Vous êtes sur la page 1sur 12

Cidades- Comunidades e Territórios

Jun. 2003, n.0 6, pp. 136-147


CIDADES Comunidades e Territórios

Atrás dos Muros


Considerações sobre o Fenómeno Condomínios Fechados no Brasil
Denise Mônaco dos Santos *

Paulo, do desejo de morar de maneira exclusiva,


Condomínios fechados e violência traduzido por muros altos e guaritas, sustentado
pelo discurso contra a violência.
Até meados da década de 1970, apartamentos Outra manifestação com esse carácter será
e casas, implantados em lotes urbanos conven­ concretizada em meados da década de 1970 com o
cionais, eram as principais opções de moradia para emblemático A lp h aville, que costuma ser
a maioria dos brasileiros, moradores de grandes e considerado um dos primeiros condomínios
médios centros urbanos, pertencentes aos estratos horizontais fechados de São Paulo, mesmo sendo,
remediados e abastados. Só então começam a surgir na verdade, um dos primeiros loteamentos fechados
novas modalidades habitacionais, principalmente implantados na região metropolitana da cidade.
nas grandes cidades e principais capitais, como A partir dele afirmou-se a tendência em se implan­
São Paulo e Rio de Janeiro, propostas pelo mercado tar esses empreendimentos nos municípios vizinhos
imobiliário p ara estas mesmas camadas da a São Paulo, ao longo das rodovias Castelo Branco
população: osjlats , os condomínios fechados, ver­ e Raposo Tavares, nas regiões oeste e sudoeste da
ticais- de edifícios de apartamentos- e horizontais Grande São Paulo. Além de áreas residenciais,
- de casas -, além dos loteamentos fechados, desde o início foram previstos centros empresarial
implantados não no perímetro urbano das cidades, e comercial para Alphaville. O empreendimento
mas nas suas cercanias e em municípios vizinhos, inspirava-se nos subúrbios norte-americanos da
áreas das chamadas regiões metropolitanas. Califórnia, como declararam, em muitas ocasiões,
Caldeira (1992: 257) a f i r m a que os R. Albuquerque e Y. Takaoka, diretores superinten­
condomínios fechados começaram a ser construídos dentes da Construtora Albuquerque Takaoka S/A,
em São Paulo durante um período de boom do responsável pela criação do empreendimento.
mercado de bens imobiliários e de financiamentos Caldeira (199 2 : 262) destaca também seu
estatais. Em 197 3 foi construído o primeiro parentesco, enfatizado em material publicitário,
condomínio vertical fechado, o Ilha do Sul, com as new towns e edge cities americanas 1•
localizado na zona oeste da cidade. No bairro do Independentemente da pertinência, ou não, dessas
Morumbi, zona sudoeste, irá se concentrar a referências a modelos urbanos, Alphaville é o mais
maioria dos lançamentos desses empreendimentos emblemático conjunto de casas fechado brasileiro
nos anos 1980. Conjuntos murados, de altos porque foi considerado o paradigma de uma nova
edifícios de apartamentos, providos de extensas forma de habitar, ainda que baseado no resgate de
áreas comuns equipadas com instalações velhas maneiras de morar.
esportivas, de lazer, de serviços, de uso exclusivo O aparecimento de condomínios e loteamentos
dos moradores e, portanto, de acesso privado, os fechados em São Paulo faz parte de um processo
condomínios verticais fechados destinaram-se, mais amplo, descrito por Caldeira (2000: 211-340),
inicialmente, aos mais abastados. Rapidamente, que caracteriza um novo padrão de segregação
no entanto, disseminaram-se e estenderam-se à espacial e desigualdade social nesta cidade, que
população de menor renda, com certeza com áreas pode-se tomar como representativo de outras
comuns menores e menos equipamentos, também localidades onde estas modalidades habitacionais
não tão sofisticados. A construção de condomínios aparecem Este novo modelo de segregação
verticais fechados pode ser considerada uma das substitui, aos poucos, o padrão dicotómico centro­
primeiras manifestações contemporâneas, em São -rico/periferia-pobre, muito comum no contexto

' Arquitecta e Urbanista, Doutoranda em Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo, pesquisadora do Nomads.usp Núcleo de Estudos sobre
Habitação e Modos de Vida, Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, Brasil. Contacto: E-mail demonaco@sc.usp.br
1 Esta última, idéia difundida pelo repórter norte-americano Joel Garreau no livro Edge City- Life on the new frontiet; a partir de 1991.

136
Ensaios

urbano latino-americano de modo geral. Segundo condomínio horizontal fechado como um


