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By George Marmelstein
O chamado Estado de Coisas Inconstitucional – ECI tem tudo para se tornar a nova onda do verão
constitucional, depois de sua adoção pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347/DF,
em que se discute a crise do sistema carcerário (ver informativo 798 (h p://www.stf.jus.br//arquivo
/informativo/documento/informativo798.htm)). Mas será que se trata de apenas mais um modismo
passageiro ou há, de fato, algo de valioso a ser extraído dessa novidade?
O conceito de ECI (“Estado de Cosas Inconstitucional“) foi desenvolvido pela Corte Constitucional
colombiana (h p://www.corteconstitucional.gov.co/) no contexto de violações sistemáticas de direitos
fundamentais e possui um propósito bastante ambicioso: permitir o desenvolvimento de soluções
estruturais para situações de graves e contínuas inconstitucionalidades praticadas contra populações
vulneráveis em face de falhas (omissões) do poder público.
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De qualquer modo, é notório que tal decisão abriu as portas para a superação de um modelo de
proteção jurídica de índole individual, onde o Judiciário responde a cada demandante em particular,
não podendo ir além dos limites do pedido inicial. Com a declaração do ECI, o comando judicial visa
solucionar o problema não só daquelas pessoas que ingressaram com a ação, mas de todos os demais
afetados. E mais: são chamados para o processo não apenas os órgãos que estão diretamente
envolvidos na violação dos direitos dos demandantes, mas todos aqueles que possam, de algum modo,
contribuir para buscar a solução global do problema.
Como se observa, houve, no contexto colombiano, razões de ordem processual para o desenvolvimento
do ECI, pois sua função originária, pelo menos no caso acima citado, foi suprir a ausência de um
mecanismo jurídico-processual coletivo ou mesmo abstrato de proteção dos direitos fundamentais. A
ideia era que, ao constatar a violação generalizada e sistemática de direitos (comprovada pela
propositura de diversas ações semelhantes sobre o mesmo tema), o juiz pudesse estender a proteção
judicial para todo o conjunto de pessoas afetadas, mesmo que estas pessoas não tivessem ingressado
com ações individuais, evitando assim uma sobrecarga do sistema judicial em razão da multiplicidade
de demandas repetitivas.
Se o ECI se limitasse a isso, seria desnecessária a sua importação para o Brasil. Afinal, já existem
medidas jurídico-processuais previstas na Constituição para a proteção de interesses coletivos, difusos
e individuais homogêneos. A própria ADPF parece que cumpre essa função a contento. Caso a medida
envolva a elaboração de uma norma regulamentadora capaz de viabilizar o exercício do direito, tem-se
o mandado de injunção. Em algumas situações de âmbito regional ou local, a ação civil pública também
pode ser um instrumento adequado de proteção contra as violações sistemáticas a direitos
fundamentais. Além disso, com a súmula vinculante, o STF poderia estender os efeitos de uma
demanda individual para todos os que estivessem em situação semelhante, e a decisão seria vinculante
também para demais os órgãos do poder público, mesmo que não fossem parte da ação originária.
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para resolverem um problema estrutural. E nesse aspecto, o modelo pode ser bastante
promissor aqui no Brasil.
Outra relevante ação em que houve a mobilização do conceito do Estado de Coisas Inconstitucional,
com a busca de um diálogo institucional visando superar uma massiva e sistemática violação de direitos
de um grupo vulnerável, foi no caso T 025/2004, em que se discutia a situação dos migrantes internos
(“despazados“), ou seja, das pessoas que foram obrigadas a abandonar seu local de origem por razões
da violência provocada pelos conflitos armados e buscaram refúgio em outra localidade dentro do
mesmo país.
Esse caso foi um dos casos mais emblemáticos da histórica da Corte Constitucional colombiana e
inaugurou, de fato, uma nova fase no processo de superação do Estado de Coisas Inconstitucional,
estabelecendo aquilo que pode ser designado por ativismo dialógico, em que a principal função da corte
é a de coordenar um processo de mudança institucional através da emissão ordens de “desbloqueio”
que costumam emperrar a burocracia estatal e de um processo de monitoramento contínuo sobre as
medidas adotadas pelo poder público (RODRIGUEZ GRAVITO E RODRIGUEZ FRANCO, 2010).
