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Ildiko, sobrinha do Rei Gauri, sempre soube que seu valor para a
família real era uma união estratégica. Resignada com seu destino, se
horroriza ao saber que o noivo não é apenas um aristocrata estrangeiro,
mas o príncipe mais jovem de um povoado pouco familiar e nem
humano. Unindo seu destino com seu marido, Ildiko deixará para trás
tudo o que conhece para abraçar um homem envolto em escuridão,
mas com uma alma forjada pela luz.
O pensamento passou por sua mente. A saliva inundou sua boca quando
náusea subiu por seu estomago e ameaçava chegar à garganta. Ildiko fechou os
olhos e balançou sobre seus pés no banco que estava. Uma mão segurou sua
perna para estabilizá-la e abriu os olhos para olhar a costureira real.
Um fio de suor frio deslizou por suas costas sob o tecido. Como sua
mulher, teria que dormir com ele. Ninguém ouviu falar de filhos nascidos vivos
de um Kai e uma companheira humana, mas isto não importava. Um casamento
consumado funcionava como o selo de sangue em um contrato, ainda que ela
nunca lhe desse filhos. Se Sangur, O Manco não acreditasse que poderia ofender
sua futura família política, ele insistiria em um contingente de testemunhas na
câmara nupcial para verificar a consumação e assegurar que a aliança forjada
pelo casamento fosse completa. No entanto, os Kai não eram humanos, sua
cultura era diferente e em sua maioria desconhecidos aos que estavam além das
fronteiras. Ildiko agradecia seu mistério, o que impediu tal humilhação pública.
A costureira real puxou umas quantas vezes mais em seu vestido, deu
algumas ordens a suas costureiras assistentes para recolher os alfinetes, fios e
agulhas. Ela ajudou Ildiko a descer do banco. — Venha ao espelho e veja, minha
senhora. Está linda.
O vestido era uma criação magistral de seda bordada com bronze que
abraçava seus seios, quadris e coxas antes de fluir para fora como uma saia e
uma cauda. O tecido seguia uma linha nos ombros, mas deixava seu pescoço ao
descoberto, as mangas largas terminaram em pontos além das mãos. Seu cabelo
estava penteado em um estilo complexo de tranças juntas e fixadas por
prendedores com pedras preciosas. Usava joias de uma mulher de alta sociedade
e uma grande riqueza.
Ela franziu o cenho ante a imagem. — Que desperdício.
Ela pediu uma hora de privacidade antes de ter que se apresentar na corte
e enviou o grupo de costureiras e criadas para fora do quarto. O cheiro das flores
da primavera dos jardins se filtrava pela janela aberta do quarto, atraindo-a.
Ildiko se sentiria falta de muito pouca coisa quando fosse embora com seu
novo esposo. Ela era a sobrinha do Rei, uma criança órfã de sua irmã mais nova.
Seu lugar na família assegurava uma casa senhorial, refeições frequentes e roupa
fina. Não assegurava nada mais e não havia amor entre ela e seus parentes vivos.
Este casamento não poderia lhe oferecer nada diferente, salvo uma mudança em
seu lugar na hierarquia dos Tribunais. Ao se casar com o príncipe, se converteria
em duquesa, uma hercegesé Kai.
A janela dava a uma vista panorâmica dos jardins com grama verde
ondulada, monumentos fantasiosos e as bordas coloridas das flores. Ela se
perderia nos jardins. Foram seu santuário ao longo dos anos, uma escapatória
da perseguição de seus primos e um meio para aliviar sua solidão.
Se a família real Kai tivesse jardins, Ildiko suspeitava que não eram nada
como estes. Imaginou todo tipo de estranhas e macabras plantas contorcidas à
medida que cresciam fora do chão sob a exótica luz da lua e florescendo com
flores ameaçadoras com dentes que ocultavam em suas pétalas. Ninguém
poderia caminhar entre elas sem armadura. Estremeceu.
2. Planta medicinal que surge na primavera e precisa de sombra para se desenvolver e produz flores de diversas cores, desde
vermelho a azul.
contanto o tesouro que trouxeram como presentes para a noiva. Ildiko podia
admirar as centenas de rosas em grupos e linhas solitárias.
Ou era isto o que pensava. Deu a volta em um canto e parou. Uma figura
envolta em um capuz negro, permanecia imóvel junto a uma densa roseira
espinhosa cor de sangue. Virou-se ante o som dos passos de Ildiko. Ela respirou
fundo. Um par de olhos de cor rósea, sem pupilas ou íris, o olhar profundamente
nas sombras das dedaleiras. Uma mão fina de pele cinza como de um cadáver e
com unhas escuras, levantou-se em sinal de saudação silencioso. Ildiko se
equilibrou nas pontas dos pés, a ponto de fugir. Se ela não soubesse melhor,
acreditaria que tropeçou com um demônio no meio das rosas. Ele não era um
demônio apesar da aparência – era um dos Kai. E seria uma grosseria ela sair
correndo de um futuro parente por casamento.
Capitulo Dois
Graças aos deuses que usava um capuz para esconder sua expressão, do
contrário, inadvertidamente poderia insultar sua companheira não desejada. Era
jovem, muito mais do que poderia esperar. Para um ser humano Gauri ela
poderia ser bela ou banal, no qual ela se encaixava. Seu lábio superior se curvou
com desgosto ante a visão de sua pele. Pálida com matizes rosa, lhe lembrava a
carne de um molusco amargo Kai, fervido para ser usado de corante. Tinha o
cabelo vermelho à luz do sol e tão diferente em comparação com as mulheres
Kai com seus cabelos prateados.
Seus olhos era o mais incomodava. Diferente dos Kai, os seus eram de um
branco opaco, com azul no centro em forma de esfera com alguns pontos cinza
e negro que se ampliava ou reduzia de acordo com a luz. A primeira vez que
presenciou esta reação em um ser humano, todos os pelos de sua nuca se
arrepiaram. Isto e a forma como as cores contrastavam faziam com que fosse
fácil ver os olhos se movendo nas órbitas, dando a impressão de não fazerem
parte do corpo, mas como se fossem entidades que viviam como parasitas
dentro dos crânios de seus anfitriões.
Ela lhe perguntar o que achava da armadura de Sangur, poderia ser mais
eloquente. Encolheu os ombros. — Há plantas, flores e árvores. — Parou e lhe
ofereceu um sorriso, o qual não podia ver dentro de seu capuz. — E muito sol.
Ela lhe indicou que a seguisse. Hesitou antes de dar um passo de lado, até
que o levou a um banco de concreto sob as sombras de uma árvore grossa.
Sentou-se e indicou que ele fizesse o mesmo. Foi a vez de Brishen se
sobressaltar. Durante seu curto período de tempo em Pricid, seus anfitriões
Gauri foram civis, serviçais e quase servilmente educados. Nunca forma
amáveis. Tanto afeto nesta mulher o surpreendeu. Sentou-se, agradecido pelo
alivio do brilhante do verão.
Ela se virou para ele, seu olhar parasita observando cada parte dele, dos
pés calçados com botas até as mãos apoiadas nos joelhos e depois para os olhos
que brilhavam na sombra do capuz. — A luz do sol realmente incomoda seus
olhos?
Ele piscou. Esperava que lhe perguntasse seu nome e oferecesse o seu. Ele
gostou que ela não o fizesse. Este breve anonimato oferecia um certo descanso
da formalidade. Era um príncipe de sangue e a Gauri de pés leves com certeza
era da realeza. — Somos um povo da noite. Enxergamos melhor na escuridão.
A lua é o sol para nós, vivemos longe da luz.
Brishen riu. — Uma garantia de que nenhum outro Kai está por perto.
A forma como disse casamento – da mesma forma como alguém diz execução
ou sessão de tortura – o fez querer rir. Não tinha nenhuma dúvida de que
pronunciou a mesma palavra com o mesmo tom recentemente.
Era um desafio a considerar isto sem piscar, mas gostou muito de seu
humor irônico. Até agora, se preguntou se a maioria dos Gauri apenas eram
capazes de falar em frases monossilábicas. Seus parentes que chegaram antes
dele, também tinham poucas boas a dizer sobre eles, encontraram falhas em
tudo, desde sua forma de se vestir à suas preferências alimentares. Brishen não
tinha expectativas sobre sua noiva, mas esperava que pudesse possuir um pouco
da atitude agradável que está mulher exibia.
Soltou um suspiro exagerado. — Um assunto tedioso de Estado que ainda
tenho que assistir. Gauri e Kai se perguntando quem iria comer ao outro
primeiro.
Brishen bufou. — É verdade, mas você pode ter certeza que não achamos
os seres humanos particularmente atraentes como uma refeição.
— Bem, é bom saber. Tenho certeza que temos um sabor ruim. — Ela
abaixou o olhar e alisou a seda ricamente bordada do vestido sobre os joelhos.
Brishen jurava ter ouvido um sussurro verdadeiro de sarcasmo.
Ela levantou o olhar mais uma vez. Ele se moveu. Gostava de alguns
espinhos, mas aquele olhar direto o desconcertava. Não invejava o lugar de seu
irmão mais velho como herdeiro do trono, entendia seu dever para com o reino
e nunca se incomodou em ser mais que um peão nas maquinações sem fim entre
os impérios. Assumia que futura esposa também não tivesse muita escolha. Era
uma obrigação por suas posições.
Ele gostou de sua risada, uma gargalhada gutural como se sentisse uma
alegria secreta adicionada ao momento. Apoiou o cotovelo no encosto do banco
e a bochecha na palma da mão, em uma pose da naturalidade. — Tenho certeza
que sua mãe chamou sua atenção uma ou duas vezes, mas ela se esforça para ser
agradável.
Outra gargalhada saiu com suas palavras. Brishen ficou aliviado por não
ter recebido isto como um insulto. Nem sequer sabia seu nome, mas gostava
assim e não queria magoá-la. Não tinha a intenção de enfrentar seus parentes
ofendidos por causa de sua resposta.
Brishen inclinou-se para trás e riu. Quando parou, limpou as lágrimas dos
olhos e a mulher o olhava com um sorriso nos lábios. Limpou a garganta. —
Não se isto é por causa da minha aparência ou sua inclinação para a violência.
Brishen também se levantou e segurou sua mão, surpreso com seu calor
quando esperava uma carne fria e flácida. Ela não tentou se soltar enquanto ele
levava seus dedos para os lábios e os beijava. — Gostei de nosso encontro
casual, senhora. — Soltou-a e se inclinou.
Fez uma breve reverencia e sorriu uma última vez. — Eu também, senhor.
Diminuiu minhas preocupações. Nos encontraremos novamente. — Ela deu a
volta e correu até as vozes que se aproximavam.
Ele poderia vê-la no casamento, mas não havia nenhuma possibilidade de
uma segunda conversa. Brishen a chamou. — Qual seu nome?
Brishen contemplou o caminho que tomou, sua figura já não era visível.
Sem dúvida, não poderia ser coincidência. Sua Gauri se chamava Ildiko.
Capítulo Três
Ildiko apertou a mandíbula com tanta força que sua cabeça doeu. Sua tia
repetiu este mesmo discurso várias vezes e Ildiko poderia recitá-los dormindo.
Se falasse mais uma vez, Fantine iria mastigar as constas da roupa de Ildiko.
Uma mão cinza com unhas afiadas caiu sobre o ombro do pajem. O
homem gritou e saltou de lado, deixando espaço para uma figura com capuz na
porta de entrada. A Rainha e os assistentes ficaram sem folego ao mesmo tempo.
Todos menos Fantine fizeram reverencia quando o príncipe Kai se inclinou
respeitosamente ante ela.
Ildiko deslizou um olhar surpreso para sua tia. Fantine não apenas dizia
ao príncipe Kai para sair, mas o repreendia. Ela poderia aconselhar sua sobrinha
sobre seu dever e a importância desta aliança, mas não era hipócrita. Ela também
não a colocaria em perigo sendo indulgente com o pedido do príncipe Kai.
Ela saiu da sala com um gesto incomodo. A última criada da fila se virou
e lançou a Ildiko um olhar de lástima, fechando a porta atrás de si.
Assim que se foram, o rosto de Ildiko se iluminou com um sorriso. — É
você. — Não se incomodou em esconder o alivio em sua voz.
O príncipe diminuiu a distância entre eles e jogou para trás seu capuz, os
olhos brilharam sob a luz da lâmpada amarela, suas feições fortes em tons cinza
e um sorriso com dentes afiados que a fez apertar os joelhos contra o impulso
de se afastar dele. Ele segurou sua mão. Ildiko não hesitou e colocou a palma da
mão na dele, ainda surpresa pelo calor inesperado de sua pele. Se fechasse os
olhos, poderia imaginar facilmente seu tato como um pretendente Gauri. Ele
roçou os lábios levemente nos seus dedos pela segunda vez e a soltou.
— Está decepcionada? — Seu olhar não revelava nada que fosse além de
um movimento leve quando um raio de sol atravessou a janela e atingiu seu
perfil.
Ildiko inclinou a cabeça para o lado. — Sabia que era eu quando tomou a
decisão de vir aqui, verdade? Como?
Ela piscou, saindo de seu estupor com sua resposta e esquecendo por
completo a conversa. — Dirá o que?
Tinha os lábios finos, uma queda natural, enfatizada por linhas diagonais
de ambos os lados da boca. Dava-lhe um aspecto sombrio, exceto quando sorria,
como agora. — Sobre os Kai. Se quiser saber mais, eu te direi. Muito melhor do
que qualquer livro Gauri com histórias errôneas sobre nós.
Uma onda de alivio caiu sobre ela, junto com a chama da esperança. Seu
esposo não era Gauri, nem sequer era humano. Era, no entanto, agradável e
amável. Ela achava seu aspecto espantoso e sua honestidade bonita. Ildiko
continuava pensando da mesma forma. Ela poderia estar em uma situação muito
pior. Mais de umas poucas mulheres Gauri tiveram a infelicidade de se casar
com homens de rosto bonito e almas demoníacas.
A risada de Brishen fez eco por toda sala antes dele parar e se conformar
com um amplo sorriso de olhos luminosos brilhantes. — Disseram-me algo
similar, apenas que devemos consumar o casamento ao meio-dia, quando estou
praticamente cego.
Ildiko abafou sua própria risada atrás de sua mão. — Que a deusa alada
Bursina nos salve de tantos conselhos uteis.
Esta era uma pergunta que Ildiko pensou nunca ouvir em sua vida.
Ninguém lhe perguntava o que queria, apenas diziam o que deveria fazer ou
falar. Por um momento ficou sem fala. Esperou paciente enquanto recolhia seus
pensamentos. — Posso ser honesta, Alteza?
3
Nascido durante a tempestade.
combinava com ele. Ildiko suspeitava que sua natureza fácil era envolvida por
um caráter tão forte como o aço no crisol4.
Ele inclinou a cabeça e outro leve sorriso curvou sua boca. — Acredite
quando digo que sou eu quem deve agradecer.
Ildiko lhe devolveu o sorriso e logo seguiu seu olhar para além de seu
ombro e ficou ali. Deu a volta e viu o espelho de corpo inteiro nos últimos raios
do sol da tarde. Brishen parou a seu lado e os dois ficaram olhando seus reflexos
4. Recipiente refratário, geralmente de barro, ferro ou platina, no qual, no passado, se usava para purificar a prata.
entre os raios finos, a mulher dourada com cabelos vermelhos Gauri e o príncipe
Kai com seus brilhantes olhos.
Brishen olhou para sua nova esposa sentada na cadeira enquanto ficava ao
seu lado. Viajavam com um grupo de doze Kai para as fronteiras orientais de
Bast-Haradis e para a capital de Haradis. Uma meia lua, deslizava pelas nuvens
em um movimento rápido, brilhando acima deles. O cabelo de Ildiko ficava mais
vermelho sob a luz da lua, com seu rosto pálido e cansado pela falta de sono.
Brishen apostava que ela não duraria até o amanhecer, mas tinha um
cavalo preparado para ela de qualquer forma. Ele, sua esposa e seu companheiro
Kai foram para estrada, assim que o casamento terminou.
De muitos casamentos que Brishen assistiu durante sua vida, este foi o
mais ridículo. A cerimônia em si foi o anuncio de sua união. Ao julgar pela
reação tanto da multidão Gauri como os Kai, bem poderia ter sido uma
declaração de guerra. As mãos foram para a espada de cada lado e cada grupo
olhou para o outro, prontos para lançarem um contra o outro pelo corredor
cheio de flores. Seus parentes eram facilmente superados em número pelo forte
guerreiros Gauri. Números que por si só garantiriam que, se tal luta explodisse,
seria não apenas sangrenta, mas breve.
Suas mãos tremeram nas suas antes dela arquear a sobrancelha. — Lobo.
— Disse em voz baixa.
Até então, ele e seu companheiro Kai comeram os pratos preparados pela
mãe cozinheira de um dos Kai, a qual insistiu que fosse com eles. A família real
Gauri ofereceu voluntariamente uma parte de sua cozinha para que ela pudesse
preparar as refeições de seu povo. Brishen pensou que seu povo reclamava
exageradamente sobre a comida Gauri, até que comeu o jantar que os Gauri
prepararam e quase vomitou. Sua prima Anhuset, sorriu para ele de forma
satisfeita. — Eu disse. — Falou com voz presumida.
— A primeira vez que sorri para um nobre Gauri, acho que ele molhou a
calça. — O comentário de Anhuset veio com uma risada. Ela inclinou a cabeça
para Brishen. — Você é nosso senhor e príncipe. Nós o seguiremos.
Ele apertou os lábios bem forte e engoliu. Não havia vinho ou cerveja o
suficiente no mundo para acabar com o gosto repugnante em sua língua, mas
ele esvaziou seu corpo e o de Ildiko antes de pedir a um criado mais. Os Kai
continuavam olhando-o e ele olhou para cada um agora até que eles pegaram
seus talheres e desmancharam suas batatas.
Suas reações refletiam as suas. Teria que dormir com um olho aberto e sua
mão na espada pela próxima quinzena por causa da vingança de seus homens.
Um puxão em sua manga o fez voltar sua atenção para Ildiko.
— Sinto muito, Brishen. É muito ruim? — Ouviu a simpatia em sua voz
e acariciou sua mão para tranquiliza-la. Ruim era um eufemismo, mas ele negou
com a cabeça e mentiu. — Não. Já comi coisa pior.
Suas fervorosas orações a cada deus que pudesse ouvir foram respondidas
quando o Rei Sangur declarou terminado o banquete e fez um brinde final. Não
houve dança depois. Em qualquer outro momento, Brishen teria ficado
decepcionado. Os Kai adoravam dançar. Toda celebração tinha dança e não
eram em absoluto incomum que os casais dançassem até que ficassem cansados.
Agora agradecia ter que subir e apenas escoltar sua nova esposa até a
câmara nupcial preparada para eles. Seu estomago se revoltou, odiando tanto
como sua companheira no momento.
Ildiko apertou sua mão enquanto criadas Gauri esperavam para tirar seu
vestido. Ela acenou para elas e se virou para ele. — Não precisamos ficar mais
tempo em Pricid, Brishen. Não tenho problemas em sair esta noite.
Sua feia noiva de grande coração, obviamente podia ler seus pensamentos.
Ele segurou seu rosto nas mãos e beijou sua testa. — Tem certeza Ildiko? Não
quer dizer adeus a sua família?
Ela puxou suas mangas e sua boca se curvou para baixo. Dor. Mágoa.
Brishen estava aprendendo a ler as expressões de sua esposa da mesma forma
como ela lia seus pensamentos. — Eu me despedi de minha família quando orei
sobre os túmulos dos meus pais. Não há razão para permanecer aqui.
Com isso, ele a deixou para que os criados juntassem as coisas que ela
embalou e colocassem nos carros que os acompanhariam até Haradis. Ele
encontrou o restante dos Kai reunidos em um pequeno pátio, compartilhando
jarras de vinho.
— Depois dessa refeição vil que todos comeram por você, não apostaria
nisso, primo.
Brishen escondeu um sorriso. Anhuset era mais próxima a ele como seu
irmão nunca foi. Também seu segundo no comando. Mortal em combate e
muito leal a ele, assim suas ameaças de morte eram vazias. Mas, no entanto, teria
cuidado. Ela não pensaria duas vezes em tentar derrubá-lo e fazê-lo sangrar se a
incomodasse demais.
— Ildiko, acorde.
Brishen a colocou mais perto dele. Ficou rígido de repente na sela ao ouvir
um sussurro. — Escudos! — Gritou e empurrou Ildiko para perto do pescoço
de sua montaria.
Capítulo Cinco
Ela gritou quando uma mão a empurrou no chão. — Fique para baixo,
Alteza! — Ordenou uma voz feminina.
Ildiko não protestou quando ouviu um barulho vindo das árvores, seguido
de uma chuva de flechas negras que faziam um arco no céu como um raio, antes
de cair sobre eles. Agachou, cobrindo a cabeça com os braços. Metal sobre
metal, era o barulho que as flechas faziam ao atingir os escudos.
Estavam sendo atacados e o pelo pouco que podia ver de sua posição atrás
da barricada protetora de Kai, revelavam que estavam presos no lugar, incapazes
de fugir ou até mesmo contra-atacar os inimigos que se abrigavam nas árvores.
Isso logo mudou. Os cascos dos cavalos fizeram eco nas profundezas do
bosque. Eles se uniram aos gritos da batalha e logo se ouviu gritos de dor.
Ildiko rezou por sua segurança, pela segurança de todos. Ela o perdeu de
vista abruptamente quando um grupo de bandidos foi em direção a sua guarda.
Anhuset respondeu com um grito de guerra estranho. Ela e seus companheiros
pularam sobre seus atacantes. Ildiko ficou atrás de uma das rodas do carro,
olhando entre o vão.
Ela queria ajudar, mas não sabia nada sobre combate e seria um obstáculo
para aqueles que a protegiam. Com exceção de uma faca escondida em sua bolsa
na cintura, estava desarmada. O melhor que poderia fazer era seguir as
instruções de Anhuset: permanecer fora da vista e do caminho.
Ela o chutou, atingindo sei queixo. Ele foi para trás com um grito antes
de ir para ela uma segunda vez. Ildiko arrastou-se nos cotovelos e saiu de seu
esconderijo. Tropeçou e ficou de pé no meio da batalha. Seus protetores Kai
lutavam contra o inimigo, sem saber que o esconderijo de Ildiko foi descoberto.
Ela levantou a saia, preparada para fugir, ainda que não tivesse ideia de para
onde iria. O bandido que a atacou, tomou a decisão por ela quando deu a volta
na estrada e a encurralou, agitando uma faca com uma careta que prometia uma
morte espantosa.
Ildiko apertou os calcanhares e fugiu na direção oposta. Ela não teve uma
oportunidade. Uma corrente de ar chicoteou o lado de seu rosto e agitou as
mechas de seu cabelo. Um barulho seco ecoou atrás dela e deu a volta para ver
seu perseguidor cair de joelhos, a lamina de um machado profundamente em
sua testa. Seus olhos estavam muito abertos, fixos, como se não acreditasse que
a morte o encontrou rapidamente, antes de cair para trás e ficar imóvel no chão.