a autora, dá-se lugar a outros tipos de espaços agrupamento de unidades habitacionais unifa-
segregados, fragmentados e heterogéneos, de- miliares, com acessos independentes, construído
rivados de vários factores. A começar pelas por um empreendedor, de acordo com projecto que
transformações nos padrões de moradias dos mais abarca, tanto o conjunto como as residências. Pode-
ricos e dos mais pobres, consequências da melhoria -se falar de conjunto de casas implantado na
da periferia combinada com o empobrecimento da malha urbana convencional da cidade, mas
classe trabalhadora e o deslocamento das classes independente e isolado desta, geralmente por
média e alta para fora do centro, e das recentes muros, e que possui acessos controlados e sistemas
dinâmicas económicas e suas distribuições de de segurança. São conjuntos que apresentam
actividades. Outros factores que influenciam no espaços de uso comum em co-propriedade,
surgimento de novas formas de segregação espacial que podem restringir-se a pequenos sistemas
são o crescimento do sector terciário e a de- viários, ou abrangerem equipamentos de
sindustrialização, assim como a reversão das serviços e lazer, implantados em um sistema viário
costumeiras tendências de crescimento demo- maior. Apresentam formas diferenciadas de
gráfico, e, por fim, o aumento do crime violento e agenciamento de unidades habitacionais, sempre
do medo, que faz com que pessoas de classes circunscritas dentro das seguintes variáveis: podem
distintas busquem moradias mais seguras. constituir blocos de unidades térreas, ou de dois
Importa aqui destacar que se afirmou, a partir ou mais pavimentos; podem ser unidades ge-
de Alphaville, a possibilidade de realização dos minadas por um só lado, geralmente com dois ou
desejos de boa parte dos habitantes do mundo mais pavimentos; assim como podem ser unidades
ocidental, e dos paulistanos em particular: morar isoladas, também de dois ou mais pavimentos.
em casas unifamiliares isoladas, rodeados de verde, A princípio, observou-se um desenvolvimento
e protegidos da violência urbana 2 . Quando limitado deste tipo de assentamento em São Paulo
Alphaville e outros conjuntos residenciais, devido a factores como preço do solo, dificuldade
formados a partir de loteamentos fechados, em se encontrar áreas disponíveis e falta de
supostamente aliaram segurança à casa unifamiliar, legislação específica. Estes factores se amenizaram
lançaram as bases para que outros conjuntos com no decorrer dos anos, principalmente pelas novas
as mesmas características fossem, então, possibilidades legais, até então fonte dos maiores
implantados dentro da malha urbana de São Paulo, entraves, abertas pela chamada Lei de Vilas, de
e de outras cidades brasileiras. Mas o primeiro, 1994. A maioria das cidades brasileiras, porém,
símbolo de sucesso no mercado imobiliário, tornou- não possui ainda legislação específica que viabilize
-se marca, e hoje existem Alphaville espalhados por a implantação desses empreendimentos em seus
algumas cidades em vários estados brasileiros. perímetros urbanos. Mesmo assim, tais conjuntos
É necessário diferenciar loteamentos fechados estão sendo construídos cada vez mais, muitas vezes
de condomínios horizontais fechados, mesmo que, embasados em soluções legais controversas.
em alguns casos, do ponto de vista estritamente Longe de se restringirem a São Paulo e sua
formal, as diferenças entre eles não sejam tão região metropolitana, os condomínios fechados,
significativas. Os condomínios horizontais fechados verticais e horizontais, assim como os loteamentos
vão aparecer na cidade de São Paulo apenas uma fechados, já fazem parte das opções de moradias
década depois dos loteamentos periféricos, por volta para a população de parte significativa das grandes
de meados da década de 1980. Pode-se definir e médias cidades brasileiras.

2
É importante destacar que o fascínio que a casa unifamiliar isolada exerce na grande maioria da população não é recente. Ele remete, no limite,
à villa renascentista. No século XIX, esta tipologia foi reafirmada através das formas de habitar socialmente, construídas pelos reformadores
sociais para as classes trabalhadoras, respaldada pelas propostas higienistas, primeiramente na Europa, e também no Brasil. Historicamente,
as classes abastadas quase sempre possuíram casas isoladas, que na versão paulistana corresponde aos palacetes do final do século XIX e início
do XX. Ver a respeito: GUERRAND, R. H. (1992) Espaços privados. In: VVAA, História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira
Guerra, organizado por Perrot, M., vol. 4, São Paulo, Companhia das Letras, p. 325-411 e HOMEM, M.C.N. (1996) O Palacete Paulistano e
outras formas urbanas de morar da elite cafeeira: 1887-1918. São Paulo, Martins Fontes, p. 85-252.

137
CIDADES Comunidades e Territórios

Foto de Denise Mónaco dos Santos / Condomínio horizontal fechado paulistano.

Condomínios Fechados e Violência quadro geral sobre o assunto. Há uma série de


outros aspectos, mais complexos, a serem
É muito comum relacionar o estabelecimento considerados. A autora aponta para o fato de que
de condomínios fechados, na região metropolitana “estatísticas são construções, e, dependendo de
de São Paulo, com o aumento dos índices de como são desenhadas e os números agregados ou
violência urbana nessa localidade. Supostamente, separados, podem originar diferentes imagens da
os primeiros seriam um reflexo, uma reacção aos ‘realidade social’” (Caldeira, 2000: 115). Basta
segundos. É senso comum transformar o crescente aqui, sublinhar que a crescente busca por
desejo por segurança como única justificativa para habitações em condomínios fechados não encontra
a implantação desses enclaves fortificados, nas respaldo somente no crescimento da violência.
cidades de maneira geral. O aprofundamento a Como se verá, esta é apenas uma parte do discurso
respeito das questões que envolvem este contexto que envolve as estratégias imobiliárias e de
não deve ser superficialmente tratado. Caldeira marketing, mas, com certeza, a mais exacerbada.
(2000) alerta que não basta, apenas, relacionar o Persuade consumidores diariamente, bombardea-
crescimento dos condomínios fechados às dos pela mídia, com relatos sensacionalistas sobre
informações a respeito do aumento geral das taxas crimes violentos, ou mesmo com análises
de crimes violentos, de crimes contra a pessoa e passionais, exageradas, e generalistas, a respeito
contra a propriedade, e associá-las a variáveis da insegurança dos espaços públicos3. A base
socioeconômicas e de urbanização, para se ter um ideológica sobre a qual esses empreendimentos

3
O programa televisivo Globo Repórter de 25 de Janeiro de 2002, da Rede Globo de Televisão, uma importante emissora de TV do Brasil,
aproveitando o clima de comoção nacional depois da morte violenta de uma personalidade pública, abordou o aumento da violência urbana,
mostrando em rede nacional, os últimos lançamentos da arquitetura do medo. Inseguros nos seus carros blindados, e atrás de muros altos com
cercas elétricas, monitorados 24 horas por dia, os paulistanos mais ricos estariam optando por bunkers. Por alguns milhões de reais, empresas
especializadas estariam implantando, nas suas residências, abrigos com poucos metros quadrados, onde supostamente se está protegido contra
ataques com armas de guerra.

