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Epistemologia da alteridade:
entre o erklären (explicar)
e o verstehen (compreender) de outrem
traços são parecidos, não iguais; sua persona- mostra dois grupos de primatas disputando,
lidade e ideias podem ter alguma proximida- nas savanas da África, uma pequena poça de
de, mas não são – nem devem ser – a sua. água que representa, para todos, a sobrevi-
O “estranho”, o “estrangeiro”, é inquie- vência imediata. No primeiro confronto,
tante porque guarda todas as características um dos grupos perde a disputa – na forma
que permitem sua identificação como algo de gritos e exibições de força – e recua. No
parecido com um “eu”, ao mesmo tempo em dia seguinte, o grupo derrotado encontra um
que outros sinais são decodificados inequi- misterioso monolito, de origem extraterres-
vocamente como não familiares. O apare- tre. Após alguma hesitação, os primatas têm
cimento de sujeitos, recorda França (2006), coragem de tocá-lo, e, nos dias seguintes,
está ligado ao estabelecimento de formas de descobrem uma maneira de usar ossos de
comunicação entre eles. A existência dessa animais como arma. Como resultado, con-
comunicação presume, do mesmo modo, frontam-se novamente com os primatas ven-
um intervalo entre ambos a ser preenchido cedores. E, desta vez, dizimam o outro grupo
nessa relação. e estabelecem seu domínio.
Sua diferença é, ao mesmo tempo, o ele- Essa cena, nos primeiros dez minutos do
mento que desafia a uma aproximação, ao filme, alinha fatos para pensar as possibili-
mesmo tempo em que sua semelhança me dades de conhecimento e relação humana. É
torna responsável por ele. Sua humanidade, quando um dos primatas desenvolve a inteli-
lembra Morin (2006), é compartilhada co- gência e habilidade para lidar com uma tec-
migo. Sua diferença é um sinal de que somos nologia – portanto, o aparecimento de um
iguais – somos signos de diferença. logos e de uma techné – que também define
Compartilhar essa humanidade, diz uma relação de laços e lutas, o lugar de um
Lévinas (1990; 2007), nos torna responsáveis “nós” e o lugar de um “eles”.
por todos os outros: deixar de lado a respon- O conhecimento, se erigido apenas em
sabilidade infinita que se tem para com todos uma técnica a serviço de uma razão condu-
os outros é abrir mão da humanidade que zida pelo desejo, tem como resultado a ani-
se tem. O rosto do outro endereça ao meu quilação da alteridade. Falta, nesse quadro, o
uma noção de humanidade que, quando não princípio de razão prática que coloque em
é sentida, vivida, transformada no ethos de questão um terceiro elemento de equilíbrio
uma razão prática, permite a violência que entre esse logos e techné, o ethos estabelecido
rouba o sentido de humanidade (Marques e nas relações que se praticam na direção da
Azevedo, 2015). alteridade.
A alteridade é radical, nesse sentido, na
medida em que também toma as coisas pela Ética e razão na definição de alteridade
raiz – a etimologia de “radical” está ligada,
no latim, a “radice”, e,, nesse sentido, aponta A partir de quando se começa a pensar na
Marx (1999), a raiz do ser humano é o pró- alteridade?
prio ser humano. Lembrar dessa raiz implica Um esboço de resposta talvez tenha que
recordar seu compartilhamento, nos limites passar por fundamentos nos quais se mis-
de sua complexidade, com tudo o que é hu- turam não apenas as disciplinas da História,
mano, do mais sublime ao mais desagradável. mas também da Sociologia e da Antropologia
“The Dawn of Man”, “O alvorecer do (Eagleton, 2008). Não seria de todo errado si-
ser humano”, é a primeira parte de “2001: tuar o início da relação com a alteridade ainda
Uma odisséia no espaço”, de Stanley Kubrick nos primórdios da constituição do que viriam
(1967), baseado no romance de Arthur a ser os primeiros grupos humanos. A forma-
C. Clarke. Situada milhares de anos atrás, ção dos laços de parentesco, ou, colocando em
especificado no início deste texto, parece re- termine nesse momento, nessa primeira e re-
querer uma aproximação em termos muito dutora apreensão do outro.
mais de uma compreensão (“verstehen”) do E, em certa medida, mesmo para mim,
que de sua “explicação” (“erklären”). uma vez que a ideia de um completo auto-
Explicar o ser humano traz em si uma conhecimento parece inalcançável. Por isso
perspectiva de redução de complexidades mesmo, nessa reflexividade da compreensão,
– necessária, sem dúvida, em um primeiro está o núcleo de responsabilidade que me liga
momento, para garantir a inteligibilidade da com todos os outros: a responsabilidade pelo
relação com a alteridade; o problema, no en- outro funda-se na compreensão da alteridade
tanto, é dar o passo da explicação do outro como o duplo da igualdade.
para sua compreensão. Compreender os limites dessa relação talvez
Não se deixa de lado, na apreensão cogni- possibilite o estabelecimento de brechas mais
tiva da alteridade, que sua dimensão epistê- frequentes nos espaços de silêncio que se en-
mica é pautada em primeiro lugar por uma contram na velocidade das relações cotidianas
caracterização baseada em categorias previa- e permita estabelecer, para além das diferenças,
mente formadas e, mais ainda, responsáveis mas convivendo com elas, um dos sentidos
pelo vislumbre inicial de todo aquele que plenos da palavra comunicação – estar com os
não sou eu. A questão é evitar que o processo outros, compartilhar uma vida comum.
(artigo recebido abr.2016/aprovado jun.2016)
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