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DE BARREIRA (CEARÁ).
RESUMO
O escopo dessa análise é refletir acerca das relações de poder no âmbito local a partir da
interação de caráter pessoal entre candidato e eleitor fundada numa economia e moral
do dom. Nesse sentido, realizou-se um estudo de caso no município de Barreira (Ceará),
durante as eleições locais de 1988 e 1992 no qual se observou como o médico, no
exercício de sua profissão, acumula capital social e logra convertê-lo em capital
político/eleitoral, emergindo como um novo ator político capacitado a disputar o pleito
municipal com candidatos pertencentes a tradicionais famílias/grupos políticos. No caso
do médico em foco, Dr. Júnior, tais capitais foram acionados de modo a engendrar nos
pacientes (eleitores em potencial) vínculos de amizade, sentimentos de afetividade bem
como a obrigação moral de dívida a ser saldada. Nesse contexto, tais sentimentos e
obrigações se estendem à esfera política fazendo com que a adesão à candidatura do
médico, a militância durante as campanhas e, sobretudo, o voto, fossem percebidos
como instrumentos por meio dos quais se amortiza uma dívida, o que possibilitou
entender a continuidade de práticas e o uso de políticas que se denominam na literatura
de assistencialistas e clientelistas. Para uma melhor compreensão sobre tal fenômeno
tomou-se como referência o sistema de dádivas, de Marcel Mauss, como modelo
conceitual capaz de explicar não só o tipo de organização societária em Barreira bem
como se fundamentam as relações entre político e eleitor. Para a análise do
funcionamento da políticas no Ceará foram indispensáveis os estudos de Maria Isaura
Pereira de Queiroz, Rejane Carvalho, Mônica Martins, Moacir Palmeira, entre outros.
No que se refere à introdução dos médicos no cenário político, buscou-se as
contribuições de Marc Bloch, Odaci Coradini, Júlia Miranda e Maria Auxiliadora
Lemenhe. Além disso, o conceito weberiano de tipo-ideal serviu de instrumento para a
aproximação da realidade, na medida em que permitiu a observação dos tipos de
dominação e a construção de uma categoria analítica: os doutores-prefeitos. A
participação em eventos políticos e o uso da técnica de Entrevista Semiestruturada
possibilitou formular noções claras sobre o modo como os eleitores vivenciam a política
no município. Esta pesquisa permitiu a apreensão da política como uma relação de troca
para além da perspectiva do simples câmbio de favores, na medida em que o caráter do
relacionamento candidato-eleitor e as práticas que engendra só são aceitáveis em um
modelo de organização societário que tem como fundamento o sistema de dádivas e
contradádivas, ora os regulando, ora os legitimando, ora os reproduzindo.
Metodologia
Para a apreensão do fenômeno em estudo, como a metodologia weberiana ensina,
devemos compreendê-lo a partir das peculiaridades da sociedade da qual faz parte, estando
essas peculiaridades historicamente situadas. Desse modo, no que se refere a interpretação
das relações médico-paciente e político-eleitor a dádiva nos servirá de guia. Além disso,
fez-se uso dos conceitos weberianos de tipo-ideal para a observação dos “doutores-
prefeitos”. Lembrando que os tipos-ideais são categorias puramente classificatórias e
servem como meio de aproximação com o objeto e, como construções teóricas, funcionam
apenas como instrumento de análise da realidade, não significando a própria realidade.
Nesse sentido, entendemos por “doutor-prefeito” o médico que se desloca de sua
cidade de origem para trabalhar num pequeno município do interior e, a partir do exercício
de sua profissão, mantém relações de troca recíproca (sistema de dádivas) e por isso, ganha
a confiança do paciente (eleitor em potencial), se transformando num líder carismático. Não
tem tradição política, mas foi eleito sem grandes dificuldades. E após eleito, se perpetua no
poder, seja direta ou indiretamente.
Esta investigação fez uso da técnica de entrevista semiestruturada com
importantes figuras políticas de Barreira como Zeca Torres, Zé Bernardo e Ernani Jacó
(estes dois últimos foram prefeitos de Barreira), alguns servidores públicos que trabalharam
em Secretarias Municipais nas gestões dos “doutores-prefeitos”, pessoas próximas (amigos
e/ou parentes) de dr. Júnior e dr. Valderlan. Vale ressaltar que, em relação aos entrevistados,
todos, exceto as grandes figuras políticas e os “doutores-prefeitos”, ganharam nomes
fictícios no intuito de preservar suas identidades.