138
Ensaios

estão sendo solidamente legitimados, é a do espaço Os materiais promocionais referentes aos


público violento e caótico. Um novo discurso da condomínios fechados variam em qualidade, de
ordem está sendo instaurado, que contrapõe ao acordo com as especificidades dos empreen-
território “inimigo”, habitado por novas classes dimentos. Como não poderia deixar de ser, quanto
sociais supostamente perigosas e pela violência, mais sofisticado o conjunto, mais sofisticado o
um novo modo de morar, os enclaves fortificados. material promocional. Alheia à esta variação está
O que quase nunca fica explícito é que a questão a questão do conteúdo. Os apelos publicitários que
da segurança conta com um aliado à altura para envolvem a venda de moradias em condomínios
alavancar o mercado de condomínios horizontais fechados são sempre os mesmos. Invariavelmente,
fechados – o status. O apelo comercial deste o discurso gira em torno de segurança, lazer,
produto usa, entre outros, o poder de sedução da liberdade, espaço, qualidade de vida, conforto,
exclusividade. Morar em um condomínio fechado distinção, exclusividade, privacidade, e natureza.
confere status social, significa fazer parte do rol A localização privilegiada e facilidade de acesso
dos privilegiados que podem morar isolados e também merecem destaque. As imagens que
protegidos, convivendo com uma vizinhança acompanham as frases de efeito e manchetes dos
homogénea, desfrutando prazerosamente de anúncios publicitários – que utilizam a combinação
equipamentos de lazer e da comodidade de alguns de duas ou mais palavras do restrito conjunto acima
serviços. assinalado, são também repetitivas. As mais
recorrentes são de crianças brincando em áreas
livres, de pessoas andando de bicicleta, de piscinas,
Alguns Aspectos do Discurso de conjunto de casas envoltas a entornos ex-
Publicitário cessivamente permeados por vegetações, e de
imponentes guaritas.
A linguagem publicitária é demasiado rica, Os apelos que vão direccionar as peças
possibilita inúmeras leituras e formas de abor- publicitárias estão expressos também nas logo-
dagens. Anúncios e propagandas podem revelar o marcas, que falam do carácter do empreendimento
conjunto de valores que gravitam em torno do – variam do clássico e nobre ao bucólico des-
universo habitar, muito bem trabalhado pelos contraído ou romântico. Pautadas a partir de um
profissionais a serviço da indústria imobiliária. repertório limitado, ajudam a vender uma série de
Segundo Caldeira (2000: 264), “os anúncios promessas, que na maioria das vezes, não serão
imobiliários constituem uma boa fonte de cumpridas.
informação sobre os estilos de vida e os valores A segurança é uma das palavras mais citadas
das pessoas cujos desejos eles elaboram e ajudam no discurso publicitário que envolve empreen-
a moldar”. É comum neste contexto permeado pela dimentos tipo condomínios fechados. Residências
comunicação subliminar e pela sedução, apelar a enclausuradas, muradas e isoladas, ao contrário do
desejos e fantasias, associar moradia, status social que poderia se supor, não são consequências da
e estilo de vida. insegurança das cidades contemporâneas,
Uma das principais questões que se apresenta acentuada nos últimos anos com o aumento do
na análise das peças publicitárias que divulgam crime violento. Independente de sua real dimensão,
condomínios fechados é a relação entre o discurso Caldeira (2000: 266) ressalta que esta insegurança
e a efectiva materialização do objecto. Se, por um já estava sendo construída há tempo “nas imagens
lado, as informações explícitas na configuração das imobiliárias para justificar um novo tipo de
formal do conjunto edificado devem sempre ser empreendimento urbano e de investimento” e que
relacionadas com a realidade social criada a partir esta prática persiste até o presente. Segundo a
de sua efectiva ocupação, por outro, podem também autora, no caso dos condomínios fechados, são as
ser comparadas com as promessas do discurso necessidades dos empreendedores imobiliários que
publicitário. Estas últimas são importante na se transfiguram num “novo estilo de vida” outro
medida que revelam a carga simbólica que envolve item sublinhado no repertório utilizado pelos
a opção pela escolha de uma modalidade publicitários (Caldeira, 2000:265). O anúncio
habitacional entre outras tantas a disposição no promete: “Tudo foi planejado visando o bem-estar
mercado imobiliário. e a qualidade de vida, com muito espaço, para você

139
CIDADES Comunidades e Territórios

redescobrir o prazer de viver com os pés no chão e antagónica. O isolamento e exclusão que os
desfrutar de um convívio social de alto nível” (Guia primeiros pressupõem parecem garantir a última.
Qual Imóveis, 2000). Esta falsa liberdade – mascarada, fantasiosa e
Os dizeres do anúncio do Condomínio ingénua, remete ao contexto do filme La Vita é
Residencial Newport Morumbi Exclusive publicado Bella 5 de Roberto Benigni, que mostra a
na Folha de São Paulo, em Maio de 2001, “a possibilidade de se criar e viver num mundo de
exclusividade de um condomínio fechado, dentro ilusões e fantasias mesmo dentro de um campo de
de outro condomínio fechado” acentua que, em São concentração. Em The Truman Show 6 , o
Paulo, muros começam a circundar outros muros. protagonista Truman Burbank, também gozava de
O discurso da distinção e exclusão é sobreposto à uma liberdade parecida.
uma prática projectual justificada pela falta de É recorrente que fotografias do local ou de
segurança. Arizaga (1999: 318-319), analisando o alguns elementos de empreendimentos tipo
discurso publicitário que envolve as novas condomínios fechados não sejam utilizadas como
urbanizações “club de campo” dos subúrbios de ilustrações nos materiais de divulgação. Fotos são
Buenos Aires – entre elas os barrios cerrados, preteridas aos desenhos, talvez pelo carácter
indaga a respeito do que é mostrado e do está oculto icônico desses últimos, que permitem indefinições
neste discurso. Pode-se reportar esta análise e devaneios, diferente das primeiras, mais indiciais,
directamente ao contexto brasileiro, sendo válidos ligadas a materialidade do objecto representado,
para a realidade daqui alguns dos aspectos muitas vezes não tão interessante. Os desenhos que
observados para os porteños. A autora observa se mostram os conjuntos de casas, muitas vezes,
não a ausência da palavra segurança directamente utilizam os recursos da perspectiva para mostrar
expressa nestes discurso, a recorrência de determinados ângulos que jamais serão vistos pelos
deslizamentos e substituições do terno, para ocultar usuários nas suas rotinas quotidianas. São imagens
sua carga ideológica negativa. Para expressar tal fantasiosas. Grandes perspectivas dos conjuntos,
ideia recorre-se às associações com os termos com crianças brincando nas ruas quase sempre
liberdade e natureza. Outro aspecto levantado por excessivamente arborizadas, pessoas conversando
Arizaga (1999: 318-319), num primeiro momento, nas portas das casas, pouquíssimos carros
é a não citação no discurso publicitário do estacionados, dia ensolarado, céu azul – estes são
substantivo subúrbio, que denota o espaço onde se os elementos da paisagem que, subliminarmente,
situa tais urbanizações em Buenos Aires, e em divulgam a ideia de bem-estar e qualidade de vida.
muitos casos, também aqui no Brasil. Ao invés dele, Este cenário idílico vem sempre acompanhado de
eufemisticamente, encontra-se outros, como verde, mensagens verbais que exaltam todas as vantagens
campo e natureza, que reforçam uma conotação do “paraíso”.
positiva do espaço. O público alvo de tais É importante destacar que, nestas paisagens,
empreendimentos teria preconceito com esta os skylines são sempre orgânicos. Embora os mapas
denominação, pois historicamente, nas grandes esquemáticos que mostram as localizações dos
cidades sul-americanas, o subúrbio sempre esteve empreendimentos, também sempre presentes nas
associado às moradias das classes pobres. peças publicitárias, indiquem que não se trata de
Certo anúncio que diz “Chego em casa, meus casas em meio a matas e florestas, mas bastante
filhos brincam no parque, a porta está aberta, não urbanas, sempre bem próximas a um grande
há portões, não há trancas, apenas conforto, shoppingcenter, a um supermercado renomado, a
segurança e natureza. Villa Borghese. Meu lar. Doce um bom colégio, e paradoxalmente a parques
lar”4 oculta, deliberadamente, o fato do conjunto urbanos e academias de ginástica “da moda”.
possuir altos muros e guarita de segurança. No Poderia-se supor que estes últimos seriam
universo da publicidade, a associação entre cercas, “serviços” irrelevantes de se ter por perto, pois as
muros, guaritas e liberdade não aparece como actividades às quais estão relacionados seriam

