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Alexandre FICAGNA1
Resumo
Em Cinco Mo(vi)mentos, para violoncelo solo, o objetivo era compor a partir de sonoridades
específicas deste instrumento, desdobradas através de técnicas composicionais, sempre em
diálogo com a mecânica do instrumento. Isto pode ser observado tanto na criação de gestos e
texturas - por exemplo, o uso intensivo de permutações numéricas associadas tanto a notas
quanto a posições dos dedos, cordas, etc. - quanto na organização formal da peça. Não se trata
apenas de compor algo que “soe bem” no violoncelo, mas sim, uma música que só possa
existir a partir deste instrumento.
Introdução
Cinco Mo(vi)mentos é uma peça para violoncelo solo composta em 2007 2, em que o interesse
inicial consistia em compor a partir de sonoridades 3 específicas deste instrumento, sobretudo
no que concerne às novas possibilidades sonoras proporcionadas pelas chamadas “técnicas
estendidas”, buscando uma maneira de estruturar a composição a partir de tais sonoridades.
Por “técnica estendida” (ou não-usual) entende-se aqui as inovações técnicas surgidas
sobretudo com a música da segunda metade do século XX, em que buscou-se explorar novas
possibilidades sonoras nos instrumentos4. Já o conceito de “técnica tradicional” (ou
convencional, usual) é utilizado para remeter ao conjunto de elementos técnicos e expressivos
desenvolvidos por conta das exigências da música tonal do “período da prática comum”.
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IV Mostra de Violoncelos de Natal
Natal – 4 a 18 de agosto de 2014
Quanto ao processo composicional, após uma pesquisa inicial das sonoridades possíveis de
serem obtidas no instrumento (e das técnicas necessárias para realizá-las) 6, optou-se por
caracterizar cada movimento da peça com uma determinada sonoridade, limitando a
diversidade ao mesmo tempo em que se buscava uma exploração mais intensiva de suas
possibilidades sonoras.
Um recurso largamente utilizado para criar e/ou desdobrar morfologias sonoras e texturas foi
o uso de permutações numéricas7 associadas tanto a notas e durações quanto a aspectos da
mecânica do instrumento e suas particularidades gestuais (permutação de posição dos dedos,
da corda a ser tocada, etc.).
Para uma melhor compreensão de como se deu a integração entre técnica instrumental e a
estruturação da peça, cada movimento será abordado separadamente.
I – Leve e Fluido
Schönberg ou Webern, que mesmo não utilizando ostensivamente técnicas incomuns, subvertem a tradição
clássico-romântica não apenas quanto às regras da harmonia tonal, mas também quanto à concatenação de
gestos, articulações e estruturação formal (PADOVANI, FERRAZ, 2011, p. 23).
6 Agradeço ao violoncelista Victor Lessa pelo auxílio nesta etapa inicial. Este contato e a compreensão da
mecânica do instrumento foi fundamental inclusive para se especular a respeito de outras possibilidades
técnicas, como na combinação de tappings e pizzicatos de cordas soltas (que poderá ser observada quando o
segundo e o quarto movimentos forem abordados).
7 O tipo de permutação utilizado foi baseado nas permutações simétricas de Olivier Messiaen, em que se
estabelece uma sequência dos elementos, a ser lida a partir de uma determinada ordenação; a nova sequência
gerada deve ser lida a partir da mesma ordem, gerando uma nova sequência, que repete o processo. Deste
modo, ao invés de se obter todas as combinações possíveis de uma dada sequência, há uma restrição no
número de sequências geradas, que terão o máximo de dessemelhança entre si. Outra possibilidade consiste
em repetir elementos dentro da sequência. Da maneira como foi utilizado na peça, quando o ciclo da
sequência escolhida se concluía com poucas sequências de permutação, pequenas alterações eram realizadas
na ordem dos elementos de uma ou outra sequência durante a construção dos ciclos: tal expediente fazia com
o ciclo não se concluísse na permutação inicial, mas numa sequência linear, por ex., 12345 [ou, se a opção
fosse pela repetição do segundo elemento, 1234(2)5]. De todo modo, tal recurso causa a impressão de
estaticidade, mesmo com a movimentação contínua dos elementos: esta dualidade estático (momento) /
dinâmico (movimento) levou ao jogo de palavras no título da peça.
8 Em todos ciclos de permutação houve repetição do algum termo de cada sequência, criando uma espécie de
polarização temporária por repetição.
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oitavo; a m.e. deve estar na posição da corda em que cada um dos cinco dedos está na posição
da sequência dos harmônicos. Portanto, a permutação dos harmônicos é também uma
permutação da digitação.
