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RESUMO
O presente artigo apresentará uma discussão referente a concepção de educação multicultural
tendo como base uma Comunidade Quilombola. Serão expostos conceitos de: educação
multicultural, identidade, entre outros. Para uma melhor compreensão, terá neste texto, uma
apresentação da Comunidade Quilombola São José da Serra, localizada no município de
Valença, no Estado do Rio de Janeiro. Destacando seus aspectos físicos e buscando salientar a
educação escolar para os integrantes dessa sociedade. A metodologia trabalhada será a de
historia oral associada a um aparato bibliográfico.
Palavras-chave: Comunidade São José da Serra, educação multicultural, identidade.
ABSTRACT
This article will present a discussion regarding the concept of multicultural education based
on a Quilombola Community. Will be exposed to concepts of multicultural education,
identity, among other. For a better understanding, this text will have a presentation of the
Community Quilombo São José da Serra, in terms of physical, emphasized school education
for members of that society. The methodology will be worked on oral history associated with
a bibliographical apparatus.
Keywords: Community of São José da Serra, multicultural education, identity.
1
Debora Simões de Souza graduanda do curso de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
bolsista do Projeto de Pesquisa História e Memória do Município de São Gonçalo, sob orientação Profº. Drº
Rui Aniceto Fernandes. Contato: debora.simoes.ss@gmail.com
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Introdução
Neste texto será desenvolvida uma análise da educação em uma comunidade rural que
tem suas origens em escravos negros vindos da “África Centro Ocidental” (SLENES, 2007, p.
114) para trabalharem nas plantações de café, no século XIX, no Vale do Paraíba.
Atualmente, essa comunidade é reconhecida como quilombola e o jongo tornou-se uma
referência para os integrantes desta sociedade, entretanto, a questão da educação das crianças
e dos jovens é uma preocupação de todos por lá.
O jongo de acordo com Nei Lopes (2003) é denominado de caxambu e definido como
“grande tambor, de procedência africana, usado na dança do mesmo nome” (LOPES, 2003, p.
75) e de raiz “banta”. Cabendo salientar que há outras definições referentes a jongo/caxambu,
tal como outros nomes que denominam esta manifestação, são eles: tambu, tambor, batuque e
os dois citados anteriormente, as características e as denominações variam de região para
região (BRASIL, 2007, p. 12). O Dossiê 5, “Jongo no Sudeste” apresenta outra definição: “O
jongo é uma forma de expressão que integra percussão de tambores, dança coletiva e
elementos mágico-poéticos. Tem suas raízes nos saberes, ritos e crenças dos povos africanos”
(BRASIL, 2007, p. 12).
Busca-se apresentar a Comunidade São José da Serra identificando características
básicas da vida dos integrantes desta. Passando pelos seguintes pontos: localização, número
aproximado de moradores, como eles se organizam economicamente, as atividades que
desenvolvem em relação ao turismo cultural, a relação escola e educação.
Para o reconhecimento da Comunidade, será utilizado, o livro: Memórias do Cativeiro2
de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos e, também, depoimentos de alguns integrantes da
Comunidade, fontes retiradas do acervo do Laboratório de História Oral e Imagem da
Universidade Federal Fluminense (Labhoi – UFF). Dois trabalhos de campo foram realizados
ao longo de minha pesquisa, uma visita em novembro de 2008 e outra ida na Festa do 13 de
Maio, em 14 de maio de 2011. Nestes trabalhos de campo, tive a oportunidade de conversar
sobre a questão da educação formal, ou escolar dos moradores da Comunidade e esse aspecto
é o ponto central deste texto.
2
Nesta obra as autoras trabalham com a memória coletiva de camponeses negros, descendentes da primeira
geração do pós-abolição da região do Sudeste do Brasil, mais especificamente, as antigas regiões cafeeiras. As
autoras relacionaram fontes orais com uma serie de documentos escritos.
