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Epistemologia da alteridade:
entre o erklären (explicar)
e o verstehen (compreender) de outrem

Luís Mauro Sá Martino


Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Docente do Programa de Pós-graduação em
Comunicação da Faculdade Cásper Líbero
E-mail: lmsmartino@casperlibero.edu.br

Resumo: Este texto delineia algumas relações entre identida-


de e alteridade como um problema comunicacional, pautado
em dois elementos: (a) a dimensão epistemológica da relação
com a alteridade, no sentido de “explicá-la” a partir de catego- O outro é o mais infinito dos mistérios. E
rias que não são as suas; (b) a dimensão ética dessa relação, a
partir da qual a alteridade é vista como um semelhante a ser tanto mais misterioso porque é igual a um eu
compreendido. Finalmente, o texto argumenta que a comuni- que se constrói e dilui nos atravessamentos da
cação, como processo estético, requer essas duas dimensões na
construção de relações sociais pautadas no entendimento e na
alteridade, se transforma a cada vez que a po-
responsabilidade. tência de seu ser é afetada pela presença, real
Palavras-chave: Comunicação, a compreensão como método, ou imaginária, desse outro que desafia sempre
epistemologia, identidade.
a pensar, também, como o outro de alguém,
Epistemología de la alteridad: entre el erklären (explicar) y el de todos os outros, aquele a partir do qual o
verstehen (comprender) del otro
Resumen: Este texto delinea algunas relaciones entre identidad
outro também se constitui – daí minha res-
y alteridad como un problema comunicacional, basado en dos ponsabilidade infinita para com o outro.
elementos: (a) la dimensión epistemológica de la relación con Responsabilidade infinita que, no entan-
la alteridad, en el sentido de “explicarla” desde categorías que
no son las suyas; (b) la dimensión ética de esa relación, de la to, se manifesta nos minutos mais ínfimos
que la alteridad está vista como un semejante a ser comprendi- do cotidiano: na resposta que dou à interpe-
do. Finalmente, el texto argumenta que la comunicación, como
proceso estético, requiere esas dos dimensiones en la construc-
lação, mesmo silenciosa, do outro. Não por
ción de relaciones sociales basadas en el entendimiento y en la acaso, talvez, “resposta”, “responsabilidade” e
responsabilidad. “respeito” estejam etimologicamente próxi-
Palabras clave: comunicación, la comprensión como método,
epistemología, identidad. mas, fundadas na mesma raiz: de certa for-
ma, a própria noção de “responsabilidade”
Epistemology of the otherness: between erklären (to explain) and
verstehen (to unterstand) the other
está ligada à possibilidade de “responder”.
Abstract: This paper highlights some relations between iden- Responder a quem? Ao outro, a outrem.
tity and otherness as a problem in Communication Studies, Começar o diálogo, e, na perspectiva de
focusing in two elements: (a) the epistemological dimension
of the otherness, i.e., of “explaining” it based on categories that Bohm (2009), com perguntas.
are foreign to it; (b) the ethical dimension of such relation, in Como entender essa alteridade que desafia?
which the otherness is perceived as similar to being compre-
hended. Finally, the text reasons that communication, as an
E, em uma pergunta anterior, por que a
aesthetic process, requires both dimensions while establishing alteridade desafia?
social relations based on comprehension and responsibility. Este texto indica alguns modos como as
Keywords: Communication, comprehension as a method,
epistemology, identity. relações de comunicação com a alteridade

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derivam do entendimento de outrem na alteridade no sentido da comunidade (Paiva,


perspectiva, proposta por Künsch (2005), de 1999; Esposito, 2005; Yamamoto, 2014).
uma Teoria Compreensiva da Comunicação. Este texto está inserido no contexto do
O argumento central é de que no núcleo projeto de pesquisa “A compreensão como
de uma epistemologia da Comunicação método”, destacando as relações entre co-
pode ser localizado um dado epistêmico municação e identidade no âmbito tanto da
de reconhecimento e compreensão do ou- estética – entendida aqui como o espaço das
tro – o que implica uma dimensão ética da afecções no terreno do relacional – quanto da
Comunicação. política, dentro de uma perspectiva da com-
A argumentação se desenvolve em três preensão como método, na qual o estabele-
momentos: (a) a alteridade desafia e se cons- cimento de uma relação com a alteridade é
titui como problema de Comunicação; (b) o sempre uma trama de fenômenos da qual as
modo de entender a alteridade regula a rela- relações de poder não estão ausentes (Künsch,
2007; Marques, 2013; Martino, 2015).