A figura a seguir ilustra a última irrupção melódica do movimento, um perfil melódico que
inicia na corda Ré e termina na corda Dó. Para cada corda foi aplicada uma sequência de
permutações (452351, 315214, 534132). Assim, posição da mão se mantém, deslocando-se de
uma corda à outra, com a alternância da digitação resultando no perfil melódico.
Nos últimos compassos há uma transição que introduz gradualmente duas sonoridades
presentes no movimento seguinte: a primeira mais percussiva, resultante de tappings (percutir
a nota apenas com a m.e.); a segunda, sons agudos com bastante ruidosidade, produzidos pela
fricção do arco nas cordas Dó e Sol atrás da ponte.
II – Preciso e Estático
Para a construção da camada de tappings, que permanece durante todo o movimento, foram
9 A utilização da Modulação de Frequência para geração de timbres complexos foi sistematizada por John
Chowing. Na peça, foi realizado o cálculo da síntese FM (frequência da onda portadora +/- frequência da
onda moduladora x índice de modulação), aproximando os quartos-de-tom para semitons.
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O primeiro elemento sobreposto a esta camada é uma sequência de martelatos nas cordas Dó e
Sol friccionadas atrás da ponte, o que produz uma sonoridade bastante ruidosa. Ao contrário
das permutações, que provocam um efeito de estaticidade, estes ataques foram distribuídos
segundo uma série de Fibonacci11 em ordem decrescente, o que permitiu criar um efeito
direcional de adensamento, com os ataques distribuídos em intervalos cada vez menores. Esse
gesto realiza uma espécie de articulação para a segunda metade do movimento, marcado pela
utilização de um pizzicato Bartók na corda Lá.
Figura 3: Cinco Mo(vi)mentos, Preciso e estático, c. 13-18 (final da primeira metade do movimento).
Em seguida, a camada de tappings torna-se mais complexa com a inserção de pizzicatos nas
cordas soltas. Trata-se da criação de uma textura resultante da pesquisa de um gestual não
convencional, mas possível em relação à “mecânica” do instrumento: enquanto a m.e.
continua com os tappings, a m.d. faz os pizzicatos, evitando-se que toquem a mesma corda. A
sequência das cordas soltas e suas durações seguem as mesmas permutações dos tappings,
mas organizadas de modo a não coincidir os ciclos. Entretanto, como ambas estão distribuídas
segundo agrupamentos de semicolcheias, foi preciso analisar as digitações e decidir em que
momento os tappings interromperiam a vibração das cordas soltas (e vice-versa).
10 Apenas a nota Lá não é realizada com tapping, mas com pizzicato de m.e. na corda mais aguda, o que lhe
confere um timbre levemente diferente da mesma corda tocada com pizzicato de m.d.
11 Numa sequência de Fibonacci, o número seguinte é resultado da soma dos anteriores, como na sequência 0,
1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc.
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corpo do instrumento (de mão aberta, mão fechada, e trêmulos de polegar e dedos),
aumentando consideravelmente a densidade da peça: nos compassos finais há trechos com
uma sonoridade diferente para cada semicolcheia, além de momentos de sobreposição (c. 38-
39 na figura a seguir). Com isso, tem-se a sensação de aceleração do tempo, ainda que não
haja alteração no andamento.
Figura 4: Cinco Mo(vi)mentos, Preciso e estático, compassos finais. Pauta superior: percussões com a m.e.; pauta
inferior: percussões com a m.d. [percussão no corpo do instrumento com a mão aberta (x) ou fechada (x
circulado)]. Pauta central: Tappings, pizzicatos em cordas soltas com a m.d. e pizzicato de m.e. na corda Lá.
Único movimento marcadamente melódico da peça, consiste numa melodia que evolui
lentamente, criada a partir de permutações de notas do conteúdo harmônico exposto
anteriormente. Pausas foram distribuídas segundo a série de Fibonacci. A técnica de
aumentação ou diminuição por ponto foi utilizada na duração de base (colcheia), mas em
momentos determinados por processos envolvendo aleatoriedade12.
Por ser um material musical que requer uma utilização mais convencional do instrumento, o
trabalho com a sonoridade foi realizado a partir de recursos típicos do violoncelo: 1) alteração
do timbre, que deve ser tocado “con sordina” (o que individualiza este movimento em relação
aos demais) e “senza vibrato”; 2) técnicas comuns ao violoncelo (vibratos, trêmulos de arco,
glissandos, pizzicatos de m.e., etc.) foram utilizadas de maneira esparsa, também distribuídas
segundo processos envolvendo aleatoriedade.
