua preparação psicológica. Embora Iolau indague se o exército
já estava armado para o combate (672), a resposta do seu interlocutor
depreende-se afirmativa, uma vez que esta informa das medidas tomadas
para suscitar a predisposição psicológica para o confronto, ou seja, a
realização dos sphágia (673). Este verso dá-nos mais uma indicação
sobre o ritual dos "sacrifícios de sangue". As vítimas eram arrastadas para
o meio dos dois exércitos como preparativo para o embate, para de segui-
da serem afastadas das linhas de combate23 .
A principal preocupação de Iolau (e o mesmo é dizer dos Heraclidas
e seus defensores) visa a segurança. A sua primeira pergunta, aliás,
orientara-se nesse sentido. A quantidade elevada de aliados pode ser uma
forma de a garantir. Donde o desejo de saber quantos eram os aliados
(668). Outra é o conhecimento da distância a que se encontra a frente
inimiga (674) . Como pode concluir-se da resposta do servo, fica uma vez
mais confirmado que a visão é o sentido privilegiado para o observador e
simultaneamente responsável pelo enunciar de uma descrição. De facto o
servo não refere a distância através de um indicador de medida. É sim
pelo facto de se lhe mostrar claramente aos seus olhos (675), que o solda-
do de Hilo afirma a proximidade do general argivo. A iminência do
perigo acelera a aflição e a ânsia do ouvinte, registadas ao nível do dis-
curso pela justaposição no mesmo verso de duas orações interrogativas
(676). À pergunta abrangente sobre a actividade do adversário, segue-se
outra mais específica, destinada a saber da disposição que o seu general
estaria a fazer das tropas. Se a distância que separa os dois exércitos não é
tão vasta que dificulte a percepção do vulto do chefe de uma das partes
pela outra, porém não é tão estreita que aos guen'eiros atenienses seja
dado ouvir as palavras de ordem dirigidas pelo general inimigo para ali-
nhamento dos seus homens. Ao afastamento espacial juntar-se-iam, com
certeza, dificuldades auditivas, provocadas pelo ruído inerente a um
ajuntamento de soldados. Daí que o v. 677 seja introduzido por um verbo
de significação cognitiva modalizante (supunhamos) , explicitado pela
forma negativa mas não ouvíamos claramente. A ausência da audição
vem, portanto, colocada ao serviço de um realismo descritivo.

23 Segundo testemunho de Tucídides 6. 69, 2, os adivinhos, a fim de estimular as tropas,


deslocavam as vítimas para o mais perto possível do inimigo.
o Discurso do Extracénico 63

B - O choque de falanges no relato dos mensageiros


O confronto propriamente dito das massas guerreiras oferece-o
Eurípides através de mensageiros. São cinco os passos que nos lega a sua
obra: Heraclidas 799-866; Suplicantes 650-730; Fenícias 1090-1199,
1217-1263 e 1356-1479. Para além de possuírem um porta-voz tipo, a
figura do Mensageiro, todos eles comungam ainda da particularidade de
apresentarem uma estrutura recorrente do ponto de vista temático e com-
positivo. As descrições de batalha são por conseguinte 'cenas típicas' de
evidente inspiração homérica.
Comecemos por tecer algumas considerações sobre o estatuto do
Mensageiro na obra do tragediógrafo em geral e nos momentos que são
alvo do nosso estudo em particular.

Estatuto diegético e discursivo da figura do Mensageiro


O Mensageiro euripidiano não é um simples mecanismo dramático,
que se limita a revelar às outras personagens da história e ao público
acontecimentos extracénicos. Antes pelo contrário, ao atribuir-lhe uma
personalidade própria, o poeta contribui para uma maior justificação dra-
mática da figura. Como observa I. J. F. de Jong, o mensageiro euripidia-
no não é nem uma câmara desprovida de emoções, que regista aconteci-
mentos extracénicos, nem um porta-voz do poeta, mas acrescenta mais
uma perspectiva à série de visões que no seu conjunto constituem uma
peça euripidiana 24.
De facto o dramaturgo escolhe, em abono da verosimilhança, uma
testemunha de acontecimentos dos quais tomou parte. Nessa medida, o
Mensageiro é um nanador homodiegético e actualiza uma focalização
interna: percepciona, ordena e interpreta acontecimentos de uma diegese
da qual também ele participa. Uma característica destas rheseis ou longas
falas é, por conseguinte, a insistência colocada no testemunho visual 25 , o
qual pode sair valorizado pelo topos de que aquilo que se vê é mais fiável
do que aquilo que se ouve ('Vendo eu isto e não ouvindo [dizê-lo]',
Suplicantes 68426 ). A sua participação é veiculada pelo emprego de for-

24 Cf. Narrative in drama. The artofthe Euripidean messenger-speach (New York 1991) 115.
25 Registam-se verbos do campo semântico de 'ver' nos versos 848 de Heraclidas; 652,
653 e 684 de Suplicantes; 1099, 1139 e 1165 de Fenícias; 1459 de Orestes. Há opiniões
cépticas, expressas na própria produção euripidiana, que consideram um só homem
incapaz de contar todos os pormenores de um vasto campo de batalha -Teseu (Supli-
cantes 849-52) e Orestes (Electra 377 sq.).
26 Outros exemplos anteriores a Eurípides colhemo-los, nomeadamente, em: Ilíada 2. 484-
-7; Odisseia 8. 487-91; Heródoto 2. 44, 75, 106, 148, passim.
64 Carmen Isabel Leal Soares

mas verbais ou nominais de primeira pessoa27 . Exceptua-se o mensageiro


de Suplicantes, simples observador do confronto entre Atenienses e
Tebanos. De facto, na condição de prisioneiro dos Cadmeus, este circuns-
cre-se ao papel de observador do confronto (próximo da porta Electra,
instalei-me na muralha e observei com clareza, 651 sq.). Quanto ao mensa-
geiro de Fenícias, pela sua função de porta-escudo de Etéocles (1073 sq.),
limita-se a seguir o seu senhor para todo o lado (1164) ou a transmitir aos
outros chefes ordens que este dá (1139) . De Fenícias tomámos duas falas
de mensageiro, cuja atribuição a uma mesma figura não é pacífica28 . A
crítica mais recente atribui-lhes diferentes sujeitos da enunciação. Contu-
do há quem se baseie na expressão 'meu senhor' (1461) para ver neste a
figura do mensageiro dos 1090-1199 29 . Tanto num caso como no outro a
participação do mensageiro na batalha está verbalmente atestada.
Ao nível do discurso, esse relator inserido na história compOlta-se
necessariamente como um filtro quantitativo e qualitativo da informa-
çã03o . Prova disso são os vários registos de discurso subjectivo que ele
apresenta. Naturalmente ligada à focalização interna, a expressão de um
conhecimento limitado do sujeito da enunciação é patenteada pelo discur-
so modalizante. O caso mais flagrante dessa restrição de conhecimento é
a descrição da epifania de Héracles e Hebe e do rejuvenescimento de
Iolau (De agora em diante vou falar do que ouvi de outros; até aqui
[falei] do que eu próprio vi, Heraclidas 847 sq.)31.0 discurso avaliativo,
sobretudo através do adjectivo, traduz uma atitude apreciativa. A título de
exemplo refira-se a noção de que a vitória não é fácil de alcançar (A custo

27 Heraclidas 801, 842; Suplicantes 653, 719 sq.; Fenícias 1099, 1103, 1133, 1142, 1143,
1171, 1189, 1196, 1468 sq., 1461, 1468 sq., 1472, 1475.
28 et: D. 1. Mastronarde (ecI. comm.), EuripU:les. Phoenissae (Camblidge 1994) 523, n. 1335.
29 Cf. A. Rijksbaron, " How does a messenger begin his speech? Some observations on the
opening lines ofEuripidean messenger speeches", Miscellanea tragica in honorem J. C.
Kamerbeek, ed. 1. M. Bremer, S. L. Radt, C. J. Ruijgh (Amsterdam 1976) 305 sq.
30 Não podemos por isso concordar com opiniões sobre o mensageiro euripidiano do tipo:
" ... o mensageiro deve transmitir um relato racional de factos objectivos, a existência
dos quais nada tem a ver com ele pessoalmente, excepto na medida em que por acaso os
observou" (S. A. Barlow, op. cit., 60); "A presença impessoal do mensageiro junta-
mente com a precisão gráfica do seu relato produzem no auditório um estranho senti-
mento de distanciamento emocional e proximidade visual" (1. M. Bremer, "Why
messenger-speeches?", in Miscellanea ttagica in honorem J. C. Kamerbeek, ed. 1. M.
Bremer, S. L. Radt, C. J. Ruijgh. Amsterdam 1976, 46). Posição em favor do
envolvimento do mensageiro nos acontecimentos descritos oferece ainda O. Taplin em
Greek tragedy in action (Berkeley 1978) 82, ao afirmar que o mensageiro "geralmente
tem uma identidade protissional, uma razão para estar envolvido e alguma reacção
pessoal aos eventos que relata".
31 Outros passos da mesma natureza são: Suplicantes 694; Fenícias 1133 .
o Discurso do Extracénico 6S

tudo fizemos e não foi sem sofrimento que pusemos em fuga o contingente
argivo, Heraclidas 841). As figuras de retórica, por sua vez, enformam o
discurso figurado, vincadamente presente, entre outros, no recurso à aná-
fora (Suplicantes 656-9; Heraclidas 855-8), ao oxímoron (Heraclidas
idem), ao poliptoto (Suplicantes 666 sq.) e à hipérbole (Suplicantes 710).
Uma vez que, como vimos, está relacionado com algumas figuras
principais da peça, o mensageiro não pode produzir um relato imparcial.
Nitidamente simpatizante com uma das pattes do conflito, é sobretudo em
momentos de exaltação e empolamento narrativo que ele mais se com-
promete. Em Heraclidas, ao indagar a respeito de Euristeu E foi um tal
sujeito que veio para submeter os descendentes de Héracles? (816 sq.),
desvaloriza a figura do chefe argivo. Mas, no contraste que se depreende
da sua indignação, realça as qualidades de Rilo. De igual modo o seu
homónimo de Suplicantes exulta em manifestações de regozijo. Enquanto
os guerreiros tebanos, em sinal de abandono, fogem para as portas da
cidade em busca de protecção, ele salta de alegria e dança ao compasso
das suas palmas (719 sq.).
Podemos, então, concluir que esse empenhamento do mensageiro é
sobretudo uma inovação euripidiana que se distingue da tradicional figura
estereotipada e muito contribui pat'a o enriquecimento da personagem.

A fala do Mensageiro
É também na atticulação da rhesis com os restantes passos de repre-
sentação directa e na sua estrutura discursiva e conteudística que Eurípi-
des logra conferir-lhe o 'aspecto de dramaticidade' que justifica a sua
inserção no texto mimétic0 32 .
Diferentemente do que se passara na teichoskopia de Fenícias, a nar-
ração dos acontecimentos é, em todos os passos que iremos analisat·,
posterior ao confronto das falanges. Todavia não perde, com essa ulterio-
ridade, o seu interesse para o desenhar do plano geral do enredo. Na ver-
dade trata-se de descrições motivadas, uma vez que a personagem enun-
ciadora domina um conhecimento que a personagem-ouvinte e/ou os
espectadores-leitores não possuem, mas desejariam possuir. Por conse-
guinte, quando as falas dos mensageiros não trazem o desfecho a um con-
flito previamente anunciado, atribui-se-lhes uma função dramática tran-
sitiva33 . Esta é a tipologia em que se enquadra Fenícias 1090-1199.

32 Como vimos na Introdução, o sentido que damos a mimese é o platónico, sinónimo de


drama.
33 Esta terminologia é-nos fornecida por I. J. F. de Jong, op. cit., 120-31.
66 Carmen Isabel Leal Soares

Aí narram-se o sacrifício voluntário de Meneceu 34 , que morre para


salvação da sua cidade, Tebas, e a primeira fase da batalha entre Tebanos
e Argivos 35 . Ambos os episódios se revelam, contudo, incapazes de pôr
termo ao litígio que opunha Polinices e Etéocles pelo trono da terra pátria.
Quando, pelo contrário, o conteúdo do relato traz a solução a um impasse,
a sua função dramática é conclusiva. Em Reraclidas 799-866, dá-se o
choque, constantemente anunciado 36 , entre Argivos e o exército atenien-
se. Miraculosamente renascido, Iolau efectua a captura de Euristeu e dá a
vitória decisiva aos filhos de Héracles. Na fala do mensageiro de Supli-
cantes relata-se a vitória ateniense sobre os Tebanos, que, só pela força,
entregam às mães e órfãos dos heróis argivos mortos diante de Tebas os
cadáveres reclamados. Finalmente, em Fenícias 1460-79, realiza-se o
segundo e decisivo confronto entre Argivos e Tebanos. Na verdade esse
retomar da refrega surge como uma necessidade. O duelo entre os dois
Labdácidas pretendentes ao ceptro, destinado a pôr fim à guerra, resultara
em mútuo fratricídio. E os respectivos batalhões não chegaram a um
acordo sobre a patte vencedora (1356-1459).
Como já vimos na Introdução, descrever significa "escrever segundo
um modelo". As narrativas de batalha têm um carácter 'épico' inegável.
Em Heraclidas, Suplicantes e Fenícias, Eurípides retoma combates míti-
cos em que a dívida para com Homero é evidente, empenhando-se, no
entanto, por valorizar uma série de novidades 37 . Os intertextos encon-
tram-se sobretudo na estrutura dos episódios que enformam a narrativa de
batalha e na sua concepção como 'cena típica' 38. O cunho pessoal, por
sua vez, transparece do natural empenhamento do emissor e do receptor
diegético nos acontecimentos narrados. Quer um quer o outro vivem a
história descrita, o que contribui para um aumento inegável da tensão
dramática da cena39 .

34 Ordenado por Tirésias, 913 sq. e decidido pelo jovem, 1009-12.


35 Confronto prof~tizado por Édipo, 67 sq. , e dado como iminente desde o início da peça,
77-80.
36 Pelo arauto argivo (275-83), por Demofonte (335-7) e pelo coro (371-80,748-83).
37 Cf. o que sobre este assunto diz 1. de Romi1ly, Histoire et raison chez Thucydide (Paris
1967) 116-20.
38 Cf. B. Fenik, Typical battle scenes in lhe Iliad. Studies in the narra/ive techniques of
Homeric battle description (Wiesbaden 1968) com especial destaque para as pp. 1-8,
onde se encontra uma definição desenvolvida para o conceito de typical scene. Já
Hainsworth adiantara a ret1exão de que a "cena típica" não é uma fórmula, pois não há
duas cenas iguais. A sua essência reside na repetição de "um modelo regular dentro do
qual as ideias são moldadas sempre que se pretende embelezar" ("Joining battle in
Homer",G&RI3 , 1966, 158).
39 1. M. Marcos Pérez vai ao ponto de atirmar que Eurípides "logrou captar tão fortemente
o Discurso do Extracénico 67

Na sequência da formulação e interpretação do quadro da batalha


homérica como 'cena típica', compreende-se que as falas dos mensagei-
ros que relatam o embate de exércitos sejam cenas recorrentes nas suas
características temáticas e compositivas. Do cotejo das quatro falas em
análise obtemos o seguinte modelo do confronto de exércitos:
I - Preparativos:
1 sacrifícios propiciatórios (animal: Heraclidas 819-224° ; humano:
Fenícias 1090-2)
2 - disposição das tropas para combate:
a) referência separada às duas frentes inimigas
(Suplicantes 653-65; Fenícias 1093-1101)
b) disposição relativa das duas frentes
(Heraclidas 800 sq.; Suplicantes 666 sq.)

II - Tentativa de evitar o confronto:


(para não proporcionar o derramamento de mais sangue inocente):
1 - pela palavra
(Suplicantes 668-72; Fenícias 1460-4)
2 - pelo duelo
(Heraclidas 804-17; Fenícias 1217-63 e 1356- 1424)

III - Sinal de início do confronto:


1 - pelo silêncio
(Creonte não responde à proposta de entregar pacificamente os cor-
pos aos Atenienses, Suplicantes 673 sq.)
2 - pelo som da trombeta
(Heraclidas 830 sq.; Fenícias 1102 sq.; Fenícias 1377 sq.)

a essência da épica, comunicar tal dramatismo ao seu relato, que, se de Homero se di z


que compôs a tragédia mais grandiosa da literatura grega, de Eurípides podemos afirmar
que realizou uma das obras épicas mais conseguidas. É tal a conexão que estabelece
entre o que diz e como o diz que consegue um patetismo tão profundo como se a cena se
desse diante dos olhos dos espectadores" ("EI relato dei mensajero en Euripides:
concepto y estructura", Minerva 8, 1994, 89). Devemos contudo notar que tais qualida-
des não são exclusivas do drama euripidiano, mas que também se tornam evidentes em
Sófocles, como é por exemplo o caso de Antígona (280-314 e 407-40).
40 A interpretação das vítimas do sacrifício depende da lição que se tome para o v. 822.
Caso se aceite ÀaLJlWV ~pOTE[WV , 'pescoços de seres humanos', a alusão referir-se-ia ao
sacrifício de Macália. A crítica mais recente, por nós seguida - J. Wilkins (ed. comm.),
Euripides. Heraclidae (Oxford 1993) 159 -, contudo, prefere ÀaLJlwv ~OE [WV, 'pescoços
de bois'.
68 Carmen Isabel Leal Soares

IV - Confronto:
1 manobras
(Heraclidas 823 sq. ; Suplicantes 674-83; Fenícias 1104-40 e 1466 sq.)
2 choque:
a) 1° embate
(Heraclidas 832-8; Suplicantes 684-700; Fenícias 1141-3 e 1468-72)
b) 1a exortação à luta
(Heraclidas 824-9; Suplicantes 701 sq.; Fenícias 1143-8)
c) 2° embate
(Suplicantes 703-6; Fenícias 1149-86)
d) 2 a exortação à luta
(Heraclidas 838-40; Suplicantes 7l0-2)
3 - desfecho:
a) vitória de uma parte e derrota da outra
(Heraclidas 841 sq.; Suplicantes 718-23; Fenícias 1187-95 e 1471 sq.)
b) aristeia e/ou androktasia de um guerreiro
(Heraclidas 843-7 e 859-63; Suplicantes 707-17)

V - Comportamentos pós-batalha:
1 evita-se o saque e recolhem-se os mortos para lhes prestar
honras fúnebres (Suplicantes 723-5);
2 - agradecimento à divindade pela vitória, erguendo um troféu de
guerra a Zeus; despojar dos inimigos; recolher dos corpos para
posterior prestação de honras fúnebres (Fenícias 1472-7).
VI - Sentença final:
a funcionar como moralidade ao relato acabado de fazer (a
inconstância da fortuna, Reraclidas 863-6, Fenícias 1196-9 e
1478 sq.; elogio da sophrosyne e condenação da hybris, Supli-
cantes 726-30).

A linha condutora da nossa reflexão estará na modulação técnico-


-compositiva e estilística colocada pelo poeta nestes trechos de natureza
predominantemente informativa41 • Aspirando sempre a seduzir o público
para um espectáculo sem dúvida doloroso, mas capaz de fazer apelo a
uma diversidade de sentimentos (entusiasmo, empatia, repulsa, admiração

41 O próprio estatuto de mensageiro, bem como a utilização do verbo cognato 'anunciar'


(Heraclidas 798; Suplicantes 638, 641, 643; Fenícias 1334) ou de outros verbos ou
expressões com o sentido de 'transmitir saber, conhecimento' (Heraclidas 799; Fenícias
1335 e 1357) são indicadores linguísticos dessa função informativa.
o Discurso do Extracénico 69

ou pena-sofrimento), o poeta procura transformar uma fala a priori fada-


da à monotonia num momento de variatio discursiva e sinestésica. Para
essa vivacidade do texto muito contribuem a compresença e alternância
do discurso directo com o indirect042, a variedade de tempos e modos
verbais, com especial destaque para o uso do presente históric0 43 , a emer-
gência do eu-emissor e do tu-destinatário (factores por excelência da per-
sonalização do texto). Num relato cuja longa extensão pode funcionar
como elemento de dispersão, de todos os artifícios técnico-compositivos
os apelos explícitos ao destinatário e o uso da interrogativa retórica são os
que têm uma capacidade mais imediata de despertar o ouvinte44 .

Heraclidas 799-866
Já se encontra disposta frente a frente e pronta para o combate a
infantaria dos dois exércitos, quando Hilo avança para o meio do campo
de batalha. A descrição faz-se, segundo uma técnica "cinematográfica"
tão do agrado do poeta, partindo do geral para o particular. Após um
grande plano do objecto descrito, o campo de batalha, o sujeito da enun-
ciação centra o seu foco num agente individual, o Heraclida (802 sq.) .
Note-se a preocupação "cénica" do narrador em fornecer coordenadas
espaciais capazes de funcionar como "didascálias" de um quadro apenas
oferecido à imaginação do seu auditório: nós colocámo-nos uns de frente
para os outros (800 sq.); Hifo desceu da sua quadriga e pôs-se de pé no
meio dos dois exércitos (802 sq.).
Numa nan'ativa impregnada pela dramaticidade, o "discurso citado"
impõe o seu cunho de dinâmica e presentificação de acontecimentos pas-
sados. Hilo apela ao zelo do adversário pelos seus concidadãos (E nem luis-
-de agir mal nem privarás Micenas de um único homem, 806 sq.) e enuncia
as partes do acordo (Se me matares, parte com os filhos de Héracles; se
morreres, deixa-me us~ifruir das honras e do palácio paterno, 808-10) .
Libertar os guerreiros de sofrimentos desnecessários era por celto um dos
argumentos mais convincentes para a aprovação da monomaquia a que se
junta a natural admiração de um combatente por demonstrações de

42 Discurso directo: Heraclidas 804-10,826 sq., 839 sq.; Suplicantes 669-72, 702, 711 sq.;
Fenícias 1145-7,1225-35,1250 sq., 1252 sq., 1365-8, 1373-6, 1432 sq., 1436 sq., 1444-
-53; Helena 1543-6, 1560-9, 1579 sq., 1581, 1584-7, 1589 sq., 1593-5, 1597-9, 1503 sq.
Discurso indirecto: Heraclidas 811 sq., 828 sq.; Suplicantes 724 sq.; Fenícias 1154 sq.,
1174-6, 1461 sq., 1463 sq.
43 Heraclidas 856, 859, 862; Suplicantes 653, 686; Fenícias 1099.
44 Evocação do destinatário: Heraclidas 832, 853, 856; Fenícias 1095, 1123, 1144, 1150,
1164,1169, 1219,1236; Helena 1530,1552,1606,1610,1616. Interrogativas retóricas:
Heraclidas 816 sq., 832 sq; Suplicantes 687-94.
70 Carmen Isabel Leal Soares

coragem (811 sq.)45. De facto a obtenção de glória é um dos principais


objectivos para a realização dos duelos na épica46 . Embora Hilo não evoque
esta como uma das razões que o levam ao combate singular, indirectamente
o mensageiro sugere, pela designação de KáKLCJTOS', 'o pior', atribuída ao
adversário, ser o seu chefe o apLCJToS', 'o melhor' .
A adversativa do v. 813 marca desde logo o retrato do chefe argivo
como contrário ao padrão de responsabilidade e preocupação com a vida
dos seus homens, representado por Hilo. O mensageiro não alude a qual-
quer resposta verbal dada por Euristeu. Donde se conclui que ele, pelo
silêncio e não aproximação do adversário, simplesmente recusa a pro-
posta de duelo (813-5). A caracterização de Euristeu não é deixada à livre
interpretação dos ouvintes. A arrogância e prepotência do chefe argivo
transparecem do desprezo a que vota os que o rodeiam e esperariam ouvir
um comentário à proposta que lhe fora acabada de fazer. Furtar-se à luta
directa com o inimigo é ainda interpretado como sinónimo de cobardia
(Mas Euristeu não só não respeitou aqueles que o ouviam, como também,
sendo um chefe cobarde, não se aventurou a aproximar-se do vigoroso
exército [dos Atenienses] 813-15). O discurso avaliativo de tom pejora-
tivo vem coroado por uma exclamação clara de menosprezo: Efoi um tal
sujeito que veio para submeter os descendentes de Héracles?! (816 sq.).
Em termos de praxis bélica, estas palavras depreciativas do mensageiro
são um reflexo indirecto da prática comum de insultar o inimigo (sobre-
tudo antes de se dar o choque das forças oponentes). Mas são também
marca da intetferência do sujeito da enunciação no registo que actualiza.
Inviabilizado o diálogo com o inimigo, Hilo é forçado a retirar-se do
meio do campo de batalha para junto dos seus homens (818). Retomada a
cena inicial - confronto iminente dos dois exércitos - está criado o
ambiente para a realização de novos sacrifícios, sphágia, diante das linhas
de combate. Que se trata de propiciar a vontade divina para favorecer o
empreendimento dos ofeltantes confirma-o o adjectivo 'favorável', apli-
cado à morte da vítima (822), que, em contexto sacrificial, equivale a
'bom', KaÀÓv. A tradição militar das vítimas animais usadas nos sacrifí-
cios conobora a preferência pela emenda de Helbig que altera a lição
ÀalllWV ~pOTELWV, 'pescoços de seres humanos', para ÀaLflWV ~OELWV
'pescoços de bois'47. No entanto a possibilidade de interpretar ~pÓTELOS'