Ildiko se virou para encontrar Brishen correndo para ela. Agarrou-a pela
cintura e levantou-a do chão sem perder o passo enquanto corria para a
segurança. — Não era o presente de casamento que em mente, esposa. — Disse
com a respiração ofegante. — Irei recompensá-la mais tarde.
Capitulo Seis
Ela abaixou a cabeça e lhe ofereceu sua espada com as duas mãos. — Eu
falhei, Alteza. Minha vida está perdida, assim como minha luz-mortem. — Ela
falou olhando para o chão e a voz cheia de vergonha.
Ela os Kai que protegiam Ildiko no carro foram atacados por um número
maior de inimigos. Lutaram muito e lutaram bem, mas foram superados. Não
havia como Anhuset ter visto o homem rastejando para baixo do carro, sem dar
as costas aos seus oponentes e ter a cabeça separada de seus ombros pelo
esforço.
Ele a olhou, observando a forma como seu cabelo prateado brilhava sob
a luz do sol em lugar da lua. Deu a volta e encontrou Ildiko a uma pequena
distância, sentada em um tronco de árvore, os olhos pesados e quase caindo pela
fadiga. Um guarda Kai com rosto sombrio a vigiava, movendo a arma na mão.
Fez um gesto para Anhuset que ainda se negava a olhar para cima. —
Minha tenente deseja que a execute por não a proteger.
— O que?
— Anhuset acredita que falhou em seu dever comigo por não a proteger
do homem que a encontrou debaixo do carro. — Brishen manteve a voz e a
expressão suave. — No entanto, a suposta infração não foi contra mim. Você
foi a mais afetada por suas ações. O que diz? Sente-se insultada e deseja sua
punição?
Ildiko fez uma pausa durante uns momentos antes de falar. — Não me
sinto ofendida. Ela cumpriu com seu dever e me protegeu de quem queria me
prejudicar. Havia muitos bandidos e apenas uma Anhuset. — Ela sorriu de lado.
— Que lutou melhor que três Gauri.
Brishen fez um esforço para não sorrir ou puxar sua esposa para seus
braços. Suas palavras foram tão apropriadas quando as de qualquer diplomata
experiente, senão melhores do que as de um, porque ela falou com sinceridade.
Ela acabou de fazer a Anhuset o maior elogio, oferecendo sua confiança em sua
capacidade para protegê-la no futuro.
Estava cansado também. Com exceção de uns poucos minutos aqui e ali,
não dormiu em Pricid desde que chegou há três dias antes. Por sorte, a cavalaria
de Mertok chegou, não apenas para ajuda-los a vencer os inimigos, mas também
para oferecer um alivio para Brishen e sua tropa por algumas horas.
O sol o cegava e viu quando seu capitão da cavalaria se aproximou, com
o capuz o protegendo da luz do dia. Mertok se inclinou. — Sua Alteza, pensei
que os encontraria neste ponto amanhã. Não imaginei que os encontraria aqui
tão cedo.
Brishen aceitou a crítica sutil. A rota comercial era muito perigosa. Ele
tinha certeza que o tamanho de seu grupo original iria evitar qualquer bando de
ladrões com a intenção de roubar seus bens. As chances de um assalto seriam
ainda menores agora que os cavaleiros de Mertok se juntaram a eles para viajar
pelo resto do caminho, aumentando seus números e os aproximando do
tamanho de um pequeno exército.
Mas Brishen estava ansioso para deixar Pricid e com o incentivo de Ildiko,
saiu um dia antes do previsto. — Minha esposa queria ver seu novo lar assim
que possível, então saímos justo depois do banquete.
Mertok fez uma breve reverencia. — Deseja fazer uma cerimônia está
noite para nossos mortos?
Sua boca se curvou para cima. — Graças a Bursina por isso. Passarei feliz
o título para outra pessoa. Agora bem, se todos quiserem me nomear a mais feia
de todo o reino Kai, não sei se me incomodaria.
Brishen tentou domesticar seu cabelo com a mão. — É considerada uma
beleza entre seu povo. Porque não se casou antes?
Ela encolheu os ombros. — Você era o mais vantajoso para uma mulher
da minha classe. Minha mãe era a irmã de Sangur. Se fosse meu pai relacionado
com ele, então seria uma princesa. Mas desde que nasci na linhagem feminina
da família real, sou simplesmente uma nobre que não pode se casar com
qualquer um, mas não importante o suficiente para conseguir um herdeiro.
— Então lhe deram as sobras. — Brishen disse sem rancor. Ele era o mais
novo dos dois filhos e seu irmão assegurou a sucessão real por seis vezes e
contando com seus herdeiros. A importância de Brishen para herdar o trono
diminuiu. Nem sequer havia nenhum requisito para ter seus próprios filhos. Sua
esposa Gauri simplesmente era um sinal de boa fé entre os reinos, uma
observação no final do texto que sacramentava a aliança.
— Não. Tem um sabor amargo e sua tinta é muito valiosa para ser
desperdiçado nas cozinhas.
Ildiko se moveu e levou as mãos aos olhos. Quando seus dedos saíram
sem manchas e sangue, franziu o cenho, obviamente desconcertada. Sua
expressão se limpou. — Acho que a maioria dos seres humanos ficam assim
quando acordam. Nossos olhos secam. É temporário.
Ninguém podia acusar sua esposa de não ser observadora. Brishen traçou
cuidadosamente o contorno de sua bochecha justo debaixo do olho esquerdo.
— É a parte branca que é espantosa. É como se tivessem unida por cordas
puxadas por mãos invisíveis ou algum tipo de sanguessugas estranhas que vivem
em duplas dentro de seus crânios.
Ela cedeu a seu ponto. — É verdade, mas aposto que faz um esforço para
não saltar cada vez que sorrio.
Brishen segurou seu rosto. — Você o tem, Ildiko. Junto com minha
proteção e minha paciência. Não menti quando disse que conseguiríamos
juntos.
Brishen não podia imaginar algo assim. Não tinha ideia se os Kai e os
Gauri sabiam as mesmas piadas ou achavam divertidas as mesmas coisas. — O
que quer dizer?
Quase saltou de sua pele quando Ildiko o olhou com seus dois olhos e
levou-os lentamente para baixo e outra vez para cima, perto do nariz.
— Amante das espinhas e santos deuses! — Ele gritou e colocou uma mão
em seus olhos para não a olhar. — Pare de fazer isso. — Ordenou.
Ildiko riu e afastou sua mão. Ela riu ainda mais forte quando viu sua
expressão. — Espera. — Ficou sem folego com as risadas. — Posso fazer
melhor. Quer me ver fazer um olho se mover e o outro ficar parado?
Brishen se inclinou para trás. — Não! — Ele fez uma careta. — Que
pesadelo. Agradeço se mantiver este talento especial para você, esposa.
Estava escuro e a lua estava baixa quando saiu da tenda e descobriu vários
Kai olhando-o com curiosidade de seus lugares ao redor da fogueira. Não havia
dúvida de que se perguntavam como encontrava coragem para ficar na cama
com sua esposa horrível. Não havia dúvidas que apostas corriam sobre se ele
tomou o caminho mais fácil e a tomou quando sol estava alto e ele cego pela luz
ou o mais desafiador, quando o crepúsculo se levantava.
Fez arranjos para que as refeições embaladas por uma cozinheira Gauri
fossem entregues na tenda e se reuniu com Anhuset e Mertok para discutir a
cerimonia de logo mais.
Ildiko encontrou-o meia hora depois. Ela trocou de roupa e trançou seu
cabelo. A armadura de Anhuset estava pendurada em seu braço. — Pode me
ajudar a coloca-la novamente?
Seu rosto ficou triste. — Sinto muito por sua perda, Brishen.
Brishen apertou sua mão. — Como eu. Vamos limpar o corpo durante a
cerimônia de consagração e levaremos sua luz-mortem de volta para suas
famílias para guardá-los em uma casa sagrada.
Com este pensamento, Brishen já não via os olhos de Ildiko como antes,
como se fossem separados dela. Não eram mais que olhos humanos, estranhos,
mas apenas olhos.
Capitulo Sete
Brishen pegou uma garrafa de vinho e uma manta em sua tenda e fez um
lugar para que sentasse na entrada. Sentou-se a seu lado e lhe passou a garrafa.
— Em cada geração, os Kai perderam um pouco de sua magia. Somos uma raça
antiga, mas estamos desaparecendo. Mantemos a magia que ainda possuímos até
sermos forçados a usá-la. Embora eu seja tão experiente como meu pai com
feitiços familiares e de proteção, seu poder é maior do que o meu e o do meu
irmão. E o do meu irmão é maior que o de seus filhos. No entanto, os Kai são
antigos e possuem antigas tradições. Os espíritos de nossos mortos deixam este
mundo, mas temos o dom de manter suas lembranças – chamamos de luz-
mortem. Nós mantemos estas lembranças vivas em um lugar chamado Emlek.
Elas são a nossa história, o que nos define além de nossa aparência ou dos
feitiços que estamos perdendo.
Invejava este presente com um fervor que a fez desejar ter nascido Kai,
com dentes e tudo. — Como é levado para casa? A luz-mortem?
Parou no tempo, Ildiko não achou que fosse responder. — Esta noite
realizaremos uma consagração – um ritual para libertar o espirito e despertar a
luz-mortem. — Ele levantou uma de suas mãos e entrelaçou os dedos com os
dela. O contraste de sua pele cinza e unhas negras contra a dela realçou suas
diferenças físicas, mas a dor era dor. A dor em sua voz era a mesma que qualquer
Gauri sentia quando se ajoelhava em uma tumba e chorava. — Posso explicar o
ritual e a forma como transportamos a luz-mortem, mas irá entender melhor
quando for testemunha dele.
— Posso participar?
A boca de Brishen se curvou para cima. Em um gesto já familiar para ela
e um que gostava, beijou seus dedos antes de ficar de pé e ajudá-la a se levantar.
— Gostaria que pudesse, mas uma consagração só pode ser realizada por um
Kai. Mas pode assistir. Seria uma honra se o fizesse.
Alguns poderiam se perguntar por sua falta de temor com relação a seu
novo marido. Terrível em aparência, letal em combate, Brishen era todo
cordialidade e realeza, digno de cada interação com ela.
Quando o acampamento se instalou, ele levou seu tempo para apresentá-
la a cavalaria Kai que veio em seu resgate e seu chefe de cavalaria, Mertok. Como
esperava, os soldados Kai eram formais, educados e se negavam a olhá-la nos
olhos. Não tinham problemas em olhá-la quando pensava que ela não estava
olhando e Ildiko ficou tentada algumas vezes em mover os olhos e ver a reação.
Ildiko sufocou uma risada por trás de sua mão. O sorriso predador de
Brishen fez os pelos de seu braço se levantarem em sinal de advertência, mas ela
deu uns tapinhas na mão em sua cintura e se manteve sem medo.
Anhuset entrou no círculo com uma pequena ânfora5. Dela ela verteu um
brilhante azeite sobre seus dedos e se agachou para desenhar um misterioso
símbolo na testa de cada um dos soldados mortos. Como a outra fêmea Kai,
que brilhava fria e elegante sob pálidos raios da lua, seu cabelo prateava brilhava.
Ela abriu a cerimônia com um canto na língua Kai, ao qual os outros Kai ao
5 Vasos antigos de origem grega de forma geralmente ovoide e com duas alças.
redor responderam. Ildiko mal conhecia algumas palavras Kai, mas reconhecia
um lamento quando o ouvia.
A mulher Kai acenou e fez um sinal com a mão. Dois soldados mais
aparecera. Brishen se afundou entre eles, que o levaram para sua tenda e o
colocaram com cuidados na cama. Ildiko se ajoelhou ao lado de seu marido e
segurou sua mão. Tinha os olhos fechados, mas a luz-mortem dentro dele ainda
brilhava através de suas pálpebras.
— Pelas asas de Bursina! Todos os Kai passam por isso? — Ildiko estava
reconsiderando rapidamente sua inveja deste dom. Acariciou o dorso da mão de
Brishen com o polegar.
Ildiko não se deixou enganar. Ela observou a interação entre Brishen e sua
prima. Anhuset estava preocupava. — Sou inofensiva, Anhuset. Não precisa
protegê-lo de mim. — Brincou suavemente.
Brishen levantou uma mão para tocas o rosto da mulher mais velha. —
Minha mãe. — Sussurrou.
A voz era familiar. Anhuset, sua tenente. Brishen franziu o cenho. Não,
não era ela. Ela era sua comandante. Sua prima e segunda no comando. —
Minha mãe. — Disse. — Eu a amo. Seu nome é Tarawin.
Sua prima voltou a falar. — Não, Brishen. Sua mãe é Secmis, a Rainha das
planícies. A Rainha das sombras de Bast-Haradis.
Uma voz diferente, desta vez falando em uma língua universal com
sotaque lírico de Gauri. A esposa feia do príncipe com olhos assustadores.
Ele queria responder seu comentário, esclarecer que falava de Ildiko e não
Tarawin, mas sua língua estava grudada no céu da boca. Estava quente, como se
alguém houvesse o colocado sob o sol e deixado para assar vivo. — Água. —
Disse com a voz áspera.
Um copo foi pressionado contra seus lábios secos e Brishen tomou tudo.
Uma mão acariciou sua testa, fresca sobre sua pele quente. Abriu os olhos e
encontrou Ildiko olhando-o com aqueles olhos humanos estranhos.
Instintivamente se afastou e tentou se levantar. — Sua Alteza. — Murmurou.
Era um solado humilde e rompeu o protocolo, deitar-se antes de um membro
da casa real.
Ildiko. Ela era Ildiko com ele em privado. Duas mãos o pressionaram
novamente contra a cama. Brishen piscou e Anhuset lhe ofereceu mais água.
Virou a cabeça e procurou Ildiko uma vez mais.
— Sim, Brishen. Sua Ildiko. — Como seu toque e sua voz ficava mais
calmo. — Anhuset e eu ficaremos com você até que a febre passe.
As palavras mal passaram por seus lábios antes que ele fosse empurrado
de lado. Mãos seguraram sua cabeça e levantaram seu cabelo enquanto ele
esvaziava o estômago. Mais lembranças surgiram através de sua mente, uma
semana doente quando ele era criança e agarrou uma tigela de madeira contra
seu peito enquanto Tarawin sussurrava-lhe que bravo garoto que era. Outra
lembrança semelhante, mas nessa ele estava em uma grande cama, segurando
uma bacia de prata, enquanto uma das enfermeiras reais ficava em segurança
fora do alcance e olhava para ele com desgosto enquanto ele vomitava.
Um pano frio banhou seu rosto quente e ele capturou o pulso da pessoa
que o fazia. Sentiu os ossos frágeis em seu aperto. Ossos humanos. Facilmente
quebráveis se exercesse a menor pressão. Brishen traçou a teia de aranha de
pequenas veias logo abaixo de sua pele com o polegar. Embora fossem mais
finas que o fio de seda, podia sentir o pulso de sangue através delas em um ritmo
constante.
Ela lançou-lhe um breve sorriso com seus dentes quadrados. — Você está
me levando para casa, Brishen. Não há nada para mim em Pricid.
— E sua família?
Brishen assentiu e desta vez aceitou o copo que Anhuset lhe ofereceu.
Deitou-se, inspirando e expirando lentamente, desejando que seu estômago
rebelde se acalmasse, ainda que as suas e as lembranças de Talumey turvassem
sua visão, ele sentia como se tivesse passado a noite esvaziando um barril de
vinho, apenas para ter alguém empurrando-o para dentro dele, fechando a
tampa e jogando-o em um mar tempestuoso. Ele recusou-se a pensar em batatas.
— Sorte que não foi seu rosto ou sua garganta, Alteza. Você não deveria
estar aqui.
— Então, até que ele esteja lúcido, fique fora do seu caminho. Posso não
ser tão rápida quando você precisar de mim uma segunda vez.
Ela não ofereceu seu toque suave, mas sua voz o acalmou. — Estou aqui,
Brishen. E não vou a lugar algum.
Ela contou com o senso de direção de sua montaria, assim como seu
instinto de proteção para ficar com o restante do grupo. As rodas dos carros
rangiam atrás dela, acompanhadas pelos uivos distantes de matilhas de lobos e
as vozes dos Kai que falavam e zombavam uns dos outros.
Como se sentisse seu olhar sobre ele, Brishen olhou por cima do ombro e
parou sua montaria. Cavaleiros Kai formaram um círculo ao redor dele,
enquanto esperavam por ela alcançá-los. Ele ofereceu-lhe um sorriso cansado e
mesmo na escuridão sufocante, Ildiko viu as linhas cansadas gravadas em suas
feições. Recuperado da posse da luz-mortem, ele ainda sofria os últimos
sintomas da febre da morte,
Ela hesitou em dizer-lhe. Brishen foi ainda mais solícito depois de acordar
da febre da morte e descobriu-a sentada nas proximidades com Anhuset. Ildiko
exerceu o poder de seu posto recém-adquirido e extraiu uma promessa relutante
da mulher Kai de não dizer nada sobre sua manga cortada a menos que Brishen
perguntasse diretamente.
— Você está me pedindo para mentir para meu primo e meu comandante,
Alteza. — Os olhos de Anhuset se estreitaram em brilhante fendas.
— Não é isso que estou pedindo. — Ela passou as mãos sobre a saia em
uma tentativa inútil de suavizar as rugas. — Se ele perguntar o que aconteceu,
conte, mas não há nenhuma razão para correr e tagarelar sobre algo tão trivial
quanto uma manga rasgada.
Ildiko não discutiu. Poderia ter sido infinitamente pior. Seu coração quase
saltou do peito quando Brishen de repente a atacou delirante, suas unhas
cortando a manga como facas. Ela não teve tempo de gritar antes que um forte
empurrão de Anhuset a mandasse voando para o outro lado da tenda.
Ela ficou em silencio, dando-lhe uma fuga ele optasse por não responder
à observação de Anhuset. Em vez disso, ele se inclinou para trás na sela, seus
ombros largos relaxaram. — Minha prima está certa. A rainha não é de sorrir.
Se ela o fizer, então pode procurar uma faca saindo das sombras.
Ildiko ficou de boca aberta com Brishen. Ele descreveu sua mãe com uma
voz tão suave, como se as tendências assassinas por ele mencionadas não fossem
mais interessantes ou ameaçadoras do que se ela tivesse um amor obsessivo por
chinelos cor laranja. — Você está falando sério?
— Muito. — Disse ele no mesmo tom neutro. — Duvido que meu pai
tenha dormido uma noite inteira com os dois olhos fechados desde que ele se
casou com ela.
— Não estou ansiosa para conhecer sua mãe, Sua Alteza. — Alguns sons
suaves de risadas soaram dos soldados Kai a cavalo nas proximidades. Ildiko
encontrou o olhar irônico de Brishen. — Devo usar esta armadura quando
formos apresentadas?
Os dentes de Brishen eram como punhais de marfim na escuridão. — Eu
a protegerei. Além disso, ela não vai prejudicá-la. Está muito encantada com a
ideia de que fui forçado tomar um ser humano como esposa. Se há uma coisa
que Secmis ama mais do que planejar um assassinato, é ficar observando a
miséria alheia. — Ele chegou seu cavalo mais perto dela e se inclinou. —
Certifique-se de atuar sempre irritada comigo e amarga por seu destino. — Ele
disse suavemente. — Ela se certificará de que estejamos constantentemente na
companhia um do outro.
Os pensamentos de Ildiko hesitaram. Uma coisa era certa: ela não seria
intimidada. Ficar um passo a frente de sua malévola sogra iria exigir toda sua
inteligência e foco. Como uma víbora igual a que Brishen descreveu foi capaz
de criar um homem tão jovial e carinhoso confundia Ildiko.
Ildiko não devolveu o sorriso. Ele podia achar tudo isso muito engraçado,
mas ela achava aterrador. Endureceu suas costas e segurou as rédeas em um
aperto forte. Seu novos sogros podiam ser um casal mortal, mas ela se recusaria
a ser intimidada.
— Você tem uma dúzia ou algo assim? — Ildiko ergueu o queixo perante
a contração da risada que ameaçou surgir da boca dele. Era uma questão
perfeitamente legítima. Os maridos de suas primas tinham cada um uma amante
e um bando de filhos bastardos. Seu tio, o rei, mantinha uma doce prima chamada
Annais, pela qual a rainha Fantine era eternamente grata.
Brishen perdeu a batalha para não sorrir. — Uma dúzia? Duvido que
poderia lidar com uma. — Ele mudou para uma posição mais confortável na
sela. — Além disso, tenho uma esposa Gauri para me confortar. Por que ter
uma amante?
Sua resposta confundiu Ildiko. — Mas esse não é o papel de uma amante.
Brishen parou o cavalo pela segunda vez e puxou as rédeas de Ildiko para
parar sua montaria também. Ele devia ter dado um sinal invisível, porque os Kai
montando com eles alargaram o espaço ao seu redor para dar a eles mais
privacidade.
— Você será isso para mim, Ildiko? — Disse ele. — Essa luz no vazio?
Ele capturou sua mão e beijou sua palma. Seus lábios eram frios contra
sua pele. — Meus pais vão detestá-la, esposa. — Ildiko sentiu todo o sangue
drenar de seu rosto. O sorriso de Brishen retornou. — Não tenha medo. Isso é
uma coisa boa. Eles me odeiam desde o nascimento. Eles apenas gostam
daqueles que podem esmagar.
Pareceu que ele acrescentaria algo, mas foi interrompido por gritos agudos
e ganidos excitados dos outros Kai. Ildiko tentou compreender o rápido fluxo
de palavras desconhecidas que fluiam entre os soldados, mas tudo o que pode
entender foi “Haradis” e “portão”. Ela virou-se para Brishen. — O que eles
estão dizendo? — Sua resposta fez nascer uma legião de borboletas em sua
barriga.
— Além desse declive fica Bast-Haradis, a capital. Bem-vinda ao meu
reino, Ildiko de Kai.
Capítulo Dez
Brishen escoltou Ildiko pelo longo corredor que levava à sala do trono.
Ela segurava seu braço, os dedos apertando a pele, mesmo seu antebraço. Era o
único sinal de sua ansiedade, além de sua palidez. Ela tinha uma expressão serena
e seus passos eram firmes e seguros na escuridão do corredor.
Ele parou e ela com ele. Brishen olhou para sua esposa humana,
observando o cabelo colorido e seus olhos estranhos, a pele pálida com seus
tons em constante mudança de acordo com seu humor. As reações de seus
soldados para com ela não seriam nada em comparação com as da nobreza Kai.
Isolados por tanto tempo, a maior parte dos nobres raramente viam um ser
humano. Aqueles que o fizeram, mal se lembravam. Olhariam, sussurrariam
entre si e fariam muito pior do que isso.
Ele segurou sua mão livre. — Você também é uma princesa de sangue
através do casamento, um membro da família real. Minha esposa. Cada Kai
naquele recinto lhe deve sua lealdade e respeito. Cortarei qualquer língua que lhe
insulte, Ildiko. — Ele apertou os lábios contra a palma de sua mão.
Brishen mal registrou sua grandeza. Ele cresceu naquele palácio. O salão
era assim desde antes de seu avô nascer e provavelmente já muito antes disso.
Então, ele se concentrou nas figuras observando-os de tronos elevados em uma
plataforma com nove degraus.