4
Prospecto do empreendimento, Julho de 2000.
5
Filme lançado em 1998, pela Columbia Tristar Pictures.
6
Filme de Peter Weir lançado pela Paramount Pictures em 1998.

140
Ensaios

desenvolvidas nos próprios conjuntos. Se, por um imprecisões e características assinaladas acima,
lado, os próprios profissionais de marketing além de serem menores e com definições muito
parecem reconhecer os limites do objecto que baixas – apresentam poucos dots per inch - dpi.
querem vender, por outro, sabem que precisam tirar Outro aspecto interessante a ser abordado diz
o máximo proveito do possível status da região onde respeito a denominação. Os nomes escolhidos para
os empreendimentos se localizam, das quais se os condomínios horizontais fechados lançados entre
avizinham. 1992 e 2000 na RMSP apresentam alguns aspectos
Outro aspecto importante a se destacar com reveladores. É sabido que no Brasil sempre houve
relação à publicidade desse tipo de empreen- uma certa valorização do que é de fora. Os objectos,
dimento é a ausência das plantas das moradias na as culturas, alguns valores, e também as línguas
grande maioria das peças publicitárias. Desenhos estrangeiras ainda são portadores de um certo
de plantas quase sempre não estão disponíveis para glamour que deixa em desvantagem seus pares
serem analisados mais detalhadamente pelos nativos. A dimensão exacerbada do status que um
potenciais compradores. Raramente estão nome que utiliza pelo menos uma palavra em língua
impressas nos folders ou prospectos que poderiam estrangeira pode dar a um condomínio horizontal
ser levados para casa pelos clientes. Geralmente fechado pode ser traduzida em números. Mais da
são divulgadas apenas em desenhos em grandes metade (55,10%) dos conjuntos analisados na
escalas nos pósteres fixados nas paredes dos pesquisa em que este artigo se baseia utilizam no
estandes de vendas, talvez com o intuito de provocar nome pelo menos uma palavra em língua
no comprador uma sensação de abundância de estrangeira. E também pode ser pensada como uma
espaço nem sempre vinculada à realidade. Além maneira de criar paralelismos entre esses
deste empecilho que dificulta conhecer o empreendimentos e outras formas urbanas e
tamanho dos imóveis, o cliente pode se deparar com modelos de habitação, presentes em localidades
outro. As plantas promocionais, excessivamente distantes no mapa ou no tempo, ou em ambas. Os
coloridas, quase nunca apresentam móveis em nomes sugerem uma miscelânea de referências que
escala compatíveis com o tamanho real dos passeiam entre antigos vilarejos e contemporâneas
ambientes, dos cômodos. O recurso de desvincular private houses, entre modelos mais urbanos ou mais
a escala da moradia com as dos móveis não respeita ligados ao campo. Há, por exemplo, uma indis-
públicos alvos específicos, nem está somente criminada recorrência na utilização dos termos
restrito a estas modalidades de empreendimento, italianos villa e villaggio para esses conjuntos de
é sim, uma prática corrente no mercado imobiliário. casas, embora o primeiro denote literalmente uma
Merece destaque o fato de algumas plantas casa requintada ou mansão de campo, e o segundo
promocionais, de moradias de três dormitórios, uma aldeia ou povoado. Sempre independen-
mostrarem um quarto decorado com cama de casal, temente da localização do referido conjunto no atual
e os outros dois quartos decorados predominan- contexto urbano e da quantidade de habitações que
temente com as cores azul e de cor-de-rosa, abarca. Ainda é muito utilizado o termo village, do
indicando claramente que o imóvel é poten- francês ou inglês, que também significa aldeia ou
cialmente destinado à família nuclear tradicional. povoado. Tais termos podem aparecer associados
Aos pais são destinados os quartos decorados com às palavras condomínio ou residencial, também
cama de casal, e aos filhos, os outros dois, segundo muito utilizadas, assim como a palavra vila. Se mais
o género. O universo do mercado imobiliário faz da metade dos conjuntos aludem a outras terras,
uso, no geral, dos símbolos estereotipados. Aqui, isto não significa que o fazem sempre com coerência
especificamente, o azul indica o quarto de meninos semântica e, muito menos, linguística. Exceptuando
e o rosa, de meninas. exemplos como o Giardino di Milano ou a Ville des
Outra prática também corrente é a de decorar Fleurs, as esquisitices do tipo Ville di Rocha, Village
as moradias abertas a visitação com o maior número Cidade Jardim, Principado de Mônaco Private
de espelhos possíveis e com móveis de tampos de House, Cantareira Park, Condomínio Master da Vila
vidros transparentes, para dar a mesma sensação Nova Conceição, são maioria. Em alguns casos,
dos espaços serem maiores do que realmente são. estrangeirismos se estendem às denominações dos
As plantas e desenhos dos empreendimentos diferentes tipos de unidades habitacionais de um
divulgados pela Internet padecem das mesmas mesmo conjunto. No empreendimento Tamboré 5