45 Outros passos ilustrativos da boa recepção por parte do exército da proposta de duelo
são por exemplo Ilfada 3. ll sq. e Fenícias 1238 sq . Tal como os soldados apreciam
demonstrações de valentia, também os protagonistas de um duelo gostariam de ver
reconhecido o seu valor pessoal (1. J. Glück, "Reviling and monomachy as battle-
-preludes in ancient warfare", AC 7, 1964,3 1).
46 Cf. F. Létoublon, "Défi et combat dans l' Iliade", REG 96 (1983), 42 sq.
47 Para apoiar a sua escolha pelo saclifício de animais, Diggle chama à colação Fenícias
o Discurso do Extracénico 71

('ensanguentado') como derivado de ~pOTÓS ('mortal') é uma alternativa


que, ao significar 'humano, mortal', vê no texto uma alusão ao sacrifício
de Macária. Continuando esta questão filológica, como muitas outras do
mesmo género, até ao momento privada de uma solução sem margem
para contestação, consideramos a recente argumentação de Wilkins em
favor da versão ~OElWV a mais bem fundamentada48.
Os homens tomam posições: uns montam para os carros ; outros cer-
ram fileiras, protegendo-se lado a lado debaixo dos escudos (823 sq.)49.
Diferentemente do que se passa em Suplicantes e Fenícias, o primeiro
embate descrito não se inicia sem antes terem sido pronunciados os
incentivos às forças beligerantes. Através de um discurso patriótico, é
durante a parada dos guelTeiros que os generais de ambas as partes exor-
tam os seus homens à luta50 . Ao fazer seguir a citação da fala do chefe
ateniense pelo discurso indirecto do argivo, temos uma vez mais a varia-
ção discursiva acompanhada de uma motivação psicológica, que, deste
modo, denota a parcialidade do sujeito da enunciação. Como é óbvio, as

1255, onde se lê mas os adivinhos degolavam ovelhas. Se na maioria dos casos não há
qualquer indicação relativa ao nome das vítimas animais, contudo tem-se por lógico
que, pela sua facilidade de deslocação no terreno, os rebanhos de gado ovino e caprino
fossem os que usualmente acompanhavam um exército em marcha [M. H. Jameson,
"Saclifice before battle", in D. Hanson, Hoplites: lhe c/assical Greek battle experience,
London (1991) 198. Veja-se a este propósito o testemunho de Xenofonte Anábase 6. 4.
22. O sacrifício de bois estaria, por seu turno, mais adequado a um exército estacionado
peIto de uma cidade, como é o presente caso.
48 Enquanto E. B. England, a propósito de Ifigénia em Áulide 1083 - ed. comm., The
lphigeneia aI Aulis of Euripides (New York 1979) - opta pela leitura 'pescoço(s)
ensanguentado(s)',1. Wilkins - ed. comm., Euripides. Herac/idae (Oxford 1993) 159 -
considera implausível esta derivação e sugere como correctas as emendas BOTELWV ou
BoElwv. É de assinalar a rejeição comum de ver neste passo uma alusão ao sacrifício
humano.
49 Colocar o combate por meio de carros a par das falanges de hoplitas não deixa de ser
um anacronismo histórico e um reflexo da riqueza intertextual da tragédia eUlipidiana.
No período heróico espelhado nos Poemas Homéricos, os carros não combatem em
batalhões; servem como meio de transporte para levar os guerreiros para a refrega.
O condutor do carro geralmente deixa o seu senhor no campo de batalha e retorna à
retaguarda, onde permanece até chegar o momento de recolher novamente o guelTeiro
ou de lhe prestar outro tipo de auxílio. O caso de Diomedes é uma excepção, uma vez
que é ele que leva o seu can·o. De elevado valor económico e significado social, o carro
e os cavalos deviam ser preservados, (H. van Wees, "The Homeric way of war: The
!liad and the hoplite phalanx, G & R 41 , 1994, 10-12 e bibliografia aí indicada, nota 25).
Sobre o desaparecimento deste tipo de combate com o surgimento dos hoplitas d. A M.
Snodgrass, Arms and armour of lhe Greeks (London 1967) 60, 87 sq.
50 Esta é uma prática comum na guerra entre falanges de hoplitas. Em Homero, porém,
essa arenga dá-se preferencialmente durante o avanço das tropas ou no ponto culmi-
nante do confronto (J. B. Hainsworth, "Joining battle in Homer", G & R 13, 1966, 164).
Como testemunham os vv. 839 sq., Eurípides dá voz a ambas as práticas.
72 Carmen Isabel Leal Soares

palavras citadas valorizam o seu autor diante daquele cujo verbo é apenas
enunciado indirectamente. Não podemos contudo obliterar uma justifica-
ção de natureza física para esta atribuição de discursos. Em abono do
princípio da verosimilhança, o mensageiro retém na memólia mais facil-
mente as palavras de encorajamento do seu chefe do que as do adversário,
situado do outro lado do campo de batalha. Ao nível linguístico, a própria
adjectivação que introduz o discurso directo significa a valoração dada ao
autor do mesmo: O chefe ateniense exortava o seu exército com as pala-
vras que convêm ao homem nobre, 825 .
Em igual número de versos o mensageiro apresenta as palavras pro-
nunciadas pelos dois generais, as quais se aproximam pelo seu motivo
central: apelo ao amor que os indivíduos têm pelo solo com que se identi-
ficam. Contudo tanto os destinatários e a modulação conferida pela selec-
ção vocabular às duas exortações, como o carácter dos seus autores e a
natureza do empreendimento militar que comandam, permitem distingui-
-las. Enquanto o chefe ateniense se dirige a membros da sua comunidade,
aos concidadãos, e apresenta, por isso mesmo, o apelo à defesa da terra
mãe - que alimenta e dá vida - como um imperativo, decorrente dessa
evocação a um amor umbilical (826 sq.); o adversário, por seu turno,
assenta a sua exortação, agora dirigida aos aliados, no respeito por um
código militar que reprime a desonra: "Concidadãos, a terra que vos
alimenta e cria, agora, é preciso defender". O outro insistia com os alia-
dos para que não consentissem na desonra de Argos e Micenas (826-9).
O avanço das tropas e o início do combate são geralmente sinaliza-
dos por uma indicação sonora: o toque da trombeta. Depois de referidos
os sons humanos da guerra (a palavra), faltava transmitir as percepções
acústicas dos seus instrumentos. Ao som alto da trombeta tirrena outros
se sucedem (830 sq.)51 . São eles o retinir do choque dos escudos (832) e o
choro e lamento dos guerreiros de ambas as partes (833).
A comoção que transpira destes versos trai por completo quaisquer
expectativas de uma isenção do sujeito da enunciação face ao enunciado:
Quando o som estridente da trombeta tirrena deu o sinal e eles se engal-

51 Estudo interessante sobre o significado e utilização da trombeta na guelTa é o de


P. Krentz, 'lhe salpinx in Greek warfare", in D. Hanson, Hoplites: the c/assical Greek
baule experience (London 1991) 110-20. Sabe-se que ela soava antes do combate e
muito raramente no seu decurso; a sinalizar a retirada aparece poucas vezes. Uma das
suas caractelÍsticas essenciais é a que o dramaturgo aqui aponta: o som elevado. Quanto
aos usos militares da trombeta na época clássica, eles resumem-se a seis: convocar os
homens para a guerra; acordar os guelTeiros; convocar e dispor os guerreiros em linha;
estabelecer o silêncio entre as tropas; sinalizar o ataque; sinalizar a retirada. Já anterior-
mente 1. K. Anderson,"Cleon's orders at Amphipolis", lHS 85 (1965) Isq., notara a
execução de toques distintos para indicar ataque e retirada.
o Discurso do Extracénico 73

finharam na luta, imaginas tu quão sonoro era o retinir do chocar dos


escudos, quão punjente era o lamento de ambas as partes? (830-33). À
visão sobrepôs-se o apelo auditivo, directamente orientado para um tu,
circunstanciado na história à figura de Alcmena. O uso do presente vem
conferir um realce acrescido ao conteúdo do texto, despertar a atenção
dos ouvintes para o que se diz e articular de novo o cénico (Alcmena)
com o extracénico (campo de batalha). Esta vivacidade e emotividade do
discurso encontram um suporte figurativo no recurso à intenogativa retó-
rica e à anáfora. Aquela significa a admiração pela grandeza do sofri-
mento; esta revela uma quase simultaneidade entre os quadros do embate
das armas e do sofrimento dos gueneiros.
Ao carácter emotivo deste resumo do quadro geral da batalha, o
mensageiro faz seguir, de fonna mais explanada, o progresso do con-
fronto até à fuga do exército argivo (834-42). A preocupação em fornecer
um relato claro e ordenado dos eventos revela-se desta vez no recurso a
advérbios de tempo - primeiramente, 834; seguidamente, 836. Deste
modo Eurípides transfere para a personagem simples que é o mensageiro
a observância de uma técnica elementar nas regras da retórica. Distin-
guem-se duas fases no combate. Num primeiro momento os Argivos
quebram as forças aos inimigos, para de seguida se retirarem. Os Ate-
nienses vêem-se, então, obrigados a mudar de estratégia e sustentam o
confronto (837). O cenar das fileiras à maneira hoplita - cada gueneiro
cruza o pé com o seu companheiro do lado, 836 sq. - não impede, no
entanto, a perda de muitas vidas nos dois exércitos (838).
É necessário um segundo incentivo às tropas para que estas reco-
brem forças. Depois de ter usado por duas vezes uma mesma técnica de
apresentação dos discursos dos generais - discurso directo do ateniense,
seguido do indirecto do argivo - o poeta confere variação enunciativa à
fala do mensageiro, fazendo-o citar em simultâneo o discurso directo de
ambos. Apenas porque os destinatários divergem, o uníssono não é pleno:
Filhos de Atena! Filhos da terra argiva! Não haveis de preservar a vossa
cidade da desonra? (839 sq.). A alternar com o imperfeito do indicativo
do cenário do embate, surge agora o futuro grego, traduzido pela locução
de futuro, ao serviço da exortação.
Há que oferecer um relato consciencioso e realista dos factos e
admitir que a vitória não foi fácil nem isenta de dor (841). Com a deser-
ção do exército inimigo, o desfecho da batalha parece estar dado. Esperar-
-se-ia que o "pano" caísse sobre o drama acabado de encenar. Tal não se
verifica, pois segue-se um subquadro da actuação em campo e da solução
do confronto. De nítida inspiração épica é a técnica nanativa que consiste
em fazer seguir uma breve descrição do embate de massas das acções
74 Carmen Isabel Leal Soares

singulares de um herói, ou seja a sua aristeia ou a sua androktasia 52. No


presente caso, a captura de Euristeu por Iolau configura-se como uma
aristeia, cuja particularidade e originalidade em relação à de Teseu de
Suplicantes, que consideraremos mais adiante, reside no cenário maravi-
lhoso - o mesmo é dizer sobrenatural - de que se reveste. Para uma mais
clara compreensão do passo, podemos subdividi-lo em três pattes:
• início da perseguição de Euristeu (843-7);
• epifania de Héracles e Hebe e consequente rejuvenescimento de
Iolau (849-58);
• captura de Euristeu (659-63).

A subida do velho Iolau para o carro de Hilo, no momento em que


este perseguia Euristeu, o mensageiro ainda a apresenta como um acto
por si próprio testemunhado: Até agora falei do que eu próprio vi (848)53.
Quanto ao rejuvenescimento e feitos bélicos de Iolau, esses só podem ser
tidos como um milagre pelo narrador e até pelo narratário (853). Como o
sujeito da enunciação tem o cuidado de sublinhar, o relato miraculoso não
se baseia no seu testemunho ocular, mas numa versão ouvida de terceiros:
de agora em diante vou contar o que ouvi de outros (847). Também a
epifania vem certificada pela autoridade dos mais entendidos na matéria:
No dizer dos mais sábios [os astros] são o teu filho e Hebe (856 sq.)54.
Aqui o presente reforça a auréola de intemporalidade própria dos fenó-
menos divinos.
O vocabulário que delineia o quadro da epifania é todo ele, por con-
dição inerente, hierático. O espaço é uma colina venerável, consagrada à
divina Atena Palemida (849 sq.). A linguagem hermética do divino serve-

52 1. B. Hainsworth, "Joining battle in Homer", G & R 13 (1966) 158-66, em especial p. 165.


53 A presença de Iolau no carro de Hilo pode levantar algumas questões relativamente à
utilização deste veículo na guerra. Geralmente transportava duas figuras: o condutor
(~vloXOS') e o guerreiro (1TapaL~áTTJS') . O texto diz-nos que Iolau é içado para o carro (844
sq.) e toma as rédeas nas mãos. Esta última infonnação parece fazer jus à tradição mítica
que o apresenta como o ~vloXOS' de Héracles. Embora regra geral o condutor seja de
condição infetior à do guerreiro, essa não é uma situação obrigatória. Comonne
testemunho de Ilíada 5.221-38, quando são indivíduos do mesmo estrato social, há uma
celta flexibilidade, denotada pela possibilidade de discutir qual dos dois deve guiar o can·o.
54 Não se julguem, porém, as epifanias recursos meramente poéticos. São numerosos os
testemunhos de historiadores antigos da sua utilização por parte de generais (pritchett
1979: 19-39). Pode até confirmar-se que os generais se serviam da crença nas epifanias
de deuses e heróis como meio de incentivar os seus homens ao combate (idem: 44).
Dessa realidade também nos deram conta os pintores. Em Atenas, na Sloa Poikile,
Polignoto e Mícon ilustram a batalha de Maratona, onde podia ver-se Hércules a
combater ao lado de Atena (Pausânias 1. 15,3).
o Discurso do Extracénico 75

-se do oxímoron e da redundância para se exprimir. Hebe e Héracles


revelam-se através de fenómenos celestes. Paradoxalmente temos astros
(luminosos) que ocultam o calTo na escuridão de uma nuvem (855) e é na
escuridão sombria que se realiza o maravilhoso: o rejuvenescimento (857
sq.). A treva veda a olhos humanos a contemplação da potência divina,
naturalmente insondável para os mortais.
Iolau pode então concretizar o seu sonho: vingar-se dos inimigos, o
mesmo é dizer capturar o seu chefe (851-3). A preocupação do poeta em
destacar e conferir maior vivacidade ao ponto climático da intervenção de
Iolau espelha-se na escolha do presente histórico (859; 862).
As reflexões pessoais que o mensageiro tece a propósito de Euristeu
servem de mote à moralidade com que encerra o seu discurso. O prisio-
neiro vem epitetado de o general outrora feliz (862 sq.). A temática de
reflexão dos últimos quatro versos é uma das mais caras à cosmo visão
trágica: a inconstância da fortuna 55 . A própria selecção vocabular traça os
contornos moralizantes do epílogo: O ilustre /olau captura a quadriga de
Euristeu próximo das rochas Escironeias e, tendo-lhe aprisionado as

55 Regra geral os reveses da fortuna surgem na sequência de atitudes ou acções humanas


excessivas, isto é, que chocam com a virtuosa "justa medida". Referimos a título ilustra-
tivo apenas três figuras tratadas pelos grandes trágicos. O Agamémnon de Ésquilo, o
conquistador de Tróia, chega à pátria coberto de glólia, para morrer às mãos da esposa
adúltera. A queda do herói surge como o castigo merecido, para quem, na Frígia,
destruiu altares e templos dos deuses, para quem sacrificou a própria filha em nome de
uma expedição que viria cumulá-lo de riquezas e prestígio pessoais, para quem ousa
entrar em casa pisando um tapete de púrpura - honra que só aos deuses assistia - e,
assim, simbolicamente se assume como um 'insolente'(ú~pLaT~S-). Do mesmo autor é
ainda um dos passos mais célebres para esta ideia. Alcançados os píncaros de uma feli-
cidade ilusólia, Édipo, o intérprete do enigma da Esfinge, o salvador de Tebas, acaba
por casar com a própria mãe. Descobertos o incesto e o parricídio involuntários, o rei
outrora afortunado vasa os olhos com as fíbulas da sua veste. Procura, assim, refugiar-se
nas trevas de contemplar a dor de toda a família. Lapidares são os delTadeiros versos da
peça, sentenciados pelo coro: Assim, aos olhos dos mortais, que esperam ver o dia
derradeiro, ninguém pareça ser feliz, até ultrapassar o termo da vida, isento de dor,
1528-30 - trad. de M. do Céu Fialho, Sófocles. Rei Édipo (Coimbra 1986).
Na Antígona, Creonte proíbe o sepultamento de Polinices, gesto que aos olhos dos
costumes religiosos se configura como um ultrapassar das barreiras impostas ao homem.
Na verdade a protagonista apresenta os rituais funerálios devidos ao irmão como uma
exigência de Hades (519). Já o coro indiciara que o desprezo das leis divinas se constitui
como um acto de insolência: se da terra preza as leis e dos deuses/na justiça faz fé,
grande é a cidade, 368-71 - trad. de M. H. da Rocha Pereira, Sófocles. Antígona
(Coimbra 1987).
Hipólito, da obra homónima de Eurípides, era umjovem de carácter modelar. Casto e
amigo do pai, repartia o seu tempo entre o salutar contacto com a natureza e a veneração
à deusa virgem, Ártemis. Porém essa devoção era exclusivista e, por isso mesmo, tida
como insolente por Afrodite. A morte virá colhê-lo nas teias do amor incorrespondido,
pela mão de uma madrasta despeitada.
76 Carmen Isabel Leal Soares

mãos por meio de correntes, regressa trazendo o despojo mais excelente,


o general outrora feliz. Com este destino anuncia-se a todos os mortais
uma lição: que ninguém pareça invejar o que se julga afortunado antes
de este ter morrido, tão efémeros são os dons dafortuna (859-66). Desta
vez o presente ' anuncia-se' tem um valor aforístico, pois estamos perante
uma actualização do discurso abstracto, onde se veiculam máximas tidas
como "verdades" fora de qualquer referência espacial ou temporal.
O exemplo de Euristeu demonstra que ninguém deve invejar a sorte alheia,
antes que o seu detentor tenha perecido isento de qualquer revés da fortu-
na. Sendo a instabilidade um princípio da precaridade da vida humana,
julgar-se feliz antes de ver chegado o derradeiro dia será uma atitude pró-
pria de quem carece de um dos valores mais apreciados pelo pensamento
clássico: a moderação ou awcppoaúvT] 56 .

Suplicantes 650-730
Ao contrário das outras figuras de mensageiro, o autor do discurso
em análise não tem uma palticipação activa na batalha que relata. Por cir-
cunstancialismos da história, o seu papel foi o de simples observador.
Como ele próprio revelara anteriormente, é de naturalidade argiva e a sua
condição, no momento do confronto entre as tropas atenienses e tebanas,
é de prisioneiro destas últimas (635-9). A impOltância destes dados bio-
gráficos torna-se relevante pela modulação que traz à focalização da die-
gese.
Tal como Antígona e o Pedagogo no início de Fenícias, este mensa-
geiro instalara-se nas muralhas da cidade para observar a batalha que
decorre na planície dianteira. A localização do observador autoriza-nos a
considerar uma teichoskopia o acto dramático-enunciativo em questão.
Na verdade, o mensageiro não só se encontrava sobre as muralhas (652),
como a paisagem descrita é extracénica. A consideração do tempo da

56 Creso, Hécuba e Andrómaca são exemplos que Heródoto e Eurípides, respectivamente,


imortalizaram como paradigmas literários da inconstância da felicidade. Ao poderoso e
rico monarca bárbaro, Sólon não reconhece o título de mais afortunado dos mOltais,
pelo que é despedido pelo anfitrião. Só depois de se ver na iminência de ser cremado
vivo, Creso compreenderá que o sábio ateniense tivera razão em não o ter por feliz antes
de terminados os seus dias (Heródoto I. 30-33, I). Da galeria de figuras femininas da
tragédia euripidiana destaca-se Hécuba, a cujo sofrimento de mãe privada da sua prole e
rainha viúva, ultrajada pela condição de cativa, o poeta dedica duas peças, Hécuba e
Troianas. Também Andrómaca, a esposa de Heitor e nora de Hécuba, vive o drama do
infortúnio, na peça homónima do nosso tragediógrafo. Na sua condição de princesa
troiana, era invejada pelas outras mulheres; com a sujeição de Tróia vê o filho ser
atirado do alto das muralhas da cidadela e acaba a servir o leito de Neoptólemo.
o Discurso do Extracénico 77

diegese face ao do discurso leva-nos, porém, a precisar a terminologia


teichoskopia. Diferentemente do que se verificara com o modelo homéri-
co e seu derivado euripidiano Fenícias 88-201, o tempo do discurso é
posterior ao da diegese, isto é, os factos são apresentados em diferido.
Porque a descrição é ulterior, achamos conveniente designar de "teichos-
kopia indirecta" a fala do mensageiro de Suplicantes.
Quanto à focalização da história, ela sai, uma vez mais, fortemente
condicionada por um partidarismo do seu autor face ao perspectivado.
Também este mensageiro está nitidamente a favor de uma das partes
beligerantes - a ateniense. Toma-se mais significativa esta preferência, se
considerarmos que ela não assume um carácter de necessidade. Ou seja, o
mensageiro não admira a acção dos guerreiros de Atenas porque eles são
seus compatriotas ou irmãos de armas, numa luta travada lado a lado.
Mas, uma vez que a vitória ateniense ocasiona a recuperação dos corpos
dos chefes argivos e, muito particularmente, a sua própria fuga (752 sq.),
fica assim justificado em grande medida o reconhecimento-simpatia que
nutre por aqueles guerreiros.
Situada a acção no tempo - o romper da aurora - e no espaço - as
muralhas de Tebas, junto à pOlia Electra (650 sq.) - o mensageiro "actua-
liza" o seu discurso recorrendo ao presente histórico 'vejo' (ópw, 653).
Como vem sendo hábito da técnica descritiva do poeta, à apresentação
geral do corpo de guen·eiros segue-se, espraiado ao longo de dez versos,
um desenvolvimento pormenorizado desse relance do olhar.
As três unidades especificadas - infantaria, cavalaria e carros - são
apresentadas no momento em que se dispõem para o combate. Daí que
predominem verbos de valor estático e/ou complementos circunstanciais
de lugar onde. A infantaria estende-se para cima, em direcção ao monte
Isménio (654 sq.). De entre a multidão de guerreiros, a atenção do ouvinte
é orientada para dois subgrupos, cada um deles comandado por um rei
(anax) , que o recurso à anáfora coloca em destaque: [vejo] ... 0 rei em
pessoa, filho ilustre de Egeu, e os seus homens, colocados na ala direita,
habitantes da antiga Cecrópia (referência a Teseu); e o próprio Páralo
munido da sua lança, junto da nascente de Ares (656-60). Dos homens
que acompanham o primeiro indica-se o posicionamento na ala direita
bem como a imobilização. Páralo, por sua vez, encontra-se nas proximi-
dades da nascente de Ares. A referência às duas restantes unidades
militares é bastante mais breve e sem qualquer pormenorização de figuras
individuais. Os critérios de identificação mantêm-se; repete-se o particí-
pio perfeito de Tá00úJ, 'dispor-se em linha, estacionar', acompanhado de
complemento circunstancial de lugar: a cavalaria encontrava-se estacio-
nada diante das fronteiras do acampamento; a unidade dos carros de
combate estava abaixo do túmulo do venerando Anfion (660 sq.).
78 Carmen Isabel Leal Soares

A preponderância que assume o exército invasor toma-se evidente


pela própria comparação do número de versos que no discurso o mensa-
geiro dedica à descrição dos guerreiros de ambos os lados. Agora são
apenas necessários dois versos para apresentar o contingente tebano. Con-
tinua a ser a associação de uma forma verbal estática a um complemento
de lugar a trave sintáctica da sua representação discursiva. O espaço é
desenhado por um contraste: os guerreiros tebanos estão diante das mura-
lhas, mas tendo, por trás de si, o objecto da disputa, os cadáveres dos che-
fes argivos (665).
Depois de ter sido levado a "olhar" separadamente as frentes inimi-
gas, o ouvinte depara-se com a soma dessas duas perspectivas e assiste à
disposição relativa dos exércitos beligerantes. Por meio de uma constru-
ção poliptótica apresentam-se cavaleiros e canos colocados de frente para
os congéneres adversários: os nossos cavaleiros armados contra os seus
cavaleiros, as nossas quadrigas contra as suas quadrigas (666 sq.).
Desde o início da peça são apresentadas duas vias para solucionar o
conflito entre Tebanos e mães e órfãos dos heróis argivos mortos às por-
tas da cidade cadmeia: tratado amigável ou guerra57 . Já anteriormente
incumbido da missão de informar o adversário da vontade de Teseu em
recuperar os corpos sem fazer a guerra (385-7), é na iminência do com-
bate que o Arauto vê chegada a ocasião de transmitir essa mensagem
(669-72): Silêncio, senhores! Silêncio, fileiras dos Cadmeus! Escutai!
Nós estamos aqui movidos pelo propósito de sepultar os nossos mortos,
em cumprimento de uma lei pan-helénica. Não há necessidade de provo-
carmos a carnificina (669-72). Esta é a primeira vez que, nesta fala do
mensageiro, o dramaturgo recone ao discurso direct0 58 . Deste modo o
discurso ganha em vivacidade, não só devido à citação, mas ainda pela
diversificação das vozes, pois os sujeitos da enunciação são figuras dife-
rentes. O poder persuasivo da palavra oferece uma contrapartida humana
a não negligenciar: poupar o derramamento desnecessário de sangue.
À semelhança de Hilo de Heraclidas, esse é um dos argumentos para evitar
o confronto. Advém-lhe um outro de carácter legalista. Ou seja, o desejo
de dar sepultura aos guen'eiros mOltos em combate afinal não é uma peti-
ção arbitrária, mas sim o cumprimento de uma lei pan-helénica. Devido à
prepotência e intransigência de Creonte, a guerra que os Atenienses "são
obrigados" a travar com os Tebanos pode, por isso mesmo, considerar-se
justa59 .

