Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
- “Para Ricoeur, a hermenêutica é em primeiro lugar um método filosófico que ele procura
articular com outros.” (p. 7)
- “[...]. O sentido do famoso aforismo ‘O símbolo tem quer ser pensado’ deve ser
entendido como um desafio.” (p. 8)
- “[...] a hermenêutica é para ele um método filosófico que não poderia ser erigido em
método universal: ela só poderia ser aplicada onde se confirmasse como a mais pertinente,
ao fim de um processo de objetivação e de análise e como introdução a reflexões de
natureza mais ética e ontológica. A hermenêutica designa então um dos modos de
filosofar próprio de Ricoeur, cuidadoso – e nisso fiel a Kant – em estabelecer as condições
de validade dos diversos métodos articulados. A inclinação natural da hermenêutica,
definida como uma ‘teoria geral da interpretação’, é ligar-se escrupulosamente à
interpretação dos signos humanos, sejam eles símbolos, textos ou quase textos (ações)
[Do texto à ação p. 7]. Como tal, a hermenêutica apresenta-se como uma reflexão
distanciada e crítica sobre as operações de explicação e de compreensão em jogo na
interpretação, habitual ou erudita, das obras de cultura.” (p. 8)
O problema da hermenêutica
1. Hermenêutica e simbolismo
- “Para chegar ao concreto da vontade má, era preciso introduzir no círculo da reflexão o
longo desvio dos símbolos e dos mitos, enfim, a mediação, ela mesma ‘histórica’, do
mundo cultural. A Símbólica do mal (1960) originou-se nessa confusão metodológica: a
vontade, afirma-se aqui, só se reconhece má, se confessa culpada, meditando acerca dos
símbolos e dos mitos transmitidos pelas grandes culturas que instruíram a consciência
ocidental, para calar sobre as outras culturas que não fazem parte de minha memória
finita." (p.”18)
- “No entanto, é nessa investigação limitada à simbólica do mal ligada a uma definição
geral do símbolo que acontece a primeira abordagem do problema hermenêutico.
Denomino símbolo toda expressão caracterizada pelo fenômeno do duplo sentido,
segundo o qual a significação literal remete a um sentido segundo que só é acessível pelo
retorno do sentido primeiro ao sentido segundo. Esta segunda condição é essencial, pois
a diferença entre símbolo e alegoria vem daí; na alegoria, o desvio por uma expressão
figurada tem uma função puramente didática ou ornamental; sempre é possível dizer
diretamente o que é dito indiretamente com a única intenção de instruir ou de agradar;
com o símbolo autêntico a transferência do sentido literal ao sentido figurado é a única
via de acesso [...].” (p. 19)
- “Na tríade considerada, a noção de texto tem um papel condutor [Do texto à ação, p.
137-182]. É aí, com efeito, que cai por terra a hipótese antiga de que a explicação apenas
reinaria nas ciências humanas da natureza, e as chamadas ciências do espírito [acaba p.
