Vous êtes sur la page 1sur 20

a terra e seus homens

Roceiros livres de cor e senhores no longo século XVIII


Mônica Ribeiro de Oliveira

a terra e seus homens


Roceiros livres de cor e senhores
no longo século XVIII
© 2016 Mônica Ribeiro de Oliveira

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial
Isadora Travassos

Produção editorial
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello

Foto de capa
Ana Migliari

cip-brasil. catalogação na publicação


sindicato nacional dos editores de livros, rj

o48t

Oliveira, Mônica Ribeiro de


A terra e seus homens : roceiros livres de cor e senhores no longo século
xviii / Mônica Ribeiro de Oliveira. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7 Letras, 2016.

isbn 978-85-421-0470-7

1. Posse da terra - Brasil - História - Séc. xviii. 2. Propriedade territorial -


Brasil - História - Séc. xix. I. Título.

16-33202 cdd: 346.810432


cdu: 37.018.51

2016
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320 – Ipanema
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Sumário

Apresentação9

Introdução11

capítulo 1
O espaço das minas e o sertão da Mantiqueira:
a nova dinâmica populacional  21

capítulo 2
A pastoral religiosa nos sertões 49

capítulo 3
A gente pobre e os senhores do sertão  75

capítulo 4
Pardos e forros nos matos da Mantiqueira:
a instância do nascimento 99

capítulo 5
A conversão do sertão: a comunidade de roceiros
da Mantiqueira no século XIX129

Conclusão161

Bibliografia167
Lista de abreviaturas

ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino

APM – Arquivo Público Mineiro

AHAJF – Arquivo Histórico Arquidiocesano de Juiz de Fora

AECM – Arquivo Eclesiástico da Cúria de Mariana

IPHAN-SJDR – Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional de


São João Del Rei

AHASB – Arquivo Histórico Altair Savassi – Barbacena

7
Apresentação

Esse texto foi originalmente apresentado como tese para progressão a pro-
fessor titular, defendida em janeiro de 2016, na Universidade Federal de
Juiz de Fora. Ele resultou das investigações realizadas nos últimos anos,
com o apoio de agências como Fapemig e CNPq, bem como da Capes mais
recentemente, através de uma bolsa de estágio Pós-Doutorado.
Agradeço a leitura dos originais a Renato Pinto Venâncio, como tam-
bém a Giovanni Levi, meu supervisor de pós-doutorado, que me concede-
ram importantes sugestões para o aperfeiçoamento do texto. Igualmente
agradeço a leitura atenta e as sugestões de Marcus Carvalho, João Fragoso
e Junia Furtado, componentes da banca. Um especial agradecimento à área
de História Moderna da Universidad Pablo de Olavide de Sevilla, através
de sua coordenadora Bethany Aram, que me ofereceu as condições ideais
para finalização da pesquisa e escrita desse texto
Como resultado de muitos anos de pesquisa, devo um especial agra-
decimento aos alunos bolsistas que me acompanharam ao longo do per-
curso, sempre atentos e dispostos a colaborar na pesquisa empírica e con-
fecção do banco de dados. Em especial, a Ana Paula Bôscaro, Clara Garcia,
Dayana Oliveira, Nara Tinoco, Pedro Coelho, Sheldon Augusto e Thiago
Firmino, dentre muitos outros que passaram pelo Laboratório de História
Econômica e Social do PPG História da UFJF.