57 Soluções postas tanto na boca de Etra (24-6) como na de seu filho Teseu (346-8; 385-90).
58 Além do Arauto, temos os discursos directos dos soldados atenienses e tebanos (702) e
de Teseu (711 sq.).
59 Se se considerar a motivação que conduz Teseu a levantar armas contra Tebas e a
o Discurso do Extracénico 79

Assim como em Heraclidas (813), o silêncio surge aqui como répli-


ca negativa a uma proposta pacifista (673). A reforçá-la, temos uma pos-
tura que transmite a vontade de Creonte em dar início ao combate mas-
sivo: A estas palavras Creonte nada respondeu, antes permaneceu
silencioso em poder das suas armas (673 sq.). A forma verbal de valor
incoativo 'começavam' (KQTiípxov, 675) dá sentido ao início da refrega.
Porque passamos a assistir à descrição de uma acção, o domínio cabe
agora a verbos de movimento. A primeira unidade militar a ser apresenta-
da é a dos carros (674-9). O pormenor das manobras corrobora a nossa
anterior reflexão sobre a utilização dos carros essencialmente como veí-
culos. Eles abandonam a retaguarda e atravessam as outras unidades do
seu exército para irem colocar os guerreiros na frente de combate (676
sq.). Enquanto estes lutam, os condutores regressam ao ponto de partida,
para posteriormente - e quando necessário - prestarem apoio aos com-
batentes no centro da peleja.
O protagonismo da acção transfere-se do conjunto das quadrigas
para a cavalaria, da qual sobressai a figura de um general ateniense, For-
bas (680). O choque da sua companhia com a dos Cadmeus não é apre-
sentado de forma neutra, pelo simples substantivo àÀ.K~ ('combate')
- como fora antes o embate dos guen'eiros dos carros, 679 - , mas vem
acompanhado por uma adjectivação, 'violento combate' (683), que ante-
cipa o quadro dos horrores da guerra (684-93). É no momento que vai
passar a narrar as mazelas da luta que o mensageiro sente necessidade de
apresentar o seu testemunho visual como prova de veracidade mediante
quadro tão penoso. Assim como o seu igual de Heraclidas (847 sq.), tam-
bém ele recorre ao cliché de que aquilo que se vê é mais fiável do que o
que se ouve dizer. Ao que acrescenta uma reafirmação da sua presença no
local dos acontecimentos:
Embora eu os tenha presenciado e não apenas ouvido narrar,
os sofrimentos incontáveis que aí tiveram lugar - pois encontrava-
-me lá
onde combatem os carros e os seus guerreiros -, não sei qual men-
cionar primeiro:
a poeira que se erguia em direcção ao céu (tal era a sua abundân-
cia!)?

sensatez com que impede o seu saque no momento da vitória, conclui-se que: "A expe-
dição contra Tebas não visara a conquista, mas apenas a recuperação dos corpos (72 1-
-24). Transpor essa barreira era ultrapassar a medida e cair no excesso. É fácil uma
guen'a justa transformar-se, após a vitória, em insolência e injustiça" (1. R. Fen'eira,
"Aspectos políticos nas Suplicantes de Eurípides" Humanitas 37-38, 1985-86, 106), o
que, como veremos, Teseu não pelmite.
80 Carmen Isabel Leal Soares

Os corpos que pelas rédeas eram projectados em ascensão e queda ?


As torrentes vermelhas de sangue, dos que
jaziam mortos ou daqueles que,
do cimo dos carros despedaçados, na violência do embate,
mergulhavam no solo, para expirarem por entre os destroços?
(684-693)

A presença do sujeito da enunciação adquire maior significado pelo


recurso às formas de presente 'sei' e 'digo' (686 sq.). O recurso à interro-
gativa indirecta simples (687) e à directa dupla (687-94) pelo seu conteú-
do denota a incapacidade da pessoa do mensageiro em estabelecer uma
prioridade na apresentação dos sofrimentos incontáveis (TIoÀ.À.à TI~iJ.aTa)
ocon"idos em campo de batalha e serve para despertar a atenção do ouvin-
te para o narrado. A ligação entre emissor e receptor torna-se, deste
modo, mais explícita e estreita. À descrição factual de um quadro de
sofrimento e morte subjaz a emotividade que lhe é intrínseca. Aos olhos
do seu receptor directo, o mensageiro, chega uma percepção gradual dos
eventos . Do emaranhado de guerreiros e carros, capta primeiramente uma
visão embaciada por uma abundante nuvem de poeira60 . Ao ouvinte apre-
senta-se um cenário em formação . Tendo-se elevado a poeira até ao céu,
o olhar é atraído para um movimento simultâneo e contrastivo de ascen-
são e queda de corpos arrastados pelas rédeas (689 sq.). Como ilustra a
mistura de cadáveres com carros e seus destroços, a fragilidade do
homem é cruelmente desnudada pela malte (693). Depois de traçados os
motivos de uma tela, há que dar-lhes vida (ou morte) através da cor. A
tintura escolhida é o vermelho sangue (690), numa tal abundância que
parece dominar, no seu significado e significante, toda a cena. Daí que o
mensageiro fale em 'torrentes' e estenda a sua proveniência à totalidade
dos corpos (691 sq.)61 .
À morte e dor das massas anónimas de soldados segue-se o retomar
da luta, desta vez protagonizada por Creonte e Teseu em conjunto com as
respectivas companhias (694-70 1). Limitado pelo seu estatuto de narrador
homodiegético, o mensageiro apenas pode tecer conjecturas a propósito
da corrente de pensamento de outra personagem. É nessa medida que,
através do discurso modalizante (como se desconfiasse que o exército
ateniense venceria com a sua cavalaria, 694), ele interpreta o avanço de
Creonte para junto das tropas inimigas como uma prova de incentivo -

60 Sobre a presença natural, e que se tornou uma convenção, de poeira em combates com
canos, cf. Ilíada 11. 151; Sófocles, Electra 714 sq.; Eurípides, Electra 476 sq.
61 Descrições idênticas encontramo-las já na épica (Ilíada 16. 742-50), bem como em
passos da autoria do nosso poeta, ainda a considerar (Fenícias 1149-52, 1192-5).
o Discurso do Extracénico 81

necessária ao seu exército num momento em que lhe parecia que este
estava prestes a sucumbir diante da cavalaria ateniense. Idêntica atitude é
tomada pelos homens de Teseu, que marcharam em frente brandindo as
armas resplandecentes.
Após o espectáculo das movimentações dos guerreiros e da morte, à
visão vem substituir-se outro órgão sensorial, a audição. Da morte passam
a destacar-se o som do choque dos homens armados e as ordens de cha-
cina trocadas, entre os dois exércitos, por meio de grande gritaria (699-
-701) . Desta vez o discurso directo, embora de conteúdo idêntico, tem
autores colectivos e adversários, os guerreiros de ambas as facções 62 .
Incentiva-se à morte do inimigo; quer usando fórmulas mais abreviadas,
como é o caso do imperativo 'mata' (proferido pelos Tebanos), quer ser-
vindo-se de outras mais expandidas - Trespassa com o ferro os Erectidas
(proferido pelos Atenienses; ambas em 702).
Conforme indicado no esquema previamente apresentado, a uma
primeira exortação à luta segue-se novo embate. Apesar de o mensageiro
reconhecer o perigo que representam os rivais nascidos dos dentes do
dragão (704), deixando uma vez mais vir à tona a sua subjectividade, o
combate mantém-se equilibrado (706). Enquanto, por meio do imperfeito
'recuava' (704), o movimento da ala esquerda ateniense é apresentado
como um acto em decurso, o presente 'foge' (706) actualiza com maior
vivacidade a fuga da ala direita dos Tebanos.
Perante este impasse, o desfecho do confronto é trazido pela aristeia
e androktasia de Teseu. Estudos recentes comprovam que a aristeia não
deve ser concebida como um acto meramente individualista. É verdade
que se descrevem os feitos militares de um só homem, regra geral um
chefe, mas isso não invalida que, como pano de fundo não explicitado
pelo discurso, tenhamos o auxílio militar dos seus homens espalhados por
várias frentes 63 . É isso que deixam adivinhar as palavras de encoraja-

62 As palavras e gritos dos combatentes são uma convenção e necessidade de todas as


descrições de batalhas, poéticas ou históricas. Veja-se a título de exemplo Heródoto 9.
58 e Tucídides 7. 70. 7.
63 A propósito das técnicas de combate em Homero, Wees aborda em diversos estudos a
actuação dos -rrPÓflUXOL, "aqueles que combatem à frente". Conclui que eles não lutam
isoladamente, mas sim na companhia de contingentes de guerreiros (1994: 4-7). Sendo,
pOttanto, os combates de -rrPÓflUXOl sempre lutas de massas, há que ter em linha de
conta que estes podem ser descritos sob uma perspectiva particular (focando guerreiros
individuais, donde temos as aristeiai) ou sob outra mais genérica (focando o movimento
do conjunto, "Kings in combat: battles and heroes in the lliad' CQ 38, 1988, 12). Ou
seja, é a própria técnica narrativa a responsável pela impressão de que a guerra é feita
por actos individuais e não pela acção do corpo militar ("Leader of men? Military
organization in the Iliad', CQ 36, 1986,286). A propósito de Fenícias podemos desde
já adiantar que a batalha realizada às portas de Tebas é um movimento de massas e não
82 Carmen Isabel Leal Soares

menta que Teseu dirige aos seus homens, cuja participação na luta, embo-
ra não seja referida em concreto, se torna deste modo evidente. O elogio
feito pelo mensageiro a Teseu é rasgado e exprime-se na primeira pessoa
do sujeito da enunciação: E neste ponto eu podia louvar o comandante,
uma vez que ele prestava auxílio às frentes enfraquecidas do exército
(707-9)64.
A parénese de Teseu num momento crítico do conflito é mais um
dos muitos motivos épicos que povoam a descrição do exército na tragé-
dia euripidiana65 . Do ponto de vista da construção sinestésica de um qua-
dro de guerra, o tom em que é pronunciada é necessariamente bastante
elevado. Noção essa dada pela hipérbole estereotipada Teseu levantou de
tal maneira a voz que toda a terra ressoou (710). Aos guerreiros é pro-
posta uma escolha entre a vida - resultante da vitória sobre o inimigo - e
a morte - trazida pelo sucesso do adversário (711 sq.). Teseu alcança o
objectivo de inspirar confiança nos seus homens (713), que ganham novo
vigor para um desfecho favorável do conflito. Nos quatro versos restantes
da aristeia do chefe de Atenas, o foco centra-se sobre a sua acção indivi-
dual em campo. Esta mais não é do que uma exibição de androktasia.
Os instrumentos de morte são os adereços do quadro (a clava e a funda),
utilizados para ceifar cabeças, extremidade corporal mais fácil de atingir e
símbolo por excelência de vida e beleza humanas 66 .
A vitória, como já víramos para Heraclidas (841), não é um prémio
privado de amargor ou fácil de alcançar. Pelo contrário: Foi com grande
dificuldade que eles [os Tebanosl se puseram emfuga (718). Porque há
vencedores e vencidos, há alegria e tristeza. Ao passo que o mensageiro,
partidário confesso da causa ateniense, exulta em manifestações de rego-
zijo - fazendo acompanhar os seus gritos de satisfação e danças ao com-
passo de palmas (719 sq.)67 - os guerreiros tebanos fogem em direcção às

a soma de sete combates singulares como se poderia pensar. Atesta-o a designação


'pastores dos batalhões' atribuída aos chefes argivos (1140).
64 Para um estudo da presença de aspectos políticos ou alusões históricas em Suplicantes,
veja-se 1. R. Ferreira, op. cit., 87-121. A propósito do passo em análise o autor refere
que "Nas Suplicantes havetia, segundo R. Gossens, uma velada crítica de Eurípides ao
modo como foi preparada e dirigida a batalha [Délion, 424]: os versos 707-10 informam
que Teseu acorria aos pontos mais indecisos do combate, incitava e animava os seus
homens - actuação bem diferente, de acordo com a descrição de Tucídides (4. 96), da do
general ateniense em Délion. A má preparação e condução da batalha por Hipócrates
teria provocado a derrota dolorosa para Atenas" (p. 89).
65 Outras representações trágicas deste motivo ocorrem em Ésqui lo, Persas 402-5; Eurípi-
des, Heraclidas 826-9,839 sq.; Fenícias 1145-7.
66 Esta noção será retomada em Fenícias para a análise da morte das massas (1149-51) e
de Partenopeu (1159-61).
67 Esta reacção que vem animar e colorir vivamente o relato do mensageiro não deixa,
o Discurso do Extracénico 83

portas de Tebas, onde pensam encontrar abrigo (720), e os habitantes


indefesos da cidade (os jovens e os velhos) são tomados de medo (722
sq.). Por conseguinte o mensageiro deu conta ao(s) seu(s) ouvinte(s) dos
variadíssimos sons da guerra: o choque das armas, os gritos de incentivo à
luta, os gemidos da morte, o pânico da derrota, as comemorações da vitória.
O mensageiro reserva para corolário do seu discurso o elogio da
conduta de um general ideal, prefigurado em Teseu68 • O herói lendário de
Atenas não permite o saque - recompensa muitas vezes ansiada pelos
guerreiros - pois dizia que não tinha vindo para destruir a cidade, mas
sim para recuperar os mortos (724 sq.). Os cinco versos de tom senten-
cioso que encerram esta fala são um louvor da sensatez, da sophrosyne, e
uma condenação do excesso, da hybris. Vejamos o seu discurso: Deve-se
preferir um comandante que, nos momentos de perigo, seja corajoso e
deteste a insolência dos homens vulgares, os quais, sendo felizes, mas
desejando subir os degraus extremos da escada, perdem a felicidade que
podiam usufruir (726-30). A arrogância desse povo insolente vem simbo-
lizada num motivo caro a Eurípides: a subida das escadas. Aquele que
não se contenta com a sua felicidade, mas ambiciona subir ao topo das
escadas, acaba por perder um bem de que podia disfrutar. No contexto da
diegese de Suplicantes, este povo insolente equaciona-se, obviamente,
com os Cadmeus.

Ataque dos Sete contra Tebas (Fenícias 1090-1199)


As Fenícias oferecem dois quadros do exército argivo disposto
diante das muralhas de Tebas. Já no início da tragédia, com a célebre cena
da teichoskopia de Antígona, o autor detivera a retina da imaginação do
espectador sobre o mesmo assunto. Contudo, quer pelo conteúdo quer
pela estrutura discursiva, nenhum dos passos torna o outro redundante ou
supérfluo. Desde logo se distinguem pelo tempo que ocupam na história.
Na teichoskopia descreve-se o avanço dos Sete contra a cidade cadmeia,

contudo, de ser em última análise um motivo épico (cf. Ilíada 13. 343 sq.), também
presente na historiografia (Tucídides 7. 71. 4). A propósito deste assunto cf. S. Barlow,
The imagery of Euripides. A study in the dramatic use of pictural language (London
1971) 64, n. 22.

68 J. R. Ferreira, op. cit., 107-14, apresenta argumentos que nos autorizam a ver em Teseu
a imagem ideal do estadista ateniense do séc.V. A propósito da figura de Teseu
cf. ainda M. W. Shaw, 'The ~'ÔOS' of Theseus in The Suppliant Women", Hermes 110
(1982) 3-19. Sobre a insistência no bom comando das tropas cf. 190-2 e 879 sq. Para a
motivação que o saque exerce junto dos guerreiros, veja-se o estudo aplicado aos
Poemas Homéricos de A. Jackson, "War and raids for booty in the world of Odysseus",
in J. Rich, G. Shipley, War and society in the Greek world (London 1995) 64-76.
84 Carmen Isabel Leal Soares

ou seja, a acção situa-se antes do confronto propriamente dito. Assistimos


sobretudo a uma percepção plástica dos chefes inimigos, delineada pelos
contornos emotivos dos comentários de Antígona.
O novo catálogo que nos vv. 1104-40 nos é dado dos generais
sitiantes vem depois de uma primeira batalha, de cujo resultado favorável
para os Tebanos o mensageiro já informara, no diálogo introdutório com
J ocas ta. Donde se produz uma diminuição da tensão dramática. Esta
segunda descrição do exército chefiado por Polinices só em patte retoma
o assunto da teichoskopia. O quadro alarga-se ao embate das frentes beli-
gerantes, que, como é próprio da técnica discursiva euripidiana, se parti-
culariza em diversos subquadros. Essas parcelas do todo desenham, como
veremos mais adiante, pat'es de guelTeiros, constituídos por um Argivo e
um Tebano: PartenopeulPericlímeno (1153-62), TideulEtéocles (1163-
-71); ou por um argivo e vários inimigos: CapaneufTebanos (1172-86) .
Em termos estritos de discurso, a diferença face ao quadro anterior facil-
mente se nota. Se bem que não possa ser tida como objectiva e privada de
interferências pessoais, a voz de um mensageiro é mais informativa do
que a de uma jovem donzela, irmã dos protagonistas da guerra, Etéocles e
Polinices.
Sendo o objectivo do presente trabalho uma análise dos processos
discursivos utilizados na descrição de um exército, não podemos abster-
-nos de algumas considerações, ainda que breves, de teor histórico-
-cultural levantadas pelas situações retratadas. A disputa dos filhos varões
de Édipo pelo trono de Tebas encontra, no cerco da cidade, uma solução
militar. As coordenadas espaciais são, por conseguinte, o acampamento
dos Argivos - situado na planície do Teumeso - e a cidade de Cadmo
(1100 sq.). Fazia parte dos estratagemas do exército sitiante a construção
de um fosso para reter a fuga do inimigo cercad069 . Como já demonstrou
Y. Garlan, é inequívoca a influência da poliorcética dos finais do séc. V
no relato mítico do cerco de Tebas presente em Fenícias 70. De entre os
dois tipos de estratégia militar existentes ao tempo do dramaturgo, a tra-
dicional (que dá prioridade à defesa do território) e a pericliana (que visa
defender antes o aglomerado urbano), as preferências do nosso poeta

69 Cf. Y. Garlan, Recherches de poliorcétique grecque (paris 1974) 106-23. Esse fosso
poderia mesmo vir imediatamente seguido por um muro, obstáculo mais poderoso à
deserção do inimigo.
70 Y. Garlan, "De la poliorcétique dans les Phéniciennes d'Euripide", REA 68 (1966) 264-
-77. Neste estudo afirma o autor que "através de Fenícias é pois possível destacar um
certo número de digressões e expressões que supõem, todas elas, pela parte de Eurípides
um desejo de fazer emergir o cerco de Tebas-da lenda e de o inserir, sob determinados
aspectos, na história militar grega do final do séc. Y" (271). Sobre o entendimento dado
ao conceito de poliorcética cf. Y. Garlan 1974: 3-7.
o Discurso do Extracénico 85

recaem, como se vê nesta peça, sobre a segunda. Na verdade o combate


trava-se às portas da cidade (1094), cuja integridade procura conservar-se.
O mensageiro, no entanto, retoma o relato dos factos momentos
antes do confronto, dando conta dos preparativos feitos pelos Tebanos
para a defesa da sua cidade. Assiste-se à realização de um sacrifício
humano a propiciar o favor divino (1090-92). À corrente utilização das
muralhas como posto de observação acrescenta-se, agora, um significado
sagrad07 !. Elas são o altar sobre o qual Meneceu se oferece em sacrifício
patriótico. O jovem morre pela cidade e para salvação dela. A morte
adquire, aqui, a tintura carregada do negro, pois foi executada por meio
de um punhal que se diz estar negro. A menção do sacrifício de Meneceu
é breve, uma vez que não interessa desenvolver uma cena de que o públi-
co já fora informado pelo próprio jovem (985-1018). A sua referência
surge, portanto, como um meio de melhor relacionar o cénico com o
extracénico.
Para além da preparação espiritual para a batalha (promovida pela
realização de sacrifícios), outras medidas, estas de ordem político-
-estratégica, têm de ser executadas (1093-8). Quem as concretiza é tam-
bém um jovem. Ao denominar Meneceu e EtéoclesnGLoES' ('filhos') em
vez de utilizar os nomes próprios, o mensageiro deixa transparecer o tom
emotivo que necessariamente compõe um relato que tem por receptor
imediato a tia de um e mãe do outro, respectivamente. O paralelismo que
no coração de Jocasta teriam os dois jovens distingue-se do contraste de
personalidades que deles oferece a história. Apesar de primeiramente
apresentado como um jovem submisso à vontade paterna, é o filho de
Creonte, Meneceu, quem irá demonstrar a autodeterminação necessária
para se privar da vida em nome da salvação da sua pátria. Por seu turno
Etéocles é não só um estratega em "segunda mão", um mero executante
dos planos militares traçados pelo tio, o mesmo Creonte (709-82), mas
também um ser egoísta, que arrasta para a ruína a cidade e imola a vida
de muitos concidadãos, apenas para defender um interesse pessoal, a
posse do trono de Tebas.
As atitudes dos dois jovens estão ligadas por uma sequência de
tempo - 'depois' (1090) - que traduz a posterioridade dos preparativos