O estabelecimento de uma  mbivalência comunicacional da


A
relação de comunicação alteridade
requer o reconhecimento Em seu ensaio “O inquietante”, Freud
do outro como uma (2010 [1919]) indica a evocadora familia-
alteridade a ser ridade que o estranho provoca (Marques e
compreendida, mais do Martino, 2015; Marques, 2014). A presença
que explicada de algo familiar no estranho, essa ambiva-
lência constante desencadeada pela relação
de proximidade e de distância com que o
estranho é contemplado e ao mesmo tempo
ção comunicacional; (c) essa dimensão epis- contempla, é uma das raízes da perspectiva
têmica da alteridade não prescinde de uma de relação com a alteridade: nas palavras de
dimensão ética da Comunicação. Propõe-se Octávio Paz (1998), o “semelhante desseme-
que o estabelecimento de uma relação de lhante” do outro.
comunicação requer o reconhecimento do Essa sensação de proximidade e distância
outro a partir do segundo modo de enten- pode ser observada com mais força quan-
dimento – a saber, uma alteridade a ser com- do aplicada à relação de cada um consigo,
preendida, mais do que explicada. no momento de crise quando o indivíduo
O sentido de “comunicação” define- se torna estranho a si mesmo, “estrangeiros
-se como um dos elementos fundamentais a nós mesmos”, na expressão de Kristeva
nas interações com a alteridade: o encontro (2000). Essa ação de diferenciação, de
com o outro só pode acontecer no momen- transformação e permanência, é o sentido
to em que há algo compartilhado (Braga, relacionado ao outro, igualmente diferente.
2010; 2011; Marcondes Filho, 2012a; 2012b; No âmbito do cotidiano, é possível ver isso
Martino, 2007; 2010; Wolton, 2008; 2011; na vaga sensação de estranhamento presente
Ferrara, 2013). Como recordam Williams quando se vê uma fotografia pessoal tirada
(2004 [1976]) e Lima (1983), um dos senti- anos atrás, seguida de expressões corriquei-
dos da palavra “comunicação” aponta para a ras como “Nossa, como eu era diferente!”. Ou,
ideia de “compartilhar”, e o ato de “tornar co- lembra Lévinas (2010), quando se olha para
mum” implica o estabelecimento de uma rela- um filho: tem seus traços, tem suas expres-
ção, pautada no desejo estético de conhecer a sõese, ao mesmo tempo, é outra pessoa: seus

