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MILLER BRITTO

O INVERNO
DOS
ESCRITORES
MORTOS
Série detetive Borzagli
Volume 1

3ª edição

Nova Lima
Miller Aloisio de Britto
2018

O inverno dos escritores mortos

Prólogo
O inverno chegara marcando seu território com um vento gélido, que
vagueava pela tarde sem sol assobiando uma canção melancólica pelas ruas
vazias do bairro de classe alta.
A mulher, que mantinha a casa fechada para o frio, para os vizinhos
enxeridos, fechada até para os amigos do filho menor, tinha cometido o erro
de abrir suas portas justamente para aquela pessoa. Ingênua, bastou ouvir as
palavras Orquestra Sinfônica e a menção à filha, que se apressou em convidar
a visita para entrar. Não pediu qualquer identificação, apenas se preocupou
em fazer chá quente e saboroso, com os biscoitos maravilhosos que fazia
apenas em ocasiões especiais. A receita era um legado de família.
Acreditava que a oportunidade que a filha tanto esperava tinha
finalmente batido à porta. Como fora tola. Quando voltou à sala foi
surpreendida pelas costas, sentiu uma picada no pescoço e braços firmes a lhe
segurar, enquanto a bandeja ia ao chão com grande estardalhaço, espalhando
o líquido escuro no tapete branco e imaculado.
Agora, encontrava-se sentada no confortável sofá da sala, os braços
caídos em inércia ao lado do corpo, as pernas paralisadas como todo o resto.
A visita estava bem à sua frente, alegre, divertindo-se como criança com um
brinquedo ganho.
Quando a agulha da primeira seringa penetrou fundo em sua pele,
esbarrando no osso, ela quis gritar, mas os lábios não se moveram. A dor foi
poderosa e uma lágrima solitária pontuou a verdade de sua agonia. Então
vieram as segunda, terceira e quarta, a dor somando-se, sobrepondo-se
excruciante, a mente implorando pelo alívio da inconsciência, enquanto o
corpo apenas aceitava resignado, sem conseguir reagir.
Ela só queria entender, mas tudo acontecera rápido demais e, quando se
dera conta, estava vivenciando na própria pele uma cena que ela mesma
imaginara, que desenhara tantas vezes em sua mente, aperfeiçoando os
detalhes e aparando as arestas, até que ficasse a ponto de poder se orgulhar,
mas agora era vítima de sua própria criação.
Sentia as forças esmaecerem perante a dor e a perda de sangue.
Urrava, enjaulada dentro de si mesma. Moveu os olhos para baixo com
dificuldade, os globos beirando o extremo de seu campo de visão, até
perceber o despontar de um número sem fim de seringas. Foi a última coisa
que viu. Dois êmbolos lhe perfuraram os olhos indo de encontro ao cérebro,
depois disso... o alívio da inexistência.
Capítulo 1

Se havia uma verdade indubitável que o detetive Frederico Borzagli


admitia sobre si mesmo, era que estava cansado, terrivelmente fatigado. Do
alto de seus quarenta e dois anos, olhar para trás e lembrar-se de toda a merda
na qual seu trabalho o obrigava a chafurdar todos os dias era um estigma que
levaria para sempre.
Por muitas vezes, Fred fora espectador no teatro da vida onde o ser
humano era capaz de demonstrar o quão vil poderia ser, mas com o sequestro
de seu filho, pôde ele flertar com a verdadeira dor. A crueldade dos homens,
que até então apenas arranhava a superfície de sua psique, penetrou fundo em
sua alma.
Era para ser apenas um dia inocente no parquinho perto de casa, como
muitos outros antes daquele. Bastou um descuido da esposa, que conversava
animada com as vizinhas, e ele foi privado da presença alegre em sua vida do
garoto de três anos, a quem ele amava mais do que a si mesmo.
O pequeno Gabriel era o único raio de sol capaz de romper a
escuridão do mundo em que Fred habitava. Deixar o trabalho e mergulhar na
inocência do olhar e das palavras do filho era sua cura e sua terapia para
manter a sanidade mediante as atrocidades que combatia em seu cotidiano.
Após o sequestro naquela amarga manhã de outono, nunca mais teve
notícias do filho. Aquela fora a primeira peça do dominó a tombar, dando
início ao efeito em cadeia que levaria sua vida para uma eterna corda bamba
de emoções destrutivas e ilusões perdidas.
Do lado de fora do sedan da polícia, as luzes da noite passavam rápidas,
distantes e indiferentes, como tudo mais em sua vida. Do banco ao lado, a
detetive Elisabete Dias dividia sua atenção entre as ruas pouco movimentadas
e a expressão de constante desalento do parceiro.
-O que você está olhando? – perguntou ele sem se virar.
-Não é nada.
-Com você nunca é nada, Elis.
-Já ficou rabugento o suficiente para que eu não possa nem mais olhar
para você?
-Não sei, talvez sim.
O espelho do lado do passageiro refletia as feições cansadas de Fred,
bem como seus cabelos grisalhos, que tinham aumentado exponencialmente
nos últimos dois anos, desde a perda do filho, assim como as rugas e marcas
de expressão, como se estes fossem um reflexo honesto de como o detetive se
sentia após o vazio que se instalara em sua vida.
-Como vai a Sandra? – perguntou Elis.
Ele demorou a responder, apenas para fazer-se soar nada convincente.
-Ela está bem.
-Fred, você precisa pensar em umas férias. Pegar sua esposa e sei lá...
fazer um cruzeiro. Quem sabe aquele do Roberto Carlos?
-Roberto Carlos?Você quer me ver bem, ou morto de tédio?
-Você entendeu o que eu quis dizer. Acho que é hora de você dedicar
um tempo a sua família. Você já perdeu demais meu amigo. Não se permita...
-Já chega – disse, elevando a voz para colocar um ponto final naquela
conversa e abrindo as portas para o silêncio, companheiro que ele aprendera a
valorizar.
O que Fred guardou para si foi que sua família estava acabada. Chegar
em casa e ser recebido pela esposa era por demais doloroso. Ele não a
culpava. O que aconteceu, aconteceu e ponto final, mas não conseguia deixar
de pensar em como tudo teria sido diferente se eles tivessem ficado em casa
naquele dia. Se Sandra tivesse convencido o garoto a se contentar com o
quintal.
Fred sabia o quanto aquele pensamento era injusto, jamais culparia a
esposa pela maldade que se arrastava pelo mundo, alimentando-se da
inocência das pessoas de bem, além do mais, chegar em casa e encontrá-la
sempre tão fragilizada era uma faca que cortava fundo em seu peito, e o fato
de não conseguir forças para consolá-la e levá-la de volta para a luz era ainda
pior. Sentia que um não tinha nada mais a oferecer ao outro, e somava-se a
isso sua incapacidade de conseguir qualquer pista sobre o paradeiro do filho,
se é que ele ainda estava vivo em algum lugar.
A incerteza era uma lâmina desgraçada, uma filha da puta que
penetrava somente até certo ponto, uma linha crítica, permitindo que
houvesse esperança na vida. Embalando noites insones e dias mais longos do
que o normal, que encontravam fim prematuro apenas no fundo de copos e
garrafas de um destilado qualquer.
Elizabete deixou que o silêncio se instalasse entre eles como um
terceiro passageiro, e conduziu o sedan até o endereço que lhes esperava.
Mais trabalho, e este, com certeza, do tipo indigesto.
Um cerco já tinha sido montado pela polícia. As fitas de isolamento
distribuídas ao redor da casa. Se havia alguma vantagem em trabalhar em um
condomínio fechado, ou em um bairro de ricos como aquele, era que não
havia aglomerações de curiosos debruçados sobre as fitas amarelas, sedentos
pela carnificina, como abutres sobre os restos de uma batalha medieval.
Os detetives foram recebidos pelo policial que chegara primeiro na
cena do crime.
-O que temos aqui... – perguntou Elis, procurando o nome na farda –
Bruno?
O rapaz, que não devia passar dos vinte e cinco, mesmo parecendo
aturdido e assustadiço, não conseguiu disfarçar o olhar que relanceou para a
detetive. Mesmo com os cabelos presos e o terno formal de cores mortas, Elis
conservava sua beleza. Aos trinta e cinco anos era uma mulher atraente. Os
olhos castanhos eram tão claros que pareciam verdes. A face de bochechas
rosadas e lábios carnudos, somada às curvas generosas, eram um convite
automático a atrair olhares por onde ela passava. Olhares que a irritavam,
pois por trás deles ela imaginava haver o pensamento constante de que sua
beleza era maior do que suas habilidades profissionais, e que talvez ela
tivesse usado destes dotes para chegar aonde chegara.
Bruno permitiu a passagem dos detetives entre os carros de polícia e
os guiou até a varanda da casa, uma bela construção de dois andares em
tijolos à vista, com detalhes em madeira que garantiriam um ar acolhedor ao
imóvel, não fosse pelo circo armado à sua volta: as luzes das sirenes e os
policiais conversando em bandos.
-Eu sei que vocês já viram muita coisa estranha, mas isso aí... – o
policial Bruno tinha dificuldade em orquestrar as palavras, claramente
afetado.
-Você foi o primeiro a chegar à cena do crime? Quem efetuou o
chamado? – perguntou a detetive.
-Fui o primeiro a chegar, recebi a chamada pelo rádio. Quem encontrou
o corpo foi a senhora que mora ao lado. Ela tinha feito um bolo confeitado e
queria oferecer para as crianças da vizinha.
-A porta estava destrancada?
-Bom, a vizinha, a senhora... – ele revisou suas anotações – Clementina
rodeou a casa e viu por uma fresta da cortina as xícaras caídas no chão da
sala. Ela achou aquilo estranho, então voltou até sua casa e pegou a chave
que tinha consigo, de quando tinha ficado por alguns dias tomando conta dos
filhos do casal. Foi quando ela encontrou o corpo.
-Tudo bem, avise à senhora Clementina que iremos ligar amanhã e
marcar um horário para tomarmos seu depoimento de maneira formal – disse
Elisabete.
-Vocês precisarão de mim lá dentro? – perguntou o policial.
-Sim, você vem conosco – respondeu Elis.
-Por que não dá um descanso para o garoto? – contemporizou Fred,
interferindo pela primeira vez.
Após revirar os olhos nas órbitas, a detetive concordou.
-Que seja.
-Obrigado – o rapaz estava verdadeiramente agradecido.
-O que foi aquilo? – perguntou Elis enquanto seguia para a porta.
-Você não percebeu o quanto ele estava abalado?
-Ele é da polícia, precisa se acostumar.
-Você consegue se acostumar? Já se tornou assim tão dura, Elis? –
perguntou Fred segurando a parceira pelo braço.
-Vamos fazer nosso trabalho – ela afastou o assunto e libertou o braço
da mão de Fred.
O interior da casa era luxuoso e aconchegante. As imagens
imortalizadas nas fotos do corredor que os conduzia até a sala sugeriam que
aquela era a morada de uma família feliz.
Fred viu algo familiar nas fotos, um rosto que ele conhecia, mas não
conseguia dizer de onde.
O que os detetives encontraram na sala justificou imediatamente a
expressão vitrificada do policial Bruno. O ar estava viciado, fazia algum
tempo que as janelas não eram abertas. O cheiro da morte pairava ao redor,
denso e azedo.
Em um dos sofás, já atraindo moscas, a vítima, uma mulher que
aparentava pouco mais de trinta anos, estava sentada de frente para a TV, a
cabeça tombada de lado, inerte. A boca entreaberta com o despontar de uma
língua roxa. Espetadas em sua pele havia quase uma centena de grossas
agulhas e seringas. O sangue derramado conspurcava a brancura do sofá e
parecia deslocado em meio à sala onde quase todos os móveis eram alvos e
imaculados. Um santuário violado.
Os detetives rodearam o cadáver. Nunca tinham visto nada igual,
tampouco estavam ansiosos por adicionar aquela figurinha macabra ao álbum
funesto que eram suas vidas naquele emprego, mas, como sempre, não
costumavam ter opção.
Em meio a uma estranha sensação de déjà-vu, Fred traçou suas
primeiras impressões. O desgraçado que fizera aquilo teve muito tempo para
trabalhar. Ele com certeza sabia que a vítima estaria sozinha, o que resultava
de uma vigília constante à casa ou talvez de uma proximidade com a família.
O que incomodava Fred era o modo sórdido escolhido para perpetrar a morte.
Todas aquelas seringas, a cabeça tombada com os dois êmbolos trespassando
os olhos e indo penetrar fundo no crânio era assustador, e, mais uma vez, a
sensação de que já tinha visto aquilo antes.
Quando conseguiu despregar os olhos do corpo, Fred se voltou para o
ambiente ao redor e encontrou na parede as linhas de um texto escrito em
vermelho.
-Veja isso – disse ele apontando o indicador.
-Que merda é essa? – Elis se aproximou das palavras que adornavam a
parede.
O detetive tocou com a ponta do dedo a perna de uma letra “a”, grafada
em letra de máquina.
-Acho que isso é sangue – concluiu sem ter certeza.
-Que tipo de psicopata faria uma coisa dessas?
Fred se pôs a ler em voz alta.

“Ele espetou as seringas uma a uma, de maneira calma e metódica.


Imobilizada pela droga, a mulher só pôde chorar, seu corpo tendo espasmos,
mas aceitando a ponta fria do metal agudo.”

-Meu Deus... – balbuciou o detetive. Seu déjà-vu subitamente


explicado.
-O que foi? Está vendo algo que eu não estou?
Fred estava aturdido demais para dar ouvidos à parceira. Ele sabia
quem era a vítima. Olhou ao redor e viu uma estante de livros, caminhou até
ela e passou o indicador avidamente pelas lombadas, até parar em um volume
específico chamado “O Enfermeiro”, que ele abriu na última página e
mostrou para Elis.
Ela se aproximou fitando a foto da autora do livro. Não havia dúvidas,
mesmo com todas as seringas espetadas no rosto, aquela mulher sem vida no
sofá era Natália Brummer.
Fred passou novamente as páginas, folheando-as com tanta força que
amassou a maioria delas.
-Está aqui, bem aqui – bateu a palma da mão no livro aberto e o
entregou à Elis, que leu em voz alta.
“Ele espetou as seringas uma a uma de maneira calma e metódica.
Imobilizada...”
-Mas que merda – exclamou a detetive – esse desgraçado reproduziu a
cena tal qual está escrita no livro e a vítima é a própria autora?
-Parece que sim – confirmou Fred com uma expressão sombria.

Capítulo 2

Luís estava debruçado sobre o teclado de seu computador, ter tantos


livros à sua volta não ajudava a fazer com que seu texto fluísse com mais
facilidade.
“... a corda foi puxada com força, erguendo do chão o homem que
esperneava. O pescoço não se quebrou por um mero acaso, a vida lhe
abandonava em golfadas de ar cada vez menores...”
Depois de ler tantos romances policiais, ele estava convencido de que
poderia criar algo que fosse aceitável pelo menos para dividir com os amigos,
mas acreditava que ainda não tinha chegado a esse ponto, e seu hobby era
mantido em segredo.
Luís tomava conta da livraria dos pais, que, cansados da vida corrida e
barulhenta na grande metrópole, voltaram para os dias tranquilos de cidade
de interior, onde as preocupações eram menores e o estresse era apenas uma
lembrança de tempos passados.
Uma livraria de bairro não era exatamente o grande negócio do século
XXI, então, a fim de manter viável a obra dos pais, Luís modernizou o lugar
e o transformou em um cybercafé e agora havia até mesmo a necessidade de
um funcionário, uma garota de dezesseis anos chamada Bianca, filha de um
dos vizinhos, que trabalhava meio expediente e era muito atenciosa.
-Luís – ele ouviu a garota gritar do piso de baixo – já estou indo.
-Boa noite, Bianca.
-Boa noite, chefe – respondeu a jovem. O sinete que ficava sobre a
porta ressoou pontuando sua partida.
Depois de desligar o pensamento da garota, que tinha como principal
passatempo flertar descaradamente com ele, Luis voltou a encarar a tela do
PC tentando espremer as últimas gotas de criatividade, mas acabou dando-se
por vencido e desceu para arrumar as coisas para os convidados que não
tardavam a chegar.
Tratava-se de um grupo de amigos de longa data, que dividiram entre
eles as brincadeiras da infância e as descobertas da adolescência, bem como o
prazer pela literatura, que faziam questão de debater naqueles encontros
sagrados das terças-feiras.
A primeira pessoa a chegar foi Bárbara. Vestida com um elegante
terninho preto, que lhe emprestava ares de executiva, Barbara encheu o lugar
com sua presença marcante e seus traços altivos de uma beleza clássica. Ela
chefiava o departamento pessoal de uma grande empresa de marketing.
Luís distribuía copos sobre uma das mesas de canto quando a moça foi
até ele com os cabelos negros e cacheados esvoaçando. O abraço foi longo e
caloroso.
-Tenho que aproveitar que você chegou primeiro e abraçá-la com gosto,
antes que seu namorado chegue para colocar água no meu chopp.
-Deixe de ser bobo. Por falar nisso, ele já me contou do tombo que você
levou no futebol, eu ri tanto que cheguei a engasgar. Quase morri por sua
causa.
-Bem que eu precisava de uma mulher que estivesse disposta a morrer
por mim – ele riu do próprio comentário – sente-se, você quer um chá?
-O de sempre – respondeu ela colocando a bolsa no encosto da cadeira
e indo passear pela livraria em busca de novidades – o que você tem para
mim?
-Chegou um romance novo da Sylvia Day, parece ser quente.
-Você sabe que eu não gosto dessas pornografias emergentes.
-Sim, claro – a voz de Luís era carregada de escárnio – você não leu
Cinquenta Tons de Cinza e todas as suas continuações, também não leu Peça-
me o Que Quiser e... vejam só, todas as suas continuações, ou O Amor Não
Tem Leis e aquele outro que sempre esqueço o nome. Afinal, não fui eu
quem vendeu todos eles para você, não é?
-Meu Deus, eu preciso urgentemente de outra livraria, uma onde o
livreiro não seja um juiz tão chato e rabugento.
Naquele momento a porta se abriu e mais duas pessoas passaram por
ela, uma ruiva de rosto redondo e corado, quase exótica com seus piercings e
tatuagens, e um daqueles homens comumente encontrados nos comerciais de
margarina, onde famílias brancas felizes ditavam os padrões aristocráticos
tradicionais, o médico cirurgião Pedro e a enfermeira Fernanda, que
trabalhavam no mesmo hospital.
Pedro abraçou e beijou Bárbara, a namorada cujo romance já
ultrapassava uma década, e Fernanda se lançou sobre Luís, que precisou
equilibrar a xícara para não derrubar o chá.
Os pares se alternaram e enquanto Bárbara e Fernanda trocavam
elogios após um abraço apertado, Pedro já rememorava a queda do amigo no
futebol, entre risos e anedotas.
Eles se sentaram e começaram a conversar animadamente, em poucos
minutos a porta foi aberta novamente, o sinete que adornava o batente soando
mais uma vez.
-Não precisam se levantar – disse o recém-chegado, um negro de
feições alegres, que contornou a mesa cumprimentando um por um, apertos
de mão para os homens, beijos para as mulheres.
-Bernardo, antes de sentar, vire a placa – pediu Luís.
O rapaz voltou até a porta, colocou o “FECHADO” voltado para a rua e
juntou-se aos amigos.
-E então, já começaram a discutir literatura ou ainda estão falando
sobre suas vidinhas medíocres de branco?
-Ainda estávamos falando de nossas vidinhas medíocres de branco –
respondeu Bárbara, todos já acostumados com o jeito extrovertido de
Bernardo – eu estava dizendo que precisei demitir duas pessoas hoje, um
deles era um idiota preguiçoso, mas a moça, puxa, ela era uma boa pessoa e
não era má funcionária.
-Então por que a demitiu?
-Cortes de funcionários, decisões que vêm de cima.
-Claro, sempre existe alguém acima. Acredito que nossa amiga, a crise
econômica, teve alguma coisa a ver com isso.
-E o que acontece hoje no Brasil que não se justifique com essa maldita
crise? – desabafou Bárbara.
-Deve ter sido muito difícil – falou Fernanda, envolvendo a mão da
amiga nas suas – nós sabemos o quanto você odeia essa parte do trabalho.
-Que bom que tenho vocês para não precisar reprimir essa coisa.
-Bárbara, você trouxe o notebook para eu consertar? – perguntou
Bernardo.
-Sim, eu trouxe. Espero que seja rápido e grátis.
-Não sei qual palavra é mais abusiva, rápido ou grátis. Além do mais,
você já deve ter ouvido a respeito de uma mulher chamada Isabel, princesa
Isabel – respondeu ele.
-De que adianta ter um amigo mestre na informática se ele vai me
cobrar por sua ajuda?
-Seu namorado médico pode até não cobrar as consultas, mas seu
amigo livreiro ali – apontou para Luís – cobra por todos os livros que você
tira dessa livraria decadente, então não me venha pedir serviços na faixa.
-Quem disse que eu não cobro as consultas? – interferiu Pedro – Sou
apenas criativo o suficiente para pedir o pagamento em outro tipo de moeda –
ele sorriu maliciosamente, mas só até receber um soco no ombro com a mão
pesada da namorada.
-E quem disse que minha livraria é decadente? – Foi a vez de Luís
protestar.
-Cara, mais da metade de sua renda vem de nós quatro. Acho que isso
diz tudo.
Todos riram muito, até ficarem com lágrimas nos olhos.
-E então? Todos terminaram o livro? – perguntou Luís.
-Lu, é claro que não, nós temos vidas corridas, não ficamos o dia inteiro
à toa em uma livraria decadente com as pernas pro ar – falou Fernanda
abusando da piada ainda viva.
-Ra, ra, ra. Muito engraçadinha, dona Nanda – rebateu Luís.
-Na verdade, eu terminei – falou Pedro.
-Eu também – afirmaram todos os outros.
-Ah, pessoal, qual é? – Nanda abriu os braços – Fui a única que não
terminou? Isso quer dizer que vou ser chicoteada por spoilers de todos os
lados, que merda.
-E este dono de livraria decadente vai ter muito prazer em ser seu
carrasco – afirmou Luís, vingativo.
O livro da semana era “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess,
sugerido por Pedro, que era o dono da vez no rodízio das escolhas que
sempre garantiam uma grande variedade de temas. Antes dele, Luís tinha
sugerido o romance histórico “Os Pilares da Terra”, de Ken Follett, e
Bárbara, a obra autobiográfica intitulada “Livre”, de Cheryl Strayed.
-Em primeiro lugar, preciso dizer que aquele dialeto maldito das
gangues é um saco – falou Fernanda.
-Eu concordo plenamente – afirmou Bárbara – terminei o livro sem
conseguir me acostumar.
-Aquilo são marcas da genialidade do autor – defendeu Pedro, que fora
quem sugeriu o livro.
-Acho que a grande questão na obra é a lavagem cerebral a qual nosso
querido Alex é submetido – foi Luís quem levantou a questão, que era por
certo o cerne do livro.
-O cara era um maníaco desgraçado, aquilo foi pouco – disse Bernardo
– talvez seja uma solução para os nossos políticos. Seria bom vê-los
vomitando sangue todas as vezes em que pensassem em desviar dinheiro
público.
-Concordo que os psicopatas do nosso tempo são tratados bem demais
pelo sistema – afirmou Fernanda.
-Vocês estão de brincadeira, não é? – disse Bárbara – O personagem foi
submetido a uma terrível violência, nada justificaria o uso de uma prática tão
abominável.
-Por falar em violência, vocês souberam o que houve com a escritora
do livro “O Enfermeiro”? – perguntou Bernardo.
-Natália Brummer – completou Luís – eu soube que ela foi assassinada.
-Isso, mas embora os detalhes ainda não tenham vindo a público, os
comentários que eu vi em um fórum na internet dizem que ela foi assassinada
exatamente da mesma forma que um dos personagens de seu livro.
-Que coisa terrível! Eu já li “O Enfermeiro”, é um romance policial
pesado, narrado em detalhes assustadores – afirmou Bárbara.
-Alguém mais já leu “O Enfermeiro”? – perguntou Bernardo, mas
nenhum dos amigos se pronunciou – pois bem, há uma cena em que o
assassino espeta a vítima com uma centena de seringas.
-Você não está dizendo que... – Bárbara ficou sem palavras, o ambiente
alegre e descontraído da mesa de amigos transformou-se rapidamente em
uma atmosfera fria e sombria.
-Estou. É exatamente o que você está pensando. Dizem que ela morreu
espetada por quase cem agulhas, tal qual seu personagem. E a coisa não para
por aí, uma parte do texto do livro foi escrita na parede com o sangue da
autora.
-Meu Deus – exclamou Fernanda – isso deve mesmo ser o fim do
mundo.
-Não posso acreditar – disse Bárbara, chocada.
Os rapazes também se entreolhavam, cada um medindo em sua própria
escala quão terrível seria a mente do psicopata capaz de tal ato.
Capítulo 3
A casa limpa com esmero, a mesa posta com perfeição, a comida
insuportavelmente deliciosa, temperada com o sabor amargo do silêncio, e,
acima de tudo..., a cadeira vazia junto à mesa.
Fred já não suportava aquele ritual.
Desde o bater dos talheres na louça ao tique-taque alucinante do relógio
de parede, que, no vão deixado pela ausência de palavras, soava quase
ensurdecedor. Fred sentia-se sufocar. Sentia-se completamente inútil, incapaz
de fazer Sandra feliz e incapaz de trazer o filho de volta.
Perguntar à esposa sobre seu dia?
Não, isso a faria se lembrar de que agora sua vida se resumia apenas a
limpar a casa repetidamente, até que houvesse apenas poeira imaginária.
Verificar religiosamente se os brinquedos do filho estavam todos enfileirados
como ele gostava, esperando sua volta para levá-los para brincar no quintal e,
por fim, a jornada rumo à cozinha, para preparar os pratos com sabor dos dias
felizes que já não lhes pertenciam.
Ele sabia que uma espécie similar de receio mantinha Sandra distante e
calada.
Perguntar sobre o dia de alguém que tudo o que mais deseja é ser capaz
de separar vida profissional e pessoal era um erro que ela aprendera a não
cometer logo nos primeiros anos de casamento, quando o marido passava
pela porta da frente transtornado, jogando-se em seus braços e implorando
pelo conforto de um abraço silencioso, sem questionamentos. Minutos depois
ele estava bem, renovado, e pronto para voltar a ser o homem apaixonado e
apaixonante que a conquistara e a enredara em seu carinho, mas do qual
sobrara apenas uma figura tristonha e assombrada, torturada pela ausência do
pequeno Gabriel.
-A comida está ótima – disse Fred, forçando-se a romper o silêncio.
-Obrigada – a resposta monocórdia foi acompanhada de um sorriso
tênue, de lábios marcados pela dor.
-Sandra, eu estive pensando se... talvez... quando este caso em que
estou trabalho estiver resolvido, se não seria bom eu separar alguns dias de
folga para fazermos uma viagem, só nós dois...
Assim que deixou escapar aquelas últimas palavras, ele soube que tinha
cometido um erro. “Só nós dois, seu estúpido, claro que seríamos apenas nós
dois. Nosso filho não está aqui. O Gabriel não está aqui.” Ele quis chorar,
mas se conteve. A expressão de Sandra refletia a sua. A amargura represada
por frágeis diques prestes a se romper.
-Seria ótimo – ela quase não conseguiu pronunciar as palavras.
À noite, deitados lado a lado, não importava o quanto Fred esticasse seu
braço, parecia incapaz de alcançar a esposa, como se um enorme deserto os
separasse. Ela sempre de costas, costume adquirido para esconder as lágrimas
das noites em claro. Ele sempre a fitar a silhueta feminina na penumbra do
quarto, lembrando-se de como o sexo era bom e de como se completavam
com perfeição, mas agora, tudo aquilo não passava de lembranças, memórias
de um passado cuja felicidade se desvanecia e embolorava lentamente para
deitar-se no esquecimento.