24] seriam governadas pela compreensão. Ora, no cerne destas últimas, mais
precisamente na semiótica, é que apareceram os novos modelos de explicação que se
adaptam exatamente ao império dos signos, ou seja, das operações de codificação e de
decodificação. Assim, fica mais difícil articular a compreensão e a explicação entre si, e
mais difícil dissociá-las pura e simplesmente. Pareceu-me que uma teoria do discurso
definido como o ato pelo qual alguém diz alguma coisa sobre algo a outro alguém poderia
servir como junção entre compreensão e explicação.” (p. 24-25)
- “Quanto à teoria da ação, que deveria retomar em meus trabalhos posteriores, sobre a
narrativa e também sobre a ética e a política, ela ilustra da seguinte maneira a dialética
explicar/compreender. A questão aqui é saber se o jogo de linguagem contendo termos
como intenção, motivo, fim, etc. deve ser radicalmente separado do jogo de linguagem
que fala de movimento, causa, acontecimento etc.. É muito tentador insistir sobre a
dicotomia aberta entre os dois jogos de linguagem, o que não deixa de ser uma forma de
voltar para a oposição entre compreender e explicar.”(p. 25)
- “Resumirei esses três debates numa mesma expressão: ‘Explicar mais é compreender
melhor’. Ou seja, se a compreensão precede, acompanha e envolve a explicação, esta em
troca desenvolve analiticamente a compreensão.” (p. 26)
- “Encerro aqui a revisão dos desenvolvimentos sucessivos pelos quais passou minha
concepção da hermenêutica desde O voluntário e o involuntário até o Conflito das
interpretações. Viu-se como a primeira definição da hermenêutica pelo desenvolvimento
do sentido segundo nas expressões com duplo sentido ou símbolos não foi substituída,
mas incluída na dialética da compreensão e da explicação. Amanhã [texto seguinte]
falarei dos novos problemas que trouxeram uma nova expansão, marcada principalmente
pela noção de ‘mundo do texto’, da problemática hermenêutica, e o que resultou dessa
expansão para a relação entre fenomenologia e hermenêutica que estava no ponto de
partida de meu trabalho reflexivo.” (p. 26)
1. Noção de texto
- “Primeiramente algumas palavras sobre a noção de texto [Do texto à acção, p. 137-139].
Três observações: (p. 27)
- “b) Uma segunda pressuposição da noção de texto refere-se à distinção entre uso oral e
uso escrito do discurso. A passagem da palavra para a escrita marca muito mais do que
um mero fenômeno de fixação de inscrição aplicado a um discurso que poderia ter sido
expresso oralmente. Existe realmente escrita quando o discurso produzido nunca foi
pronunciado oralmente e principalmente nunca poderia ter sido. A escrita se anuncia
como impossibilidade da palavra; um novo instrumento de pensamento e de discurso
nasce com a escrita.” (p. 28)
- “Primeira consequência: surge uma alternativa que abre caminho para o que Starobinski
denomina ‘a fábula da crítica’; de um lado, o fenômeno da inscrição dá uma autoridade
especial ao que está escrito; do outro, a distância que assim se cria com a palavra viva
gera suspeita – e uma questão: como tal efeito de sentido pode ser produzido? Numa
palavra, nasce um conflito aberto entre autoridade e gênese.” (p. 28)
- “Segunda consequência: o fato de ser escrito faz do discurso o portador de uma história
que já não é a de seu autor. É fácil entender esse paradoxo: o sentido do que foi escrito
agora é distinto das eventuais intenções de seu autor e assim se subtrai a toda crítica
psicologizante. Aquilo que podemos chamar de autonomia semântica do texto faz que
este desenvolva uma história distinta da de seu autor [Do Texto à acção, p. 31]. A
ambiguidade da noção de significado reflete essa situação. Significar tanto pode querer
dizer o que significa o texto como o que o autor quis dizer [...]. Assim, essa disjunção
entre dizer e significar já constitui um fenômeno de produção, uma criação.” (p. 29)
- “Última conquista ligada à escrita: o texto escrito estabelece outro tipo de cara a cara:
só o fato de o texto ser aberto, conforme as palavras de Gadamer, a quem quer que saiba
ler implica que o autor do discurso oral dê lugar a um leitor invisível e no limite a um
[acaba p. 29] auditório ilimitado e indeterminado; aqui começa a misteriosa aventura do
texto.” (p. 29-30)
- “c) A ideia de texto possui uma terceira pressuposição, comum à palavra oral e à escrita,
mas desenvolvida ao extremo, que se refere à composição – texto significa também
textura – que faz do texto uma obra. A partir do momento em que um autor se envolve
numa escrita, ele se dispõe a compor diferentemente do que faria numa troca de palavras
característica da relação dialogal. A autonomia semântica da escrita, da qual acabo de
falar, abre caminho a uma busca de regras de composição que a troca rápida das respostas
e das perguntas da conversação não dá tempo de desenvolver. A obra tem suas regras
específicas de composição que fazem dela uma narrativa, ou um poema, ou um ensaio
etc. E o problema da composição não depende da linguística, para qual a última unidade
é a frase, mas da poética, que incide precisamente sobre os modos de composição de um
discurso, frequentemente escrito (mas não necessariamente), cujas unidades são mais
extensas que a frase. O fenômeno de textura, de composição, oferece uma série de novas
alternativas: não mais entre autoridade e gênese, mas entre a consistência do texto como
uma coisa fortemente estruturada e a abertura do texto do lado do mundo e do lado do
leitor. É o problema da dialética do sentido e da referência, de um lado, da escrita e da
leitura, de outro. Vamos ver até que ponto os dois problemas estão intimamente ligados.”