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Segundo Gloria Moura (2007) em sua conceituação sobre Quilombos nos dias de hoje
são comunidades negras rurais “habitadas por descendentes de africanos escravizados, que
mantêm laços de parentesco e vivem, em sua maioria, de culturas de subsistência” (MOURA,
2007, p. 3). Para esta autora a afirmação da identidade nas comunidades negras rurais
perpassa pelo valor de suas expressões culturais. As idéias e concepções de Moura auxiliam
para o enquadramento da Comunidade São José da Serra num estudo de comunidade
quilombola rural, e o jongo como expressão cultural de extrema importância para estes.
A concepção de educação multicultural será tratada porque esta possui uma relação
direta com a idéia de identidade, esta última permeia e consolida a forma de viver da
Comunidade São José da Serra. Como uma cultura, como a da prática do jongo, tão antiga,
pode ser trabalhada por crianças e jovens? Há um processo educacional do qual a identidade é
valorizada? Por tanto o esclarecimento de conceitos chaves, como: cultura e identidade são
fundamentais.
Entendendo a sociedade brasileira como multicultural e a Comunidade São José como
inserida nessa sociedade. Pelas diferenças entre suas culturas, pela diversidade étnica, social,
religiosa e corporal de seus sujeitos, e pela necessidade de luta contra a discriminação,
desigualdade e injustiça social que acomete uma grande parcela da população negra, trazem
para o campo educacional desafios na construção de práticas que visam o reconhecimento das
inúmeras diferenças e diversidades.
A educação formal na Comunidade abarca apenas até o ensino primário, do 1° ano ao
5° ano, com uma professora que vem da cidade mais próxima. Se o aluno deseja continuar o
estudo precisa passar por uma série de dificuldades3. Tais dificuldades perpassam por
questões como: falta de transporte que levaria os alunos da comunidade para a escola mais
próxima; quando chove não dá para carro ou ônibus passar, o que impede que os alunos
cheguem à escola; faltam professores na escola primária da própria comunidade; as famílias
enfrentam dificuldades financeiras para comprar material didático, entre outros problemas. E
quando o aluno quilombola supera as barreiras apresentadas, será que a escola está preparada
para receber esse aluno quilombola? A formação docente está pronta para tratar as diferenças
entre os alunos?
3
Informações cedidas por Dona Maria em conversa no trabalho de campo em 2008, quando ela falava das
experiências dos seus sobrinhos que estavam estudando na cidade.
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Certos apontamentos, feitos neste texto, foram decorrentes de observações feitas em Campo, em duas visitas a
Comunidade São José da Serra, uma em 2008 e outra em 2011.
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onde, dentro dela, um casal, a cada vez, dançam em movimentos contrários um do outro”
(RIOS; MATTOS, 2005, p. 266).
As definições de jongo variam de grupo para grupo, havendo outras formas de dançar e
expressar os pontos de jongo. As Comunidades Jongueiras buscam proteger o jongo salientam
o significado que ele possui para as elas. Segundo o Dossiê do Jongo no Sudeste o jongo para
as comunidades é: elemento de “identidade e resistência cultural para várias comunidades e
também espaço de manutenção, circulação e renovação do seu universo simbólico” (BRASIL,
2007, p.11).
O depoimento, que será apresentado a seguir, evidência a relação dos integrantes da
Comunidade São José da Serra com o jongo, apresenta a identificação deste com a herança
cultural dos seus antepassados jongueiros. No depoimento de Antônio Nascimento Fernandes5
está presente a importância do jongo, sua fala sobre o tempo do cativeiro salienta a presença
do jongo na Comunidade. Para ele o jongo na sua Comunidade foi criado no período da
escravidão (RIOS; MATTOS, 2005, p. 288-289):
O jongo da Comunidade São José da Serra é uma das coisas que a gente tem
consciência [que] é uma das coisas boas, porque o jongo ele foi criado assim: no
tempo da escravidão, então o negro vinha lá de fora da África e quando chegava no
Brasil eles faziam tudo pra poder trocar, tirar parentesco, grau de parentesco. Cada um
levava para um lugar aí até com língua diferente ( ... ) até dialeto não falava o mesmo
(...) para poder complicar a convivência deles nas comuni. ... nas fazendas. E no
jongo, os negros se organizaram através do cântico. Então começaram a cantar, e
cantando eles se conheciam, através do canto e daquilo foi surgindo algum namoro,
nas lavouras de café. E passaram a confiar um no outro. E assim foi criado o quilombo
também. Porque o jongo, ele é·um cântico não decifrável. Porque o cara cantava,
combinava quem ia fugir, como ia fugir, quando iria fugir, com quem iria fugir. Mas
os feitores, que ficavam o dia todo nas lavouras de café, não tomavam conhecimento
daquilo. Aí foi indo, com o passar do tempo, aí foi criando os quilombos. Veio o dos
Palmares, depois vieram outros quilombos, como hoje é o de São José da Serra.