Ildiko poderia não entender muito do que era dito, mas não demorou a
entender que a fluência do idioma Kai queria dizer que sua aparência estava
causando um rebuliço. Como ele, ela manteve o olhar treinado sobre o rei e
rainha. Seus dedos estavam firmes nos seus.
Eles pararam no primeiro degrau que conduzia aos tronos. Brishen puxou
levemente a mão de Ildiko e ambos se ajoelhoaram.
A sala do trono ficou em silêncio mais uma vez, pulsando com antecipação
enquanto Brishen e Ildiko estavam de joelhos.
Ele virou o olhar curioso para Ildiko. — Lembro-me da primeira vez que
vi um ser humano. Um homem. As mulheres são ainda mais feias.
Uma onda de risadas passou pela multidão com a mesma rapidez que
morreu quando Brishen virou para procurar quem ria. Os dedos de Ildiko se
contraíram em suas mãos.
A rainha, bonita e tão jovem como o dia em que ela se casou com seu
marido, olhou primeiro para o filho e em seguida, para a mulher Gauri. Ao
contrário de seu marido, ela falava a língua universal, de modo que Ildiko
entenderia tudo o que dissesse. — Bem-vinda a Haradis, Hercegesé Ildiko. Espero
que possa encontrar seu lugar aqui. Meu filho sacrificou muito para se casar com
uma mulher humana e selar a aliança com os Gauri.
Seus lábios se apertavam enquanto ela falava e embora sua voz fosse
neutra, Secmis não se incomodou em esconder seu desprezo pela esposa de
Brishen.
Brishen imaginou ouvir o estalar das costas de Ildiko quando ela
endureceu ao seu lado. Ela puxou os dedos de suas mãos e avançou para a
segunda etapa, ombros para trás, o queixo erguido de forma altiva que desafiava
a própria arrogância da rainha. Um suspiro coletivo aumentou entre a nobreza
assistindo.
Sua própria voz estava calma, sem desdém, mas confiante e sem se deixar
rebaixar. — Que sacrifícios seriam esses, Sua Majestade? Vejo apenas um
homem que voltou para casa com uma noiva após uma viagem
reconhecidamente perigosa. Ele não tem quaisquer feridas, sem cicatrizes e
possui todos os seus membros. Ainda não tive tempo de dominá-lo até a morte.
Desta vez a risada da plateia foi disfarçada por barulhos e crises de tosse.
Brishen não sabia se gemia ou se a aplaudia. A sagacidade de Ildiko ganharia seu
respeito ou um mandado de execução.
— Não, Sua Majestade. Isso seria rude.— Ildiko se inclinou em uma breve
reverencia. — Gostaria apenas de entender o sacrifício do meu marido. Ele
viverá em seu próprio povo. Não posso lhe dar filhos, mas a linha de sucessão
já foi assegurada muitas vezes. Ele não pode se casar com uma mulher Kai, mas
se a corte Kai é em algo parecido com a corte Gauri, sua união comigo não irá
impedi-lo de ter uma amante. Várias se assim desejar. Se ele não puder suportar
me olhar, podemos conversar à luz do dia, quando não vê tão bem. Então posso
dizer que o sacrifício é meu, não dele.
A pele de Secmis, da cor de aço polido, escureceu ainda mais. Seus olhos
brilhavam mais do que todas as tochas na sala do trono juntas. Ela quase se
levantou de seu assento, os dedos longos se curvando. Se Ildiko estivesse perto
dela, ela seria estripada.
Brishen puxou parcialmente sua espada da bainha quando o rei soltou uma
risada retumbante. Secmis o olhou tão duro que seria o suficiente para
transformar suas vestes em chamas. Ele a ignorou e bateu com a mão no braço
da cadeira. — Ela é feia meu rapaz, mas sem medo também. Você poderia estar
pior. — Ele apontou para as portas. — Tire-a daqui antes que sua mãe ordene
que ela seja decapitada.— Ele piscou e sorriu mostrando suas presas pretas para
Ildiko. — Você lidará com tudo muito bem, mulher Gauri. Estou ansioso por
nossa próxima reunião.
A viagem de volta para as portas parecia mil milhas e muitos anos mais
distante. Brishen estava contendo o impulso de correr para a segurança com
Ildiko em seus braços, mas precisa se manter em um passo calmo e imponente.
Uma vez que as portas se fecharam atrás deles, eles mantiveram o ritmo de até
que ficaram fora da vista e o alcance da voz dos guardas.
Brishen girou para ficar na frente de Ildiko. Mesmo a cor cinza de sua pele
desapareceu, deixando-a pálida como ossos branqueados. Seus olhos estavam
arregalados e pretos com terror. Ela deu um passo em direção a ele antes de seus
joelhos cederem. Ele a pegou nos braços e abraçou-a.
Ela estremeceu contra ele, seu corpo tão gelado quanto seus dedos
estavam. Ele ouviu a rápido batida de seus dentes antes que ela apertasse sua
mandíbula e respirasse calmamente. Uma vez que se acalmou, ela inclinou-se
longe o suficiente para encontrar seu olhar.
— Eu fiz de sua mãe uma inimiga. — Ela disse com uma voz triste.
Ele beijou sua testa. — Não, você irá comer. Nós ainda temos um jantar
formal para sofrer em poucas horas.
Sua fluidez no idioma Kai era boa, tanto que compreendia uma parte de
suas observações com respeito a feiura das mulheres humanas. Seus insultos
fizeram um bom trabalho para acabar com seu medo e substituí-lo por
indignação. Esta indignação borbulhava em uma raiva fervente quando Secmis
se dirigiu a ela no idioma universal.
Ele manteve-se perto, seu elogio por sua valentia era a única coisa que a
mantinha de pé, enquanto a levava até um lance de escada e dois corredores
com uma porta decorada com gonzos fantasiosos. Ele abriu a porta, revelando
uma câmara espaçosa, ricamente decorada com uma grande cama, guarda-roupa,
caixas e uma mesa com cadeiras perto de uma lareira, onde um fogo baixo
crepitava.
Brishen a levou a uma das cadeiras. Ildiko caiu nela com agradecimento.
Ela era parte desta família agora. Como o restante, teria que dormir com um
olho aberto, sempre temendo Secmis.
— Quer uma taça de vinho? — Brishen pegou uma taça em uma mão e
uma jarra em outra.
— Uma criatura sem alma, com uma sede de assassinato e uma inteligência
maior que qualquer outro no reino. — Brishen serviu vinho para si mesmo em
outra taça. — É ela uma mulher sem igual tanto em malicia como estratégia.
Meu pai seria uma decoração por décadas sem ela ao seu lado.
Ela queria lhe perguntar mais, mas falar sobre o rei e a rainha de Kai fazia
seu estomago azedar com o vinho. Em seu lugar, se concentrou ao seu redor.
— Onde estamos?
Distraída por sua segunda observação, Ildiko deu ao seu redor não mais
que uma olhada rápida. — É muito bonito. O que quer dizer com minha estadia
no palácio? — Um segundo nó de apreensão torceu seu ventre, ficando justo ao
lado do nó que se formou em seu encontro com Secmis.
Enquanto Ildiko gostava da ideia de colocar uma maior distância entre ela
e Secmis, não conseguia saborear um futuro no qual ficava secando em algum
castelo esquecido, tendo como companhia apenas servos Kai ressentidos de seu
exilio como ela.
Brishen roçou o joelho com uma mão cinza. Uma unha negra tocou o
tecido fazendo um vinco. — Não se preocupe Ildiko. Estarei exilado com você.
Tenho uma casa nas fronteiras do extremo oeste do reino. Ficaremos aqui por
algumas semanas para que possa se familiarizar com a corte Kai e logo iremos
para casa.
Brishen disse – casa – de tal forma que soava como – santuário. Era óbvio
para Ildiko que embora tolerasse bem a corte Kai, seu coração residia em outro
lugar.
Ela lembrou-se de um mapa estendido sobre uma mesa no escritório do
Rei Sangur, os muitos reinos que compartilhavam a grade extensão de terras do
lado do Oceano Apteran. Ela franziu o cenho. — Sua casa está de frente para
as terras Beladine.
— Sua Alteza, Sua Majestade deseja que se encontre com ele na sala do
conselho. — Disse em Kai, mas a compreensão de Ildiko do idioma não era
ampla o suficiente para entender tudo.
A moça franziu o cenho. Caiu de joelhos ante Brishen que também franziu
o cenho. — Sua irmã Alteza. Kirgipa. Sha-Anhuset enviou cumprimentos. Você
honra nossa família. Que um príncipe carregue o corpo de Talumey...
Se estivessem sozinhos, ela podia ter suavizado a linha que dividia suas
sobrancelhas. Em seu lugar Ildiko limitou seu contato a uma breve caricia em
seu braço. Não perdeu os olhares vigilantes dos servos ou os olhares que
trocaram entre eles.
O silencio fez Ildiko pensar no que dizer. — Ainda estou aprendendo seu
idioma. — Disse. Ambas as mulheres se moveram e Ildiko se felicitou por
aprender a ler melhor as expressões de seu povo adotado. Ela definitivamente
viu surpresa cruzar os rostos das servas com as palavras pronunciadas em Kai.
— Até onde posso dizer, falam melhor o idioma universal do que eu falo
Kai, então porque não começamos com a linguagem universal e vocês podem
me ensinar outras palavras enquanto conversamos?
Já não estava vestido com peles e sua armadura, Brishen agora estava com
uma roupa ainda mais formal que a que usou no casamento em Pricid.
Uma túnica com mangas e até o pescoço, cobria a maior parte da camisa
justa e a calça, tudo em vários tons de negro e seda, com bordados em verde
escuro. Pedras minúsculas estavam presas em seu cabelo preto. Com exceção
das tranças, seu cabelo estava solto e caía sobre seus ombros, escuro como as
asas de um corvo.
Enquanto Ildiko sabia que brincava com ela, sua observação fez seu
estomago girar nervoso. Ela não era muito de tomar vinho ou cerveja, mas
esperava que ambos corressem livremente durante a festa, do contrário suas
mãos iriam tremer tanto que poderia apunhalar a si mesma com sua própria faca.
Ildiko ofegou, ainda assombrada pelo conteúdo do baú. Era mais fino que
qualquer coisa, mesmo a rainha Fantine não usava algo assim nas festas
celebradas nos assuntos de Estado. Sua própria roupa no casamento se
comparada com estas, eram trapos. — Agora é um bom momento. — Disse.
Estava vestida deixo da túnica de forma similar a Brishen, com uma túnica
larga sobre uma camisa mais justa. Sua túnica era mais larga que a dele e mais
curta para dar a ilusão de uma saia, mas com muito mais liberdade de movimento
que uma saia permitia. Usava uma calça por baixo da túnica, dentro de botas
com cordões que chegavam às panturrilhas. O cinto que rodeava sua cintura
não era tão largo como o dele, mas com rubis não muito maiores que uma
pimenta e brilhavam como pequenos olhos de demônio na penumbra.
Brishen segurou sua mão e puxou até que ficou perto o suficiente para
sentir o calor de seu corpo. Sua mão se apoiou levemente em suas costas, os
dedos traçando a linha superior do cinto. — Você é muito inteligente esposa e
tem um talento para dizer muito mesmo quando fala pouco. — As linhas nos
cantos dos olhos se aprofundaram e os cantos da boca se ergueram. — Será
muito melhor.
— Par uma enguia morta está muito bonito, meu marido. — Disse ela e
lhe piscou um olho. Sinhue e Kirgipa ficaram sem folego.
— Para um molusco fervido, o negro lhe cai muito bem, minha esposa.
— Brishen disparou novamente e seu sorriso ficou mais amplo.
Mais suspiros e Ildiko viu as duas servas com as bocas abertas e olhando
em choque a troca de insultos.
Brishen fez um gesto para uma das cadeiras. — Sente-se. É uma prática
jantar antes. — Estendeu um guardanapo de linho em seu colo quando se
sentou. — Terá o peso de cada olhar sobre você na festa Ildiko e será servida
coisas que nunca comeu antes. Prefiro que não se surpreenda com nenhum
prato.
Ildiko se encolheu um pouco com culpa. Brishen comeu com valentia tudo
o que foi servido no banquete em Gauri depois de seu casamento. Foi incapaz
de determinar suas expressões enquanto colocava a comida na boca e mastigava,
mas a tensão em todo seu corpo lhe contou o suficiente para saber que o jantar
foi uma tortura em particular.
A expressão estoica de Brishen não mudou e ele fez um gesto para que se
sentasse. — Deve se acostumar com este Ildiko. Serve-se no auge da festa e da
celebração. Um manjar entre os Kai. Com certeza será servido mais tarde. Casais
recém-casados compartilham como um símbolo de fortuna e prosperidade no
casamento.
Ildiko fez o ele pediu e se sentou, mas deslizou sua cadeira um pouco mais
longe da mesa. — O que há nesta torta? — Fosse o que fosse, ainda estava vivo.
Que se dane a fortuna e prosperidade. Sua garganta se fechou em protesto com
a ideia de ter que engolir algo vivo e que continuava se contorcendo.
Ele enfiou a ponta de sua faca com força o suficiente para fazer o tampo
da mesa vivrar o vinho salpicar. Um grito perfurou o silencio. Brishen virou a
faca. Ouviu-se um ranger e a torta se rompeu bruscamente, deixando algo negro
sobre a mesa.
Desta vez, Ildiko saltou de sua cadeira para ficar atrás dele, com os olhos
abertos e horrorizada quando Brishen tirou sua faca da torta destruída. Ela saiu
livre com um som de sucção, revelando um tipo de inseto, muito parecido com
um escorpião empalado na ponta da faca em espasmos. Ildiko colocou a mão
sobre a boca e rezou para que não ficasse doente.
Brishen colocou o animal em seu prato, tomando cuidado com o ferrão
venenoso na ponta de sua cauda cheia de nós. A faca perfurou a casca dura da
criatura para segurá-la no lugar. Brishen levantou uma segunda faca e cortou a
cauda letal, em seguida, a cabeça com suas múltiplas hastes de olhos e dentes
curvos. O que restou foram as garras e o corpo dentro da carcaça.
Ele iniciou e concluiu o processo sem olhar para ela. O foco de Brishen
deslocou-se para Ildiko finalmente e sua voz tinha simpatia e uma espécie de
humor negro. — Fico feliz que esteja vestida de preto, esposa. Ninguém verá as
manchas.
Ela olhou para ele, sentado calmamente entre a ruina da torta e os restos
da criatura morta e eviscerada. Sua porção da hospitalidade Kai estava em seu
prato, um pedaço cinza pálido brilhante com uma gosma preta que escorria
pelos lados. Ele se contraiu uma vez.
Depois, ela olhou para Brishen com os olhos turvos, mas decididos. Ildiko
enfrentou uma mulher muito mais venenosa do que aquela criatura. Ela não
seria derrotada pelo jantar. — Pelo menos me diga que tem gosto de frango.
Capítulo Doze
Tudo era grande, até majestoso – adequado para um herceges real e sua
hercegesé. Brishen desejou ferozmente que pudesse segurar a mão de Ildiko e
escapar de volta para o quarto dela – ou seu – e compartilhar uma refeição
sozinhos. Se não lá, então com os soldados sob o seu comando. Mesmo as
rações de estrada tinham um gosto delicioso quando compartilhados em uma
boa companhia. Ildiko poderia evitar outra porção de scarpatine6 e as interações
venenosas de seus pais. Como escapar não era uma opção, rezava para que a
celebração terminasse rapidamente.
Ela vestiu bem sua máscara, mas Brishen sentia o medo dela. Sua mão
repousava na dobra do cotovelo dele, os dedos enterrados em sua manga. Ao
invés de humana ele era Kai e possuía as mesmas unhas afiadas, ela poderia
cortar através do tecido e marcar seu antebraço com sangue. Felizmente seu
aperto era apenas forte o suficiente para diminuir a circulação de sangue para os
dedos dele.
Ela olhava para frente, mas seus dedos estavam no braço dele. — Quase
bom. — Ela disse suavemente.
Ela olhou para ele do canto do olho antes de cortar outro pedaço. A massa
cinza se contraiu entre os dedos dela e ela bateu contra a borda do prato para
dominá-la. — Não tem gosto de frango. — Ela mordeu e mastigou novamente.
Brishen riu, satisfeito e aliviado. — Não, não tem. — Garantido que ele
não teria que pegar a bacia, se juntou a ela na mesa. Sua porção de scarpatine
esfriou e ele suspeitava que a dela também. — Qual gosto tem para você? —
Ele perguntou entre mordidas.
Suas faces coraram em um vermelho brilhante. Três dias antes sua resposta
o teria alarmado e ele pensaria que ela estivesse doente. Ele descobriu desde
então que tal coloração era semelhante ao blush escurecido dos Kai – uma
expressão de raiva, vergonha ou prazer. O aperto que ela deu na mão dele
garantia que ela gostou de suas palavras.
Ildiko soltou seus dedos dos dele e acariciou sua mão. — Duvido que a
corte Gauri seja tão diferente da Kai. Se a nobreza não está espionando uns aos
outros, eles estão se difamando. Tudo é motivo para fofocas e ridicularização.
A menos que você queira ser o tema da conversa entre os senhores e senhoras
entediados que estão esperando para afundar as suas garras em você, coma o
que lhe é servido e aja como, se fosse agradável. Aprendi em segurar a respiração
enquanto mastigava e respirar pelo nariz quando engolisse. Sempre tenho
certeza que minha taça está cheia.
7 Um trabalho ornamental feito de muitos fios, finos e pequeninas bolas de metal, soldados de forma a compor um desenho.
Ela piscou para ele e levantou o punhal para colocar no prato onde estava
o scarpatine. — Está é uma das coisas mais horrendas que já comi, porém não
é nada comparado com o prato de sopa de ervilha do Rei Sangur. Jurarei até a
minha morte que aquilo foi feito e preparado por uma matilha de demônios
podres. O cozinheiro a servia para nós uma vez por semana sem falta, embora
eu não me lembre de ninguém ter que lutar contra um ataque vicioso de ervilhas
apenas para engolir a sopa.
Ele apertou a sua mão ao seu lado com o cotovelo. — Se ela tentar, eu a
coloco em um espeto, esposa.
Uma risada suave provocou seu ouvido. — Você não pode espetá-la. Ela
é a sua mãe, Brishen.
Ildiko sentou-se ao lado dele, rígida e silenciosa, com o olhar para a frente.
Secmis sentou-se em seu outro lado, as garras tamborilando em uma batida na
mesa enquanto todos esperavam Djedor para começar a festa com as boas-
vindas oficiais para a esposa de Brishen.
Eles não esperaram muito. A rainha disparou o primeiro tiro assim que os
servos colocaram as tigelas de sopa na mesa. — Vocês seres humanos são
muitos pálidos. — Ela disse no idioma universal. — Apenas nossos doentes têm
esse tom.
Aqueles que se sentavam mais próximos da mesa principal e ouviram o
comentário, riram entre si e passaram o comentário para os outros que se
sentavam fora do alcance. Brishen abriu sua boca para criticar sua mãe. A mão
de Ildiko em sua perna embaixo da mesa o impediu.
O brilho em seus olhos queimava. Ela mudou de tática. — Seu idioma Kai
é muito desajeitado. — Disse ela na mesma língua.
Brishen escondeu seu sorriso e começou sua própria sopa. Ele era intuitivo
o suficiente para saber que uma interferência de sua parte não seria bem recebida
por qualquer mulher. Tinha a súbita sensação desconfortável de estar sentado
entre dois grandes gatos, ambos mostrando e retraindo suas garras como se
estivessem se enfrentando.
A troca entre a rainha Kai e sua recém adquirida nora Gauri continuou
durante a maior parte da refeição, com os convidados do jantar em seus assentos
tentando ouvir cada palavra e expressão. Seu escrutínio se intensificou quando
o último prato foi servido – torta de scarpatine, com sua crosta dourada e seus
conteúdos ainda se contorcendo.
Uma risada ameaçou escapar de sua garganta. Ildiko saltou em seu assento
quando Brishen se virou e apertou sua bochecha contra a dela, de modo que seu
rosto ficasse longe do público, seus lábios roçaram seu ouvido. Era uma
importante exibição de afeto em público e sabia que sua mãe ficaria irritada ao
longo dos dias e a corte fofocaria sobre eles por semanas.
Enquanto Ildiko não participava dos inúmeros oohs e aahs sobre a iguaria
servida, ela não hesitou quando Brishen repetiu o processo de corte na torta e
massacrou o scarpatine. Ele quase podia sentir a onda de decepção dos
convidados quando ela comeu uma parte sem hesitação ou fanfarra. Apenas ele
ouvia o ritmo controlado de sua respiração – quando ela a prendeu e quando
exalou – e teve certeza que a taça permanecesse sempre cheia.
Ao lado dele, Secmis tremia de frustração. Ela recebeu uma torta e jogou
sua ira sobre o scarpatine, perfurando a casca e cortando a carne com as suas
garras em vez da faca. Sangue negro oleoso escorria da ponta de suas garras
conforme ela sorria para Ildiko que firmemente a ignorou e Brishen ficou feliz.
Brishen pegou a mão dela e a levou em direção a boca para um beijo, então
inclinou-se para ela. — Você foi uma magnifica hercegesé, minha esposa.
Ela arrastou a ponta dos dedos em sei queixo. — Acho que nós dois
recebemos a mensagem da rainha quando ela esviscerou o scarpatine. Sua mãe
me odeia. Sinto muito.
Agradecia a elas e pela adaptação rápida a sua aparência – algo que ainda
provocava muitos olhares e sussurros não muito sutis a cada vez que ela fazia
uma aparição em uma das funções sociais sem fim que participava com Brishen
desde a sua chegada a Capital.
Ela fingia não ver os tapinhas simpáticos nas costas e o aperto nos ombros
que os homens Kai davam em Brishen ou ouvir as ofertas feitas em voz baixa
para ter uma amante Kai por uma noite. Sentir-se ofendida não fazia sentido
para ela. Em Pricid, ela era considerada uma beleza – bonita demais para os
gostos de um repulsivo, de pele cinza, príncipe Kai. Os Gauri e os Kai eram dois
povos com muito mais semelhanças do que diferenças, mas as diferenças se
destacavam muito mais e cada um encontrava o outro difícil para os olhos, quer
eles estivessem brilhando ou não.
Seu casamento era muito recente e estranho para ela sofrer as dores de
ciúme, mas estava levemente curiosa. O que nessas mulheres em particular atraiu
Brishen? Teria sido simplesmente sua beleza ou algo mais evasivo e sútil como
seu caráter? Seu marido era um homem de boa índole com um humor fácil.
Ildiko não poderia explicar o motivo de se sentir tão atraída por ele desde seu
primeiro encontro. Um sentido intuitivo de alma vibrante e grande coração que
estava por trás do exterior feio? Ela não sabia, mas estava grata por seu afeto
recíproco. Embora fosse humana e ainda incapaz de apreciar a beleza física dos
Kai, entendia o porquê uma mulher Kai a quem ele favoreceu um dia, poderia
estar com ciúmes dela por mais do que sua classe elevada como a esposa de
Brishen.