***

Fred estava distraído quando a detetive Elisabete entrou em sua sala,


acompanhada pelo enviado da perícia.
A bagunça do cômodo era notável, papéis espalhados sobre a mesa,
uma lixeira cheia até entornar, gavetas entreabertas com formulários que
pareciam querer se arriscar em uma fuga ousada. O lugar era um reflexo do
que a vida do detetive se tornara.
-Bom dia, Fred – saudou Rogério, homem baixo e gordo. O pescoço
desaparecido em algum lugar entre o queixo e a gola da camisa. O cabelo
penteado para o lado de forma a esconder os claros sinais da calvície.
-Bom dia. Sentem-se. O que você tem para nós, Rogério?
Elis e o oficial da perícia tomaram seus lugares frente à mesa de Fred.
-Pois bem, tomarei os métodos do Jack Estripador, seguirei por partes.
-Meu Deus! Rogério, você não se cansa dessa piada horrível? –
perguntou Elis.
-Não – ele abriu um dos envelopes que carregava – A vítima, como
vocês já sabem, é a famosa escritora Natália Brummer, a propósito, vocês já
leram algum dos livros dela?
-Vá direto ao ponto! – bradou Elis.
-Pois bem, a casa está completamente limpa, não encontramos
nenhuma digital que não pertencesse a membros da família ou à vizinha que
encontrou o cadáver. Estamos falando de alguém meticuloso, que claramente
sabia como proceder. Aqui estão as fotos.
Ele colocou sobre a mesa as imagens que imortalizavam a psicopatia do
assassino. A mesma cena retratada em todos os ângulos possíveis. Cada um
mais grotesco que o outro. As dezenas de seringas transformando a vítima no
arremedo macabro de um ouriço do mar.
-O laudo, infelizmente, no que diz respeito a vestígios coletados, é
completamente inconclusivo, não temos nada. – Continuou Rogério – vamos
para as análises químicas – abriu um novo envelope.
-Por favor, sabemos que você vai ler um bocado de termos técnicos que
não fazemos ideia do que querem dizer, então seja claro, objetivo e resuma
para nós – pediu Fred.
-E quando foi que não fui claro?
-Hum, que tal algo como... sempre – zombou Elis.
-Tudo bem, tudo bem. Como vocês dois são mal-humorados. Vocês se
merecem mesmo, formariam um casal perfeito.
-Continue Rogério – pediu Fred, antes que algo em sua expressão
delatasse que ele também já tinha pensado naquilo, muitas e muitas vezes,
desde que seu casamento se transformara em uma casca vazia.
-Pois bem, serei sucinto. Nada do que coletamos no corpo da vítima
indica violência, não havia marcas que não fossem as das agulhas. As unhas
estavam limpas e não foi encontrado um fio de cabelo sequer. A análise
toxicológica do sangue já foi mais elucidativa. Encontramos grande
quantidade de uma substância chamada brometo de pancurônio, estão
familiarizados com esta droga?
-Não – os detetives responderam juntos.
-Colocando em termos leigos, posso dizer que o pancurônio é capaz de
causar paralisia muscular. É geralmente utilizado em hospitais para
imobilizar pacientes quando há necessidade de intubação. O detalhe é que a
sensibilidade não é afetada. Ele não possui função analgésica.
-Está dizendo que aquela mulher pode ter sentido a dor de cada uma
daquelas agulhas? – Perguntou Fred.
-Se ela não tiver desmaiado, ou morrido sufocada pelo efeito que o
pancurônio pode causar nos pulmões, tendo em vista que as agulhas que
perfuraram os olhos e chegaram até o cérebro foram as últimas a serem
injetadas, sim. Ela estava viva, consciente e sentindo uma dor absurda
durante todo o processo.
-Meu Deus! – Exclamou o detetive. Elis estava igualmente abalada. - O
que mais tem para nós? E quanto ao telefone, redes sociais, e-mails...
-O marido da vítima nos forneceu acesso e encontramos emails de um
fã bastante exaltado.
Um novo envelope foi aberto. A transcrição das mensagens colocada
sobre a mesa.
E-mail 01, enviado por baltazar-silva27@gmail.com – Olá, meu nome
é Baltazar, sou um grande fã e estou lendo “O Enfermeiro”. Estou adorando o
livro, parabéns. Um grande abraço.
E-mail 02. Passei a semana inteira ansioso por uma resposta sua. Mal
comi e trabalhei, abrindo minha caixa de e-mail de cinco em cinco minutos,
mas tudo bem, pois creio que você seja uma pessoa muito ocupada. Sigo
lendo. Um abraço de seu admirador.

E-mail 03. Creio que você se acha boa demais para responder aos seus
fãs. Você deve ser uma puta qualquer que dormiu com o editor para
conseguir publicar esta porcaria.

E-mail 04. Que merda de livro, você matou a personagem pela qual eu
estava apaixonado. Como pôde? Sua vadia! Como pôde? Sua puta imunda.

Os detetives correram os olhos pelos e-mails.


-Este é o momento no qual você diz que já descobriu quem é esse cara
– falou Fred.
-Infelizmente não, pois na criação de um e-mail não é necessária a
comprovação de dados, tampouco é necessário o cadastro de qualquer
documento. Então, nós já verificamos o nome e o endereço fornecidos ao
servidor e não temos nada. Tudo é falso, mas ainda assim consegui algo para
vocês. Meu pessoal da informática, que é extremamente competente, diga-se
de passagem, conseguiu o endereço de IP das máquinas usadas para o envio
das mensagens e todas vieram de um único lugar, uma lanhouse no centro da
cidade.
-Se o lugar tiver câmeras, podemos cruzar os horários de envio dos e-
mails e ter o caso resolvido ainda hoje – Elis não disfarçava a empolgação.
-O que estamos esperando? – rebateu Fred.
***
O endereço ficava em uma rua movimentada, onde cafés e restaurantes
disputavam a clientela. A grande maioria era de funcionários do bairro
comercial, que cumpriam seus horários de almoço. Crachás balançando nos
pescoços e o falatório cheio de termos empresariais eram o tom daquele
mosaico humano de espécimes famintos.
Os detetives entraram na lanhouse. Um local de tamanho discreto, com
doze máquinas, naquele momento quase todas estavam ocupadas.
Antes mesmo de se dirigirem ao rapaz que ficava no balcão, os
detetives já procuravam por câmeras nos cantos do teto e das paredes.
-Boa tarde, somos os detetives Frederico e Elisabete – anunciou o
policial mostrando seu distintivo.
-Boa tarde, meu nome é Ralf – respondeu o rapaz com cabelo estilo
moicano e alargadores nas orelhas – em que posso ajudá-los, detetives?
-Já ouviu falar de Natália Brummer?
-A escritora? Sim, claro. Que coisa terrível houve com ela. Está em
todos os jornais.
-Ela recebeu vários e-mails de um fã exaltado. E sabemos que as
máquinas utilizadas pertencem ao seu estabelecimento.
O rapaz ergueu as sobrancelhas, parecia assustado.
-Bom, eu nem sei o que dizer. São tantas as pessoas que usam essas
máquinas que eu não poderia saber...
-Você tem câmeras por aqui?- interferiu Elis indo direto ao assunto.
-Não. Este é um bairro tranquilo. Nós nunca fomos assaltados, então
nunca vimos necessidade de vigilância.
-Entendo. Dê uma olhada nessas datas e horários, por favor – ela
colocou uma folha sobre a mesa – são os registros dos e-mails que a vítima
recebeu. Essa pessoa esteve aqui por quatro dias, não acredito que você não
tenha reparado em um cliente tão frequente.
-Escute – o rapaz ergueu as mãos espalmadas – olhe só para esse lugar,
eu tenho doze baias, elas vivem ocupadas durante todo o dia, são muitas as
pessoas que vêm passar seus horários de almoço aqui fazendo sabe-se lá o
quê nesses computadores. À noite o movimento é quase o mesmo. Graças aos
muitos bares e clubes noturnos, essa rua fica lotada.
Os detetives bufaram insatisfeitos.
-Me desculpe, eu queria muito ajudar, mas não há ninguém que eu
possa apontar, eu realmente...
-Olhe novamente para esses horários! – insistiu Elis.
O rapaz passou novamente os olhos pelos números e datas. Forçou a
mente o máximo que pôde, mas nenhum rosto ganhou forma.
-Eu sinto muito.

***

De volta ao carro, Elis bateu a porta com força.


-Um maldito beco sem saída. Grande perda de tempo – desabafou ela.
-Ainda temos coisas a investigar. Segundo o Rogério, brometo de
pancurônio não é o tipo de droga que se consiga em qualquer farmácia.
-Você sabe tão bem quanto eu como é fácil para qualquer um comprar
qualquer coisa na internet – rebateu Elis.
-É, mas ainda assim existe a questão do conhecimento específico.
-Que pode ser obtido com o novo deus deste mundo, o onisciente e
onipresente, Google.
Fred decidiu que era melhor se calar mantendo suas conjecturas para si,
a parceira não lidava bem com derrotas e precisaria de um tempo para digerir
aquela.
Ela deu a partida e guiou o carro pelas ruas sufocantes do centro.
Rodaram em silêncio por alguns quarteirões até que Fred pediu que Elis
estacionasse.
Sem dizer palavra alguma ele desceu do carro e atravessou a avenida
movimentada.
-Fred, aonde você vai?
O detetive caminhou até o parquinho que havia ali. O ruído vivaz das
crianças que brincavam correndo de um lado para o outro, exalando
felicidade, o havia atraído como um poderoso ímã.
Sentou-se num banco de madeira e deixou o corpo descansar. A mão
encontrou o cantil de metal no bolso interior do terno amarrotado. O longo
gole de uísque desceu queimando.
Ele observava as mães conversando despreocupadas, entrementes
calculava os riscos que elas estavam correndo ao tirar os olhos dos filhos por
um segundo que fosse.
Uma bola jogada na rua em meio ao fluxo constante de carros. Um
tombo do brinquedo de escalar. A presença de um degenerado, espreitando,
aguardando pela oportunidade de agarrar uma daquelas pobres e inocentes
almas para jogá-las na escuridão da porta de trás de uma vã, para serem
vendidas a casais estrangeiros, ou pior, terem seus órgãos negociados no
mercado negro.
Fred sabia que se fosse começar com o jogo do “ruim ou pior” ficaria
perdido para sempre na vastidão de males que seu trabalho lhe apresentara
durante os quase vinte anos de serviço. Decidiu poupar-se.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo toque quente da mão
feminina. Os dedos de Elis entrelaçando-se aos seus. Ele nem sequer
percebera quando ela tomou o lugar ao seu lado.
-Acho que vou aceitar um gole – disse ela.
Elis sabia exatamente do que o parceiro precisava, e depois de um
gole ruidoso, ofertou de bom grado sua companhia silenciosa.
Capítulo 4

20 anos atrás

O garoto subia a rua apressado. Aos dez anos de idade, nada era mais
importante do que o futebol contra os garotos do bairro vizinho. A semana na
escola tinha sido recheada de provocações e chacotas antecipadas. Perder o
jogo estava fora de cogitação.
Ele chegou até a porta branca recém pintada. O cheiro de tinta fresca
ainda latente. Estendeu a mão e tocou a campainha. Um dingue-dongue
clássico ressoou dentro da casa. Ninguém atendeu. Tocou mais uma vez e
esperou. O resultado foi o mesmo.
Onde estaria o amigo? Os garotos do bairro vizinho eram muito bons
e sem o Caneta, o mais habilidoso do time, a possibilidade de derrota era
grande. Será que aquele preguiçoso estava dormindo, como costumava fazer
depois do almoço?
As janelas estavam abertas, então deveria haver alguém em casa. Ele
pesou a mão na maçaneta e a porta se abriu, revelando uma sala bonita e
aconchegante, cada parede forrada com estantes repletas de livros.
O garoto colocou a cabeça no vão da porta e chamou mais uma vez. O
silêncio foi sua única resposta.
Ele já tinha estado naquela sala incontáveis vezes. Se, apenas daquela
vez, entrasse sem ser convidado, tinha certeza de que seria perdoado, afinal
era por uma causa muito importante.
Pisou no tapete onde os amigos costumavam se reunir para jogar
banco imobiliário. Caminhou até a cozinha onde a mãe de Caneta os
observava fazendo os deveres de casa. Enquanto cozinhava, dona Branca
dava dicas sobre as tarefas mais difíceis.
A casa estava vazia, os pais do amigo ainda estavam no trabalho e
isso indicava que Caneta só podia estar dormindo. A mochila jogada no
corredor indicava que ele já tinha chegado da escola.
Restava-lhe punir o amigo pelo atraso. Estava decidido. Iria subir pé
por pé e acordar Caneta com o maior susto de sua vida.
Quando pisou nos degraus da escada que levava ao segundo andar, o
rangido das tábuas foi tão alto que o assustou. O imóvel era como toda boa
casa antiga deveria ser. Quase uma entidade viva, cujas juntas idosas de
madeiras comidas por cupins e tubulações velhas e mal encaixadas
reclamavam com murmúrios constantes e rabugentos, clamando por uma
reforma.
Já no piso de cima ele encontrou o corredor vazio, sabia que o quarto
do amigo era o último cômodo do lado direito, depois da janela.
Prosseguiu silencioso, excitado com a possibilidade do trote, e, ao
mesmo tempo, temeroso pela casa onde o silêncio gélido era soprado pelos
cômodos vazios.
Prestes a estender sua mão para a porta entreaberta, ele sentiu algo
tocar-lhe o ombro. O susto o deixou sem cor. O grito de terror ficou sufocado
na garganta. Quase urinou nas calças. O alívio veio segundos depois, quando
criou coragem para virar a cabeça e descobriu que o fantasma que lhe
assediava era nada mais que a cortina, que, soprada pelo vento repentino,
decidiu acariciar-lhe gentilmente o pescoço, fazendo-o rememorar os filmes
de terror que assistia escondido na madrugada.
Decidiu que o melhor era acordar logo o amigo para poder voltar ao
calor do dia. Longe de lugares onde sua imaginação infantil pudesse decidir
lhe pregar mais alguma peça.
Quando finalmente abriu a porta do quarto, o verdadeiro horror atingiu-
lhe em cheio, com uma cena que jamais seria apagada de sua mente.
***

Eram seis e quinze da manhã quando Luís estendeu a mão para o


celular, calando o despertador que se manifestava na voz de Anthony Kiedis
dos Chili Peppers. Pensou em voltar a dormir, mas, após cinco minutos,
decidiu que não deixar-se-ia vencer pela preguiça.
Colocou-se de pé se espreguiçando e vestiu as roupas da academia. O
frio da manhã de inverno exigiu que um moletom fosse jogado sobre os
ombros.
Após uma passada pelo banheiro e um ataque bem-sucedido à
geladeira, ele estava pronto para sair. Desceu as escadas e, ao passar pela
livraria, devolveu para a cozinha uma xícara que tinha sido esquecida sobre
uma das mesas, antes de finalmente sair para encarar o vento frio da manhã
invernal.
A casa de Pedro ficava no caminho para a academia e era o ponto de
encontro dos amigos.
Um grupo de adolescentes surgiu vindo em sua direção, descendo a
rua de forma ruidosa, com conversas em voz alta e animada, sem se
preocupar com as pessoas que ainda estavam dormindo a uma parede de
distância. Sua funcionária de meio expediente estava entre eles, de mãos
dadas com o namorado. Um garoto cuja barba ainda começava a crescer, na
forma de pequenos fiapos quase invisíveis.
Quando avistou Luís, ela soltou a mão do rapaz e correu em sua
direção.
-Chefe! Bom dia! – disse animada enquanto se jogava sobre ele em
um abraço apertado que a fez tirar os pés do chão.
Luís sentiu os seios proeminentes espremidos junto ao seu peito.
Como sempre ela o provocava.
“Preciso dar um basta nisso” – pensava ele enquanto, por cima do
ombro da garota, via a expressão nada satisfeita de seu namorado.
Após alguns minutos de caminhada, estava de frente para a porta da
casa de Pedro. A pintura branca descascada trazia muitas lembranças.
Quando o amigo decidira sair de casa para morar sozinho, os pais resolveram
que seriam eles a sair, comprando para si uma casa no litoral, onde
desfrutariam da aposentadoria em grande estilo, deixando o imóvel da
infância como um presente para o filho recém-formado em medicina.
Luís tocou a campainha. A porta foi aberta por Fernanda. Assim como
ele, a moça não tinha confiado apenas nas roupas de malhar para afastar o
frio e vestia um grosso moletom azul.
-Bom dia – disse ela.
-Bom dia, Nanda – um beijo no rosto selou o cumprimento.
Depois que Luís passou pela porta, ela vasculhou a rua em busca de
Bernardo.
-Onde está aquele preguiçoso? – perguntou.
-Ele me ligou ontem, disse que tinha um cliente importante pela
manhã e que não poderia vir.
-Que pena.
-E a Bárbara? – foi a vez de Luís questionar.
-O mesmo: trabalho chato e de última hora.
-E cadê o dono da casa?
-Está lá em cima. O idiota abriu a porta pra mim e foi tomar banho me
deixando aqui sozinha. Mal sabe ele que sou cleptomaníaca – brincou a moça
indo em direção a uma das muitas estantes de livros. Luís seguiu para as fotos
na parede. Algumas das memórias eternizadas ali também pertenciam a ele.
-Bem que ando sentindo falta de algumas coisas lá em casa. Foi você
quem surrupiou minha coleção de revistas Playboy?
-Bom, provavelmente sou mais macho do que você, o Pedro e o
Bernardo juntos, mas não, imbecil. E vou dizer pela última vez. Eu não sou
lésbica – frisou.
-Mas é claro que não, com certeza não. Ninguém tem dúvida alguma
disso, por que teríamos? –zombou ele.
-Eu sabia que não devia ter falado nada. Olha, pela última vez, aquilo
foi apenas um deslize, eu estava bêbada, a garota também. Éramos amigas,
dividimos um táxi, ela me convidou para subir, enfim, foi apenas uma vez,
agora dá pra parar de ficar me lembrando disso?
-Você e todas as suas últimas vezes...
Ele riu com prazer, enquanto ela deixou escapar um sorrisinho de
quem se rende.
-Essa é uma de minhas preferidas.
Fernanda se aproximou do amigo para identificar qual moldura ele
apontava. A foto retratava um grupo de crianças abraçadas. Usavam
uniformes de futebol completamente cobertos de barro.
-Homens e seu futebol – menosprezou – como era mesmo o apelido
do Pedro naquela época? Lápis?
De brincadeira, Luís empurrou a cabeça da amiga.
-Era Caneta, não Lápis.
-Homens idiotas, com seus apelidos ridículos, correndo atrás de uma
bola estúpida. Isso é tudo o que essa foto representa. Esta sim é uma bonita
imagem – apontou para um retrato onde o grupo estava todo reunido, ombro
a ombro em frente à livraria de Luís. Aquele foi seu primeiro dia sozinho no
comando do negócio dos pais.
O momento das recordações foi quebrado pelo chamado de Pedro.
-Nanda! Eu esqueci a toalha, pegue uma no meu quarto para mim! –
O grito veio do andar de cima.
-Não vou correr o risco de ver o namorado da minha melhor amiga
pelado, vou deixar essa para o Luís – gritou ela de volta, e sorriu para o rapaz
– vá pegá-lo, tigrão!
Luís balançou a cabeça em desaprovação, mas subiu a escada sem
reclamar. O rangido da madeira ainda estava ali, pronto a lhe saudar,
pontuando seus passos. Velhos conhecidos.
Voltar para aquele corredor vazio do segundo andar, com a cortina
esvoaçando mediante o vento forte e gelado, era um gatilho para que as
lembranças daquele dia viessem à tona. Era simplesmente impossível não se
lembrar.
-Luís! As toalhas ficam nas gavetas de baixo! – gritou Pedro do
banheiro na porta à esquerda.
-Eu sei! – “...muito mais sobre esta casa do que gostaria de saber” –
completou em pensamento.
Ele caminhou até o quarto. A cortina dançando ao seu lado. O vento
gélido da manhã abraçando seu corpo. Quando estendeu a mão para a porta,
de repente, tinha dez anos outra vez e o terror daquele dia agarrava-se a ele,
forçando passagem pela alma da criança que ainda vivia em seu interior.
Ele hesitou. Que bobagem, era um adulto agora, mas a mão seguiu
estática.
A voz renovada de Pedro o ajudou a sair do transe.
-Anda logo, Luís! Você sabe onde fica!
Ele abriu a porta, foi até o guarda-roupa e pegou a toalha. Pedro se
tornara um homem organizado, seu quarto era limpo e cada coisa tinha seu
lugar.
-Já vou! – respondeu, livrando-se completamente do passado.
Alguns minutos depois os três seguiam para a academia.
-Ainda não acredito que aqueles dois não vieram – disse Nanda,
referindo-se a Bárbara e Bernardo.
-Quem perde são eles. É como dizem lá fora, “no pain, no gain.” –
afirmou Pedro.
Capítulo 5

A sala do detetive andava movimentada nos últimos dias. O


superintendente Maciel, que tinha o delicado costume de esquecer-se da
existência de Fred, tornou-se figurinha fácil entre aquelas paredes. Parece que
o peso do caixão de uma pessoa famosa é maior do que de uma Jane Doe,
como diziam nos seriados americanos que ele assistia com a esposa antes de a
sala de casa se tornar pequena demais para os dois.
-As pessoas estão atrás de respostas, então trabalhe, Fred, e trabalhe
rápido.
O detetive sabia que Maciel não falava da família da vítima, ou sequer
de seus fãs, ele se preocupava apenas com a mídia e a exposição negativa de
sua delegacia. Postergar o caso de um João Ninguém não-reclamado,
arquivando o processo, era uma coisa, mas tratar alguém famoso da mesma
forma era uma heresia, com direito a fogueira em praça pública e transmissão
em HD pela Globo News.
O problema era que cada ponta solta havia sido explorada e a
investigação seguia no zero. O instinto de Fred lhe guiou em direção à droga
usada para paralisar a vítima. Pensava em alguém com acesso àquele tipo de
medicamento, um profissional da saúde, mas chegou à mesma conclusão que
Elisabete. Após meia hora navegando na internet, ele conseguiu encontrar
cinco sites diferentes que poderiam fornecer o fármaco. Tinha certeza que, se
continuasse procurando, encontraria muitos outros, e poderia até mesmo
ganhar o frete grátis, ou um desconto de cinco por cento numa próxima
compra, resumindo, uma grande perda de tempo. Qualquer um poderia
colocar as mãos em tal medicamento.
Os vizinhos da vítima não tinham visto absolutamente nada. Ele não
achou aquilo incomum, pois acreditava que, quanto mais dinheiro as pessoas
têm, mais reclusas se tornam. A velha Clementina era a exceção, o que se
explicava pelo fato de que sua família habitava aquele bairro desde muito
antes dele se valorizar e se tornar um reduto tranquilo para a classe alta.
Quando a porta da sala de Fred foi aberta de forma abrupta, produzindo
uma corrente de ar que levantou as pontas dos muitos papéis em sua mesa,
ele levantou os olhos de seu PC para fitar um viúvo de feições endurecidas e
olheiras profundas, souvenir adquirido nas noites em claro.
-Quero saber sobre as investigações! – esbravejou – Quero saber quem
matou minha esposa!
“Você não é o único.”
-Acalme-se, senhor Brummer. Sente-se para que possamos conversar –
pediu Fred ao homem de cabelos pretos e sobrancelhas grossas. Os olhos
vermelhos e as roupas amarrotadas faziam parte do pacote de ser um homem
recém-privado da presença da esposa.
-Não quero me sentar, quero saber por que você não está nas ruas
procurando pelo homem que matou minha esposa?
-Nós estamos dirigindo todos os nossos recursos para este caso, o
senhor tem minha palavra quanto a isso.
-Não preciso de sua palavra, detetive – apontou o dedo para Fred – eu
preciso é ver o homem que matou minha mulher atrás das grades.
Fred se levantou da cadeira. Sabia o efeito que seus quase dois metros
poderiam ter quando fizesse sombra no homem menor.
Ele deu a volta na mesa. As duas mãos na cintura. Respirou fundo,
como quem carrega um grande pesar.
-Eu sequer posso começar a imaginar a dor que você e sua família estão
sentindo neste momento, senhor Brummer, mas posso ter pelo menos um
vislumbre. Há cerca de dois anos meu filho foi sequestrado. Há dois anos eu
não sei o que é ouvir aquela voz doce me pedindo para lhe contar histórias
antes de dormir, ou o som alegre de suas gargalhadas. Eu nem sequer sei se
ele ainda está vivo em algum lugar. A única coisa que me faz seguir em
frente, além da esperança de algum dia encontrá-lo, é seguir punindo os
desgraçados que fazem coisas como essas, que tiram a vida de pessoas
inocentes como sua esposa e que privam os lares das famílias de bem de seus
entes queridos. Portanto, de um insone para outro, quero que saiba que farei
tudo o que estiver ao meu alcance para pegar esse filho da puta. Você pode
ter certeza disso.
Ronaldo Brummer avaliou profundamente a expressão de Fred. Em
algum lugar entre a amargura e a dor, estampadas na face do detetive como
um cartão de visitas, ele encontrou a si mesmo, e pela primeira vez nos
últimos dias, foi capaz de chorar.
Os policiais que tinham chegado à porta para verificar a origem dos
gritos foram rechaçados por um gesto de Fred, que estendeu suas mãos para
os ombros do viúvo desolado.
-Nós vamos pegar esse desgraçado – disse por entre os dentes.

***
A próxima pessoa a passar por aquela porta não o fez de forma menos
intempestiva.
-Fred! – A presença da detetive Elis foi precedida por seus gritos, que
ecoaram pelo corredor.
-Mas que merda, o que será dessa vez?
-Temos outra vítima – disse ela assim que passou pela porta.
-Outra... – ele teve dificuldades em compreender.
-Mais um escritor. Segundo informaram, é o mesmo padrão.
Até o momento os detetives encaravam o assassinato de Natália
Brummer como um ato isolado, fruto, provavelmente, de um fã de mente
doentia. Um segundo crime mudava tudo. Estariam diante de um serial?
Fred se levantou quase derrubando a cadeira. A velocidade com que se
pôs de pé o fez ficar zonzo.
-Tudo bem com você? – perguntou-lhe a parceira, que o viu se apoiar
na parede mais próxima.
-Tudo bem.
“Exceto pelo fato de que não só não encontramos esse desgraçado,
como o deixamos matar de novo.”
-Qual o nome da vítima? – perguntou Fred quando já entravam no
carro.
-Átila Fernandes.
Fred ficou remoendo aquele nome. Ele o conhecia, mas não conseguia
associar o homem a sua obra.
-Acho que já li alguma coisa dele, mas não consigo me lembrar –
pontuou enquanto Elis engatava a primeira e arrancava para fora do
estacionamento da delegacia.
-Eu dei uma olhada no Google, parece que ele publicou alguns livros
em editoras pequenas, nada muito badalado, mas conseguiu alcançar um
público maior quando o livro “Antes do meio-dia” foi aceito e publicado por
uma editora de maior visibilidade.
-Sim, sim, claro. É um romance policial. Na história o assassino vai
cortando partes da vítima, os policiais tinham até o meio-dia para encontrá-lo
a tempo de a cabeça ainda estar no lugar.
-Uma segunda vítima muda tudo – disse Elis, os olhos pregados na
pista. A troca constante de faixas e as ultrapassagens refletiam a ansiedade da
policial.
-Sim.
O pensamento que cruzou a mente de Fred o deixou enojado de si
mesmo.
“Uma nova vítima representa outra chance de encontrarmos pistas.”
Seria uma nova morte um mal necessário?

***
Era uma casa de classe média, encimada em um bairro de classe média,
com todos aqueles abutres classe média sobrevoando as fitas amarelas,
guiados pelo cheiro de sangue. E por falar em abutres, lá estavam as equipes
de TV, como poderiam ter chegado tão rápido? O circo estava armado e
faltavam os palhaços, mas Fred tinha certeza de que um nariz vermelho não
seria o suficiente para agradar aquelas pessoas. Se ele tivesse que bancar o
circense, que fosse o maligno Pennywise de It, A Coisa, assim poderia
colocar todos aqueles desgraçados para correr, para que pudesse trabalhar em
paz.
-Detetives, mais um escritor morto em menos de duas semanas.
Estamos falando de um serial killer? Um matador de escritores? – gritou uma
das repórteres que já se lançava em direção ao carro de Fred e Elis. Os
holofotes dos operadores de luz cegavam os recém-chegados.
Os detetives ignoraram os repórteres e seguiram através do cerco.
-Policial – disse Elis com o distintivo em mãos para um dos homens
que mantinha a multidão afastada – precisamos de um perímetro maior.
-Detetives! Detetives! – Os repórteres eram como mosquitos que eles
não conseguiam afastar e seguiam zumbindo em seus ouvidos.
Fred sentiu-se feliz por entrar na casa e deixar aquele tumulto para trás,
mas o cheiro que veio de encontro a eles logo o fez mudar de ideia. Ele foi
acometido por uma nova vertigem. Apoiou-se na parede para se reequilibrar,
sem permitir que Elis percebesse, tudo o que não precisava agora era de sua
parceira lhe fazendo discursos inúteis sobre sua saúde.
O odor pungente ficava mais forte a cada passo. Na sala, dois policiais
conversavam e faziam anotações.
-Detetives – disse um deles – o corpo está na cozinha.
Fred e Elis seguiram para lá. Passaram por um corredor que
desembocava no cômodo frio de azulejos quadriculados em branco e preto.
A imagem grotesca os atingiu em cheio, assim como o forte odor que
pairava no ar viciado de janelas fechadas. Os olhos ardiam e era preciso lutar
bravamente para manter o almoço quieto dentro do estômago.
O homem, ou o que restava dele, estava amarrado à cadeira. Sobre a
mesa, dentro de panelas, havia orelhas, dedos, nariz, pênis, todas as
extremidades possíveis foram cortadas e agrupadas de maneira organizada
dentro dos vasilhames.
Elis levou a mão à boca, sacou um lenço e cobriu o nariz. Ela saiu
rapidamente da cozinha, antes de misturar sua bile e suco digestivo ao sangue
da vítima que lavara o chão transformando-o em uma bandeira rubro-negra.
Fred queria fazer o mesmo, mas parou para ler os escritos na parede, a marca
do assassino, o elo maior entre os crimes.
“Cortarei um pedaço a cada vinte minutos, mas como gostei de você,
deixarei que escolha por onde devo começar. Orelha? Nariz? O fura-bolo ou
o mata-piolho?”
“O assassino gargalhou enquanto o medo florescia em sua vítima,
alimentando sua loucura.”