141
CIDADES Comunidades e Territórios

Villaggio, cujas casas foram chamadas de Rimini, o carácter de distinção e exclusividade destas
Milão, Nápoli, Siena entre outras, criou-se uma modalidades habitacionais, seus congéneres
inusitada combinação de referências às culturas destinados aos menos abastados dão maior destaque
indígena e italiana. às possibilidades de financiamento para aquisição
Outro dado que não passa despercebido é a da tão sonhada casa própria.
utilização de um repertório de termos comuns ao O destaque dado nas peças publicitárias ao
universo de paisagens naturais. Arizaga (1999: 319) lazer remete à promessa de um quotidiano de férias
observa com propriedade que “en las publicidades permanente. O dia-a-dia, que na grande metrópole
el color que predomina es el verde”. As próprias tende a ser estressante, nestes lugares parede ser
logomarcas mostram a árvore como tema recorrente. puro prazer. É comum a presença de listas onde
Muitos nomes de condomínios horizontais fechados são descritos todos elementos que compõe as áreas
apelam a elementos da natureza, e ao fazê-los, e equipamentos de uso colectivo dos conjuntos. Os
revelam a antiga busca de associação entre campo anúncios sempre procuram dosar aspectos que
e cidade, entre o urbano e o anti-urbano. Parece ressaltam a sociabilidade obrigatória que o uso
que não só os planejadores e urbanistas, mas destes espaços pressupõe com outros que garantam
também os agentes imobiliários estão atentos para privacidade e exclusividade.
este sonho paradoxal. O desejo de viver próximo à
natureza mas não longe da cidade é antigo, de certa
forma quase universal, e ambíguo. É constante a Questões de Sociabilidade
contraposição do binómio natureza/tranquilidade
ao cidade/caos. Na verdade, a ideia de oposição à Alguns agentes imobiliários apostam que o
cidade funciona em meios urbanos altamente sucesso de seus empreendimentos tipo condomínios
agressivos, como o caso de São Paulo. O apelo fechados, está alicerçado na promessa de qualidade
mercadológico dizendo “venha morar no verde, de vida centrada no convívio entre moradores, no
ouça o canto dos passarinhos” funciona em oposição resgate de relações de vizinhança do passado,
a um quotidiano estressado, pesado. Embora, como perdidas em função do aumento vertiginoso das
já foi dito, a proximidade com algumas vias e cidades e da própria violência urbana. Embora
equipamentos paulistanos é exaltada indiscri- ainda não pesquisado exaustivamente em âmbito
minadamente na publicidade tanto dos condomí- académico, é sabido que estas ilhas metropolitanas
nios implantados na malha urbana, como naqueles não primam por estabelecer em seu interior
localizados nos arredores mais “verdes” dos privilegiadas relações de vizinhança e convivência.
municípios da região metropolitana. Mas os O fato de se usar alguns espaços ou equi-
primeiros, quase nunca, desfrutam, como se procura pamentos em comum, ou de se ter simplesmente
destacar, de uma abundante área verde. Os uma maior proximidade com vizinhos, num clima
anúncios publicitários muitas vezes acentuam a de protecção, não garante relações harmónicas,
presença de uma quantidade inexistente de de amizade e companheirismo entre as pessoas.
vegetação, através das imagens, e também A sociabilidade num condomínio fechado não é
acentuam isso através do nome e logomarca, únicos garantida pelo simples fato de se estar entre pares,
espaços onde o desejo de proximidade com alguns num ambiente protegido pela homogeneidade de
elementos da natureza é encontrado. condições sociais. Alguns estudos apontam que
É importante também destacar que a adoção muitos dos moradores dos condomínios fechados
de nomes que conotam exclusividade – The não conhecem seus vizinhos, ou possuem relações
Buckinghan Private Houses, Vila Nobre de com eles resumidas apenas aos diários “bom-dia”
Bragança, entre outros tantos, esconde por trás uma e “boa-noite”. Pode ser que, em alguns casos, as
seriação de moradias (Arizaga, 1999: 320). Mesmo crianças convivam mais entre si, e as babás tenham
que sejam poucas unidades, com diferentes tempo para se tornar amigas, pois os playgrounds
fachadas, e ainda produzidas quase artesanalmente, parecem ser os únicos lugares assiduamente
o fato de que as casas são quase sempre iguais às frequentados.
dos vizinhos nunca é lembrado. O simples fato de ser ter, como característica
Se algumas peças publicitárias dos conjuntos do homem contemporâneo, a exacerbada tendência
destinados a um público mais privilegiado acentua a individualização, faz com que seja, no mínimo,

142
Ensaios

incoerente pensar em desejos de uma vida mais Vizinhança seleccionada, tranquilidade