(p. 30)
2. O ‘mundo’ do texto
- “De onde ela vem? Ela vem do problema da inovação semântica, que na poesia e na
narrativa ficcional parece eclipsar o da referência ao mundo, a ponto de torná-la
supérflua, ou incongruente, não pertinente. Nos dois casos, realmente, a produção de um
sentido novo está ligada a operações de síntese que criam novos seres de discurso. No
caso da metáfora, a união inédita de dois campos semânticos incompatíveis conforme as
regras usuais da classificação criam a faísca de sentido constitutivo da metáfora viva. No
conhecido verso ‘A natureza é um templo em que vivas colunas [...]’ nenhuma palavra
em si mesma – ‘natureza’, ‘templo’ – é metafórica, mas [é] a combinação ‘vivas colunas’
que obriga a ver a vida como arquitetura e a arquitetura como vida [poema
correspondências de Baudelaire].” (p. 32)
- “A teoria da narrativa revela um fenômeno semelhante: armar uma intriga, além de ser
uma síntese do heterogêneo – pois a associação dos fatos numa história contada extrai de
acontecimentos esparsos um relato unificado -, ao mesmo tempo também associa
intenções, causas e acasos, e finalmente extrai uma configuração temporal de uma
sucessão de acontecimentos descontínuos.” (p. 32)
- “Antes de qualquer coisa é preciso delimitar a semântica, tal como ela é definida na
filosofia analítica, em relação à pragmática da linguagem. Em semântica, a insistência
maior está, de um lado, no sentido das proposições independentemente da posição dos
sujeitos do enunciado, de outro na [acaba p. 37] referência a entidades externas à
linguagem. Assim, a semântica responde a duas questões: O que se fala? Sobre o que se
fala?. Quanto à pragmática, ela intervém nas proposições quando a significação varia de
acordo com o uso feito pelo locutor e consequentemente pela posição desse locutor e de
sua perspectiva singular no mundo. Podemos dizer desde já que a semântica da ação pode
bastar para designar uma espécie de acontecimento do qual se fala, mas não basta para
designar sozinha o agente enquanto capaz de designar a si mesmo.” (p. 37-38)
-“A contribuição mais importante da semântica da ação para a filosofia prática é ter
orientado o olhar e aplicado a análise ao esquema conceitual no qual se inscrevem todas
as noções que, na linguagem ordinária, se referem à ação humana. Esse esquema
conceitual contém noções como circunstâncias, intenções, motivos, deliberação, moção
voluntária ou involuntária, passividade, opressão, resultados desejados ou não etc. O
caráter aberto dessa enumeração é menos importante que sua organização em rede. O que
importa, realmente, para a constituição de sentido de cada um desses termos é o fato de
pertencerem à mesma rede de todos os outros; assim, relações de intersignificação regem
seu próprio sentido, de forma que saber usar um deles é saber se servir de maneira
significante e apropriada da rede inteira. Trata-se de um jogo de linguagem coerente, no
qual as regras constitutivas que ditam o emprego de um termo formam sistema com as
que ditam o emprego de outro termo. Essa rede conceitual não deve ser considerada mero
inventário das expressões idiomáticas próprias de uma língua, por exemplo o inglês, mas
sim pelo transcendental de todo discurso sobre a ação: à diferença, com efeito, dos
conceitos empíricos, a função de toda a rede é determinar aquilo que ‘é considerado
como’ ação nas ciências psicológicas do comportamento e nas ciências sociais da
conduta. Uma forma eficaz de proceder nessa determinação mútua das [acaba p. 38]
noções pertencentes a essa mesma rede da ação é identificar a cadeia das questões
suscetíveis de ser colocadas ao sujeito da ação: quem faz ou fez o que, visando a que,
como, em quais circunstâncias, com quais meios e quais resultados? As noções-chave da
rede da ação deduzem seu sentido da natureza específica das respostas dadas a questões
específicas, cujos significados se entrelaçam: quem, o que, por que, como?” (p. 38-39)
2. O quê da ação
- “Uma ação não é algo que simplesmente acontece, um fato que acontece, mas alguma
coisa que fazem acontecer.” (p. 39)
- “Assim, sem observar, tenho ciência das ações feitas intencionalmente das quais
falaremos mais adiante, mas também da posição de meu corpo e de meus membros, e
ainda dos motivos que me fazem agir de certa maneira e sobre o quais dizemos que nos
levam a agir dessa ou daquela forma. Isso faz parte do saber-como e não do saber-o-que.