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traços são parecidos, não iguais; sua persona- mostra dois grupos de primatas disputando,
lidade e ideias podem ter alguma proximida- nas savanas da África, uma pequena poça de
de, mas não são – nem devem ser – a sua. água que representa, para todos, a sobrevi-
O “estranho”, o “estrangeiro”, é inquie- vência imediata. No primeiro confronto,
tante porque guarda todas as características um dos grupos perde a disputa – na forma
que permitem sua identificação como algo de gritos e exibições de força – e recua. No
parecido com um “eu”, ao mesmo tempo em dia seguinte, o grupo derrotado encontra um
que outros sinais são decodificados inequi- misterioso monolito, de origem extraterres-
vocamente como não familiares. O apare- tre. Após alguma hesitação, os primatas têm
cimento de sujeitos, recorda França (2006), coragem de tocá-lo, e, nos dias seguintes,
está ligado ao estabelecimento de formas de descobrem uma maneira de usar ossos de
comunicação entre eles. A existência dessa animais como arma. Como resultado, con-
comunicação presume, do mesmo modo, frontam-se novamente com os primatas ven-
um intervalo entre ambos a ser preenchido cedores. E, desta vez, dizimam o outro grupo
nessa relação. e estabelecem seu domínio.
Sua diferença é, ao mesmo tempo, o ele- Essa cena, nos primeiros dez minutos do
mento que desafia a uma aproximação, ao filme, alinha fatos para pensar as possibili-
mesmo tempo em que sua semelhança me dades de conhecimento e relação humana. É
torna responsável por ele. Sua humanidade, quando um dos primatas desenvolve a inteli-
lembra Morin (2006), é compartilhada co- gência e habilidade para lidar com uma tec-
migo. Sua diferença é um sinal de que somos nologia – portanto, o aparecimento de um
iguais – somos signos de diferença. logos e de uma techné – que também define
Compartilhar essa humanidade, diz uma relação de laços e lutas, o lugar de um
Lévinas (1990; 2007), nos torna responsáveis “nós” e o lugar de um “eles”.
por todos os outros: deixar de lado a respon- O conhecimento, se erigido apenas em
sabilidade infinita que se tem para com todos uma técnica a serviço de uma razão condu-
os outros é abrir mão da humanidade que zida pelo desejo, tem como resultado a ani-
se tem. O rosto do outro endereça ao meu quilação da alteridade. Falta, nesse quadro, o
uma noção de humanidade que, quando não princípio de razão prática que coloque em
é sentida, vivida, transformada no ethos de questão um terceiro elemento de equilíbrio
uma razão prática, permite a violência que entre esse logos e techné, o ethos estabelecido
rouba o sentido de humanidade (Marques e nas relações que se praticam na direção da
Azevedo, 2015). alteridade.
A alteridade é radical, nesse sentido, na
medida em que também toma as coisas pela Ética e razão na definição de alteridade
raiz – a etimologia de “radical” está ligada,
no latim, a “radice”, e,, nesse sentido, aponta A partir de quando se começa a pensar na
Marx (1999), a raiz do ser humano é o pró- alteridade?
prio ser humano. Lembrar dessa raiz implica Um esboço de resposta talvez tenha que
recordar seu compartilhamento, nos limites passar por fundamentos nos quais se mis-
de sua complexidade, com tudo o que é hu- turam não apenas as disciplinas da História,
mano, do mais sublime ao mais desagradável. mas também da Sociologia e da Antropologia
“The Dawn of Man”, “O alvorecer do (Eagleton, 2008). Não seria de todo errado si-
ser humano”, é a primeira parte de “2001: tuar o início da relação com a alteridade ainda
Uma odisséia no espaço”, de Stanley Kubrick nos primórdios da constituição do que viriam
(1967), baseado no romance de Arthur a ser os primeiros grupos humanos. A forma-
C. Clarke. Situada milhares de anos atrás, ção dos laços de parentesco, ou, colocando em

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outro sentido, o reconhecimento dos laços de início um forte movimento de retração da