Capítulo 6
20 anos atrás
Luís e Bárbara caminhavam de mãos dadas pelo parque. Aos dez anos,
a maioria dos meninos precisava antagonizar as garotas se não quisesse ser
motivo de chacota entre os colegas, mas para Luís nada era mais importante
do que a companhia de Bárbara. Antes mesmo de descobrir os significados de
amor ou paixão, ele sabia que não haveria outra garota em sua vida que não
fosse ela.
A infância e suas verdades eternas, que duram por horas, dias, ou por
toda uma vida.
Algumas vezes por semana, depois da aula, os dois se sentavam sob a
sombra de uma árvore no parque perto de casa. Faziam os deveres juntos
enquanto falavam mal dos professores e de suas provas terrivelmente difíceis.
Comentavam os filmes de terror que assistiam escondidos de madrugada e de
como aquilo os assustava, mas, mesmo assim, não conseguiam deixar de vê-
los.
Embora à noite o parque tivesse sua cota de frequentadores suspeitos,
durante o dia era um lugar tranquilo, por isso, quando as crianças ouviram os
gritos e toda a comoção que acontecia em algum lugar ali por perto, logo se
colocaram de pé para ir investigar.
Alguns metros à frente, sob a cúpula do antigo coreto, cujas rachaduras
no chão de concreto eram como grandes cicatrizes. No mesmo lugar onde a
bandinha de metais do bairro costumava se apresentar para os pais
orgulhosos. Uma menina acuada, caída ao chão, se defendia com dificuldade
das agressões de um grupo de seis outras garotas.
Luís e Bárbara ficaram horrorizados ao se aproximarem e perceberem
que a menina tinha o rosto coberto de vermelhões e marcas de unhas. Seu
uniforme escolar estava rasgado em vários lugares, e, em muitos deles, os
arranhões estavam vermelhos de sangue.
-E então, queridinha da professora, vai fazer pouco de nós agora? –
falava uma das meninas. Claramente a líder à frente daquela covardia.
-Parem, por favor – pedia a outra, completamente sem reação, as mãos
tentando defender o rosto dos chutes e tapas. Os cabelos ruivos empapados de
suor e presos à testa.
-Você achou que podia mudar de escola e fugir de nós? Achou mesmo?
Uma das garotas, a maior delas, acertou um chute na barriga da menina,
que arfou ofegante enquanto a visão escurecia em borrões negros.
-O que acham de deixarmos ela nua? Imagina essa franguinha voltando
pra casa pelada – Todas riram, mas não era uma piada e sim uma ideia que
agradou a todas.
-Já chega! – gritou Luís, muito antes de perceber que as palavras já
tinham saído de sua boca – Vocês estão malucas?
-Deixem-na em paz! – reforçou Bárbara.
-Ou o quê? – perguntou a líder com petulância no olhar.
Bárbara imediatamente pegou uma pedra no chão e começou a fazer
mira. Luís tomou posse de um pedaço de pau.
-Eu não bato em meninas, mas vocês estão realmente merecendo. Suas
covardes!
-Acho que já chega. Essa daí já aprendeu parte da lição. Qualquer dia
desses, nós voltamos para terminar a aula. Beijos, queridinha da professora.
As meninas deixaram o parque entre gracejos e gargalhadas de
escárnio.
-Você está bem? – perguntou Bárbara, ajoelhada diante da ruiva.
A menina se encolheu toda, como se o menor toque pudesse
desintegrar-lhe.
-Está tudo bem agora, elas já foram – Luís tentou tranquilizá-la, sem
muito efeito.
-Qual o seu nome? – Bárbara fitava a garota de cima a baixo, medindo
seus machucados, ainda sem conseguir acreditar em tamanha crueldade,
praticada por meninas que deveriam ter a sua idade.
Após longos segundos, ela respondeu.
-Fernanda.
-Nós vamos te levar pra casa, Nanda. Posso te chamar assim? –
perguntou Luís, com um sorriso no rosto.
-Pode, mas, por favor, não me levem pra casa.

***

Fernanda foi a primeira a chegar à livraria. Luís, que estava abrindo


algumas caixas de livros, foi até a porta para saudá-la.
-Olá – disse ele enquanto se abraçavam – tudo bem?
-Tudo, e você? Como vão as coisas?
Antes que ele pudesse responder, Bianca o puxou de lado. A
adolescente usava uma blusa de alcinhas, e qualquer movimento brusco de
abaixar revelava mais do que o devido.
-Estou indo, chefe, boa noite - Ela o beijou no rosto de forma demorada
- Boa noite... Fernanda – lembrou-se do nome.
-Boa noite – responderam os dois adultos.
-Puxa, mas que ninfeta você tem trabalhando para você – comentou
Fernanda assim que o sinete ressoou, indicando a saída da garota.
-E a cada dia isso me deixa mais preocupado.
-Você quer dizer que isso que eu vi é frequente?
-O pior é que sim. Se eu permitisse, ela passaria o dia inteiro flertando
comigo.
-E você não dá um basta nisso por quê? Ah, já sei, porque ter uma
beldade dessas dando em cima de você massageia o seu ego. Homens... – ela
balançou a cabeça.
-Pare, Nanda, isso não é brincadeira. A garota é menor de idade e eu
não quero problemas. Os pais dela são muito amigos dos meus e pediram
para eu empregar ela aqui. Acho que eles pensam que eu posso colocar algum
juízo e noção de responsabilidade na cabeça da garota.
-Se as coisas seguirem como estão, o que você vai colocar nessa garota
será outra coisa.
-Chega, Nanda, esse assunto já me deixa preocupado o suficiente sem
você e suas piadinhas para me encher.
-Tudo bem, não está mais aqui quem falou... garanhão!
-Nanda!
-Relaxa, Lu. O que tem naquelas caixas que você estava abrindo,
lançamentos?
-Alguns. Tem um Stephen King novo, acho que você vai gostar.
-Mas é claro que vou gostar, o homem é o mestre.
-O filho dele também é muito bom, você devia ler Estrada da Noite, do
Joe Hill.
-Eles são pai e filho? – A garota estava surpresa.
-Sim.
-Bem, isso muda tudo, com certeza irei ler – disse ela.
Quando o sinete soou novamente, Pedro e Bárbara passaram abraçados
pela porta. O casal se separou para cumprimentar os amigos, mas logo voltou
a dar as mãos.
-O que há com vocês dois? Que grude todo é esse? – perguntou
Fernanda.
-Hoje é nosso aniversário de namoro – respondeu Bárbara.
-Sério? Parabéns! – Fernanda abraçou os dois, seguida de Luís, que
abriu os braços envolvendo os três.
-Esperem um minuto – a ruiva logo objetou – vocês estão fazendo
aniversário de namoro e, em vez de estarem em um motel cinco estrelas,
gastando a grana desse cirurgião bem-sucedido em chocolates e champanhe,
estão aqui conosco para ficar ouvindo o papo furado do Lu?
-Ah, sim, claro, o papo furado do Lu, o dono da livraria decadente.
Tudo eu, como sempre, mas dessa vez acho que a Nanda tem razão.
-Bem, tradição é tradição, as terças são sagradas. Além do mais, a noite
é uma criança e os motéis são estabelecimentos 24horas – explicou Pedro.
-Bom, se é assim, deixe-me presenteá-los – Luís voltou em instantes
trazendo um espumante.
Após mais um soar do sinete, eles ouviram a voz de Bernardo.
-Boa noite, amigos. Puxa! Champanhe, qual é a ocasião?
-Aniversário de namoro destes dois – anunciou Fernanda.
-Ah, é só isso? Grande coisa. Achei que estavam estourando um
champanhe para comemorar o fato de que vocês me têm como amigo.
-Dá pra você calar a boca e nos dar um abraço? – pediu Bárbara.
-O abraço sim, calar a boca não – Bernardo abraçou os amigos e lhes
desejou felicidades.
-É, por que isso seria como tentar tampar o sol com uma peneira.
Todos gargalharam.
Já ao redor da mesa, com a maior parte das luzes apagadas, em um
clima mais intimista, eles discutiam qual seria o próximo livro a ser lido e
debatido pelo grupo.
-Antes de vocês começarem a colocar em pauta esses livros chatos de
branco, deixe-me lembrá-los de que é minha vez de escolher – falou
Bernardo.
-Que seja pelo menos a biografia do Martin Luther King, por favor, e
não a do Jay-Z – brincou Pedro.
-Muito engraçado, Senhor Olhos Azuis. Minha escolha para a próxima
leitura é Um País Sem Excelências e Mordomias, de Claudia Wallin.
-Aquele sobre a Suécia, que fala que os políticos de lá vão trabalhar de
bicicleta? – perguntou Bárbara.
-Exatamente.
-Puxa, nosso garoto está crescendo.
Todos gargalharam mais uma vez.
-Vocês souberam que houve uma nova vítima? – falou Bernardo
casualmente enquanto servia outra rodada do espumante.
-Nova vítima? – perguntou Pedro.
-Está em todos os jornais, em que mundo vocês vivem? Ontem foi
encontrado o corpo de outro escritor, o Átila Fernandes, autor do livro
policial “Antes do Meio-dia”.
-Eu soube – afirmou Bárbara– a imprensa anda especulando que possa
se tratar de um serial killer. A mídia sensacionalista vem chamando o caso de
Crimes das Letras de Sangue.
-Algum de vocês já leu o “Antes do Meio-Dia”? – perguntou Bernardo.
Luís e Fernanda afirmaram que sim. Bárbara e Pedro disseram que não.
-Bom, uma coisa é certa, na próxima semana devo receber caixas e
mais caixas desses livros. Basta o cara morrer e pronto, todo mundo quer
saber sobre ele e vem procurar pelos livros.
-Está dizendo que essa morte foi boa para os negócios? – Bernardo
apontou acusadoramente para o amigo.
-Claro que não, idiota, isso foi uma fatalidade, uma crueldade terrível.
-Não se preocupe, meu amigo, só estou brincando, além do mais, para
fazer uma livraria como essa dar lucros, seria preciso matar todos os
escritores do mundo.
Luís deu a volta na mesa e aplicou no amigo uma gravata.
-Me matar não vai fazer seu negócio deslanchar, não se esqueça disso –
falou Bernardo por entre o falso aperto do amigo, enquanto Pedro se juntava
a eles na brincadeira, fingindo separá-los.
Ao fim da noite, Bárbara e Pedro foram os últimos a partirem. Luís viu
o casal feliz desaparecer no horizonte da rua, suas silhuetas engolidas pela
escuridão, enquanto ele se perguntava em qual momento de sua vida tinha
perdido Bárbara para o melhor amigo.
Capítulo 7

Caminhar pelas ruas no frio matinal fazia bem a Fred. Ele odiava o
calor e o fato de morar em país tropical. O sol recém-nascido, de raios
tímidos, tinha dificuldade em expulsar a neblina que se debruçava sobre a
cidade.
O detetive não conseguia se lembrar de um inverno tão frio quanto
aquele. O maldito aquecimento global vinha tirando dele um dos poucos
prazeres que ainda lhe restavam. O Brasil parecia seguir, ano após ano,
cabulando o inverno, até que a fria estação finalmente decidiu revidar,
premiando as noites com temperaturas que não passavam dos dez graus e, nas
manhãs, os ventos gélidos que sopravam pelas ruas pareciam claramente
dizer: “não me desafie”.
Elis seguia ao lado do detetive, não estavam dispostos a ficar sentados
esperando que Rogério chegasse com seu teatro de envelopes pardos. O
prédio do departamento forense era apenas a um quarteirão de distância, e
eles decidiram caminhar.
-Venha, vamos tomar um café para espantar esse maldito frio dos ossos
– disse Elis apontando para uma lanchonete.
-Não diga isso alto, ele pode se ofender e ceder a vez para aquele calor
maldito novamente.
-Achei que os velhos detestassem o frio – provocou ela.
Ele a olhou de esguelha, não se deu ao trabalho de responder.
Sentados na lanchonete, ela viu Fred abrir seu cantil e despejar uma boa
dose de bebida dentro do café.
-O que foi? – perguntou, sentindo-se sob a mira do olhar feminino.
-Nada, só que me preocupo com você.
-Eu sei que você se preocupa – ele estendeu a mão e tocou a dela por
cima da mesa – eu amo você por isso, Elis, mas estou bem.
“Amo você muito mais do que imagina.”
Eles seguiram para o arranha-céu que ficava do outro lado da rua. Após
mostrarem suas identificações na portaria, seguiram para o elevador e, de lá,
após sobreviverem à Garota de Ipanema, para a sala de Rogério.
-Bom dia – disseram os detetives ao entrar.
Elis não esperou ser convidada para sentar e colocar os pés sobre a
mesa.
-Bom dia – respondeu o gordo baixinho e simpático – não me lembro
de já ter colocado os pés sobre a sua mesa, detetive Elis.
-Pois eu me lembro de você ter tentado, mas não ter alcançado. Ou será
que foi a cadeira que quase tombou para trás?
Ele gargalhou, mexendo exageradamente os ombros.
-Você tem razão. Além de linda é muito sagaz. Diga-me, Elis, quando
vai me dar a chance de fazê-la descobrir o que é um homem de verdade?
-Se no meio de um dos seus envelopes houver o nome que procuramos,
talvez eu deixe você me pagar um cafezinho ali na esquina.
-Seria o melhor café da minha vida.
-Vocês já terminaram? – perguntou Fred.
-Parece que o grandão ficou com ciúmes.
-É exatamente isso, estou morrendo de ciúmes – ironizou Fred.
Rogério se permitiu um sorrisinho cínico.
-Pois bem, meu pessoal ainda está trabalhando e o pouco que temos é
tão inconclusivo quanto no outro caso. Encontramos mais uma vez o brometo
de pancurônio na corrente sanguínea da vítima. Podemos dizer que ela estava
consciente durante a tortura. O óbito provavelmente ocorreu entre dez da
noite e três da manhã, é difícil de determinar exatamente, pois a causa da
morte foi hemorragia. A vítima perdeu muito sangue das diversas
amputações.
-Foi usado algum tipo de instrumento cirúrgico? – perguntou Fred.
-Acreditamos que não. O assassino usou apenas os aparatos de cozinha
que tinha à disposição.
-E quanto ao resto da casa?
-Não encontramos nada.
-Com todo aquele sangue pelo chão, como ele pode não ter deixado
nenhuma pegada? Por acaso estamos falando de um fantasma? – quis saber
Elis.
-Minha opinião pessoal sobre isso, detetives, é que essa pessoa é algum
tipo de camaleão, um mestre em se adaptar e descobrir maneiras de ser
convidado a entrar. Não há como explicar que nos dois casos ele não tenha
deixado vestígio algum, exceto pelo fato de que houve tempo de sobra para
apagar as pistas, e isso não é algo fácil de fazer. Ou ele comprou um box com
todas as temporadas de todos os CSI e se empolgou, ou o cara é uma pessoa
de inteligência muito acima da média, capaz não só de ludibriar cada uma das
vítimas, mas também de pensar nos mínimos detalhes que poderiam ser
deixados para trás.
-Você tem razão – falou Fred – no primeiro crime o assassino sabia que
a vítima estaria sozinha. Sabia que o marido tinha o costume de fazer viagens
curtas com os filhos, para que Natália tivesse tranquilidade para escrever.
-Não gosto da forma que você diz – pontuou Elis - você está assumindo
que se trata de um assassino, um homem, mas vejo aquela porta se abrindo
com mais facilidade para uma mulher.
-Não excluo a possibilidade de estarmos falando de uma mulher, foi só
força de expressão – justificou-se o detetive.
-Sim, claro, a língua portuguesa e seus costumes machistas.
-Você levantou um ponto importante, abrir a porta para um homem
estranho não seria algo comum, mas e se estivéssemos falando de um
amante? – especulou Fred.
-Depois de todas as conversas que tivemos com o senhor Brummer, não
consigo acreditar que Natália o estivesse traindo – afirmou Elis – eles eram
felizes juntos.
-Está dizendo que em casamentos felizes não há traição? – perguntou
Fred.
-Não por parte das mulheres.
-Acho que você precisa de uma fonte de informações melhor do que
aqueles programas sensacionalistas de fofoca que passam à tarde.
-Só estou sendo realista.
Fred deu de ombros.
-Tudo bem, então, e quanto a Átila Fernandes? – perguntou o detetive.
-Ele era solteiro, uma mulher poderia tê-lo seduzido e o convencido a
levá-la para casa.
-Sim. Segundo os vizinhos, ele abusava da fama para cada dia levar
uma mulher diferente para casa, ele foi descrito como um mulherengo. Mas,
de toda forma, não há testemunhas que possam dizer qualquer coisa a
respeito da noite em que ele morreu. Estivemos nos bares que ele costumava
frequentar e não conseguimos nada. O prédio tampouco tinha câmeras. A
pessoa por trás dos crimes tem analisado minuciosamente cada detalhe da
vida das vítimas. Ele, ou ela...
-Obrigada – Elis sorriu.
-... sabia sobre a ausência de câmeras no prédio de Átila, e que, ao
entrar pela garagem, não precisaria passar pelo porteiro. Sabia também que os
vizinhos de Natália Brummer eram pessoas reclusas, que pouco observavam
a vida da escritora, e que ela estaria sozinha naqueles dias – concluiu Fred.
-O que chama atenção é que tais observações não podem ser feitas de
maneira leviana, em poucos dias. Quem planejou fazer isso não teve tempo
de iniciar outra análise tão complexa no curto intervalo de tempo entre os
crimes – observou Elis.
-Você tem razão. Estamos falando de um plano de longa data. Nascido
de uma observação meticulosa.
-Senhor – disse um jovem de óculos que entrou na sala de forma
abrupta – acho que encontramos algo.
-Detetives, este é o Flávio da informática, o garoto é um gênio. Não se
deixem enganar pelas espinhas. O que você encontrou, rapaz?
-Vocês se importam de me acompanhar até a informática?
A sala era uma confusão de baias. Cada uma delas ocupada por um
jovem escondido atrás de um par de óculos, como se aquele fosse um pré-
requisito para o cargo e a cara de virgem garantisse um bônus no salário.
-Vocês conhecem o site meuidolo.com? – perguntou Flávio, sentado
diante de sua máquina.
-Já ouvi falar – respondeu Elis.
-Trata-se de uma ideia simples e muito rentável, as celebridades
recebem uma fortuna para falar diretamente com os fãs, que pagam uma
quantia mensal para ter acesso aos ídolos. Estou falando de chats, conversas
privadas, palestras e videoconferências.
-Vá direto ao ponto, garoto – pediu Fred.
-Eu descobri a senha de Átila Fernandes no bloco de notas de seu
celular, com ela, consegui logar em sua conta e verificar as conversas. O que
encontrei foi um fã bastante irritado, com um perfil onde as informações
pessoais estão completamente bloqueadas, exceto pelo nickname, onde um
nome que já vimos antes se repete. O mesmo que atormentava Natália
Brummer, Baltazar.

***

Elis estacionou frente à sede do meuidolo.com. Era fácil dizer que os


negócios iam bem apenas por analisar a fachada do prédio de seis andares,
cujas faces espelhadas refletiam o azul celeste. Se o prédio era imponente
pelo lado de fora, por dentro era simplesmente deslumbrante.
Os detetives seguiram até a recepção onde foram recebidos por uma
moça de aspecto jovial, como tudo mais por ali. Os piercings, o corte de
cabelo moderno e a saia curta transformavam a recepcionista em parte da
decoração.
-Boa tarde. Nós desejamos falar com o diretor da meuidolo.com. –
anunciou Fred.
-Boa tarde. Mais duas empresas atuam no prédio, vou pedir que pegue
o elevador à esquerda e suba até o sexto andar. Só preciso de sua identidade.
Fred mostrou-lhe o distintivo rapidamente e sem esperar resposta
seguiu para o elevador, onde mais uma vez precisou mostrá-lo aos
seguranças, que liberaram sua passagem pela roleta.
-Acha que vamos conseguir alguma coisa? – perguntou Elis.
-É bom que consigamos, pois não temos mais nada.
Aquela constatação desoladora foi suficiente para que ficassem em
silêncio pelo restante da viagem vertical, que, inacreditavelmente, era
embalada ao som alegre de David Guetta.
A abertura da porta revelou outra recepção. Por ali, mantinha-se a
configuração de um lugar moderno e jovial, embora a recepcionista, que tinha
o nome Sarah gravado no crachá, usasse trajes menos espalhafatosos.
-Boa tarde, Sarah, nós precisamos falar com Romero Garcia – Fred não
escondia a ansiedade.
-Vocês possuem hora marcada? Senhor...
-Você pode ler o meu nome bem aqui – ele colocou o distintivo a
centímetros do rosto da mulher – e não, não temos hora marcada, mas creio
que seu chefe possa abrir uma exceção e nos receber.
-Esperem um minuto, por favor.
Fred encarou Elis, a ansiedade dele refletida nos olhos castanho-claros
da parceira. Voltou seu olhar para o ambiente ao redor. Atrás da
recepcionista, a parede era coberta por uma bela e lustrosa madeira
avermelhada, sobre a qual, em garrafais letras prateadas, lia-se
MEUIDOLO.COM.
-O senhor Garcia lhes dará cinco minutos – disse Sarah após recolocar
o telefone no gancho.
-Ótimo – respondeu Fred.
-Me acompanhem, por favor.
Eles seguiram a moça por uma passagem lateral à parede de madeira.
Encontraram um lugar amplo e arejado, formado por algumas baias onde os
programadores do site trabalhavam de cabeça baixa em suas máquinas. No
centro da sala havia um espaço aberto, uma área de convivência, com
almofadas jogadas pelo chão de tapetes coloridos, uma televisão enorme de
tela plana exibia a imagem pausada de um videogame. Havia também mesas
de sinuca, pebolim e tênis de mesa, além de uma máquina de doces e outra de
refrigerantes.
Os detetives ficaram impressionados com a atmosfera
descompromissada do que deveria ser uma empresa grande e séria, que fazia
girar milhões de reais.
-Aquela é a sala do senhor Romero, basta baterem na porta. Com
licença – despediu-se a mulher.
Fred bateu e ouviu um “entre”.
Assim que passaram pela porta, os detetives viram o vulto de um objeto
voar em direção à parede adjacente.
A bola de basquete acertou no aro e girou caprichosamente antes de se
render à gravidade e concluir a cesta.
-É disso que estou falando! – exclamou o homem do outro lado da sala,
com as mãos ainda erguidas do arremesso. O pé direito alto do escritório
permitia que a bola ganhasse a altura necessária. Uma parede de vidros
transformava a cidade lá fora num impressionante mosaico vivo.
O rapaz era jovem e bem-apessoado. Vestia uma camisa preta de
manga longa colada ao corpo atlético. Os cabelos muito negros eram
penteados com gel e a pele de alabastro reluzia.
-Boa tarde, detetives, sou Romero Garcia, em que posso ajudá-los? –
Ele pegou outra das seis bolas que estavam enfileiradas e arremessou. Mais
uma cesta.
-Somos os detetives Frederico e Elisabete, estamos investigando as
mortes dos escritores Natália Brummer e Átila Fernandes – anunciou Fred, já
ligeiramente irritado ao perceber que o jovem não tencionava interromper
seus arremessos.
-Interessante. Em que posso ajudá-los?
A terceira bola voou, mais uma cesta.
-Nós soubemos que Átila Fernandes era seu cliente e que ele recebeu
ameaças através de seu site.
-Muitos dos meus clientes recebem ameaças, detetives – falou sem
desviar o olhar da cesta.
-Mas este está morto – pontuou Elis.
-O usuário que assina as ameaças autonomeia-se Baltazar – endossou
Fred - alguém com o mesmo nome vinha atormentando Natália Brummer.
Precisamos que nos dê os dados deste usuário, ele é um suspeito em
potencial.
Romero não respondeu. Ele pegou mais uma bola e quicou algumas
vezes no chão. Sem pressa alguma, avaliou o peso do objeto esférico e a
colocou debaixo no braço, virando-se pela primeira vez para os detetives.
-Acho que isso não será possível.
Ele correu em direção à cesta para uma enterrada que fez tremer a
armação de metal que segurava o aparato esportivo. Depois voltou
caminhando lentamente até um detetive bastante inquieto.
Sentindo a irritação de Fred irradiar por sua pele, Elis tomou a frente na
conversa.
-Senhor Romero, preciso me assegurar de que você entende esta
situação. Caso este usuário seja o autor dos crimes, você estará contribuindo
para que um psicopata continue à solta, aterrorizando esta cidade.
-Meu trabalho não é prender criminosos detetives, esse trabalho é de
vocês.
“Seu merdinha” – Fred estava a ponto de estourar.
-Viemos aqui porque achamos que você poderia ser alguém razoável.
Voltaremos em breve com uma ordem judicial – decretou o detetive.
Romero passou as mãos pelos cabelos brilhantes enquanto sua
gargalhada ecoou pela sala.
-Uma ordem judicial? Só pode estar de brincadeira – ironizou - você
sabe o quanto eu pago para minha equipe de advogados? Acha mesmo que
um juizinho qualquer poderia passar por cima deles? Estamos no Brasil, meu
amigo, não se esqueça disso. Da mesma forma que os policiais corruptos
fingem pegar os bandidos, e os juízes fingem não ver os envelopes gordos em
suas gavetas, eu vou fingir que vocês não estiveram aqui.
-Seu... – Fred tinha os punhos cerrados, e Elis percebia que aquilo
poderia acabar mal.
-Fred, fique calmo – pediu ela – senhor Romero, temos fortes motivos
para crer que este homem continuará matando. Você pode mesmo conviver
com isso?
-Sim, é claro que posso. Vocês sabem quantas pessoas morrem por dia
no mundo? A morte é um fato inevitável. Virar as costas para ela e fingir que
ela não existe é algo inerente à raça humana.
Ele fez uma pausa, colhia a frustração dos detetives como quem colhe
flores num campo primaveril.
-Detetive Elisabete, Elis, posso chamá-la assim? Creio que eu tenha
me exaltado um pouco. Vou lhes explicar o motivo pelo qual não irei ajudá-
los.
Enquanto falava, fez mais um arremesso. O simples fato de a bola
bambolear caprichosamente na cesta antes de entrar, serviu para enervar Fred
ainda mais.
-A essência do meu negócio é permitir que tarados inveterados
possam falar com mulheres famosas enquanto se masturbam tranquilos em
suas casas, certos de que suas identidades jamais serão reveladas. Creio que
trinta por cento de meus clientes não querem saber como foi o dia de seus
ídolos, não querem saber sobre suas dicas de moda ou das peculiaridades de
suas vidas. O que estes trinta por cento querem é fantasiar com eles, e não
estou falando apenas de fantasias sexuais, não, alguns querem ser irmãos do
Neymar ou mãe da Claudia Leite. Dá pra acreditar, que porra de viagem é
essa? Mas a grande maioria destes trinta por cento, sim, eles chegam em casa
do trabalho, estressados, colocam a pistola para fora e batem uma enquanto
assistem ao conteúdo exclusivo que seus ídolos disponibilizam através do
meu site. Sem sigilo absoluto, eu perderia milhões de reais, não que nossa
moeda ande valendo alguma coisa, mas não posso manter tudo isso aqui –
abriu os braços abraçando seu escritório excêntrico – se andar dedurando
meus contribuintes. Agora vocês entendem?
-Acho que isso é tudo – disse Elis – obrigada por seu tempo – o ódio de
Fred a contaminava, mas ela se esforçou para manter a postura.
Quando caminhavam para a porta, Romero chamou por Elis.
-Quanto você ganha no departamento de polícia, Elis? Três... quatro mil
por mês somando as horas extras? Por que não vem trabalhar para mim,
como segurança pessoal? Faça as contas de quanto ganha por ano na
delegacia, quando chegar a um número, me procure e eu lhe pagarei este
mesmo valor por mês, ou por semana, mais um bônus caso queira prestar
algum servicinho extra – ele piscou maliciosamente - Uma mulher tão linda e
com um corpo desses não deveria estar andando por aí, atrás de bandidos e
ainda arrastando este velho atrás de você.
-Seu desgraçado – Fred partiu para cima do empresário, mas Elis o
deteve. Ela se colocou entre os dois enquanto Romero gargalhava mais uma
vez.
-Vejo vocês no tribunal, detetives, mas não se empolguem muito, pois
já perderam esta batalha antes mesmo de começar.
Já do lado de fora do prédio, Fred, que estava uma pilha de nervos, se
pôs a caminhar de um lado para o outro.
-Fred, fique calmo – disse Elis, segurando o parceiro pela mão.
-Eu devo ficar calmo depois daquilo? – apontou para o prédio – Você
devia ter me deixado esmurrar a cara daquele merdinha.
-Eu não poderia, pois preciso de você – ela segurou o rosto de Fred
entre seus dedos, fazendo cessar o andar enlouquecido do parceiro.
-Você é quem não sabe o quanto eu preciso de você – rebateu olhando-
a nos olhos.
-Você realmente acha que eu não sei? As mulheres sempre sabem, seu
idiota, mas entre nós as coisas não são tão simples.
Ele se aproximou ainda mais. Queria beijá-la e exorcizar seu ódio por
meio dos lábios de Elis, por meio de um beijo apaixonado, algo que há muito
tempo não fazia parte de sua vida. Ele podia sentir a reciprocidade, mas
ambos se detiveram.