Ildiko se repreendeu repetidamente por opor-se a rainha. Até agora,
Secmis não fez nada além de insultá-la, mas Ildiko confiava nas advertências de
Brishen a respeito de sua mãe e mantinha-se cautelosa. Diante dessas mulheres
Kai, que provavelmente consideravam umas às outras rivais até sua aparição na
corte, a deixava por publicamente enfrentar a formidável Secmis. Elas podiam
olhar fixamente e fazer cara feia para ela, mas hesitavam em começar uma troca
verbal hostil com ela.
Uma semana com este tipo de combate a deixou exausta, mas ela não
conseguia dormir. Ildiko ficou deitada de costas e olhando o dossel pendurado
no teto. Sinhue e Kirgipa não acordaram quando ela saiu da cama, vestiu um
robe e saiu furtivamente de seu quarto. Um guarda Kai fez uma reverência
quando ela passou por ele no corredor. Ele não disse nada, mas saiu atrás dela
e a seguiu no seu caminho para os jardins do palácio.
Esta era a primeira vez que ela os via à luz do dia e era uma visão muito
sombria. As flores se fechavam por trás de cascas escuras, de proteção e as
folhas negras e espinhosas rangiam na brisa fresca. A manhã transformava o
jardim em um espaço de outro mundo, saindo de um pesadelo. Sentada sob os
galhos esqueléticos das árvores angulosas, Ildiko nunca se sentiu tão sozinha ou
fora de lugar.
Lágrimas ardiam em seus olhos. Ela as piscou fora. Eles encheram
novamente, teimosa ela se recusou a secar até mesmo quando o sol nascente a
atingiu com seus brilhantes raios. Ela respirou fundo – dentro e fora – se
recusava a sucumbir a tensão sufocante no peito ou os soluços subindo em sua
garganta.
— Você não deveria ter que se cobrir. Não tenho vergonha da minha
esposa, Ildiko.
Como todas as mulheres Kai que Ildiko encontrou até agora, a mãe de
Talumey era uma criatura alta, esguia e com cabelo prateado. Ela não tinha os
músculos atléticos de Anhuset e a graça altiva de Secmis, mas Ildiko achou que
ela adorava a moda Kai. Havia uma suavidade em seus traços, bem como uma
profunda tristeza na curva de sua boca.
Ela ajoelhou-se diante de Brishen. — É uma honra à minha casa a sua
presença nela, Herceges. Você e sua esposa.
Tarawin levou as mãos unidas até sua testa. — Ele ainda é valorizado. Meu
filho nunca teria sonhando com tal privilégio. Fico feliz por trazê-lo para casa,
para nós. — Ela olhou em silêncio para Ildiko e as linhas nos cantos de seus
olhos se aprofundaram quando ela sorriu. — Uma benção seu casamento,
Hercegesé. Bem-vinda a Haradis. Bem-vinda a minha humilde casa.
Brishen ofereceu-se para levar Kirgipa com eles quando devolvesse a luz-
mortem de Talumey. A serva se recusou. — Ficarei com a minha mãe quando
ela levar sua luz-mortem para Emlek, eu a confortarei lá. Não acho que posso
suportar ver meu irmão se reduzir para apenas luz e lembranças.
Eles tomaram chá, mas recusaram a comida que Tarawin ofereceu, pelo
qual Ildiko agradeceu. Seu estômago estava em nós. Está era uma casa em luto
e carregava dentro de si uma espera silenciosa, como se as paredes e piso não
respirassem esperando o retorno de Talumey.
O globo hesitou nas mãos trêmulas de Tarawin com a resposta dele. Ela
estendeu o globo para Brishen que curvou seus dedos sobre os dela, dedos finos
e garras negras cobrindo o globo pálido.
Ildiko nunca se envolveu com magia, mas sabia o suficiente sobre feitiços
para compreender os perigos letais de interromper. Esta era uma magia
poderosa, dolorosa e tudo que podia fazer era ficar de lado e torcer as mãos
enquanto seu marido segurava a esfera e convulsionava de joelhos, suas palavras
saiam gagas e desajeitadas.
Ele era uma sombra pálida de cinza quando deixaram a casa e recostou-se
em seu cavalo buscando apoio.
Tão orgulhoso como qualquer príncipe humano de uma casa real, seu
novo marido também era simpático e aparentemente ignorava seu status.
Nenhum príncipe, duque ou barão que ela já conheceu, jamais se curvaria para
alguém abaixo deles, mesmo que fosse uma parte obrigatória de algum ritual
religioso.
Depois de ter sido a receptora de tais críticas duras feitas por sua tia, Ildiko
o compreendia. — Acho que você não perdeu o sono por seu
descontentamento?
Ildiko ficou em seu quarto pelo resto da noite e ficou acordada até quase
amanhecer, seus ouvidos atentos a qualquer som vindo do quarto ao lado. Ela
adormeceu no silêncio e despertou na próxima noite para encontrar Brishen em
sua porta, não aparentando mais o desgaste e com a oferta de mostrar a ela os
jardins reais. Eles percorreram o caminho. Ele não sabia nada de flores e plantas
e ela brincou com ele que, se eles tivessem visitado o depósito de armas, ele seria
muito mais informativo.
— Isso é verdade. — Disse ele. — Mas você me agrada mais cercada por
coisas belas do que as de guerra.
Ildiko encolheu os ombros. — Sim. Quando a corte Gauri ficava tão cheia
e agitada, muitas vezes ficava isolada e não tão...
— Observada? — Brishen suspirou em seu aceno de cabeça. — Eles
podem ser sufocantes, se você não está acostumada a isso.
— Não mais.
Ildiko se perguntou o que mudou para ele. Ele respondeu à sua pergunta
não dita.
Ildiko segurou suas mãos e beijou os nós dos dedos. Ela riu quando ele se
encolheu. — Eu tenho que dizer adeus a sua mãe?
— Agora?
Anhuset abriu a porta da baia para deixa-lo sair e fechou-a atrás dele. —
Ela se adapta facilmente.
Ela o seguiu até o poço onde puxou a água em suas mãos para lavar. Os
soldados moviam-se ao redor deles. Eles se curvavam ou saudavam quando
passaram por Brishen e sua tenente de confiança em seu caminho para os
estábulos reais.
Brishen fez sinal para ela o seguir quando fizeram o seu caminho de volta
para os portões do palácio, privados apenas para uso da família real. — Ela sabe
que fica perto da fronteira com Belawat. Não acho que tenha que explicar o
porquê requer de uma guarnição por perto.
— Ela é nascida e criada em um palácio, Comandante. Saggara não tem
o conforto de Haradis e pelo que vi em seu casamento, ele definitivamente não
tem as coisas finas de Pricid.
— Você vê?
— Ele se foi até a parede. Se for muito alto, eu não serei capaz de alcançá-
lo.
Ele não iria esperar para descobrir e perseguiu as duas mulheres quando
elas desapareceram em outra curva no corredor. Seu coração explodiu em sua
garganta com a visão que o cumprimentou.
Antes de Brishen gritar para Ildiko recuar, a scarpatine foi em sua direção,
suas pernas estavam flexionadas e preparadas para saltar sobre sua vítima e
afundar o veneno em sua carne. Sinhue gritou, como fez Ildiko antes de balançar
o machado. A lâmina pegou a borda do inseto e Brishen ouviu sinos como metal
batendo contra a pedra. O som de sino foi silenciado pela rachadura molhada
da casca do inseto esmagado e suas entranhas.
— Algum veneno caiu em você Ildiko? — Ele passou as mãos sobre seu
rosto, pescoço, em frente aos ombros e seios dela, procurou qualquer fragmento
revelador de pano queimado ou uma picada reativa em sua pele. A parede era
como um mural de mortos, um machado prendendo um scarpatine negro morto
na penumbra e o salão fedia a peixe podre.
Ildiko empurrou as mãos dele. — Eu estou bem Brishen. — Ela fez uma
careta. — Não posso acreditar que os Kai comem essas criaturas repugnantes.
Não posso acreditar que eu comi um.
Brishen não via nenhuma diversão na situação. Ele olhou para os restos
do scarpatine, os pedaços escorrendo pela parede. Ele sinalizou para um dos
guardas que estava nas proximidades. — Envie alguém para limpar isso. — Ele
se virou para Sinhue que pairava por perto de Ildiko. — Eu preciso de você para
cuidar de sua senhora.
Ela fez uma careta para ele. — Não, mas eu certamente posso matar um
inseto.
Brishen mostrou os dentes para sua prima. — Nem mais uma palavra. —
Sua mente correu. Scarpatine gostavam de locais escuros e quentes, mas eles não
gostavam do cheiro dos Kai e tendiam a evitar áreas onde se reuniam como as
casas. Eram mais um perigo para os caçadores e rastreadores que poderiam
tropeçar em um deles quando teciam suas armadilhas de palha, pois os
scarpatine ficavam escondidos ali.
Ildiko ficou rígida em seus braços e sua boca se curvou para baixo. Seus
olhos se estreitaram. — Isso é um desperdício de tempo de sua tenente, Brishen.
Eu não preciso de uma babá. Posso caminhar por minha própria conta. — Ele
ia começar a argumentar, mas parou ao sentir um dedo pressionando seus lábios.
Ela lançou um sorriso com seus dentes quadrados. — Basta deixar o machado
antes de ir.
Ele deu a ela uma profunda reverência. — Combina com você. — Ele
sinalizou para Anhuset que abriu a porta. — Voltarei a tempo para acompanha-
la até o salão.
A porta mal de fechou atrás dele antes de Brishen se arremessar pelo longo
corredor em direção à escada que levava para a suíte da rainha, Anhuset o
perseguia.
— Brishen, pare!
Ele a ignorou, correndo cada vez mais rápido em direção a sua presa, onde
ela estaria esperando no centro de sua teia. Ele grunhiu quando um peso bateu
em suas costas, levando-o para o chão. Ele caiu com o atacante em um
emaranhado de braços e pernas até que colidiu contra a parede. Em segundos,
eles estavam agachados com Anhuset entre seus joelhos, o antebraço
pressionado contra sua garganta até que ela não conseguia respirar.
Ele aliviou a pressão, e ela engasgou em busca de ar. — Fique feliz por
meu afeto por você, sha-Anhuset. — Ele disse cada sílaba entre as respirações
pesadas. Seu braço se abaixou e sua mão deslizou sobre sua clavícula para
descansar em seu peito. — Ou eu teria arrancado seu coração e a alimentaria
com ele.
— Talvez, mas não de você e o poder dela é maior que o seu. Maior que
o de seu pai. — Faíscas brancas brilhavam nos olhos de Anhuset e um humor
fraco suavizou suas palavras. — Tenha fé em sua hercegesé. Ela fez um bom
trabalho com o machado. Ela pode se defender. Se for morrer para defendê-la,
não faça por algo tão mesquinho.
Anhuset concordou, mas hesitou. — Prometa-me primo que você não vai
irá até os aposentos da rainha no segundo que eu virar as costas.
Sua careta não desapareceu. — Sim, eu o faria. — Ela não partiu até que
ele se afastou da escada e caminhou de volta para o quarto de Ildiko.
Ele a encontrou no meio de se vestir para o jantar. Ela olhou para fora da
tela no canto da sala. — Você foi rápido.
Brishen decidiu não revelar que sua prima racional frustrou seus planos de
cuspir sua mãe na ponta de sua espada como a scarpatine que ela era. Ele olhou
para a túnica de seda preta e calça colocados sobre a cama – completamente
inadequado para uma viagem.
— Faça minha vontade, Ildiko. — Ela podia ser boa, ele não era e
precisava sair do palácio, da cidade e definitivamente para longe de sua família
e para a paz relativa e segurança em Saggara.
Ela olhou para ele por um momento. — Como quiser. — Disse ela. —
Pedirei para Sinhue para arrumar tudo para a montaria.
Desta vez, quando ele pisou pelos corredores do palácio, procurou seu pai
na sala de conselho. O rei estava sentado à cabeceira da mesa do conselho, um
conclave de ministros de cada lado dele enquanto analisavam e discutiam o mar
de documentos espalhados por toda a mesa.
Djedor acenou para seu filho ficar de pé e olhou para ele com um olhar
leitoso. — Faça isso rápido.
O rei fez uma careta. — Ouviu falar alguma coisa sobre Belawat que eu
não soube?
Eles jogavam esse jogo a cada vez que Brishen se aproximava de seu pai.
Djedor geralmente ficava decepcionado pela falta de reação de seu filho sobre
as irritações de Secmis sobre ele. Desta vez, ainda cheio de desejo de cometer
matricídio, Brishen não se incomodou em esconder sua raiva.
— A menos que eu possa matá-la sem impunidade, não quero ficar perto
daquela puta. — Afirmou. Como um, os ministros engasgaram, mas o rei apenas
riu. — Ela tentou matar a minha esposa.
Djedor girou uma pena entre as garras. — A menina Gauri ainda está viva?
— Sim.
— Então Secmis não foi muito dura. — Ele acenou com a pena a Brishen,
seu interesse nas ações do filho rapidamente desaparecendo. — Vá se quiser.
Mandarei um mensageiro com cópias dos acordos de transportes finais. Graças
ao seu casamento, já foi garantido três navios dedicados ao transporte de
amaranto a vários reinos, sem incluir Gaur. Tente manter sua esposa feia viva
por tempo suficiente para nós obtermos o último documento selado com o
acordo. Depois disso, ela é bem-vinda a cair morta a qualquer momento.
Fervendo com a indiferença de seu pai, embora não esperasse nada mais,
Brishen fez uma reverência e saiu da sala do conselho. Com toda honestidade,
agradecia pela permissão disposta de seu pai. Poderia ter negado o pedido de
Brishen e mantê-lo e a Ildiko presos em Haradis indefinidamente por pura
perversidade. Ele não estava acima de tal comportamento.
— Você comeu?
Desta vez, ele pegou a astúcia em seu sorriso. — Sim. Uma batata. Estava
uma delícia. Não poupei nenhuma.
Sua provocação deixou seu coração um pouco mais leve. Embora ela não
fosse fácil para os olhos, era fácil para a sua alma. Ele beijou sua testa. — Você
é uma boa esposa, Ildiko.
Brishen mal olhou para ele. Estava familiarizado com a letra de sua mãe,
bem como suas exigências para voltar a Haradis imediatamente. Borrões de tinta
marcavam a escrita e havia buracos no pergaminho onde ela, obviamente,
apontou a pena através do papel quando escreveu.
Brishen olhou para Ildiko ao lado dele. O luar tinha uma maneira de mudá-
la. Não a deixava bonita para os padrões Kai, mas as sombras quando batiam
em suas feições tocavam suas bochechas, ressaltando o rosa de sua pele e o
vermelho de seu cabelo. Ele gostava das cores da noite nela.
Sua expressão confusa ficou ainda mais. — Mas por que? Tenho
dificuldades em acreditar que ela sentirá sua falta.
Eles viajaram por cinco noites depois disso sem incidentes, cavalgando em
uma ampla planície coberta por um mar de ervas sporobolus8. Altas até os flancos
de um cavalo, as hastes da grama balançavam e os tocavam quando passavam,
sussurrando carícias fantasmagóricas na escuridão. À distância, a grama se
levantava como surcos na terra, parecidos com ondas em um oceano de ervas e
Brishen apontou para uma torre coroada por perafitas9 brancas reluzente sob o
luar.
— Você me disse que os Kai são uma das raças Antigas. — Os olhos azuis
de Ildiko ficaram pratas na escuridão.
— Sim, embora nossa magia seja apenas uma fração da magia dos
Gullperi. Estive no alto. Poder ainda emana de lá.
8. Gênero botânico que pertence a família Poaceae. São aquelas ervas daninhas que aparecem entre a grama quando ela está muito
alta.
Sua guarda fez uma pausa no ponto mais alto da baixa ascensão. Brishen
virou-se para Ildiko cujo olhar permanecia na fortaleza. — Bem-vinda a Saggara,
esposa. Minha casa. E agora sua.
Capitulo Quinze
Após dois meses de não ver um único rosto humano, exceto o seu no
espelho, Ildiko quase caiu de choque na escada ao ver um ser humano passando
pelos corredores de Saggara.
De seu lugar nos degraus, ela viu quando um homem vestido de libré, com
uma garrafa de água e um peixe, foi conduzido pela escada e corredor onde ele
desapareceu debaixo do arco talhado em curva.
Ildiko voou escada abaixo, grata por ter escolhido o vestido Kai de túnica
e calça, que permitiam um movimento rápido, sem o emaranhado de saias
longas. Um servo a reconheceu quando ela seguiu o visitante e sua escolta.
Ildiko fez um gesto para que a seguisse enquanto ela andava a passos
largos, mantendo sua presa à vista enquanto se dirigiam para o grande salão da
mansão. — Quem é o nosso visitante?
— Um mensageiro de Salure.
Ela fez uma pausa para olhar o servo. No momento que chegou com
Brishen a Saggara, Ildiko se esforçou para expandir o seu conhecimento não
somente de sua cultura, mas também de sua geografia.
— Eu adoraria ir. — Disse ela. Seria a primeira vez desde seu casamento
com Brishen que realmente jantaria ao invés de tomar um café da manhã ou
almoçar à noite, com outra pessoa que não fosse Kai. Ela ansiava que servissem
pratos conhecidos por ela. Acostumou-se com a maior parte da cozinha Kai que
tentava comer, mas sentia falta da comida da corte Gauri.
— Um homem cauteloso.
— Um homem inteligente.
— Quando retornará?
Eles se separaram do lado de fora do grande salão, ela para o pátio e ele
para o quartel e estábulos. Ela fez sua refeição sozinha, sentada na varanda de
seu quarto que tinha vista para o pomar de laranjas que se espalhava selvagem
pela parte de trás do casa principal da propriedade à beira de um campo de
amoras.
Brishen fez um curto passeio pelo bosque com ela ou pelo menos tanto
quando um passeio pela vegetação rasteira emaranhada com algumas foices
permitiam. As árvores estavam cheias de frutas prontas para colher e fervilhava
de vespas no início do crepúsculo.
Ele demonstrou interesse em sua ideia, mas ainda não estava convencido.
A força de trabalho de Saggara era dividida entre a sua presença militar e os civis
que colhiam amaranto. Ele não achava que tivesse pessoas o suficiente para
trabalhar no pomar, mas consideraria.
Ela sentiu a raiva latente dentro dele desde o ocorrido com o scarpatine
até que chegaram em Saggara. Ele não disse nada a ela sobre o incidente ou fez
uma pergunta além de seu bem-estar, mas não era difícil assumir que Secmis
tivesse algo ver com o inseto nos lençóis de Ildiko. Orgulho a fez oferecer um
pequeno argumento contra sair para Saggara imediatamente, mas ficou mais do
que feliz em consentir a insistência de Brishen para saírem naquela noite.
Ildiko retornou a seu quarto para tirar suas roupas e vestir sua camisola.
Do baú no pé de sua cama, ela pegou um dos três livros preciosos que levou
consigo de Pricid – um volume de salmos e poemas. Ela leu tantas vezes, que
acabou memorizando a maioria deles, mas não eram menos agradáveis a cada
leitura. Decidiu ficar lendo no quarto de seu marido até ele retornar das
fronteiras.
Surpresa, ela fez o que ele disse e abriu espaço onde estava. Ele deslizou
ao lado dela e os cobriu com os cobertores. Ildiko se virou de lado e murmurou
sua aprovação quando ele a colocou em seu corpo e acariciou com o rosto onde
seu ombro e pescoço se encontravam. Eles dormiram assim durante suas
viagens para Haradis e depois para Saggara, seu corpo se sentia leve no conforto
e ela não mentiria dizendo que não prazeroso.
Uma vez dentro, eles atravessaram de um lugar a outro, por muro alto e
um portão fortemente vigiado. Brishen não teve que anunciar-se uma segunda
vez. Os portões se abriram e ele guiou seu grupo até um pátio com oficinas, um
estábulo, uma forja e um pequeno templo.
Brishen relaxou na sela. Até agora, os Kai permaneceram como vizinhos
pacíficos com o reino de Belawat. Os invasores que o atacaram e a Ildiko na
rota comercial tinham o brasão da casa real de Beladine sob sua armadura.
Qualquer que fosse a hostilidade do rei Beladine pelo casamento de Brishen
com uma Gauri real, essa hostilidade ainda não chegou a estas fronteiras nem a
este senhor Beladine. Ninguém ainda pediu que Brishen e seu guarda Kai se
desarmassem. Era uma demonstração de confiança e Brishen retribuiu trazendo
sua esposa para este jantar.
Por tudo isso Salure era indiscutivelmente um forte, muito como Saggara,
seu interior era luxuosamente decorado. O criado deixou Brishen e Ildiko em
uma sala de recepção adequada para a realeza. Tapeçarias pesadas, livres de
buracos de traça e camadas de poeira, alinhadas as paredes, inúmeras cadeiras e
bancos foram colocados ao redor da câmara, convidando um grande número de
pessoa a se sentar. Pequenos vasos de cerâmica descansavam em tripés de ferro.
Velas acessar perfumavam o ar com o cheiro de ervas que ultrapassavam o
cheiro de sebo das tochas iluminadas que revestiam a parede.
Ela puxou o capuz para trás, revelando a trança e as contas que Sinhue
colocou em seus cabelos. Seus olhos se moveram para trás e frente enquanto
olhava os arredores. — Suspeito que é bem organizada e provavelmente bem
abastecida com provisões e uma fonte de água fortemente protegida perto do
córrego.
— Você. — Ele traçou o bordado de sua capa com uma garra. — Você
nunca deixa de me surpreender. Achei que notaria a arquitetura ou o mobiliário.
Serovek é muito rico e ele mostra isso. Em vez disso, observou suas defesas e
conjecturas sobre a capacidade de Salure resistir a um cerco. Planos de
conquista, esposa?
Serovek fez sinal para que o acompanhasse através das portas e para um
salão iluminado, cheio de humanos e dividido por uma longa mesa de jantar. Os
outros convidados do jantar eram nobres de baixo escalão e escudeiros das
cidades de Beladine que recebiam proteção de Salure. Eles ficaram de bocas
abertas com Brishen e Ildiko. Brishen teve uma ideia do que Ildiko passou no
palácio e das circunstâncias que vivia em Saggara. Sua admiração por sua
imperturbável calma aumentou. Não era uma coisa muito agradável ser o objeto
de curiosidade de uma forma tão minuciosa, especialmente quando essa
curiosidade era misturada com desconfiança e repulsa.
Serovek fez as apresentações necessárias e logo Ildiko foi levada para outra
parte do salão por um bando de esposas e filhas ansiosas para saber como a
sobrinha do rei Gauri acabou sendo a esposa de um príncipe Kai.
Brishen fez uma anotação mental que se outro casamento entre um Kai e
um ser humano acontecesse em breve, ele entraria na piscina de apostas de
Serovek. — Você obterá pôneis rápidos daquele reprodutor.
Serovek bufou. — Acho que nós dois sabemos que não tem nada a ver
com o corante. O reino de seu pai é a barreira entre Belawat e Gaur. Os Kai
eram neutros até este casamento.