9
Introdução

A partir dos primeiros anos do século XVIII, o centro-sul da América


Portuguesa vivenciou um fenômeno histórico de grandes proporções,
envolvendo o encontro de diferentes indivíduos e grupos em disputa pelo
controle dos recursos naturais, ouro e terras no vasto território das minas.
Nesse contexto, por meio da variação de escalas entre uma dimensão
microscópica e uma dimensão contextual, nosso objetivo foi a recons-
trução das vivências daqueles que estavam nos extratos mais baixos da
sociedade colonial. Referimo-nos ao comportamento dos libertos, par-
dos, negros, forros, mestiços ou quaisquer outras nomenclaturas encon-
tradas nas fontes.
Nossa proposta inicial de investigação centrava-se no acompanha-
mento das trajetórias da gente pobre de cor das Minas Gerais, durante o
século XVIII e primeira metade do XIX, e como tal população construiu
suas estratégias de vida na experiência da liberdade. No entanto, a eleição
do objeto através da categoria da pobreza revelou-se ineficaz ao nos darmos
conta do sentido da pobreza nas sociedades tradicionais. Segundo a litera-
tura jurídica da época, “[...] os pobres integravam uma categoria, a dos mise-
ráveis, ou seja, a daqueles que moviam o coração dos outros a partilhar dos
seus padecimentos (compaixão) e, consequentemente, a tentar aliviá-los”
(HESPANHA, 2010, p. 233). Uma miséria que seria definida por várias cau-
sas, como os cativos e os recém-libertados das cadeias, os estranhos ao lugar
e os recém-chegados, os doentes, expostos, velhos, dentre outros. Em geral,
eram aqueles que sofriam a “injustiça da sorte”. No entanto, os indivíduos e
grupos nos quais queríamos centrar a análise não poderiam ser integrados
ou reduzidos a essa concepção. Nossos sujeitos, para além de pertencerem
aos estratos mais baixos da sociedade colonial, faziam parte do mundo do
trabalho, mais especialmente aqueles vinculados à terra como pequenos
proprietários, posseiros, situados, agregados, ou, simplesmente, homens
livres pobres roceiros.

11
Assim, para delimitar o objeto, partimos dos condicionamentos de
ordem econômica, ou seja, aqueles setores produtivos ligados à terra, mas
também de ordem socioculturais, na medida em que, em relação ao esta-
tuto de sangue, nossos protagonistas eram impuros, não portadores de
status, imersos em uma sociedade altamente hierarquizada pelo prestígio.
Utilizamos um vasto aporte documental, como os assentos de batismo,
inventários, listas de população para pagamento de variados impostos, lis-
tas nominativas, devassas eclesiásticas, processos criminais, dentre outros,
no longo prazo, da primeira década de 1700 à primeira metade do século
XIX. Optamos por nomear esse vasto recorte temporal como “um longo
século XVIII” por acreditarmos que a forma tradicional de ocupação da
terra, forjada durante o processo de colonização, ultrapassou a indepen-
dência em 1822 e perdurou até os meados do século XIX, quando a lei de
terras foi promulgada e iniciou-se um novo modelo de acesso à terra.1 Esse
modelo tradicional de acesso e ocupação da terra da América Portuguesa
a que nos referimos englobava a terra enquanto uma mercê, um prestí-
gio distribuído a certos indivíduos e grupos familiares das camadas mais
altas da hierarquia social, estabelecendo-se daí uma cadeia de retribuição
às benesses reais e excluindo milhares de outros indivíduos e grupos por
critérios de cor, origem, nascimento e qualidade. A esses últimos restava o
assentamento sobre terras devolutas, menos estratégicas e, por isso, menos
controladas. Desse processo originou-se, por um lado, a grande proprie-
dade da terra associada à propriedade de escravos e, por outro, a presença
de inúmeras pequenas propriedades, roças, sítios e situações, geridas pela
camada dos mais pobres, em sua maioria egressa da escravidão, submetida
a uma cadeia de relações de dependência verticais e diversos níveis de rela-
ções de poder. Nessas páginas, acompanharemos esse longo processo sob a
ótica dessa gente de cor livre.
Espacialmente, a pesquisa concentrou-se nos sertões da Mantiqueira,
incluindo uma série de povoados que foram ganhando importância ao
longo do processo histórico. Nas primeiras décadas, a análise prendeu-se
à Borda do Campo e, depois, com o lento processo de interiorização da
1 Kenneth Maxwell também trabalha com essa perspectiva de “longo século XVIII”, mas a partir
de outros parâmetros. Para ele, esse longo período se estenderia desde 1660, quando a dinastia
bragantina se consolida, até 1808 com a travessia da corte portuguesa para o Brasil. Disponível
em: <https://maniadehistoria.wordpress.com/o-longo-seculo-dezoito-brasileiro/>. Acesso
em: 3 mar. 16.