Capítulo 8

Quanta petulância e arrogância são necessárias para que eles possam


escrever sobre algo que nunca experimentaram? Como podem descrever a
dor, a verdadeira dor, sem nunca tê-la sentido?
Não há palavras suficientes para traduzir as nuances sublimes de
algumas sensações. O papel é frio, enquanto o corpo é quente, vivo e
pulsante. Canetas ou teclados não podem substituir o peso gélido de um
revólver, ou a beleza silenciosa e poética de uma lâmina.
Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Vocês
precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos.
Caminho até a sala e cada passo me faz estremecer de prazer, porque
sei que ela pode ouvir a madeira rangendo sob meus pés, ela escuta minha
aproximação. Posso imaginar o suor escorrendo de seu rosto, em gotas,
descendo até seus belos e arredondados seios. Isso me excita.
Não tenho pressa. Quero que ela me veja trabalhar, quero que entenda
por que vai morrer. Quero que ela conheça meu ponto de vista, e saiba que o
que faço é sustentado por motivos sólidos e não por meros caprichos
enlouquecidos.
Ela está imóvel, o pancurônio é maravilhoso, a medicina moderna e
seus feitos milagrosos.
Apenas seus olhos me seguem enquanto ela tenta desesperadamente
falar, provavelmente para implorar pela vida, ou quem sabe para dizer que
eu tenho razão, não há como saber, pois seus lábios frouxos apenas tremem.
Sinto uma forte vontade de beijá-la, mas não seria correto. Qualquer vestígio
deixado para trás poderia trazê-los até mim, e ainda há muito trabalho a
fazer.
Com as grossas cortinas fechadas, a sala está escura. Eu acendo o
abajur. Não quero que ela perca um detalhe sequer. Verifico se está
confortável na cadeira. Creio que sim.
Quando pego a seringa sobre a mesa, vejo imediatamente a reação em
seus olhos. O medo, tão doce e inebriante, alimentando minha alma e
excitando-me profundamente.
-Mantenha essa pose, por favor – eu peço educadamente, enquanto
vou até minhas coisas e pego a câmera.
Aperto o botão e eternizo aquele momento, aquele olhar
amedrontado. Precisarei daquela imagem mais tarde, para quando for
aliviar toda essa tensão sexual.
Aproximo a agulha de sua pele alva, enquanto ela, em vão, luta para
se mexer. O embolo, antes vazio, é inundado pelo vermelho escarlate.
Esvazio o conteúdo em um pote, onde o pincel já esperava pela tinta
especial, sua parceira de trabalho.
Dirijo-me até a parede e começo a escrever o texto. Transcrevo-o
exatamente como está no livro, assim como fiz das outras vezes, exceto pela
palavra que decido esconder, nela reside parte da pista. O convite para que
haja plateia quando eu encenar o “gran finale”.
Certifiquei-me de que ela estivesse sentada de frente para a parede,
apenas para que descobrisse por si mesma qual dos horrores de sua própria
obra seria o eleito para sua punição. É hora de vivenciar sua criação na
própria pele e descobrir se é ou não uma boa escritora. Descobrir se as
palavras que escolheu para seu texto faziam jus à cena que fizera seus
leitores insones passarem noites inteiras debruçados sobre elas.
Mais uma vez a excitação é tamanha que sinto vontade de quebrar
minhas próprias regras. Preciso respirar fundo para manter o controle. Eu
desejo estes lábios, desejo este corpo, mas, acima de tudo, desejo concluir
minha obra.
Pego a caixa preparada de antemão. Conseguir estas coisas não foi
nada fácil, mas tenho a impressão de que valerá a pena.
Usando uma grande pinça, eu pego um daqueles seres odiosos. A
criatura de muitas pernas se contorce sob a pressão do metal. Seu veneno
não é mortal, mas imagino o quanto é doloroso.
Coloco a lacraia frente aos olhos da mulher. Permito que o terror
flua de seu corpo diretamente para o meu, alimentando-me. Seu olhar
implora, suplica, e tudo o que consegue é me divertir e excitar ainda mais.
Ela sabe o que vem a seguir, como poderia não saber, se tudo isso foi
idealizado por ela?
Aproximo o inseto de seu ouvido, permito que toque sua pele com as
múltiplas patas asquerosas. Vejo a respiração dela se tornar cada vez mais
ofegante. Um sibilo baixinho escapa de sua boca. Todo seu esforço para
gritar resumido a um silvo quase inaudível.
Preciso me segurar, minhas mãos tremem ligeiramente de excitação.
Estou quase atingindo o clímax e ainda há tanto por fazer.
Respiro fundo e me concentro em meu mantra.
Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Vocês
precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos.
Atiço a criatura para dentro do ouvido. Assim que ela rasteja inteira
para a cavidade. Dez centímetros de tronco, pernas e movimentos que são
contrações nojentas, espasmos. Lacro a entrada com fita adesiva e dou dois
passos para trás, para observar, tentando imaginar o que ela sente.
Tentando imaginar se ela acha que sua descrição foi boa o suficiente ou se
ainda precisa melhorar seu texto. Pena que não terá essa oportunidade.
Repito o processo do outro lado. Não tenho pressa alguma. Cada
segundo daquilo me aproxima do paraíso.
Quando lembro que precisarei fazer alguns ajustes em relação à obra
original, sinto uma ligeira contrariedade, mas não há outra forma de fazer,
então...
Pego a pistola 9 milímetros e a prendo às suas mãos com bastante
fita adesiva, apenas seu dedo indicador fica livre, diante do gatilho, embora
ela não possa mexê-lo por causa da droga. Passo mais fita ao redor de sua
cabeça e das mãos, de modo que a arma se sustente diante da boca.
No livro, a vítima dá fim à agonia disparando dentro da própria
boca.
Eu adoraria vê-la fazendo isso enquanto me masturbasse diante de
seus olhos, que agora reviram nas órbitas, enlouquecidos pela dor, mas nem
uma coisa, nem outra, eram possíveis. Por causa do pancurônio terei eu
mesmo de puxar o gatilho, e meu tesão acumulado terá de esperar até que eu
esteja em casa.
Pressiono meu dedo enluvado sobre o dela, lentamente. O gatilho vai
curvando-se, rendendo-se milímetro a milímetro enquanto tento descobrir se
seus olhos esbugalhados e lacrimejantes indicam terror ou alívio. O disparo
foi esplêndido, maravilhoso. O jato de sangue e miolos que se desenhou no
ar era uma obra prima. O click do gatilho e o barulho seco do silenciador
foram como música para os meus ouvidos. Como se a cena fosse um quadro
de Van Gogh, pintado ao som de Mozart.
Estava feito. Restava limpar a bagunça. Eu tinha tempo e sabia
exatamente o que fazer.
Peguei meu celular, pluguei o fone de ouvidos e selecionei a música
que eu reservava para aqueles momentos de celebração.
Primeiro o barulho da chuva, depois o teclado, o baixo e a bateria.
Suaves, penetrantes.

Riders on the storm


Riders on the storm

A voz de Morrison era uma benção.

Into this house we're born


Into this world we're thrown
Like a dog without a bone
An actor out on loan
Riders on the storm

Coloco as pilhas no aspirador de pó portátil, enquanto canto


baixinho. Nunca se deve guardar um aparelho sem antes remover as pilhas.
Cresci ouvindo meu pai repetir aquela frase.

There's a killer on the road


His brain is squirming like a toad
Take a long holiday
Let your children play

Eu coloquei a touca apenas depois de entrar no apartamento, então


preciso procurar por qualquer fio de cabelo no caminho da entrada até aqui.
Não há problema, tenho tempo de sobra.

If you give this man a ride


Sweet family will die
Killer on the road, yeah
Girl you gotta love your man

Agora devo me concentrar nas digitais, tudo o que toquei antes de


colocar as luvas deve ser limpo meticulosamente. Com calma e paciência.

Take him by the hand


Make him understand
The world on you depends
Our life will never end
Gotta love your man, yeah
Riders on the storm

Quando termino, minha vontade não é de ir embora. Quero ficar ali


por mais tempo, absorvendo a atmosfera daquele lugar. Sorvendo o cheiro
da morte e a sensação plena de missão cumprida, mas tudo o que é bom
realmente dura pouco, e preciso ir, passar por aquela porta e voltar a ser a
pessoa desinteressante que habita o mundo lá de fora.
Capítulo 9
O hospital estava lotado de estudantes de medicina e, embora Pedro
não gostasse de ficar bancando a babá, dessa vez relevou, afinal o grupo era
formado em sua maioria por belas universitárias que se impressionavam
facilmente, não apenas com suas habilidades e conhecimento, mas com seus
belos olhos azuis.
A noite não estava tão movimentada quanto de costume, e ele se
permitiu alguns minutos de descanso após a cirurgia de hérnia bem-sucedida
que tinha chefiado, diante dos olhares atentos dos estudantes. Um
procedimento simples e rotineiro, o que não tinha impedido seu paciente de
chorar, implorando para ser apagado rapidamente pela anestesia.
Sentado no refeitório, afastado dos demais médicos e enfermeiras,
Pedro tentava se concentrar na reportagem exibida no Jornal Nacional.

“... já são três mortos ao longo de pouco mais de vinte dias – dizia o
âncora de cabelos grisalhos – e a polícia segue sem apresentar suspeitos.”
Sua parceira tomou a palavra, enquanto o jogo treinado das câmeras
focou no rosto sério da bela jornalista.
“A mente doentia por trás destes crimes, que escolhe como vítimas
apenas escritores de livros policiais, segue aterrorizando e alcançando
notoriedade, o que aumenta a pressão sobre o departamento de polícia...”

Pedro se levantou e deixou o refeitório sem ser notado. Não tinha


muitos amigos no hospital. Não era bom em fazê-los.
Era noite de terça e seu turno estava terminando, restava esperar por
Fernanda para seguirem para o encontro com Luís e os outros.
Ela não costumava se atrasar, então ele voltou para o consultório e
começou a arrumar suas coisas, guardando os objetos pessoais dentro da
mochila.
Estava tão concentrado que Fernanda precisou pigarrear alto para fazer-
se ouvir.
-Oi, Nanda, eu estava distraído.
A moça entrou na sala, já tinha trocado o uniforme monocromático de
enfermeira. Usava uma saia justa, um palmo acima dos joelhos, e uma
camiseta com decote modesto. Os cabelos ruivos estavam amarrados em um
rabo-de-cavalo, deixando à mostra o pescoço alvo e o princípio de uma de
suas muitas tatuagens.
Ela se virou para a porta e girou a chave. O clique ressoou no silêncio
da sala. Um anúncio impossível de ignorar. Um convite que não precisava de
palavras. Pedro parou o que estava fazendo e em um segundo sua atenção
estava completamente voltada para a mulher à sua frente.
-Não temos muito tempo – disse ela.
-Eu sei. Sejamos breves.
Ele pegou Fernanda pela cintura e a sentou sobre a mesa, espalhando
formulários de atestados e prontuários, canetas e carimbos. As mãos ávidas e
treinadas do médico fizeram a calcinha da mulher deslizar pelas pernas, que
se abriram sem esperar convite.
Eles se beijavam com ânsia e entrega. As mãos dele se perdiam no
peito de Fernanda, enquanto os dedos delicados da mulher buscavam o
membro de Pedro sob os panos de sua calça.
Em segundos, os seios de Fernanda, desnudados às pressas pelo médico
sedento, preenchiam-lhe a boca, que os chupava, lambia e mordia com
sofreguidão apaixonada. A rigidez dos mamilos, endurecidos pela excitação e
pelo frio invernal, acentuavam o tesão que Pedro sentia dominá-lo,
entorpecendo seus pensamentos e nublando sua visão.
Após vencer a luta contra botões e zíper, Fernanda finalmente pôde
sentir o pênis duro e rígido em suas mãos. Ela o conduziu para dentro de si.
Pela pulsação descontrolada do membro e pela excitação provocada pelo
local proibido, ela sabia que ele terminaria rápido, como deveria ser.
A primeira penetração foi bruta. A umidade entre as pernas de
Fernanda era convidativa demais. Ele não conseguia se conter e seguia dando
estocadas poderosas e ritmadas, enquanto ela se esforçava para manter os
gemidos aprisionados dentro da boca.
Quando ele se afastou, ela quis implorar para que ele voltasse para
dentro dela. Seu corpo fervilhava de prazer, ansiava por uma nova rodada.
Com firmeza, Pedro a virou de costas e a fez dobrar-se. A mão direita
como uma prensa no longilíneo pescoço feminino, forçando seu rosto de
encontro à mesa. Os seios quentes sobre o acrílico gelado a fizeram gemer.
Quando foi penetrada novamente, Fernanda precisou se segurar para
não gritar. Travou os dentes e cerrou os punhos mediante a violência
frenética de Pedro. Suas pernas bambas lhe falharam e foram unicamente as
pernas da mesa que a mantiveram de pé.
Ela podia sentir que ele estava terminando, e aquilo a excitava ainda
mais. Seu clímax também estava próximo. Ela duvidava que Bárbara fosse
capaz de fazê-lo gozar tão rápido. Só de pensar naquilo, sentiu o corpo
estremecer.
“Não posso gritar. Não posso gritar”. Aquele se tornou o único
pensamento em sua mente e, quando ela sentiu o líquido quente a invadindo,
prova máxima de quanto ele a desejava, não conseguiu mais se conter,
explodindo em um orgasmo profundo, que se espalhava por todo seu corpo
em espasmos vibrantes, fazendo-a se contorcer sob o peso de Pedro, que se
deitara sobre ela, derrotado e ao mesmo tempo vitorioso.
***
Quando Pedro e Fernanda chegaram à livraria, recebidos pelo som
agradável do sinete sobre a porta, todos já estavam por ali, coube ao cirurgião
virar a placa de “fechado”.
Pedro foi até sua namorada e a beijou de forma carinhosa. Os
cumprimentos foram breves, pois a discussão sobre o livro proposto por
Bernardo seguia acalorada. Nenhum deles gostava de política, mas a leitura
da obra “Um País Sem Excelências e Mordomias” tinha lhes aguçado a
mente para aquele assunto.
Enquanto Luís afirmava que as proporções de um país como a Suécia,
do tamanho de um estado brasileiro, facilitavam a legislação, Bernardo
afirmava que aquilo não era desculpa, e que a brandura das leis era sim a
grande culpada pela maior parte dos problemas do país.
-Nada mais encorajador do que a certeza da impunidade – filosofou ele.
-Eu concordo plenamente – endossou Pedro.
-Não podemos mais nos contentar com o rouba, mas faz – começou
Bárbara – até porque ninguém mais faz, do contrário não estaríamos
vivenciando uma crise econômica tão grande. Quem de nós aqui hoje pode
dizer que não tem amigos desempregados?
A resposta foi o silêncio, pontuado apenas pelos murmúrios de
aprovação.
-E por falar nisso, você disse que tinha mais demissões a fazer - disse
Pedro acariciando o pescoço da namorada.
-Sim, e foi terrível. Estou começando a pensar que não sirvo para esse
meio. Entrar naquela sala e encarar pessoas honestas e trabalhadoras para lhes
dizer que o emprego pelo qual lutaram tanto para manter não lhes pertence
mais é...
Ela precisou limpar as lágrimas que ameaçavam desprenderem-se nos
cantos dos olhos.
-Pessoal, acho que já chega deste assunto. Por que não deixamos a
política de lado e partimos para a escolha do próximo livro? – propôs Luís,
sensibilizado pela fragilidade da amiga. Ele queria se levantar e abraçá-la,
mas Pedro, seu zeloso namorado, já tinha cuidado daquilo.
-Pelas minhas contas, é minha vez de escolher – Fernanda também
direcionava seu carinho à Barbara, envolvendo as mãos da moça com as suas.
-Amiga, nada de suspense ou terror dessa vez, por favor. O que você
acha de Rosamund Pilcher ou Nora Roberts?
-Barbie, você sabe que eu te amo, mas não vai rolar – respondeu a ruiva
– eu proponho “Sob a Redoma”, do King.
-Não, Nanda. Outro, por favor, todos nós já assistimos à série de TV –
protestou Bernardo – ler após já ter assistido é terrível, não há mais nada a
imaginar, e os atores ficam marcados em nossas mentes. Todas as vezes que
eu abrir o livro, vou dar de cara com aquele loiro musculoso, sarado, lindo,
de olhos azuis...
Todos riram. Bernardo e seu poder de quebrar a tensão, levando todos
às gargalhadas espontâneas.
-Bem, o personagem principal do livro se chama Dale Barbara, então
podem encarar isso como uma homenagem à minha melhor amiga – disse
Fernanda, acariciando o rosto de Bárbara.
-Eu gostei da escolha – disse Pedro – o livro basicamente fala sobre os
instintos humanos. Sobrevivência, ganância, capacidade de adaptação e
liderança.
-Até que a merda é jogada no ventilador e as pessoas começam a
morrer – concluiu Luís.
-Exatamente, até porque o livro precisa de diversão – rebateu Pedro.
-Nanda, esse livro é enorme. Vamos levar um mês inteiro para terminá-
lo – argumentou Bárbara em um último esforço.
-Sinto muito, amiga. Aceite minha homenagem sem mais protestos.
As conversas seguiram ao sabor do vinho tinto português que Bárbara
comprou a caminho dali, mas nem mesmo o calor da forte bebida de cunho
amadeirado foi capaz de esquentar a conversa depois que ela se enveredou
para o caso dos escritores mortos.
-Eu nunca havia lido essa autora – afirmou Bárbara.
-Sério? Você nunca leu o livro da Cléo Junqueira? – Bernardo fazia
cara de quem contemplava o impossível.
-Eu também não – endossou Pedro.
-A Barbie eu entendo. Estamos falando de três autores de livros policias
que são bem barra pesada, e nós sabemos que ela gosta é desses romances de
água com açúcar, mas você, Pedro? Por onde você andou nos últimos anos,
cara?
-Andei por Nárnia, Westeros, Terra Média, mas posso dizer que passei
minhas melhores horas na taverna Marco do Percurso. Estou focado na
fantasia, meu amigo, e esse tal Rothfuss escreve como ninguém.
-Enfim – continuou Bernardo – a polícia não revelou como Cléo
Junqueira foi morta, mas se eu fosse o assassino...
-Ai, Bernardo, precisa falar assim? – queixou-se Bárbara, que foi
imediatamente envolvida por um abraço ainda mais apertado do namorado.
-Ué, todos aqui sabem que não sou um assassino, até porque, jogar a
culpa de tudo no negão já é um clichê bem ultrapassado. Pois bem, eu
acredito que de todas as torturas realizadas no livro, a de colocar lacraias
vivas nos ouvidos da vítima e deixar que ela se suicide para dar fim à agonia
é com certeza a pior. Em breve a polícia deve revelar como a coisa foi feita,
podíamos fazer um bolão.
-Que ideia absurda, cara, até eu estou ficando com medo de você –
protestou Luís.
-Não acredito que vocês não estão nem aí para esses crimes. Estamos
falando do caso mais comentado na história do cenário criminal brasileiro.
Não se fala em outra coisa – seguiu Bernardo.
-Nós estamos acompanhando – falou Bárbara – apenas não
compartilhamos do seu prazer mórbido pela coisa.
-Se me lembro bem, tem coisas piores do que as lacraias nesse livro –
pontuou Luís.
-Sim, coisas brutas e violentas, membros cerrados e muito sangue, mas
pense no lado psicológico. Você está amarrado e essas coisas estão
caminhando dentro da sua cabeça, forçando passagem por seus tímpanos,
mordendo e destilando um veneno doloroso. A única parte do corpo que você
é capaz de mover, em meio às amarras, é o dedo indicador, que está sobre o
gatilho de uma arma apontada para sua boca, e que é a única maneira de dar
fim à agonia. Não consigo imaginar coisa pior.
-E graças a você, Bernardo, agora eu também não consigo – protestou
Bárbara.
-Acho que eu também não – endossou Fernanda – e olha que a
narrativa do livro não me assustou tanto quanto suas palavras e esse olhar de
maníaco que você ficou fazendo. Se eu não soubesse que você é um frouxo,
eu ficaria preocupada
-Frouxo? Eu? Luís, você pode nos emprestar seu quarto por alguns
minutos para eu mostrar uma coisa para essa menina?
-Sem chances. Minha cama está muito bem arrumada. Vão procurar um
beco lá fora para resolverem suas diferenças. Os cães da vizinhança
costumam usar aquele ao lado da casa da dona Eulália.
Todos riram e o clima de diversão voltou a reinar até altas horas da
madrugada.

***

O dia raiou surpreendentemente ensolarado. A neblina rasteira, que nos


últimos dias vinha fazendo um costumeiro passeio matinal pelas ruas do
bairro, decidiu não aparecer, e quando Fernanda tocou a campainha, Luís já
estava de pé e pronto para sair.
-Bom dia – disse ela de dentro de suas roupas de academia.
-Bom dia – Luís a beijou de leve no rosto.
Seguiram juntos até a casa de Pedro. No caminho, os gritos de uma
menina chamaram a atenção dos dois.
Bianca e seu namorado discutiam. A garota estava de costas para um
muro, acuada. Ela dizia em alto e bom som que não queria ter mais nada com
o rapaz.
-Você não pode terminar assim comigo, sem motivos – ele gritava de
volta – eu amo você!
Ela tentou forçar sua passagem ao redor do garoto, mas ele a segurou
com força e a fez bater as costas contra o muro.
-Espere um minuto – Luís deixou Fernanda e foi até o casal.
-Me deixe ir, acabou – falava Bianca.
-Acho que você deveria fazer o que ela diz – falou Luís com firmeza.
-Não se mete, cara.
A inesperada audácia do adolescente fez o livreiro sorrir, como quem
não acredita.
Luís era alto e forte, o tempo de academia lhe garantira um físico
imponente, e o adolescente, mesmo irado, começava a perceber que poderia
se dar mal.
-Não vou falar de novo. Solte o braço da Bianca, agora!
Com cara de poucos amigos, o garoto a libertou e seguiu seu caminho,
chutando furiosamente as pedras que encontrava pela rua.
Bianca, que tinha lágrimas nos olhos, se lançou em um abraço apertado
contra seu salvador.
-Você está bem? Ele machucou você?
-Eu estou bem. É agora que eu digo, meu herói, e você beija a minha
boca?
-Bianca, sem brincadeiras, esse cara estava furioso com você. Existe
alguma chance de ele te procurar e tentar te machucar?
-Acho que não. Ele é uma boa pessoa, logo ele vai entender que
acabou.
-E por que você terminou? Até poucos dias atrás você parecia tão
apaixonada.
-Sei lá, talvez eu esteja gostando de outro cara – disse, encarando Luís
no fundo de seus olhos.
Ele respirou fundo, colocou as mãos na cintura com a postura de um pai
preocupado.
-Você vai chegar atrasada na escola. Tenta não ficar perambulando
sozinha por aí.
-Ok. Obrigada – ela ficou na ponta dos pés e o beijou no rosto de forma
carinhosa.
De volta ao caminho para a casa de Pedro, Luís se antecipou à amiga.
-Nada de brincadeiras, por favor.
-Eu não ia dizer nada – falou Fernanda, mas a forma como ela sorria era
o suficiente.
-Para com isso, Nanda!
-O que foi? Eu não disse nada.
-Mas você tá com essa cara de idiota, doida pra fazer algum comentário
imbecil. Eu não tenho nada com a menina.
-Se ela já estava apaixonada por você antes, depois dessa...
-Já chega!
Eles chegaram à casa de Pedro e bateram na porta. O amigo os recebeu
ainda de pijamas.
-Bom dia. Como vocês conseguem ficar prontos tão cedo? A que horas
nós saímos de sua casa ontem? Aquilo foi praticamente alguns instantes atrás
– protestou abrindo passagem para os amigos.
-É tudo graças a um invento miraculoso que você devia conhecer, é
chamado despertador. Você devia pesquisar no Google – rebateu Fernanda.
-Podem ficar à vontade, vou subir e me trocar. E, por favor, não
baguncem os livros – logo os passos dele foram ouvidos na madeira que
rangia nas escadas.
-Ficar à vontade nessa casa só pode significar uma coisa, fuçar essas
estantes maravilhosas, cheias de raridades – falou Fernanda.
-Estou completamente de acordo.
Eles seguiram para cantos opostos, retirando um livro aqui e outro ali.
-Você já tinha visto este? – Luís foi até ela segurando um exemplar
muito antigo de “O Paraíso Perdido”.
-Sim, os pais do Pedro pagaram uma fortuna por este livro.
-Eu não sabia dessa.
-Que estranho – Fernanda chamou a atenção de Luís - o Pedro é o
cara mais organizado do mundo com seus livros, mas a coleção do Sherlock
Holmes está completamente fora de ordem.
-Vamos organizar antes que ele perceba e tenha um ataque cardíaco,
logo depois de acusar nós dois pela bagunça – propôs Luís.
-Você tem razão, aposto que o Bernardo fez isso de propósito de
novo, apenas para ver o Pedro se descabelar como da última vez.
Os dois riram.
-Aquilo foi bem engraçado – disse Luís, lembrando-se da ocasião.
-Parece que dessa vez nosso amigo zombeteiro fez pior. Tem uns
livros caídos lá atrás – o livreiro enfiou a mão no vão entre as obras
removidas. Quando retirou o exemplar que estava caído no fundo da estante,
viu que era o “Antes do meio-dia”, de Átila Fernandes.
Ele folheou o livro rapidamente e uma página lhe saltou aos olhos.
Havia uma marcação em vermelho. Ele voltou até a página e correu os olhos
pelas linhas grifadas. Para seu espanto, era exatamente o texto que Bernardo
descobrira na internet como sendo o que o assassino escreveu com sangue na
parede da sala de Átila Fernandes.
-Meu Deus – falou Fernanda.
-O Pedro disse pra gente que não tinha lido esse livro.
Luís enfiou a mão novamente no fundo da estante que ficava sob a
escada, e, das entranhas da escuridão, trouxe à luz um exemplar de “O
Enfermeiro”, de Natália Brummer, e outro de “Eu Desejo Morrer”, de Cléo
Junqueira. Folheando rapidamente e com as mãos trêmulas, os amigos
encontraram novos trechos grifados, ao mesmo tempo em que ouviram os
passos no corredor acima de suas cabeças.
Eles olharam um para o outro, não sabiam o que fazer. Os livros em
suas mãos pesavam como chumbo.
Com um acordo silencioso, eles voltaram os livros para a escuridão do
fundo da estante. Os passos de Pedro se aproximavam. O primeiro degrau da
escada estalou.
Fernanda, com as mãos trêmulas, deixou cair uma das obras de Arthur
Conan Doyle. Ela olhou para baixo sem coragem de se abaixar para pegar, as
pernas bambas. Pedro estava no meio da escada, em segundos os veria
mexendo ali.
-Mas que merda! – exclamou o cirurgião, e ambos se viraram
assustados, Watson e Holmes pesando em suas mãos desajeitadas – esqueci
meu fone de ouvidos – subiu novamente as escadas e seus passos foram
ouvidos se distanciando.
Ambos respiraram profundamente, como se emergindo de uma piscina
gelada.
Eles recolocaram os livros no lugar na ordem correta e se afastaram
como se estivessem diante dos portões do inferno.
Pedro voltou em instantes.
-Ei, pessoal, o que vocês pensam que estão fazendo? – perguntou ele, e
parecia zangado.
O terror recém-afastado pronunciando-se novamente.
-É... – tentou Luís.
-Nós... – Fernanda também falhou.
-Vocês sabem que meus pais pagaram a maior grana por esse livro e o
deixam jogado no chão? – ele apontou para “O Paraíso Perdido”, que caíra no
meio da confusão de mãos que pareciam de borracha.
-Me desculpa, cara, escapou da minha mão – disse Luís, aturdido
demais para sentir-se aliviado.
-E você não pensava em apanhá-lo?
-Acho que estou meio lento hoje – justificou-se Luís, lutando contra o
torpor.
Outra batida na porta. Bernardo esperava por eles.
-Vamos?
-Sim – responderam Fernanda e Luís ao mesmo tempo,
verdadeiramente ansiosos por sair dali.
Antes de fechar a porta, Pedro voltou seu olhar para o interior da sala.
Tudo em ordem.