comunitária. Cada vez mais, nos dias de hoje, proporcionada pela proximidade com áreas verdes,
parece impossível demarcar, sem conflitos e segurança – estes conceitos de bem-morar tornam-
constrangimentos, a linha ténue que marca os -se, cada vez mais, símbolos que destoam da
limites entre sociabilidade e invasão de realidade vivenciada pelos moradores no seu dia-
privacidade. Não é de se estranhar que alguns -a-dia. No caso do uso dos espaços comuns e a
conflitos podem surgir quando se é forçado à sociabilidade a qual está relacionado, muitas vezes,
convivência diária e muito próxima com vizinhos e ele se ancora mais nas regras e restrições dos
funcionários. Morar em condomínio fechado não estatutos dos condomínios do que na espon-
isenta ninguém de alguns incómodos também taneidade e no desejo de uma feliz convivência.
presentes em qualquer outra forma de habitar em Parece que os espaços colectivos dos
colectividade. Os barulhos podem se tornar condomínios fechados tendem a ser, tanto quanto
problema, o desrespeito com o património colectivo os espaços públicos das cidades, cada vez mais,
também. Romero (1997:112) destaca: “podemos museificados. Deixam de ser palco onde se
verificar que de uma forma geral sempre estabelece a relação entre os homens para apenas
prevalecem as relações superficiais e informais representar a ideia de que esta relação seria
entre cada morador, nessas áreas (...) o que se possível, sem, no entanto, concretizar-se.
desenvolveu foi uma sociedade de famílias
orientadas para uma vida egocêntrica e encerradas
em si mesmas. As preocupações mais constantes Modelos Habitacionais
se resumem em problemas de ordem secundária e
internas ao grupo familiar...”7. A pesquisa na qual este artigo se baseia
Muitas vezes, a exiguidade dos espaços das mostra que novas configurações urbanas, nascidas
moradias força o uso dos espaços colectivos dos de intervenções privadas, reflectem adaptações a
conjuntos. É aí que entram os apelos à vida em novos modos de vida da sociedade contemporânea,
comunidade, as visões idealizadas da convivência sejam elas boas ou más, enquanto as habitações a
harmoniosa, da ajuda mútua entre os vizinhos, das elas relacionadas ainda estão presas às tradições
festas de confraternização. espaciais que remetem ao século XIX. Se, por um
Nos conjuntos em que predomina a homo- lado, os muros altos que envolvem os conjuntos de
geneidade, aparecem as contradições. Entre a moradias demonstram uma adaptação às novas
promessa de vida harmoniosa, em comunidade, configurações de vida deste princípio de milénio,
surgem as tensões e problemas de transgressões. por outro, soleira adentro, tudo parece permanecer
É constante a divulgação pela imprensa dos graves estanque. Na maioria das habitações analisadas,
problemas de conduta dos adolescentes que pertencentes a condomínios horizontais fechados,
crescem dentro do que comumente é conhecido percebe-se uma reprodução da moradia convencio-
como condomínio fechado. Algumas vezes, certos nal burguesa e os pressupostos de determinadas
comportamentos dos adolescentes que moram em maneiras de morar relacionadas a ela. Não foi
conjuntos murados não são muito diferentes de observada, neste caso, a valorização, no mais amplo
alguns frequentemente atribuídos apenas àqueles sentido, de novos modelos habitacionais. Os
que moram nas favelas vizinhas. Também se reúnem conceitos de privacidade, de intimidade, concre-
em gangs, roubam e assaltam seus vizinhos, não tizados e institucionalizados primeiramente nos
para comer, mas para adquirir drogas ou por simples espaços das moradias europeias do século XIX, e
falta de discernimento de limites éticos8. depois exportados aos países dos outros continentes,

7
Sobre a sociabilidade, é importante acrescentar que a situação brasileira difere das Gated Communities norte-americanas, em que a vida
comunitária é uma das principais razões pelas quais são escolhidas como local de residência. No caso dos condomínios fechados brasileiros, os
pontos em comum que interligam os moradores seriam, essencialmente, a localização em uma mesma faixa de renda e o desejo de maior
segurança, o que não conforma laços sólidos de cumplicidade ou de cooperação.
8
Outro fato, pouco divulgado, mas comentado entre os moradores mais antigos de alguns destes conjuntos, põe em jogo a suposta homogeneidade
social intramuros e revela que não mais só os cidadãos acima de qualquer suspeita escolhem esses lugares para morar. Parece que muitos ricos
ilícitos – chefes de quadrilhas de roubos especializados, bicheiros, entre outros, também procuram por segurança e vão se “esconder” nestes
conjuntos.

143
CIDADES Comunidades e Territórios

Foto de Denise Mónaco dos Santos / Condomínio Greenland – Campo Limpo, São Paulo.

inclusive ao Brasil, sob forma de divisões espaciais Universo Multidisciplinar


em cómodos, organizados em áreas social, íntima e
de serviços, ainda constituem o eixo central do O estudo de condomínios fechados envolve
raciocínio projectual. Verificou-se que algumas das uma ampla abordagem multidisciplinar. Várias
mudanças decorrentes dos novos modos de vida que questões dizem respeito à articulação entre a im-
já começam a despontar na sociedade contem- plantação desses conjuntos e o âmbito geral da
porânea, como o trabalho-em-casa, o acúmulo de construção dos espaços da cidade. Também vários
equipamentos eletro-eletrónicos, o desaparecimento registros teóricos e conceituais podem dimensionar
da empregada doméstica, e as possíveis alterações o olhar na construção da problemática que abarca
relativas às novas composições familiares, que se a discussão e a reflexão crítica a respeito desta nova
contrapõem à tradicional família nuclear, ainda não modalidade habitacional, que se disseminam rapi-
encontraram seu lugar efectivo nas casas dos damente no âmbito das cidades latino-americanas.
condomínios horizontais fechados. Quando Aqui, cabe apenas sublinhar a importância deste
aparecem, são ainda esboços a partir de algumas universo teórico, contexto sobre o qual deve ser
matrizes convencionais. Pesquisas do Nomads.usp entendido e lido o fenómeno da implantação dos
apontam que a generalização destas afirmações com condomínios fechados e seus congéneres.
relação aos apartamentos de conjuntos fechados são A relevância do questionamento desses
também pertinentes. Configurar os espaços a partir condomínios e de outras modalidades de
de conceitos, ainda que antigos, como planta livre assentamentos similares, como os loteamentos
e sobreposição de funções, ou ainda pensar o fechados periféricos, nas atuais discussões sobre
agenciamento de espaços mínimos e efectivamente as cidades remetem directamente à questão dessas
flexíveis são procedimentos de projecto raros nestas modalidades como desqualificadoras dos espaços
habitações. Optar por um, entre dois usos que se públicos, como criadoras de universos nos quais
pode fazer de um determinado cómodo, não é a predominam a esfera privada. Da implantação
flexibilidade que se espera para os espaços dessas novas formas espaciais na cidade deriva um
habitacionais do século XXI. padrão de assentamento urbano, de certa forma