7! Como refere Y. Garlan 1974: 92-7, as muralhas são um elemento civilizacional por
excelência. No di zer do autor: "Considerada simultaneamente como uma consequência
e uma causa do progresso económico e político que fez sair a humanidade do estado de
barbárie, a fortitlcação urbana era tida por maiOlia de razão como um elemento primor-
dial da vida na cidade. Constatamos, por exemplo, que a construção de uma muraUla
era, a partir da época clássica, a primeira obrigação incumbida aos fundadores de uma
nova cidade" (95).
86 Carmen Isabel Leal Soares

práticos para a guerra relativamente aos espirituais. As medidas de Etéo-


cles são defensivas. Distribui sete comandantes e respectivos batalhões
por cada uma das portas da cidade. A missão destes é reter a ofensiva
argiva, daí que sejam epitetados de guardas do exército argivo (1093 sq.) .
Deste modo o mensageiro deixa claro, desde as suas primeiras palavras,
que os confrontos que irão ocorrer diante das várias pOltas não serão
combates singulares, mas sim de massas. O que não o impede de destacar
pares de guerreiros em luta. Fazia parte das qualidades tácticas do chefe
prestar assistência aos pontos frágeis da sua frente. A maneira que Etéo-
cles tem de manter o vigor dos seus homens é acrescentar forças novas,
isto é, guerreiros que ainda não combateram, às enfraquecidas (1095-7)72.
Na qualidade de exército sitiante, a disposição das tropas argivas
traduz-se no avanço contra a cidade cercada. Daí que o mensageiro indi-
que o ponto de partida - o Teumeso - e o destino da sua progressão - a
cidade da terra cadmeia (1100 sq.). O presente histórico torna mais viva a
aproximação do perigo, encarnado num oponente caracterizado pela cor
emblemática dos seus escudos: vemos o exército de escudos brancos dos
Argivos (1099)13. À coloração sombria da morte de Meneceu segue-se,
num nítido jogo claro-escuro, a exuberância ofuscante do brilho de um
corpo armado em movimento74 .
Na presente fala a rubrica "Tentativa de evitar o confronto" não vem
contemplada, o que não significa que tenha sido excluída. Foi tão-só
adiada. Embora caiba a um segundo choque entre os dois exércitos a
resolução definitiva da disputa (1460-77), procurou-se, porém, evitá-lo
através da realização de um duelo entre os protagonistas desta guerra,
Etéocles e Polinices, moti vo presente nas duas falas que analisaremos
mais adiante. Podemos desde já adiantar que, como vem sendo hábito, as

72 A assistênci a aos pontos debilitados do exército é uma qualidade do chefe em que


insiste o narrador (cf. 1163 sq.). Este motivo apresenta-se como típico das descIições da
acção militar do general supremo de um exército, pelo que vem repetido em três dos
passos por nós considerados; o presente, Suplicantes 708 e Helena 1607.
73 A tradição literáIia dava como atIibuto característico dos Argivos a cor branca dos escu-
dos. Ésquilo e Sófocles referem-se-lhe simplesmente como o povo dos escudos brancos
(Sete contra Tebas 89; Antígona 106). Quanto ao significado preciso do epíteto 'de
escudos brancos' não há unanimidade na sua interpretação. As opiniões dividem-se em:
os escudos eram pintados de branco (Jebb ad Ant. 106); a matéIia-pIima em que eram
feitos resultava de uma liga contendo prata (W. K. PIitchett 1979: 262, n. 90); colocava-
-se uma cobertura de linho sobre o escudo para prevenir a absorção excessiva de calor
do sol CE. M. Craik, "Sophokles' Antigone 100-109", Eranos 84,1986, 104 sq.).
74 Essa notação de movimento, já visível na descIição dos preparativos dos Cad meus
('pôs-se em linha' 1096), torna-se agora mais notóIia: 'partindo' (1100) e 'conduziram'
(1101).
o Discurso do Extracénico 87

tentativas de evitar o confronto das massas, quer pela palavra (Suplicantes


668-72) quer pelo duelo (Heraclidas 804-17), revelam-se ineficazes.
Após os preparativos, passa-se de imediato ao sinal de início do con-
fronto . Este é sonoro: o ressoar da trombeta, acompanhado pelo entoar de
péanes. O som espalha-se por todo o campo, pois provém das duas fren-
tes (1103). Conforme indica a forma de imperfeito da oração péanes e
trombetas ressoavam em simultâneo, tanto do lado deles com junto às
nossas muralhas (1102), a acção prolonga-se no tempo. Desse modo o
entoar de cantares de ambos os lados não permite que o avanço das tropas
se apresente como um factor surpresa para o inimigo. O péan tem, con-
tudo, utilidade prática: manter os soldados numa marcha ordenada, ao
mesmo tempo que despeIta o terror nos inimigos e a confiança em quem
o entoa75 .
Após uma visão de conjunto do exército adversário, o mensageiro
passa a descrever cada um dos Sete, à frente do seu batalhão, em marcha
contra Tebas (1104-40)76. O foco estreita-se. Os pormenores do quadro
ornamentam com a soberba da sua profusão o discurso mais ou menos
estandardizado e formal da narrativa de batalha. O principal modelo que
Eurípides tinha ao seu dispor para o "catálogo dos Sete" era fornecido
pelo drama esquiliano Sete contra Tebas. De interesse evidente seria o
estudo comparado das duas versões . Este trabalho, além de já ter sido
realizado por várias vezes, afastar-nas-ia dos nossos actuais propósitos de
investigação77 . Dispensamo-nos igualmente de dissecar uma vez mais a

75 Cf. W. K. Plitchett 1971: 105-8. Exemplo ilustrativo do efeito que o entoar de péanes
pode ter na moral do inimigo são os versos 386-95 dos Persas: Mas quando o dia de
brancos corcéis banhou a terra dos seus raios resplandecentes, eis que, do lado dos
Gregos, irrompe um grande clamor, semelhante a um canto, cujo eco é devolvido pelos
rochedos da ilha. O terror invade então todos os bárbaros, iludidos na sua expectativa,
porque não era para fugir que os Gregos entoavam o péan sagrado, lIlas para marchar
para o combate, cheios de determinação e coragem - trad. de M. O. Pulquério, Sófocles.
Persas (Coimbra 1998).
76 O número e nome dos heróis da plimeira expedição de Argivos contra Tebas não são
dados tixos na tradição (A. Schacheter, "The Theban wars", Phoenix 21, 1967, p. 2 e
11. 9). O facto de serem sete a defrontarem-se com igual número de opositores é interpre-
tado como "uma transposição épica de um ritual de purificação em última análise de
origem babilónica" (W. Burkert, "Seven against Theb es: an oral tradition between
Babylonian magic and Greek literature", in I poemi epici rapsodici non Omerici e la
tradizione orale. Atti dei convegno di Venezia 28-30 Settembre, 1977, a cura di Brillan-
te, c., Cantilena, M., Pavese, C. O., Padova, 1981 , 129-51, sobretudo p. 42). Quanto à
existência de duas expedições, a segunda das quais protagonizada pelos filhos dos
heróis da primeira, os Epígonos, esta é tida como uma tradição suspeita (A. Schacheter:
ibidem).
77 Para um estudo comparativo das duas versões cl'. M. F. S. Silva, "Elementos visuais e
pictóricos em Eurípides", Humanitas 37-38 (1985-86) 61-7. Das alterações que Eurípi-
88 Carmen Isabel Leal Soares

questão da autenticidade desta quarentena de versos, já bastante funda-


mentada pelas vozes autorizadas de Craik78 e mais recentemente Mastro-
narde79 . E com base na aceitação da autoria euripidiana para a quase tota-
lidade dos vv. 1104-40 que passaremos a considerá-los.
A resposta a três requisitos para cada chefe enumerado confere à sua
descrição a configuração de uma lista. São eles: a) localização no espaço;
b) identificação do herói; c) descrição do escudo emblemático. O efeito
de enumeração próprio do catálogo vem indicado na abertura da lista pelo
advérbio 'primeiramente' (1104) e no seu fecho pelo ordinal referente às
portas que ataca Adrasto - 'as sétimas' (1134) . Os chefes podem ser
representados em movimento ou estáticos (Tideu-1119 sq. e Adrasto-
1134). No primeiro caso, ou são acompanhados pelos seus batalhões de
guerreiros (Partenopeu-1104 sq. e Capaneu- 1129) ou por vítimas sacrifi-
ciais - isto para Anfiarau, que acumula a função de guerreiro com a de
adivinho. Mas também surgem aparentemente isolados na sua progressão
(Hipomedonte, 1113 sq.). Ressalve-se, contudo, que, mesmo quando o
chefe é apresentado imóvel, a dinâmica desse subquadro pode ser transfe-
rida para a ilustração do escudo. Esse era o caso de Adrasto, uma vez que
no seu escudo estavam representados dragões a arrancar com os maxila-
res os Cadmeus do cimo das muralhas (1137 sq.). Donde continuamos a
sentir a preferência do poeta, nos quadros de guerra, peja descrição de
uma acção e não de um estado.
A identificação dos chefes (ponto b) é feita sob dois aspectos: nome
próprio e atribut0 80 . Este assume as formas de epíteto (Partenopeu, ] 106;
Capaneu, 1128), substantivo identificador da função exercida (Anfiarau,
1111; Hipomedonte, 1113) ou simples pronome possessivo (Polinices,
1123). Como já se verificara para a teichoskopia, o epíteto identificativo
pode indicar a filiação. Partenopeu é o filho da caçadora, ou seja de Ata-
lanta (1106). Ocupando um verso na íntegra e antecedendo imediatamente
o nome de Capaneu, a expressão epitética aquele que se julga não inferior
a Ares no combate (1128) antecipa a arrogância e insolência evidenciadas
pelo guelTeiro no seu assalto às muralhas de Tebas (1173-81 )81. Não nos

des faz à versão do seu antecessor veja-se S. SaYd, "Euripide ou l'attente déçue", ASNP
J5 (1985) 504-9. De acordo com a análi se desta autora, Eurípides não oblitera os dados
de Sete contra Tebas, antes joga com eles. Conforme afirma "o jogo sobre o texto de
Ésquilo pode mesmo ser mais subtil, porque Eurípides não se contenta em deslocar as
características dos guerreiros. Ele chega mesmo a combiná-las" (506 sq.).
78 Euripides. Phoenician Women, ed. trad. comm. E. M . Craik (Warminster 1988) 233 sq.
79 Euripides. Phoenissae, ed. comm. D. J. Mastronarde (Cambridge J994) 456-9.
80 Apenas Tideu (1119) e Adrasto (1 J34) são identificados exclusivamente pelo nome.
8 1 A prática do assalto "nas tragédias áticas aparece como um exutório ao espírito de
o Discurso do Extracénico 89

parece despiciendo o facto de ser este o único caso em que o nan·ador


inverte totalmente a ordem de apresentação dos requisitos que configuram
o retrato do chefe. A hybris, enquanto rótulo indelével do carácter de
Capaneu, surge desta forma à testa da sua apresentação. Para segundo lugar
é transferida a referência espacial (1129). Na maioria dos casos a indicação
das pOlias (ponto a) antecede a identificação do lider que lhes está destina-
do (Pmienopeu, 1104; Anfiarau, 1109 sq.; Hipomedonte, 1113). Verifica-
-se, ainda, nos casos de Polinices (1123) e Adrasto (1134) uma outra
variante: o cruzamento, no mesmo verso, das duas informações, disjunção
aliás bastante corrente em grego, mas que na tradução para pOlwguês é
impossível manter. Estamos de novo diante da preocupação do dramaturgo
em contomar a monotonia discursiva inerente ao catálogo.
É, contudo, na descrição da iconografia dos escudos (ponto c) que
assume maior relevo a veia artística de um poeta fascinado pelo espectá-
culo na sua essência, aquele que a visão colhe nos seus contornos e tona-
lidades. Do mesmo modo que, pela forma 'observamos' (1099), sublinha-
ra o exercício desse sentido na contemplação do exército no seu conjunto,
o mensageiro recapitula o significado do quadro dos chefes argivos com o
substantivo 'espectáculo' (eEá~wTa, 1139). Por razões dramáticas e gosto
pessoal de Eurípides, em Fenícias os escudos dos Sete, regra geral, não
inspiram, da parte do mensageiro, uma interpretação simbólica da perso-
nalidade dos seus pOliadores, mas revelam preferencialmente a sedução
do aliista por formas e cores.
A escolha de palavras da raiz 0Y]-, com o valor de 'significar', para
designar a ilustração dos escudos, evidencia a importância do valor
semântico-pragmático dessas armas 82 . A descodificação que as persona-
gens e/ou os espectadores fazem das imagens serve para destacar o
potencial ofensivo que os Argivos quiseram imprimir a uma arma de
natureza defensiva, o escudo. Diferentemente de Sete contra Tebas, não
temos uma personagem-guia a comentar o efeito aterrador dos vários
escudos. Não se pense, com isso, que tal omissão resulta empobrecedora
para o texto. Antes pelo contrário, ao receptor/espectador fica reservada
maior liberdade interpretativa. O apelo que o poeta faz à perspicácia e
raciocínio de cada um é maior.
A descodificação dos emblemas dos escudos dos Sete transmite uma
ameaça de morte ao adversário. Porém este catálogo não tem a sua razão
de existência dramática na tensão despertada nas personagens ou no
público, que já estava a par da vitória cadmeia.

desmesura que inspira a conduta de heróis como Héracles e Capaneu e os conduz por
vezes à sua perda" (Y. Garlan 1974: 131).
82 ÉrrL01w.a, 1107 e 1125;ullflEla, 1l11;aUllfla, 11l2;UllflElov, 1114.
90 Carmen Isabel Leal Soares

A sensibilidade do espectador começa por ser despertada para o


movimento das tropas na formatura dos seus escudos (1099), para vir a
deter-se no centro do escudo dos seus chefes 83 . A cena de caça, figurada
no escudo de Partenopeu, reúne os atributos necessários para ser simulta-
neamente qualificada de cena bélica e "emblema familiar" (1107) . A caça
é a actividade mais próxima da guerra. O domínio dos fortes sobre os fra-
cos é a lei natural que irmana as duas actividades, realidade essa que o
escudo ilustra. Uma presa/inimigo, o javali etólio, é subjugada pelos lan-
çamentos celteiros do arco (1108 sq.). A intimidação do adversário
obtém-se pela exibição de superioridade ou grandeza. Essa vantagem
exterior pode também decorrer das armas, como sugere a referência ao
batalhão eriçado de escudos compactos (1105) . Tal como as plumas dos
elmos (1105) e a juba de um leão (1120 sq.), o cerrar dos escudos pro-
voca, pela sua imponência visual, o terror no inimigo.
Anfiarau destaca-se dos seus congéneres pelo facto de vir num carro,
onde transporta os atributos da sua função de vate, os sphágia (1110) .
ldentifica-o como guerreiro o escudo, o único exactamente igual ao de
Sete contra Tebas. Caracterizado primeiro pela negativa - não transpor-
tando um símbolo insolente, 1111 sq. - define-se pela adversativa mas
sim, sabiamente, armas sem simbologia (1112). Esta articulação oracio-
nal sugere, em nosso entender, que só o escudo de Anfiarau está isento de
quaisquer laivos de desmesura. Mas, pela mensagem de supremacia que
contêm, todos os escudos dos restantes heróis são símbolos de insolência.
O escudo de Capaneu é apenas aquele em que, como veremos, mais cla-
ramente se denuncia a vanglória humana, tão detestada pela potência
divina.
A atenção e a perspicácia são qualidades requeridas ao bom guer-
reiro e, portanto, tidas pelos Argivos como suas. O escudo de Hipome-
donte personifica-as na figura mítica que por excelência representa o sen-
tido da visão, Argos. Com olhos disseminados por todo o corpo, 'Aquele-
-que-tudo-vê' apresenta uns abertos durante o dia (1116) e outros de noite
(1117), nunca ficando privado da visão. Uma das versões do mito mais
conhecida para Argos é a que faz dele, por mandato da esposa de Zeus, o
guardião de lo. Enquanto aliado de Hera, protectora dos Argivos, Argos é
uma figura hostil aos Tebanos. Mas a evocação de lo provoca no inimigo
uma recordação positiva da sua pré-história. De facto, na própria peça ela
é denominada mãe antiga dos Cadmeus (676, 828) e o seu filho Épafo é
apontado como uma das divindades que lhes são favoráveis (679). Além

83 A expressão 'no meio do escudo' vem, aliás, repetida em posição final nos versos 1107
e 1114.
o Discurso do Extracénico 91

disso este escudo não deixa de ser uma apologia subtil de um homem do
espectáculo ao sentido de que vive a sua arte, a visã0 84 .
A interpretação que se dá ao escudo de Tideu advém da leitura do
término do verso 1120. Se se aceita ETT' àCJTTLOO<), toma-se que a pele de
leão estava colocada 'sobre o escudo'. Caso se defenda a leitura ETT'
àCJTTLOL, significa que aquela fora cinzelada 'na face do escudo'. A própria
tradição literária faz-nos preferir a primeira versão. Ao herói geralmente
vem associado o javali 85 . Donde não nos parece que o leão fosse usado
como emblema do seu escudo. Atraído primeiro para a forma assustadora
de uma juba eriçada, o olhar da imaginação de personagens e espectado-
res é em seguida ofuscado pelo brilho de uma chama igualmente ater-
radora. Tideu ergue-a na mão direita. Esta imagem traz à memória do
mensageiro uma outra que lhe serve de termo de comparação, o titã Pro-
meteu 86 . Deixando brotar a sua corrente de pensamento, o mensageiro
descodifica a intencionalidade de Tideu: 'como se fosse destruir a cidade'
(1122).
O terror que desperta no inimigo o escudo de Polinices resulta quer
da imagem exibida quer do mecanismo que acciona (1124-7). Sobre ele
estão fixas, por meio de eixos, localizados por baixo da braçadeira, potras
articuladas. O seu movimento de corrida em sentido rotativo resulta de
saltos provocados por algum susto. A profusão destas indicações traduz o
gosto do poeta pelo pormenor técnico. O dispositivo móbil inspira medo
tanto pela visão a três dimensões que proporciona como pelo som provo-
cado pelo seu accionamento. Através da alusão ao medo das potras, Eurí-
pides soube cruzar a realidade figurada no escudo com a da história.
O pânico que as assalta não é outro senão aquele com que se deseja intimi-
dar o inimigo. De fundamental importância para a semântica do escudo
são ainda a adjectivação das potras, denominadas 'potniadas' e a obser-
vação do foro pessoal que, a propósito do movimento dos animais, faz o
mensageiro (1127). Ambas as questões apontam para a mesma ideia.
Podendo o adjectivo aludir à proveniência geográfica ou significar
"enlouquecidas pelas Erínias", apresenta-se a demência como explicação
para o seu comportamento agitado. As potras seriam originárias de Pótnias,

84 Vocábulos do campo semântico de "ver" dominam incontestavelmente a iconografia


deste escudo. Temos a ocorrência de pelo menos uma forma por verso:
UTLKTOLS'oo.OIlI-WULV oEoopKóm, 1115; ollllaTa, 1116; ~ÀÉTIovm, 1117; e Eluopãv,
1118.
85 Vd. Higino, Fábulas 69 e Estácio, Tebas 1.482.
86 Baseando-se no facto de a tradição dar o herói como de baixa estatura, há quem consi-
dere a comparação de Tideu com Prometeu uma leitura forçada. Para estes a imagem de
Prometeu viria gravada no escudo CE. M. Craik 1988: 235).
92 Carmen Isabel Leal Soares

cidade próxima de Tebas, onde os animais que bebessem das suas águas
ficavam loucos87 . O paralelo com as Erínias baseia-se no passo de Orestes
318, onde estas são designadas 'deusas potniadas' (T10TVLá8E<) 'ÔEaL).
Esta última interpretação é tanto mais relevante, pois também Polinices
está sob influência das Erínias, as Erínias de seu pai 88 . Os animais pare-
ciam-lhe estar dementes (1127). Note-se que o mensageiro tem o cuidado
de exprimir pela forma modalizante 'parecer' as limitações cognitivas
próprias do discurso subjectivo. A alusão à história torna-se evidente.
Como teremos oportunidade de constatar, o retrato que o mensageiro, no
seguimento do seu discurso, oferece dos quadros do confronto de massas
ou de heróis individuais carece também ele de razão, de medida; é assus-
tador, confuso, irracional. Características essas que saem mais vincadas
numa guerra movida por um fi lho contra a terra pátria e num duelo fratri-
cida. O mito apresenta estas éguas como devoradoras do seu dono, pelo
que ainda podem simbolizar a ideia de autodesttuição.
No escudo de Capaneu a atenção recai novamente sobre formas em
relevo trabalhadas no bronze da face (1130). A ligação entre a iconografia
e a história não levanta dúvidas. A imponência de um gigante filho da
telTa, aí desenhada, traduz uma força sobre-humana, desmesurada, que
permite um feito titânico: arrancar uma cidade inteira pelas suas funda-
ções (1131 sq.). É esse o excesso que transbordará mais tarde do carácter
do herói. A aproximação do guerreiro à imagem do seu escudo está auto-
rizada pelo próprio texto e pela tradição literária. Antígonajá o comparara
a um gigante (128) e é essa a designação que recebera em Sete contra
Tebas (424). As palavras que encerram a referência ao arrnamento de
Capaneu são mais uma confissão do entendimento pessoal que o mensa-
geiro tem daquele emblema, como parece sugerir: na minha opinião, de
igual modo perecerá a cidade (1133). Ele profere em voz alta aquilo que
todos - personagens e espectadores - interpretam como sendo a mensa-
gem de Capaneu. O herói veio para desttuir uma cidade, a cidade de Tebas.
Somos chegados à sétima e última porta, na qual já se encontra
Adrast0 89 . O emblema que ostenta tem uma dimensão patriótica. As cem
víboras que cobrem o escudo são o orgulho argivo (1137)90. Do ponto de

87 Cf. E. M. Craik 1988: 235.


88 Cf. D. 1. Mastronarde, op. cit., 466.
89 É a única de que não se refere o nome, omissão não preocupante em termos de exegese
dramática, uma vez que Jocasta, destinatário textual da fala do mensageiro, saberia
identificá-Ia.
90 O v. 1136 deve ser tido por espúrio. Terá sido introduzido como glosa de Hidra ou para
facilitar o entendimento da referência ao 'orgulho' no verso seguinte (D. 1. Mastronarde,
op. cit., 469 sq.).
o Discurso do Extracénico 93

vista cognitivo a mensagem é sempre a mesma: ameaça de destruição dos


Tebanos. As muralhas de uma cidade (Tebas) servem de palco à cena
figurada no escudo. No seu exterior temos os dragões (guerreiros argivos)
que arrancam com os maxilares os filhos dos Cadmeus (1138). Ironica-
mente é o animal ligado pela lenda à fundação de Tebas que promove a
sua própria destruição. Também Polinices é um filho da cidade que agora
se propõe tomar pelas armas. Ao sacrificar a sua vida por causa de uma
guerra que se quer vitoriosa, Meneceu sucumbe ao deus da guerra, é tam-
bém ele devorado pelo dragão, isto é, pela guelTa. A associação de Ares
ao dragão é um dado da mitologia, que faz dele pai do monstro ligado às
origens de Tebas .
O foco volta a alargar-se para recair sobre o início da ofensiva do
exército teban0 91 . Na verdade fazer seguir um período de combate eminus
(1104-40) de outro de combate comminus (1141 -95) é mais um topos das
narrativas de batalha92. A descrição do choque das tropas continua a obe-
decer à alternância entre grandes planos de massas (1141-52; 1187-95) e
o pormenor dos feitos de algumas figuras individuais (1153-86).
A realização de escaramuças preliminares entre tropas armadas à
ligeira, enquanto as falanges se confinam ao papel de espectadores, é a
prática militar de que nos dão conta os vv. 1141-3. O arremesso de pro-
jécteis - flechas, dardos e pedras - é uma primeira fase do confronto.
Geralmente o seu contributo para o desfecho da luta não é significativo,
embora possa começar a definir-se, a partir daí, a supremacia de uma das
partes93 . É o que se passa no presente caso, como confirma o predicado
'vencíamos' . Ao passo que a apresentação dos guerreiros privilegia a
visão como sentido dominante, o embate dos homens (à distância ou
corpo-a-corpo) evoca sobretudo a memória auditiva. O ressoar das pedras
a cOItar o ar faz-se ouvir. Os sons da guerra revelam-se na sua multiplici-
dade. Depois do ruído das armas, são os gritos de incentivo à luta (1144)
que vêm dar à fala do mensageiro a vivacidade própria do discurso
directo. A ordem de avanço proferida em uníssono por Tideu e Polinices
dirige-se às várias frentes de um exército: tropas ligeiras, cavaleiros e car-
ros-1147 sq.
Do embate o mensageiro faz primeiro um apanhado do destroçar dos
seus companheiros enquanto massa anónima: Muitos caíam com as cabe-

