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- “No argumento do cartesiano do cogito, uma das coisas que impressionam é o sujeito
ciente de si; ele sabe que conhece, que pensa. Ricoeur situa-se também nessa tradição
reflexiva que enfatiza a autoconsciência e, com ela, nosso conhecimento, além do
conhecimento que temos do mundo, mesmo admitindo que o autoconhecimento
depende sempre do nosso conhecimento do mundo. Modificará, no entanto, essa
tradição reflexiva, ao sustentar que nunca temos conhecimento direto ou imediato de
nós mesmos. Conhecemos a nós mesmos apenas indiretamente, em termos do mundo
objetivo e de nossas ações nele.” (PELLAUER, p. 26)
- O ‘eu’ “É alcançável apenas através da reflexão, mas reflexão que é agora ela própria
um processo de interpretação, processo que começa a partir do objeto, não do sujeito. É
por isso que diz: ‘A primeira verdade – sou, penso, permanece tão abstrata e vazia
quanto invencível; tem que ser ‘mediada’ pelas ideias, ações, obras, instituições e
monumentos que a objetivam’ (Da interpretação). Por isso, a reflexão não pode ser
simplesmente uma questão para uma teoria epistemológica que vise a justificar a ciência
ou mesmo, como Kant, a dúvida. Tem que ser entendida como um reapropriação do
nosso esforço para existir [...]”(PELLAUER, p. 68-69)
- “O discurso, por fim, sempre ocorre como um evento real no tempo, ao contrário das
estruturas abstratas atemporais descobertas pelo estruturalismo. Essas estruturas de fato
persistem de algum modo, no sentido de que podem ser identificadas a qualquer tempo
(e, se mudam, fazem-no apenas lentamente ao longo do tempo), mas os eventos do
discurso são passageiros. Pode-se dizer mesmo que eles desapareceram.”(PELLAUER,
p. 85)
- “O que distingue a narrativa como forma de discurso é que ela sempre tem uma trama.
Essa trama ou enredo produz o seguinte: combina os episódios e a história como um
todo num conjunto significativo. E o faz pela capacidade da trama de reconfigurar em
narrativa o que já estava configurado na língua anteriormente, através da rede conceitual
que já nos permite falar significativamente sobre a ação humana. Essa rede conceitual é
muito heterogênea. Inclui conceitos tais como causa, razão, motivo, ação e paixão,
trabalho, agente, paciente, objetivo e assim por diante. Tais conceitos já podem ser
combinados em sentenças de ação com fim em aberto. [...]. O que a narrativa faz é
tomar tal discurso, já mimético por significar ou [acaba p. 100] ‘figurar’ ação em
linguagem, e acrescentar-lhe novas características discursivas que lhe dão novo
significado ao torná-lo história de ‘algum feito’. Ao mesmo tempo, a narrativa oferece a
possibilidade do discurso estendido sobre a ação, discurso que vai além do nível das
sentenças de ação, discurso que vai além de ações individuais para falar de coisas que
acontecem não apenas no tempo, mas também ao longo do tempo, incluindo possíveis
consequências ao longo do prazo e mesmo desconhecidas anteriormente. A narrativa faz
isso contando uma história sobre a ação humana e seu significado. Tal história, por sua
vez, pode ser ouvida ou lida e, quando compreendida, contribui para reconfigurar nosso
entendimento da ação humana e suas possibilidades. Essa nova forma de inovação
semântica ocorre porque a narrativa enxerta novos elementos temporais às
configurações pré-narrativas da ação e, através deles, à nossa compreensão tanto da
ação humana quanto do próprio tempo. Será tarefa de uma hermenêutica do discurso
narrativo reconstruir e assim tornar inteligível toda essa sequência, da experiência
vivida à narrativa e desta novamente de volta à experiência vivida.” (PELLAUER, p.
100-101)
- “A ficção, como o outro grande tipo de narrativa, nos dá mais percepção de como a
narrativa configura e em última análise, reconfigura o tempo. Ricoeur considera vários
pontos [acaba p. 106] ao examinar a ficção, mas sempre com vistas a dar suporte a sua
tese básica sobre a relação entre tempo e narrativa. Antes de mais nada, analisa a
questão específica do tempo na narrativa ficcional, notando que a possível lista de
gêneros narrativos não está fechada. Isso é demonstrado pela descoberta (ou invenção)
do romance como uma nova forma de escrever ficção. O romance é notável por sua
variedade em se tratando de exemplos concretos, mas de modo mais geral Ricoeur
observa que, em comparação com formas anteriores, incluindo o drama, como na
tragédia grega, ele amplia a esfera social na qual se desenrola a ação ao dar atenção a
pessoas comuns. Também introduz uma ênfase maior nas personagens como indivíduos
nos quais devemos pensar como pessoas reais e não como meros tipos ideais ou míticos
como o herói ou o vilão. Com isso vem uma ênfase crescente na complexidade social e
psicológica, combinada com novas maneiras de conceber a vida interior, culminando no
século 20 com a corrente do romance de consciência. ‘No entanto nada nessas
sucessivas expansões do personagem em detrimento do enredo escapa ao princípio
formal da configuração e, portanto, ao conceito de trama.’ (Tempo e narrativa II, p. 10).
O que é mais importante sobre o romance, no entanto, é que ele leva a novos
desenvolvimentos da técnica narrativa por se tratar de um gênero que constantemente
luta para não ser reduzido a um conjunto fixo de convenções ao mesmo tempo que
confronta os leitores com a questão: estamos diante da ilusão ou da semelhança com a
realidade? A resposta de Ricoeur a essa questão leva-o a abandonar o seu uso anterior
da ideia de ‘redescrição’ para caracterizar o que acontece com a metáfora viva,
passando à ideia de ‘reconfiguração’ a fim de captar o que acontece através da narrativa
quando é ouvida ou lida e entendida. Isso porque, como toda narrativa, a ficção nos
apresenta um mundo do texto no qual se supõe o desenrolar da história e este é um
mundo que podemos nós mesmos imaginar habitando. Daí, com base nisso, a ficção
narrativa é uma forma de ver o mundo diferentemente, mas também de modos que
podem ser verdadeiros acerca do mundo tal como ele efetivamente é ou pode ser.
(PELLAUER, p. 106-107)
- “[...] Ricoeur tem mais a dizer sobre a ficção e suas possibilidades. Considera, por
exemplo, a questão de saber se os desenvolvimentos da técnica narrativa serão jamais
exauridos, questão que surge tão logo reconhecemos que eles podem mudar. Sua
resposta é que não temos como conceber tal coisa, uma vez que nos deixaria sem
nenhum meio de compreender o tempo mais. Com efeito, não temos ideia do que seria a
cultura se ninguém mais soubesse o que significa narrar coisas’ (Tempo e narrativa II,
p. 28).”(PELLAUER, p. 108)