144
Ensaios

destinado a alguns privilegiados, que acentua As estratégias de marketing aplicadas a


disparidades sociais tão presentes na sociedade empreendimentos imobiliários tipo condomínios
actual, ressaltando um processo de negação da fechados, que ampliam o sentimento de inse-
esfera pública, e sua diversidade. A problemática gurança, de certa forma, reafirmados pelas altas
aí inscrita é discutida, contemporaneamente, por taxas de violência urbana, vão de encontro à dura
disciplinas como a sociologia e principalmente a realidade do descaso com o espaço público e com
filosofia política, que revelam a importância das a qualidade de vida nos centros urbanos.
esferas públicas e das esferas privadas e suas Apresentam estes conjuntos como soluções
delimitações como constituintes históricas de imediatas a tais problemas, mas, segundo Caldeira
concepções de mundo, de universos sociais e (1996), “o abandono do espaço público e a
políticos específicos. Baseados na crença de que o proliferação de espaços fortificados privados para
espaço urbano sempre foi o locus do desen- uso colectivo também não resolvem a questão da
volvimento da acção colectiva, onde se estabelece violência, além de aprofundarem alguns de seus
a noção de bem comum, onde se configura a esfera aspectos. Qualquer um que já tenha tentado entrar
pública, onde liberdade e igualdade são cons- a pé num condomínio fechado ou que já tenha
titutivas, pode-se dizer que há uma crise urbana, e assistido ao humilhante ritual de revista a que
que os muros contemporâneos são um reflexo dessa empregados têm de se submeter diariamente nas
crise. suas portarias não terá dúvidas de que ‘medidas
Pensar os condomínios fechados, murados, de segurança’ são na verdade medidas de controle
como “‘feudos’ e ‘cidadelas’ em que os ricos se e exclusão social”. Como já foi dito, o fato de se
escondem do resto da sociedade” (Marcuse, 1998), ter uma casa atrás de muros altos, e em certos casos,
remete a questões que ultrapassam os limites dos monitorada constantemente por sistemas sofisti-
espaços públicos e privados enquanto espaços cados de segurança, não garante que se está
físicos concretos e definidos pela dinâmica do protegido contra a violência. “A privatização da
mercado e do poder público, aliada às intervenções segurança não é uma alternativa à segurança
de especialistas como arquitectos e urbanistas. pública deficiente e, portanto também não é
Partindo do pressuposto que o espaço urbano se remédio para a violência. Ela pode oferecer aos
configura no contexto acima descrito, pode pen- que podem pagar por ela a ilusão de protecção,
sar-se que os condomínios fechados são espaços mas, se chega a tocar no quadro mais geral
não-públicos, anti-urbanos, porque funcionam da criminalidade violenta, é para aguçar alguns
como uma extensão, por excelência, dos espaços de seus problemas. Num país com o grau de
privados, que se constituem avessos às possi- desigualdade social como o Brasil, a difusão
bilidades de acção e à experiência pública. da segurança privada tente a ser mais um sistema
Isolados, restritos a poucos privilegiados, excluem perverso de aprofundamento dessa desigualdade.”
e privam. O espaço urbano aparece, neste contexto, (Caldeira, 1996).
sempre como perigoso, caótico, impessoal, doentio, Os condomínios fechados, como modalidade
cinza; espaço a ser evitado e do qual tem de se habitacional, estão ligados a uma ideia precisa de
isolar. “Enuncia-se um novo modelo de cidade: cidade, de mundo, a uma forma social. O sentido
fragmentado e segregado, onde a rua passa a ser a da cidade que se desenha a partir dos condomínios,
via expressa e surge uma nova figura urbana e o modelo de cidade que pressupõem está associado
arquitectónica que faz a intermediação entre os à própria negação da cidade, ao anti-urbano, ao
espaços público e privado, o pórtico de entra- distanciamento da esfera pública, do cuidado com
da.”(Oliveira, 2000) o bem comum. É um modelo formal alicerçado num
As promessas da modernidade estão sendo ideal de vida privatização, reduzido a subjecti-
cada vez mais postas em xeque, e a cidade palco vidades. Neste sentido, gera tensões, porque são
de relações privilegiadas de troca, apresenta novas transformações nas esferas públicas que definem
cenas. Frúguli Júnior (1995: 174) destaca que a novos padrões de segregação espacial na cidade.
expansão de implantação de complexos Caldeira (1996) alerta para o fato de que “não é o
empresariais, hipermercados, shopping centers, abandono da esfera pública, mas a sua apropriação
condomínios e bairros fechados trouxeram pelos cidadãos de todas as classes sociais, que
significativas mudanças para as cidades: são permite criar uma melhor qualidade de vida e
espaços destinados a alguns privilegiados que controlar a violência. Não é a sofisticação das
convivem com áreas empobrecidas acentuando as barreiras (físicas, sociais e simbólicas), mas a sua
disparidades sociais e remodelando espaços e derrubada que permite criar um espaço social mais
relações entre grupos sociais. seguro e fazer frente ao medo.”