Assim, ao invés de proferir decisões contendo ordens detalhadas sobre como os órgãos devem agir, a
Corte criou mecanismos de desobstrução ou desbloqueio dos canais de deliberação, buscou a
coordenação do planejamento e da execução das políticas públicas, desenvolveu espaços de
deliberação participativa e estabeleceu incentivos e prazos para avançar na proteção dos direitos. Além
disso, a Corte manteve a sua jurisdição sobre o caso para impulsionar o cumprimento de suas ordens,
tendo proferido 84 decisões e realizado 14 audiências públicas entre 2004 e 2010, já na fase de
execução do julgado, mantendo um diálogo permanente com os órgãos envolvidos.
Esse processo de diálogo institucional é o que se pode extrair de mais valioso do modelo colombiano. A
declaração do Estado de Coisas Inconstitucional é, antes de mais nada, uma forma de chamar atenção
para o problema de fundo, de reforçar o papel de cada um dos poderes e de exigir a realização de
ações concretas para a solução do problema. Entendida nestes termos, o ECI não implica,
necessariamente, uma usurpação judicial dos poderes administrativos ou legislativos. Pelo contrário. A
ideia é fazer com que os responsáveis assumam as rédeas de suas atribuições e adotem as medidas,
dentro de sua esfera de competência, para solucionar o problema. Para isso, ao declarar o estado de
coisas inconstitucional e identificar uma grave e sistemática violação de direitos provocada por falhas
estruturais da atuação estatal, a primeira medida adotada pelo órgão judicial é comunicar as
autoridades relevantes o quadro geral da situação. Depois, convoca-se os órgãos diretamente
responsáveis para que elaborem um plano de solução, fixando-se um prazo para a apresentação e
conclusão desse plano. Nesse processo, também são indicados órgãos de monitoramento e fiscalização
que devem relatar ao Judiciário as medidas que estariam sendo adotadas.
A linha de ação segue o seguinte esquema: (a) identificação e prova do quadro de violações sistemática
de direitos, por meio de inspeções, relatórios, perícias, testemunhas etc. → (b) declaração do Estado de
Coisas Inconstitucional → (c) comunicação do ECI aos órgãos relevantes, sobretudo os de cúpula e aos
responsáveis pela adoção de medidas administrativas e legislativas para a solução do problema → (d)
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estabelecimento de prazo para apresentação de um plano de solução a ser elaborado pelas instituições
diretamente responsáveis → (e) apresentação do plano de solução com prazos e metas a serem
cumpridas → (f) execução do plano de solução pelas entidades envolvidas → (g) monitoramento do
cumprimento do plano por meio de entidades indicadas pelo Judiciário → (h) após o término do prazo
concedido, análise do cumprimento das medidas e da superação do ECI → (i) em caso de não-
superação do ECI, novo diagnóstico, com imputação de responsabilidades em relação ao que não foi
feito → (j) nova declaração de ECI e repetição do esquema, desta vez com atuação judicial mais
intensa.
Nesse processo, o ideal é que o Judiciário não estabeleça, em caráter impositivo, os meios para a
solução do problema, pois quem deve estabelecer o como agir são os órgãos responsáveis pela execução
do plano. O papel do Judiciário deve ser o de buscar o engajamento de todos na resolução do problema
e criar obrigações de resultado, estabelecendo parâmetros para caracterizar a superação do ECI e
adotando os mecanismos processuais para pressionar os agentes estatais a cumprirem a política
pública elaborada pelos próprios órgãos envolvidos.
É provável que os demais poderes vejam nisso uma intromissão indevida do Judiciário nos assuntos de
governo. Afinal, a solução, com mais ou menos intensidade, exige uma alocação de recursos humanos
e financeiros que pode afetar a gestão administrativa, além de interferir na conveniência e
oportunidade legislativas. Porém, a atuação judicial não é motivada apenas pela inação dos demais
poderes, mas sobretudo pela constatação de que está ocorrendo uma violação sistemática dos direitos,
que, de algum modo, reflete não só um desrespeito à constituição, mas afeta a própria funcionalidade
da atividade judicial. Ou seja, a rigor, toda pessoa prejudicada pela falha na prestação dos serviços
públicos poderia ingressar com uma ação judicial para resolver o seu problema particular e,
obviamente, os juízes seriam obrigados a proferir decisões para proteger o demandante. Pela fórmula
tradicional de tutela em situações assim, a solução se daria por meio de emissão de ordens pontuais
para violação concreta e específica de um determinado direito, o que não parece ser adequado, pois,
além de gerar a sobrecarga de trabalho, o problema persistiria num nível macro. Por isso, para evitar
soluções fragmentadas e assistemáticas, proferidas caso a caso, busca-se por meio do ECI uma solução
orquestrada de várias entidades distintas, sob a batuta judicial. Essa união de todos os órgãos que, de
fato e de direito, podem fazer a diferença seria a melhor forma para tentar superar o estado de coisas
inconstitucional em sua totalidade.