Brishen pegou uma segunda taça de vinho, mas desta vez apenas tomou
um gole. — Nossas mortes seriam inúteis. O casamento é simplesmente um
gesto de boa fé. — Ele não disse em voz alta o que tanto ele quanto Serovek
sabiam – muitas guerras começaram a partir de um gesto de boa fé.
Brishen ficou em silêncio. O que nos reinos dos humanos acreditavam era
parcialmente verdadeiro. Djedor era um bastardo teimoso e perspicaz e a
continuação de sua linha significava tudo para ele. Eles, no entanto, não
consideravam Secmis e as fraquezas do rei Kai não espelhavam as de sua
formidável rainha.
Brishen riu. A primeira vez que viu Serovek, gostou dele. Ele era tão
estranho quanto qualquer outro humano em aparência e expressão, mas era um
soldado com uma mente estrategista e uma propensão para a honestidade que
às vezes era nobre, às vezes oportunista, às vezes ambos. Essas eram as
qualidades que Brishen admirava.
Ela abriu um olho para olhar para ele. — Às vezes. Seu povo, no entanto,
tem sido muito acolhedor comigo.
— Suas palavras, não minhas. — Ela disse com um sorriso. — Mas seria
bom não se esmurrar tantas vezes ou ouvir de perto as vozes porque eu nem
sempre posso ler as expressões Kai.
Desta vez, ela abriu ambos os olhos e sentou-se mais reta na sela. — É
verdade, mas acho que muitas expressões humanas vêm dos olhos, como eles
se movem, piscam, mudam de cor de acordo com a emoção. Aprendemos a ler
esses sinais desde nosso nascimento. Torna-se uma segunda natureza. Eu tenho
dificuldade com os Kai porque seus olhos não mudam. Se eles se movem, eu
não posso dizer. Se eles mudam de cor, eu não noto. Os Kai choram quando
estão aflitos?
Era como se ela tivesse quebrado a fechadura de um baú que ele estava
tentando esconder por anos. Os olhos. A chave para entender os humanos era
aprender a ler seus terríveis olhos. O mesmo podia ser dito dos Kai.
— Você me fez considerar algo que nunca fiz antes. Temos muito o que
aprender um com o outro, esposa.
Ildiko olhou para ele por um momento antes de puxar o capuz sobre sua
cabeça. — Estou ansiosa para aprender.
Ele não esperava que ela se juntasse a ele mais tarde, então ela o
surpreendeu aparecendo diante dele enquanto ele se sentava na beirada de sua
cama ponderando a informação que recebeu de Serovek.
Vestida com uma de suas camisolas brancas, ela afastou seus joelhos até
ficar entre suas pernas. Seu aroma – cravo-da-índia e grama – entrou em suas
narinas. Brishen inclinou a cabeça para cima. — Eu pensei que dormiria em sua
cama.
Suas mãos eram macias em suas bochechas, as pontas dos dedos
acariciando linhas delicadas e redemoinhos através das maças no rosto e
têmpora. Ele fechou os olhos quando ela passou os dedos pelo seu cabelo. —
Já não sou bem-vinda em sua cama?
Era difícil pensar enquanto Ildiko o acariciava até um estupor. Quem sabia
que algo tão simples como uma massagem no couro cabeludo o reduziria a um
idiota pateta? Ele lutou para juntar seus pensamentos. Em algum momento ele
teria que lhe contar os planos de Belawat. Enquanto não gostava da ideia de
assustá-la, a ignorância matou mais do que uma parcela justa de pessoas e ele
queria que ela estivesse ciente do perigo.
Ainda assim, havia tempo suficiente para perturbar seu sono amanhã. Por
enquanto, ele diria outra coisa – algo que perturbaria o sono dele por muitas
noites.
Uma questão que permanecia no fundo de sua mente desde que Serovek
passou pela porta para os receber apareceu. Brishen abriu os olhos para
encontrar o olhar sorridente de Ildiko. — E Serovek, Ildiko? As mulheres
humanas o consideram bonito?
Ele não podia responde-la. O impulso de sua pergunta foi provocado por
uma confusão de emoções e pensamentos. Ele precisava de tempo para resolvê-
los, fazer com que tivessem sentido para ele mesmo antes de dizer a ela. A
emoção mais clara que ele sentia agora era o arrependimento – arrependimento
de ter devolvido a oferta de jantar ao senhor de Beladine e a certeza inabalável
que convidou um lobo para ficar entre eles.
Ela começou a responder, mas foi interrompida por outro bocejo que ela
escondeu atrás de sua mão. Brishen levantou-se e dobrou as cobertas. — Entre.
— Disse ele. — Você está dormindo em seus pés e minha cabeça dói depois de
toda a luz do sol.
Ildiko correu pela cama para o lado que reivindicou. Ela dormiu no
momento que se aconchegou nos travesseiros. Brishen usou essa benção para
se despir. Inseguro de como ela reagiria e não desejando a assustar para que
voltasse ao seu quarto, então ele sempre dormia meio vestido ao lado dela.
Estava quente e desconfortável, mas valia a pena para tê-la em sua cama. Desta
vez, ele dormiria como costumava fazer quando estava sozinho.
Ele deslizou debaixo das cobertas e a puxou contra ele. Sua trança deslizou
em seu braço, uma serpente colorida. Ele capturou e enrolou seu comprimento
ao redor de se antebraço antes de deixar a trança cair para se abrigar atrás das
costas esbeltas de Ildiko.
Choque encheu seus olhos com a resposta de Ildiko, arrastada pelo sono
e quase incoerente. — Mas você ainda é meu, marido.
Capítulo Dezessete
Ildiko concordou silenciosamente, mas ela não estava ali apenas para pegar
um presente de hospitalidade para a visita de Serovek. Esta era uma das quatro
principais casas de tintura no reino Kai e sob a tutela de Brishen. Ildiko sentiu
ser seu dever como sua esposa aprender alguma coisa obre o produto que
garantiu uma aliança entre seu povo e seu casamento e este entre eles.
Ela inalou uma respiração grata pelo ar limpo quando o mestre de tintura
os conduziu para fora e para longe das lixeiras e do vapor pungente saindo das
chaleiras. Ele apontou para outro conjunto de cubas, estas plantadas no chão
sem fogos abaixo delas. Os tingidores de Kai usavam as polias para levantar e
abaixar o pano em mais tinta.
— Este é o estágio de corante frio, Vossa Alteza. A cor foi aplicada e ficará
esticado e deixado para se sentar ao sol por onze dias. Nós tingimos as sedas
neste amaranto.
Ildiko se aproximou de uma das cubas e olhou para um mar de líquido
magenta. O corante cintilava sob o brilho de lanternas penduradas amarradas
em postes empurrados no chão. Seu traje típico cotidiano refletia as cores que
ela preferia – preto e verde, cinza e âmbar, assim como marrom. Ela nunca
gostou de vermelho ou rosa, mas olhando para o lustroso tecido, sentia-se
tentada a considerar um lenço naquela cor futuramente.
Ildiko olhou para si mesma, encharcada de tinta. Sua túnica verde ficou
um marrom enlameado e onde a cor atingiu sua pele estava pintada uma sombra
interessante de ameixa. Ela olhou novamente para Anhuset cujos dentes afiados
brilhavam em um largo sorriso. O mestre tintureiro não compartilhava sua
diversão. O olhar comprimido foi substituído por um olhar de olhos arregalados
e um rosto pálido como cinzas velhas. Até mesmo Ildiko não podia confundir
seu pavor.
Anhuset bufou. — Não conte com isso, Alteza. Lembre-se do que Soté
disse antes e você já viu os tintores aqui. O amaranto se prende rapidamente.
Pano, pele, cabelo. Ficará de uma cor ainda mais incomum por vários dias.
Brishen disse uma vez que sua pele o lembrava do molho amargo que os
Kai cozinhavam para liberar o corante. Ildiko levantou um braço rosa brilhante,
girando-o de um jeito e depois o outro. Sua roupa estava arruinada, mas pelo
menos agora e podia se gabar de ter cor em sua pele. Ela encolheu os ombros e
colocou o colar quebrado no corpete. — Posso pegar um pano seco, por favor?
— Perguntou ao tintureiro.
Seu mergulho na cuba de tintura cortou sua curta excursão. Uma vez seca,
Ildiko pediu desculpas pelo problema e prometeu a um mestre Soté terrível que
o herceges não ficaria zangado e não o procuraria apenas porque sua esposa
conseguiu se tingir de cor-de-rosa em sua tinturaria.
Anhuset gritou um comando e seu cavalo girou para os sons. Ela apontou
para uma parede de terra baixa em que vários Kai ou estavam de pé ou sentados
e assistiam algo além da linha de visão de Ildiko.
Ildiko guiou seu cavalo para um lugar melhor para que pudesse ver.
Brishen e Nefiritsen estavam trancados em um nó de braços e pernas, os
músculos esticados enquanto cada um tentava levar seu oponente ao chão.
Como os outros Kai na arena, Brishen usava apenas a tanga de linho. Ele
prendeu seu cabelo para trás e amarrou-o na nuca. O estilo destacava a forma
de amêndoa inclinada de seus olhos e a curva alta de suas maçãs do rosto. Estava
brilhante de suor e manchado de sujeira. Um homem bonito ainda, apesar da
sujeira.
O pensamento quase derrubou Ildiko. Não era a primeira vez que ela
notava a aparência de seu marido. Ela fez isso antes de três noites passadas e
então ela o chamou de bonito.
Eles compartilhavam uma cama, embora não tivessem feito nada mais do
que dormir. Ildiko rapidamente se acostumou à presença de Brishen ao lado
dela, o calor de seu corpo sob as cobertas. Ele era um tranquilo dorminhoco,
sem sussurros, sem roncos. Às vezes ela se perguntava se ele ou qualquer um
dos Kai sonhava como os humanos.
Estava deitado de lado, de frente para ela, com um braço apoiado no peito,
o outro estendido em sua direção. Algumas mechas de cabelo preto obscureciam
parcialmente suas feições, mas Ildiko ainda podia ver a linha afiada de sua
mandíbula e a ponte igualmente afiada de seu nariz. Para um homem que sorria
e ria tão facilmente, sua boca tinha um declínio distinto, uma herança da mãe
de sangue frio que tanto desprezava.
Ildiko piscou e uma onda de calor subiu de sua barriga até seu peito,
fazendo a respiração parar em sua garganta.
Estava nu sob os lençóis. Ela já o viu com o peito nu antes, mas ele
costumava se deitar parcialmente vestido com calça soltas de linho fino. Aquela
perna longa, descoberta ao ar noturno do tornozelo ao flanco, revelou que ele
optou por renunciar a tal modéstia.
Descansando ao seu lado, parecia para Ildiko uma estátua viva, esculpida
no granito escuro em uma forma elegante e de poder flexíveis. Ele era bonito e
a mudança em sua percepção lhe roubou o ar dos pulmões.
Lutou contra um rubor por ser pega olhando para seu próprio marido,
Ildiko tocou levemente a ponta de seu nariz com um dedo. — Estava tentando
encontrar uma maneira de matá-lo sem dar um soco na sua cara. Sorte para você,
que ela voou para longe.
Ele apertou seu pulso e levou sua palma para a boca para um beijo.
Generoso com suas afeições, ele fez isso muitas vezes antes, mas desta vez foi
diferente. Desta vez, o roce de seus lábios através do centro sensível de sua
palma enviou arrepios em seus braços e costas. Ildiko liberou a mão de seu
aperto e sentou-se para arrumar os travesseiros atrás dela. Ela evitou seu olhar
e alisou as cobertas sobre seu colo. — Lamento ter despertado você.
Ela percebeu o leve estreitamento de seu olhar pelo canto do olho. Ela
estava agindo estranho e ele sabia disso.
Ele começou a sentar-se e reclinar ao lado dela, mas parou. Um grave
silêncio pairou entre eles antes de Brishen amaldiçoar suavemente em Kai. Ele
puxou as cobertas sobre as duas pernas e sentou-se. Seus dedos em seu queixo
eram leves quando virou a cabeça para encará-la.
Ele tentou se levantar, parando quando Ildiko agarrou seu braço. Ela
ouviu em sua voz decepção e embaraço. Ele a achava repugnada ao vê-lo nu ao
lado dela e mal coberto. O oposto não poderia ser mais verdadeiro.
Esse rubor persistente fez um lento rastejar até seu pescoço. Dessa vez
Ildiko ignorou. — Não seja tolo, Brishen. Eu deveria ser a pessoa envergonhada.
Você me pegou olhando para você como carne de cavalo premiado. — Ela riu
enquanto seus olhos se arredondavam. — Não fique tão chocada. Posso ser
humana, mas não sou cega. Aprendi a apreciar a beleza Kai. — Ela levantou seu
queixo. — E me recuso a pedir desculpas por admirar meu próprio marido.
O amplo sorriso de Brishen combinou com o dela, mesmo que seus dentes
estivessem longe da intimidação. Ele colocou os travesseiros atrás das costas e
levantou a mão. Ildiko não se afastou desta vez. — E aqui eu pensando que eu
tinha casado com uma moça tímida e ruborizada. — Ele brincou.
Ildiko fungou e puxou para o lado o colar de seu trilho para revelar seu
pescoço, agora febril ao toque e sem dúvida, vermelho brilhante. — Você está
parcialmente certo. Estou ruborizada agora. — Ela soltou o colarinho e lhe deu
um olhar sério. — Não sou, no entanto, uma donzela.
A própria virtude de Ildiko era muito menos apreciada e como tal, sua tia
não agia com zelo para protegê-la. Brishen nunca perguntou e ela esperava que
fosse por falta de interesse mais do que uma suposição de que ela ainda não
conhecia a intimidade física entre homens e mulheres.
Ela apertou seus dedos, aliviada por sua admissão incitar apenas
curiosidade. Talvez os Kai não tivessem as mesmas noções tolas como os Gauri.
Ildiko bateu no braço dele e afastou a mão dela antes que ele esquecesse
que poderia esmagar seus dedos com um aperto. — Claro que não. Ele era um
rapaz agradável, o mais novo dos oito filhos de um nobre menor. Nenhum de
nós sabia o que estávamos fazendo realmente. Foi confuso e desajeitado e não
valeu a pena se preocupar depois da terceira vez.
— Considero isso um atributo, não uma falha. Mais pessoas poderiam usar
uma dose de praticidade de vez em quando.
Ele puxou sua trança. — Não a menosprezo. Acho esse traço um dos seus
encantos.
A cor de seus olhos se aprofundou mais uma vez para o dourado como
mostrou quando ele acordou pela primeira vez. Enquanto Ildiko não conseguia
acompanhar o movimento de seus olhos, exceto o leve empurrão nas bordas,
ela tinha sensação de que seu olhar ia além de seus cabelos, seus ombros e
pescoço e seus braços nus.
Como se ele sentisse seu desconfiança mais do que seu desejo, ele se
afastou lentamente, os ombros rígidos, o rosto limpo de expressão. Ele soltou a
trança de seu braço e alisou-a sobre seu ombro, seus movimentos controlados
e cuidadosos. Ele se afastou dela em corpo e espírito.
Ildiko agarrou seu braço, não querendo que ele deixasse seu lado. —
Gosto do seu toque, Brishen.
— Eles são, mas não sou descuidado, esposa. E se, por alguma razão
insondável, eu acidentalmente mordê-la, você é bem-vinda para me morder de
volta.
Ele traçou a linha de sua clavícula com as pontas ásperas de seus dedos,
suas garras escuras um sussurro de movimento em sua carne. — Você
obviamente nunca foi mordida por um cavalo.
Por mais estranha que fosse a analogia, não tinha argumentos para refutá-
la. Em vez disso, ela se contentou em tirar os cabelos de seu ombro e deixá-los
escorregar entre os dedos. Os olhos de Brishen se fecharam diante da carícia e
ele mudou de posição para que se deitasse na cama, a cabeça em se colo, de
costas para ela.
Ela sentiu a tensão de sua bochecha em sua perna quando ele sorriu. Ele
ficou quieto e ela puxou um de seus emaranhados. — Eu lhe contei minha
história passada, Brishen. Sua vez.
— Você não prefere ouvir sobre como minha baba me pegou praticando
como escrever meu nome urinando nas paredes do meu quarto?
Uma risada silenciosa percorreu sua perna. Brishen virou-se para seu outro
lado para encará-la. Sua cabeça pressionada em seu ventre, quente e pesada. Ele
pegou sua mão e colocou de volta em sua cabeça. Ela pegou a dica e recomeçou
a acariciar o cabelo dele.
— Minha primeira amante era treze anos mais velha que eu e a cortesã
mais famosa de todo o reino Haradis. Meu pai pensava que se alguém ensinasse
a seus filhos as habilidades do quarto, deveria ser alguém bem conhecido por
eles. — Ildiko parou e Brishen bateu no dorso de sua mão para continuar. —
Você perguntou. — Disse ele.
Ele caiu para o lado apenas para surgir com um travesseiro em suas mãos.
— Isso é uma declaração de guerra, Ildiko.
Ildiko compartilhava sua decepção. Ela tinha uma lista de tarefas mais
longas do que seu braço para cuidar por si mesma, mas isso não diminuia seu
pesar por ter que terminar esses momentos com Brishen. Ela caminhou de
joelhos pela cama para ele e deslizou os braços ao redor de seu pescoço. — Eu
ainda escovarei seu cabelo. — Disse ela.
Ele fechou-a em um abraço. — Sim. Cobrarei mais tarde. Conte com isso.
— Ele beijou sua testa e abaixou seus braços. — Vamos. Com sorte, podemos
dividir o almoço.
Ela o deixou para seu quarto, dando-lhe um último olhar e aceno com a
cabeça enquanto ele a observava sair de seu lugar no meio da cama amarrotada.
Sua orelha ainda formigava onde ele a beijou e suas costas se sentiam febris com
a lembrança de seu toque.
A batida rápida de Anhuset em seu ombro trouxe Ildiko de volta ao
presente e a realidade dos cavalos e lutadores Kai tentando matar uns aos outros
no campo de treinamento empoeirado.
Esperando atrasar sua confissão e evitar exibir sua nova cor de pele para
Brishen, ela perguntou sobre sua luta livre. — Você ganhou?
Entraram no castelo, passaram pelo grande salão e subiram uma das duas
escadas que flanqueavam cada lado da câmara de teto alto. Luz de velas
iluminavam o caminho pelo corredor. Ildiko não tropeçava mais no escuro, mas
estava contente pelas velas e sua luminosidade fraca.
Ela parou de frente a sua porta, virou-se para enfrentar Brishen e notou o
que ela esperava ser uma expressão indiferente, especialmente quando ele estava
diante dela quase nu. Ela tentou não deixar que seu olhar ávido o percorresse.
— Você quer tomar um banho eu tenho certeza. Encontramo-nos mais tarde
para uma refeição ou vinho?
Brishen colocou uma mão sobre a dela na trava da porta. — Você não vai
se livrar de mim tão rápido, esposa. Minha prima disse que você mergulhou em
uma cuba de tinta. Estarei no meu caminho uma vez que você satisfaça a minha
curiosidade.
Era inevitável, entrou ela apontou para dentro. Sinhue estava em outro
lugar, provavelmente ouvindo de outro servo ou soldado sobre como a esposa
humana de Brishen tentou tornar-se mais agradável aos olhos se pintando de
rosa. Se os cavalos viajassem tão rápido como fofocas, eles deixariam seus
cavaleiros fora de suas costas.
Brishen riu um pouco quando Ildiko tirou a capa, tirou a túnica arruinada
e revelou os braços, o pescoço manchados em vários tons da rosa.
Ildiko olhou o colar ansiosa. Sua mão coçava para arrancá-lo fora do
alcance de Brishen, mas ela reprimiu o impulso. Ele merecia sua confiança,
mesmo com aquelas coisas preciosas e insubstituíveis para ela. Ela apertou as
mãos atrás das costas. — Levaria muito tempo para consertar?
Ele deve ter ouvido algo em sua voz, algo hesitante e temeroso. — Não
muito. Posso levá-lo eu mesmo, se quiser.
Ildiko bateu palmas. — Oh sim, por favor, você faria? — Sua euforia foi
substituida por mortificação. — Sinto muito, Brishen. — Disse ela. — Você
não é um mensageiro. Alguém mais pode ir.
Brishen ofereceu o colar para ela, a cabeça inclinada de uma maneira que
Ildiko reconhecia rapidamente como um sinal de sua diversão. — Você não me
entende, Ildiko. Năo vou sozinho. Irá comigo. Eu não tenho olhos para as
iguarias de uma mulher. Você pode lidar com o joalheiro. Estarei lá para te fazer
companhia e pagar o preço que ele exigir por seu trabalho.
Ele estava certo. O corante da urtiga era verde. Havia cores piores do que
rosa.
Ildiko bufou. — Isso é mentira e você sabe. Apenas quando penso que
consegui, você mata um dos meus homens.
Ela juntou seu cabelo e deixou que caísse por suas costas e comoçou a
pentear os fios escuros. — Confie em mim, Brishen, ninguém com olhos jamais
irá confundir você ou qualquer Kai, de qualquer forma, com ovelhas. Mais como
lobos.
Brishen sentava-se passivo diante dela, seus largos ombros caídos, sua
respiração lenta enquanto Ildiko deslizava o pente pelo cabelo em longos
movimentos.
Era sua troca. Ela desembaraçava cabelo dele e ele contava suas histórias
de infância em Haradis. Algumas eram engraçados, outras sombrias, embora
falasse como se fosse muito comum para as mães amarrarem seus filhos em um
cavalo porque eles não conseguim soletrar palavras simples que outras crianças
Kai podiam.
Ela pensou sobre isso por um momento. Seu pedido era mais uma
resposta a uma pergunta do que uma história do passado. — Por que você não
é nada como o homem que gerou você e a mulher que o odeia?
Era como se ela o tocasse com um ferro quente. Brishen moveu-se para
frente e para trás, ficando rigido como um cabo de lança. Ele fez um movimento
fluido e virou-se para Ildiko com a mão estendida. — Venha comigo. — Disse
ele.
Ela olhou para ele, depois pegou sua mão dele sem questionar. Ele levou-
a através da mansão, até o primeiro andar e para fora de uma porta que levava
para as amoreiras e os laranjais selvagens que cercavam de um lado a
propriedade.
Uma pálida lua pendia no céu e não fazia nada para iluminar a terra abaixo
dela. Ildiko tropeçou atrás de Brishen, cega como uma toupeira à luz do dia. Seu
marido se movia com firmeza na escuridão sufocante, guiando Ildiko em direção
a um destino que ela supunha responder a uma pergunta que estava começando
a se arrepender.
Ela quase bateu no braço dele quando ele chegou dentro da cavidade. Por
tudo o que ela sabia, algo com dentes mais longos e mais afiados do que um Kai
espreitava naquele espaço. Brishen não hesitou e tirou uma pequena urna. Ele
encarou Ildiko, acariciando suavemente a urna.
O brilho dos olhos de Brishen fornecia a única iluminação entre eles, mas
foi suficiente para dourar a pequena luz enquanto ela tremulava e balançava
entre eles. — Minha irmã. — Ele disse suavemente. — Ou suas lembranças,
pelo menos.