12
ocupação e crescimento em importância de pequenos arraiais, a pesquisa
concentrou-se em outros cinco povoados da Mantiqueira. Estes espaços
foram tomados como base e referência para o acompanhamento do per-
curso da gente de cor, liberta das amarras da escravidão, negros ou índios
e suas gerações sucessivas.2 Portanto, as localidades sobre as quais essa pes-
quisa se baseou não foram eleitas aleatoriamente; surgiram naturalmente
a partir do levantamento dos assentos paroquiais de batismo. Iniciada a
coleta nos livros para Conceição do Ibitipoca, considerada uma das loca-
lidades mais antigas de Minas, aos poucos, percebemos que os indivíduos
e grupos ali instalados se moviam para outras localidades próximas, bati-
zavam seus filhos nas diferentes capelas, possuíam propriedades também
nas diferentes localidades – o que nos levou a considerar a formação de
uma comunidade que não respeitava os limites jurídicos e geográficos, e,
sim, aqueles vinculados às famílias e suas redes a englobar cinco diferentes
localidades, não muito distantes entre si, tal como se poderá observar no
mapa da página 48. Portanto, as Minas Gerais que investigamos aqui
não eram aquela da extração mineral, das dinâmicas vilas, palco de atuação
dos homens bons nas Câmaras, espaço mercantil, tributário e administra-
tivo do Centro-Sul da América Portuguesa. As Minas Gerais dessas pági-
nas eram aquelas da roça e sua gente e, mais especialmente, a gente pobre
e de cor que ocupava a vastidão de suas áreas rurais.
Percebemos o encontro desses grupos sociais no sertão e analisamos
seus desafios, conflitos e ambiguidades até sua estabilização, com a fixação
na terra através de diferentes vínculos e a formação de uma comunidade
de roceiros livres de cor. Acompanhamos os esforços da Igreja no controle
e na repressão do que era por ela considerado como delitos, desordens e
imoralidade das camadas mais baixas da sociedade. Buscava-se normatizar
o comportamento dos homens e mulheres de cor considerados gente de
má conduta, infiéis e desordeiros. Paralelamente a este poder, analisamos
a atuação do Estado português e suas dificuldades de estabelecimento da
autoridade, agindo e reagindo, sem um projeto determinado, às pressões
que recebia. Este Estado se fazia presente através de seus prepostos, ou
seja, do poder privado que se enraizou na sociedade local, fortaleceu-se

2 Ao nos referirmos à gente de “cor”, não estamos aqui fazendo uma opção teórica e tam-
pouco negamos o vasto e importante debate acerca desta questão na historiografia brasileira.
Posteriormente, voltaremos a esse tema.

13
e adquiriu autonomia. Tal situação obrigou o Estado a negociar interesses
e, contraditoriamente, a enfrentar os arroubos de autonomia, como tam-
bém beneficiar-se dela para fazer-se presente nas áreas mais distantes. Já na
primeira metade do século XIX, como reflexo de todas as transformações
do período, percebemos uma sociedade mais estabilizada nas áreas rurais,
mas nem por isso deixaria de ser marcada pela violência e marginalização
dos setores mais subalternos.
Nesse percurso da liberdade, duas grandes conquistas foram funda-
mentais para o sucesso ou o insucesso desses indivíduos e grupos de cor
livres: a família e a terra. Estes dois fatores estavam conectados em uma
simbiose em que a produção na terra só se viabilizava pela constituição
da família, gerando uma unidade de produção doméstica, e a família só se
estabilizava pelo acesso à terra, ao garantir a sobrevivência de seus mem-
bros como também das gerações futuras. Ser gente de cor e tornar-se bem
sucedido nesta sociedade significava o enfrentamento de muitos obstácu-
los, bem como o manejo de uma série de estratégias para defesa da terra,
do núcleo familiar, da produção e da reprodução no tempo. Contudo,
para aqueles que não tiveram acesso à terra, restou a submissão ao antigo
senhor ou a mera condição de agregado nas terras de outrem. Portanto, os
destinos eram diversos e a margem de autonomia era a medida do bom ou
do mau desempenho no mundo dos livres.
No decorrer da pesquisa e elaboração dos dados, muitos questiona-
mentos surgiram e os rumos do que foi inicialmente descrito no projeto
de pesquisa original foram mudando. Os documentos que nos chegam são
originários de uma seleção casual que o tempo conservou até os nossos
dias, como também de uma seleção social sistemática, o que Giovanni Levi
esclarece com tanta simplicidade e lucidez:
[...] há mais documentos para os ricos do que para pobres; há mais para situa-
ções de decisão do que de ação; há mais de homens do que de mulheres e
devemos buscar um equilíbrio, principalmente quando procuramos fazer a
história dos não documentáveis.3

Assim, eleger como sujeitos indivíduos e grupos das camadas mais bai-
xas da sociedade colonial é fazer a história não só dos não documentáveis
mas também daqueles que sofreram um processo de invisibilidade, sobre o