De certo modo, o modelo do ECI pode ser até útil para os demais poderes, na medida em que pode
evitar a pulverização de soluções tópicas em muitos níveis diferentes que, sem dúvida, atrapalhariam a
gestão do sistema. Ou seja, se o ECI for declarado, e o plano de ação elaborado e iniciado, os órgãos
envolvidos poderiam, em tese, ter um maior controle da situação, favorecendo a racionalidade no
processo decisório. Hoje, como qualquer situação de desrespeito à constituição é judicializada de
forma isolada, é impossível alcançar soluções sistematizadas, reinando um verdadeiro caos que pode
até aumentar o quadro de inconstitucionalidade. Basta ver o exemplo da judicialização da saúde, em
que as microsoluções (caóticas) impedem qualquer planejamento das macrosoluções (sistemáticas).
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Uma declaração de ECI em matéria de saúde, com a apresentação de um plano de solução global,
minimizaria o caos em que se vive hoje, onde qualquer paciente ingressa com ações judiciais para pedir
qualquer remédio, inviabilizando a construção de um plano racional de longo alcance.
Por fim, uma observação mais crítica, com um tom realista. Como se nota, o ECI é um instituto
bastante ambicioso, já que, por meio dele, busca-se resolver pronta e eficazmente problemas
complexos de natureza estrutural de largas proporções. A prudência, porém, nos recomenda a ser
mais cauteloso quanto às possibilidades do instituto. Cautela aqui em dois sentidos. Em primeiro lugar,
na própria definição do papel do Judiciário nesse processo. O modelo só faz sentido se o órgão judicial
tiver plena consciência dos limites de sua atuação. O propósito do ECI não deve ser o de transformar o
Judiciário em um superórgão responsável pela elaboração e execução de políticas públicas.Deve ser
justamente o oposto disso, pois, nesse modelo, os juízes não exercem um papel de substituição, mas de
mera supervisão ou acompanhamento de um projeto que foi planejado pelos entes responsáveis,
dentro de suas respectivas esferas de competência. (Nesse ponto, pode-se criticar o pedido formulado
na ADPF 347/DF, que, claramente, deturpa parcialmente o modelo, já que são apresentadas medidas
concretas de solução que seriam, caso deferidas, impostas pelo Judiciário sem uma análise dos órgãos
responsáveis).
A segunda cautela é quanto à própria eficácia do instituto. Sem dúvida, o ECI não é o antídoto capaz
de resolver todos os problemas da humanidade. Na verdade, ele é muito menos eficaz quanto se
pensa. Basta ver que, no caso emblemático da situação dos presídios na Colômbia, a Corte
Constitucional, em 2013, proferiu uma nova decisão (T 388-2013
(h p://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2013/t-388-13.htm)) reconhecendo que, apesar da
decisão de 1998, o estado de coisas inconstitucional nos cárceres colombianos persistia (ainda que por
razões distintas).
Fonte:
Além das decisões da própria Corte Constitucional colombiana, um bom livro sobre o tema, que foi,
inclusive, citado pelo STF, é:
RODRIGUEZ GRAVITO, César e RODRIGUEZ FRANCO, Diana. Cortes y cambio social: cómo la
Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios
de Derecho, Justicia y Sociedad, Dejusticia, 2010 (h p://www.rtfn-watch.org/uploads/media
/Colombia_-_Cortes_y_cambio_social.pdf)
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O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI: apenas uma nova onda do v... https://direitosfundamentais.net/2015/10/02/o-estado-de-coisas-inconsti...
This entry was posted on outubro 2, 2015 at 1:03 pm and is filed under controle de constitucionalidade,
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