5
Antônio Nascimento Fernandes é filho de Zeferina Nascimento e Sebastião Fernandes, o Sebastião Zequinha,
ambos netos de antigos escravos da Fazenda São José. È interessante, que na genealogia da família os nomes
se repetem, desde o tempo do cativeiro.
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roupas do cotidiano, em sua maioria de calça e camisa - havendo uma preparação dos
tambores – são ao todo três.
A importância da inserção de uma educação direcionada para a prática do jongo para
uma identidade quilombola foi percebida pelos mais velhos desta comunidade. Segundo Rita
Gama Filho (2006) a inserção das crianças nas rodas de jongo no Vale do Paraíba possui um
tempo específico: o final do século XX. Esta autora identifica essa permissão como “uma
grande revolução” (FILHO, 2006, p. 13) e aponta como causa, a falta dos mais idosos que
faleciam ou não participavam por causa de debilidade da saúde. Havia a possibilidade da
prática se extinguir, pois os conhecimentos não eram ensinados para as crianças, a autora
chama de “estratégia de preservação” (FILHO, 2006, p. 13) a inclusão dessas crianças.
Sobre a inserção apresentada no parágrafo anterior, o depoimento do atual presidente da
Comunidade Antônio Nascimento Fernandes ratifica o que Rita Filho denomina de “estratégia
de preservação”:
O jongo não canta sozinho e nem dança sozinho precisa de um grupo. Então é isso
que agente ta trabalhando muito as crianças... amanhã nos vamos estar ai com
crianças de... dançando o jongo até criança ate de seis anos, cinco anos, né? tem
criancinha lá que está com dois anos e já sabe... bota lá e agente já deixa, né? É um
troço que no passado não podia mas agente deixa que eu acho que o salvador da
comunidade, mesmo, vai ser o Jongo. (LABHOI-UFF, 2003)
Hebe Mattos (2005) aponta as modificações que ocorreram nos últimos dez anos na
Comunidade. Para ela seguiram uma série de modificações nas maneiras de organização e
representação política do grupo, “num processo contínuo de ampliação de aliados,
diretamente associado a um reforço da identidade negra, configurando a nova identidade
quilombola” (RIOS; MATTOS, 2005, p. 264). Das modificações podendo destacar a
participação das crianças nas rodas de jongo que ocorreu quando Dona Zeferina (RIOS;
MATTOS, 2005, p. 264). estava na liderança religiosa da Comunidade. Zeferina Fernandes6
dirigia dois Centros de Umbanda. Era “mãe-de-santo respeita” (RIOS & MATTOS, 2005, p.
262). Segundo o depoimento de Manoel Seabra, o ponto de jongo tradicional continha “trocas
de um tipo de feitiço”, (RIOS; MATTOS, 2005, p. 266) que por vezes levavam e chegavam
6
Dona Zeferina exerceu a liderança religiosa na Comunidade por muitos anos, faleceu, porém, é muito lembrada
por todos do grupo, na sua época importantes mudanças aconteceram, como por exemplo a construção da
capela e a inserção das crianças nas rodas de Jongo.
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em brigas de fato, desta forma, as crianças não participavam. Assim que D. Zeferina adquiriu
a direção das festas, esta proibição foi suspensa.