91 O uso da primeira pessoa do plural ('lutávamos ' , 1142; 'vencíamos' , 1143) recoloca a
perspectiva da acção do lado do porta-voz do relato, ou seja, do lado cadmeu.
92 Cf. exemplos da tragédia (Ésquilo, Persas 459-64 e Eurípides, Andrómaca 11 32 sqq.)
ou da historiografi a (Heródoto 1. 214. 2).
93 Sobre a realização dessas escaramuças no espaço situado no meio das duas frentes
opositoras, o I-lETu lXlllO<;-, cf. W. K. Pritchett 1985: 51-4.
94 Carmen Isabel Leal Soares

ças ensanguentadas; dos nossos uma grande quantidade poderias ver,


sobre o solo, diante das muralhas, caídos e exalantes; à terra sequiosa
molhavam-na com torrentes de sangue (1149-52). Como já vimos para
Suplicantes, o retrato que se colhe dos homens caídos em campo de
batalha espelha um profundo humanismo, uma sensibilidade ao sofri-
mento alheio ou próprio. A prostração dos corpos cobre-se com a cor do
sangue, a cor da morte. Voltamos a insistir que é na extremidade superior
do corpo humano, na cabeça, pólo de beleza e elemento por excelência da
singularidade de cada homem, que se manifesta o espectro da morte.
O destino do fluxo da vida é de regresso às origens, à terra, que não só ali-
menta94 , mas também deseja ser saciada, tributo esse que requer aos seus
filhos. A evocação do 'tu' (1150) implica com mais nitidez o destinatário
na história e no discurso. Torna-o participativo, ainda que tão-só através
da mente e das emoções experimentadas.
O foco centra-se sobre a ofensiva de alguns generais argivos e a res-
posta dos seus adversários. De novo a simetria discursiva a conferir coe-
são e a aproximar os quadros de pares de guerreiros. A oposição que o
guerreiro tebano faz ao inimigo traduz-se pela construção sintáctica da
oração adversativa: Periclímeno vs. Partenopeu, 1156; Polinices vs.
Tideu, 1168. A descrição destes episódios da batalha é uniformizada pela
apresentação dos factos mediante três critérios: a) identificação dos guer-
reiros; b) acção militar (ofensiva argiva e defesa tebana); c) ruína do
general argivo. A referência espacial é comum a todas as cenas: as mura-
lhas (1158, 1166 sq., 1176 e 1180); o objectivo argivo um só: dominar a
cidade - destruindo-a (desejo de Partenopeu, 1155), vencendo os seus
homens (ameaça de Tideu, 1167 sq.) ou tomando-a de assalto (vontade de
Capaneu, 1176). Num momento de grande tensão dramática - morte dos
Cadmeus, seguida do ataque ameaçador dos inimigos - o emprego do
presente histórico ('grita', 1154; 'vejo', 1165) presentifica o pathos intrín-
seco à diegese e aumenta o pathos externo, vivido pelo público.
A consideração de cada um dos itens em que se subdividem os pas-
sos - 1153-64 (PartenopeulPericlímeno), 1165-71 (TideulEtéocles) e
1172-86 (Capaneurrebanos) - permite destacar contornos particulares
para cada um deles. Começando pelo ponto a), verifica-se que a identifi-
cação dos guerreiros pode ser indicada simplesmente pelos respectivos
nomes próprios (Tideu, 1165; Capaneu 1172), epítetos (Partenopeu: o
que veio da Arcádia e não de Argos, filho de Atalanta, 1153) ou junção
dos dois (o filho do deus marinho, Periclímeno, 1156 sq.). Do ponto de
vista semântico, compreende-se a inclusão de dois epítetos referentes à

94 Cf. Heraclidas 826 sq.


o Discurso do Extracénico 9S

ascendência de Partenopeu e Perielímeno num quadro em que os laços


familiares, a figura materna ou até mesmo a presença feminina têm um
papel preponderante. Os sentimentos de afecto são uma característica
fundamental da personalidade de Partenopeu . Essa ideia fica sugerida
pela referência à mãe como uma dominante do seu retrato (1106, 1108,
1153, 1162). Na realidade os padrões maternos de uma mãe caçadora
fornecem-lhe paradigmas viris associados à prática venatória. No con-
texto da morte do herói, o pensamento do mensageiro vai de novo para a
mãe, através do motivo épico do abandono dos progenitores: nem voltará
vivo para junto de sua mãe, a do belo arco, filha de Ménalo (1161 sq.)95.
A relação etimológica do nome próprio do herói com nap'ÔÉvoS', 'vir-
gem', sublinha também a preponderância que na sua caracterização
exerce a figura feminina 96 . No âmbito geral da peça, o caso de Partenopeu
é apenas um pálido reflexo da importância que as relações familiares
assumem no retrato dos irmãos rivais. Aqui Etéoeles é identificado,
perante Jocasta, como 'teu filho' (1169). Deste modo, a ênfase vem colo-
cada nos laços de afecto que ligam Etéoeles à mãe. Como teremos
oportunidade de constatar, esse tema assume maior relevo no quadro de
morte dos irmãos.
A acção militar dos generais (ponto b) pode ser apresentada como
individual (Partenopeu, Perielímeno e Capaneu) ou apoiada pelas respec-
tivas tropas. Tideu é seguido por numerosos companheiros (1165). Etéo-
eles actua junto dos homens que ofereciam resistência a Tideu (1168 sq.).
A intervenção divina de Zeus vem dar o impulso decisivo à repressão
colectiva que do alto das muralhas os Cadmeus exerciam sobre Capaneu,
lapidando-o (1177). Partenopeu atira-se (1154) às portas da cidade; Peri-
elímeno retém a sua progressão lançando-lhe uma pedra à cabeça (1157
sq.)97; Tideu e os seus homens arremessam lanças contra as aberturas das
torres (1167); Etéoeles reúne os fugitivos (1169) para de seguida se diri-
gir apressadamente com o mensageiro (1171) para outras frentes debilita-
das; Capaneu avança para a muralha (1174), sobe as escadas que levava
às costas e transpõe a fortificação (1179 sq.); Zeus atira-lhe um raio
(1181).

95 O motivo do "abandono dos pais" já surgia na épica como uma das contrapartidas nega-
tivas da guerra (cf. 1. Griftin, Homer on life and death, Oxford 1980, 123-7).
96 Outras duas interpretações para o nome do herói são as que vêem nele uma alusão ao
longo período em que sua mãe conservou a sua virgindade ou ao facto de, em criança,
ter sido exposto no monte Parténio (cf. P. Grimal, Dicionário de mitologia grega e
romana, trad. de Victor Jabouille, Lisboa 1992, s. v. Partenopeu).
97 As pedras podem ser armas defensivas dos sitiados, capazes de provocar bai xas mortai s
no inimigo (Y. Garlan 1974: 135).
96 Carmen Isabel Leal Soares

Regra geral os generais fazem acompanhar o ataque de palavras de


incentivo dirigidas aos seus homens, ameaças para o inimigo. Ao movi-
mento percebido pelo olhar sobrepõe-se, na mente dos ouvintes, o som do
verbo. A potência do grito de guerra e a ameaça destruidora que repre-
senta a investida de Partenopeu não são apresentadas de forma objectiva.
É na comparação com um furacão que o narrador traduz a sua impetuosi-
dade (1154). O discurso figurado reaparece com nova comparação para
significar as qualidades de chefe supremo de Etéocles, que reúne os seus
homens 'como um caçador' (1169). As palavras de Capaneu não são uma
provocação ou insulto dirigidos ao adversário, prática corrente entre os
guerreiros98 . O seu destinatário é, antes, o deus supremo (1175). A invo-
cação insolente do herói será atendida. Zeus intervém pessoalmente no
conflito como aliado dos Cadmeus e pune, com a morte, a arrogância de
Capaneu. As intervenções miraculosas nos conflitos são uma forma de
significar o patrocínio que determinada divindade dá aos actos bélicos
dos homens. Há mesmo um decreto oficial de 40 a. C. onde se assinala a
intervenção de Zeus na protecção do seu templo em Panamara99 . O patro-
cínio de Zeus à causa tebana é entendido pelas duas facções beligerantes.
Adrasto toma-o como inimigo dos Argivos (1187), daí que recue, retiran-
do as suas tropas do fosso (1188); os Tebanos tomam a participação do
deus como um sinal favorável à sua vitória (1189 sq.). O abalo provocado
pelo estrondo do trovão de Zeus intensifica as alusões auditivas do quadro
(1181 sq.).
Com estes três exemplos - Partenopeu, Tideu e Capaneu - o mensa-
geiro ilustra a derrota dos Sete, desmitificando a imagem ameaçadora que
com os seus escudos e posturas em campo inspiravam junto do inimigo.
Deles fica como última imagem a desconstrução e a impotência de um
cadáver desfeito. A morte em combate é representada segundo motivos já
conhecidos da épica: esmagamento do crânio e dispersão dos mem-
bros 100 • O brilho de uma cabeleira loura e a cor purpúrea da boca de Par-
tenopeu vêm manchadas pela tintura de sangue, resultante do esmaga-
mento da cabeça (1150-61). Deste modo valoriza-se visualmente o
contraste entre juventude e morte. Ao herói ímpio, Capaneu, cabe um
castigo exemplar, comparável na difusão dos seus membros pelo espaço

98 Sobre a prática de dirigir insultos à facção inimiga, como prelúdio da batalha, veja-se
1. J. G lück, 01'. cit., 25-3 1 e sobretudo n. 127.
99 Cf. W. K. Pritchett 1979: 6 sq.
100 A mutilação e desfiguramento dos cadáveres era tal que por vezes se tornavam
iITeconhecíveis (1. GIitlin, 017. cit., 137 sq; P. Vaughn, "The identification and retIieval
of the hoplite battle-dead", in V. D . Hanson, Hopliles: lhe classical Greek ballle expe-
riel/ce, London 1991 ,38-62).
o Discurso do Extracénico 97

ao efeito que provocaria o movimento giratório da roda de outro hybristês


mítico, Ixião: Já tinha transposto os bastiões das muralhas, quando Zeus
lhe lançou o raio. Um estrondo sacudiu de tal maneira a terra que todos
se assustaram. Das escadas eram lançados os membros uns para longe
dos outros, a cabeleira para o Olimpo, o sangue para o chão, quanto às
mãos e às pernas giravam como a roda de Ixião: por terra cai um cadá-
vera arder (1181 -6).
Do relato do primeiro confronto dos exércitos oponentes às portas de
Tebas, o mensageiro chega ao seu desfecho: vitória tebana e derrota argi-
va. Mais do que distinguir vencedores e vencidos, o discurso do mensa-
geiro irmana-os no sofrimento da morte. O que se desenha na mente dos
ouvintes é um espectáculo de hOlTores, como tal apresentado: surgiam ao
mesmo tempo todo o tipo de horrores: os guerreiros morriam, tombavam
dos carros, rodas e eixos saltavam por terra, amontoavam-se cadáveres
sobre cadáveres, tudo à mistura (1192-5). O assÍndeto transfere para o
relato a violência que os factos evidenciam. Os calTOS quebram-se e mis-
turam-se com o amontoado anónimo dos mOitas. A parceria que no
campo de batalha os calTOS formam com os guelTeiros jazentes simboliza
a transitoriedade da vida humana. A morte despe o sujeito do que o
anima, o espírito, e o corpo partilha, em campo de batalha, do abandono a
que é votado qualquer objecto sem préstimo.
O tom sentencioso com que o mensageiro termina a sua longa rhesis
dá voz a um prudente juízo sobre a precaridade do presente, resultante da
incerteza no futuro (1196-9). A vitória alcançada sobre os Argivos cir-
cunscreve-se ao presente. Não haverá motivos para considerar de forma
absoluta Tebas afortunada, pois o que está para acontecer só os deuses
conhecem. Contrastando com a sobranceria de Capaneu, em paJ.ticular, e
de todos os chefes argivos, em geral, o mensageiro, porta-voz do bom
senso, coloca em mãos divinas não só o saber de actos vindouros, mas até
a responsabilidade dos actuais, pois agora foi algum mune que a [cidade J
conservou.

Duelo fratricida e batalha final (Fenícias 1217-63 e 1356-1479)


Embora muito provavelmente pronunciadas por mensageiros dife-
rentes lOI , estas duas intervenções figuram sob a mesma rubrica por abor-
darem um motivo comum: duelo entre Etéocles e Polinices e delTota
argiva l02 .

101 Cf. D. J. Mastronarde 1994: 523, n. 1335.


102 Sobre a tradição literária e histórica dos duelos cf. W. K. Pritchett 1985: 15-21. Outras
98 Carmen Isabel Leal Soares

Preparativos para o duelo (1217-63)


Tranquilizada a sua preocupação de rainha, com o anúncio da vitória
cadmeia sobre a ofensiva argiva (1196 sq.), Jocasta interroga sobre as
repercussões que esse desenlace teve para a disputa dos filhos (1207 sq.).
Assim, também ela, no seu questionário, segue uma preocupação que vai
do geral para o particular. Porque a este respeito as novas não são anima-
doras (1215), o mensageiro procura evitar o assunto, remetendo-o ao
desinteresse (deixa lá o resto, 1209) ou dando como urgente a sua partida
(1213).
Como já vimos no caso do duelo entre Euristeu e Iolau (Heraclidas
804-17), a monomaquia oferece a vantagem de ser um meio de evitar o
confronto das massas e consequente derramamento de sangue inocente.
Tal como se apresenta em Fenícias (e ao contrário de Heraclidas) a situa-
ção não se enquadra linearmente nesse protótipo. Por um lado acabámos
de assistir, na rhesis anterior (1090-1199), ao embate dos guerreiros,
espectáculo de contornos terríveis e dolorosos. Donde a contrapartida que
Etéocles apresenta aos exércitos para o fratricídio - Nem por Polinices
nem por mim negocieis as vossas vidas, 1227 sq. - só ilusoriamente
reveste um crime da grandeza de um sacrifício patriótico. Ao envolve-
rem-se outra vez em confronto (1460-77), também os estrategos de
ambas as partes e seus homens não revelam mais fidelidade à vantagem
que o duelo lhes oferecia - o alívio das penas da guerra. Ou seja, a
monomaquia não evitou uma segunda batalha, o engrossar de vidas
ceifadas. Ou porque não se concretiza (Heraclidas) ou porque lhe é nega-
da validade (Fenícias), o duelo em Eurípides (como na tradição épica l03 )
é um elemento frequentes vezes dilatório do confronto dos exércitos, uma
exibição aristocrática de valentia e prestígio. De facto aos propósitos de
ordem patriótica ou individualista que o podem inspirar subjaz sempre
um desejo velado de obter glória.
Conforme declara o mensageiro, no momento presente da diegese,
do duelo só ainda se fizeram os preparativos (1219 sq.). É deles que nos

versões do combate singular dos dois Labdácidas são fornecidas por Ésquilo, Sele
contra Tebas 804 sqq., Apolodoro 3. 68, Pausânias 9. 5. 12, Estácio, Tebas 9.447-579
e Diodoro Sículo 4. 65. 8. Para urna visão mais global da presença do duelo na história
militar e na história da Europa em geral veja-se V. G. Kiernan, The duel in European
hislory (Oxford 1988).
103 No canto III da Ilíada, Páris é retirado por Afrodite do campo de batalha e Menelau,
por conseíSuinte, impedido de concretizar a vitória. Com o cair da noite, o duelo entre
Heitor e Ajax termina o canto VII sem dar uma das partes por vencedora. Tanto num
caso como no outro, continuam os recontros entre Troianos e Aqueus. Porém, a mono-
maquia entre Heitor e Aquiles é decisiva, na medida em que termina com a morte
daquele e confere um alento determinante às tropas gregas (Ilíada 22.247-404).
o Discurso do Extracénico 99

dá conta a sua voz personalizada. O discurso que produz vem marcado,


sobretudo na abeltura e na conclusão, por notas valorativas próprias do
registo subjectivo. A realidade que lhe cabe anunciar, o duelo entre os
dois filhos de Jocasta, é para ele uma desgraça (KaKá, 1218), uma vergo-
nhosa demonstração de coragem (1219 sq.), uma proposta que nunca
devia ter ocorrido (1222). Há, pOltanto, da parte do mensageiro um cui-
dado em destacar o seu antagonismo face a um duelo criminoso e em
demarcar-se, enquanto sujeito detentor de uma entidade própria e
actuante, da aprovação que os outros guerreiros lhe concedem (1238 sq.).
Nas palavras finais da sua fala (1259-63) revela o mesmo empenhamento
emotivo no narrado, exortando Jocasta a utilizar junto dos filhos meios
que os demovam do funesto combate. Sugere-lhe como caminhos a
seguir o ascendente que eventualmente tenha sobre eles, a persuasão ou o
dolo. A percepção que tem do desfecho infeliz daquele combate leva-o a
considerá-lo uma vez mais em tons sombrios e ominosos. O perigo é
grande (1261), os prémios da luta terríveis e o sofrimento materno a sua
consequência natural. A colocação destas palavras "proféticas" imedia-
tamente a seguir à indicação dos sacrifícios traduz-se, na mente do ouvin-
te, como uma profecia suplementar à dos adivinhos. Mesmo que Jocasta
tivesse chegado antes de os filhos perecerem às mãos um do outro, não
teriam sido os seus argumentos capazes de demovê-los. Já anteriormente
o público assistira à impotência da progenitora, quando os seus insistentes
apelos à reconciliação haviam fracassado (528-85).
Moldando o motivo do duelo segundo o modelo que da tradição
épica lhe advinha, Eurípides é forçosamente convencionap04. Compõem a
sua preparação os seguintes pontos:
a) desafio (1225-35);
b) aprovação da proposta de duelo (1236-9);
c) selar do pacto (1240 sq.);
d) armamento dos oponentes (1242-5);
e) motivação psicológica para a luta (1246-54);
f) sacrifícios (1255-8).

É no tratamento retórico-discursivo destes itens que devemos, por-


tanto, buscar o cunho pessoal do nosso poeta. Com uma longa citação de
dez versos, o mensageiro dá vivacidade à narrativa e projecta da diegese a

104 Os aspectos que da narrativa do duelo figuram no seu texto já apareciam em exemplos
anteliores da épica (Ilíada canto III - duelo entre Páris e Menelau - e canto VIl- duelo
entre Ájax e Heitor) e da historiogratia (Heródoto 9. 26), como nos dá conta Mastro-
narde 1994: 487 sq.
100 Carmen Isabel Leal Soares

figura do seu motor, Etéocles (ponto a). Foi a este que coube a iniciativa
do combate singular. Como ficara evidente na esticornitia em que se
defrontara com o irmão, ele é um hábil manuseador das palavras, instm-
mento ao serviço de ambições pessoais. No presente momento o seu
objectivo consiste em obter, do irmão, o consentimento e, dos dois
exércitos, a aprovação à realização do duelo. Escudando-se nas vantagens
que para a colectividade pode ter essa resolução do diferendo que o opõe
a Polinices, apresenta como destinatários do seu discurso os exércitos
beligerantes e não o seu directo opositor. A subtileza da captatio beneuo-
lentiae vem espelhada no facto de ele evocar primeiro o adversário:
Estrategos da terra helénica, escol dos Dânaos, que aqui chegastes, e
vós, povo de Cadmo, nem por Polinices negocieis as vossas vidas, nem
por mim (1125-8). A sua proposta apresenta como selo de garantia a pre-
servação da vida alheia. São frágeis, porém, os alicerces desse altmÍsmo.
Nem as personagens nem o público esqueceram que já muitas vidas pere-
ceram na batalha acabada de travar às portas de Tebas. Logo o patriotis-
mo de Etéocles só pode ser oportunista. Neste contexto é pertinente notar
uma certa hipocrisia na facilidade com que agora se auto-intitula salvador
da situação: Eu próprio, afastando este perigo, sozinho vou travar com-
bate com o meu irmão! (1229 sq.) A formulação das partes do pacto des-
vanece por completo essa fachada de preocupação cívica. O que o move é
tão-só a ânsia de um poder pessoal, como revela a insistência em formas
do adjectivo 'só' (Ilóvov), como vimos no verso anterior e que repete
imediatamente a seguir: Se eu o matar, governarei sozinho o meu palá-
cio, mas se for vencido só a ele [Polinicesl o cederei. E vós, Argivos,
abandonando os confrontos, regressareis à vossa terra sem deixardes o
vosso corpo aqui, como os Tebanos, que em abundante número jazem
mortos (1231 -9). O que está de facto em jogo é o ceptro de Tebas e não a
vida dos concidadãos e muito menos dos gueneiros inirnigosl05 . É claro
que Etéocles dá ao colectivo inimigo uma contrapartida, o regresso à terra-
-mãe, que, ironicamente, o tempo há-de revelar falsa, pois a muitos será
negado. Apenas foram aumentar o número de mortos, que neste momento
o retórico Etéocles dá tão-só como Tebanos.
Em sinal de aceitação (ponto b), Polinices destaca-se das linhas do
exército. Tal como em Heraclidas (813-5), o mensageiro não faz qual-
quer citação das palavras proferidas por um dos rivais. Reproduzir em

105 Diferentemente da personagem esquiliana, "o novo Etéocles revela-se com uma iden-
tidade de homem egoísta e mesquinho, que, à frente dos interesses dos concidadãos,
põe os próprios e sobre o pedestal da sua veneração não a pátria, mas Tupavvls- 'o
Poder', a mais poderosa das divindades" (M. F. S. Silva, "Etéocles de Fenícias: Ecos
de um sucesso", Humanitas 45, 1993,61).
o Discurso do Extracénico 101

discurso directo preferencialmente as falas dos seus senhores é uma ten-


dência do mensageiro. Assim sendo, de Polinices apenas se diz que apro-
vou as palavras [do irmão}. Aliás o retrato que dele quer dar o dramatur-
go parece requerer esse silêncio. Esta é mais uma maneira de beneficiar
uma personagem que, no todo da peça, se torna mais simpática que o
irmão. Quaisquer palavras de acordo que neste momento Polinices pudes-
se proferir seriam desvantajosas para a sua imagem.
Conforme sugere o comentário à reacção da massa guerreira, esta
terá sido ruidosa e entusiástica. E, ao contrário do mensageiro, o duelo
apresenta-se-Ihe como um acto digno, porque justo: Todos os Argivos e
os Cadmeus aprovaram ruidosamente essa proposta, porque a achavam
justa (1238 sq.). A aprovação é solenizada pelo ritual (ponto c), libações e
juramentos. Este, tal como o duelo, tem lugar no iJ.ETaLXiJ.LOS', espaço que
separa ao meio os dois exércitos e, portanto, considerado terreno neutro.
Os jovens ajustam as armaduras (ponto d) e do seu aspecto exterior
destaca-se a paradigmática tonalidade ofuscante do bronze (1242 e 1246).
Na Antiguidade o duelo podia figurar em dois contextos distintos: o
militar ou o atlético. O enfeitar dos guerreiros pelos seus amigos e o enco-
rajamento verbal que estes lhes prestam, aqui aludidos, traduzem uma
realidade resultante da fusão dessas duas concretizações 106. Quem mais
adequado a executar o ritual da investidura das armas do que, à seme-
lhança dos dois protagonistas do duelo, companheiros igualmente ilus-
tres? É disso que nos dá conta o mensageiro: Imediatamente os dois
jovens, filhos do velho Édipo, revestiram o corpo com as brônzeas
armas; eram os companheiros que os erifeitavam: ao primeiro desta terra
afina-flor dos Espartanos; ao outro os Dânaos mais eminentes.
Como nos preparativos do exército, à preparação física segue-se o
estímulo psicológico para a luta (ponto e). No rosto, os dois irmãos exi-
biam já um ódio que os fazia desejar o início imediato do confronto. Eles
sem alterarem as feições estavam furiosos por atirar a lança um ao outro
(1246 sq.). Assim como antes do choque das massas os generais têm por
hábito pronunciar algumas palavras de motivação psicológica e incentivo
ao embate, também no combate singular assistimos a uma situação idên-
tica. Os amigos de Polinices exortam-no à vitória, ideia que traduzem na
dedicação do vencedor de um ex-voto ao deus supremo. Mas o prémio do
seu sucesso terá uma repercussão patriótica: Polinices, a Zeus oferece, em
teu nome, um troféu de vitória e a Argos confere um nome célebre
(1250). Na boca dos concidadãos, Etéocles luta pela cidade. Nas palavras
de alento dirigidas de seguida aos chefes substituem o imperativo da

106 cr Mastronarde 1994: 494.