3 Reflexão realizada por Giovanni Levi em sala de aula.

14
qual falaremos no decorrer dos capítulos. Numa tentativa de minimização
destes efeitos sobre as análises propostas, submetemos as fontes a uma aná-
lise crítica, ficamos atentos às lacunas, ao não dito e procuramos valorizar
uma análise mais qualitativa.
Refinando um pouco mais nossa análise, partimos da concepção de
que, ao tentarmos fazer uma ligação entre as escolhas individuais e as con-
sequências para o cenário agregado, podemos ter uma visão mais clara das
relações entre o micro e o macro e, consequentemente, identificar melhor
as distintas trajetórias.
A princípio, os documentos seriais pareciam ser muito importantes para
os objetivos propostos. Foi criado um amplo banco de dados a partir dos
assentos de batismo que foram entrecruzados a vários outros fundos docu-
mentais, em um esforço de mapeamento de alguns grupos, percepção de
comportamentos e identificação de trajetórias que pudessem ser acompa-
nhadas em longo prazo. Os dados elaborados, índices e taxas levantados nos
serviram como referência para comparação, reiterando ou diferenciando o
contexto estudado de numerosos trabalhos da historiografia brasileira.
Nossa proposição de aplicação das reflexões da micro-história na
apreensão do universo da gente de cor, a eleição do sujeito como ponto
de partida e recusa à história quantitativa enquanto única ferramenta,
tão cara ainda ao fazer da história social, afigurou-se como um enorme
desafio. Diante dos milhares de dados computados em banco de dados,
cruzados uns aos outros, na medida do possível, permanecia o desafio de
reunir as dimensões macro e micro. Dever-se-ia, então, levar em conside-
ração que os dados variavam, como, às vezes, eram toscos, mas também
eram cíclicos e não necessariamente retratavam as diferentes dimensões
de uma sociedade. Optamos por recorrer pouco às séries quantificáveis,
que foram apenas tratadas como uma tendência ou aproximação com uma
dada realidade histórica. Servimo-nos, então, dos casos, das histórias par-
ticulares para fazermos perguntas, buscando não cair na cilada dos mode-
los e tipologias de comportamento. Sabina Loriga, ao avaliar a importância
da dimensão do indivíduo na obra Herança Imaterial de Giovanni Levi
(LORIGA, 2014), assim considerou: “Creio que esta visão permitiu a muitos
de nós descobrir como o contexto histórico se assemelha não a um conjunto
compacto e coerente, mas a um tecido conectivo com campos elétricos de
diversas intensidades”. Ademais, remexendo nos interstícios do passado,

15
Giovanni mostrou como não existe uma norma única, capaz de abranger
toda a experiência social. A autora ainda chamou a atenção com relação às
más interpretações sobre o que seria a pesquisa nos interstícios da expe-
riência, quando esquecemos o “grau metafórico” de Giovanni e nutrimos
duas esperanças impossíveis: a de fazer ressurgir, verdadeiramente “cada
habitante” e de elaborar categorias interpretativas que sejam plenamente
aderentes à realidade empírica. Por outro lado, a metáfora do interstício foi
capaz de suscitar a ideia de que tudo é possível, que tudo é negociável, que
tudo é estratégico (LORIGA, 2014). Atentos a essas ponderações, conduzi-
mos nosso texto tentando abranger as várias dimensões dos indivíduos de
cor, na experiência concreta e dinâmica da região das Minas.
Essa recusa em encontrar uma norma única, capaz de abranger toda
uma experiência social, levou-nos a não aplicação do conceito de cam-
ponês a esses indivíduos, por mais que em trabalhos anteriores tenhamos
nos esforçado em reinterpretar a experiência histórica desses grupos na
América Portuguesa como camponesa (OLIVEIRA, Mônica, 2008). A pos-
tura metodológica que assumimos nesta pesquisa se contrapõe à ideia de
uma tipologia de comportamento, que se aproximaria ou se afastaria da
conceituação clássica do camponês na Europa Ocidental (BLOCH, 1979),
ou mesmo do modelo russo de A. Chayanov (CHAYANOV, 1986). Em que
pese à indiscutível semelhança das unidades domésticas enquanto unida-
des familiares, a integração destas a um conjunto de vizinhança e a impor-
tância das relações de parentesco − caracteres próprios dos camponeses
europeus −, consideramos que o olhar voltado para experiência do vivido,
a ausculta das escolhas e, principalmente, a dimensão do indivíduo, torna
qualquer destas tipologias uma redução.4
Nossa opção de elaboração do texto partiu de duas frentes de trabalho
que se mesclaram no decorrer das páginas. A primeira foi um constante
diálogo com a rica historiografia brasileira à medida que as temáticas fos-
sem surgindo. O debate acerca da cor e sua relação com a posição social (ou
ao contrário), o exercício ou não da autonomia na experiência da liberdade,
o comportamento das forras, o acesso à terra, o papel da família, índices
de legitimidade e chefia de domicílios, dentre outras. Esses temas foram
tratados no decorrer dos capítulos e de diferentes formas. Alertamos que
4 Só a possibilidade de acesso à mão de obra escrava por parte desses grupos, já denotaria outro
esforço conceitual de comparação.