Outra referência sobra a questão da participação das crianças no jongo é identificada no
depoimento de Manoel Seabra que aponta a antiga exclusão das crianças nas rodas de jongo e
a sucessiva mudança (LABHOI-UFF, 1998, p. 4):
O Jongo. Nos meus tempos Nossos avô os bem mais velhos né? Não deixavam agente
assistir. Eu podia passar ali perto. mas passar de passagem, era só eles que eram mais
de idade, né? Um tampava o outro na briga daqui, dali... O que dizissi né? Ai já queria
briga. Já queria briga. Já saía discutissão daqui e dali, é por isso que não queria nem
criança e nem dona assistindo o Jongo. Então a hora que pegasse pra valer mesmo,
eles que disputavam, lá né? O Jongueiro. E as comunidades. E dali, né? Foi indo... Foi
indo depois que agente formou...Aí já peguei e já entrava no Jongo. Primeira
dança.Aprendi a dançar. agente fazia ensaio em casa com a minha mãe, com meus
irmãos, com as minhas irmãs e fazia um ensaio.
Educação Quilombola
Nesta parte deste artigo será desenvolvida uma apresentação sobre o papel do docente
na perspectiva multicultural. Discutirá as diferentes ações dos professores no ambiente
escolar, este entendido como um espaço multicultural, onde se relacionam diversas pessoas
com identidades plurais. Nesse contexto, um professor que for indicado ou chamado para dar
aula em uma comunidade quilombola necessita estar preparado para lidar com diferenças e
inserir esses alunos quilombolas na história do Brasil. Salientando a identidade quilombola e
não passando por cima desta.
Para Gloria Moura (2007) é importante que os professores pensem outras vezes, a partir
da experiência dos “quilombos contemporâneos” (MOURA, 2007, p.4), a função da escola
como fonte de afirmação nacional. È a função e um desafio, na escola, desenvolver novos
espaços pedagógicos que propiciem “a valorização das identidades brasileiras” (MOURA,
2007, p. 4), por meio de um currículo que direcione o aluno a conhecer suas origens. Para
esta autora é obrigação da escola a transmissão da história das comunidades rurais
quilombolas salientando sua condição atual. Difundir os conhecimentos dessas populações
para todas as crianças e adolescentes é importante, como forma de compreensão e de
“afirmação de nossa identidade multiétnica e pluricultural, em que se deve basear a defesa
consciente dos valores da cidadania” (MOURA, 2007, p. 4).
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Observatório Jovem é um grupo de pesquisa da Faculdade de Educação do Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal Fluminense atuante desde 2001. Ver: WWW.uff.br/observatoriojovem
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principalmente quando passa para face do trabalho, e nesse campo ocorre a operação da
dualidade entre cidade e campo. Neste trabalho ela também indica o desafio de tratar com a
categoria rural indicando o claro fluxo “material e simbólico cidade-campo, o que torna
também a conceituação do que é juventude rural um pouco mais flexível” (BASTOS, 2009, p.
12). No seu texto ela pretende apresentar o tema partindo da “construção nativa da categoria
jovem ou juventude. Consideraremos, dessa forma, os jovens do quilombo quem se auto-
identifica como tal ou é identificado, como uma identidade atribuída” (BASTOS, 2009, p.
12).
Empregando as idéias de Maria José Carneiro (2005), Priscila Bastos indica que a
contradição que impulsiona a questão social no meio rural brasileiro atualmente encontra-se
na dificuldade dos pais de cultivarem seus filhos como agricultores e, concomitantemente, na
vontade dos mesmos de terem seus filhos fora campo, no intuito de buscarem aquilo que
denominam de “vida melhor”. Complementando a idéia anterior a autora aponta o trabalho de
doutorado de Elisa Guaraná de Castro onde a última apresenta a definição da posição, dos
pais e dos filhos do campo como dualidade entre ficar e sair. Tratando do caso como é a
Comunidade São José da Serra, uma comunidade negra tradicional, há outro fator que gera
tensão a “preservação das tradições comunitárias e do jongo em especial” (BASTOS, 2009, p.
12).
Retornando a vida de Rosemeri, ela terminou o Ensino Médio numa cidade próxima ao
quilombo. Como foi apontado anteriormente, há na comunidade uma escola que abarca até a
4º série do Ensino Fundamental. È uma escola pública municipal, as pessoas que desejam
continuar a estudar precisam ir até a cidade mais próxima. Em conversa uma moradora da
Comunidade disse que há uma “Kombi” da prefeitura de Santa Izabel que realiza o transporte
dos alunos para a escola. Para Bastos a existência de uma escola que proporciona o curso
médio noturno nas proximidades do quilombo associado ao transporte para a escola é
valorizado pelos integrantes da comunidade como condição essencial para a continuidade dos
estudos.