102 Carmen Isabel Leal Soares

exortação pelo presente do indicativo, o que confere aos factos uma cer-
teza, que bem se adequa à personalidade autoconfiante da personagem.
Mas a consciência da motivação egoísta daquela disputa não a obliteram.
Pelo que lhe lembram agora, obtida esta brilhante vitória, é que ficas
senhor do ceptro (1253).
Antes de se dar o choque dos adversários, é necessário consultar QS
desígnios divinos (ponto f), cujo aval é imprescindível para o início da
refrega. Das vítimas sacrificiais os adivinhos interpretam as chamas, as
fissuras e os líquidosI07 . Os omina não são tranquilizadores, pois a previ-
são que anunciam é dupla: um sinal de vitória e um de derrota. A ambi-
guidade poderia funcionar como elemento dissuasor do combate fratri-
cida, o que não se verifica. Por conseguinte, esta é mais uma achega à
vontade irredutível dos dois irmãos de se matarem um ao outro l08 .

A fala do mensageiro está dramaticamente motivada, pois intervém


no desenrolar da acção. Jocasta é posta a par da intenção homicida dos
filhos varões, não para se confinar a um papel passivo de mãe sofredora,
que inevitavelmente é, mas para procurar impedir o fim trágico que
daquele duelo se adivinha. Para essa missão, escolhe a aliada que se lhe
irmana na dor e nos desígnios, a filha Antígona (1268 sq.). O papel de
suplicantes é o único conveniente ·à sua condição feminina; só assim
podem demover os rivais. Daí o convite de Jocasta: lança-te comigo a
seus pés (1278).
Mesmo antes do aparecimento de outro mensageiro com as novas
terríveis da morte dos dois Labdácidas e sua mãe, já ao público fora dado
adivinhar o conteúdo das falas, agora dirigidas a Creonte (1356-1424).
Jocasta predissera o próprio suicídio e, tal como o coro no quarto estási-
mo (1284-1306), a morte dos filhos (1283).
Sendo um dos discursos do mensageiro mais extensos, o dramaturgo
sentiu necessidade de criar a impressão de o dividir em dois. Facilmente
se entende que os dois versos atribuídos ao coro (1425 sq.) poderiam ser
omitidos sem prejuízo para a compreensão do relato que se segue, o que
dá à divisão um carácter aparente. Embora dispensáveis do ponto de vista

107 Este é um dos passos da tradição literária que demonstra a similaridade funcional dos
rituais sacriticiais dos hiera e sphágia. A forma verbal Ea<pa(ov adequar-se-ia prefe-
rencialmente aos sacrifícios de sangue, realizados em campo de batalha imediatamente
antes do choque dos guerreiros. Porém, ao signiticar 'degolar', ela pode ser aplicada a
qualquer acto sacrificial. Por sua vez, o exame da chama é próprio dos hiera. Sendo
assim "o poeta provavelmente não está a descrever o ritual que antecede imediata-
mente o início da batalha, mas a distinção de tempo e função pode ser bastante restrita"
(M. H. Jameson, "Sacritice before battle", in V. D. Hanson, op. cit., 208 sq.).
108 Desejo que já tinh am revel ado na esticomitia em que se defrontaram, vv. 596 e 621 sq.
o Discurso do Extracénico 103

da funcionalidade dramática, não o são pela carga emotiva que encerram.


O coro interrompe o mensageiro para exprimir a sua dor diante da amea-
ça de concretização das maldições que Édipo lançara sobre os filhos.
Além disso, ainda que breve, a fala do coro tem um efeito pragmático
importante na comunicação teatral. Permite ao actor-mensageiro recobrar
o fôlego e faculta aos espectadores uma ligeira pausa na recepção dos
dados descritos.
O relato do duelo prossegue nas suas consequências funestas : morte
dos irmãos, suicídio de Jocasta e perecimento de muitos soldados no der-
radeiro embate dos exércitos oponentes.

Duelo (1356-1424)
Continuando a descrição do duelo, iniciada pouco mais de uma
centena de versos atrás (1217), o mensageiro retoma os acontecimentos
imediatamente a seguir ao armamento dos heróis (1359)109. Define os
componentes humanos do cenário: os jovens filhos do velho Édipo (1360)
e os exércitos, para o meio dos quais eles avançaram (1361) . É na acção
de uns e reacções de outros que se centra o foco do natTador e a atenção
dos ouvintes. A alternância no discurso entre esses dois conjuntos de per-
sonagens proporciona à descrição um ritmo bipolar, sedutor em tão alon-
gado relato. Ao nível intradiegético, a forma como cada um dos exércitos
se preocupa (1370 sq.; 1388 sq.) ou aplaude o seu chefe (1395; 1398 sq.)
assemelha o duelo a uma competição desportiva. O incentivo dos
apoiantes não substitui o efeito psicológico da bênção divina. Cada chefe
evoca Q deus patrono da cidade sob a égide de quem combatei 10. Assim
sendo, Polinices apela ao auxílio de uma divindade de adopção. É ele
próprio que explica o seu relacionamento indirecto com Hera. O matri-
mónio com uma Argiva, filha de Adrasto, e a residência forçada em solo
estrangeiro, é que lhe impuseram aquela devoção (1365 sq.). À protectora
de Tebas, Palas Atena, cabe ao irmão dirigir a sua súplica (1373)111 . Se
bem que, pelo emprego do discurso directo, o mensageiro se oculte e as
personagens ganhem maior proeminência, o dar da palavra a Polinices e
Etéocles não se traduz na exclusão de interferências do eu-narrador na
história descrita. Desde logo designar o discurso de Polinices por 'impre-
cações' e não 'preces', quando ele se dirige à divindade, disso é prova.

109 Cf. 1242-5.


lia Essa 'evocação divina' pode designar-se por Em tkLa(J~óS" (Tucídides 2. 74 sq.).
III Enquanto patrona de Tebas, Atena recebe os epítetos de Kadmeia, Homolois, ISlIlenia ,
Onka, Pronaia e Zosteria (A. Schachter, Cults of Boiaria, London 1981 , 129-33).
104 Carmen Isabel Leal Soares

o patrocínio divino, como ritual que é, não imprime carisma ao discurso.


Desta forma o acento é posto na ameaça de morte dirigida ao adversário e
no desejo de vitória pessoal. Assim, suplica Polinices: que eu dê a morte
a meu irmão e erga a minha mão direita banhada de sangue (1367). Não
menos cruéis são as palavras que Etéocles dirige à filha de Zeus:
... concede-me enterrar, com este meu braço, a espada vitoriosa no peito
do meu irmão (e que eu mate aquele que veio para destruir a minha
pátriajll2 (1373-6). A desaprovação do mensageiro continua a minar as
mensagens dos rivais. Conforme notara o mensageiro da fala anterior
(1219), o fratricídio é um crime hediondo; a coroa do vencedor só pode
vir manchada de vergonha (1369) . Embora a reprovação no discurso do
mensageiro siga as palavras de Polinices, subentende-se que ela abrange
também Etéocles, pois o que ele pede à divindade é, como vimos, em
tudo idêntico aos desejos do irmão.
A seguir à palavra, o olhar é provavelmente o que de mais expres-
sivo tem o homem. É nos olhos das personagens que o nan'ador vai fixar
a atenção do ouvinte. Isto tanto no que diz respeito às figuras dos prínci-
pes rivais como à massa dos seus guerreiros. São apresentados a olhar, ou
para a cidade que defendem (caso de Polinices, 1364) ou para o templo da
divindade protectora (como faz Etéocles, 1372 sq.) ou uns para os outros
(situação dos guerreiros, 1371).
As citações vêm não só separadas pela reacção individual do mensa-
geiro, mas também pelas manifestações de apreensão dos apoiantes.
Depois de "olhar" para Polinices e "escutar" o seu discurso, a atenção do
ouvinte é desviada para a massa guerreira. O testemunho que desta lhe
chega é igualmente visual e auditivo, pois a muitos sobrevinham lágrimas
diante de tal sorte (1370). Tal como para o ataque dos exércitos inimigos,
o início do duelo é indicado pelo ressoar da trombeta tirrena, sinal de
sangrenta refrega (1378) . A imagem de marca da guerra é, como temos
notado, de um sofrimento visível na omnipresente tintura vermelha do
sangue. A elajá aludiu o narrador ao falar da mão de Polinices (1368) e a
ela terá de recorrer para descrever os ferimentos mortais dos irmãos. Esti-
listicamente enriquecido pela comparação e pelo símile, do discurso do
mensageiro emerge uma vez mais a subjectividade do eu-narrador:
Depois que, qual archote em chama, irrompeu o som da trombeta tir-
rena, sinal de sangrenta refrega, precipitaram-se em terrível corrida um
sobre o outro. Tal qual javalis a aguçar as suas ferozes mandíbulas,
envolveram-se em combate, com as barbas humedecidas pela espuma

11 2 Note-se que a forma 'matar' também figura no di scurso de Etéoc1es, mas, conforme
indicam as chavetas, em passo julgado pela maiori a dos críticos espúlio ( 1376).
o Discurso do Extracénico 105

(1377-81). Embora seja uma imagem tradicional na poesia grega ll 3, a


sinestesia sugerida pela comparação de um som a uma chama de fogo
serve para traduzir a fusão dos sentidos da visão e da audição. A violência
do primeiro embate é sugestionada pelo sírnile de dois javalis enraiveci-
dosl1 4 • A sinédoque atribui à palte, as mandíbulas, uma característica do
todo, a ferocidade. Associada a esta vem o descontrolo, concretizado na
espuma que humedece as barbas dos guerreiros. A imagem da loucura
ajusta-se com propriedade aos dois irmãos, cuja acção é, no plano sobre-
natural, orientada pelo furor das Erínias paternas.
A este retrato físico, e sobretudo psicológico, dos rivais sucede a
descrição dos movimentos da luta, que, segundo a tradição literária do
motivo do duelo, se constituía em duas fases lls : combate com a lança
(1382-7; 1390-1403) e, depois de este falhar, combate com a espada
(1404-15). Os irmãos primeiro intentam uma luta travada a certa distân-
cia, usando, para efeito ofensivo lanças e, para o defensivo, escudos
(1382). No entanto esta táctica revela-se ineficaz (1383) e inútil para o
objectivo desejado (1387).
O plano da descrição é transferido para a assistência, cujo receio
pela integridade dos combatentes (1389) é significado não por palavras,
mas de forma concreta no suor que os cobre. A vivência que os especta-
dores intradiegéticos têm dos acontecimentos assume proporções hiper-
bólicas, pois parece superior à dos protagonistas do combate: escorria
mais suor dos que assistiam do que dos que combatiam (1388 sq.).
O convite ao empenhamento do público exterior à história faz-se, desta
forma, sub-repticiamente.
São infligidos os primeiros ferimentos, interpretados pelas "claques"
de cada uma das partes como pré-avisos de vitória. Colocando momenta-
neamente a perna a descoberto do escudo, Etéocles oferece ao irmão a
oportunidade de lha trespassar (1390-4). O grito de triunfo dos guerreiros
de Polinices l16 distrai-o e ele deixa o ombro desprotegido. De imediato o
adversário aproveita para o perfurar com a lança e agora é a vez dos
Cadmeus exultarem de alegria (1396-9). A lança quebra na ponta, mas
Etéocles arremessa uma pedra alva à do irmão e anula a desvantagem em
que ficara (1401). De novo a predominância do vermelho a ser intersecta-
da pela coloração branca.

11 3 Cf. D. 1. Mastronarde 1994: 534.


114 De nítida inspiração homérica, podem trazer-se à colação Ilíada 7. 256 sq., 11. 414-8 e
13.471-5.
II S Cf. Mastronarde 1994: 528.
11 6 Esse tipo de reacção efusi va já a encontrámos em Suplicantes 719 sq.
106 Carmen Isabel Leal Soares

Já em pé de igualdade, reacende-se o combate travado, a partir desse


momento, numa luta corpo-a-corpo por meio da espada e sempre do
escudo (1402-6). Ao contrário da fase anterior, cabe a Etéocles desferir
primeiro o golpe fatal. O estratagema militar usado - o chamado sofisma
tessálio - tem uma nítida inspiração nas tácticas da luta desportiva I 17.
O objectivo é induzir o adversário em erro de cálculo e, desta forma, feri-
-lo quando menos espera. Simulando uma retirada, Etéocles leva o pé
esquerdo atrás ao mesmo tempo que protege a sua frente (1409-11). Este
movimento não deixava adivinhar qualquer ofensiva, pelo que, ao inespe-
rado avanço da direita, incauto, Polinices oferece o corpo (1412 sq.). Não
obstante o contexto militar em que se insere, trata-se de uma manobra
dolosa. Etéocles apanha o irmão em falso; mata-o à traição. E esta é, sem
dúvida, mais uma nota negativa a juntar a outras já apontadas para a
caracterização do Etéocles euripidiano. O ponto do trespasse evoca, uma
vez mais, o carácter torpe daquele homicídio. É no umbigo, símbolo de
maternidade comum entre os dois rivais, que Etéocles fere Polinices. Um
COite que à nascença dá a vida, vem, pela mão de quem o amor fraterno
nunca faria esperar, trazer a morte. A vida e a mOite têm uma mesma via
de acesso. Esta última exibe sempre o vermelho can'egado do sangue: Ao
mesmo tempo de flancos e abdómen dobrados, o infeliz Polinices cai
manchado com gotas de sangue (1414 sq.).
Demasiado sequioso de poder, Etéocles deixa-se cegar por aquilo
que mais não era do que uma promessa de vitória. Precipita-se na recolha
dos despojos do mOito, descuidando a protecção do seu corpo (1416-8).
Foi essa soberba, essa autoconfiança e ambição, que o perderam (1419).
Polinices gasta a última réstia de vida para se vingar do irmão (1419-22) .
Também ele escolhe feri-lo nos sentimentos, trespassando-lhe o órgão
tido como o centro das emoções, o fígado. Etéocles e Polinices matam-se
no corpo, depois de, pelo ódio, se terem matado na alma. O perdão virá,
mas só de uma das partes, de Polinices. À hora da morte, não será recí-
proco o encontro dos irmãos. Donde mais trágico o desfecho das suas
disputas, mais absoluta a ruína da casa de Édipo.
Se os heróis partilham de algo é da morte. Encontram-na lado a lado,
à maneira dos guerreiros homéricos, mordendo a terra com os dentes
(1423)118.

117 Para uma análise desta questão e de outras suscitadas por 1407-13, cf. E. K.
Borthwick, ''Two scenes af cambat in Euripides" , JHS 90 (1970) 17-21.
118 Cf. Ilíada 22. 17.
o Discurso do Extracénico 107

Morte dos irmãos e suicídio de Jocasta (1427-59)

A tensão dramática e a comoção dos ouvintes atinge o seu clímax


com a narração de novos males. Com o imperativo 'ouve', o mensageiro
reaviva-lhes a atenção, mais do que para as suas palavras, para os discur-
sos que preenchem o quadro de despedida que passa a reconstituir. De
todos os elementos da família só a Etéocles não é dada a palavra. Assim
como para as personagens falantes o discurso directo está ao serviço de
uma maior fidelidade do narrador ao extravasar de sentimentos, também
o silêncio do senhor dos Cadmeus é compensado pela expressividade da
linguagem de seus olhos (1437-41). Privar Etéocles de discurso é, neste
momento, a opção mais congruente com o retrato psicológico que dele foi
sendo feito . O que poderia figurar num contexto de derradeira despedida
seriam palavras de arrependimento e dor. Pô-las na boca de Etéocles seria
destruir o perfil de personalidade arrogante e inabalável nas suas, ainda
que injustas, decisões.
Graças ao relevo que vão assumindo progressivamente os laços
familiares, um quadro de natureza eminentemente militar vê acentuarem-
-se os contornos domésticos. A tragicidade do dilaceramento dos indiví-
duos sobrepõe-se à da comunidade, dominando por completo a cena.
O pano de fundo continuam a ser os exércitos tebano e argivo. Mas o prota-
gonismo da acção divide-se entre os rivais (exalantes e reduzidos ao papel
de filhos e irmãos), Jocasta (rainha que chora o seu sofrimento de mãe,
1434 sq.) e Antígona (que censura os irmãos pelo abandono em que as
deixam, a ela e à mãe - uma privada de amparo na velhice outra no matri-
mónio, 1436 sq.). São gemidos e prantos de dor os sons inarticulados que
acompanham o adeus de Jocasta. Em vão ela e Antígona tentaram chegar
a tempo de impedir o fratricídio. A rainha chora deste modo a impotência
do seu esforço: Ó meus filhos, corri em vosso auxílio, mas chego tarde
(1432 sq.).
Na mente do ouvinte a reconstituição das posições cénicas das figu-
ras é fundamental para o pathos do quadro. Por terra jazem os corpos de
Etéocles e Polinices. Aos brados, sobre um e sobre o outro debruça-se,
alternadamente, a mãe (1433). Em simultâneo, e ao lado de Jocasta, Antí-
gona faz ouvir as suas queixas de desamparo (1435).
Etéocles reúne as fracas forças que lhe restam para exprimir à mãe o
seu amor. Silenciada a voz (1440), são as lágrimas -de seus olhos que
falam por si, que testemunham o afecto que se salvou daquela catástrofe,
o matemo (1441). A imagem derradeira de Etéocles é apresentada pela
reacção que exibe na face: Nenhuma palavra proferiu, mas falou com as
lágrimas dos seus olhos, de maneira a exprimir o seu afecto (1440 sq.).
A sinestesia traduz a fusão dos sentidos visual e auditivo, que, no adeus
108 Carmen Isabel Leal Soares

de Polinices, voltam a ser distintos (1442 sq.). Na verdade, com os olhos


postos na irmã e na mãe, ele falou. O assunto que abre e encerra o seu
discurso é o mesmo: a morte. Começando por lamentar a ruína de toda a
família, termina com o reconhecimento do seu próprio fim. O sentimento
de comiseração que o domina estende-se aos três membros da família ali
presentes: mãe, irmã e irmão jazente. Em relação a este foram os laços de
parentesco o que se salvou da disputa que fizera dele seu inimigo: de
amigo tornou-se inimigo, mas era igualmente da minha família (1446)119.
Polinices volta ainda o pensamento para si próprio, para o destino do seu
cadáver. Ser sepultado em terra pátria é o último desejo, por cuja concre-
tização, uma vez morta Jocasta, cabe a Antígona zelar. Repousar em solo
familiar, reencontrar-se com a terra mãe, ainda que depois de mOIto, é a
única recompensa exigida por quem perdera o prémio, até então desejado,
daquela guerra. O direito a jazer em Tebas tem a força de uma obsessão,
sugerida no texto pela repetição próxima da ideia: Sepulta-me, mãe, e
também tu, minha irmã, na terra pátria e apaziguai ambas a cólera da
cidade, de modo a conseguir ao menos esse favor da terra pátria, embora
tenha perdido o palácio (1448-50). A tónica continua a residir na noção
de que morte e vida são estados que se tocam no momento de transição
de um para o outro. Descansar na terra-mãe e entrar na morte pelas mãos
da progenitora são a prova disso mesmo. Colocar ele próprio as mãos da
mãe sobre as suas pálpebras para as cerrar definitivamente é a forma que
o moribundo encontra para participar nessa passagem.
A morte dos dois irmãos dá-se em simultâneo. Como já adiantámos,
é apenas nesta coincidência que se verifica o seu (re)encontro: Assim,
exalaram ambos, ao mesmo tempo, uma miserável vida (1454). Por sua
vez, Jocasta sucumbe ao paroxismo da dor (1456). Arrebata uma espada
de entre os cadáveres dos filhos e comete um acto considerado pelo men-
sageiro igualmente terrível, fere o colo com o ferro. Procurando anular o
distanciamento que o tempo imprime a acontecimentos pretéritos relati-
vamente ao momento da narração, o mensageiro actualiza no quadro do
suicídio formas de presente ('trespassa', 1458; 'jaz', 1459). Por serem as
únicas usadas nesta descrição, conferem ao suicídio um maior impacto
junto dos ouvintes.