16
não houve uma simples repetição de temáticas, mas, sim, o uso de diferen-
tes tratamentos metodológicos, ao submetermos esses temas a diferentes
fundos documentais e a uma vasta temporalidade (por 150 anos aproxima-
damente). Procuramos discorrer sobre os principais debates, buscar seme-
lhanças ou diferenças nos comportamentos no longo prazo e fazer opções.
Uma segunda proposição partiu do olhar atento àquelas histórias pessoais
que pudessem sugerir um problema geral, ou seja, se olhássemos com aten-
ção esses povos, poderíamos colocar novos problemas e encontrar técnicas
de leitura metodologicamente novas? Para essa finalidade, lançamos mão
das análises de redes sociais para tentarmos entender melhor as interações
sociais entre os diferentes grupos e compreender como uma sociedade
muito desigual, formada por indivíduos de diferentes qualidades, gerava
distintas relações de reciprocidade. Também procuramos realizar uma lei-
tura dos processos criminais integrada ao mundo das relações locais e bus-
cando a causa dos verdadeiros atos de violência no contexto social.
Temos a consciência de que as fontes disponíveis para o estudo e o
acompanhamento de indivíduos e grupos de cor livres na América
Portuguesa não são completas e mais adequadas, e que, por conta disso,
nossos objetivos possam ter sido por demais ambiciosos. No entanto, esta
pesquisa buscou a superação dessas dificuldades em um exercício cons-
tante de trazer à tona outros protagonistas da história.
A obra de Marc Bloch inspirou esta pesquisa, a que nos concedemos
o direito de repetir o título dado à coletânea organizada por seu filho
(BLOCH, 2001). Bloch, como maior estudioso da história rural francesa,
investigou as tradições costumeiras dos camponeses e sua adequação ao
sistema jurídico do Antigo Regime, suas relações comunitárias, a família e
os conflitos – muitos temas, mas em todos eles, percebe-se a permanência
de uma ideia de que a “[...] História é uma vasta experiência da diversidade
humana, um encontro dos homens” (BLOCH, 1965). É nessa perspectiva
que nos baseamos na escrita destas páginas.
No primeiro capítulo, elaboramos um panorama geral da ocupação do
sertão pelos diferentes atores sociais no conturbado contexto das primeiras
décadas do século XVIII. Analisamos a ocupação deste espaço pelo poder,
seja pelas instituições (Estado e Igreja), seja pelo poder privado, exercido
pelos primeiros conquistadores e seus descendentes. Acompanhamos o
conturbado processo de estabilização daquela sociedade pelos inúmeros