A trajetória escolar dos moradores da comunidade São José da Serra é acompanhada de
dificuldades. Rosemeri, em depoimento para a equipe do Observatório Jovem, esboça um
panorama das conquistas da comunidade no que se refere ao acesso à educação escolar e às
condições de continuação na escola (BASTOS, 2006, p. 2):
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A gente aqui na roça... os pequenininhos iam pro colégio junto com a gente
pra tomar conta deles no colégio. Então era tudo correria e era uma sala só.
Quando vinha merenda tinha que buscar na ponte. Quando vinha... Às vezes...
era muito difícil quando alguém da prefeitura trazia merenda aqui. Mandava
pra Santa Isabel (cidade mais próxima) e a tia Márcia – professora da escola
fundamental do quilombo – dava um jeito de trazer. A gente tinha que buscar
merenda lá na ponte, saí de madrugada daqui pra esperar lá o ônibus. Buscar
bambu, a gente não tinha gás (...). No dia que era pra buscar bambu juntava
todo mundo do colégio pra ir buscar bambu. Faltava água no colégio tinha
que lavar vasilha... vamo carregar água da mina. Tinha uma mina ali, né?
Carregava água da mina pra lavar vasilha lá, nossa... pra lavar banheiro, lavar
um monte de coisas... fazia a horta... era sempre a gente, não tinha ninguém
pra fazer horta. Agora não, agora as crianças têm merenda, tem gente pra
fazer a horta, tem um monte de gente pra trabalhar (...) a gente fazia, não tinha
nem tempo pra brincar, recreio... era muito difícil porque tinha que deixar as
coisas já prontas pro outro dia, né?”
Arrumar serviço aqui é muito difícil, tem que sair longe pra trabalhar. Você
tendo um estudo é bem mais fácil, continuando o estudo é bem mais fácil. (...)
Não tem como você largar tudo e sair pra morar, pra estudar. E pra gente sair,
assim, ficar uns dois dias, tem esse negócio de lugar, comida, nossa! Tem
muita coisa que impede, assim, sair. (BASTOS, 2006, p. 3)
O colégio representa para eles, entre outras coisas, um espaço de sociabilidade, um lugar
de se fazer amigos, onde são ampliadas redes de relações e imaginários sociais que lhes
possibilitam conquistar as características urbanas que, principalmente os jovens, valorizam.
Segundo Priscila Bastos as identidades se relacionam e se evidenciam de acordo com o
contexto e as interações nas quais se estabelecem. Neste caso, dos jovens integrantes da
Comunidade São José, cursar alguns anos da vida escolar numa escola na cidade representa
um desafio, não só pelas dificuldades de deslocamento, mas, sobretudo para a construção de
identidades próprias. Para esta autora o contato com os distintos – os “outros jovens” –
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Olha, eu não freqüentei mais [bailes] porque a minha família era fogo, eram
três mães pra pedir pra sair: a minha vó, minha bisavó e a minha mãe. Então,
se todas as três falassem não, você não precisava nem bater o pé e nem fazer
pirraça porque era não. (...) [com] os meninos elas eram mais liberal, agora as
meninas... Pelo fato de ser mais velha, então sempre perguntavam quem que
ia, se fosse só as jovens elas botavam na cabeça: - Você não vai. Ela não vai!
Mas se tinha uma pessoa mais velha a gente podia ir. Aí eu aprendi. Vou
contar um segredinho: como eu era “de menor” ou a minha vó ou a minha
bisavó me davam dinheiro pra eu poder sair, aí então eu pegava e pedia a
minha mãe Cida, aí eu começava a jogar com as três, aí eu pedia dinheiro das
três, e também pra pedir pra sair eu jogava. Eu falava:
- Ó, tô indo.
- Mas a sua mãe deixou?
- Deixou.
Às vezes não tinha nem deixado, mas se uma deixasse eu ia assim mesmo (...).