Ildiko ofegou suavemente. Irmã. Ele nunca falou de outro irmão, apenas
o irmão indiferente que ela conheceu brevemente em Haradis. A revelação de
Brishen implorava por mais perguntas, a primeira era por que a luz-mortem da
sua irmã estaria aqui em Saggara, escondida por feitiços, em vez de Emlek onde
os Kai guardavam as lembranças de seus mortos?
Um pavor se afundou no peito de Ildiko. Ele lhe diria algo terrível, algo
que deixaria suas entranhas em nós. Ela ficou tentada a cobrir seus ouvidos,
dizer-lhe para parar e pedir desculpas a ele por fazer suas perguntas bobas, mas
ficou em silêncio e esperou que este conto da infância se desdobrasse.
Quando ele finalmente se afastou dela, seus olhos perderam suas faíscas
vermelhas e Ildiko secou suas lágrimas. Ela segurou uma de suas mãos em ambas
as dela. — Juro que levarei esse conhecimento ao meu leito de morte, Brishen.
Um canto da boca dele se levantou e ele entrlaçou seus dedos com os dela.
— Eu sei. Foi por isso que eu lhe disse.
Voltaram para a mansão em silêncio, enquanto uma fina linha de carmesim
se espalhava pelo horizonte distante para anunciar o amanhecer. Sinhue
cumprimentou Ildiko à porta dela. — Sua Alteza, você está doente?— Ela a
levou para dentro e a fez se sentar na cama enquanto colocava água em uma
xícara e a entregava a ela. — Isso pode ajudar. Precisa de um pano para seus
olhos? Estão inchados e vermelhos.
— Não, Ildiko.
Um suspiro fraco soou e sua voz suave. — Será melhor se dormir na sua
cama sozinha hoje.
Sua risada seca não tinha humor. — Se fosse apenas tristeza, não. Eu
quero você aqui. — Ele ainda se recusava a enfrentá-la. — Não estou apenas
sofrendo, Ildiko. Sou amargo. Estou com raiva e estou excitado. — Sua voz se
aprofundou na última parte de sua declaração e fez o coração de Ildiko galopar.
— Essas emoções juntas não oferecem nada além de miséria e violência tanto
para humanos quanto para Kai. É perigoso para você estar aqui comigo. Vá para
o seu quarto. Falarei com você amanhã.
Ela fugiu, carregando com ela suas palavras antes de fechar e fechar a porta
entre eles.
Houve momentos em que o dia durava para sempre e nunca vinha a noite.
Para Brishen, esse era um daqueles momentos. Ele olhou sem piscar para a porta
trancada entre os quartos dele e de Ildiko até que seus olhos queimaram. Ele viu
o breve lampejo de dor na pele ao redor de seus olhos antes de desaparecer e
seus traços pálidos se tornaram uma expressão de preocupação.
Brishen agradeceu aos deuses por ele e Ildiko terem começado esse
casamento com tanta honestidade entre eles. Ela aceitou seu aviso e fez
exatamente como ele esperava, fugindo e trancando sua porta. Sem bajulações
ou pedindo longas explicações do por que ele não queria ou mesmo era seguro
no momento. Podia não ser capaz de discernir a emoção em seus olhos, mas ela
o conhecia bem o suficiente agora para saber que suas palavras não eram vazias.
Mesmo através das grossas paredes e porta fechada, ele ouviu sua voz
suave e a de Sinhue enquanto as duas se preparavam para dormir. As palavras
eram indecifráveis, mas ele achou sua cadência calmante. Eles logo
desapareceram, deixando apenas um silêncio pesado para se juntar às sombras
que fugiam dos raios de sol invadindo e se juntavam aos seus pés.
Vinte e dois anos se passaram desde que ele testemunhou sua mãe
assassinar sua irmã e a lembrança permanecia tão clara como se acontecesse na
noite anterior. As mãos de Secmis segurando a cabeça de Anaknet, dedos como
pernas de aranha que se curvavam ao redor do minúsculo crânio até que suas
pontas de garra afundaram. Os punhos do bebê enrolados em sono inocente.
Parcialmente escondida atrás da porta do berçário e silenciada com horror,
Brishen observou enquanto a rainha suavemente segurava a cabeça de Anaknet
por um momento e dava uma rápida volta.
Brishen virou-se e olhou para Anhuset. Ela estava parada do seu lado, sua
capa sobre seu braço. Ela desamarrou o capuz da capa e jogou para ele. — Estou
espantada que ainda possa ver.
Ele pegou o capuz, mas segurou-o antes de puxá-lo sobre sua cabeça até
que ele pudesse tirar a sujeira e pedaços de palha cobrindo sua pele. O choque
da água fria do poço próximo baniu qualquer exaustão. A água escorria por seus
cabelos e pingava na calça e em seus pés. Enquanto o capuz oferecia alívio da
luz punitiva, era quente e sufocante em sua cabeça e ombros.
Ele franziu o cenho para ela. — Fique contente por eu não ter sacudido a
água ou você estaria tão encharcada como eu.— Ele usou seu manto para limpar
seus braços. — O que você está fazendo aqui?
Ela encolheu os ombros. — Você sabe que eu nunca fui uma boa
dorminhoca. Pensei que poderia vir para a arena e treinar por um tempo.
Imagine minha surpresa ao encontrá-lo aqui. — Seus olhos se estreitaram para
fendas brilhantes dentro das sombras de seu capuz. — Onde está a hercegesé?
Brishen olhou para sua prima. Anhuset. Afiada, intuitiva, ela o conhecia
melhor e mais do que ninguém. Alguma coisa sobre seu comportamento a
alarmou. — Dormindo em sua cama, ao contrário de nós dois. — Ele resistiu a
seu silencioso escrutínio. Ela perguntaria e seu melhor curso de ação era esperar
até que ela o fizesse.
Ele pensou brevemente nisso. Ildiko sugeriu uma vez que não se
importava se ele tomasse uma amante, mas se perguntou se isso ainda era
verdade. Três dias enquanto estavam juntos na cama, ele não imaginou o
estremecimento que percorreu seu corpo enquanto ele acariciava sua têmpora e
aquele arrepio não foi de medo.
— Tem certeza de que você não está tentando evitar ser derrubado?
Ele acenou para afastar sua provocação. — Isso também.— Se ele não
demorasse, teria algumas horas para levar Ildiko de volta para sua cama onde ela
pertencia e dormir as últimas horas do dia ao seu lado.
Anhuset ainda não terminou com ele. — Vossa Alteza, quando Lorde
Pangion chegar a Saggara esta noite, deseja que o escoltemos da estrada principal
ou das portas do reduto?
Ele parou, xingando em voz baixa. Serovek. O jantar. Ele esqueceu. Ele
apertou a ponte do nariz entre o polegar e o indicador. A dor de cabeça que
sofria do sol apenas piorava. Brishen sentiu-se tentado a dizer a Anhuset que
escoltasse gentilmente o seu convidado de volta para casa no momento em que
ele chegasse. Tal ação, embora garantiria um vizinho não tão amável ou com
informações.
Dormir nu ao lado dela uma vez foi um erro. Ildiko o pegou desprevenido
ao acordar diante dele. Felizmente, nenhum deles era propenso a aconchegar-se
em seu sono ou ela teria descoberto muito rapidamente que seu profundo afeto
por ela estava se transformando em algo muito além do platônico. Preso sob as
cobertas até que ela saiu para se trocar em seu quarto, Brishen desabou na cama
com um gemido frustrado, uma vez que ficou sozinho jurou que eles iriam
dormir separados depois disso. Seu voto durou menos de um dia. Ele a queria
ao seu lado.
Olhando para ela agora, Brishen se perguntou como podia ter pensado
que ela era feia. Seus olhos ainda o faziam se assustar de vez em quando,
especialmente quando ela o provocava cruzando-os em direção ao nariz, mas
ele deixou de compará-los com parasitas. Eram apenas olhos, diferentes dos dele
e fascinantes à sua maneira, com suas íris coloridas e pupilas negras que se
encolhia ou se expandia dependendo da luz ou de suas emoções.
Seus olhos estavam escondidos dele agora, atrás das pálpebras. Serovek a
chamou de bonita e Brishen não perdeu os longos olhares lançados sobre ela
pelos nobres Gauri que assistiram ao seu casamento. Ele tentou vê-la como um
homem Gauri, mas falhou no esforço. Uma súbita realização o fez sorrir um
pouco.
Uma das maiores forças de sua esposa e uma coisa que ele mais admirava
nela, era sua capacidade de se adaptar a uma situação e ainda permanecer firme
em seu próprio senso de valor e lugar. Brishen já não a via com os olhos de um
Kai e não podia vê-la com os olhos de um macho humano, mas isso não tinha
nenhuma importancia agora. Ele a via como sempre como simplesmente Ildiko.
Para ela, era suficiente. Para ele, um presente além do preço.
Ele estendeu a mão para segurar seu cabelo através de seus dedos. Ela
murmurou em seu sono e rolou em suas costas, expondo a delicada clavícula e
o contorno de seus seios sob a camisola. Ela estava deitada diante dele, nas
sombras.
Ela não se assustou quando ele deslizou seus braços debaixo dela e
levantou-a da cama. Seus olhos se abriram lentamente e ela se aconchegou
contra seu peito. — Já é noite, Brishen?
Brishen beijou sua cabeça enquanto a levava para seu quarto e chutava a
porta fechada atrás dele. — Não. Ainda meio-dia. Ao contrário de você, já não
durmo bem sem você ao meu lado.
Ildiko deu um tapinha no peito com uma das mãos. — Sua culpa. Você
me disse para ir.
Ele apertou seu abraço. — Eu o fiz e estava certo ao fazê-lo.— Ele subiu
em sua cama ainda segurando-a. Os lençois estavam frescos em suas pernas,
Ildiko quente em seu peito.
Sua mão vagou ao longo de seu ombro e até seu pescoço, onde ela segurou
sua mandíbula. Suas pupilas escuras quase engoliam o azul em seus olhos. —
Secmis é uma mulher vil e malvada, Brishen.
Ele virou o rosto em sua palma e plantou um beijo ali. — Não se preocupe
com elogios generosos, esposa. — Disse ele. — Nunca precisa falar sobre minha
mãe repugnante.
— Um inteligente destruidor.
Ildiko fez uma careta. — Um pássaro bonito.— Ela o bateu no seu braço.
— Pare de distorcer os elogios, criatura vaidosa.
Brishen rolou, levando Ildiko com ele até que ela ficou completamente
debaixo dele. Suas coxas se abriram e ele se afundou contra ela. Ambos
ofegaram e acalmaram-se, todos os traços de humor desapareceram. Se ela não
tivesse consciência da reação do corpo dele antes disso – e Ildiko, por sua
própria admissão, não era tão inocente nem tão tola – não poderia confundi-la
agora.
Com os antebraços apoiados em ambos os lados da cabeça, ele manteve a
maior parte de seu peso fora dela, com cuidado para não esmagá-la na cama. Os
olhos de Ildiko estavam bem abertos, sua respiração fina e rápida, um
acompanhamento de sua própria respiração forte.
Ele brincava com as mechas ondulantes de seu cabelo que lhe prendiam
os dedos como uma teia de aranha. — Não sou nenhum poeta com palavras
melosas. — Disse ele. — Mas sempre fui sincero com você. — Deuses, seus
músculos tremiam como se de frio em seu esforço para ficar parado e não
empurrar duro contra ela. — Eu quero você, Ildiko. Quero me afundar tão
profundamente em você que nenhum de nós saberá onde um termina e o outro
começa. — Somente a borda azul mais escura de suas íris brilhava ao redor de
suas pupilas. Sua voz ficou gutural e ele tentou suavizá-la. — Eu nunca forcei
uma mulher, Kai ou humana e nunca irei Se você me recusar, isso vai parar, sem
problemas entre nós.
Por favor, ele rezou – e não sabia se ele orava aos deuses Kai ou a mulher
como uma estátua pressionada contra ele – não me recuse.
Ele gemeu baixo em sua garganta enquanto sua boca capturava a dele.
Ildiko enterrou as mãos em seu cabelo, pressionando-o mais perto para deslizar
sua língua através da pele sensível sob seu lábio superior e em seguida, o inferior.
Brishen devolveu a carícia, tocando seus lábios nos cantos até que ela se moveu
em seus braços, os quadris esfregando-se contra os seus em um ritmo
desajeitado, enquanto ele descobria seu gosto e ela o seu.
Ildiko não beijava como uma mulher Kai fazia. Seus beijos eram fortes –
chupando, mordendo ao longo de seus lábios, a lingua procurando a entrada
após a barreira de seus dentes firmemente apertados contra a intrusão. Era como
se ela tivesse esquecido suas presas ou simplesmente não se importasse mais.
Ele se recentiu com tal obstáculo. Por uma vez e provavelmente a única
em sua vida, desejou ter mais atributos humanos. Dentes de cavalo não pareciam
tão ruins ou tão ridículos no momento. Tomaria a boca de Ildiko do jeito que
tomaria seu corpo – profundo e lento, com horas dedicadas a nada além de
saboreá-la.
Sem se deixar intimidar por seu aviso, ela o puxou de volta para ela. —
Talvez você não possa. — Disse ela. — Mas não estou limitada por alguns
dentes afiados. — Suas pupilas brilhavam na sombra que ele lançava em seu
rosto e corpo. — Abra seus lábios. — Encantado, ele fez como ela ordenou.
Ildiko colocou sua boca levemente sobre a dele. Seus lábios faziam cócegas
enquanto falava. — Deslize a língua para fora, apenas um pouco.
Ela seria sua morte antes deles consumarem esse casamento. O corpo de
Brishen gritava para acabar com isto de uma vez e deslizar dentro dela. Sua
mente implorava paciência, encantado com essa jornada além das persianas
fechadas.
Ela respondeu ao seu gemido. Seus braços, unidos atrás de seu pescoço,
caíram para que suas mãos pudessem acariciá-lo do ombro até a cintura,
empurrando-o para se levantar para que pudessem viajar pelos duros planos de
seu abdômen.
Seus dedos traçaram os cumes de suas costelas, vagando mais e mais até
que seus polegares deslizaram através de seus mamilos. Brishen terminou seu
beijo com uma oração de uma palavra, arqueando-se, sentindo um raio
atravessar seu peito, ir para as costas e descer por sua coluna.
Ele saiu de seu alcance, ignorou seus protestos e capturou seus pulsos em
uma mão. Seus olhos estranhos estavam vítreos, o azul de suas íris se entregou
completamente a suas pupilas. Um rubor mais escuro tingia sua pele pálida.
Brishen avistou a mancha de amaranto desigual em sua mandíbula, de sua
incursão anterior até a tinturaria. Ele se curvou e traçou seu contorno, primeiro
com a ponta do nariz e depois com os lábios. Ildiko gemeu suavemente em seu
ouvido.
Ildiko esticou-se com uma fita de seda no limite, tocando-o do peito até
os joelhos. — Oh, bem então.— Ela respirou. — Não quero ser injusta.
Ela o impediu antes que ele pudesse devolver os toques que o inflamavam.
Sua mão acariciou seu cabelo. — Feche os olhos. — Disse ela.
— Porque eu gostaria que você me visse com seu toque. — Sua boca se
curvou em um sorriso. — É como te vejo nesta escuridão cega, Brishen e é uma
coisa maravilhosa.
Ele foi alvo de elogios inebriantes, feito por amantes em luxúria tanto por
seu título como por seu corpo. Nenhuma dessas palavras melosas jamais chegou
perto dessas e seu poder sobre ele.
Ela manteve os braços acima da cabeça, mesmo depois que ele soltou os
pulsos. Brishen fechou os olhos e deixou que seus outros sentidos alcançassem
sua cegueira voluntária. Ele tomou seu tempo, explorando cada lugar, do
pescoço aos ombros de Ildiko. Cheirava a flores e a óleos perfumados
importados pelos povos das caravanas que negociavam tais coisas que
enfeitiçavam e encantavam os Kai. Ela parecia... humana.
Ele não podia pensar em nehuma comparação. Sua pele era suave com um
toque de especiarias e uma doçura que não experimentou em nenhum outro
lugar, seja em alimentos ou nas extremidades flexíveis, a forma muscular das
mulheres Kai que teve em sua cama antes de seu casamento. Suas diferenças o
intrigavam, o seduziam.
Ele não se lembrava de ter tirado sua camisola ou sua calça, mas elas de
alguma forma terminaram em uma pilha descartada no chão ao lado da cama.
Livre de qualquer barreira entre eles, Brishen colocou seu peso um pouco mais
sobre ela.
Uma vibração sutil de tensão atravessou seu corpo sob suas mãos
enquanto ele beijava um caminho para baixo em direção à suas coxas. Brishen
abriu os olhos. Seus sentidos aumentados alertaram-no que a vibração delicada
era uma de inquietação em vez de ânsia.
Ildiko olhou para ele com firmeza, seus traços sombrios. Abaixou os
braços para lhe passar os dedos nos cabelos. Ela não tentou se afastar. Não se
tratava de uma questão de confiança nem de falta de experiência. Brishen sabia
que, enquanto sua esposa não era completamente ignorante na cama, sua
introdução a suas muitas intimidades por seu amante anterior foram limitadas.
Sua declaração de que três vezes junto não valia o esforço, revela muita coisa.
Teria que apagar sua ânsia de explorar cada parte dela em um único dia. O
conhecimento de que ele tinha uma vida inteira para acalmar a antecipação e se
familiarizar com o corpo adorável de sua esposa acabava com qualquer decepção
inicial.
— Eu sei, mas ... — Ela parou para devolver o beijo que ele pressionou
em sua boca.
— Considere como um presente para mim. — Disse ele, notando sua
confusão. — Eu tenho a oportunidade de ser seu professor e mostrar-lhe o
prazer desse ato particular, um dos melhores entre um homem e uma mulher.
Ela relaxou sob ele mais uma vez. Seus joelhos se apertaram dos lados. Ele
exalou um grunhido de surpresa que se transformou em um gemido quando
seus quadris se ergueram para esfregar contra a ereção que estava roubando o
sangue de todas as outras partes de seu corpo. Suas mãos deslizaram por suas
costas para cobrir suas nádegas e mantê-lo no lugar.
Grato e aliviado, Brishen não precisava de mais tranquilidade. Ela era fogo
em seus braços, quente e doce. Seus gemidos e incentivos suavemente ditos, a
sensação de que ela o cercava enquanto empurrava dentro dela – lento e
profundo, superficial e rápido – destruiu qualquer pensamento coerente que ele
possuía.
Cada movimento de retirada a fazia arranhar suas costas, cada duro golpe
de seus quadris a faziam gemer de prazer em seu ouvido. Brishen inclinou os
quadris, uma leve mudança em sua posição. Ildiko arregalou os olhos e soltou
um som estrangulado.
Ela segurou seus quadris quando ele tentou sair dela. — Não! — Suas
pernas flexionaram sobre ele. — Faça isso novamente.
Ele fez uma careta para ela, perplexo. Ela não agia como se ele a
machucasse.
— Essa coisa com seus quadris. — Ela disse e girou o dela para convencê-
lo.
— Sim, Vossa Alteza. — Ele brincou, exultante por fazer sua esposa
queimar da mesma forma como ela o fazia queimar.
Ela exalou e um fio de cabelo afastou-se de seu rosto. Seu sorriso continha
a satisfação de um gato que pegou um rato particularmente suculento. — Isto
não foi nem estranho nem confuso.
Suas sobrancelhas subiram e ele moveu os quadris ainda mais perto dela
para ficar dentro dela. — Oh, ficará estranho, esposa, no momento em que nos
mexermos.
Ele a tomou pela segunda vez quando o sol marchou para o oeste e depois
uma terceira, quando ambos estavam sonolentos e exaustos por causa do amor
e da falta de sono. A terceira vez foi uma fusão lenta de corpos e baixos suspiros.
Quando terminou, Brishen rolou para trás com Ildiko sobre ele. Ela estava
dormindo antes que ele pudesse cobri-los.
— Vossa Alteza, já está além do crepusculo. Você não pode mais dormir.
— A advertência de Anhuset foi abafada pela espessa madeira da porta.
Brishen franziu o cenho e balançou-se para fora da cama andando nu pelo
quarto. Ele deslizou a tranca de lado e abriu a porta aberta para ver o sorriso de
sua prima e seu criado pessoal. — O que você está fazendo aqui? — Ele
perguntou.
Seu olhar fez uma viagem lenta do alto de sua cabeça a seus pés. — Primo
ou não, você é um belo homem. — Seu sorriso se aprofundou com seu grunhido
impaciente. — Etep foi buscar-me. Ele disse que você não respondeu às suas
chamadas ou batidas. Pensou que você poderia estar doente. — Ela olhou além
dele para a cama e seus lençóis amarrotados. — Obviamente ele se preocupou
por nada. Você só foi conquistado.
Ele não ficou sozinho muito tempo. Etep reapareceu, com um desfile de
criados carregando baldes de água para encher a banheira no canto. Um acendeu
o fogo na lareira. Outro se inclinou para o seu senhor. — Um banho de água
fria esta noite, Herceges. Não temos tempo para aquecer muita água.
Ela usava couros militares cerimoniais e sob eles, uma túnica de pérolas
colorida sobre a calça de seda. Brishen se perguntou quantas vezes ela o
amaldiçoou enquanto vestia uma roupa formal reservada para o tribunal e que
ela odiava.
Seus lábios se estreitaram junto com seus olhos. Brishen manteve seu olhar
em sua adaga com a qual ela brincava em sua cintura dela. — Eu não entendo
por que tenho que assistir a esta coisa. É um jantar com um senhor da guerra de
Beladine. Mais manobras de corte e conversa dupla com insinuações astutas
com significado escondido. Peça-me para encontrá-lo na batalha e aceitarei
felizmente. Isso... eu odeio.
Brishen voltou para a casa e foi até o quarto de Ildiko. Ele podia ouvir os
suaves picos e depressões da conversa feminina pela porta. Sua batida foi de
encontro ao silêncio antes de um conjunto de passos se aproximar e a porta se
abrir. Sinhue curvou-se e fez-lhe sinal para dentro.
Ela encontrou seu olhar no reflexo do espelho. Seu rosto estava mais
pálido do que o normal, manchado por sombras de lavanda sob seus olhos e os
respingos de amarantho ainda em sua mandíbula. Seu cabelo ardente estava
parcialmente preso em tranças com pequenas pérolas. Ela estava deslumbrante
e a calça de Brishen ficou apertada e incomoda enquanto ele a olhava.
Brishen sorriu levemente. — Você quer dizer o mais bonito Kai. — Ela
se lembrou de quando ele perguntou sobre a beleza de Serovek. Em seus olhos,
ele era o mais bonito de todos. Sua boca se curvou pouco. — Não. — Disse ela.
— O homem mais bonito.
Ele parou abruptamente e puxou Ildiko para seus braços. Ela ofegou,
então suspirou quando ele a beijou. Seus braços deslizaram sobre seus ombros
para brincar com a longa trança que ele moveu em seu pescoço. Brishen se
esqueceu do tempo, dos convidados, do jantar, do mundo que o rodeava. Ele
amaldiçoou sua incapacidade de beijá-la do jeito como ela o beijava – aquele
suave acasalamento de línguas e lábios tão sensual e sedutor, ela fazia sua cabeça
nadar. Ele gemeu quando o sinal de aviso do sino do portão tocou em toda a
propriedade, sinalizando a chegada dos visitantes. Os olhos azuis de Ildiko se
obscureceram mais uma vez e seus lábios estavam vermelhos. Seus braços
deslizaram de seus ombros e ela colocou uma distância muito necessária entre
eles. — Nós nunca vamos chegar ao corredor se continuarmos fazendo isso.