parentesco para além dos primeiros anos de religião da esfera pública para a esfera pri-
vida e do período de formação do ser parece vada e a instituição de legislações laicas. O
ser um dos traços distintivos do ser humano, princípio de tolerância exige que todos os
embora não exclusivo. seres humanos sejam considerados iguais, e
Constituir a alteridade talvez tenha sido uma ontologia baseada no vínculo de alguns
um processo epistemologicamente menos com uma divindade, em detrimento de ou-
complexo do que outros, sobretudo a par- tros, praticamente inviabiliza esse processo.
tir do momento em que o conhecimento É nesse aspecto que, em seus escritos so-
da existência de uma diferença implica sua bre a tolerância, John Locke (2003) coloque
classificação em um domínio axiológico di- o problema do religioso como um dos fun-
ferente do “si” ou do “nós”. A questão era, a damentos para se pensar a possibilidade de
partir dessa base epistêmica, definir os prin- viver juntos. Ao circunscrever a esfera do re-
cípios de uma racionalidade prática capaz de ligioso para o privado, estabelece-se um es-
estabelecer como seriam, ou deveriam ser, as paço comum de ascendência exclusivamen-
relações com essa diferença (Spivak, 2008). te cívica, pautada não mais em um direito
O surgimento das civilizações e a dife- oriundo de uma revelação acessível apenas a
renciação dos processos de divisão do tra- um número de escolhidos – e o tribunal ecle-
balho implicam também o aparecimento de siástico é a epítome desse tipo de relação –,
marcadores de igualdade e diferenças inter- mas em um Direito constituído e constituin-
nos – castas, grupos, classes sociais, divisões te de uma esfera civil desligada, no âmbito
pautadas em diferenças étnicas, de gênero ou público, de qualquer elemento de segregação
etárias que, em uma infinidade de transfor- entre indivíduos que se pautasse em uma su-
mações, recolocam o problema da alteridade. posta origem religiosa.
Como aponta Binoche (2010), o pro- Evidentemente esse processo não se de-
blema da alteridade e da tolerância emerge, senrola em sua totalidade no século XVIII,
como temática dentro das preocupações filo- podendo suas origens remontar à Magna
sóficas do Ocidente, a partir do século XVIII. Carta de 1215, que forçou o então rei João
A visão do outro, até então, parece ter da Inglaterra a reconhecer um conjunto de
obedecido em linhas gerais a uma ótica de liberdades que, de alguma maneira, colo-
objetificação pautada não apenas em uma cavam em cheque seu estatuto divino; ao
presunção de superioridade, mas também mesmo tempo, um dos pontos culminantes
em uma ideia de hierarquização de uma desse processo, a Revolução Francesa, tam-
ordem cósmica: as mitologias de boa par- pouco marcou o final desse tipo de divisão
te dos povos encontram, em seus mitos de classificatória da alteridade. Ao contrário, a
criação, uma justificativa para seu próprio questão permanece um problema para inú-
posicionamento no centro de uma organi- meras áreas das ciências humanas até hoje.
zação cosmológica derivada de uma ou mais Como questão, renova-se a pergunta a
divindades, responsável por realçar sua con- respeito das maneiras de tratar a alterida-
dição especial em detrimento dos outros. O de, desta vez vista como um “outro” com os
entendimento, na esfera pública, depende de mesmos direitos e deveres em relação a todos
trabalho de reposicionamento desses siste- os outros: o estatuto do elemento “civil”, no
mas de crenças em relação ao espaço comum âmbito da vida comum, é elevado ao princí-
(Habermas, 2002; 2005; 2006). pio igualitário. Como hipótese, o caminho é
Na visão de Binoche (2010), não é coin- semelhante, embora com outra formulação.
cidência que a noção de tolerância apareça, A mudança no estatuto ético só pode ser
na Europa, no mesmo momento em que tem pensada a partir de uma igual transformação

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na situação epistemológica de conhecimento exercício de classificação, e o ato de narrar