Tinha que arrumar um jeitinho pra poder sair porque, nossa, lá em casa sempre
foi na rédea curta mesmo, agora elas tão mais liberal, eu falo que tô indo elas
querem saber só com quem que vai e tá tudo bem. (...) Eu acho que elas
passaram a confiar mais sabe, porque eu tinha juízo, mas não muito juízo, eu
aprontava muito. (...) então depois que eu vim pra cá [Rio de Janeiro] também
você toma um pouco mais de juízo, é bom você parar pra pensar que não era
uma coisa muita certa sabe, então elas acabavam liberando, tomando
confiança, a gente amadureceu bastante.
Conceitos e conceituações
As demandas sociais que surgiram nos últimos anos estão expressas nos novos decretos,
nas novas leis que atendem reivindicações de agentes sociais que anteriormente foram
silenciados pela história, como é o caso dos negros. A lei 10.639 de 2003 aborda a inclusão no
currículo oficial da rede de ensino da obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-
brasileira” (BRASIL, 2003, p.1), bem como, da Resolução Nº 1, de junho de 2004, que
institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Nesta parte deste artigo será apresentada
uma discussão conceitual abarcando os seguintes conceitos: educação multicultural e
identidade.
Segundo Stühler e Marta Assis (2009) o conceito de educação multicultural abarca a
compreensão dos sujeitos como plurais que estão envolvidos num circuito de subjetividade
que passam pela diversidade que se relacionam com questões de: gênero, raça, religiosidade,
classe social, visão de educação e outros. O “ator pedagógico é valorizado e direcionado a
valorizar a todos que com ele trabalham estes estão envolvido em uma sociedade que
necessita respeitar as diferenças, sejam elas quaisquer que forem” (STÜHLER; ASSIS, 2009,
p.45).
A educação multicultural é um processo que vem sendo muito discutido, este texto
também tem objetivo de chamar atenção dos professores para que estes se inseriam nessa
proposta, que acima de tudo, identifica e respeita as diferenças. O ator pedagógico é
valorizado e direcionado a valorizar as diferentes histórias de vida e as diferentes identidades
que com ele conviverá.
A identidade, para Kátia Maheirie (2002) é a especificidade do sujeito, surge como
“produto das relações do corpo e da consciência com o mundo, conseqüência da relação
dialética entre objetividade e subjetividade no contexto social” (MAHEIRIE, 2002, p. 35).
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Para ela a identidade é construída por oposições e negociações sendo sempre inventada por
diversos sujeitos, num projeto em constante andamento, nunca acabado.
Para Maria Coutinho, Edite Krawulsk e Dulce Helena Penna Soares (2007) o conceito
de identidade tem sido utilizado para compreender a inserção do indivíduo na sociedade e sua
relação com o próximo. Segundo estas autoras: “Pensar esta inserção implica em reconhecer
uma concepção dialética entre indivíduo e sociedade, na qual um se identifica e se transforma
a partir do outro, o sujeito assimila a realidade e reproduz ativamente sua experiência social”
(COUTINHO; KRAWULS; SOARES, 2007, p.30). A expressão identidade social tem sido
utilizado, no campo da Psicologia Social, para fazer referência à pertença a grupos sociais e
ao “lugar ocupado por estes na constituição identitária de cada um” (COUTINHO;
KRAWULSK; SOARES, 2007, p. 30).
No livro, Patrimônio cultural: consciência e preservação Sandra Pelegrini busca
conceituar certos termos que muitas vezes são simplesmente apresentados de acordo com o
senso comum. Para esta autora identidade é um complexo processo de construção do sujeito
em relação ao próximo, de constituição de identidades conjuntas determinadas de acordo com
critérios como: “a aceitabilidade e credibilidade que se afirmam por meio de negações diretas
com os outros e seus respectivos universos culturais, tornando-os reciprocamente unificados
diante de determinados interesses” (PELEGRINI, 2008, p. 32).
A apresentação dos conceitos de identidade expressa a relação que será apresentada com
as leis e decretos do processo histórico onde o movimento negro está inserido, salientando a
luta dos grupos quilombolas, que aqui terá como representante a Comunidade Remanescente
de Quilombola São José da Serra. O momento histórico do final da década de 80 do século
XX sinalizava as mudanças institucionais que abarcavam os direitos conquistados pelos
negros. O movimento negro lutou em diferentes frentes: políticas, sociais, culturais e
educacionais, tais lutas tiveram-se representadas na Constituição de 1988, na Lei 10.639 de
2003, a Resolução Nº 1 de 2004.