Capítulo 10

Quando Fred pisou na sala do juiz Carlos de Alcântara, o cheiro forte


de madeira envernizada fez seu estômago embrulhar. Ou talvez fosse apenas
a lembrança das palavras de Romero Garcia ecoando em sua mente, uma
merda qualquer sobre quanto ganhavam seus advogados e sobre esquemas
corruptos de propina.
Fred e Elis foram se juntar ao superintendente Maciel e ao promotor de
justiça Roberto Oliveira, que estavam de pé do lado esquerdo da sala,
enquanto do outro lado Romero fazia questão de sorrir para Fred. O
empresário estava acompanhado de seu advogado, cujo terno, o detetive
calculou, deveria custar cinco vezes o seu salário, isso sem contar a gravata,
os sapatos e abotoaduras.
Apenas depois que o juiz Carlos de Alcântara entrou na sala, e tomou
seu assento, munido de ar senhorial, foi que todos se sentaram, exceto os
detetives, para os quais faltavam cadeiras. O promotor Roberto tinha
explicado seu plano de antemão aos policiais. Infelizmente não havia atalhos
e soluções milagrosas, mas ele tinha certeza de que poderia dar um jeito de
conseguir forçar um acordo com Romero.
Conseguir aquela audiência privada era o primeiro passo na tentativa
de convencer o juiz a expedir uma ordem intimando a diretoria do
meuidolo.com a entregar os dados do suspeito.
Eles com certeza se recusariam e isso resultaria em apelações e
recursos, até que a coisa se arrastasse para os tribunais, um processo deveras
moroso, mas tido como último recurso.
Quando o circo estivesse armado, com direito a pipoca e refrigerante,
mediante a imensurável notoriedade do caso, que seria acompanhado como
final de copa do mundo, seria impossível para Romero impedir a
popularidade negativa que se atrelaria ao seu site.
Roberto contava com essa estratégia para fazê-los recuar dentro dos
termos de um acordo sigiloso, que não ferisse a imagem do site. Mas o fato
com o qual o promotor não contava era a ligação que recebeu dez minutos
após ter conseguido que o juiz Alcântara o encaixasse em sua apertada
agenda.
Sua secretária avisou, antes de passar a ligação, que a chamada vinha
do maior escritório de advocacia da cidade.
-Boa tarde, Roberto – a voz do outro lado da linha era suave e tranquila.
-Quem está falando?
-Não se lembra de mim, seu amigo, Ézio Lombardi?
Imediatamente Roberto soube do que se tratava. Seu plano tinha sido
descoberto.
-Ézio...
-Você precisa fazer melhor do que isso, Roberto. Tentando agir pelas
costas do meu cliente, isso é muito baixo, até mesmo pra você.
-Esta é uma manobra comum e completamente legal – justificou-se o
promotor.
-Sim, mas claro que é. Tanto é legal que eu e meu cliente também
estaremos presentes. Será um imenso prazer vê-lo novamente.
-Como você soube? – perguntou o promotor – E tão rápido –
completou em pensamento, mas sua pergunta foi ignorada.
-Vejo você na aconchegante sala do juiz Alcântara. Um abraço,
Roberto, e veja se dessa vez escolhe um terno melhor. O último tinha cheiro
de naftalina.
Roberto bateu o telefone com tanta força que uma rachadura se
desenhou nas costas do aparelho.
-Boa tarde, senhores – começou o juiz, conhecido por sua impaciência
e firmeza – saibam que meu tempo é curto e precioso, portanto, não o
desperdicem e vão direto ao ponto. Você começa, Roberto, afinal, foi você
quem solicitou esta audiência.
-Obrigado. O meritíssimo com certeza está familiarizado com o caso do
assassino de escritores. A investigação do superintendente Maciel e sua
equipe esbarrou em um ponto comum que liga as três vítimas. Todas
receberam ameaças de uma pessoa que se esconde atrás do nome Baltazar,
que acreditamos ser apenas um codinome. No primeiro e no terceiro caso, as
ameaças feitas por e-mail são irrastreáveis, mas, no segundo, a vítima, Átila
Fernandes, era cliente do site meuidolo.com, através do qual recebeu ameaças
de um usuário com o mesmo codinome. O meritíssimo pode ler aqui os
trechos transcritos das trocas de mensagens entre vítima e suspeito – Roberto
colocou os papéis sobre a mesa do juiz, que imediatamente se pôs a ler.
-O que viemos solicitar é a quebra do sigilo dos dados pessoais deste
usuário, meritíssimo – concluiu o promotor.
Após pensar um pouco sobre a questão, o juiz respondeu.
-Me parece um pouco imprudente que um assassino se cadastre em um
site no qual seja obrigatória a comprovação de seus dados.
O juiz, homem de expressão vivaz, que aparentava ser mais jovem do
que os sessenta anos que tinha, ergueu os olhos castanhos dos papéis e
encarou o promotor, a fama de impaciente traduzia-se em sua linguagem
corporal, de movimentos curtos e ágeis.
-Os detetives envolvidos no caso, ao traçar o perfil do criminoso,
chegaram à conclusão de que ele se sente compelido a comunicar-se com as
vítimas. Ele precisa se fazer ouvir e anseia por este contato, antes de partir
para o derradeiro ataque – justificou Roberto.
-Você ainda não me convenceu – disse o juiz – não vejo um assassino
calculista deixando um rastro como esse.
-Acontece que nos contratos assinados pelos clientes do meuidolo.com
há uma cláusula que os proíbe de se comunicarem com o público por meios
digitais que não sejam os disponibilizados pelo próprio site. De posse deste
conhecimento, e cego por sua compulsão, além da propaganda exagerada da
empresa sobre o sigilo que deita sobre seus usuários, acreditamos que este
psicopata tenha sido encorajado a se aventurar, assumindo que corria um
risco quase nulo.
-Entendo, pois bem, senhor Lombardi, senhor Garcia, eu gostaria de
saber por que não devo expedir agora mesmo uma ordem para que entreguem
para a polícia os dados solicitados.
Até então, advogado e cliente tinham assistido a tudo com expressão
tranquila e divertida, e mesmo às costas dos dois, Fred podia imaginar o par
de sorrisos cínicos que faziam pouco do esforço do promotor.
-Meritíssimo – começou Ézio Lombardi – antes de fazer a defesa do
meu cliente, eu poderia fazer uma análise pessoal sobre este caso?
-Desde que seja breve.
-Pois bem, me parece óbvio que o departamento de polícia, mediante à
imensa pressão que vem sofrendo por não ter suspeitos ou provas aceitáveis,
algo que é exclusivamente fruto de sua incompetência...
-Meritíssimo, eu protesto! – falou Roberto levantando-se da cadeira.
Uma veia solitária saltou na têmpora de Maciel. Elis e Fred se mexeram,
inquietos. Aquele tinha sido um tapa que esbofeteava todos ao mesmo tempo.
-Não estamos em um tribunal, Roberto, guarde seu protesto e deixe o
homem terminar de falar, exatamente como ele fez a seu favor.
O promotor voltou a se encolher na cadeira, enquanto Lombardi
retomava a palavra.
-Sinto-me na obrigação de dizer que esta é apenas uma manipulação
ordinária e desesperada, que visa estampar os jornais com algo mais do que
as desculpas esfarrapadas de sempre, por não terem absolutamente nada a
apresentar sobre o terrível assassino que vem cometendo estes crimes
bárbaros.
-Sua observação audaciosa foi registrada, Ézio, agora prossiga
imediatamente para sua defesa – falou o juiz.
-Sim, meritíssimo. Preciso começar explicando o funcionamento da
empresa do meu cliente. O site meuidolo.com é uma ponte que liga fãs e
ídolos, aproximando-os de uma forma que é lucrativa para ambos. Os fãs
pagam uma quantia mensal para terem acesso aos ídolos, que recebem um
bom dinheiro para lhes dar algumas horas de atenção.
-O primeiro motivo pelo qual acredito que tal ordem seria arbitrária
consta no parágrafo quarto, da sétima página do contrato assinado pelo
próprio Átila Fernandes – Ézio depositou o contrato original sobre a mesa.
-Como o meritíssimo pode ver, Átila Fernandes estava ciente de que
estaria sujeito a receber desde críticas elogiosas a ameaças verbais, e que, ao
assinar este contrato, estaria não apenas eximindo a empresa de Romero
Garcia de qualquer responsabilidade quanto a fãs irritados, mas também
desobrigando-o de revelar qualquer dado pessoal sobre as pessoas com as
quais ele se relacionaria dentro das dependências virtuais do site. Claro que a
generosa quantia citada na página nove era um bom motivo para que o senhor
Fernandes concordasse com estes termos.
-Mas que merda – murmurou Fred no ouvido de Elis – esses
desgraçados vão acabar se safando.
-Tenha fé – respondeu ela no mesmo tom.
Fé? – pensava ele – Você quer mesmo pedir isso logo para mim?
-O contrato é mesmo muito claro quanto a isso – concordou o juiz.
-Trocando em miúdos, o que quero dizer é que todos os clientes do site
estão cientes do que estão assinando. O segundo ponto é que a empresa de
Romero Garcia é um negócio completamente limpo, com todos seus impostos
pagos em dia, e não há mácula alguma em seus processos administrativos que
possa dizer o contrário. Além disso, eu gostaria que o meritíssimo desse uma
olhada nestes números – colocou outro papel sobre a mesa – é toda a
contribuição que a empresa do meu cliente tem para com diversas obras
beneficentes nesta cidade.
-Meritíssimo, este é um fato completamente irrelevante – protestou o
promotor.
Ézio sorriu para Roberto, que estava uma pilha de nervos.
-Vou lhes explicar por que este fato não é irrelevante. Estamos falando
de uma empresa que movimenta milhões de reais por ano, em uma economia
que se afunda cada vez mais na atual crise financeira do país – a entonação de
Ézio era de um orador profissional, que manipula as palavras como quem
nasceu para isso – estamos falando de uma empresa que, além de gerar
empregos, tem um forte cunho de responsabilidade social, mas tudo isso não
poderia ter sido alcançado sem a confiança de seus investidores, anunciantes
e, principalmente, clientes, que se afastarão do site imediatamente ao saberem
que não estão protegidos, pois o sigilo é tudo neste negócio. Eu preciso que o
meritíssimo tenha em mente que a pessoa por trás destes crimes não é
Romero Garcia, que é nada mais que um cidadão honrado e fiel pilar desta
sociedade, ele e sua empresa não podem ser punidos e prejudicados pelos
crimes de outra pessoa...

-Acho que já chega disso – falou Fred, puxando Elis para fora da sala –
vamos embora, isso é perda de tempo.
-Espere, Fred, ainda não acabou.
-Você não consegue enxergar o jogo de cartas marcadas? Isso aí não
vai dar em nada.
-Se nós desistirmos, aquele cara vai sair por cima.
-O problema é que ele tinha razão, o maldito Romero tinha razão, esta
era uma batalha perdida desde o princípio, e por pior que seja admitir, o tal
Ézio também tem razão. Nós não temos nada, estamos nos agarrando ao
vento, é isso o que estamos fazendo.
Fred caminhou a esmo pelo corredor, os sapatos se arrastando pelo
chão acarpetado. Os rostos emoldurados nos quadros nas paredes, de juízes e
advogados que atuavam no prédio, pareciam zombar dele. A vontade do
detetive era de esmurrar cada um deles, arrancando os sorrisos aquarelados
daqueles rostos imortalizados em sua burguesia indiferente.
-Fred... – Elis não sabia o que dizer.
-Eu estou bem, vamos sair daqui. Tem uma coisa sobre a qual quero
falar com você.
Eles se sentaram em um restaurante do outro lado da rua, Elis pediu
uma limonada suíça, enquanto Fred apenas a observava beber.
Às três horas da tarde, o sol era apenas um fantasma grande e gordo,
que mal cumpria seu papel de iluminar, quanto mais de produzir calor. A
tarde fria tinha transformado a rua do bairro de classe alta em um desfile de
elegantes trajes de inverno. As botas caras dos mais variados tipos casavam
com sobretudos, casacos e cachecóis de alta costura.
-Eu vou sair de casa – anunciou Fred, sem preâmbulos. Seu olhar
perscrutador analisando a reação da parceira.
-Fred... se isso tem a ver conosco, eu...
-Não posso dizer que não tenha, como também não posso creditar esta
decisão apenas a seus belos olhos castanhos – ele tentou sorrir.
-Fred, ainda há tempo para você e Sandra. Ainda há formas de vocês
dois colocarem as coisas no lugar.
-Talvez haja, talvez não. Tudo o que sei é que preciso de mais tempo
para me concentrar neste caso. Preciso me entregar de corpo e alma a essa
investigação e não posso fazer isso morando naquela casa e sendo
assombrado por fantasmas do passado e do presente – ele precisou renovar o
fôlego antes de dizer o que ainda precisava - assim como não posso voltar pra
lá todas as noites, depois de passar o dia inteiro ao seu lado, fantasiando
sobre como seria...
-Fred, não, por favor.
Elis respirou fundo, sua mão deslizou sobre a mesa e encontrou os
dedos calejados do detetive.
-Nós precisamos de tempo, este não é o momento para pensarmos
nisso. Precisamos vencer este desgraçado. Precisamos pegá-lo, e isso vem
antes de tudo.
-Eu acho que você tem razão.
-Como sempre – sorriu ela.
-É. Como sempre.
Capítulo 11

20 anos atrás

-Vocês podem ter ganhado no futebol, mas agora vão tomar uma surra
que jamais vão esquecer – disse o garoto do bairro vizinho. Atrás dele, mais
cinco crianças. Todas vestidas com o uniforme do time, cobertos do barro
que tinha se acumulado no campinho devido às chuvas constantes.
-E então, Luís? Você é muito bom em falar merda dentro do campo,
mas e agora que está com a patinha machucada e não pode correr? Vai fazer
o quê? – perguntou o garoto que claramente liderava os demais. Ele era
grande e forte, estava bem acima do peso e tinha uma expressão cruel.
Luís seguia apoiado nos ombros de Caneta, sua perna estava latejando
após uma pancada durante o jogo. Ele sussurrou para o amigo:
-Vai embora, pode deixar esses idiotas comigo. Sou eu que eles
querem.
Caneta sorriu.
-Você acha mesmo que eu vou te deixar aqui sozinho com esses
imbecis?
-Que foi que você disse aí, loirinho? – gritou o líder do time vizinho –
Parece que a Xuxa tem algo a dizer, e vai ser a última coisa que vai falar com
todos os dentes na boca.
O beco entre o açougue de seu Alcides e a casa de dona Marta era
estreito, e estava cheio de poças imundas, onde sacos de lixo rasgados pelos
cães vadios do bairro vomitavam seus restos podres pelo chão. Os garotos
não estavam cercados, mas com a perna dolorida, Luís não iria muito longe.
-Deixe que eu resolvo isso – falou Caneta, desvencilhando-se do amigo.
-Não! Espere! – pediu Luís, antevendo um massacre.
“No que você está pensando? Negociar com eles? Figurinhas e
chocolates em troca de não levarmos uma surra? Talvez ele tivesse algum
dinheiro no bolso, ele sempre tinha.” – pensou Luís ao ver a expressão
confiante no rosto do amigo, que se lançava ao perigo de peito aberto.
-Você é bom em ameaçar – começou Caneta, apontando para o líder
dos inimigos – mas aposto que nunca fez alguém sangrar de verdade.
Enquanto o gordo pensava em uma resposta que pudesse arrancar
gargalhadas de seus seguidores, Caneta voou sobre ele.
A aproximação foi tão rápida, que antes do garoto entender o que
estava acontecendo, seu nariz quebrado já derramava sangue em jorros. O
soco tinha sido tão veloz e certeiro que o deixou aturdido, sem saber se se
defendia dos próximos ataques ou tentava estancar o sangue que vazava pelas
narinas dilaceradas.
Os demais garotos deram um passo para trás ao ver o líquido vermelho
e pegajoso. Sua valentia repelida pela selvageria de Caneta, que socava e
socava sem parar, todos os golpes no nariz, que agora era apenas uma massa
disforme. Seu punho direito encharcado de sangue e barro. Ele já não tinha
mais a conta de quantos socos tinha dado.
O gordo caiu sentado e Caneta se pôs sobre ele, ainda socando, com
força e violência desmedidas.
Luís olhava para o amigo enquanto calafrios percorriam todo o seu
corpo. Aquele olhar... aquele olhar... ele já o tinha visto antes.
-Ei, cara, acho que já chega – falou um dos garotos, ele tinha os olhos
vítreos, amedrontados, as pernas trêmulas.
-É, cara, desculpa, por favor, deixa a gente levar ele embora – implorou
o outro.
Os outros três já tinham fugido, desaparecendo na curva do beco.
-Desculpar vocês? – Caneta se levantou e encarou os dois. As mãos
pingando sangue e barro – O que eu quero saber é quem será o próximo.
Ele bateu o pé no chão e os dois correram imediatamente. Voltou-se
então para o gordo.
Luís percebeu que o amigo continuaria a espancar o garoto e gritou
desesperado.
-Pedro! Já chega! Ele já teve o que merecia. Vamos embora!
Quando Pedro se virou para ele, com o rosto respingado de sangue e
munido daquele mesmo olhar insano, Luís sentiu as pernas bambearem sob
seu peso. Precisou apoiar-se na parede.
Pedro caminhou de volta para o amigo permitindo que o gordo se
arrastasse para fora do beco, tateando às cegas. Quando apoiou o peso de
Luís novamente sobre seus ombros, ele era nada mais que o velho Caneta,
com a mesma expressão serena que sempre teve.
***

Luís foi trazido de volta de suas lembranças pelo chamado de Bianca.


A garota estava parada diante dele, gesticulando enquanto tentava fazer-se
ouvir.
-Oi, Bianca. Veio avisar que já está indo?
-Sim, chefe. Você estava viajando, tipo, bem longe. Eu chamei várias
vezes. Está com algum problema? – perguntou a garota, que usava uma saia
curtíssima e botas de cano alto.
-Está tudo bem – mentiu ele.
A adolescente caminhou até o corrimão de madeira e se debruçou ali,
observando o piso inferior. Com o movimento, sua saia subiu mais alguns
centímetros e Luís foi arrancado de vez de seus pensamentos.
-Sabe, chefe, eu gosto de trabalhar aqui – disse ela,
despretensiosamente.
Para não precisar mais fitar aquela imagem, Luís levantou de sua
confortável cadeira de leitura e caminhou até a garota, debruçando-se ao seu
lado. A visão que encontrou ali foi ainda pior, os seios amontoados sobre o
corrimão pareciam querer vencer o decote e se libertar. O rapaz desviou o
olhar rapidamente e tentou focar em qualquer outra coisa.
“Literatura estrangeira, literatura nacional, romances policiais,
biografias, história geral...”, deixava sua mente vaguear para onde quer que
os olhos alcançassem, desde que não fosse o corpo de Bianca.
-Acho melhor você ir – sugeriu.
-Sabe, Lu – começou ela, ignorando o pedido do rapaz – acho que
ainda não agradeci o suficiente pelo outro dia. Você foi muito legal comigo,
então pensei em algo especial para agradecer.
-Aquilo não foi nada demais. E por falar nisso, ele tem procurado você?
Tem feito ameaças? – Luís tentava desesperadamente redirecionar aquela
conversa, mas tudo o que retumbava em sua mente eram as palavras “algo
especial”.
-Não. Ele tem se mantido longe.
Ela estendeu a mão e tocou o braço de Luís. Seus lábios estavam
molhados e os olhos verdes brilhavam com intensidade. Os cabelos negros
caíam sobre os ombros com um cheiro convidativo e inebriante.
“Maldita tentação! Como pode ser tão linda?”.
Ele se permitiu mais um olhar para o corpo jovem e atraente. Era
convidativo demais, fácil demais, bastava beijá-la, ela estava esperando.
Nada mais o impedia de levá-la para sua cama apenas a alguns metros dali.
Quantos homens em seu lugar teriam pensado duas vezes antes de se lançar
sobre a adolescente?
A garota se aproximou ainda mais, virou-se para ele e ergueu o rosto.
Não havia mais distância.
-Bianca! Você tem que ir embora, agora! – falou mais alto do que
pretendia.
Ele pegou a garota pelo braço e a conduziu com firmeza até a escada.
-Lu. Eu fiz alguma coisa errada? – a voz doce e inocente, pronunciada
pelos lábios vermelhos e sedentos, o fez estremecer.
-Bianca, por favor.
Ele a ouviu dizer:
-Você não me deseja?
A pergunta o deixou ainda mais excitado, já não podia esconder a
ereção que pulsava entre suas pernas.
Ele respirou fundo e procurou se recompor. Em algum lugar de sua
mente entorpecida pelo desejo, tentava encontrar as palavras certas.
-Não se trata de desejo, trata-se de certo e errado. Bianca, se você não
parar com isso, terei que despedi-la. E não poderemos nem mesmo ser
amigos. É isso que você quer?
-Não.
-Então, por favor – indicou a escada com as mãos.
Luis viu Bianca se distanciar, a garota parecia prestes a se desfazer em
lágrimas. Ele acompanhou a adolescente com os olhos até ela sair e trancar a
porta. Quando o sinete tocou, parecia que era apenas para zombar dele,
chamando-o de frouxo.
Luís largou o corpo pesadamente na cadeira de leitura. Fazendo pressão
contra o encosto de couro, o móvel tombou em posição quase horizontal.
Seus olhos agora miravam o teto. Ele respirou fundo e logo que seu sangue
deixou de ferver nas veias, o problema maior veio à tona.
Bernardo. Ele com certeza saberia o que fazer. Debaixo de todas
aquelas piadas horríveis, habitava uma pessoa absurdamente racional.
Ele pegou o telefone e discou para a casa do amigo.

***
Bernardo morava sozinho há quatro anos. Seus pais eram pessoas
tranquilas e fáceis de lidar, mas o rapaz precisava de espaço. Suas tralhas
eletrônicas viviam espalhadas pela casa e, embora a mãe não fizesse objeção
alguma, ele sentia que era um estorvo maior do que os velhos mereciam
naquela altura de suas vidas. Além do mais, embora seus pais fossem
completamente liberais, ficava cada vez mais estranho levar mulheres para
casa que não representavam nada além de sexo e, no dia seguinte, vê-las
sentadas à mesa do café da manhã, conversando alegremente com seus pais.
Sim, aquele fato fora determinante. Precisava mesmo se mudar.
Em seu novo apartamento, um lugar agradável no centro da cidade,
perto de seu trabalho e de tudo mais o que ele precisava para sobreviver. E
“tudo mais” queria dizer fast food aberto 24 horas, Bernardo era realmente
feliz. Mesmo após quatro anos morando ali, ainda não tinha se acostumado
com a liberdade que tinha.
Sentado de frente para seu PC, ele mal pôde ouvir o telefone tocar na
sala. Estava nu, o membro duro aninhando em uma das mãos, enquanto a
outra fazia o mouse dançar pela tela, fazendo imagens seguirem-se às outras.
Bernardo masturbava-se com volúpia e o ring-ring insistente do
telefone era apenas um estorvo que sua mente tentava ignorar.
Quando o toque cessou, ele já estava quase lá, atingindo o máximo do
clímax, prestes a gozar, mas foi então que seu celular começou a vibrar sobre
a mesa, roubando sua atenção.
-Mas que merda! – exclamou ele. A foto no visor era de Luís olhando
para ele de forma acusadora.
Ele apertou a tecla virtual vermelha, desligando a ligação. Sua
concentração retornou para a tela do computador.
Das caixas de som do PC não saía nenhum áudio. Os gemidos
exaltados tão comuns aos filmes pornôs não pairavam pela sala. Na tela, ao
invés de corpos nus envolvendo-se em cenas tórridas de sexo, o que ele via
eram pessoas mortas.
***

Fernanda atendeu a ligação no segundo toque. Estava passando um


esmalte vermelho nas unhas enquanto assistia TV. O The Voice americano a
deixava vidrada na tela. Além de apreciar o show de talentos, ela achava
Adam Levine, vocalista da banda Maroon Five e jurado do programa, o cara
mais sexy do mundo.
Assim como Pedro, Bernardo e Luís, Fernanda também morava
sozinha. Uma mulher independente que prezava sua liberdade.
Vestida com um aconchegante moletom, ela curtia a noite fria de
inverno no sofá, com chá quente e fumegante, biscoitos e seu programa
favorito.
-Alô – o telefone foi alocado entre o pescoço e o ombro, a fim de ter as
mãos livres para seguir com o esmalte.
-Nanda, é o Luís.
-Quantas vezes eu preciso dizer que sei que é você? Chama-se
identificador de chamadas. Tem até a sua foto com cara de tarado aqui na
tela.
-Nanda, eu preciso falar com você sobre aquilo – disse ele ignorando a
brincadeira.
-Sobre a ninfeta? Você finalmente comeu ela?
-Não! – “Embora hoje tenha sido por um fio. Como ela sempre sabe
dessas coisas?” Luís sorriu nervoso do outro lado da linha.
Ele sabia que Fernanda estava apenas fugindo do assunto, tentando
evitá-lo com suas bobagens.
-Nanda, nós precisamos conversar sobre o que vimos na casa do Pedro.
Ela respirou profundamente e levou muitos segundos para responder,
fazendo a tensão crescer do outro lado da linha.
A moça deixou o esmalte de lado, abaixou o som da TV interrompendo
a interpretação inspirada de uma mulher negra que cantava Aretha Franklin, e
se recostou no sofá. Ainda podia fazer a leitura labial da palavra
R.E.S.P.E.C.T. nos lábios da cantora, enquanto a plateia entusiasmada se
levantava para cantar junto.
-Luís, sinceramente, eu não quero falar sobre isso. Acho que devíamos
esquecer esse assunto.
-Esquecer? Nanda, você estava lá quando ele disse que não tinha lido
aqueles livros, e eles simplesmente aparecem na casa dele? Com textos
marcados nas mesmas páginas usadas pelo assassino de escritores. Como
posso simplesmente ignorar esse fato?
-Lu, você está se precipitando. Eu tenho certeza de que isso é apenas
uma brincadeira idiota do Bernardo.
-Foi a primeira coisa que pensei. Telefonei pra ele e não fui atendido.
-Quer saber, talvez tenha sido melhor assim. Se isso for uma
brincadeira do Bernardo, foi a pior de todas, e ninguém achar esses livros vai
fazer ele quebrar a cara com sua piadinha. Nós colocamos o Sherlock na
ordem correta, o Pedro jamais vai notar aqueles livros, e algum dia o imbecil
do Bernardo vai ter que dar o braço a torcer e se entregar. Vamos deixar isso
pra lá, ok?
-Mas...
-Por favor, Lu, sem mais...
-Nanda, e se o Pedro tem algo a ver com os crimes?
-Muito bem, já chega. Você está indo longe demais.
-Não, espera, você precisa me ouvir. Pense bem. Pelo que foi noticiado,
as vítimas foram drogadas com uma substância específica, vendida apenas
para hospitais e o Pedro... você sabe, ele teria acesso a elas.
-Quantos médicos existem nesta cidade, Luís?
O rapaz ficou em silêncio por alguns instantes.
-Que droga, Lu, minha candidata preferida vai cantar agora. Para com
essa paranoia e me deixa assistir ao meu programa.
-Nanda, tem coisas sobre o passado do Pedro que você não sabe.
Foi a vez da moça silenciar-se.
-Lu, sinceramente, eu nem sei se quero saber.
-Eu tenho convivido com isso por muitos anos, por favor, me deixe
falar. Eu preciso contar para alguém.
Ele narrou todas as ocasiões em que Pedro tinha se transformado em
outra pessoa, com ênfase na surra que aplicou no gordo depois do futebol,
vinte anos atrás, e na cena macabra que encontrou no quarto do amigo, mais
cedo, naquele mesmo dia. As lembranças que já deveriam ter se desbotado
eram mais vívidas do que nunca.
Fernanda ouviu tudo em silêncio, sem interromper uma vez sequer.
Quando Luís terminou, ela não sabia o que dizer.
-Nanda, você ainda está aí? – o silêncio da amiga lhe perturbava e feria
os ouvidos.
-Sim.
-E então?
-Isso tudo não prova nada. É perturbador, mas não é prova de que nosso
amigo seja um psicopata – dizia ela sem muita convicção.
-Nanda, nós temos que fazer alguma coisa.
-Temos? Desculpe-me, Luís, mas vou ficar fora dessa.
-Nanda...
-O que você pretende? Ligar para a polícia?
-Talvez...
Capítulo 12