da alteridade. Em termos diferentes, qual- o outro significa geralmente sua redução aos
quer transformação no modo de relaciona- esquemas narrativos que permitem torná-lo
mento com a alteridade implica necessaria- inteligível – mas com uma perda substancial
mente uma mudança nas modalidades de de suas características (Bruner, 1991; Hall,
representação do outro. 1996; 2000; Gerbner, 1999; Motta, 2012;
Rago, 2013; Martino, 2016).
Explicar o outro, compreender o outro Explicar a alteridade significa em alguns
momentos reduzi-la às categorias interpre-
A violência ética não se separa da violên- tativas formuladas por mim, não por ela: daí
cia epistemológica. Classificar, ou melhor,
desclassificar o outro é estabelecer uma pre-
ocupação negativa com a alteridade. De cer- A razão e a técnica, des-
to modo, implica sequer reconhecê-la como
providas de um balanço
um “alter” proveniente de relações intrínse-
cas com um “ego”, mas defini-la como “res”, pautado na alteridade,
a “coisa”, uma diferença que não pode ser ca- tornam-se pura violên-
tegorizada senão a partir de divisões que to- cia classificatória desti-
mam a alteridade como um “isso”, nas pala- nada a “explicar” o outro,
vras de Buber (1995; 2000), mergulhadas no mas não a “compreendê-lo”
reconhecimento da presença dessa alteridade
que desafia.
Talvez não seja coincidência o fato de que a complexidade multidimensional de o ser
esse sentido de inquietação muitas vezes se passar por um processo de “aplainamento”,
traduza por medo, e o medo, inconsciente- para continuar o jogo etimológico, cada vez
mente, em impulso de violência. O estranho, que ele é “explicado”. E não deixa de ser esse
não por acaso, costuma ser objeto ao mesmo o primeiro e mais comum tipo de apreen-
tempo de uma sombria admiração e alvo dos são da alteridade, na redução do todo à par-
desejos de destruição do restante do grupo te – uma apreensão metonímica do outro
ou, conforme o caso, dos outros grupos. (Martino, 2015).
A razão e a técnica, desprovidas de um A noção de “compreensão” na relação
balanço pautado na alteridade, tornam-se
epistêmica sugere outro ponto: “colocar jun-
pura violência classificatória destinada a “ex-
to”. Se é possível continuar com a questão
plicar” o outro, mas não a “compreendê-lo”.
etimológica, nas origens latinas a compreen-
Etimologicamente, “explicar” está ligado
são era a perspectiva de “tomar as coisas em
ao sentido de “desdobrar”. Em termos mais
conjunto”, ligar o “todo” ou a “totalidade”,
literais, “tornar plano”. Não seria talvez de
todo errado fazer disso uma imagem na rela- algo ainda visto no sentido de “compreen-
ção com a alteridade: ao “explicar” o outro eu der” em como “conter” e “incluir”.
o torno “plano”, isto é, reduzido – a palavra Como recorda Dilthey (2010), as ciências
seria “achatado” – a uma única dimensão. humanas estão ligadas à dimensão do “vers-
A dimensão analítica não deixa também tehen”, o ato de “compreender”, enquanto as
de ter uma dimensão de desmontagem da al- ciências naturais buscam o “erklären”, o “ex-
teridade em categorias – mas quais categorias? plicar”, na dimensão próxima ao “aufklären”,
Minhas categorias, não as dele: uma con- o ato de “tornar claro”. Foi o filósofo alemão
siderável tradição de autores e autoras indica um dos primeiros a indicar essa separação
que o exercício da narrativa é também um epistemológica e suas consequências em

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relação ao desenvolvimento de um entendi- “sombra”, formulada na psicologia analítica