145
CIDADES Comunidades e Territórios

Sennet (1988) em O declínio do homem Bem (1992), que analisou-a num condomínio
público, acentua, entre outras, a própria dilatação fechado em Curitiba, relata que “a existência do
das questões privadas realizada pela psicologização muro que serve para demarcar o espaço do condo-
da vida, que de certa forma, está também ligada ao mínio, bem como a ausência de muros entre as
fenómeno condomínios fechados. Segundo o autor, casas, no interior do condomínio, não são factores
o “eu” dotou-se de um fardo de subjectividade, a suficientes para criar uma convivência diferente
psique adquiriu vida própria, numa existência da que existe externamente a esse espaço.
encarcerada na sua própria auto-compreensão, que A privacidade é um valor que corresponde a um
constitui um fim em si mesmo. Com esta imaginação padrão de convivência da sociedade moderna, e
psicológica da vida, nada existe se não em função que se impõe, haja muros ou não. Assim, onde o
da psique; a intimidade redimensionou o domínio muro não existe materialmente, ele é admitido
privado redimensionando, ao mesmo tempo, o idealmente”.
domínio público, que contra esta imposição do Adoptados como símbolos de qualidade de
íntimo se esvazia e perde forças. “A intimidade é vida, os condomínios fechados também são
uma tentativa de se resolver o problema público valorizados porque retomam, por um lado, um certo
negando que o problema público exista.”(Sennet, desejo de proximidade com a natureza, como
1988: 44) A experiência e a acção se desligam das resgate de paraíso perdido, e por outro, o ideal da
dimensões sociais e se desmaterializam, viram casa isolada que, se possível, é configurada de
critério por si mesmas, não referenciando-se em forma alheia a qualquer tipo de espaço
mais nada, comprometendo a percepção do mundo colectivizado. No interior de certos conjuntos é
e esvaziando os critérios de avaliação e a ideia de comum deparar-se com casas cujas fachadas
bem comum. Esta exacerbada introjecção do eu remetem a tipologias habitacionais vernaculares e
impede as relações, é condição de vida, mas historicamente demarcadas. Um certo conserva-
condição de vida narcísica, e altera os critérios de dorismo estilístico parece também ser sinónimo de
realidade, mercantilizando-os. Para o referido autor, qualidade de vida. Muitas vezes, o desenho do
a sociedade moderna contemporânea é a da conjunto e habitações parece pressupor não só um
intimização, onde o espaço público está morto ou retorno ao campo, mas uma volta ao passado – é
subordinado aos direitos do indivíduo, revelando
certo que um passado difícil de identificar, que mais
como a geografia dos espaços públicos e privados
revela uma certa inabilidade em lidar com o
se entrelaçam e perdem seus limites. Sennet (1988:
presente. Esta pretendida dissociação da realidade
18) diz: “Como resultado, originou-se uma confusão
actual possivelmente só se interrompe quando se
entre vida pública e vida íntima: as pessoas tratam
atravessa bruscamente as guaritas. “O ideal do
em termos de sentimentos pessoais os assuntos
públicos, que somente poderiam ser adequada- morar antigo é construído, portanto por imagens,
mente tratados por meio de códigos de significação mas moldado aos limites dos males da sociedade
impessoal.” contemporânea.” (Loureiro, Amorim, 2000).
Como foi visto, a grande importância que hoje Versões tropicais de Seaside e Celebration9
se dá aos estados emocionais subjectivos está são encontrados em São Paulo, Florianópolis, Belo
presente nos apelos publicitários usados para Horizonte, também em Belém, Manaus e outras
persuadir as pessoas a comprarem uma moradia grandes cidades brasileiras. Respeitados os limites
em um conjunto fechado. Nos espaços intramuros, que os diferenciam, paira sobre estes conjuntos de
exclusividade, privacidade e intimidade estariam casas a homogeneidade social e de códigos de
supostamente asseguradas. Neste caso, o casamento comportamento, uma certa elitização e intolerância
entre o marketing e o apelo intimista exacerbado, à diversidade, e, mais do que isso, a denúncia da
característico do mundo contemporâneo, acaba falência de um determinado modelo de cidade. Seus
determinando, mesmo que minimamente, a espaços mostram uma necessidade quase extrema
configuração espacial da cidade. Mesmo a de definição exacta e precisa do que seja de domínio
sociabilidade entre as pessoas, considerada uma público e o que seja de domínio privado. Parece
das possíveis vantagens de se morar em um que, nestes casos, fronteiras permeáveis não fazem
condomínio fechado, nada difere da convencional. parte dos modos de vida contemporâneos.

9
Estas duas localidades são experiências ligadas ao movimento norte-americano que é genericamente conhecido como New Urbanism, são
empreendimentos lançados, respectivamente, nas décadas de 1980 e 1990, e símbolos da busca de criação de novas comunidades, cujo
discurso central está pautado na qualidade de vida, mas que, segundo alguns de seus críticos, se transformaram em mais um modelo e inspiração
para condomínios fechados. Ver, a respeito das comunidades fechadas norte-americanas, LUYMES. D. The fortification of suburbia: investigating
the rise of enclave communities. Landscape and Urban Planning. V. 39, p. 187-203, 1997.

146
Ensaios

Referências Bibliográficas

ARIZAGA, M. C.,1999, La fortificación del espacio como GUERRAND, R. H., 1992, Espaços privados. In: VVAA,
problemática del habitar. In: GIORDANO, L.; D’ANGELI, L. História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira
(edit.), El habitar: una orientación para la investigación Guerra, organizado por Perrot, M., vol. 4, São Paulo,
proyectual. Buenos Aires, FADU – UBA. Companhia das Letras.

BEM, C. M. P. De, 1992, Casas, casebres e condomínios: GUIA QUAL IMÓVEL , 2000, São Paulo, Guias do Brasil
segregação espacial e relações sociais nas formas de ocupação Ltda / Primedia/HPC / Abril, Maio - Ago.
de São Braz, um bairro de Curitiba. Dissertação de Mestrado.
Faculdade de Arquitectura e Urbanismo, Universidade de São HOMEM, M. C. N., 1996, O Palacete Paulistano e outras
Paulo, São Paulo. formas urbanas de morar da elite cafeeira: 1887-1918. São
Paulo, Martins Fontes.
CALDEIRA, T. P. do R., 1992, City of Walls: crime,
segregation, and citizenship in São Paulo. Dissertation for the LUYMES. D.,1997, The fortification of suburbia: investigating
degree of Doctor of Philosophy in Anthropology in the the rise of enclave communities. Landscape and Urban
Graduate Division of the Univesity of California at Berkeley. Planning. V. 39, p. 187-203.

CALDEIRA, T. P. do R., 2000, Cidade de muros. Crime, MARCUSE, P., 1998, Urbanista se assusta com ‘feudos’ de
segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/ SP., Folha de São Paulo, São Paulo, 7, Caderno Cotidiano,
/Edusp. p. C6.

CALDEIRA, T. P. do R.,1996, A cidade fortificada, Folha de OLIVEIRA, L. A. De, 2000, Condomínio. Uma forma
São Paulo, São Paulo, 22 set. 1996. Folha on line. http:// urbanística que dá às costas a cidade, in CONGRESSO
www.folha.com.br IBEROAMERICANO DE URBANISMO, 9, 2000, Recife,
Anais IX Congresso Iberoamericano de Urbanismo. Recife,
FOLHA DE SÃO PAULO, 2001, Folha de São Paulo, São UFPe.
Paulo, 05 Mai. 2001. Caderno Imóveis.
ROMERO. A. M., 1997, Alphaville: ilusão do paraíso.
FRÚGOLI JÚNIOR, H., 1995, São Paulo: espaços públicos e Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e
interação social. São Paulo, Marco Zero. Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

147

Vous aimerez peut-être aussi