Ao lado dela, Brishen engasgou em sua taça. Ele limpou a boca com seu
guardanapo. — Que desperdício de um bom scarpatine. — Ele murmurou em
sua respiração.
Ela olhou para Serovek, limpando o prato com alegria e lançando um olhar
ocasional a Anhuset nas proximidades. A prima de Brishen se recusava a
encontrar seu olhar, mas Ildiko capturou a mulher olhando o Lorde de Beladine
mais do que algumas vezes durante o jantar.
A risada de Serovek voltou sua atenção para ele. Ele acenou com a cabeça
para Brishen. — Se fossemos ambos Kai, não acho que ele se importaria. Se eu
fosse Kai, ele não se importaria. Mas nós dois somos humanos, o que apresenta
algo muito diferente. Quero muito dançar com você, mas eu também gostaria
de deixar Saggara vivo.
Ildiko bateu a taça contra a dele em silêncio. Ela não fazia ideia de como
se podia ler os sinais mais sutis de ciúmes em um Kai, mas havia uma certa
rigidez na postura de Brishen que lembrava uma coruja observando presas dos
galhos de uma árvore. — Como eu ainda estou aprendendo o protocolo Kai,
acho que vou perguntar ao meu marido qual a resposta adequada a tal convite.
Ildiko o deixou para procurar Brishen. Ele não estava mais onde ela o viu
pela primeira vez e se manteve no perímetro exterior da sala, procurando por
ombros largos vestidos de seda índigo e uma longa trança preta. Ela pulou
quando sua voz soou de repente atrás dela.
Sua bochecha estava fria e lisa contra a dela. — Eu suspeito meu marido,
que foi exatamente por isso que ele recebeu o título.
Sua risada baixa ecoou em seu ouvido. Uma mão passou pela curva de sua
cintura antes de se estabelecer em seu quadril. — Você está andando pelo salão
com um propósito, Ildiko. O que você procura?
— Serovek pediu uma dança comigo. Eu sei que os Kai não seguem os
costumes de Gauri, mas ele pensou que seria melhor eu te perguntar primeiro.
Ela lhe entregou sua taça para que ele pudesse colocá-lo sobre a mesa atrás.
— Depende. Se você pisar em meus pés, vou matá-lo. — Seu sorriso
correspondia a sua risada. — Irá me perdoar é claro, se eu pisar no seu. Eu não
estou familiarizada com as danças Kai. Até recentemente, eu nem sabia que
dançavam.
— Você está se divertindo?— Ele tomou sua bebida e mandou a taça para
fora com a de Ildiko.
— Estou.— Ildiko estendeu a mão para brincar com um dos laços em sua
túnica. — Embora seria muito mais divertido se você parasse um momento com
todas as suas maquinações políticas e planos para dançar comigo. Só uma dança,
marido. Não é pedir muito. — Ela piscou para ele. Ele prometeu reivindicá-la
de qualquer um de seus parceiros de dança, mas até agora se absteve, escolhendo
circular pelos corredores e conversar com convidados Beladine e Kai, incluindo
Serovek quando o Lorde não estava dançando.
Brishen segurou sua mão e levou-a para a boca para um beijo suave. A
carícia enviou zumbidos da ponta dos dedos até os dedos dos pés e fez uma
onda quente de desejo girar dentro dela. Ela não escolheu este marido, nem ele
a tinha escolhido, mas o destino ou os deuses gentis os reuniu, tornado-os
amigos e depois amantes. Enquanto seus pares Gauri poderiam tremer com a
ideia de um companheiro Kai e agradecer, Ildiko considerava-se a mais
afortunada das mulheres.
— Eu quero dançar com você agora. — Ela disse em voz baixa, para
apenas ele poder ouvir. — Mas eu quero muito mais fazer amor com você. —
Suas bochechas queimaram com sua própria declaração contundente e a reação
que causou.
Ildiko ofegou, com os joelhos fracos pela carícia. Ela exalou um suspiro
trêmulo. — Eu vou te segurar a essa promessa, marido.
— Uma oferta generosa, meu amigo, mas vou para casa. — Ele sorriu e
Ildiko foi mais uma vez atingida pela beleza de suas feições. — E ao contrário
de você Kai, eu gosto da sensação do sol no meu rosto quando monto. — Ele
gesticulou em direção a Anhuset, que estava entre seus compatriotas, puxando
incessantemente sua roupa e franzindo o cenho. — Entretanto, aceito uma
escolta até seu portão.
Os Kai talvez não pudessem ler a expressão humana melhor do que Ildiko
podia ler a deles, mas o interesse de Serovek em Anhuset era claro para ela. Ele
pegou seu olhar de conhecimento e piscou em troca. Brishen enrijeceu ao lado
dela.
Eles os observaram partir. Brishen girou lentamente para olhar seu salão
quase vazio. O brilho do sol voltou a seus olhos quando ele fixou seu olhar em
Ildiko. Sua respiração ficou presa em sua garganta. — E agora eu posso dizer
boa viagem.
Desta vez foi ela que o puxou para a escada e correu pelo corredor. Sua
porta bateu aberta contra a parede e rapidamente bateu de volta no lugar.
Brishen deslizou a tranca e se virou a tempo para Ildiko empurrá-lo contra a
parede.
Ela estava desesperada para tocá-lo, sentir a força sólida dos músculos sob
suas mãos, a suave extensão da pele cinza. O fogo que ardeu dentro dela desde
sua tentativa abortada de seduzi-la antes de descerem para cumprimentar seus
convidados queimava como um inferno. Ela pegou sua trança em uma mão e
usou-a para puxar sua cabeça para baixo para ela.
Brishen a ergueu nos braços, as mãos segurando seu traseiro. Seu folego
forte em seu ouvido enquanto ela mordiscava seu pescoço e pegava o lóbulo de
sua orelha entre seus dentes. Outro gemido foi sua recompensa. — Tão ansiosa,
esposa? — Perguntou entre beijos.
— O que acha? — Ela sussurrou para o espaço doce atrás de sua orelha.
Ela moveu-se contra ele, buscando a ereção que proclamava que seu desejo por
ela era tão grande quanto o dela por ele. Seus dedos se flexionaram, as garras
perfurando camadas de tecido. Ildiko ofegou com a dor e o prazer.
— Uma bagunça espetacular. — Disse ele. — Sua serva terá trabalho mais
tarde.
Ildiko não se ofendeu. Se ser amada assim por seu marido significava um
penteado arruinado, bem, havia algumas coisas que valia a pena sacrificar. Ela
puxou a borda de um dos lençóis em sua direção e fez uma pausa à vista dos
tecidos irregulares. Ela franziu o cenho. — Você tem que parar de destruir a
roupa de cama.
Brishen fez uma pausa para olhar para ela por um momento antes de
relaxar no colchão rolando em suas costas. Ele cobriu os olhos com o antebraço.
— Como quiser, esposa.
— Eu não sou amigo do sol, Ildiko. — Sua voz era tensa, seu corpo tão
bonito quanto ele se estendeu na cama.
Presa nas lânguidas sensações, Ildiko quase perdeu o que ele disse. Ela
piscou. — Como?
Não muito longe. Ela quase disse que sim, mas hesitou, lembrando-se de
tudo o que Brishen lhe contou sobre sua conversa com Serovek quando eles
voltaram de Salure. — É seguro?
Ela alisou as linhas que estragavam sua pele com seu polegar. — Eu não
estou apenas pensando em mim.
Ele virou o rosto em sua mão e beijou sua palma. — Eu sei. Você
testemunhou os Kai na batalha. Somos formidáveis o suficiente e protegemos a
nós mesmos e aos nossos.
— Você não tem que ir, se esse é o seu desejo. — Ele continuou em seu
silêncio prolongado.
Ela começou. — Não! Eu quero ir. — Ildiko deixou tudo o que lhe era
familiar para acompanhar um estranho que nem sequer era humano em um
reino estranho onde ela se tornou o estranho, a estranha. Ela aprendeu,
prosperou e encontrou amor e amizade. Nenhum grupo imundo de mercenários
fora da lei faria dela uma prisioneira em seu novo lar.
Brishen deslizou uma mão por seu braço antes de percorrer um caminho
por cima do ombro e descer para segurar um seio. Seus quadris se moveram
suavemente sobre os dela e ela abriu as coxas para que ele se acomodasse mais
firmemente no berço de seu corpo. — Ainda será uma longa viagem com a
volta. Você deveria dormir.
Ildiko rodeou seu pescoço com os braços e acariciou seu cabelo caindo
pelas costas. Ela fez a Brishen uma careta. — Dormirei quando estiver morta.
Agora me beije. Estamos desperdiçando uma boa luz do dia.
Sua risada logo mudou para suspiros e sussurros falados contra a pele
brilhando de suor. Ildiko abraçou seu amante, seu marido, seu melhor amigo e
se considerou uma esposa abençoada.
Capítulo Vinte
Brishen esperava que um dia pudesse levar Ildiko a algum lugar sem que
um quarto do seu regimento os acompanhasse. Cuidado, no entanto, ditava que
eles precisavam de uma escolta. O ataque feito à eles na rota comercial enquanto
viajavam de Pricid a Haradis combinado com avisos mais de Serovek, significava
que ele e Ildiko não iriam a nenhuma parte sozinhos fora de Saggara.
Brishen olhou para sua esposa enquanto cavalgava ao lado dele. Ela
segurava um assento seguro na sela, mesmo com o desafio de percorrer os
caminhos montanhosos que levavam ao município de Halmatus no escuro. Ela
usava seu manto mais pesado para as noites frias, mas sua cabeça estava
descoberta. Os cabelos ruivos, que ele primeiro achou estranho, mas agora
bonito, brilhava em vários tons de cinza sob o luar. Tirou o capuz sob sua
insistência.
Ildiko colocou algumas mechas de cabelo que saiam de sua trança atrás
das orelhas. — Haverá muitos olhares fixos e conversa.
Brishen tomou sua mão para traçar levemente as linhas de sua palma com
uma unha. — Deixe-os falar. Deixe-os olhar fixamente. Não importa. Além
disso, você é a hercegesé, esposa do herceges de Saggara. Não se esconde de
ninguém.
Apenas uma vez ela insinuou sua consciência do singular foco da cidade
nela. Ela afastou-se da proteção de Brishen para que ficasse à vista da multidão.
Seu sorriso de lábios fechados mostrava sua intenção.
Quando Ildiko saiu da loja, ele colocou a mão na curva de seu braço. —
Eu sou pobre agora?
Observou sua esposa, não notando nem ornamentos em seu pescoço nem
um pacote em sua mão. — O que foi?
Ildiko ergueu o queixo. — Você verá quando ele entregá-lo com o meu
colar.
— Quer visitar a taberna? Acho que Anhuset está certa sobre a comida e
a companhia.
Ildiko balançou a cabeça. — Não. Vou causar muita agitação. Deixe nossa
escolta se divertir. Você pode me dar um tour da cidade e eu terei você só para
mim.
O cenho de Anhuset advertiu Brishen que ela estava prestes a atacar. Ele
parou qualquer advertência em seus lábios. — O pensamento é muitas vezes
mais sábio do que o discurso, sha-Anhuset. — Ele disse em um to, frio. — Para
não esquecer quem governa aqui e quem não.
Quando era ficou apenas ele, Ildiko e Anhuset, sua prima se virou para
ele. — Você está tentando me levar a uma morte precoce?— Ela retrucou.
Uma risada abafada soou ao lado dele. Ildiko olhou para os dois com olhos
lacrimejantes e uma mão sobre sua boca. Ela abaixou a mão e comprimiu os
lábios em um esforço óbvio para conter sua alegria. — Desculpe. — Ela
conseguiu dizer entre risadas.
Anhuset não compartilhava seu divertimento. Sua expressão escureceu
antes que ela se curvasse uma segunda vez. — Vou encontra-los na praça da
cidade.
— Ela ama você, sabe. — Ildiko olhou para Brishen. — Ela faria qualquer
coisa que você pedisse a ela.
Brishen assentiu. Ildiko não lhe disse nada que já não soubesse. — Nós
estamos ligados uns aos outros por laços de sangue e segredos. Ela é a criança
da irmã de meu pai e o único verdadeiro irmão que eu já tive. — Ele encontrou
o olhar gentil de Ildiko e suspirou. — Ela também é mais velha do que eu, com
uma tendência infeliz maternal se eu permitir.
Brishen sinalizou atrás dela e dois de seus homens fecharam o espaço atrás
de seu cavalo, criando uma parede escudo de homem, metal e cavalo. Era tarde
demais para disfarçá-la agora. Ela se destacava entre eles como um farol, mas
era melhor tarde do nunca.
— Ildiko. — Ele disse em seu tom mais casual. — Levante seu capuz
como se você estivesse apenas mantendo o vento fora de seu cabelo e faça
exatamente como e quando eu disser.
A pouca cor fluiu sob sua pele pálidadeixando uma palidez acinzentada
pelo medo. Ela fez como ele instruiu, fazendo um show de exagero com suas
tranças antes de puxar o capuz até que suas feições ficaram escondidas.
Eles eram alvos fáceis para setas quando montados e Ildiko gritou quando
Brishen a arrastou da sela com ele para bater no chão em meio ao caos de
soldados lutando para controlar cavalos em pânico. Eles estavam parcialmente
protegidos por corpos equinos do brilho pulsante da luz que o deixava e a seus
companheiros Kai praticamente sem visão.
Ele proferiu uma palavra antiga, uma falada por feiticeiros Kai que
construiam seu feitiço a partir do poder da sombra, como uma reverência por
todas as coisas nascidas da noite. Uma explosão de escuridão disparou dos dedos
de Brishen e apagou as luzes. Gritos de consternação e surpresa se misturaram
com gritos de triunfo.
Brishen cambaleou apenas para ser jogado de lado. Ele e seu atacante
lutaram pelo chão. Enfraquecido e retardado pelos estragos do feitiço, Brishen
lutou para libertar-se das garras de uma espada Beladine duas vezes seu
tamanho. O homem bateu a mão de Brishen contra uma rocha. Seus dedos
ficaram entorpecidos e ele perdeu o aperto em sua faca. Seu inimigo grunhiu em
triunfo.
A mesma voz que alertou os outros sobre a fuga de Ildiko e Anhuset gritou
novamente. Enfurecido. Desesperado.
O lado de uma clava foi a última coisa que ele viu antes do interior de seu
crânio explodir em uma agonia. A escuridão se seguiu e nessa escuridão ele não
podia ver.
Capítulo Vinte e Um
Brishen.
Seu último vislumbre dele foi uma visão vacilante de suas costas quando
ele mergulhou no caos de cavalos, Kai cego e um granizo de flechas. Lutou no
abraço de Anhuset para libertar-se e correr de volta para seu marido, fazer outra
coisa senão fugir. O firme aperto da mulher Kai mostrou-se inquebrável. Ildiko
estava a ponto de vomitar após o arremesso violento que ela sofreu enquanto
jogada no ombro do captor. Sua visão girou quando caiu e ficou pendurada na
sela do cavalo ainda galopando.
— Pegue isso. — Ela ordenou em uma voz sombria que a advertia contra
discussão. — Acerte qualquer coisa que se mova.
Ildiko mal tinha os dedos ao redor do cabo quando uma sombra ondulante
saiu da escuridão do lado esquerdo e correu para o cavalo. O atacante emitiu um
grito estridente, seguido por Ildiko. Mãos rasgou sua saia enquanto o cavalo
relinchava e dançava de lado.
Ildiko agarrou as rédeas, perdeu a adaga e chutou o cavalo forte dos lados.
Ele saltou para um galope, arrastando alguém ao seu lado. Atrás de Ildiko,
Anhuset torceu um caminho e depois o outro, com os braços estendidos de
ambos os lados, com as espadas na mão enquanto atingia os atacantes. Ela bateu
com força contra as costas de Ildiko duas vezes com um grunhido, mas segurou
seu assento para abrir caminho.
Ildiko agachada à sua frente, com as mãos ensanguentadas, mas não tocava
os lugares onde as flechas estavam cravadas na armadura e carne. — Anhuset!
Por que você não disse alguma coisa?
Ildiko girou no tempo para ver um cavalo e cavaleiro blindado passar por
ela para derrubar o terceiro cão com uma espada.
Serovek suspirou e mais rápido do que Ildiko poderia piscar, bateu os nós
dos dedos contra o queixo de Anhuset. A cabeça dela se sacudiu antes de fechar
os olho, e ela ficou completamente apagada.
Serovek piscou e pegou uma pedra lisa que um de seus soldados lhe
entregou, junto com um cobertor dobrado. — Não, ela não vai. Direi a ela que
você fez isso.
Ele apoiou o cobertor, com a pedra em cima, contra suas costas. A flecha
em seu ombro estava alojada entre duas das placas da armadura. Ildiko
estremeceu quando Serovek puxou o machado para baixo no eixo, encurtando-
o ao comprimento. Rápido, eficiente e firme, fez o mesmo com a flecha no seu
quadril. A inconsciente Anhuset estremeceu, mas não acordou.
Serovek acariciou seus cabelos prateados com uma mão grande. — Calma,
minha beleza. Eu terminei. — Ele olhou para Ildiko. — Você pode controlar a
montaria dela?
Serovek fez seu caminho para o único cavalo sem cavaleiro. Maior que os
outros, bufou em protesto e moveu as orelhas enquanto seu mestre montava
com seu fardo. So soldado reuniu suprimentos. Um dos soldados de Beladine
recuperou a segunda espada de Anhuset que estava na grama e gentilmente
arrancou a outra dos dedos rígidos de Ildiko. — Precisa de ajuda para a
montaria, Alteza?
Ela balançou a cabeça. Ela não era muito boa com lâminas, mas podia
subir em uma sela sozinha.
Ela ignorou o cenho de Serovek. — Temos que voltar para a ponte. Agora.
Para ajudar Brishen e os outros! Não podemos simplesmente deixá-los lá.
Era impossível falar com as lágrimas que se alojava em sua garganta. Ildiko
engoliu várias vezes antes de responder. — Não. Ele estava no meio do combate
quando eu o vi pela última veze e isso foi apenas um vislumbre. — Por tudo o
que ela sabia, os Kai chegariam trazendo a notícia de que ele ou ela carregava a
luz-mortem de Brishen dentro deles. O pensamento sombrio tornava difícil
respirar.
Suas palavras não fizeram nada para diminuir seu medo por Brishen.
Ela seguiu Serovek que carregava seu fardo inconsciente através da porta
baixa de uma pequena capela dentro da ruína do templo. A escuridão interior
era tão espessa que podia ser engarrafada e o chiado de ratos perturbados
chegavam em suas orelhas. Ela saltou de lado quando um deslizou pelo chão
perto de seu pé.
— Ainda não tenho luz, Ildiko. — A voz profunda de Serovek era mais
vibração do que som. — Nós devemos esperar.
— Não estou interessado em encontrar essa Kai. Você viu o que ela fez
na clareira. Derrubou três cães de caça.
Serovek tirou uma pequena vela de sua bolsa e acendeu uma chama do
pavio usando pederneira, aço e charcloth. Ele passou a vela para Ildiko. — Não
sou Kai para cortar feridas na escuridão, então mantenha firme e não deixe a
chama morrer.
— Você bebe isso?— Ela ouviu falar do Fogo de Peleta. Nomeado pela
deusa dos dragões, derrubava qualquer um que ousasse provar sua cerveja.
Certamente algo que fazia fumaça no metal não era seguro para beber.
Ildiko desistiu de sua capa para usar como ataduras. Serovek cobriu a
ferida com o musgo que tirou de sua bolsa e a amarrou com tiras cortadas da
saia. Eles repetiram o processo no quadril de Anhuset. Quando terminaram,
seus dedos arranhados começaram a se flexionar e relaxar contra a palma da
mão e o amanhecer dourou as bordas das árvores orientais com luz rosa.
Sua boca se curvou. — Alguns. Nós temos invasores. Eles tem os deles.
Seu marido e eu lidamos com ambos porque eles cruzam cada um de nossos
territórios. É só uma questão de quem chega primeiro a eles. — Ele sentou-se
ao lado de Ildiko, agarrou a garrafa de Fogo de Peleta e inclinou-a para os lábios.
O primeiro gole o fez ofegar e tremer como um cachorro molhado, mas não o
impediu de tomar um segundo. Ele ofereceu a garrafa para Ildiko que balançou
a cabeça, preferindo não torturar seu estômago ainda trêmulo ainda mais.
Serovek lhe passou um frasco de água para que pudesse enxaguar o sangue de
suas mãos.
Ildiko tentou sorrir com a ideia dos dois homens chorando sobre o ombro
um do outro sobre as mulheres, mas seus lábios se recusaram a obedecer. Ela
não conseguia tirar a imagem de sua mente dos traços de Brishen quando ele a
empurrou para Anhuset e gritou para que cavalgassem para a ponte. Ela viu a
morte naquele olhar brilhante – sua morte.
Ela piscou para lutar contra as lágrimas que de repente turvaram sua visão.
— Como você me encontrou e Anhuset?
Serovek inclinou a garrafa novamente antes de responder. — Um rumor
sobre a emboscada alcançou Salure. No momento em que eu despachei um
cavaleiro a Saggara para advertir os herceges, vocês já estavam no município de
Halmatus. Nós partimos para encontrá-lo, mas chegamos tarde demais.
Não adiantava pensar por quê, mas Ildiko não podia deixar de pensar em
como seu destino poderia ter sido diferente se tivessem esperado mais um dia
antes de deixar Saggara. — Eu me pergunto se este é o mesmo grupo que nos
atacou na rota comercial depois que Brishen e eu nos casamos.
Quando eles o recuperaram, não se. Sua resposta certeira lhe deu
esperança, apesar de sua terrível previsão sobre o mago. — Você realmente acha
que Brishen ainda está vivo? — Ela esperava que ele estivesse. Seu marido era
um lutador formidável, mas quem sabia quantos invasores eles enfrentaram ou
a feitiçaria usada contra ele e os Kai pelo mago.
Serovek levantou uma das duas pontas de flecha que ele extraiu de
Anhuset. Revestida em sangue seco, sua ponta parecida com punhal e com um
brilho fraco. — Estas são pontas bodkins apenas derrubam. Se eles quisessem
matar Brishen – e você – imediatamente, eles teriam usado broadheads. Os
bodkins perfuram a armadura e derrubam cavalos, mas um homem atingido
com uma pode sobreviver por muito mais tempo do que se fosse disparado
com um broadhead. Se fosse o segundo, Anhuset teria morrido antes mesmo de
cair do cavalo.
Ele jogou a ponta da flecha para o lado. — Não tenho dúvidas de que
Brishen está vivo e prisioneiro. Sua fuga atrapalhou seus planos. Eles estavam
em melhor posição para forçar os Kai ou os Gauri a renegociar ou romper sua
aliança para salvá-lo. Eles têm apenas tem um de vocês agora, mas isso é
suficiente para começar as negociações por sua vida com a casa real Kai de
Khaskhem.