mento do ser humano: podemos ser compre- de Jung, para que esse conteúdo, de fato, se
endidos, mas não explicados. A complexida- mostrasse como real e influente no cotidia-
de dos fenômenos humanos torna qualquer no. É Jung (2004) quem aponta que o re-
explicação parcial e incompleta, metonímica conhecimento da sombra implica uma mu-
– em uma palavra, “plana”. dança na relação com a alteridade: se tenho
A perspectiva de garantir uma cientifici- uma sombra desconhecida de mim mesmo,
dade ao estudo do humano, perseguida em com que direito posso me julgar superior a
toda uma tradição que vai se institucionalizar quem quer que seja?
com Durkheim (1997) e encontrar eco em No âmbito da compreensão, a humanida-
inúmeros outros pensadores – não se esca- de do outro é vista em sua parcialidade – não
pa fácil do espírito do tempo, o “Zeitgeist” –, existe visão de lugar nenhum –, mas lem-
define o humano como um ser que pode se brada em sua totalidade, ao mesmo tempo
tornar objeto de explicação. em que essa visão se questiona: quem sou eu
para ver o outro? Com quais categorias eu o
interpreto? E, em termos reflexivos, isso im-
Às luzes da razão se plica entender que a humanidade do outro
contrapõem sombras me recorda da minha humanidade, colocan-
que se estendem do-nos em uma relação de responsabilidade:
sua luminosidade, como sua sombra, é tam-
para além do limite
bém a minha.
do explicável, sendo
possível apenas
Considerações finais
compreendê-las
Como aponta Picard (2007), a polidez é
um dos principais exercícios de comunica-
ção para com a alteridade. Só se é “educa-
Dilthey (2010) observa que essa perspec- do” com os outros, no sentido talvez mais
tiva deixa de lado a possibilidade de nunca se comum da palavra, quando reconheço no
chegar a nenhum tipo de “explicação”, mas, outro um igual. Quando não o explico em
no máximo, de uma “compreensão” dos fe- categorias hierárquicas, mas o compreendo
nômenos sociais – um elemento igualmente em sua humanidade.
fundamental nos desenvolvimentos da so- Comte-Sponville (1999), aliás, coloca a
ciologia de Weber (1991). polidez como uma das virtudes que permi-
É na filosofia, talvez, que esse aspecto pos- tem a convivência humana – o ato da polidez
sa ser mais observado: as perspectivas de se exige o reconhecimento do outro, uma res-
colocar uma racionalidade como fundamento posta a sua presença, o elemento de igualda-
do humano, em uma tradição que se define de de. Nem sempre, evidentemente, foi assim:
Descartes a Hegel, encontra um contraponto durante séculos a polidez foi sinônimo de
nas perspectivas de Schopenhauer e Nietzsche. hierarquização, como aponta Elias (2010).
O ser humano pode ser dotado de uma razão, A Revolução Francesa, entre outras coisas,
mas a essas luzes se contrapõem sombras que questiona essa hierarquia da polidez e a colo-
se estendem para além do limite do explicável, ca como pré-requisito cívico: o respeito co-
sendo possível apenas compreendê-las. meça na polidez, e o direito ao respeito está
Seria preciso aguardar os desenvolvi- na raiz da sociedade.
mentos da psicanálise freudiana, no sé- O estabelecimento de relações de comuni-
culo XX, e, especialmente, o conceito de cação com a alteridade, no sentido da palavra

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especificado no início deste texto, parece re- termine nesse momento, nessa primeira e re-
querer uma aproximação em termos muito dutora apreensão do outro.
mais de uma compreensão (“verstehen”) do E, em certa medida, mesmo para mim,
que de sua “explicação” (“erklären”). uma vez que a ideia de um completo auto-
Explicar o ser humano traz em si uma conhecimento parece inalcançável. Por isso
perspectiva de redução de complexidades mesmo, nessa reflexividade da compreensão,
– necessária, sem dúvida, em um primeiro está o núcleo de responsabilidade que me liga
momento, para garantir a inteligibilidade da com todos os outros: a responsabilidade pelo
relação com a alteridade; o problema, no en- outro funda-se na compreensão da alteridade
tanto, é dar o passo da explicação do outro como o duplo da igualdade.
para sua compreensão. Compreender os limites dessa relação talvez
Não se deixa de lado, na apreensão cogni- possibilite o estabelecimento de brechas mais
tiva da alteridade, que sua dimensão epistê- frequentes nos espaços de silêncio que se en-
mica é pautada em primeiro lugar por uma contram na velocidade das relações cotidianas
caracterização baseada em categorias previa- e permita estabelecer, para além das diferenças,
mente formadas e, mais ainda, responsáveis mas convivendo com elas, um dos sentidos
pelo vislumbre inicial de todo aquele que plenos da palavra comunicação – estar com os
não sou eu. A questão é evitar que o processo outros, compartilhar uma vida comum.
(artigo recebido abr.2016/aprovado jun.2016)

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Líbero – São Paulo – v. 19, n. 37-A, p. 101-108, jul./dez. de 2016


Luís Mauro Sá Martino – Epistemologia da alteridade: entre o erklären (explicar) e o verstehen (compreender)...

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