O saber do gesto está no gesto: ‘A ciência do que é feito é conhecimento prático’; ‘um
homem que sabe como fazer coisas tem o conhecimento prático delas’.” (p. 40)
3. O porquê da ação
- “A oposição entre motivo e causa parece aprofundar ainda mais o abismo lógico. Um
motivo – como se observou – é sempre um motivo de; como tal, fica logicamente
implicado na noção de ação, pois não se pode mencionar o motivo sem mencionar a ação
da qual é o motivo. A noção de causa, pelo menos no sentido humiano (pois nada indica
que esse sentido [acaba p. 40] esvazie o campo semântico, como se dirá mais adiante),
implica uma heterogeneidade lógica entre causa e o efeito, na medida em que posso
mencionar uma sem mencionar o outro (como palito de fósforo sem o incêndio). A
conexão íntima e lógica, característica da motivação, é exclusiva da conexão extrínseca e
contingente da causalidade. O argumento tem a pretensão de ser lógico e não psicológico,
pois é a força lógica da conexão motivacional que impede a classificação do motivo com
causa; o motivo se deixa interpretar melhor como ‘razão de’...” (p. 40-41)
4. Semântica da ascripção
- “A relação da ação com seu agente é o problema, ao mesmo tempo antigo e novo, do
qual falávamos na introdução. Aristóteles, bem antes dos estoicos, dá a entender, sem no
entanto tratar tematicamente essa relação, que a ação depende do agente, num sentido
específico da relação de dependência.” (p. 43)
- “Problema antigo, a ascripção que liga a ação a seu agente passou a ser novo, na medida
em que se refinavam a teoria predicativa em geral e a semântica do discurso da ação em
particular.” (p. 43)
- “É sobre a própria ação, em primeiro lugar, que dizemos ser minha, sua, dele, que ela
depende de cada um, que ela está em seu poder. É ainda sobre a intenção que dizemos ser
‘a intenção de alguém’, e sobre alguém dizemos que ele tem ‘a intenção de...’. Podemos,
evidentemente, entender a intenção como tal; mas se a retirarmos de seu autor para
examiná-la a [acaba p. 44] devolveremos atribuindo-lhe como sua. [...]. A ascripção
consiste exatamente na reapropriação de suas próprias deliberações e preferências feita
pelo agente; decidir-se é resolver o debate fazendo sua uma das opções examinadas.
Quanto à noção de motivo, na medida em que ela se distingue da noção de intenção, por
exemplo, como backward-looking motives (Anscombe), o pertencimento ao agente faz
parte de suas significações tanto quanto sua ligação lógica com a própria ação, da qual
ele é a causa; é justificada a pergunta: ‘Por que A fez X?’, ‘O que levou A a fazer X?’.
Mencionar o motivo é também mencionar o agente.” (p. 44-45)