119 O termo <pl/..OS', aqui traduzido por 'membro da família', não comporta, necessaria-
mente, uma conotação afectiva marcada. Nos Poemas Homéricos ele vem aplicado
pelo agathos em situações tão diferentes como as partes do corpo, os seus haveres, a
família, os dependentes e amigos. E, embora Polinices seja dos dois irmãos o que
maior afectividade exibe, não nos parece que o seu relacionamento com o irmão possa
ter por base laços de amizade ou amor fraterno. Sobre o entendimento a dar a esse
conceito, cf. M. Scott, "Philos, philototes and xenia", AC 25 (1982) 1-1 9.
o Discurso do Extracénico 109

o "pano" cai sobre uma cena de tripla morte, num regresso dos
filhos ao tão sofrido seio materno: A mãe, perante o espectáculo de um
tal infortúnio, consumida pela dor, arrebatou uma espada de entre os
cadáveres e cometeu um acto que causa horror: trespassa o colo com o
gládio e, no meio dos entes queridos, jaz morta, abrançando-os a ambos
nos seus braços (1455 -9)

Confronto dos exércitos (1460-79)

Em dezassete breves versos, o mensageiro termina a sua intervenção


dando conta do segundo e decisivo confronto entre as forças cadmeias e
argivas. Do ponto de vista da economia dramática e da motivação do
público para a história, seria absolutamente desnecessário ou até mesmo
contraproducente uma nalTativa de batalha mais detida, uma vez que na
peça esse motivo já tivera o seu lugar de destaque (1090-1199) .
Na globalidade da presente fala, o passo em análise representa o
contraponto colectivo da querela que opôs os últimos dos Labdácidas.
Porque de menor impacto emocional do que os discursos dos protagonis-
tas individuais, a reacção geral dos exércitos, regista-a o narrador em dis-
curso indirecto (1461-4). Mantém-se, pOltanto, a variação discursiva na
apresentação das falas das personagens da diegese nalTada.
Antes do confronto armado, o desacordo entre as partes é animado
pela disputa verbal. A massa guerreira limita-se a reclamar a vitória para
o seu chefe: nós afirmávamos que o vencedor era o nosso chefe, eles que
era o seu (1461 sq.). Com argumentos tidos por inequívocos, o mesmo
protesto é fundamentado pelos respectivos generais. Em favor de Polini-
ces apresentam o facto de ter sido ele a desferir o primeiro golpe (1463).
Uma vez que ambos estão mortos, os Cadmeus não reconhecem validade
àquele critério e defendem que não há vencedor (1464).
Não se verificando uma opinião consensual, o conflito é decidido
por novo choque dos contingentes. Regra geral confinada ao papel de
mera espectadora da refrega, Antígona - depois da morte de J ocas ta, a
única figura feminina em campo - é obrigada a retirar-se, a ocultar a sua
presença (1465). As circunstâncias específicas deste recontro distinguem-
-no dos anteriormente estudados. Informa o narrador de que, talvez por
inspiração da Providência (1466), na pausa para realização do duelo, os
soldados tebanos mantiveram as armas junto a si (1467), ao passo que os
Argivos, segundo se depreende, as colocaram em lugar apartado. Mais do
que a um confronto, o ouvinte assiste a um massacre. Nesta medida pare-
ce que o exército tebano repete a atitude traiçoeira do seu chefe, Etéocles.
Disso nos dá conta a descrição da ofensiva cadmeia. Ela cai de surpresa
110 Carmen Isabel Leal Soares

sobre um exército ainda desarmado e, portanto, incapaz de resistir (1468-


-70). O exército invasor oferece um espectáculo de medo e deserção, san-
gue e morte: Ninguém pôde resistir, os fugitivos enchiam a planície, o
sangue jorrava de milhares de cadáveres trespassados pela lança (1470-
-2). A tríade de cadáveres da família real jaz agora numa planície juncada
de mortos.
O remate desta descrição de batalha é singular em relação a todos os
que já vimos . Terminada a luta, o mensageiro oferece uma perspectiva
sumária dos comportamentos dos vencedores. São actividades simultâ-
neas e levadas a cabo por grupos distintos. Uns agradecem a protecção
divina, erguendo um troféu de guerra a Zeus (1473). Outros tomam os
despojos dos vencidos (1474 sq.). Outros ainda recolhem os seus mortos
para posterior prestação das devidas honras fúnebres (1476 sq.).
Com a erecção do troféu em campo de batalha, marca-se o final
definitivo do confronto\20. Esta é uma prática de duplo sentido, religioso e
social: agradecimento a Zeus pela vitória alcançada e exibição de superio-
ridade militar\2\ .
Outra forma de o guerreiro prestar tributo aos deuses consistia em
dependurar nos seus templos as próprias armas ou as dos inimigos 122.
Este é, como já notou Pritchett, igualmente um ritual religioso e uma
forma de autopromoção do dedicante l23 . As armas saqueadas aos inimi-
gos mortos podiam ser objectos preciosos ou, com o dinheiro da venda do
seu lote, o guerreiro podia adquirir oferendas no valor desejado. Quanto

\20 "A batalha grega de falanges começava com o ritual dos sphágia, depois de os dois
exércitos opositores estarem dispostos para o combate, seguia-se o entoar do péan -isto
é, do "hino para afugentar os males"- a acompanhar o avanço das tropas; e terminava
com o ritual de erecção do troféu no campo de batalha" (W. K. Pritchett 1979: 87).
\2\ "O troféu era um monumento comemorativo erguido em campo de batalha, no local
onde as linhas inimigas tinham sido derrotadas. Era parcialmente constituído por armas
capturadas e era dedicado ao deus a quem a vitória fora atribuída. (... ) Aquele que
erguia o troféu era o senhor reconhecido do campo de batalha e podia permitir ao
inimigo sepultar os seus mOItas durante uma suspensão das hostilidades" (W. K.
Plitchett 1974: 275; sublinhado nosso).
\22 Ainda na tragédia temos alguns outros exemplos desse hábito de dedicar armas aos
deuses: Ésquilo, Agamémnon 579, Sete contra Tebas 278; Sófocles, Ájax 92;
Eurípides, Andrómaca 1123, Bacantes 1214, Héracles 695, Troianas 576. Por vezes
ofereciam-se as armas de um corpo inteiro de guerreiros. Os Fócios dedicaram os
quatro mil escudos capturados ao inimigo tessálico, metade para Abas e outra para
Delfos (Heródoto 8. 27). Esparta é uma excepção nesta prática. Não espoliavam o
inimigo morto porque as suas eram armas de cobardes (Plutarco, MOI·alia 224B).
\ 23 "O vencedor, quer por motivos de piedade, auto-estima ou propaganda política, pode
dedicar o seu próprio equipamento bélico, como fez Hierão, ou o que arrebatou do
inimigo, como fez Filipe" (w. K. Pritchett 1979: 245).
o Discurso do Extracénico 111

mais rico fosse o armamento, mais destaque tinha a oferenda e maior era
o prestígio do ofertante.
Da sepultura a dar aos guerreiros mortos em combate só se alude à
recolha dos cadáveres dos Cadmeus. A dos vencidos teria lugar após o
estabelecimento de tréguas para o efeito, o que ainda não sucedera l24 .
Como moralidade da sua fala, o mensageiro equaciona o significado
antagónico do conflito que dilacerou o palácio de Édipo (1478 sq.). No
momento do balanço, a cidade é apresentada como a principal atingida
pelas consequências daquele dissídio. Sobrevieram-lhe sopros benfazejos
da fOltuna - a vitória sobre os invasores - mas dos seus amargos também
degustou o paladar, o duelo mortal dos príncipes. A teia de relações que
se estabelece entre o colectivo e o individual é de tal forma intrincada que
este se reflecte naquele (uma disputa familiar põe em guerra dois povos) e
vice-versa (os sofrimentos da casa real são dados como infoltúnios para a
cidade de Tebas).
A máxima que se extrai deste quadro repete a dos anteriores.
A fortuna é inconstante. A postura a assumir pelo homem deve ser de
moderação e humildade.

124 Sobre o sepultamento dos mortos de guerra na Grécia antiga cf. W. K. Pritchett 1985:
94-259.
(Página deixada propositadamente em branco)
III

COMBATES IMPROVISADOS:
A DES-CONSTRUÇÃO DO MODELO ÉPICO

Como procurámos sublinhar, todos os confrontos considerados no


capítulo anterior obedecem a uma estrutura convencional de guerra com
fortes intertextos épicos. Tendo por origem um conflito declarado, dois
exércitos inimigos digladiam-se em campo de batalha. As forças opo-
nentes são cidades helénicas, os seus guerreiros Gregos. As motivações
da disputa dizem respeito a toda a comunidade. É com o consentimento
da sua cidade que o Demofonte de Heraclidas dá asilo aos filhos de
Héracles. Em nome da lei consuetudinária de protecção aos suplicantes,
defende-os contra a perseguição do rei de Argos. Aliado ao direito de dar
sepultura aos mortos, é ainda esse mesmo princípio que convence Teseu a
assumir o comando do resgate dos sete chefes mortos às portas de Tebas
(Suplicantes). Como insistimos, em Fenícias o conflito da farmlia real
envolve de tal forma a cidade requestada, Tebas, que aquele não pode ser
encarado como um acto individualista dos dois filhos de Édipo.
Mas a tragédia euripidiana tardia oferece, ainda, uma outra visão da
cena típica do confronto de falanges. Agora a luta é improvisada, de
implicação limitada a interesses privados e uma das partes beligerantes
não é helénica. Partindo dos elementos das descrições paradigma e reto-
mando-os, o poeta serve-se deles sob outra perspectiva, subverte-os.
Entendemos, por isso, criar um outro capítulo, designando-o "des-
-construção de um modelo épico". O nosso poeta evidencia, assim, a
riqueza dramática do tema, tomando-o repetidas vezes, mas numa plurali-
zação de perspectivas.
Os factores que definitivamente contribuem para essa nova perspec-
tiva do paradigma são a sua inserção num ambiente que, embora dentro
dos limites adequados ao género trágico, designaríamos por "menos
sério". Os dois combates improvisados representados pelo dramaturgo
aparecem em peças onde se instalou o tema da salvação: Helena (1526-
-1618) e Orestes (1474-89). Mas agora a salvação que se busca é pessoal
114 Carmen Isabel Leal Soares

e interesseira. A luta não surge como consequência da salvaguarda de


ideais heróicos, mas sim da sobrevivência. Porque em ambas as peças o
que os respectivos "heróis" buscam é salvar, por meio do dolo, a pele, a
astúcia suplanta coragem e determinação. A vítima do logro (Teoclímeno
de Helena) ou da cobardia (os guardas frígios de Orestes) é o bárbaro,
que, deste modo, sai um tanto ridicularizado. Porém, no reverso da
medalha, do grego não fica melhor imagem. Ou cabe-lhe o papel do viga-
rista ou logrador (caso de Menelau) ou, pior ainda, sai como aquele que,
como teremos opOltunidade de ver mais adiante, pretende também safar-
-se (caso de Orestes). São essas as "novidades" que reformulam a descri-
ção tipo do confronto de exércitos.
Não obstante a tragicidade inerente aos quadros de morte de Helena
1526-1618 e Orestes 1474-89, as circunstâncias que rodeiam o combate
entre Gregos e Bárbaros não são iguais. A palie grega tem a vantagem de
promover uma investida inesperada para os adversários, desse modo apa-
nhados desprevenidos. Ou seja, enquanto os marinheiros egípcios - que
fretavam o barco de Helena numa missão de desagravo à alma de Mene-
lau pretensamente morto - ignoram que, por baixo dos seus andrajos, os
náufragos gregos incorporados na viagem escondiam as espadas que os
haviam de imolar (Helena 1574 sq.), os guardas frígios da Helena de
Orestes vêem-se impossibilitados de fazer frente aos agressores da sua
senhora, trancados que foram em várias divisões do palácio (1449-53) .
Tanto num caso como no outro, a parte não grega do confronto fica psi-
cológica e fisicamente privada de ripostar convenientemente à ofensiva
de que é alvo. É por desconhecerem a verdadeira identidade dos passagei-
ros de última hora e por não terem armas consigo que os Egípcios são
massacrados pelos homens de Menelau. Por sua vez, os Frígios são
enclausurados por Pílades e Orestes, pelo que não podem oferecer-lhes
uma resistência oportuna. Quando finalmente conseguem libertar-se é a
cobardia o obstáculo psíquico à acção defensiva esperada de uma guarda
privada.
Em um dos casos (Orestes) a alteração do modelo épico passa pela
transferência do campo de batalha da tradicional planície para o interior
do palácio. Em Helena o palco das acções não foge à convenção, apenas
se centra noutro lugar igualmente habituado às cenas de guelTa, o mar.
Efeito cOlTosivo sobre o modelo épico desempenha também a natu-
reza dos interesses que motivam estes confrontos. Em ambos os casos é a
vontade individual que os inspira. Menelau comanda a carnificina dos
Egípcios para regressar à sua pátria na companhia da esposa. Coadjuvado
por Pílades, Orestes anula a presença da guarda frígia, pretendendo mais
facilmente acercar-se de Helena, com cuja morte deseja fazer chantagem
o Discurso do Extracénico 115

junto do seu marido, para conseguir, se não a salvação, pelo menos a vin-
gança.
Passaremos de imediato às reflexões pmticulares que cada um dos
excertos suscita.

Helena 1526-1618
Comecemos por aquele que retoma em maior extensão o paradigma
do nosso trabalho. Desta longa fala a primeira cinquentena de versos cor-
responde ao apetrechamento do navio e embarque dos passageiros (1526-
-76) . Funciona como antecedente próximo do combate, a respeito do qual
já fornece alguns indícios l .
Porque o seu rei lhes ordenara obediência plena às directivas do
comandante grego (1415-7), os marinheiros egípcios, embora achem sus-
peitos determinados factos e comportamentos, não ousam desobedecer.
São vários os indicadores de uma atmosfera de engano e de dissimulação
de caracteres. Os andrajos de náufragos não ocultam a robustez dos cor-
pos, designados "bem parecidos" (ElJEL8EL:;, 1540). A compaixão de
Menelau por aqueles homens é falsa (1542), pois viria a revelar-se parte
do dolo forjado para os tripulantes bárbaros. As lágrimas vertidas de
maneira astuta (1547) e o elevado número de acompanhantes estrangeiros
(1550 sq.) tornaram o quadro mais suspeito para os remadores egípcios
(1549). Há ainda indicações concretas da refrega que os aguarda. De
facto, dispostos em igual número tanto a estibordo como a bombordo e
sentados uns imediatamente ao lado dos outros, os Gregos assemelhar-se-
-iam a falanges de hoplitas (1573 sq.)2. A condição de meros tripulantes
ocasionais é fraudulenta, pois como se viria a descobrir posteriormente,
eles encobriam espadas debaixo das vestes (1574 sq.).
Nítido mau presságio para a viagem é a resistência que a vítima
sacrificial oferece em transpor a prancha de acesso ao navio 3 . Outros
sinais do desagrado do animal são o revolver dos olhos e o arquear de
dorso e chifres (1557 sq.). A entrada tem, por conseguinte, de ser força-
da. Só aos ombros os Gregos o conseguem introduzir na nau (1562) .

I Há dois entendimentos na narratologia modema para o conceito indícios: "unidades que


sugerem uma atmosfera, um carácter, um sentimento, uma filosofia", ou unidades que
remetem premonitoriamente para um certo desenvolvimento da intriga (Cf. Reis e
Lopes,op. cit., 194 sq.).
2 Confronte-se um homem sentado junto a outro homem com a idêntica expressão um
homem de pé diante de outro homem, aplicada às falanges de hoplitas em Heraclidas 837.
3 "Em regra espera-se que o animal se dirija complacente, 'voluntariamente' , para o sacri-
fício" (Burkert 1993: 128).
116 Carmen Isabel Leal Soares

Também o cavalo não entra passivamente (1567 sq.). O touro, a mais


nobre oferenda para o sacrifício (Burkert 1993: 127), não irá, porém, ser
imolada em honra do mOlto, como no momento do embarque indicava
Menelau (1564) . Ele destina-se a propiciar a vontade de divindades
marinhas (Poséidon e Nereides) em favor de uma fuga bem sucedida. É
ao fazer a prece aos deuses que Menelau revela a sua identidade e o
verdadeiro motivo daquela viagem (1584-7) .
Chegados à declaração aberta das hostilidades, será oportuno reto-
marmos, do esquema antes apresentado, os elementos típicos da descrição
do confronto presentes em Helena. São os seguintes os itens recorrentes:
• Preparativos: - sacrifício propiciatório (1581-8);
• Confronto: - choque: • 1a exortação à luta (1591-9);
• l° embate (1600 sq.);
• 2a exortação à luta (1602-4);
• 2°embate (1604 sq.) ;
desfecho (1606-14): • aristeia de Menelau
(1606-12).

Como constante que é das falas dos mensageiros, a moralidade vem


coroar a sua intervenção (1617 sq.) .
A embarcação pedida por Helena a Teoclímeno não servia o propó-
sito religioso de desagravar a alma de nenhum morto (1583), e muito
menos a de Menelau, que estava bem vivo. As torrentes de sangue que da
goela da vítima escorrem para as vagas são um presságio favorável, mas
só para o estrangeiro: Ó tu que habitas os mares, divino Poséidon, e vós,
castas filhas de Nereu, levai-me a salvo a mim e à esposa imaculada
para um porto seguro da terra Náuplia (1587 sq.). Descoberta a traição
do comandante grego (1589), este dirige aos seus homens - os tais náu-
fragos! - algumas palavras de incentivo ao combate. Igual iniciativa toma
o chefe dos remadores egípcios. Ao contrário de outras peças já analisa-
das, ambas as falas são registadas em discurso direct04. A mensagem do
general grego é idêntica no conteúdo à do seu congénere recém-
-promovido. Instigam à morte: Fina-flor da terra grega, do que estais à
espera para degolar, matar, os bárbaros e atirá-los borda fora para o
mar? (1593-5); Coragem! Que um arremesse uma lança de madeira,
outro quebre os bancos, outro arranque um remo do escalmo e cubra de
sangue a cabeça dos inimigos! (1597-9). A resposta de ambas as partes
veio prestes e o choque deu-se de imediato (1600).

4 Também na actual fala do mensageiro, a presença do discurso directo ao serviço do


"efeito de dramaticidade" é das mais significativas, 25%.
o Discurso do Extracénico 117

As circunstâncias em que este ocorre, a origem bárbara dos adversá-


rios dos guerreiros gregos e o tipo de armas por aqueles brandidas pro-
movem a des-construção do modelo épico, dão-lhe um tom menos trági-
co. Ainda que o ambiente da luta resulte na tragédia da carnificina, os
"adereços" bárbaros desgastam de forma subtil esses alicerces de serieda-
de. Na verdade Menelau tem por "general" oponente um simples chefe
dos remadores e os seus guerreiros cruzam as espadas com os remos dos
egípcios (1600 sq.). A subversão do paradigma toma-se mais declarada
quando surge, no meio da refrega e situada em plena proa, Helena a enco-
rajar verbalmente os guerreiros gregos. Semelhante quadro não o oferece
a tradição literária antiga anterior a Eurípides senão para figuras bárbaras
de rainhas guerreiras, nas Histórias de Heródoto. Helena nem é bárbara e
muito menos de índole guerreira. As qualidades viris, evidenciadas tanto
nesta posição de chefia como na elaboração do plano de fuga (1050-80),
são dados que o nosso poeta aproveita e valoriza o papel pálido que a tra-
dição lhe consagrara5 . Denota, então, o seu gosto pela inovação no mito,
também ela desconstrutora. Em Eurípides podemos encontrar figuras que
servem de paralelo a esta actuação inusitada das heroínas. A protagonista
de lfigénia entre os Tauros é quem apresenta o 121ano de salvação e
comanda as operações de fuga das terras de Toas. A própria Electra de
Orestes é pelo irmão reconhecido um espírito masculino (1204). Este
encarecimento da actuação feminina resulta, naturalmente, em um com-
prometimento do desempenho dos heróis com quem contracenam, os
quais, desta forma, se configuram como meros executantes de directivas
por elas traçadas.
Do ponto de vista da técnica discursiva do poeta, a estrutura descri-
tiva mantém os processos usados nos passos modelares. Antes de um
plano da acção individual de Menelau, o foco do narrador proporciona
uma perspectiva global do ardor da contenda. Aos que caem, para de
seguida se erguerem, os "olhos" dos ouvintes somam como pano de
fundo o solo coberto de mortos (1605 sq.). A expressão do tu-destinatário
ganha maior relevo ao surgir no momento de maior pathos, no quadro de
morte.
A aristeia do Atrida concretiza-se no aniquilamento dos remadores
egípcios, que ele faz saltar para as águas (1609 sq.). A luta termina com o
retomar da viagem, agora exclusivamente por Gregos, sob o auspício de
ventos favoráveis (1612).
O mensageiro foi o único dos tripulantes de Teoclímeno a escapar à

5 O carácter viril da mulher já Ésquilo traduzira com o hápax (coração) de máscula


vontade (Agamémnon, II), aplicado a Clitemnestra.
118 Carmen Isabel Leal Soares

carnificina (1613), o que lhe permitiu vir relatar ao seu senhor o infortú-
nio dos companheiros e anunciar-lhe a sua própria desventura de noivo
enganado. Termina, pois, insistindo na culpabilização de Teoclímeno.
A virtude principal do indivíduo reside no bom senso. E este é também, e
sempre, uma forma da "justa medida", de aw<ppoaúvTl. Tal como os seus
homónimos já considerados, o mensageiro de Helena parte da apologia
dessa virtude para moralizar sobre a conduta de um dos protagonistas q,a
peça. Conclui ele, então, que não há nada mais útil aos homens do que a
prudente desconfiança (1617 sq.). Turbado o espírito de paixão pela Tin-
dárida6 , Teoclímeno confiou de mais nas suas palavras, promessas de um
matrimónio tantas vezes ansiado como recusado. Foi a imprudência do
excesso de amor ou auto-estima que o impediu de questionar a repentina
cedência de Helena ou a precipitação de uma viagem de desagravo pela
alma de Menelau, de quem a certeza de estar morto residia na palavra de
um grego naufragado (o próprio Menelau) e na concordância da mulher
pretendida, mas até então tenazmente irredutível na recusa da sua entrega.

Orestes 1474-89
Da longa monódia do Frígio cingimos a nossa reflexão aos dezasseis
versos que retomam e des-constroem o motivo do embate de guerreiros.
Pela segunda vez - a primeira fora na teichoskopia de Fenícias - o dra-
maturgo adequa a descrição do combate ao ritmo patético do canto7 .
Como todos os mensageiros abordados, o Frígio relata aconteci-
mentos de que foi testemunha ocular (1456) e participante activo 8 . Jun-
tamente com o mensageiro de Helena, opõe-se aos mensageiros de Hera-
elidas, Suplicantes e Fenícias no facto de estar comprometido com a
parte vencida. Contudo o Frígio distingue-se, neste ponto, do servo de
Teoclímeno na afirmação mais impressiva da sua subjectividade. O que
se pode ver no retrato pouco digno que faz dos seus compatriotas, apre-
sentados como cobardes e militar-mente inferiores aos Gregos (1484 sq.).