17
conflitos entre os agentes sociais. O final do século XVIII foi bastante sig-
nificativo para a região. Foi o momento em que percebemos uma maior
consolidação do poder do Estado ao tentar regular a cobrança de tributos
através do maior controle dos registros, ao realizar uma política de reco-
nhecimento das terras, formalizando a posse ilegal de décadas anteriores,
ao tentar manter o controle sobre os novos descobertos e ao fortalecer mais
a segurança por meio das patrulhas nos caminhos e de uma ação mais
firme nas companhias de ordenanças.
No capítulo 2, acompanhamos como a sociedade instalada nos ser-
tões proibidos marcada pela instabilidade foi conduzida pela atuação das
visitações eclesiásticas. Através delas, nossos principais atores sociais
emergiram nas suas relações entre si e com os setores mais abastados
por meio de várias histórias de negras e pardas forras, como também
as índias. Discutimos a presença dos altos índices de concubinato, não
como singularidade da região e, sim, um traço recorrente, mas rela-
cionado à instabilidade, miséria, empecilhos burocráticos e, principal-
mente, devido ao amálgama de diferentes valores culturais. Contudo,
tentamos perceber outros nós da trama das relações sociais da comuni-
dade da Mantiqueira e não apenas do ponto de vista das lentes míopes
dos visitadores. Assim, levamos em conta as vivências nas confrarias, que
recriavam identidades de grupo e podiam se traduzir em uma instância
de sociabilidade, lazer e encontro daquela gente.
No capítulo 3, diminuímos um pouco mais o foco e nos concentramos
na camada de gente confusa e sem lei, sem ordem, nem obediência, mas que
vivia no mundo do trabalho, na condição de roceiros. Entramos no uni-
verso daqueles que viviam nas áreas rurais, enraizados em pequenas roças,
seja na condição de pequenos proprietários, posseiros ou mesmo situados
em pequenas áreas sob a tutela de grandes potentados. Indivíduos e famílias
livres, portadores de uma parca cultura material, com poucos ou nenhum
bem, em sua maioria não branca, com vínculos recentes ou remotos com o
cativeiro e outros distantes de suas origens tribais. Analisamos as atuações
e os modos de governar das elites locais, fundados na posse de terras e no
controle dos cargos nas ordenanças. Percebemos como a Coroa não podia
prescindir do apoio do grupo de dirigentes locais e passou a incorporá-los
ao aparelho do Estado, ampliando sua base social, mas, por outro lado, favo-
receu o fortalecimento de clientelas e redes de intermediários sociais.

18
No capítulo 4, continuamos o acompanhamento dessa população livre
de cor através de dois amplos fundos documentais das primeiras décadas
do século XVIII à terceira década do XIX. Diante da ausência de dados
demográficos que cobrissem todo o século XVIII, principalmente para estas
áreas mais periféricas, construímos os nossos próprios dados extraindo
informações dos assentos de batismos. Por meio deles, tivemos uma visão
aproximada da presença da gente de cor na região, suas condutas matri-
moniais, valendo-se dos índices de legitimidade e ilegitimidade, e o signifi-
cado do compadrio. Especialmente, nesse capítulo, não só realizamos toda
uma discussão com a vasta historiografia brasileira acerca desses temas mas
também buscamos diversificar o tratamento das fontes em busca de novos
problemas. Elaboramos redes sociais para duas localidades e, por meio
delas, acessamos o universo das inter-relações entre os indivíduos e grupos.
Discutimos o papel das redes de parentesco, bem como a importância das
relações de vizinhança no dia a dia da vivência comunitária.
No capítulo 5, trabalhamos os significados da virada do século XVIII
para o século XIX e o que consideramos a “conversão do sertão”, ou seja,
como esse conjunto de transformações se refletiu na capitania mineira,
que já vivenciava internamente uma mudança de eixo em sua economia.
O esgotamento da atividade mineradora era um fato que repercutia len-
tamente sobre todo o espaço, promovendo adaptações e reorientações na
esfera econômica e social. A nosso ver, esta não era mais uma região de
fronteira e estava em processo o fortalecimento do rural, ou seja, a periferia
agrária ganhou importância e necessitou de novos espaços citadinos, daí o
crescimento em importância dos antigos arraiais.
Nossa proposta foi continuar acompanhando a gente de cor nesse
novo contexto da primeira metade do século XIX, seu acesso à terra e o
papel exercido pela família. Analisando-se as experiências intrafamiliares
e comunitárias, identificamos uma série de traços de defesa da autonomia
e obtenção de uma série de ganhos partilhados por todos os indivíduos,
como também identificamos componentes de relações paternalistas e vín-
culos de clientela. Percebemos que para além da importância dos laços de
parentesco, as relações de vizinhança influenciavam as várias esferas da
vida social. Para entendermos melhor essa dinâmica, recorremos a outra
instância de percepção, com a utilização dos processos criminais, por meio
dos quais nos foi possível melhor analisar a dinâmica das relações, não

19
baseadas somente em solidariedades mas também em conflitos. Eventos
de disputas internas ao grupo também se multiplicavam, questionando as
bases deste apoio mútuo. Tal realidade nos levou a pensar que, no com-
plexo das relações sociais, havia a conjugação destas diferentes experiên-
cias, coexistindo tanto o compartilhamento de condições que levavam ao
fortalecimento da família e do grupo mas também a conflitos e rompimen-
tos, reflexos das diferentes identidades, autonomia e escolhas próprias de
cada indivíduo.

20

Vous aimerez peut-être aussi