Fred fechou a porta de sua sala, precisava de privacidade. Pegou o


telefone e discou uma sequência da qual jamais se esqueceria. Quando ele e
Sandra namoravam, a frequência com que se falavam por telefone era tão
grande que os números da casa onde a esposa crescera tinham se enraizado
profundamente em sua memória, para jamais desaparecerem.
O entusiasmo dos dias de namoro era agora apenas uma lembrança
vaga, de uma época em que fora verdadeiramente feliz. O que mais lhe
despertava saudade daqueles tempos era a simplicidade das coisas. A paixão
e o sexo, a conversa e os olhares. Tudo sempre direto e sem melindres,
transparente. “A mulher que amarei para sempre”, mas o rapaz que dissera
aquelas palavras tornara-se um homem calejado, e nem precisava formar-se
detetive para juntar as pistas e descobrir que algumas verdades não são
eternas, e que quaisquer certezas sobre o futuro poderiam facilmente escapar-
lhe por entre os dedos, sopradas pelos ventos zombeteiros do destino.
Os pais de Sandra tinham falecido há alguns anos, e sua irmã, Patrícia,
fora quem ficou com a casa. Ela e Fred sempre tiveram um bom
relacionamento e não havia mais ninguém a quem ele poderia pedir aquele
favor.
Quando a voz feminina lhe saudou do outro lado da linha, Fred quase
desistiu, a mão ameaçando devolver o telefone ao gancho.
-Alô? – ele ouviu pela segunda vez.
-Patrícia, aqui é o Fred. Tudo bem?
-Olá, Fred. Tudo bem, e você, como está?
-Eu acho que poderia estar um pouco melhor – admitiu o detetive.
-Caso complicado?
-Sim, mas não é apenas isso – sua voz era carregada de pesar.
-A Sandra não está bem, não é?
-Não, e a culpa é minha. Quero dizer, nosso filho se foi e como se
apenas isso não bastasse, de lá pra cá tenho sido um péssimo marido. Eu não
consigo mais ser o mesmo com ela. Não consigo me abrir, e também não
consigo consolá-la.
-Fred, eu estive com a Sandra recentemente, nós conversamos
longamente e ela se sente exatamente da mesma forma. Ela chegou até
mesmo a comentar que pensava em se separar para permitir que você vivesse
sua vida. Claro que eu disse que isso era uma bobagem e que você a amava,
enfim, ela se culpa demais pelo que aconteceu com o Gabriel. Eu tenho muito
medo de que ela nunca supere isso.
-Patrícia, eu liguei para dizer que pretendo sair de casa por uns tempos
– ele achou que o melhor era dizer aquilo sem preâmbulos.
-Você quer o divórcio?
-Ainda não sei. Se eu não estivesse trabalhando neste caso tão
complicado...
-O do matador de escritores?
-Sim. Estou dividido e não consigo focar no casamento e tampouco me
dedicar ao caso.
-E você escolheu o caso?
Ele não se defendeu.
-Não estou te julgando Fred. Você tem os seus motivos, mas...
O detetive a interrompeu. Ele precisava dizer aquelas palavras:
-Eu não sei mais o que sinto pela Sandra. Tenho medo de descobrir que
já não a amo.
-Descobrir ou admitir?
A pergunta fez com que o detetive se calasse. O cubículo que era sua
sala tornou-se ainda mais apertado e claustrofóbico. Sentiu-se zonzo e
precisou se sentar, aquilo vinha acontecendo cada vez com mais frequência.
-Eu tentei. Juro que tentei, com todas as minhas forças, mas isso é
maior do que nós dois. Eu preciso permitir que haja uma chance para ambos
recomeçarem.
-Se você está dizendo isso, posso apostar que é porque conheceu
alguém – a voz de Patrícia soou rascante e acusadora.
Mais uma vez ele ficou em silêncio.
-Sério, Fred, então é isso? Você usou esse discurso lindo e bem
treinado sobre seguir em frente apenas para justificar o fato de que anda
pulando a cerca?
-Não, Patrícia! Eu nunca traí a Sandra. Eu jamais faria isso.
-E então?
-Eu gostaria que você pudesse ver o que há entre nós. É um abismo
escuro e profundo. Não sou mais capaz de transpor essa distância. Também já
não sou capaz de seguir com alguém que vive em outro mundo. Eu nunca
pensei que fosse admitir o quão frágil eu sou, mas agora percebo, e muito
claramente. Da mesma forma que preciso constantemente de alguém em
quem me apoiar. Sua irmã precisa de alguém para trazê-la de volta para a luz.
Não estou dizendo que sair de casa é algo definitivo, mas, a princípio, para
poder pensar com clareza e entender melhor como me sinto, é isso o que
preciso fazer. Depois que este maldito caso estiver resolvido, e eu puder
pensar com mais clareza, então poderei me sentar com ela e falar sobre o
futuro do nosso casamento.
-Tudo bem, eu entendo. O que você quer de mim?
-Preciso que passe uns dias com a Sandra. Eu não gostaria que ela
ficasse sozinha.
-Você já falou com ela?
-Ainda não, farei isso hoje, assim que sair da delegacia.
-Tudo bem, eu farei isso – as palavras eram carregadas de resignação.
-Obrigado.
-Fred?
-Sim?
-Só não ferra com tudo, tá bem? Seja gentil.
-Eu vou tentar não ser um babaca.

***
Fred dirigia para casa completamente absorto em pensamentos. Estava
prestes a despedaçar um coração já calejado por tantas batalhas perdidas.
Seu pé mal pressionava o acelerador. Dirigia muito abaixo do limite de
velocidade, como se, inconscientemente, desejasse atrasar aquele momento.
Ao redor de seu antigo Civic prateado, o sufocante e cinzento centro da
cidade tornava-se bairros verdes e arejados, enquanto o sol brincava de se
esconder entre os telhados das casas, despedindo-se.
Quando ele estacionou na rua, sem usar a garagem de casa, o
pensamento: “para facilitar a fuga” foi inevitável, e ele poderia até mesmo ter
rido, se a tragédia que sua vida se tornou assim lhe permitisse.
A passagem rápida em um bar, para algumas bebidas engolidas às
pressas, não tinha sido o suficiente para blindá-lo com a coragem necessária,
então ele seguiu para a porta de casa com apenas meia vontade, meia certeza
e meia confiança de que poderia encontrar as palavras certas, se é que estas
existiam em algum lugar.
Dali a alguns dias, quando fosse se lembrar da cena que protagonizara
ao entrar em casa, tudo se resumiria a alguns flashes.
Suas primeiras palavras foram doces, o básico e bom clichê, aceito
internacionalmente como protocolo para situações como aquela: “a culpa é
minha, o problema é comigo”.
Já dirigindo em direção ao seu antigo apartamento de solteiro, o filme,
que era apenas um trailer, um rápido teaser, seguia se desenrolando diante de
seus olhos.
Sandra debruçada sobre seu ombro. O cheiro de seu cabelo, o mesmo
de sempre, desde os tempos de namoro, boas lembranças. As lágrimas da
esposa ensopando seu sobretudo. As promessas meio cheias, meio vazias,
preenchendo o silêncio, sobrepostas aos soluços. Toda uma vida
redesenhando-se em novos contornos. Precisou se esforçar muito para que a
tristeza daquele momento não o conduzisse para longe de suas convicções.
Sinais vermelhos e verdes. A lua subindo no céu. As estrelas surgindo
como que por mágica. O mundo fora do Civic era apenas indiferença, um
bonito pano de fundo para as lembranças. A lapela do sobretudo ainda
molhada pelas lágrimas de Sandra o alertava: foi real.
Era, enfim, hora de seguir em frente, concentrar-se. Fazer o seu
trabalho.
Ele dirigiu para o apartamento dos tempos de solteiro, um pequeno
quarto e sala, que insistiu em manter mesmo quando os pais de Sandra
presentearam o casal com a ampla casa em que viviam. O prédio ficava em
um bairro tranquilo e próximo a uma livraria que Fred vez ou outra
frequentara. Aquela seria sua primeira parada. A segunda seria num bar,
precisava fazer um bom estoque para sua antiga geladeira. Imaginou se a
companheira dos velhos tempos ainda funcionava.
***

Quando o sinete soou pela última vez naquela noite, quase no horário
de fechar, Bernardo e Luís se viraram para fitar a pessoa que passou pela
porta. O homem usava um sobretudo amassado. A barba estava por fazer. Os
olhos vermelhos indicavam que ele esteve chorando, ou fumando um
baseado.
Bernardo virou-se de costas para o recém-chegado, de frente para Luís,
juntou o dedão e o indicador, levou-os à boca, puxou o ar e soltou.
-Para com isso cara, respeita os meus clientes – pediu o livreiro,
tentando conter o sorriso mediante a mímica muito bem-feita pelo amigo,
representando uma profunda tragada num baseado.
-Boa noite – disse o homem, que, apesar do semblante derrotado,
emitiu um sorriso bonito e sincero, iluminando seu rosto sem que ele mesmo
percebesse.
-Boa noite – respondeu Luís, largando o jornal sobre a mesa – em que
posso ajudá-lo?
-Eu gostaria de ver seus romances policias. Eles ficam reunidos?
-Sim, é por ali – o livreiro indicou uma ampla prateleira no fundo da
loja e depois voltou até Bernardo.
-Cadê a gatinha da Bianca? – perguntou Bernardo com esperança no
olhar.
-Eu dei uns dias folga pra ela. Aquela menina está precisando pensar
um pouco na vida.
-Lui, se eu estivesse no seu lugar...
-Eu sei, eu sei, você já tinha traçado a Bianca, mesmo ela sendo menor
de idade, mesmo os pais dela tendo toda a confiança do mundo em você,
mesmo você sendo quinze anos mais velho que a menina. Eu já sei disso
tudo, mas, pra sorte da garota, eu não sou você.
-Luís, aos dezesseis uma garota já sabe o que quer.
-Não, ela não sabe. Essa é a época das paixões platônicas, movidas
pelos hormônios que estão em ebulição. Nada além disso.
-Luís, eu preciso de te dizer uma coisa, cara.
O livreiro já esperava uma piada que colocasse em xeque sua
masculinidade. Não estava preparado para o que iria ouvir. Tampouco para a
seriedade com a qual Bernardo pronunciou aquelas palavras.
-Você não pode ficar esperando a Bárbara para sempre.
-Como é que é, negão? Você está ficando louco?
-E você acha que eu sou cego? Não sabe que os negros enxergam
melhor do que os brancos? É verdade, nós tivemos que evoluir para conseguir
enxergar melhor dentro dos porões dos navios negreiros.
-Puta que pariu, Bernardo, essa foi a pior até hoje.
-Não fuja do assunto. Você ama nossa Barbie desde sei lá quando,
mas já tá na hora de você entender que já era. Ela e o Pedro se amam. Além
do mais, eles são os seus melhores amigos, depois de mim, é claro.
-Para de falar besteira, Bernardo.
-Você sabe que eu estou certo. Estou sempre certo. Vou te ensinar uma
coisa, preste muita atenção.
Bernardo se levantou e se colocou ao lado do amigo, sua mão mirava
algum horizonte distante. Ele esperou que Luís, a contragosto, dirigisse seu
olhar para o mesmo lugar imaginário.
-Você precisa ver o mundo como um vasto oceano – Bernardo
pincelava o ar com as mãos – com milhões de cardumes, contendo bilhões de
peixes, que passam todos os dias se oferecendo pra você fisgá-los, como em
“Vinte Mil Léguas Submarinas”. Você só tem que usar essa sua varinha aí –
apontou para as pernas de Luís – e pescar um peixinho, depois outro e outro,
até ganhar prática. Acho sinceramente que devia começar com a Bianca, e
vamos ser bem sinceros, ela é muito gostosa, e você pode nunca mais ter a
chance de pescar um pirarucu deste tamanho novamente com uma vara tão
pequena.
Luís suspirou, tentando não cair na gargalhada. O amigo se superava a
cada dia. Não conhecia absolutamente ninguém como ele.
-Bernardo, nem sei por onde começar minha análise sobre seus
absurdos, mas acho que um bom ponto seria te dizer que se o mundo é um
oceano, ele não teria um pirarucu, pois este é um peixe de água doce.
-Chato e entediante como sempre – protestou Bernardo.
-Em segundo lugar, usar o bom nome de Júlio Verne para suas besteiras
é uma blasfêmia imperdoável.
-Estamos em uma livraria, então...
-Cala a boca, Bernardo. Por favor. E por falar em calar a boca, eu te
liguei ontem e você não me atendeu.
-Eu estava ocupado. Tinha uma garota lá em casa.
-Não sei porquê, mas quando você diz, tinha uma garota lá em casa,
tudo o que escuto é: masturbação com pornô gay de baixa qualidade.
Bernardo apontou o dedo do meio para o amigo, que voltou sua atenção
para o jornal que estava sobre a mesa. Após alguns minutos lendo a
reportagem em destaque, ele falou:
-Acho que a polícia jamais vai pegar esse cara. Ele é esperto demais,
não deixa nada para trás – Bernardo batia no jornal enquanto falava. A
cobertura sobre o caso do assassino de escritores ainda não desbotara, e
ganhava vida nova a cada pormenor que era descoberto ou inventado pela
mídia.
-Em algum momento, ele acaba dando um mole e sendo pego.
Ninguém consegue ser perfeito sempre – pontuou Luís.
-Não sei não. Eu fico pensando no que é que acontece dentro da cabeça
de uma pessoa capaz movê-la a tirar uma vida. Eu tento me colocar no lugar e
não consigo, ainda mais assim – apontou novamente para o jornal - de
maneira tão doentia. Matar escritores da forma que eles matam seus
personagens.
O homem se virou para eles. Observava a conversa com interesse mal
disfarçado.
-Posso ajudá-lo em algo mais, amigo? – perguntou Luís.
-Sim. Como você costuma agrupar seus romances policiais? Confesso
que fiquei meio perdido.
Luís se aproximou sorrindo cordialmente.
-Nós os ordenamos pelo sobrenome do autor. Começando bem ali –
apontou – da esquerda para a direita.
-Ah, sim. Ótimo. Você se importaria de me ajudar a encontrar todos os
romances policiais brasileiros.
Luís concordou, mas já pensava que aquele homem iria olhar, olhar,
olhar mais um pouco e sair sem levar livro algum. Vez ou outra aparecia um
idiota fazendo uso dessa prática irritante, e depois ia embora sem devolver os
livros ao lugar.
-Eu costumava comprar aqui antigamente. Sempre fui muito bem
atendido por um casal. Você comprou a loja deles?
-São os meus pais. Eles voltaram para o interior e eu fiquei a cargo da
livraria.
-Entendo.
Luís ajudou o homem a montar uma pilha com quase vinte livros.
-Depois da notoriedade enorme desse caso do assassino dos escritores,
tenho que dizer que qualquer um que entre aqui para comprar todos esses
romances policiais brasileiros é no mínimo suspeito.
-Ou é alguém que está tentando resolver o caso – interferiu Bernardo.
-Vocês dois produziram um raciocínio interessante – falou o homem –
mas neste caso, quem acertou foi você – apontou para Bernardo – eu sou o
detetive Frederico Borzagli, um dos responsáveis pelo caso.
Fred sacou o distintivo e o mostrou aos rapazes.
-Eu gostaria que vocês ficassem com o meu cartão, para o caso de mais
alguém suspeito aparecer, com interesse anormal em romances brasileiros. E,
a propósito, vou comprar todos estes.
Bernardo e Luís se entreolharam. A surpresa combinada dos dois era
tão cômica que Fred precisou se segurar para não rir.
***

Fred precisou imediatamente abrir todas as janelas do apartamento. O


cheiro do ar era viciado, estático e poeirento.
Um a um, ele foi retirando os lençóis de cima dos móveis e
reencontrando seus antigos bens, estes repletos de poeira e boas lembranças,
muitas delas sobre Sandra, o que quase o colocou novamente fora de prumo.
Do carro, ele trouxe três caixas. A primeira continha todos os arquivos
do caso que pôde retirar da delegacia e cópias dos que não pôde, além de um
notebook emprestado. Na segunda, a pilha de romances policiais. Na terceira
o combustível que precisava para varar a noite trabalhando: bebidas fortes e
sanduíches.
Em poucos minutos a parede da sala estava estampada com fotos das
cenas dos crimes e fichas com dados das vítimas.
Fred reposicionou o sofá, colocando-o de frente para a parede. Sentou-
se ali confortavelmente. Depois de tantos anos, o estofado ainda estava
marcado pelo peso de seu corpo. Nas mãos uma garrafa de cerveja. Não havia
a necessidade de copos.
Passou horas fazendo conjecturas. Quando a madrugada fria veio
encontrá-lo, ainda não estava de posse de nenhuma descoberta que pudesse
levar luz ao caso. Decidiu mudar seu modo de pensar. Chegou à conclusão de
que seguir buscando falhas no modus operandi do assassino era perda de
tempo e desperdício de boa bebida.
Decidiu abordar os crimes pela perspectiva das vítimas. Será que o fato
de serem escritores era mesmo o único ponto em comum entre elas?
Cruzando os dados disponíveis ele não encontrou nada que pudesse
colaborar com aquele pensamento. Se nada tivesse lhe passado despercebido,
a literatura era mesmo o único ponto que as unia.
Fred se levantou e ficou de frente para as fotos. Uma delas era da
estante de livros de Natália Brummer. Seus exemplares muito bem
organizados, um deles estava faltando, o que Fred tinha retirado do lugar
quando chegou à cena, bem ao lado dele estava...
-Não pode ser tão simples. Não... não...
A foto retratava, alinhados, “Antes Do Meio Dia”, de Átila Fernandes,
e, logo em seguida, “Eu Desejo Morrer”, de Cléo Junqueira, antes deles
estava “O Enfermeiro”, de Natália Brummer.
“Nós os ordenamos pelo sobrenome do autor” – lembrou-se do rapaz na
livraria explicando sobre a organização de seus títulos.
Fred avançou para cima dos livros que comprou e os ordenou sobre a
mesa. Sobrenomes em sequência alfabética.
-Não pode ser, é simples demais... – levou a mão à boca.
Ele pegou o telefone e ligou para Elisabete.

Capítulo 13
Quando Elis entrou na sala de Fred, o sol ainda não tinha nascido. Com
o pouco movimento da madrugada, a delegacia estava mergulhada em ares
soturnos e em quietude plena. A interrupção abrupta da noite de sono estava
estampada na face da moça em forma de olheiras arroxeadas e olhos
apertados.
-Eu trouxe o café que você pediu – anunciou ela.
-E onde está?
-Eu precisei beber para me manter acordada, já que você resolveu me
tirar da cama às três da manhã – ela tentou sorrir, depois tirou a mão de trás
das costas revelando o copo de plástico.
-O mais forte que encontrou? – perguntou ele.
-Como você pediu, Fred. Sobre o que você disse ao telefone – começou
ela – faz sentido, mas...
-Eu sei. É simples demais, mas não podemos ignorar. Veja bem:
Fred virou a tela do notebook para a parceira exibindo uma lista com os
principais nomes de romancistas brasileiros que escreviam literatura policial,
organizados pelo sobrenome do autor.
Simone Abalos
Tony Bellotto
Natália Brummer*
Naomi Campos
Átila Fernandes*
Estela Gomes
Jânio Gonzaga
Cléo Junqueira*
Fernanda Leal
Tito Machado
Camila Marques
Raphael Montes
Daniele Morais
Baby Novaes
Nuno Rebello
Tatiana Teixeira
Raul Zuckler
-OK, temos muitos nomes aí, sem contar os que podem ter passado
despercebidos em sua busca – observou Elis.
-Estou há três horas seguidas na frente desta tela, pesquisando como um
louco, mas é possível que você tenha razão. De qualquer forma, vamos em
frente. Agora, levando em consideração a zona de ação do assassino, vou
excluir os autores que moram em outras cidades. Com isso temos:

Natália Brummer*
Átila Fernandes*
Cléo Junqueira*
Tito Machado
Daniele Morais
Baby Novaes
Tatiana Teixeira
Raul Zuckler

-Os três primeiros são exatamente as nossas vítimas – observou Elis, de


maneira retórica.
-Sim.
-E sobraram poucos nomes – concluiu ela.
-Ainda assim são muitos para que possamos montar um bom esquema
de vigilância que cerque a todos, mas podemos concentrar a maior parte dos
recursos em Tito Machado, que é o próximo na lista.
-Claro que esta é nossa melhor opção, mas eu não sei... depois de tudo,
não consigo simplesmente acreditar que possa ser assim tão fácil.
-Eu sei que parece um tanto vago, mas pense bem. A pessoa por trás
destes crimes é alguém metódico, e que se importa profundamente com a
literatura. Posso dizer que os livros que o assassino tem em casa são
organizados de forma religiosa. Com toda certeza agrupados pelo sobrenome
dos autores. Eu quase posso vê-lo indo de estante em estante, tirando a poeira
de suas obras e cheirando os livros como o maníaco que é.
Elis ficou de pé, empolgada. Os pensamentos ganhando forma.
-Ainda assim está faltando alguma coisa. Um trauma. Algum tipo de
acontecimento que serviu como motor de arranque, para que o assassino
passasse de leitor revoltado para assassino desalmado – propôs a detetive.
-Talvez devêssemos voltar então ao estudo do primeiro crime. O texto
de Natália Brummer pode ter despertado no assassino algo que principiou sua
mudança – falou Fred.
-Nós já tentamos isso, Fred. Natália Brummer está limpa. Não havia
nada para encontrarmos. Além do mais, isso iria contra algo básico que já
determinamos. Estes crimes ocorreram com um espaço de tempo muito curto.
O tempo de observação das vítimas é algo que não se faz em dias, mas sim
em meses. Elas têm sido observadas e estudadas há muito tempo.
-Então resta nos concentrarmos no próximo ataque – concluiu Fred.
-O melhor seria colocar policiais rondando a casa de cada um dos
escritores que restam, não deveríamos confiar apenas nessa teoria.
-Não teremos homens o suficiente para isso.
-Então teremos que torcer para que você esteja certo, Fred.
-Eu estou. Sei que estou.
***

Os detetives passaram as primeiras horas do dia desvencilhando-se do


emaranhado burocrático necessário para conseguir os policiais para montar
uma vigília em torno de Tito Machado.
Maciel e Fred entraram em franca discussão quando o superintendente
ofereceu apenas dois homens para o caso, alegando que vinha sofrendo
grande pressão pelo número excessivo de assaltos que vinham acontecendo
no centro da cidade, e que cada policial que ele tirasse das ruas poderia gerar
uma enorme represália da opinião pública.
-É apenas com isso que você se preocupa, não é? Com a sua imagem!
Seu desgraçado!
-Do que foi que você me chamou? – Maciel deu a volta na mesa e
encarou Fred nos olhos. Era um palmo mais baixo, mas não ia se deixar
intimidar por um subalterno.
-Estamos falando de proteger uma vida que corre risco iminente! –
gritou Fred.
-E eu estou dizendo que dois homens são tudo o que você terá para
apoiar essa sua teoria infantil, se vire com isso! E desapareça da minha frente
antes que eu tire você do caso e o suspenda por insubordinação – o homem
estava irado.
-Vamos Fred – Elis o guiou para fora da sala do superintendente.
O detetive abriu a porta de sua sala com a força necessária para
derrubar um bunker.
-Fique calmo, Fred. Dois homens serão o suficiente se concentrarmos
nossos esforços em Tito Machado. Faremos dois turnos e revezaremos com
eles.
-Eu sei. Não é isso o que me tirou do sério, e sim aquele babaca. Como
alguém como ele pode chegar onde está? Isso faz algum sentido para você?
-Não. Mas você precisa ficar centrado. Não pode sair por aí explodindo
dessa forma.
-Você tem razão – ele respirou fundo tentando se acalmar – precisamos
ir para o endereço de Tito Machado, deixá-lo ciente da situação.
-O que estamos esperando?
***
Os detetives foram recebidos na sala confortável de um apartamento de
classe alta. Estantes repletas de livros adornavam o local e os muitos móveis
de vidro criavam um ar requintado.
Tito Machado era um homem bonito, na casa dos cinquenta anos, com
alguns cabelos grisalhos destacando-se na cabeleira negra. Sua esposa,
Caroline, era uma mulher conservada e de ar aristocrático. A filha do casal,
Beatriz, de doze anos, assim como os pais, estava curiosa sobre aqueles
visitantes inesperados.
-Em que poderei ajudá-los, detetives? – começou Tito, assim que todos
tomaram seus assentos.
-Senhor Machado, nós gostaríamos de falar com o senhor a sós – pediu
Elis.
-Estamos falando de algo grave aqui? – perguntou Caroline – Meu
marido está com algum problema com a lei?
-Não, senhora. Pode ficar tranquila quanto a isso – explicou a detetive.
-É sobre o matador de escritores? – perguntou o autor.
Elis não respondeu, apenas moveu seus olhos em direção à filha e a
esposa do escritor.
-Meu amor, leve a Beatriz para o quarto, por favor.
-Mas Tito...
-Por favor – ele a interrompeu.
A mulher puxou a filha pela mão e desapareceu no corredor.
-Senhor Machado – começou Fred – temos motivos para crer que o
senhor pode ser o próximo alvo do psicopata em questão.
-E com base em que vocês podem dizer isso? – o homem mostrou-se
profundamente abalado.
-Além de você se encaixar plenamente no perfil, como escritor de
romances policiais e residindo nesta cidade, nós estamos trabalhando com a
hipótese de que o assassino vem agindo de acordo com uma ordem
específica.
-Que ordem seria essa?
-O sobrenome dos autores.
-Como?
-Nós isolamos os nomes de todos os romancistas da cidade, e os três
primeiros foram mortos na sequência exata da ordem de seus sobrenomes.
-Por isso acreditamos que o senhor possa ser o próximo – completou
Elis.
O homem tremia ligeiramente. Ele ficou de pé e se pôs a caminhar pela
sala.
-Não pode ser. Eu não entendo. Não há motivos para que alguém me
queira morto.
-Estamos falando da mente atormentada e doentia de um psicopata –
falou Fred – não há parâmetros para quantificar esse tipo de loucura ou para
justificar suas ações. O que faremos é proteger o senhor.
-Não será preciso. Pegarei minha família agora e deixarei o país – dizia
ele, mais para si mesmo do que para os detetives – é isso, isso mesmo, vou
preparar tudo, ainda esta noite estaremos dormindo na França, ou na Itália.
-Fred – Elis chamou o parceiro de lado – não sabemos o que pode
acontecer se ele tentar deixar a cidade. O assassino pode segui-lo ou pular
para o próximo alvo. Além do mais, fora dessa casa não poderemos protegê-
lo. Precisamos convencê-lo a ficar, essa é nossa melhor chance de pegar esse
desgraçado.
Fred anuiu. Não lhe agradava usar o homem como isca, mas suas
opções eram um campo árido.
-Senhor Machado, você precisa se acalmar – pediu ele, tentando contar
quantas vezes nos últimos dias ouviu aquelas palavras direcionadas para si
mesmo.
-Me acalmar? – voltou-se para os detetives, como se de repente eles
tivessem voltado a existir – Como posso me acalmar?
-Você precisa ficar exatamente aqui, onde está seguro. Não podemos
protegê-lo caso tente deixar a cidade. Enquanto estiver em casa, nossas
chances de pegar o assassino são grandes, pois iremos vigiar sua casa dia e
noite.
-Tito – Elis se aproximou do homem – aqui dentro você estará seguro.
Cuidaremos de você e de sua família.
-O que todos os jornais dizem é que vocês estão longe de pegar esse
cara. Por que devo confiar em vocês?
-Porque resolver este caso é tudo o que nos interessa. Temos dedicado
nossas vidas nisso – respondeu Fred com firmeza inabalável.
-Além do mais, se você tentar sair da cidade, não poderemos prever o
que o assassino fará. Ele pode seguir você e não estaremos lá para protegê-lo,
ou pode pular seu nome e outra família como a sua estaria em perigo.
O homem estava desolado.
-Precisamos que o senhor fique – falou Fred.
-Isso é importante – endossou Elis.
Vencido, Tito voltou a se sentar e a conversa enveredou para as últimas
semanas e meses da vida do autor. Fred e Elis tentaram descobrir se ele tinha
conhecido alguém recentemente. Se alguma pessoa desconhecida tinha
forçado a entrada em sua vida. Médicos, entregadores, vizinhos, lugares que
frequentava, mas, mesmo após forçar muito a memória, o homem não
conseguiu apresentar nenhum nome que lhe fugisse ao comum.