O objeto de estudo é a coexistência entre práticas políticas tradicionais e modernas
no contexto da democracia de hoje, e sua figura principal, o “doutor-prefeito”. O campo de
pesquisa é Barreira, o momento histórico é o período que compreende as eleições locais de
1992 à 2012. Onde serão observados os vínculos sociais, de intimidade e dependência
geradas a partir da relação entre o médico se transferindo para o campo da política e os
desdobramentos dessas interações na conjuntura político-social barreirense.
Conclusão
Se a lógica que organiza essa sociedade [aqui nos referimos à Barreira] é o sistema
de dádivas, com as dádivas criando e recriando/reforçando os laços sociais e as relações
pessoais entre os entes envolvidos, ou seja, regendo nossos modelos de vinculação
societária. Daí a continuidade, nos nossos dias, do homem cordial, esse homem que é motor
das relações de dádivas. Por isso a permanência de relações paternalistas, personalistas,
clientelistas, ora vistas como práticas arcaicas, no sentido pejorativo do termo, ora como
práticas comuns, normais ao cotidiano das pessoas. Nesse sentido, a fala de dona Rita, ao
ser questionada sobre o papel e as obrigações de um político profissional, atesta tal
fenômeno:
– Para a senhora, qual a função de um político?
– (...) fazer as coisas pro povo, dar atenção pro povo, dar atenção para os eleitores,
ajudar o povo, fazer o que prometeu pra melhorar a vida do povo.
– Ajudar o povo como?
– Ajudar ... a pessoa precisando de uma coisa ele pudendo ajudar ele ajudar. E
num tem só a ajuda de dinheiro, (...) até uma conversa é uma ajuda. Às vezes as
pessoas [es]tão desorientadas, a pessoa chega e conversa e diz “fulano é assim e
assim”, isso aí já é uma ajuda que ele [es]tá dando (dona Rita, aposentada.
Entrevista realizada em 10 de abril de 2012)
i
Marcel Mauss, sobrinho de Èmile Durkheim, foi o maior e mais importante herdeiro da sociologia
durkheimiana.
ii
O sistema de dádivas é constituído pela obrigação de dar, de receber e de retribuir. Mas ao retribuir, a
pessoa deve ser mais generosa que o primeiro doador (MAUSS, 2007). E é nesse “retribuir mais do que
recebeu” que se garante a perpetuação do vínculo, tendo em vista que na dádiva se está sempre gerando
uma nova dívida.
iii
Lembrando que esses bens imateriais são os mais diversos, podendo ser identificados como
amabilidades, cortesia, hospedagem, atenção, carinho, sorrisos, etc. Por isso, afirmamos que nas
interações interpessoais entre senhor e escravo havia também, além da exploração do trabalho do
segundo, a possibilidade de relações baseadas no sistema de prestações totais.
iv
Durante a realização da pesquisa empírica, tivemos a oportunidade de estar na inauguração da
pavimentação de uma rua em Barreira, realizada pela gestão do atual prefeito, Antônio Peixoto, e
percebemos que as falas de todas as figuras políticas presentes no palanque, dentre elas o ex-prefeito e
sua esposa, dr. Valderlan e dra. Auxiliadora, foram iniciadas pela expressão “meus amigos de Barreira”.
E muitos deles falaram o nome de alguns desses amigos presentes, demostrando a familiaridade com eles.
Isso reflete o quanto é pessoal a relação político-eleitor.
v
Se ao receber um dom, o donatário fica em dívida com seu doador, podemos arriscar a dizer que fica,
igualmente em situação de dependência, enquanto não restituir o presente recebido. No caso dos médicos,
a cura, por exemplo, é um dom que, na acepção do donatário, não pode ser retribuído, gerando, a partir de
nosso entendimento, uma permanente dívida moral e dependência por parte do paciente (donatário).
vi
Dona Iolanda, em entrevista, lembra que em um determinado período da história de Barreira, não havia
escola de ensino fundamental para seus filhos estudarem. Então, dr Júnior convocou os pais dos alunos
prejudicados e propôs que se fizesse uma espécie de fundo para financiar os estudos das crianças. Os pais
contribuiriam com uma taxa, fixada em reunião e de igual valor para todos, para pagar o salário dos
professores que ministrariam as aulas. Isso demostra que atuava em Barreira para além de suas
atribuições como médico.
REFERÊNCIAS
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras –
26ª edição, 2004.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2000.
__________. Sociologia. São Paulo: Ática – 5ª edição, 1991.