6 Cf. G. M. A. Grube, The drama ofEuripides (London 1941) 348.


7 Como observa Pulquério ("Caractetisticas métricas das monódias de Eutipides",
Humanitas 19-20, 1967-68, 142), "A agitação que o domina [ao Frígio] reflecte-se na
variedade e riqueza das formas métIicas empregadas cuja nota dominante é o ritmo
iambo-docrníaco, com as suas potencialidades de movimento, emoção e força na
expressão do rrá8os'. Os dáctilos das duas primeiras peticopes e os anapestos das quatro
últimas facilitam a organização dos esquemas numa arquitectura complexa a que não
faltam as notações ligeiras dum humorismo discreto, rigorosamente mantido dentro dos
limites adequados à criação trágica".
8 Daí o emprego de formas verbais na primeira pessoa do plural: 'permanecíamos'
(1474), 'corremos em aUXllio de' (1475), 'cruzámos' (1483), 'fugíamos' (I 488b).
o Discllrso do Extracénico 119

Esta é incontestavelmente a opinião pessoal de uma figura que se caracte-


riza ela própria por esses predicados depreciativos 9 .
Relativamente à peça precedente, é mais evidente o ambiente menos
"sério" do choque das armas, natureza que lhe advém sobretudo do nar-
rador, que é "um carácter semi-cómico, caricato no seu medo efeminado
e na sua inata falta de dignidade" 10.
A luta que a guarda frígia trava para proteger a sua senhora do gládio
homicida de Orestes não é o choque de dois contingentes, mas de vários
Frígios contra a figura singular de Pílades. Tal como o Menelau de Hele-
na, cabe ao companheiro de Orestes, Pílades, dar mostras da sua aristeia
aniquilando sozinho os adversários com que se defronta. Depois de se
soltarem dos vários sítios do palácio onde tinham sido encerrados (1474
sq.), os Frígios apoderam-se de armas ofensivas convencionais: pedras,
fundas e espadas (1477 sq.). Ao seu encontro vem um guerreiro, cuja
grandeza o narrador - deixando transparecer o seu juízo pessoal - julga
comparável à do troiano Heitor e do grego Ájax (1479-82). A presteza
com que os Frígios arrombaram as suas prisões e recolheram armas para
o combate não se traduz num desempenho militar igualmente bom. Esse
contraste entre a preparação e a execução do combate é flagrante: Soltan-
do o grito de guerra, forçamos com alavancas as portas das divisões e
estábulos onde nos encontrávamos, corremos em seu auxílio de todos os
lados do palácio, um com pedras, outro com fundas e outro empunhando
a espada (1474-7); um pôs-se emfuga, outro era já um cadáver, outro é
ferido e outro ainda faz preces, abrigo contra a morte. Fugíamos para a
protecção de alguma sombra; uns tombavam mortos, outros haviam de
tombar, outros já jaziam por terra (1486-8). Ao típico quadro de aniqui-
lamento, estes últimos versos adicionam a cobardia demonstrada na fuga
e na súplica. O tom levemente jocoso que perpassa no relato do Frígio
coexiste com um doloroso espectáculo de cadáveres, ainda que eles sejam
- como despudoradamente afirma o narrador - modelos parcos em virtu-
des militares.
Esta monódia é um dos passos de Orestes que tem motivado inter-
pretações diversas entre os estudiosos. Do ponto de vista da caracteriza-
ção do protagonista da peça, há quem considere o principal objectivo
desta intervenção, bem como da esticomitia que se lhe segue entre aquele

9 "Este [o FIigio] é tão-só um escravo e um eunuco que o poeta utili za para uma cena
brilhante e espectacular e não para caracterizar os FIigios em geral" (R. Aélion,
Euripide héritier d'Eschyle, tome l, Paris 1983, 184). Também o dramaturgo não
partilharia desse juízo, segundo parecem sugerir outros passos da sua obra, ilustrativos
exactamente do contrário (Troianas 386-402, 742 sq., 1136-8, 1161 sq.).
10 Cf. M. L. West (ed. trad. comm), Euripides. Orestes (Warminster 31990) 277.
120 Carmen Isabel Leal Soares

e o Frígio, consiste em tomar a cobardia e o desejo de salvar a vida a todo


o custo, evidenciados pelo escravo, núm eco do próprio carácter de
Orestes II. Só a identificação com a personalidade cobarde e espírito de
preservação pessoal do Frígio justificariam que Orestes o deixasse partir
impune. Deste modo o Orestes euripidiano apresenta-se o reverso das
qualidades heróicas que a tradição mítica e a épica ajustavam aos Atridas
conquistadores de Tróia. Na opinião do Frígio, o que de mais impOltante
há para o homem, mesmo escravo de condição, é a vida (1532). Afirma-
ção com que Orestes não só prontamente concorda como reconhece ser
essa a postura do sujeito inteligente, do espertalhão (1524).
Sem dúvida que o público mais conservador de Eurípides se surpre-
enderia com esta intervenção do servo frígio, pela variedade do metro,
pelos gritos melodramáticos e pela dança e gestos que o actor executaria.
Tais características adequam-se, no entanto, à sua origem estrangeira e
dão à cena a coloração exótica que tal figura exigia. Uma diferença fun-
damental distingue o canto do Frígio, enquanto narração de aconteci-
mentos extracénicos, dos passos até aqui analisados. Aquele vem revelar
que os clamores de Helena, ouvidos momentos antes no interior do palá-
cio ('pereço miseravelmente', 1296'; 'morro', 1301), induziram os
espectadores em erro. A esposa de Menelau não morrera às mãos de
Orestes e Pílades, como poderia supor-se, mas acaba por desaparecer.
Neste sentido a monódia como que "brinca" com a assistência, pois vai
adiando a revelação da verdade para os versos finais (1494 sq.).
Do ponto de vista da tragédia no seu conjunto, "o relato do Frígio é
significativo porque confere a impressão de uma incoerência frenética,
que reflecte o mundo da própria peça e contribui para um ainda maior
crescente sentimento de desatticulação vivido pelo público"I2.

II Nos vv. 722-24, Orestes traduz a equivalência que para ele há entre salvação e fuga.
Sobre o retrato desconstrutor do protagonista da peça, veja-se H. PatTy, "Eulipides'
Orestes: the quest for salvation", TAPhA 100 (1969) 337-53 e S. L. Schein,"Mythical
illusion and historical reality in Euripides' Orestes", WS 9 (1975) 49-66. Para uma
atlálise detalhada das diversas leituras feitas ao presente excelto de Orestes e seu
entendimento como uma figura de um estatuto dramático simultaneamente idêntico e
diverso do da figura convencional do Mensageiro veja-se, J. R. Porter, Sludies in
Euripides' Orestes (Leiden 1994) 172-213.
12 J. R. Porter, op. cit., 212.
BmLIOGRAFIA

1. Edições críticas e comentários


Obras completas
Euripide, I-II, ed. trad. L. MÉRIDIER, Paris, 1970-73 (reimpr.); III-IV, ed. trad.
L. PARMENTIER et H. GRÉGOIRE, Paris 1968-76 (reimpr.); V, ed. trad. H.
GRÉGOIRE et L. MÉRIDIER, Paris, 1973 (reimpr.); VI. 1, ed. trad. F.
CHAPOUTHIER et L. MÉRIDIER, Paris, 1973 (reimpr.); VI. 2, ed. trad . H.
GRÉGOIRE et 1. MEUNIER, Paris, 1973 (reimpr.); VII, ed. trad. F. JOUAN,
Paris, 1983.
Euripidis Fabulae, I-II-III, ed. 1. DIGGLE, Oxford, 1984-94.

Fenícias
Eurípides. As Fenícias, trad. comm. M. dos S. ALVES, Coimbra, 1975.
Euripides. Phoenician Women, ed. trad. comm. E. CRAIK, Warminster, 1988.
Euripides. Phoenissae, ed. D. 1. MASTRONARDE, Leipzig, 1988.
Euripides. Phoenissae, ed. comm. D. 1. MASTRONARDE, Cambridge,1994.

Helena
Eurípídis Helena, ed. K. ALT, Leipzig, 1964.
Helen, ed. comm. A. M. DALE, Oxford, 1967.

Heraclidas
Euripides. The Heraclídae, ed. comm. A. C. PEARSON, Cambridge, 1907.
Eurípides. Heraclidae, ed. A. GARZYA, Leipzig, 1972.
Euripides. Heraclidae, ed. comm. 1. WILKINS, Oxford, 1993.

lfigénia em Áulide
The Iphigeneia at Aulis of Euripides, ed. comm. E. B. ENGLAND, New York,
1979.
Euripides. Iphigenia Aulidensis, ed. H. C. GÜNTHER, Leipzig, 1988.
122 Carmen Isabel Leal Soares

Orestes
Euripides. Orestes, ed . W. BIEHL, Leipzig, 1975.
Euripides. Orestes, ed. trad. comm. M . L. WEST, Warrninster, 31990.

Suplicantes
Euripides. Supplices, vols. !, II, ed. comm. Ch. COLLARD, Groningen, 1975.
Euripides. Supplices, ed. Ch. COLLARD, Leipzig, 1984.

Troianas
Euripides. Trojan Women, trad . comm. S. A. BARLOW, Warrninster, 1981.

2. Estudos
AÉLION, R. 1983 (I et II), Euripide héritier d' Eschyle, Paris.
AGUIAR e SILVA, V. M.101988, Teoria da Literatura, Coimbra.
ALBINI, U. 1973, "Miracolo e avventura nell'Elena", pp 28,326-43 .
ALSINA CLOTA, J. 1957, "Studia euripidea I: observaciones a la técnica escé-
nica de Eurípides", H elmantica 8, 3-15.
AMARAL, A. L. C. A. do 1992, Mulheres-rainhas em Heródoto (Dissertação de
Mestrado em Literaturas Clássicas, apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra), Coimbra.
_ _ 1993, "Tómiris: a voz da vencedora", Diacrítica 8, 285-98.
ANDERSON, J. K. 1965, "Cleon' s orders at Amphipolis", lHS 85, 1-4.
ARNOTT, W. G. 1982, "Off-stage cries and chorai presence. Some challenges to
theatrical conventions in Euripides", Antichthon 16, 35-43.
_ _ 1989, Public and performance in Greek theatre, London.
ARTHUR, M . B. 1977, "The curse of civilization: the chorai odes of Phoenis-
sae", HSPh 81,163-85.
BAL, M. 31990, Teoría de la narrativa (Una introducción à la narratología),
Madrid.
BALDI, M. 1953, "Carattere, funzione ed evoluzione dei lirismo euripideo",
Dioniso 16, 115-25.
BARLOW, S. 1971, The imagery of Euripides. A study in the dramatic use of
picturallanguage, London.
BASADE, E. 1960, "Canto tercero de la Iliada", Helmantica 11,399-435.
BENEDETTO, V. di 1971-74, "II rinovarniento stilistico deli a lirica deli' ultimo
Euripide e la contemporanea arte figurativa", Dioniso 45,326-36.
BEYE, C. R. 1964, "Homeric battle narrative and catalogue" HSPh 68, 345-73.
BLAIKLOCK, E. M. 1952, The male characters of Euripides. A study in realism,
Wellington.
BORTHWICK, E. K. 1970, "Two scenes of combat in Euripides", lHS 90, 15-
-21.
o Discurso do Extracénico 123

BREMER, J. M. 1976, "Why messenger-speeches?", in Miscellanea tragica in


honorem 1. C. Kamerbeek, ed. BREMER, J. M., RADT, S. L. and
RUIJGH, C. J. , Amsterdam, 26-48 .
BURGESS, D. L. 1988, "The authenticity of the teichoskopia of Euripides'
Phoenissae", CJ 83,103-13.
BURKERT, W. 1981, "Seven against Thebes: an oral tradition between Babylo-
nian magic and Greek literature", in J poemi epiGi rapsodici non Omerici
e la tradizione orale. Atti del convegno di Venezia 28-30 Settembre, 1977
(a cura di BRILLANTE, c., CANTILENA, M ., PAVESE, C. O.), Pado-
va,29-51.
_ _ 1983, Homo necans, Berkeley.
_ _ 1993, Religião grega na época clássica e arcaica (tradução de M. J. S.
Loureiro), Lisboa.
BURNETT, A. 1989, "Performing Pindar' s odes", CPh 84, 283-93.
CAREY, C. 1989, "The performance of the victory ode", AJPh 110,545-65.
_ _ 1991, ''The victory ode in performance: the case for the chorus", CPh 86,
192-200.
COHEN, D. 1989, "Seclusion, separation, and the status of women in c1assical
Athens", G&R 36, 3-15.
CONACHER, D. J. 1967, Euripidean drama. Myth, theme and structure,
Toronto.
CRAIK, E. M . 1986, "Sophokles' Antigone 100-109", Eranos 84,101-5.
CROALLY, N. T. 1994, Euripidean polemic. The Trojan Women and the
function of tragedy, Cambridge.
DALE, A. M. 1969, "Seen and unseen on the Greek stage", in Collected papers,
Cambridge, 119-29.
DAVIES, M. 1988, "Monody, chorallyric and the tyranny of handbook", CQ 38,
52-64.
DELRIEU, A., HILT, D., LÉTOUBLON, F. 1984, "Homere à plusieurs voix.
Les techniques nanatives dans l' épopée grecque archai'que", LALIES 4 ,
177-94.
DIGGLE, J. 1994, Euripidea. Collected essays, Oxford.
FENIK, B. 1968, Typical battle scenes in the Iliad. Studies in the narrative
techniques of Homeric battle description, Wiesbaden.
FERREIRA, J. R. 1985-86, "Aspectos políticos nas Suplicantes de Eurípides"
Humanitas 37-38, 87-12l.
FURIANI, P. L. 1992, "Donne trãgiche in guerra: passività e trasgressione in
Sofocle e in Euripide", Euphrosyne 20, 9-30.
GARLAN, y. 1966, "De la poliorcétique dans les PhéniGiennes d'Euripide",
REA 68,264-77.
_ _ 1972, La guerre dans l' antiquité, Paris.
_ _ 1974, Recherches de poliorcétique grecque, Paris.
_ _ 1994, "O homem e a guena", in VERNANT, J.-P. (tradução de M. J. V.
de Figueiredo), O homem grego, Lisboa, 48-73.
124 Carmen Isabel Leal Soares

GLÜCK, 1. 1. 1964, "Reviling and monomachy as battle-preludes in ancient


warfare", AC 7,25-31.
GOFF, B. E. 1988, "The shields of Phoenissae", GRBS 29, 135-52.
GRIFFIN, J. 1980, Romer on life and death, Oxford.
GRIMAL, P. 1992, Dicionário de mitologia grega e romana (trad. de Victor
Jabouille), Lisboa.
GRONINGEN, B. A. 1958, La composition littéraire archai'que grecque,
Amsterdam.
GRUBE, G. M . A. 1941, The drama ofEuripides, London.
HAINSWORTH, 1. B. 1966, "Joining battle in Homer", G & R 13, 158-66.
HALLIWELL, S. 1986, Aristotle' s poetics: a study of philosophical criticism,
London.
HAMON, Ph. 1972, "Qu'est-ce qu' une description?", Poétique 12, 465-85.
_ _ 1993, Du descriptif, Paris.
HARRIS, H. A. 1972, Sport in Greece and Rome, London.
HEATH, M. 1987, The poetics ofGreek tragedy, London.
_ _ 1988, "Receiving the KWIlOS: the context and performance of epinician",
AJPh 109, 180-95.
HEATH, M. and LEFKOWITZ, M. 1991, "Epinician performance", CPh 86,
173-91.
HENRICHS, A. 1981 , "Human sacrifice in Greek religion: three case studies", in
REVERDIN, O. et GRANGE, B., Le sacrifice dans l' Antiquité, vol. 27,
Fondation Hardt, Vandoeuvres, 195-242.
JACKSON, A. 1995, "War and raids for booty in the World of Odysseus", in
RICH, 1., SHIPLEY, G., War and society in the Greek world, London,
64-76.
JAMESON, M. H. 1991, "Sacrifice before battIe", in HANSON, V. D., Hoplites:
the classical Greek battle experience, London, 197-227.
JONG, I. 1. F. de 1991, Narrative in drama. The art ofthe Euripidean messenger-
-speech, New York.
KIERNAN V. G. 1988, The duel in European history, Oxford.
KRENTZ, P. 1991, "The salpinx in Greek warfare", in HANSON, V. D. ,
Roplites: the classical Greek battle experience, London, 110-20.
KUNTZ, M. 1993, Narrative setting and dramatic poetry, Leiden.
LAVECCHIA, S. 1993, "L' esecuzione solistica deli' epinicio: una tesi da
ridiscutere", ASNP 23,333-48.
LEFKOWITZ, M. 1988, "Who sang Pindar' s victory odes?", AlPh 109, 1-11.
LÉTOUBLON, F. 1983, "Défi et combat dans \' Iliade", REG 96,27-48.
LINTVELT,1. 1981, Essai de typologie narrative. Le 'point de vue', Paris.
LOOY, H. van 1984-85, "II coro deli' lfigenia inAulide", Dioniso 55,249-53.
LUBBOCK, P. 1939, The craft offiction, London.
LUCAS, D. W. 1968, Aristotle. Poetics, Oxford.
MARCOS PEREZ, 1. M . 1994, "El relato dei mensajero en Euripides: concepto y
estructura", Minerva 8, 77-97.
o Discurso do Extracénico 125

MASTRONARDE, D. 1. 1978, "Are Euripides' Phoenissae 1104-1140 interpo-


lated?", Phoenix 32, 105-28.
MINICONl, P. 1. 1981, "Un theme épique, la teichoskopia" in L'epopée gréco-
-latine et ses prolongements européens, Colloque éd. par R. CHE-
V ALLIER: Caesorodunum XVI bis Calliope II, Paris, 71-80.
MOSSÉ, C. 1992, Dictionaire de la civilisation grecque, Bruxelles.
PACATI, C. 1966, "II significato deli a guerra troiana nell'opera di Euripide",
Dioniso 40, 77-94.
PARRY, H. 1969, "Euripides' Orestes: the quest for salvation", TAPhA 100,
337-53.
PICKARD-CAMBRIDGE A. 21991 reimp., The dramatic festivais of Athens,
London.
PODLECKIE, A. 1. 1962, "Some themes in Euripides' Phoenissae", TAPhA 93 ,
355-73.
PORTER,1. R. 1994, Studies in Euripides' Orestes, Leiden.
POSTLETHW AITE, N. 1985, "The duel of Paris and Menelaos and the
teichoskopia in Iliad 3", Antichthon 19, 1-6.
PRINCE, G. 1982, Na rra to logy: the form and functioning of narrative, The
Hague.
PRITCHETT, W. K. 1971, Ancient Greek military practices. Part I, Berkekey.
_ _ 1974, The Greek state at war. Part II, Berkeley.
_ _ 1979, The Greek state at war. Part III, Berkeley.
_ _ 1985, The Greek state at war. Part N, Berkeley.
PULQUÉRIO, M. O. 1967-68, "Características métricas das monódias de
Eurípides", Humanitas 19-20, 87-168 .
REIS , C. e LOPES, A. C. 21990, Dicionário de narratologia, Coimbra.
RIJKSBARON, A. 1976, "How does a messenger begin his speech? Some
observations on the opening lines of Euripidean messenger speeches",
Miscellanea tragica in honorem J. C. Kamerbeek, ed. BREMER, 1. M.,
RADT, S. L., RUIJGH, C. 1., Amsterdam, 293-308.
ROCHA PEREIRA, M. H. 51987, Platão. A República. (Introdução, tradução e
notas), Lisboa.
_ _ 81997, Estudos de História da Cultura Clássica. I volume: Cultura grega,
Lisboa.
ROMILLY, 1. 1965, 'Les Phéniciennes d' Euripide ou l' actualité dans la
tragédie grecque', RevPhil91, 28-47.
_ _ 1967, Histoire et raison chez Thucydide , Paris.
ROSENMEYER, T. G. 1955, "Gorgias, Aeschylus, and Apate", AJPh 76, 225-
-60.
ROWE, Ch. 1972, "Conceptions of colour and colour symbolism in the ancient
world", Eranos-Jb 41,327-64.
SAID, S. 1985, "Euripide ou l' attente déçue", ASNP 15,501-27.
SCHACHTER, A. 1967, "The Theban wars", Phoenix 21,1-10.
_ _ 1981, Cults ofBoiotia, London.
126 Carmen Isabel Leal Soares

SCHAPS, D. 1985, "Le donne greche in tempo di guerra" in ARRIGONI, G.


(ed.), Le donne in Greccia, Roma, 399-430.
SCHEIN, S. L. 1975, "Mythical illusion and historical reality in Euripides'
Orestes", WS 9, 49-66.
SCOIT, M. 1982, "Philototess, Phitotes and xenia", AC 25, 1-19.
SEGRE, C. 1984, Teatro e romanzo. Due tipi di comunicazione letteraria,
Torino.
SCHACHTER, A. 1967, "The Theban wars", Phoenix 21,1-10.
SHAW, M. H. 1982, "The ~fus ofTheseus in The Suppliant Women", Hermes
110,3-19.
SIKES, E. E. 1969 (reimp.), The Greek view ofpoetry, London.
SILVA, M. F. S. 1985-86, "Elementos visuais e pictóricos em Eurípides",
Humanitas 37-38, 9-86;
_ _ 1987, Crítica do teatro na comédia antiga, Coimbra.
_ _ 1991 a, "A mulher, um velho motivo cómico" in OLIVEIRA, F. e SILVA,
M. F. S., O teatro de Aristófanes, Coimbra, 209-44.
_ _ 1991 b, "O sacrifício voluntário: teatralidade de um motivo euripidiano",
Biblos 67, 15-4l.
_ _ 1993, "Etéoc\es de Fenícias: ecos de um sucesso", Humanitas 45,49-67.
SNODGRASS, A. M. 1965, ''The hoplite reform and history", lHS 85,110-22.
_ _ 1967, Arms and armour of the Greeks, London.
STANFORD, W. B. 1983, Greek tragedy and the emotions. An introductory
study, London.
STEVENS, P. T. 1956, "Euripides and the Athenians", lHS 76, 87-94.
SWEET, W . E. 1987, Sport and recreation in ancient Greece, New York.
T APLIN, O. 1977, The stagecraft of Aeschylus, Oxford.
_ _ 1978, Greek tragedy in action, Berkeley.
TSAGARAKIS, O. 1982, "The teichoskopia cannot belong in the beginning of
the Trojan war", QUCC 41 , 61-72.
V ALAKAS , K. 1993, "The frrst stasimon and the chorus in Aeschylus'Seven
against Thebes", SfFC 86,55-88.
VAUGHN, P. 1991, "The identification and retrieval of the hoplite battle-dead",
in HANSON, V. D. , Hoplites: the classical Greek battle experience,
London, 38-62.
VELLACOIT, Ph. 1975, fronic drama. A study of Euripides' method and
meaning, Cambridge.
VERNANT, l-P. 1981 , "Théorie générale du sacrifice et mise à mort dans la
8uaLa grecque", in REVERDIN, O. et GRANGE B., Le sacrifice dans
I'Antiquité, vol. 27, Fondation Hardt, Vandoeuvres, 1-39.
VERRALL, A. W . 19l3, Euripides the rationalist. A study in the history of art
and religion, Cambridge.
WEES, H. van 1986, "Leader of men? Military organization in the Iliad', CQ 36,
285-303.
o Discurso do Extracénico 127

_ _ 1988, "Kings in combat: battles and heroes in the Iliad', CQ 38, 1-24.
_ _ 1994, "The Homeric way of war: The Iliad and the hoplite phalanx,
G & R 41, (I) 1-18; (II) 131-55 .
WILKINS, 1. 1990, ''The state and the individual: Euripides' plays of voluntary
self-sacrifice", in POWELL, A. (ed.), Euripides, women and sexuality,
London, 177-94.
ZIMMERMANN, B. 1991, Greek tragedy: an introduction (translated by Th.
MARIER), Baltimore.
ZUNTZ, G. 1963, The politicaI plays of Euripides, Manchester.
(Página deixada propositadamente em branco)
Execução Gráfica

Colibri - Artes Gráficas


Faculdade de Letras
Alameda da Universidade
1699 Lisboa Codex
Telef. / Fax 796 40 38
Internet: www.edi-colibri.pt
e-mail: colibri@edi-colibri.pt
Carmen Isabel Leal Soares, licenciada em
Línguas e Literaturas Clássicas pela Facul-
dade de Letras da Universidade de Coimbra
em 1993, viria a integrar, no ano seguinte, o
corpo docente do Instituto de Estudos Clás-
sicos dessa mesma Faculdade. Depois de
defendida a tese de mestrado em 1996, de
que agora se publica uma versão destinada
ao público em geral, tem apresentado em
revistas científicas vários estudos nas áreas
da Literatura Grega (Ésquilo e Eurípides),
História da Antiguidade ( epigrafia) e Didáctica das Línguas Clássicas.

*
A guerra, um flagelo quase tão antigo quanto a
própria humanidade, é, sem dúvida, um tema uni-
versal e de todos os tempos. Entre as vozes, na sua
maioria anónimas, que incessantemente se er- FACULDADE DE LETRAS
guem para não deixar apagar os seus malefícios, as UNIVERSIDADE DE COIMBRA

dos artistas ficam para a posteridade como baluar-


tes de uma época. Da produção dramática da Ate-
nas do séc. V a. C., dilacerada por dois sangrentos
conflitos (as Guerras Medo-Persas e a Guerra do
Peloponeso), elegemos as tragédias de Eurípides EDiÇÕES COLIBRI
como objecto de reflexão. A perspectiva assumida
foi, naturalmente, a das estratégias literárias utili-
zadas pelo autor na presentificação em cena de acontecimentos
ocorridos longe da vista do espectador. À luz da moderna poética
teatral, na linha, aliás, da própria etimologia do termo grego thea-
tron, o género em questão "devia" viver sobretudo daquilo que faz
'ver'. Os passos analisados, todos eles de descrição de exércitos,
provam precisamente o contrário. Quando o apelo é, preferencial-
mente, dirigido aos 'olhos da imaginação', a experiência cognitiva
do público ganha maior autonomia, libertando-se das amarras do
referente cénico. O sucesso de semelhantes trechos, contudo, só
pode ser garantido quando o dramaturgo polariza as personagens "', :::::::::::::::~
_o-.
" , - ",
que lhe dão corpo (mulheres/guerreiros) e o discurso emitido (mo- ~
,_ o00
nólogo/diálogo). Eurípides demonstra, uma vez mais, merecer a N===: N
,.. ---1'-
distinção que a História, ao preservar quase intactas dezoito das '";" ~
-~~=I'­
~===: N
suas peças, lhe reconheceu. 0'\==""" z - o-.
1Il - -- 00
U l = = r---
H

Vous aimerez peut-être aussi