A atomização de algumas notas através da utilização pontual de uma técnica (ou combinação
de técnicas) tem como consequências tanto a fragmentação da construção melódica - devido
a mudanças bruscas de sonoridade das notas - quanto a conexão de notas distantes do tempo
pela semelhança de sonoridade (cf.: figura 5). O fim do movimento introduz a sonoridade
12 Provavelmente foram utilizadas Cadeias de Markov, mas infelizmente os esboços da peça foram perdidos.
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IV – Presto Mecânico
O quarto movimento explora os tappings combinados com pizzicatos de cordas soltas num
andamento rápido. Apesar de constituírem uma única textura, os elementos foram compostos
separadamente em relação a: 1) permutações utilizadas para gerar a sequência das notas; 2)
harmonia (os tappings utilizam o conteúdo harmônico resultante da FM); 3) andamento (os
tappings ocorrem a cada a colcheia pontuada, os pizzicatos a cada colcheia) 14. Há também a
utilização de pizzicato Bartók em algumas notas das cordas soltas. A textura é interrompida
subitamente em três momentos, determinados por uma série decrescente de Fibonacci.
Para criar uma mudança na cor harmônica da textura, as cordas soltas foram pensadas como
parciais de uma série harmônica, um Dó oitava abaixo da corda mais grave, e as notas dos
tappings foram aproximadas para as notas mais próximas desta série (com aproximação para
semitons), o que de certa forma retoma a harmonia que caracterizam “I” (marcado pela
exploração das séries harmônicas das cordas soltas).
No decorrer do movimento são utilizadas porções cada vez mais agudas do conteúdo
harmônico da FM. Consequentemente, algumas destas notas tocadas com tappings acabam
introduzindo sons “parasitas”, pois provocam a vibração de porções semelhantes da corda ao
mesmo tempo15.
13 Trata-se de uma sonoridade distorcida, ruidosa, obtida a partir do aumento da pressão do arco sobre a corda.
A técnica também é conhecida como overpressure. Um exemplo pode ser visto em:
<http://www.moderncellotechniques.com/bow-techniques/pressure-techniques/overpressure/>. Acesso em:
19 jul. 2014.
14 Criar agrupamentos de diferentes velocidades a partir de uma “pulsação mínima” pode ser observada nos
Études, para piano, do compositor húngaro György Ligeti, com a seguinte diferença: enquanto Ligeti
normalmente aplica esta técnica para diferenciar complexas camadas polirrítmicas, o intuito aqui foi criar
uma textura estática com movimentação interna dos elementos.
15 Esta sonoridade não havia sido considerada durante o processo composicional, pois não havia sido “testada”.
Apesar disso, optou-se por mantê-la. Outra surpresa foi o caráter “oriental” a que remete o II movimento, o
que também foi considerado enriquecedor para o resultado musical.
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Figura 6: Cinco Mo(vi)mentos, Presto mecânico, c.70-73. No início do fragmento os tappings têm notas baseadas
na série harmônica de Dó0, passando ao conteúdo da FM na metade do c.71. Na pauta superior estão as notas
mais agudas, que executadas com tapping produzem sons parasitas. No final, pizz. Bartók e pausa súbita.
V - Bricolage
Em Bricolage, como num jogo de montar, blocos com sonoridades características de outros
movimentos são permutadas e recombinadas livremente, seja por justaposição, seja por
sobreposição. A figura a seguir ilustra esse processo: há a justaposição de elementos de um
compasso a outro (por ex.: pizzicato Bartók seguido de cordas tocadas atrás da ponte), assim
como a sobreposição de elementos “estranhos” entre si no contexto da peça, como os trêmulos
de percussão sobre o corpo do instrumento (que em “II” estavam sobrepostos aos tappings e
pizzicatos) sobrepostos ao pizzicato Bartók; ou as cordas tocadas atrás da ponte, antes
sobrepostas à tappings (em “I”), agora sobrepostas a percussões.
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Conclusão
Como pôde ser observado, buscou-se em Cinco Mo(vi)mentos uma imbricação entre
procedimento composicional, mecânica do instrumento e técnica instrumental, em prol tanto
da construção de sonoridades quanto da criação a partir destas sonoridades.
A própria estruturação da peça resulta destas relações: ao caracterizar cada movimento com
uma determinada sonoridade, estabeleceu-se uma “forma em arco”, em que o final do
primeiro movimento introduz o segundo, o quarto desenvolve elementos do segundo e
introduz o quinto, que retoma sonoridades dos dois primeiros; já o terceiro movimento, único
de caráter marcadamente melódico, fecha-se em si mesmo (inclusive pelo uso da surdina).
Referências Bibliográficas
PADOVANI, José H.; FERRAZ, Silvio. Proto-história, evolução e situação atual das técnicas
estendidas na criação musical e na performance. In: Música Hodie, v. 11, n. 2. Goiânia: UFG,
2011. p. 11-35.