O Artigo número 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de
1988 delimita que: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos” (BRASIL, 1988). O surgimento de tal artigo não elimina as lutas advindas
da falta de títulos da posse de terras por parte das comunidades quilombolas, a própria
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Comunidade São José da Serra enfrentou embates judiciais por causa da falta da posse da
antiga Fazenda São José, onde fica hoje a Comunidade São José da Serra.
A amplitude do artigo 68 causou debates que teve como ponto central um novo decreto:
o Decreto número 4.887, de novembro de 2003, criado com o objetivo de regulamentar o
artigo constitucional, estabeleceu que “a caracterização dos remanescentes das comunidades
dos quilombos será atestada mediante auto definição da própria comunidade” (BRASIL,
2003), compreendendo-as como “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL,
2003).
Para além das questões de posse de terras pelos grupos quilombolas, está em questão a
constituição da identidade quilombola reivindicada por estes, para Hebe Mattos (2006) a
relação de revisão do Artigo 68 ultrapassa os esforços teóricos, a revisão teria que ser
conduzida na prática, pois, estava no centro disputas de terras “com um consequente reforço
da identidade negra no mundo rural brasileiro. Atualmente, centenas de comunidades
reivindicam seu reconhecimento como remanescentes de quilombos em todo o território do
país” (MATTOS, 2006, p. 3).
As dificuldades e lutas enfrentadas pela comunidade negra inserem-se num processo de
longa duração, o fim do sistema escravista desencadeou problemas com pilares bem
alicerçados. Sobre a relação entre o fim da escravidão e o conceito de quilombo Beatriz
Nascimento (2008) apresenta que foi com o fim do antigo regime que a visão de quilombo
como instituição de resistência à escravidão ofereceu espaço ao papel ideológico desta
organização passando a “alimentar os anseios de liberdade da consciência nacional”
(NASCIMENTO, 2008, p.87). O quilombo, neste cenário, se coloca como referência
principal, torna-se símbolo para coordenação de movimentos sociais que apresentam a
necessidade de “auto-afirmação e recuperação da identidade cultural do negro”
(NASCIMENTO, 2008, p.88), lutam por tais causas instituições como: a Frente Negra
Brasileira e o Teatro Experimental do Negro8.
8
A Frente Negra Brasileira teve sua fundação no ano de 1931 e atuou até 1937, tornando-se partido político em
1936. Teve importante atuação política e social, tornando expressiva entidade de negros na primeira metade do
século XX. Teatro Experimental do Negro foi fundado em 1944, no Rio de Janeiro buscava a valorização
social da população negra brasileira, por meio da educação, cultura e principalmente, da arte. Sobre:
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Entrelaçando - Revista Eletrônica de Culturas e Educação
Caderno temático: Cultura e Educação do Campo
N. 3 p. 79 - 95,, Ano 2 (Nov/2011). ISSN 2179.8443
Considerações Finais
A Comunidade Quilombola São José da Serra é um exemplo, entre vários, de
comunidade rural negra no sudeste brasileiro que pratica o jongo. As heranças culturais dos
seus antepassados escravos ou ex-escravos são valorizadas e constituem elementos
importantes para a formação da identidade coletiva do grupo. Este artigo teve como objetivo
principal adentrar no universo desse grupo, conhecê-lo na sua complexidade e valorizado-los
como agentes sociais atuantes nas causas quilombolas, nas lutas por terras e pelo
reconhecimento cultural do jongo. Hoje o jongo é Registrado como Patrimônio Cultural do
Brasil (BRASIL, 2005, p.1) com o nome de Jongo do Sudeste.
O registro do jongo foi o ponto mais elevado de discussões que partiram da articulação
de jongueiros na busca do reconhecimento da história dessa rica manifestação cultural. As
comunidades jongueiras não estão fechadas elas estão no movimento de constante valorização
de suas identidades e um dos meios para obterem essa valorização é através da educação
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