Ildiko quase começou a chorar. Sua mão tremeu quando ela pegou a
garrafa de Serovek de Fogo de Peleta. A bebida lhe queimou a língua e a
garganta, fez as lágrimas escorrerem por suas bochechas. Serovek arrancou a
garrafa de sua mão e a escondeu atrás das costas.
Ela enxugou seus olhos e deu uma risada amarga. — Então já está morto.
Nenhum de nós é de qualquer valor real para nossas famílias. O trono Kai é
garantido pelo irmão mais velho de Brishen e mais filhos do que você pode
contar com uma mão. Brishen é um sobressalente sem valor. Secmis vai virar as
costas para ele e seu marido vai segui-la.
— É difícil acreditar que qualquer coisa com uma alma saiu daquele útero.
— Naquele momento Ildiko odiava Secmis mais do que qualquer pessoa que
ela já conheceu.
— Quem em Belawat está pagando essas espadas não sabe que não há
amor perdido entre eles. Então temos tempo. Não muito. Apenas alguns dias,
mas o suficiente para encontrar seu esconderijo e resgatar seu marido.
Ildiko torceu sua túnica nas mãos. — O que eu posso fazer? Certamente,
há algo que eu possa fazer. — Ela odiava o desamparo, a falta de habilidades
marciais. O senso comum ditava que ninguém poderia ter previsto tais
circunstâncias para ela, mas o conhecimento oferecia pouco conforto.
— E as feridas dela?
Ele tinha olhos bonitos. Um castanho macio como torradas com manchas
de ouro irradiando das bordas das pupilas, eles brilhavam com um humor
constante. Ele era um bom homem, um guerreiro e sua atração por Anhuset era
palpável. — Você deve já conhecer a dureza de um Kai. Essas feridas não a
retardarão mais do que umas mordidas de pulgas. — Ele deu um tapinha no
braço de Ildiko. — Eu vou te trazer cobertores extras. Pode descansar ao lado
dela.
Ela fez o que ele pediu e rolou para os cobertores que ele deu a ela. Ela
dormiu assim que seus olhos se fecharam. Parecia apenas um momentos antes
do som de vozes discutindo em Kai a acordar. Ildiko esfregou os olhos e olhou
para o casal se olhando, não muito longe de onde ela estava sozinha. Anhuset,
envolta em um cobertor amarrado em seu ombro bom, estava acordada e
discutindo ferozmente com Serovek.
Anhuset imitou suas ações, seus traços tensos. — Até que alguém a
derrube ou faça um buraco nela.
— Eu a vi lidar com seu cavalo. Ela é uma amazona. Pode fazer isso. Se
quer que isso funcione, ela precisa fazer isso.
Serovek soltou um suspiro frustrado. — Pare ficar tão ansiosa para matá-
lo. Ele não está morto! — Seu corpo ficou tenso quando uma Anhuset furiosa
se aproximou dele, com mostrando as presas.
Ildiko jogou de lado cobertores e saltou para seus pés. — Por favor. —
Disse ela. Os dois esqueceram a luta e se voltaram para ela. — Farei o que você
me pedir. Qualquer coisa. Desculpe, eu não sou um guerreira. Queria ser.
Ele assentiu. — Agora ele é mais valioso vivo do que morto. Apenas
precisamos descobrir quantos enfrentaremos quando o resgatarmos.
Um dos Beladine agarrou seu braço e empurrou a manga suja por cima do
cotovelo, revelando uma marca padronizada tatuada em tinta azul e verde em
seu braço. — Um dos homens do clã Dentes da Serpente. — Disse o soldado.
O tom suave de Serovek não mudou. — Porque eles eram agricultores sob
minha proteção e agora estão mortos. Vou perguntar novamente. Quantos de
vocês estão escondidos nas cavernas?
Serovek se levantou e fez um gesto com uma das mãos. O assaltante foi
empurrado para seus pés. Ildiko engasgou enquanto o Lord Beladine se moveu
com uma velocidade deslumbrante. Um relâmpago de mãos quebrou o pescoço
do homem e ele caiu morto em uma pilha no chão. No tempo que levou Ildiko
a respirar, Serovek quebrou o pescoço do homem com um movimento rápido
e praticado. Ela balançou e agarrou o braço de Anhuset, atingida por tontura e
um zumbido distinto em seus ouvidos.
Ildiko confiava em qualquer plano que ele tivesse em mente, mas a ideia
de usar roupas de homem morto fazia sua pele se arrepiar. — O que faremos
agora?
O sorriso malicioso que ele deu a ela a deixou feliz por estar do mesmo
lado desse conflito em particular. — Brincar de bandidos. — Disse ele. — E
nem precisa cavalgar.
A pele da mulher Kai estava úmida sob as pontas dos dedos de Ildiko,
sinais de febre no rubor escuro em suas maçãs do rosto. — Acho que ele poderia
perdoá-la qualquer coisa, sha-Anhuset. — Ela disse suavemente. — Além disso,
não tenho intenção de morrer hoje.
A outra mulher olhou para ela em silêncio por vários momentos. — Uma
vez pensei que você fosse fraca. Eu estava errada. — Ela terminou de amarrar
a adaga no lugar. — Você está com medo?
O plano deles era simples. Eles descobriram que o invasor cativo não
mentiu sobre suas informações ao atrair alguns de seus compatriotas para fora
das cavernas. O homem de Serovek, agindo como um deles, a levaria diante
deles à vista, a mulher Gauri cativa que tanto ansiavam. Era tudo o que
precisavam dela. Todo soldado Beladine faria par com Kai, fosse na luz ou no
escuro, nenhum indefeso, enquanto o outro cobria suas costas. Eles iriam para
as cavernas, lutariam para entrar e sair novamente, esperançosamente com um
Brishen vivo.
O soldado puxou com força a corda, arrastando-a pelo chão. Ela gritou
quando cascalho raspou a pele exposta de seu lado e a corda arranhou seus
pulsos. — Levante-se, puta. — Ele gritou para ela. — Não tenho a noite toda.
Desta vez, ela não lutou como fez com Anhuset. Esperou, livre de suas
obrigações, no meio de um círculo de guardas tensos, fortemente armados e
olhou para a caverna com olhos arregalados porque estava com muito medo de
piscar.
— Você tem um estômago forte?— Ele perguntou. Ele parecia ainda mais
severo do que quando quebrou o pescoço do invasor. O sangue escorria da
espada que ele segurava e seus olhos escuros brilhavam como diamantes ao luar.
Brishen estava deitado diante dela, quieto. Pelo menos ela pensava que
fosse ele. Um grito inchou em seu peito, entrou em sua garganta e penetrou em
seus dentes apertados, um grito de angústia desumano.
Ela bateu uma mão sobre a boca, mas se recusou a fechar os olhos.
Cicatrizes cobriam cada parte de seu corpo que ela podia ver e seu olhar
congelou em suas mãos. Eles não tinham parado com os olhos. Ildiko traçou
uma linha delicada sobre o dorso de sua mão esquerda. As garras letais que
podiam dividir um homem da garganta até o umbigo, mas provocavam sua pele
com o toque mais leve, foram arrancadas, deixando apenas tocos de unhas
maltratadas e sangrentas. Sua mão direita combinava com a esquerda.
Ildiko acariciou o ar logo acima de sua cabeça com uma mão trêmula, com
medo de tocá-lo, com medo de seu corpo batido e brutalizado se desintegraria
diante de seus olhos. Ela não sabia o que queria fazer mais – gritar sua angústia
ou gritar sua raiva. — Meu pobre amor. — Ela sussurrou. — Por quê?
Serovek falou atrás dela. — Achamos que o líder fugiu. Matamos todos,
menos uma meia dúzia, que dizem que podem nos dizer quem os contratou em
troca de misericórdia. O que você deseja fazer, Alteza?
Ela não ficava muito tempo. Ildiko sempre sabia quando Anhuset estava
prestes a sair do quarto. Suas mãos flexionadas em sua espada como se ela
quisesse nada mais do que matar os torturadores de Brishen uma segunda vez.
Ildiko sabia exatamente como se sentia.
Não mais com medo de tocá-lo, ela acariciou o lado sem bandagens do
rosto de Brishen. Ildiko uma vez o admirou, nu e glorioso em sua cama dentro
de uma coroa de luz dourada e o considerou invulnerável. Como ela estava
terrivelmente errada.
Brishen era um homem que escolhia ver o bem em qualquer situação. Ele
ainda tinha descobrir sobre a perda de seu olho, mas descobriu sobre a perda de
suas garras. Enquanto a lembrança de sua tortura permanecia obscura, seus
dedos ainda pulsavam, às vezes, como se a lembrança de uma dor terrível tivesse
se incrustado em sua carne. As pontas dos dedos se curaram ao longo dos meses,
as garras crescendo lentamente em toda a pele exposta. Elas ainda estavam a
curtas – e cresciam bem devagar – mas ficavam longas e endureciam a cada dia.
Ele teria um conjunto completo de foices em ambas as mãos dentro de um ano.
Ela estava deitada de bruços – na cama deles agora – a cabeça apoiada nos
braços dobrados, com o rosto parcialmente protegido contra o seu olhar por
mechas de cabelo vermelho. Ele estava deitado ao lado dela, fazendo desenhos
ao longo da graciosa espinha dela, até o par de covinhas que decoravam sua
parte inferior. Roçando sua pele com seu toque, o músculo se contraindo
involuntariamente enquanto seus dedos deslizavam sobre seu corpo.
Era um prazer sensual tocá-la desta forma, uma coisa boa que surgiu
inesperadamente de brutalidade. Ela não estava em perigo de ser arranhada ou
dilacerada e Brishen descobriu que os dedos com unhas curtas poderiam fazer
coisas que aqueles com garras não podiam. Coisas que fizeram Ildiko se
contorcer em seus braços e deixar marcas de unhas em seus ombros. Se ele não
dependesse da proteção que suas garras lhes davam, Brishen iria mantê-las
curtas apenas por isso.
Ela o observava agora com uma expressão suavizada por languidez depois
do sexo. — Eu acho que me apaixonei por você durante o nosso casamento.
Ele se ajeitou para colocar um braço sob seu lado e arrastá-la mais perto
dele. — Demorou tanto tempo?— Ele brincou. — Você é difícil de conquistar
e eu tentei muito durante nosso primeiro encontro nos jardins.
Ildiko gaguejou. Sua perna deslizou entre os joelhos, subindo mais alto
para descansar contra sua coxa. — Chamar-me de bruxa não é o melhor jeito
de conquistar.
— Pelo que me lembro, você ameaçou bater meu crânio por causa da
minha aparência. E isso foi quando eu era magnífico de se ver. — Ele balançou
as sobrancelhas para ela.
Seu sorriso desapareceu quando ela não o devolveu. Ela traçou a crista
óssea de sua maçã do rosto, fissurado por cicatrizes infligidas por uma faca. —
Eles tiraram seu olho, Brishen. — Disse ela. — Não o seu caráter. Você ainda
é magnífico.
Seu controle não ia tão longe. Brishen gemeu e rolou para suas costas,
levando Ildiko com ele. Uma hora mais tarde, ele se afastou do abraço de sua
esposa e chutou os cobertores para longe de ambos.
Ildiko agarrou o lençol mais próximo. — O que você está fazendo?— Sua
pele brilhava corada. Brishen enrolou suas mãos sem garras em punhos para
evitar acaricia-la e perder mais uma hora.
Ele se sentou e balançou as pernas para o chão. — Minha mãe estará aqui
em breve.
A primeira vez que ele o usou, Ildiko recuou, alarmada. — Isso faz você
parecer cruel. — Disse ela com uma careta.
Ele ainda não descobriu como uma boca cheia de dentes pontudos ou
mãos com garras não a incomodavam, mas um tapa-olho inofensivo sim. Mas
ele queria agradá-la e o usava apenas se tivessem convidados ou visitando as
aldeias e vilas.
Brishen esperou no final, Ildiko ao lado dele, Anhuset do outro. Sua prima
falou em voz baixa. — Se tiver dança e me manda participar, te estripo enquanto
dorme.
A visita foi tão insuportável como Ildiko previu, mas sua esposa
permaneceu imperturbável sob escrutínio de desprezo e observações críticas de
Secmis. Na verdade, ela ignorou a rainha, exceto quando para falar ou para
perguntar se suas acomodações eram confortáveis. Seu foco estava em Brishen
que contava os minutos para sua mãe finalmente ir embora de Saggara e os
deixar em paz.
Ele não perguntou se os Beladine tentaram negociar sua libertação com
ela, forçando a anulação do seu casamento. E Secmis permaneceu em silêncio
sobre o assunto também. Seu olhar curioso refletiu em suas características
alteradas e a forma como ele equilibrava um jarro de vinho contra o copo antes
de derramar.
A perda de seu olho não foi sem consequências. Do lado esquerdo estava
completamente cego, sem lampejos de movimento ou alteração nos tons de luz.
A primeira quinzena foi a mais frustrante e seu nariz sempre atrapalhava, a
sensação diminuiu ao longo do tempo, mas ele ainda tinha problemas com a
sensação de profundidade.
Brishen não mencionou nada disso para Secmis. Não duvidava de que ela
caiu na risada quando os Beladine apresentaram sua ameaça para ela. A morte
de seu filho mais novo era de pouca importância, sua sobrevivência e
recuperação menos ainda.
Secmis franziu a testa para sua falta de reação a seus insultos. — Você
ainda não me perguntou por que eu estou aqui.
Quando você não está quebrando seus pescoços, ele pensou, mas
permaneceu em silêncio.
Seu sorriso de satisfação mudou, tornando-se algo que enviou um frio
rastejando para baixo em suas costas. Levou tudo dentro dele não se encolher
ou saltar do seu assento quando ela acariciou seu antebraço em uma carícia lenta.
— É uma pena que você seja meu filho. — Ela ronronou. — Você seria um
magnífico consorte.
Uma onda de bílis queimou sua garganta. Brishen agarrou o jarro, apoiou-
o contra sua taça e serviu vinho até tocar a borda. Ele esvaziou a taça em dois
goles. — Por que veio, Sua Majestade?— Nunca antes lutou tanto para não
revelar sua repugnância pela mulher que o deu à luz.
Seu olhar consciente avisou que ele poderia não ter sido tão estoico como
esperava. Ela colocou a mão no bolso de sua túnica e tirou uma pequena caixa
decorativa. Ela colocou-a sobre a mesa e deslizou em direção a ele. Ele reprimiu
o impulso de empurrá-lo de volta.
Ela andou ao redor da mesa e fez sinal para as duas servas que pairavam
nas proximidades, prontas para servir todos seus caprichos. — Não ficarei uma
segunda noite. — Ela anunciou. — Saggara não tem os confortos mais básicos,
camas incômodas, comida sem graça e pessoas ainda mais maçantes. Não há
necessidade de me acompanhar até os portões. Sairei mais cedo sem você e uma
tropa de soldados me acompanhando. Direi ao seu pai que você envia seus
cumprimentos.
Duas horas depois, Brishen suspirou de alívio quando Secmis e seu frupo
desapareceram no horizonte. A viagem seria dura para os condutores. A rainha
se abrigaria em um vagão protegido do sol por cortinas escuras. Sua escolta teria
que andar encapuzada e apertando os olhos por várias horas antes de
encontrarem alívio. Ele não os invejava.
Ele encontrou Ildiko ainda vestida com elegância de frente para as janelas
no quarto. Ela virou-se para cumprimentá-lo com um sorriso. — Ela optou por
não ficar? Graças aos deuses! — Ela literalmente pulou em seus braços
acolhedores. — Eu não posso acreditar que você é filho daquela mulher.
Infelizmente ele era, mas ele conseguiu em seu esforço não ser nada como
ela quando outros manifestaram a sua descrença de que eles estavam de alguma
forma relacionados. Sua pele se arrepiou novamente com a lembrança de suas
palavras. — Pena que você é meu filho. Seria um magnífico consorte.
Ildiko se afastou dele. — Talvez você deva colocar sua armadura antes de
abrir.
Ele tinha uma noção do que poderia estar dentro. A ideia de humor de
Secmis era geralmente a ideia de horror de oura pessoa. — Abrirei mais tarde.
Ela franziu o cenho para ele. — Então você definitivamente não deve abrir
isso sozinho.
Ela esteve ao lado dele em eventos muito mais sombrio do que abrir um
presente de Secmis e aguentou a todos. Ela faria isso novamente.
Ildiko balançou quando Brishen abriu a tampa para revelar o conteúdo da
caixa e ela apertou seu braço. — Essa cadela. — Ela disse. — Essa vadia e cadela
horrível. Ela veio até aqui para afundar uma faca.
Ildiko fez uma careta para ele, seu tom irritado. — Como você pode não
ficar com raiva? Eu quero dar um soco naquela cara risonha. — Ela apertou a
mão esquerda e golpeou a palma da mão direita com um duro golpe.
As lágrimas brilharam nos olhos de Ildiko e e ela piscou forte. — Ela teria
deixado você morrer. Sentada no trono como uma grande aranha inchada e
deixaria que o matassem!
— Lembre-se, esposa. Sou uma sobra, não tenho valor para ela.
Ela se lançou para ele e colocou os braços ao redor da cintura. Seus seios
macios pressionados contra seu peito enquanto ela o abraçava o mais forte que
podia. — Você é de grande valor para mim. — Ela disse contra sua túnica. Ela
levantou a cabeça, seus olhos ainda marejados. — Eu gostaria de poder matá-
los novamente, Brishen. Eu gostaria de poder matá-la.
Ele passou os dedos sem garras pelos seus cabelos antes de se inclinar para
beijar sua testa. — Eu te amo, minha bruxa sanguinária.
Ildiko fungou e ofereceu-lhe um sorriso fraco. — Isso é uma coisa boa,
porque terá que sofrer com um jantar mais tarde. Pensei que sua mãe estaria
aqui mais uma noite, então eu pedi que servissem batatas.
Brishen jogou a cabeça para trás e riu. Ele levantou Ildiko fora de seus pés
e girou-a.
Ela estava sem fôlego quando ele a colocou no chão e conseguiu sair de
seu abraço com um tropeço tonto. — Eu tenho algo para você também. —
Disse ela. — E não é uma parte do corpo. — Ela pegou uma bolsa de veludo
do baú no final da sua cama e entregou a ele. — O joalheiro do município de
Halmatus entregou juntamente com meu colar, enquanto você estava curando.
Eu esqueci disso até que Sinhue e eu estávamos verificando os armários por um
scarpatine escondida.
— Eles são. — Se esta pedra realizasse o que ele pensava, iria revisitar
Halmatus e a visita não seria amigável. — Ildiko, o feitiço usado para fazer estes
trabalhos é perigoso, imprevisível. Você não...— Ela assentiu com a cabeça,
confirmando seu medo. — Matarei aquele joalheiro.
Ela o fazia mais forte; ela o fazia mais fraco e neste momento, ela quase o
colocou de joelhos. Brishen a tomou em seus braços, segurando o recolligere em
uma das mãos. Ele beijou suas bochechas, têmporas, os cantos de seus olhos
molhados de lágrimas. Quando chegou a sua boca, ele fez uma pausa. — Não é
uma luz pálida. — Disse ele. — Mas uma radiante de uma mulher em cuja
presença eu nunca serei cego.
— Sempre.
Epílogo
Já não seria apenas a rainha de uma raça decrescente. Ela governaria todos
os reinos, todos os Kai e humanos. E ela faria isso por milhares de anos. Imortal,
nunca envelhecendo, a mais poderosa. A rainha da noite, em vez de uma sombra
fraca.
O poder que ela invocou estava adormecido por mais tempo do que até
mesmo as lembranças das luzes-mortem mais antigas de Emlek. O feitiço para
despertar matou muitos magos. Era necessário sangue e medo, lembranças e
inocência. Secmis pensou que tivesse o ingrediente final, quando ela deu à luz
uma filha – uma criança nascida, deformada e saída de seu ventre.
Ela rosnou, mesmo enquanto desenhava símbolos mais sangrentos no
corpo que se debatia. Secmis nunca descobriu quem levou a criança que ela
marcou para esta cerimônia, mas suspeitava.
Brishen era uma criança alegre e agradável. Sempre fazendo o que lhe era
dito, não se rebelava ou demonstrava qualquer ambição de substituir seu irmão
como herdeiro. Secmis notou seu caráter e prontamente se esqueceu dele.
Apenas quando ele ficou mais velho ela pegou indícios de uma força oculta, uma
vontade implacável e um ódio frio reptiliano que brilhava em seus olhos a
qualquer momento que ela encontrasse seu olhar.
Ainda assim, Secmis se perguntava. Seu filho mais novo era cheio de
camadas, muito mais complexo do que ela lhe deu crédito e muito mais
inteligente do que o herdeiro aparentemente flexível. Ele alegremente se casou
com a repulsiva mulher Gauri e resolveu levá-la Saggara sem reclamar. Ele não
confrontou Secmis sobre o scarpatine no quarto de sua esposa, preferindo fazer
as malas e sair. Ele a superou, obtendo a permissão de Djedor primeiro.
Sua tortura não o quebrou. Ela mesma viu. Cicatrizes e meio cego, Brishen
ainda governava Saggara com mão firme e impondo tanto o respeito e lealdade
feroz a seus seguidores. Secmis não mentiu quando lhe disse que ele seria um
magnífico consorte. Mas apenas se eles compartilhassem o poder e Secmis
estava cheia de dividir poder.
O discurso proferido era um que nunca foi falado pelos vivos e profanava
os mortos que o fizeram. Um frio úmido se instalou no quarto quando o homem
morto recitou palavras ininteligíveis que faziam feridas irregulares em sua pele e
criavam rachaduras nas paredes e teto.
Uma rachadura aumentou para uma união aberta das trevas ainda mais
espessa do que o que já existia. Saiu da fenda, grossa como o óleo da lâmpada e
cheirando a uma casa mortuária. Secmis riu e bateu palmas conforme o preto
viscoso escorria pelas paredes e pelo chão, silhuetas retorcidas com olhos
vermelhos se formando. Ela fez isso! Rasgou o véu entre os mundos e trouxe
uma legião invencível que só obedeceriam a seus comandos.
Eles foram para ela como ordenado, mas não como ela esperava. Uma
sombra escorregadia enroscou-se ao redor dela e a golpeou na garganta. Secmis
gritou, sufocando na lama espessa que a entidade forçava para baixo na sua
garganta. Ela arranhou o ar e tentou gritar. Mais das formas sinuosas se
envolveram ao redor dela, buscando lacunas na sua roupa, a cada entrada de seu
corpo até que ela não era nada mais do que uma marionete, um fantoche que se
mexia para um lado e depois o outro enquanto as sombras gritavam, riam e
saltavam.
Eles ficaram em silêncio por um momento, se soltando e se afastando para
longe da confusão grotesca de ossos e carne sangrenta que uma vez foi uma
rainha famosa por sua beleza e temida por seu poder. As formas sussurravam
entre si, acrescentando vozes sibilantes a voz do morto sem coração que ainda
proferia as palavras de uma língua envenenada.
O Kai morto falou, mesmo quando os primeiros gritos dos vivos ecoaram
através das pedras.
Fim...