Capítulo 14
Enquanto Elis dirigia de volta para a delegacia, Fred seguia com o
pensamento distante, o olhar mirando o horizonte, entrecortado por prédios,
postes, fios, gente, vida e movimento, mas sem nada fitar, sem nada eleger
como ponto de foco.
-Um real por seu pensamento?
Ele ficou em silêncio.
-Então, um dólar por seu pensamento?
Ele se manteve distante.
-Estou quase me convencendo de que não sou boa o suficiente para
você se abrir comigo.
-Não é isso, é que são tantas coisas que não sei por onde começar.
O carro parou em um sinal vermelho. Em meio às muitas pessoas que
atravessavam a rua, Fred dirigiu seu olhar para a moça que auxiliava um
deficiente visual na travessia.
-Acho que posso começar por aquele desgraçado do Romero. Como eu
gostaria de ter acertado um soco naqueles dentes perfeitos, arrancando pelo
menos uns três.
Elis se permitiu um sorriso.
-Você sabe que isso só nos causaria problemas.
-Mas eu estaria me sentindo bem melhor – ele também sorriu, mas
somente até se lembrar de Sandra.
-Ainda não acredito que saí de casa.
-Você deve estar se sentindo péssimo.
-Estou. Todas as vezes que me lembro das lágrimas rolando soltas pela
face de Sandra, do pedido para que eu ficasse...
Elis se manteve em silêncio.
-Você sabe como é ter a plena certeza de que algo irá durar para
sempre, e então, sem avisos, aquilo é arrancado de você? Como se o chão
simplesmente desaparecesse debaixo dos seus pés. E você percebe que sua
vida e tudo o que planejou não existe mais, ou já não faz sentido.
-Eu não posso nem imaginar – respondeu Elis, guinando o carro para
uma curva à esquerda.
O telefone de Fred vibrou no bolso, número desconhecido.
-Detetive Borzagli falando.
-Detetive, aqui é o Luís, da livraria.
-Olá, Luís, em que posso ajudá-lo?
-Eu acho que... talvez – o rapaz soava reticente – quero dizer, eu
acredito que... possivelmente...
-Fale logo, Luís.
-Eu conheço alguém que... posso considerar suspeito dos assassinatos
dos escritores.
-Você quer vir até a delegacia e falar sobre isso?
-Acho que sim.
-Ok. Estarei esperando por você.
A linha caiu abruptamente, sem despedidas. Fred ficou encarando o
telefone.
-Quem era? Algo importante?
-Era um rapaz que conheci. O dono da livraria que fica perto do meu
apartamento. Nós brincamos sobre ele identificar pessoas suspeitas através
dos livros que elas compram e, menos de vinte e quatro horas depois, ele já
tem alguém em mente.
-Então acho que o Maciel devia despedir nós dois e contratar esse
rapaz.
Fred sorriu, mas pelo tom de voz do outro lado da linha, ele só podia
supor que aquilo estava muito longe de ser apenas uma brincadeira.
***
Quando Fred viu o rapaz passar pela porta de sua sala, notou que ele
caminhava encolhido, o olhar era assustadiço, apenas um fantasma em
comparação com o jovem vibrante que conhecera anteriormente.
-Luís, boa tarde. Esta é minha parceira, a detetive Elisabete.
-Olá – disse Elis estendendo a mão para receber um aperto que poderia
ter sido mais firme, vindo de alguém que era o retrato de uma geração
saudável, germinada dentro das academias.
-Olá – respondeu o rapaz.
-Sente-se, fique à vontade – falou Fred – aceita um copo d’água?
-Não, estou bem, obrigado – embora não parecesse.
-Você disse que tinha algo para mim.
-Sim, é só que... é meio difícil e complicado.
-Vou deixar que você me explique.
Luís olhou ao redor, claramente tentando encontrar o fio daquele
embolado novelo.
-Leve o tempo que precisar – Fred não sabia o que pensar de toda
aquela hesitação.
-Detetive, a pessoa da qual suspeito é um dos meus melhores amigos.
Eu o conheço desde a infância.
-E o que o faz suspeitar deste amigo?
-Pois bem, acho que é melhor começar pelo princípio.
-Essa é uma excelente ideia – sorriu Fred, enquanto Elis se mantinha
em silêncio, observando atenta.
-Eu tenho um grupo de amigos de longa data, todos são apaixonados
por literatura. Todas as terças nós nos reunimos para debater os livros que
lemos, é uma tradição que mantemos viva há muitos anos. Claro que durante
essas reuniões tem sido comum falarmos sobre os crimes que você está
investigando, tendo em vista que as vítimas são escritores e que por toda a
cidade não se fala em outra coisa.
O rapaz parou para respirar.
-Sobre aquela água, a proposta ainda está de pé?
-Claro que sim – respondeu Fred, e serviu Luís com água da jarra que
estava sobre um gabinete no canto da sala.
-Obrigado.
O rapaz reservou para si mais alguns segundos para organizar os
pensamentos. A garganta molhada não aparentava ter facilitado a emissão das
palavras.
-Enquanto falávamos sobre os crimes, um dos meus amigos, o Pedro,
afirmou com todas as letras que nunca tinha lido os livros dos autores mortos,
mas no outro dia, quando fomos até a casa dele...
-Fomos?
-Sim, a casa dele é o ponto de encontro, de onde nosso grupo segue
para a academia.
-Sim, prossiga.
-A sala da casa do Pedro tem diversas estantes repletas de livros. Os
pais dele, que se mudaram para o litoral deixando a casa para o filho, são
colecionadores aficionados, e nós temos o costume de passar o tempo
correndo os olhos pelos exemplares raros que eles possuem, enquanto o
Pedro toma café ou termina de se arrumar.
Fred anuiu. Estava cada vez mais interessado.
-Nós encontramos os livros dos três autores mortos, escondidos atrás de
outras obras. Os trechos utilizados pelo assassino estavam grifados em
vermelho, nos três livros.
-O do terceiro livro também? – perguntou Elis, que falava pela primeira
vez – Esses dados não foram a público ainda – exclamou ela.
-Fique calma, Elis. Eu andei pesquisando na internet. Alguém andou
vazando algumas fotos. Provavelmente um pobre diabo que queria ganhar
uns tostões a mais – contemporizou Fred.
-Ainda assim...
-Vamos deixar o rapaz terminar – propôs Fred.
Munido de toda a coragem dos covardes, Luís continuou.
-Bem, nós obviamente ficamos nervosos com aquilo, mas no fim
pensamos que poderia ser apenas uma brincadeira. Um dos nossos amigos, o
Bernardo, você o conheceu na livraria ontem, ele tem o costume de fazer
piadas idiotas. Essa estaria longe de ser a primeira vez.
-Então, se você acha que é apenas uma piada, por que veio até nós?
Creio que a possibilidade de alguém que você conhece desde a infância ser
um assassino é bem pequena – as palavras de Fred serviam apenas para
instigar uma justificava.
-Eu vim por dois motivos. O primeiro é que, segundo foi noticiado, o
assassino vem utilizando uma droga que é vendida apenas para hospitais, e o
Pedro é um médico cirurgião.
Fred e Elis se entreolharam.
-E o que mais? – perguntou Elis, ligeiramente ansiosa.
Luís respirou fundo mais uma vez, tragando o ar como se fosse um
artigo raro e caríssimo.
-Como eu disse, conheço o Pedro desde a infância, e às vezes, naquela
época, era como que existissem dois dele. Um que era sempre amável, meu
melhor amigo, com quem eu podia sempre contar. O outro era alguém que
me assustava muito, mais do que qualquer filme de terror que eu tinha
costume de assistir escondido dos meus pais.
Ele pediu um novo copo de água, mas o efeito foi praticamente nulo. A
garganta seguia ressecada. O estômago dava voltas como uma montanha
russa desgovernada.
-Houve alguns acontecimentos que naquela época eu não conseguia
entender, mas agora, juntando tudo isso, eu...
O rapaz olhava de um lado para outro, como se buscasse algo em que
se agarrar, para não ser tragado e afogado em meio às suas incertezas.
-Narre estes fatos para nós. Deixe que eu e a detetive Elis tiremos esse
peso de suas costas, lhe dizendo se há mesmo algo com que você deva se
preocupar – falou Fred de maneira calma, tentando instigar o rapaz a seguir
em frente.
-Certa vez, depois de uma partida de futebol contra os garotos da rua de
cima. Nós tínhamos nove, talvez dez anos. Eu e o Pedro fomos cercados por
garotos do outro time. Eram seis contra dois e eu tinha me machucado na
partida, mal conseguia colocar o pé no chão – Luís emitiu um sorriso triste,
como se não conseguisse se decidir se aquela era ou não uma boa lembrança
– então o Pedro, que até segundos atrás era apenas o garoto mais gentil do
mundo, investiu contra o líder deles, um garoto muito maior do que nós,
gordo e forte. Quando eu dei por mim, ele já tinha quebrado o nariz do
menino. Foram três, quatro, cinco, dez socos. As demais crianças fugiram
assustadas enquanto eu via o Pedro se colocar sobre o garoto caído e
indefeso, desferindo golpes que provocavam baques surdos e violentos.
Lembro-me de que aqueles poucos segundos pareceram uma eternidade. Não
sei dizer quanto tempo levei para conseguir gritar, pedindo para que ele
parasse antes de matar o garoto. Quando ele se virou para mim... eu...
-Luís, tudo bem – disse Fred.
-Ele era... ele era... outra pessoa. Seu rosto estava respingado de sangue
e eu podia ver que ele tinha gostado daquilo. Não foi apenas para nos
defender. Ele tinha gostado de cada segundo, de cada soco, mas o pior de
tudo foi a maneira como ele olhou para mim. Aquele olhar era tão... insano.
Tão desprovido de humanidade que eu temi ser o próximo. Enquanto ele
caminhava até mim, em questão de segundos, como num passe de mágicas, lá
estava o meu amigo de novo. Ajeitando o meu peso sobre seus ombros para
me carregar até em casa.
Luís suspirou. Sua pausa tomada pelos detetives como o fim da
narrativa.
-Luís, nós, com certeza....
-Eu ainda não terminei – disse ele – me deixem ir até o final, por favor,
agora que comecei não posso parar. Não posso deixar isso pela metade.
-Tudo bem – falou Fred, servindo mais uma rodada de água, mas dessa
vez o rapaz pareceu nem ter notado o copo cheio. Seu olhar vagueava ao
longe, desfocado. Perdido em algum lugar de vinte anos atrás.
-Naquele mesmo dia, antes da partida, o Pedro estava atrasado para o
jogo, então eu fui até sua casa para chamá-lo. Seus pais não tinham chegado
do trabalho. No outro dia eu descobri que eles tinham uma reunião e que só
chegaram à noite. O Pedro tinha o costume de cochilar depois do almoço,
quando chegava da escola, e eu pensei que ele tinha se esquecido do jogo.
Como já era um costume de nossa longa amizade, eu entrei sem bater e
resolvi acordá-lo com um susto, uma punição por quase deixar o resto do
time na mão.
Luís parou de falar abruptamente. O silêncio que preenchia a sala era
carregado de tensão.
Até mesmo os detetives, acostumados às mais bizarras histórias, tinham
se permitido submergir na atmosfera vívida daquela tensa narrativa.
-Eu subi as escadas pé por pé, tentando não fazer barulho. Queria muito
assustá-lo. Segui pelo corredor até a última porta, a do quarto do meu amigo.
Lembro de ter levado um susto quando a cortina esvoaçou com o vento e
roçou no meu pescoço. Isso me fez desistir do castigo que eu tinha preparado
para o Pedro. Depois daquele susto eu só queria acordá-lo rápido e sair de
volta para a luz do sol. Então eu estendi a mão para a maçaneta da porta e a
abri lentamente. O que surgiu diante dos meus olhos foi uma das coisas mais
terríveis que vi em toda minha vida e até hoje me provoca pesadelos.
-O Pedro estava de costas para mim, ajoelhado ao lado da cama, mexia
em algo que eu não conseguia ver dali. Eu chamei seu nome, mas ele estava
tão compenetrado que não me ouviu. Ele tinha algo nas mãos, um objeto que
brilhava refletindo a luz que entrava pela janela e impedindo que eu pudesse
ver o que era. E tinha alguma coisa no chão. A princípio me pareceu que era
tinta. Tinta vermelha. Meu primeiro pensamento era que ele estava fazendo
algum trabalho de escola do qual eu tinha me esquecido. Chamei seu nome
novamente e nada...
-Dei mais alguns passos para frente, ao redor da cama, e foi então que
eu vi...
Sem que o detetive percebesse, sua respiração tinha se tornado
ofegante. Elis compartilhava da mesma ansiedade. O corpo inclinado para
frente.
-O que eu pensava ser tinta, era sangue. Muito sangue. A coisa na qual
o Pedro mexia estava tão dilacerada, tão profundamente violada, que eu levei
muito tempo para compreender o que era. Em meu emudecido terror, pude
finalmente compreender que aquilo, cortado de fora a fora e com os órgãos
expostos, com as tripas mergulhadas em um pequeno lago de sangue, era o
pastor alemão da vizinha.
-Fiquei congelado. Não consegui me mover um só centímetro. Não
conseguia respirar. Não conseguia sequer piscar. E foi então que minha
presença foi notada. Quando ele se virou para mim, finalmente percebi que o
objeto em sua mão era uma grande faca de cozinha. Naquele momento eu tive
a clara certeza de que ele iria me matar. Tentei fechar os olhos e me encolher,
mas nem isso eu era capaz de fazer e fui obrigado, pela primeira vez, a fitar
aquele olhar sinistro. Insano, esta é a palavra certa. Aquilo era insanidade
pura, completa e absoluta. Lembro com clareza do sangue descendo pela
faca. A pele, antes alva, molhada de vermelho até bem perto dos cotovelos,
como se ele tivesse mergulhado os braços dentro das entranhas do animal,
que tinha os olhos pétreos fitando o vazio.
-E então, o que houve? – perguntou Elis.
-Eu caí para trás. Tentei me arrastar no sentido contrário enquanto o
Pedro se levantava. Ele vinha em minha direção com a faca na mão,
gotejando sangue. Acho que ele dizia que estava tudo bem, mas eu não era
capaz de registrar suas palavras, tudo o que eu pensava era que ia morrer bem
ali. Eu já podia sentir a frieza do metal entre as minhas costelas.
-“Não se assuste, Luís.” - foi a primeira frase que consegui
compreender.
-“Eu só queria ver como ele era por dentro.” – disse ele, como se
fosse a coisa mais normal do mundo.
-Depois de gaguejar como um louco, eu consegui perguntar se ele
tinha matado o cão. Ele respondeu que não. Disse que tinha encontrado ele
agonizando e que o carregou para dentro de casa para lhe dar um remédio,
mas que o cachorro morrera em seus braços, então ele disse que... ele sorriu
como a criança que era e... disse que ficou curioso, que queria saber como o
animal era por dentro, e que por isso tinha feito aquilo. Meu Deus do céu, nós
tínhamos dez anos. Que tipo de criança dessa idade é capaz de fazer algo
assim? Mas de certa forma, aquela explicação bastou para mim. Eu estava tão
assustado, tão decidido de que ia morrer, que qualquer coisa que ele dissesse
contrária a isso era o suficiente para me acalmar, e eu simplesmente aceitei.
-“Quando voltarmos do jogo vou limpar essa bagunça e enterrar o
Pop, antes que meus pais cheguem. Você me ajuda?”
-Ele perguntou aquilo com a mesma entonação que costumava me
perguntar se eu gostava mais do Rivaldo ou do Romário. Quando saímos de
sua casa, tudo aquilo ficou para trás. Eu queria simplesmente me forçar a
acreditar que nada daquilo tinha acontecido.
-Você voltou até a casa dele? – perguntou Fred.
-Como eu me machuquei na partida, acabei não voltando. No outro
dia ele nem tocou no assunto, e foi como se nada tivesse acontecido. O meu
amigo era apenas o meu amigo novamente. Uma das pessoas mais doces que
já conheci em toda minha vida. Elogiado pelos professores com suas notas
altíssimas. Convidado número um de todos os pais do bairro para as festas de
seus filhos. Com o passar dos dias eu quase me convenci de que aquilo tinha
sido apenas um pesadelo, emulado pelos filmes que eu via na madrugada.
-Mas você sabia que era verdade, que tinha mesmo acontecido –
constatou Fred.
-Sim.
Os detetives guardaram um silêncio cuja longevidade deixou o rapaz
inquieto, fazendo-o beber um novo copo d’água de um único gole. Uma gota
para um deserto.
Fred e Elis se entreolhavam. Não tinham dúvidas de que o rapaz
estava dizendo a verdade e que o tal Pedro poderia mesmo ser a pessoa que
eles procuravam.
-Luís, eu preciso te fazer uma pergunta – falou Elis, quando o estalo de
uma ideia se fez presente em sua mente.
-Sim.
-Você disse que os livros que encontrou na casa do seu amigo tinham
as passagens escolhidas pelo assassino grifadas em vermelho. Você acha que
este vermelho poderia ser sangue?
Os olhos do rapaz de arregalaram. Seus lábios perderam o que restava
da cor. Ele obviamente não tinha pensado naquilo. De tão chocado que ficou,
não foi capaz de responder.

Capítulo 15

-Olá, meu amor, como você está aproveitando a folga? – A voz de


Bárbara soou do outro lado da linha.
-Eu decidi me render ao frio. Peguei a coberta mais grossa, trouxe pra
sala e selecionei alguns filmes antigos para ver.
-Puxa! Como eu queria estar aí com você agora. E não no meio dessa
bagunça toda que anda acontecendo aqui no escritório.
-Dia difícil?
-Como todos os outros. Isso que estou ouvindo é pipoca estourando no
microondas?
-Sim.
-Como você é covarde. Aposto que aproximou o telefone do
microondas só para me fazer inveja.
Pedro riu quando seu estratagema foi descoberto. Ele pegou o aparelho,
colocou no viva-voz e o deixou sobre a bancada da cozinha. Escolheu uma
vasilha grande e virou a pipoca fumegante ali dentro.
-Eu também queria que você estivesse aqui – disse, enquanto
recuperava o telefone e seguia para a sala. O logo da New Line Cinema
acabava de desaparecer na tela da TV, dando lugar às paisagens da Terra
Média.
Ele ajeitou tudo até ficar satisfeito. Cobertores e travesseiro, pipoca,
refrigerante e controles remotos, tudo ao alcance das mãos.
-O que vai ser dessa vez? Matrix?
-Não.
-De Volta Para o Futuro?
-Não.
-Os Caça-fantasmas?
-Não. O Senhor dos Anéis.
-Juro que não sei o que você vê nesse filme – falou Bárbara.
-Opa! Cuidado! Alerta de crise no relacionamento acionado. Não vá por
esse caminho, moça.
Pedro ouviu alguém bater à porta.
-Bárbara, tem alguém na porta. Eu vou atender.
-Tudo bem, meu intervalo de descanso já está terminando mesmo. A
gente se vê à noite?
-Já não vejo a hora.
-Pedro...
-Sim?
-Eu te amo.
-Eu também te amo.
A batida soou novamente.
O rapaz olhou para o sofá, tão aconchegante e convidativo, mas
precisava esperar.
-Mas que merda. Quem será? – resmungou.
Quando abriu a porta, encontrou um homem de mais de quarenta anos.
Alto e de aparência cansada, porém com olhos de vivacidade fulminante.
Escondia-se do frio dentro de um sobretudo negro. Ao seu lado estava uma
mulher muito bonita. Loira e de olhos castanho-claros belíssimos.
“Vendedores ou pregadores da palavra, qualquer um dos dois seria
irritante.”
-Me desculpem, mas não quero comprar nada.
Já se preparava para fechar novamente a porta quando o homem exibiu
seu distintivo e disse que eram detetives da polícia.
-Você é Pedro Gurgel? – perguntou Elis.
-Sim.
-Nós gostaríamos de conversar com o senhor.
-E eu poderia saber qual o assunto?
-Se puder nos convidar a entrar... – Elis fez um gesto em direção à casa.
-Eu posso ver os seus distintivos novamente? Vocês sabem como é,
precaução.
-Mas é claro que sim – dessa vez Elis também mostrou o seu e os
detetives entraram na casa.
-Me desculpem pela bagunça. É que estou aproveitando o dia de
descanso para assistir a uns filmes e relaxar.
-O Senhor dos Anéis? –perguntou Fred segurando a capa do blu-ray.
-Sim.
-Boa escolha – aprovou o detetive.
-Obrigado. Sentem-se – convidou o rapaz, mas apenas Elis se sentou. -
Posso lhes servir um refrigerante?
-Não, obrigado – responderam ambos.
-Devo dizer que estou muito curioso sobre essa visita. Do que se trata?
-Senhor Pedro – começou Elis – você já ouviu falar sobre o caso do
assassino de escritores?
-Sim, acho impossível que alguém nesta cidade não tenha ouvido falar
sobre isso.
Elis seguia atenta cada mínima reação do rapaz.
-Você tem uma bela coleção aqui – observou Fred, que passava de
estante em estante namorando os títulos.
-Sim, mas tenho pouco mérito nisso. Foram meus pais que compraram
mais de noventa por cento das obras.
-E como você costuma organizá-las? – perguntou o detetive de maneira
despretensiosa.
-Em primeiro lugar, pelos temas. Em seguida, pelo sobrenome dos
autores. As exceções são os clássicos, mais raros e caros, que ficam
agrupados naquele canto – apontou o cirurgião.
-Entendo.
-Pedro, você já leu algum dos livros dos autores que foram
assassinados? – perguntou Elis, roubando a atenção do rapaz de volta para si.
-Não – ele respondeu sem pensar.
-E você possui algum dos exemplares aqui na sua casa?
-Escutem – ele ergueu as mãos como quem é incapaz de compreender –
eu realmente não sei aonde vocês querem chegar. Até agora não entendi o
motivo dessa visita.
-Você pode responder a pergunta, por favor? – insistiu Elis.
-Eu não tenho esses livros em minha coleção – falou por fim – mas não
consigo entender...
-Estes aqui? – perguntou Fred, retirando dois dos três exemplares dos
autores mortos de trás da coleção de Arthur Conan Doyle. O local apontado
por Luís.
-Ei! Isso não estava aí. Esses livros não são meus!
Fred folheou as páginas e encontrou os trechos grifados. Ele levantou
os livros para que Elis pudesse ver. Depois pegou o outro que restava
escondido e também o trouxe à luz, repetindo o processo diante dos olhos
arregalados do cirurgião, que já estava de pé e caminhando até o detetive.
-Eu nunca vi esses livros em toda minha vida – afirmou.
-O que é muito estranho, já que eles estão em sua casa, na sua estante.
-Olha, é obvio que está havendo algum engano por aqui.
-Não consigo ver engano algum nessa situação, senhor Gurgel –
contrapôs Fred – você se importaria de nos acompanhar até a delegacia?
-Escutem bem. Eu conheço os meus direitos. Vocês não podem me
levar preso por simplesmente encontrarem livros em minha casa.
-Não estamos prendendo o senhor – interferiu Elis – estamos lhe dando
a chance de se explicar. De prestar depoimento e nos provar que não tem
nada a ver com estes crimes. Nada de algemas nem sirenes, só queremos que
nos acompanhe.
-Elis – chamou Fred, que olhava bem de perto uma das páginas do livro
– eu acho que você estava certa. Creio que isso não seja marca texto. Com
essa cor e textura, essas marcas com certeza são de sangue.
-Sangue? – exclamou o rapaz, os olhos arregalados.
-Nesse caso, talvez eu vá precisar das algemas – disse Elis.

***

Bárbara invadiu a delegacia como um furacão. As poucas informações


que recebeu de Pedro ao telefone tinham servido apenas para deixá-la
confusa e preocupada, abandonando o trabalho praticamente sem dar
explicações.
No hall da delegacia, ela procurou pelo rosto conhecido do advogado
do namorado. Avistou o doutor Henrique no fim de um corredor conversando
com um homem junto à porta de uma sala, mas o policial da recepção deteve
seu avanço, indicando que aquela área era restrita.
-Posso ajudá-la, moça?
Ela não lhe deu ouvidos e chamou pelo advogado.
-Doutor Henrique!
Ele se virou para fitá-la e acenou. Depois de mais algumas palavras
junto ao homem alto que o cercava, o advogado caminhou até Bárbara.
-O que está havendo? – perguntou exasperada, sem tempo a perder com
cumprimentos.
O advogado respirou fundo. Levava consigo uma mala preta de couro.
O terno bem alinhado e a gravata vermelha eram um ligeiro sinal de status,
mas não apagavam seu ar de preocupado, logo notado pela moça.
-Os detetives encontraram livros manchados de sangue na casa do
Pedro. As mesmas obras relativas aos crimes recentes, do assassino de
escritores.
-Isso não é possível. Ele disse mais de uma vez que não tinha esses
livros.
-Sim. Ele continua afirmando que os livros foram plantados lá.
-De qualquer forma, o senhor tem que tirá-lo daqui. Esses livros não
provam coisa alguma.
-Na verdade, os livros foram mandados para análise. Caso o exame
mostre compatibilidade com o sangue das vítimas, então teremos de enfrentar
problemas gravíssimos.
-Não temos que nos preocupar com isso, porque o Pedro não é um
assassino.
-Eu sei que não, minha querida, mas tudo se trata daquilo que se pode
ou não provar. De qualquer forma, com estes livros, eles podem mantê-lo
detido por quarenta e oito horas. Ou até que as análises fiquem prontas.
-Eu não consigo entender – a confusão de Bárbara estava impressa em
suas feições - como a polícia foi bater na porta dele?
-O detetive afirmou que houve uma denúncia sigilosa.
-Isso quer dizer que nunca saberemos quem foi. Eu posso vê-lo? Posso
conversar com o Pedro?
-Vou ver o que posso fazer. Talvez.
Naquele momento eles precisaram dar caminho a um homem
algemado, que era arrastado para dentro da delegacia. O sujeito, sem camisa e
cheio de escoriações, anunciava a plenos pulmões sua inocência, enquanto os
policiais concordavam com ele em tom de descrédito. Mãos firmes a
conduzi-lo para o interior da delegacia.
-Ele vai ficar aqui com esse tipo de gente? – perguntou Bárbara.
-Eu consegui para ele uma cela separada, graças ao curso superior e a
não resistência à prisão.
O advogado conduziu Bárbara até o homem alto com quem estava
conversando minutos atrás.
-Com licença, detetive Frederico, esta é Bárbara, namorada do meu
cliente, eu gostaria de solicitar que eles tivessem um minuto de conversa.
Fred se virou para o advogado.
-Terá que ser breve.
-Obrigado.
A moça foi conduzida até uma sala sem janelas, onde encontrou o
namorado sentado em uma cadeira. O semblante abatido se iluminou quando
a viu. Havia um policial no canto da sala. Olhava para a frente, indiferente.
Quando Pedro se levantou para abraçar a namorada, o policial fardado
interveio.
-Sem contato físico, por favor – pediu ele.
O casal se sentou frente a frente, com a mesa de metal a separá-los.
-Meu Deus, Pedro, que loucura é essa?
-Eu também não sei. Só preciso que você saiba que eu sou inocente. Eu
jamais seria capaz de fazer aquilo do que estão me acusando. Alguém
colocou aqueles livros na minha casa.
-Mas é claro que sim.
-Isso quer dizer que você acredita em mim? – perguntou Pedro com um
olhar esperançoso.
-É lógico que acredito. Que pergunta mais estúpida, seu idiota! Além
de conhecê-lo melhor do que ninguém, eu confio em você e te amo.
-Obrigado, é tão bom ouvir isso.
-Nós vamos tirar você daqui – as palavras de Bárbara eram tão
convictas que fizeram germinar um tímido sorriso no rosto do namorado.
-O Henrique descobriu quem fez a denúncia? Porque só consigo pensar
que a pessoa que me denunciou é a mesma que colocou esses livros na minha
estante. Não há outra explicação.
-Sim, isso faz sentido, mas parece que a denúncia foi anônima ou
sigilosa.
-Que merda! – exclamou o rapaz, voltando a ficar nervoso.
-Você já foi interrogado? – perguntou Bárbara.
-Não. Segundo o Henrique, os detetives estão esperando a análise do
sangue ser concluída.
-Moça – disse a mulher loira ao lado da porta – seu tempo acabou.
-Nós vamos tirar você daqui, meu amor – disse Bárbara, mais uma vez
– essa injustiça será reparada.
***

Bárbara estava sentada em uma cadeira dura e incômoda. Recusava-se a


deixar a delegacia. A escuridão da noite já estendia seu manto sobre a cidade
quando Henrique foi até ela lhe oferecendo carona para casa.
-Não há mais nada a fazermos agora, Bárbara. Os detetives acabaram
de falar que só terão os resultados das análises amanhã pela manhã. Você
quer uma carona?
-Não, obrigada. Eu não quero ir embora. Só sairei daqui de braços
dados com o Pedro.
-Acredite, não há mais nada que possamos fazer por hoje. Eu vou
passar toda a noite planejando a defesa do Pedro, isso é o melhor para ele – o
advogado passou a mão pelos cabelos lisos. Seu rosto muito sério exprimia a
sensação de profissionalismo. Mesmo próximo à casa dos cinquenta, tinha
bastante charme.
-Tudo o que você vai conseguir ficando aqui é pegar um resfriado, e
isso não vai ajudar em nada. Por que não volta pra casa e nos vemos aqui pela
manhã?
Relutante, a moça se levantou e seguiu o advogado para a rua.
Do lado de fora, a cidade estava mergulhada em uma noite gélida e sem
estrelas. Após se despedir de Henrique, alegando que queria caminhar um
pouco para pensar, e que depois pegaria um táxi, Bárbara sentiu-se
profundamente só e impotente.
O frio trazido pela noite era implacável. As pessoas que passavam por
ela seguiam todas agasalhadas e encolhidas, mas a moça fazia pouco do
clima. Sua mente, voltada para o namorado, ainda não tinha lhe permitido
afetar-se pelos ventos assobiantes.
Uma silhueta se destacou entre os passantes, acenando para ela. Uma
pessoa de verdade entre todos aqueles figurantes.
Ela gritou o nome do amigo e se lançou em um abraço apertado. A
solidão espantada pelo calor dos braços de Luís, que vestia uma jaqueta
grossa de couro.
-Bárbara, você precisa de um agasalho – ele retirou sua jaqueta e
vestiu-a na moça, ficando com a blusa de gola rolê que era bastante quente.
-Obrigada.
-Eu recebi sua mensagem, mas estou sem a Bianca na livraria, então só
consegui sair agora. O Pedro está bem?
-Sim. Acho que esse pesadelo vai acabar logo. A simples ideia de o
Pedro ofender alguém já é absurda, quanto mais cometer estes crimes
hediondos.
-Bárbara, nós precisamos conversar – o rapaz não conseguia encará-la
nos olhos.
-Eu estava indo embora, pensei em caminhar algumas quadras para
espairecer, mas com todo esse frio acho que não vou conseguir. Você me leva
pra casa? Nós conversamos no caminho.
-Acho melhor conversarmos primeiro.
-Que foi que houve? Você está me deixando preocupada com esse olhar
e essa cara.
-Bárbara. Eu não sei como dizer isso de outra forma que não seja direta
e objetiva.
-Diga logo!
-Fui eu que denunciei o Pedro.
-Como é? Acho que não entendi direito.
-Bárbara. Fui eu que encontrei os livros na estante. Eu o denunciei.
-Não – ela balançava a cabeça enquanto dava passos para trás – você
não faria isso. Não há motivo algum para você ter feito uma coisa dessas.
Você conhece o Pedro. Ele é seu melhor amigo, desde sempre!
-Bárbara, você precisa me ouvir. Eu sei coisas sobre o Pedro, coisas
que me fizeram duvidar dele. Coisas que eu vi ele fazer...
-Cale a boca! – ela já tinha começado a chorar, a pouca maquiagem
borrada pelas lágrimas – Cale a boca!
As pessoas que passavam começaram a se virar para fitar a discussão,
diminuindo a passada para contemplar por mais tempo a cena inusitada. Luís
se esforçava para manter a voz baixa, enquanto Bárbara mergulhava em um
rompante incontrolável. Uma sinfonia de gritos.
-Bárbara, você precisa ficar calma e me ouvir.
-Ouvir você? – ela estava transtornada.
A gritaria trouxe dois policiais para fora da delegacia. Um oficial
fardado e o homem alto que Henrique dissera ser o detetive que prendeu
Pedro.
-Algum problema aí, moça? – perguntou o policial uniformizado.
Bárbara acenou negativamente e recomeçou a andar. Luís a seguiu sob
o olhar atento dos policiais.
-Luís – chamou Fred – está tudo bem?
-Estamos apenas conversando – respondeu o jovem – somos amigos de
longa data.
Quando ele se virou para a moça, ela já estava muitos passos à frente.
-Bárbara, espera! – Luís correu para alcançá-la.
A moça se virou de repente, o encarando nos olhos. Sua expressão
tinha passado em segundos de uma máscara de incredulidade e pesar para
uma carranca furiosa de olhos injetados.
-Eu sei por que você fez isso. Foi por minha causa, não foi?
-Como?
-Eu não consigo acreditar.
-Bárbara, me deixa expli...
O tapa aplicado pela moça na face de Luís foi tão forte e inesperado
que o deixou atordoado, o rosto em chamas.
-Você nunca conseguiu se conformar, não é?
-Eu realmente não sei do que você está falando – ele segurava a face
que ardia como fogo. Os anéis da moça tinham arrancado sangue de seu lábio
inferior.
-Você sempre foi apaixonado por mim – o indicador apontava para
Luís de maneira acusadora - Eu sabia, eu sempre soube, mas meu sentimento
não era recíproco, então não havia nada que eu pudesse fazer. Eu achei que
algum dia você ia conhecer alguém e isso ia passar.
-Bárbara, isso não tem nada a ver com você.
-Eu escolhi o Pedro. É por isso que você fez essa merda toda! – ela
voltou a gritar - É por isso que você armou pra ele! Porque eu escolhi o Pedro
ao invés de você!
O detetive acompanhava palavra por palavra daquela discussão.
Preocupado com o desenrolar da história, ele se manteve por perto.
-Eu não armei pra ninguém. Quando conversei com a Nanda, ela achou
que não tinha nada demais, ela achava que era uma brincadeira do Bernardo,
mas eu conheço o Pedro e sei as coisas que ele é capaz de fazer. Se você
soubesse das coisas que eu vi...
-Você é um desgraçado. Um traíra da pior espécie. Mas saiba que eu
jamais vou ficar com você. Eu jamais serei sua. Jamais! – ela cuspiu no rosto
de Luís, que ficou impotente, sem conseguir acreditar no que estava
acontecendo. Ele jamais tinha visto Bárbara, que era sempre tão doce e
delicada, irritada daquela forma. Possessa.
Sem conseguir reagir, ele viu a moça atravessar a rua com o braço
erguido, acenando para um táxi que passava.
-Bárbara! Espera!
-Nunca mais fale comigo! Eu nunca mais quero ver a sua cara – ela
gritou enquanto entrava no veículo. Pela janela aberta ela jogou a jaqueta de
Luís, que foi atropelada sucessivamente pelos pneus dos demais veículos que
avançavam pela rua.
-Mulheres... – Luís ouviu Fred dizer às suas costas.
Ele se virou para o detetive, balançou a cabeça e saiu apressado.
-Eu preciso ir atrás dela. Preciso me explicar.
-Aquilo é verdade?
-Aquilo o quê?
-Você era apaixonado por ela?
-Detetive, com todo respeito, mas não sei se isso é da sua conta.
Ele passou por Fred e seguiu para o lado oposto da rua, onde tinha
estacionado.
-Se eu fosse você, deixaria a moça esfriar a cabeça – gritou Fred e
depois completou baixinho – mas acho que sei muito pouco sobre as
mulheres para dar um bom conselho.
O detetive olhou para o céu e farejou o ar como um perdigueiro.
-Parece que vai chover.
***
Bárbara tentava desesperadamente colocar os pensamentos em ordem.
O taxista tinha lhe dirigido algumas palavras, mas fizeram tanto sentido como
se tivessem sido ditas em aramaico. Mediante o silêncio da passageira, o
homem também se calou.
Por toda sua vida, Bárbara sempre teve Luís ao seu lado. O rapaz
sempre fora seu ombro amigo. Seu mais leal e fiel companheiro. Aquela
traição a tinha deixado completamente sem rumo, transtornada.
O primeiro pensamento que julgou coerente foi que não podia chegar
em casa daquele jeito. Seus pais ficariam ainda mais preocupados, então ela
desceu do táxi um quarteirão antes de casa, a fim de respirar e absorver
melhor o choque. Pagou com uma nota de cem e se distanciou do carro,
enquanto o motorista tentava lhe devolver os mais de cinquenta reais de
troco.
Ela morava em uma rua cheia de bares noturnos e casas de show. Seu
apartamento ficava no décimo andar, longe de toda a bagunça da vida
noturna, mas ali, na rua, era impossível fugir da alegria dos grupos de amigos
e casais felizes, que pareciam zombar de seu desespero, bebendo
despreocupados com suas risadas altas e espalhafatosas. Um ou outro bar
tinha cantores inspirados, com seus violões afinados, espalhando mais da
alegria que não era capaz de lhe alcançar.
Bárbara se preparou para atravessar a rua. Olhou de relance para o sinal
de trânsito. Estava vermelho para os carros. Quando ela pisou no asfalto,
sentiu os primeiros pingos de chuva. Um passo, dois, três. O quatro sempre
fora seu número de sorte, mas a sorte é algo que mais cedo ou mais tarde,
invariavelmente, nos abandona.
Ela não notou o carro desgovernado que avançou o sinal fazendo um
ziguezague enlouquecido pela rua, provocando xingamentos. Provavelmente
um motorista embriagado, o que era comum naquele bairro onde a bebida se
oferecia em todos os cantos.
Talvez o quatro fosse mesmo seu número de sorte, pois a pancada foi
tão forte que ela simplesmente não sentiu dor. Algo se quebrou dentro dela
imediatamente após o impacto, privando-a do horror de sequer entender que
tinha sido atropelada por um carro que estava a mais de cem quilômetros por
hora.
Quando abriu novamente os olhos, tudo o que via eram diversos pares
de tênis, sapatos e botas, espalhados ao seu redor. Os rostos de seus donos
estavam em algum lugar que os olhos de Bárbara não podiam alcançar.
Mexer o pescoço era impossível. Assim como todo o resto de seu corpo,
cujas sensações eram inexistentes.
Seus ouvidos pouco discerniam do que era falado ao seu redor. Um
flash ou outro de câmera pipocava em algum lugar no extremo de seu campo
de visão.
-Socorro! – gritavam uns.
-Meu Deus! – exclamavam outros.
-Al ém a tou a pla a..?
-Al ém vi o car o?
-Cham m um ambulncia!
Os primeiros a lhe abandonar foram os sons. Vogais e consoantes lhe
fugiam, deixando lacunas que dificultavam o entendimento.
Depois a visão, na qual se formavam pontos negros. Manchas que
cresciam, aqui e acolá, encontrando-se, mesclando-se, devoravam o mundo
ao seu redor.
Alguma coisa caía sobre sua face. Era frio e fazia a pele formigar. Num
último esforço ela viu a chuva. Os pingos tamborilando diante de seu rosto.
Se houvesse tempo para um último pensamento, antes de ser tragada
para a escuridão, seria ele voltado para os pais, que assistiam à cena da janela
do apartamento, sem saber que era a própria filha ali, deitada no asfalto?
Seria sobre o namorado, que estava preso e com o futuro incerto? Ou seria
sobre Luís, que deixara em sua boca o amargo sabor da decepção?

Capítulo 16

-Você não foi pra casa, foi? – perguntou Elis assim que pisou na sala de
Fred, nas primeiras horas da manhã.
-Não.
-Fred, você precisa descansar, – disse ela, trazendo o café da manhã
para o parceiro - acredito que você também não comeu nada.
-Não – lacônico novamente.
-Eu trouxe café extra forte, sanduíches e uns donuts, você precisa de
algum açúcar no sangue.
-Donuts? Sério? Estamos em algum seriado americano? Porque se for,
eu quero receber o mesmo cachê do Kiefer Sutherland – respondeu Fred, com
um sorriso cansado.
-Pelo menos me diga que conseguiu cochilar aí nessa cadeira.
-Acho que sim, um pouco.
-Alguma notícia do Rogério?
-Ainda não – o detetive aprumou o corpo e estendeu a mão para a
bebida fumegante. Em seguida se lançou sobre o sanduíche de pão francês.
Alface e tomate dividiam espaço com o patê de presunto.
-Isso está muito bom – elogiou entre uma grande mordida e outra.
-Qual seu pressentimento sobre tudo isso? – quis saber Elis, ciente de
que o parceiro tinha bons instintos.
Fred limpou a boca num guardanapo e se recostou novamente na
cadeira.
-Eu não sei. Aquela coisa com os livros não parece combinar com o
perfil de um assassino tão metódico.
-Talvez ele simplesmente não esperasse que o amigo os encontrasse, ou
que teria coragem para denunciá-lo.
-Não sei. Tudo isso me parece descuidado demais para alguém que é
capaz de entrar e sair de uma cena de crime sem deixar vestígios.
-Fred, você sabe mais do que ninguém que existem dois momentos
mais propícios para um assassino serial se permitir errar. Um, quando ele é
pressionado por sua compulsão e começa agir fora de seus padrões normais,
ou dois, quando se sente imbatível, tão acima dos demais na cadeia evolutiva
que acredita que jamais será pego e, assim, começa a relaxar.
-Eu sei disso, Elis, mas não consigo deixar de pensar que este erro não
combina com o homem por trás destes crimes.
-Então você acha que os exames vão dar negativo – rebateu Elis.
-Mais uma vez, eu não sei.
-O hospital já enviou os horários e a escala de trabalho do cirurgião?
-Sim.
-E então? – a pergunta de Elis soou ansiosa.
-Ele não estava no hospital em nenhuma das datas, de nenhum dos
ataques.
-Três datas e em nenhuma delas ele estava trabalhando?
-Exato – respondeu Fred.
-Mas, isso...
-Isso ainda não prova nada.
-Fred, eu preciso te lembrar que o rapaz é um médico, e não de uma
especialidade qualquer, ele é um cirurgião com acesso aos medicamentos
utilizados pelo assassino, claro que ele ainda pode ter um álibi, mas e se não
tiver, e se os exames derem positivo?
-Então o Maciel finalmente vai ter o rosto que ele tanto esperava para
exibir frente às câmeras. E eu poderei descansar.
Quando o telefone da sala de Fred tocou, ele se lançou sobre o aparelho
como um predador atacando sua presa. A voz de Rogério do outro lado da
linha era exatamente o que ele esperava.
-Estou preparando o material para enviar, mas achei que você gostaria
de saber em primeira mão.
-Diga logo! É o sangue das vítimas?
A resposta fez o detetive arregalar os olhos.
***
Já de posse dos relatórios do departamento forense, os detetives
seguiram para o interrogatório, mas não poderiam começar até a chegada do
advogado do cirurgião.
O homem engravatado chegou à sala de interrogatórios ao mesmo
tempo em que Fred e Elis.
-Detetives, bom dia – falou Henrique, dentro de seu terno elegante, a
maleta firmemente segura nas mãos.
-Bom dia. – respondeu Fred - Vamos prosseguir imediatamente com o
interrogatório.
-Senhores, eu gostaria de pedir o adiamento deste interrogatório – o
semblante do advogado era de puro pesar.
-Isso não vai acontecer – afirmou o detetive. Elis cruzou os braços em
desagrado.
-Acontece que houve uma fatalidade. A namorada do meu cliente
morreu na noite passada, atropelada por um motorista bêbado.
Os detetives se entreolharam. Não esperavam por aquela. Fred tinha
visto a garota na noite anterior. Tão jovem e tão bela. Após discutir com o
livreiro, ela pegou um táxi e deixou o rapaz falando sozinho.
-Você tem meia hora – afirmou Fred.
-Mas detetive...
-Eu disse meia hora, e nem um minuto a mais.
***
Quando Pedro viu seu advogado surgir no vão da porta, ficou
imediatamente de pé, pelo semblante do homem, era fácil prever que ele
portava más notícias.
-Bom dia, Henrique. O que tem para mim? Descobriu alguma forma de
me tirar dessa? Os resultados das tais análises, como foram?
-Eu ainda não sei, os detetives são espertos, vão usar isso na hora certa,
mas antes de falar sobre o caso, eu preciso... eu preciso...
-Henrique, que foi que houve?
-Acho melhor você se sentar – falou o advogado, sem conseguir encarar
seu cliente.
-Henrique! O que houve?
-É a Bárbara.
-O que tem ela?
-Houve um acidente de carro.
Pedro se sentou lentamente. Uma sensação terrível se apoderando dele.
-Ela está bem? Pra qual hospital foi levada?
-Eu sinto muito, Pedro, eu realmente sinto muito, mas...
-Não me diga que... – a voz do rapaz desapareceu na garganta. Sentia-
se sufocar. Um vazio enorme o devorava por dentro. As paredes já apertadas
da sala pareciam ir ao seu encontro, ameaçando esmagá-lo.
-Não, não. Eu a vi ontem, ela estava bem.
-Ela se foi. Eu sinto muito, mas ela não resistiu – o advogado tinha
lágrimas nos olhos – eu lhe ofereci uma carona, mas ela não aceitou. Disse
que queria caminhar, que queria pensar sobre tudo isso. Talvez, se eu tivesse
insistido um pouco mais, ela pudesse ter chegado em casa em segurança.
A primeira lágrima desceu acompanhada apenas do silêncio, traçando
morosamente no rosto do rapaz uma linha trêmula rumo ao queixo. As
demais irromperam desenfreadas, furiosas, em meio a um número sem fim de
soluços.
-Pegaram o desgraçado que fez isso?
-Infelizmente, não. Ele escapou. As testemunhas afirmaram que ela foi
atropelada por um Audi prata, mas ninguém conseguiu anotar a placa. O
motorista fugiu sem prestar auxílio. Pela maneira enlouquecida com que
dirigia, provavelmente estava embriagado.
-Então é isso? Ela morreu por nada? O culpado não será encontrado?
O advogado se manteve recluso num silencioso pesar.
Inúmeros eram os arrependimentos que passaram pela mente de Pedro.
As traições, mentiras e segredos escondidos, pesando agora como uma
âncora, que o arrastava para o fundo de um poço escuro e desolado.
Ele ficou de pé e se pôs a dar voltas pela sala. Agachou em um canto
fitando o vazio. Levantou-se novamente e voltou a caminhar. Parou
novamente, bateu a testa contra a parede e, após vários socos contra o
concreto, viu o sangue fluir entre seus dedos. Somente naquele momento,
vendo o líquido escarlate escorrer, ele parou.
-Pedro, eu preciso que você seja forte – pediu Henrique, ligeiramente
abalado pela reação de seu cliente, cujos olhos vítreos e frios beiravam a
insanidade – me desculpe não permitir que você tenha o luto adequado para
com a mulher que você amava, mas precisamos falar sobre o caso. Eu preciso
que você se sente nessa cadeira e se mantenha concentrado, pois, em alguns
minutos, os detetives entrarão por aquela porta e irão pressioná-lo com tudo o
que tiverem.
O cirurgião se virou para o advogado.
-Você acha que pode fazer isso? Acha que pode se concentrar?
Pedro anuiu e voltou para a cadeira, os olhos ainda lacrimejavam
quando ele aceitou o lenço do advogado para deter o sangramento dos dedos
arrastados contra a parede.
-Pedro, você me disse que nas datas dos crimes não estava trabalhando.
Disse que estava em casa. Eu preciso de testemunhas que confirmem isso.
-Não há nenhuma – a resposta foi fria.
-Precisa haver.
-Não há! Eu já disse que não há! Por que a minha palavra não basta
para você? – gritou o rapaz, que se levantou e bateu as mãos espalmadas
sobre a mesa.
-Pedro, eu sou o seu advogado. Sou a única pessoa que pode ajudá-lo,
mas preciso saber a verdade antes que os policiais passem por aquela porta.
Você matou aquelas pessoas?
***
Vinte minutos depois
Os detetives encontraram advogado e cliente sentados lado a lado. Fred
e Elis notaram que o cirurgião parecia outra pessoa. Completamente
desolado, ele apenas fitava o vazio, indiferente à chegada dos dois.
-Antes de tudo, nós gostaríamos de expressar nosso pesar pela sua
perda – disse Fred. Elis inclinou levemente a cabeça em concordância. O
cirurgião não respondeu – mas devemos dizer que isso não nos impedirá de
fazermos nosso trabalho.
-Digam logo o que têm a dizer, detetives – pediu Henrique, enquanto
Fred e Elis tomavam seus assentos.
Fred começou indo direto ao ponto, perguntando ao cirurgião onde ele
estava nas datas e hora dos crimes.
O rapaz afirmou sem melindres que estava em casa, sozinho. Sem
ninguém que pudesse testemunhar a seu favor.
-E quanto aos livros encontrados na estante de sua casa, o que pode nos
dizer sobre eles, doutor?
-Eu nunca os vi – respondeu Pedro.
-Fred, eu acredito que, nesse caso, podemos seguir para uma pergunta
mais aguda – disse Elis – diga-me, doutor Pedro, por que você matou Natália
Brummer?
-Eu não matei ninguém – a resposta veio em tom moderado.
-Por que você matou Átila Fernandes e Cléo Junqueira?
-Eu já disse que não matei ninguém! – ele elevou seu tom de voz.
-Pedro, acalme-se, eles estão apenas tentando te tirar do sério. Se
tivessem alguma prova conclusiva, já a teriam esfregado em nossas caras.
Elis sorriu para o advogado. Se havia uma espécie de pessoa que ela
odiava, eram advogados que defendiam assassinos.
Ela jogou sobre a mesa os resultados das análises sanguíneas.
-Você sabe o que é isso, Doutor Pedro? – ela falou o nome do médico
pontuando cada sílaba – São as provas que precisamos para colocá-lo na
cadeia pelo resto de sua vidinha medíocre!
-O sangue encontrado nos livros pertence a cada uma das vítimas –
completou Fred.
-Isso não prova absolutamente nada – respondeu Henrique tentando
disfarçar o quanto ficara abalado – eles podem ter sido colocados na estante
do meu cliente, com o propósito de incriminá-lo.
-Você tem certeza? Se isso é verdade, talvez você possa explicar o
resultado dessa outra análise – falou Elis, colocando novos papéis sobre a
mesa.
O advogado pegou avidamente os relatórios. Após ler as conclusões,
não pôde conter sua decepção com Pedro, que momentos atrás tinha jurado
sua inocência.
-Como vocês podem ver, as digitais encontradas nos três livros
pertencem a você, doutor Pedro, que disse mais de uma vez que jamais tinha
visto aqueles livros. Acho são provas suficientes para que qualquer júri o
coloque atrás das grades – falou Elis.
-E isto aqui – Fred lançou uma nova folha sobre a mesa – é a sua
confissão. Basta assinar e terminamos com isso.
-Vão à merda! – gritou Pedro, levantando-se abruptamente – Vão se
foder vocês dois, seus desgraçados do caralho!
-Se você prefere o jeito mais difícil, tudo bem – os detetives se
levantaram e deixaram a sala.

Capítulo 17

A planície pontuada por uma miríade de lápides, alinhadas com esmero,


era banhada pelas luzes carmim do crepúsculo, que, filtradas pelas copas das
árvores, desenhavam sombras tristes que se moviam conforme os rumos
imprevisíveis do vento. Gotas morosas de chuva se precipitavam
preguiçosamente das folhagens rumo ao chão, aumentando a sensação de
melancolia naquela tarde fria, de corações gélidos.
O cheiro de terra, grama molhada e dos crisântemos organizados em
coroas contribuía para reafirmar a certeza de que uma vida tinha se
extinguido.
O choro constante e lamurioso de dona Rafaela e seu Eustáquio, pais de
Bárbara, que seguiam perto do caixão, marcava os passos daqueles que
acompanhavam o cortejo fúnebre até a vala sulcada na terra, que esperava
para receber a jovem, enclausurada na caixa amadeirada, cheirando a verniz
recém-pintado, que seria agora sua eterna morada.
Amigos e parentes se misturavam, unidos por seus pesares e lamentos.
Luís, Fernanda e Bernardo seguiam perto uns dos outros. A moça
debruçava-se sobre o ombro de Bernardo, chorando de forma incontrolável.
O rapaz tinha um olhar distante e sem vida, como quem ainda não conseguia
acreditar. Já Luís seguia imerso em silêncio. Não tinha dito palavra alguma
desde que chegara ao cemitério.
O livreiro carregava no peito um enorme pesar. Não conseguia deixar
de pensar que a culpa era sua. Se eles não tivessem discutido, se ele tivesse
simplesmente se calado, se tivesse escolhido conversar com Bárbara em outra
ocasião. Eram tantos os “se”, e cada um deles era como um espinho em seu
peito. Um bolo em sua garganta que ameaçava impedi-lo de respirar.
Quando o cortejo encontrou seu local de destino, e o caixão foi
alinhado sobre a cova vazia, o padre, escolhido pela família de cunho
católico, tomou a palavra.
Após citar um versículo adequado, que pouco alívio trouxe aos
corações dos presentes, o pároco se pôs a procurar palavras que servissem
melhor àquele propósito.
-Meus queridos irmãos e irmãs – o padre estava visivelmente
entristecido, ele tinha visto a moça crescer e a recebia todos os fins de
semana em sua igreja, desde quando era uma criança de colo.
-A vida que perdemos hoje era de fato preciosa, como todas aquelas
que se vão, mas não posso deixar de dizer que Bárbara era uma moça
especial. Dotada de uma doçura que raras vezes encontramos, esta fiel serva
do senhor era também uma filha amada e amiga pela qual todos tinham
grande estima...
-Eu não posso mais – disse Luís se distanciando dos amigos. Ele
caminhou com passos trôpegos, enquanto tentava se desvencilhar da
aglomeração de pessoas ali reunidas para o último adeus.
-Espera, Luís. – chamou-o Bernardo, que deixou Fernanda sozinha. A
moça parecia hipnotizada e confortada pelo adeus emocionado do padre.
Luís ganhou distância do enterro, mas parou quando ouviu a voz de
Bernardo às suas costas.
-Você a amava.
-Você não sabe de nada!
Ele se virou para o amigo.
-Você a amava e ela se foi. Nós perdemos uma amiga, uma grande
amiga, mas você perdeu a mulher que amava.
O que Bernardo encontrou no rosto do amigo foi o sorriso mais triste
que já tinha visto.
-Eu a amava desde muito antes de descobrir o que era amor –
desabafou Luís – não consigo me lembrar de nenhuma fase da minha vida
onde já não existisse a Bárbara, e agora... agora... Eu tenho mesmo que viver
sem ela?
Fernanda surgiu ao lado dos dois. Ela não disse nada, apenas abraçou
Luís, que se lançou em um choro convulsivo, até então represado.
Bernardo se juntou a eles, e ficaram assim por um bom tempo.
A chuva fina tornou a cair, envolvendo os três. Naquele momento eles
eram apenas um, reunidos em torno de sua imensurável perda.
-Obrigado, mas eu preciso ir. Eu preciso ficar sozinho – disse Luís
afastando-se.
-Acho que o mesmo serve pra mim – concordou Fernanda – tudo o que
quero é me enrolar em uma coberta e dormir, para não precisar mais pensar
em nada disso.
Bernardo virou-se para o local do enterro e após um último adeus
silencioso, também se foi.
***
-Você não acha que isso tudo é meio precipitado? – perguntou Fred,
que tinha os braços cruzados e clara expressão de desagrado. Estavam do
lado de fora da sala onde o superintendente Maciel estava preparando uma
coletiva de imprensa.
-Acabou, Fred. Nós pegamos o desgraçado. Rogério, diz pra ele
relaxar, porque esse cabeça-dura não escuta nada do que eu falo – respondeu
Elis, voltando-se para o oficial do departamento forense.
Além dele, estavam por ali muitos outros curiosos do departamento de
polícia, que apareceram para acompanhar o desfecho do caso mais famoso
dos últimos tempos.
-Acho que o problema com o Fred é que ele queria ser algum tipo de
herói. Salvando a mocinha em perigo de um prédio em chamas, mas no final
não foi necessário, então ele está se sentindo pra baixo – concluiu Rogério.
-Vá se ferrar, Rogério – Fred já se preparava para sair dali, quando
Flávio, o rapaz da informática, se pronunciou.
-Acho que tivemos sorte, pois se o assassino tivesse tempo para agir
mais uma vez, talvez não o pegássemos.
-Como é? – Fred se virou para fitar o rapazote, era quase duas cabeças
mais alto que ele, e nem precisou se esforçar para fazer o jovem recuar – Nós
temos a casa do próximo alvo sob vigília, nós o pegaríamos assim que ele
agisse.
-Por falar nisso, acho que já podemos dispensar os policiais que estão
vigiando o apartamento de Tito Machado – disse Elis.
-Ainda não – rebateu o detetive.
-Mas Fred, acabou.
-Detetive – falou novamente o jovem da informática, encontrando a
coragem necessária para encarar novamente o olhar de pedra de Fred – eu
disse aquilo porque hoje à tarde eu estava analisando a lista que você montou,
com os sobrenomes dos escritores em ordem alfabética, e descobri que a
primeira publicação do livro policial da autora Tatiana Teixeira foi feita sob
um pseudônimo. E, se o assassino fosse levar isso em conta, ela poderia ser a
próxima, e não Tito Machado, pois o nome que ela escolheu para a
publicação foi Karina Klein.
-O que você disse, garoto? – Fred se aproximou ainda mais do rapaz.
-Karina Klein... senhor... O primeiro livro que ela publicou é um
romance policial muito bom, é sobre crimes ritualísticos, mas pouca gente
conhece, pois saiu por uma editora muito pequena. Ele se chama “O Portal da
Morte.”
-Mas que merda!
-Fred, fique calmo, o assassino está preso – falou Elis – ninguém mais
está correndo perigo.
-E se não for ele?
-Há o sangue das vítimas e as digitais nos livros, Fred. Além do mais,
ele não tem um álibi.
-Bem, eu não tenho mais nada a fazer aqui, então farei uma visita para
Tatiana Teixeira, ou melhor, Karina Klein. Talvez assim eu consiga ficar em
paz.
-Ok, seu cabeça-dura. Eu vou com você – disse Elis.

***
-Você não quer mesmo que isso acabe, não é? – perguntou Elis,
enquanto dirigia pelas ruas molhadas. O vai e vem do limpador de para-brisa
fazia um barulho irritante, que competia com o tamborilar da chuva.
-Não se trata disso Elis, eu só quero ter certeza de que essas pessoas
estão bem. Você ligou para os policiais que estão vigiando a casa do Tito
Machado?
-Sim, está tudo calmo por lá.
-Ótimo.
Em quarenta minutos eles estacionavam em frente à casa de Tatiane
Teixeira. O imóvel ficava em um bairro de classe alta. Casas de dois andares,
com cercados e jardins bem cuidados, e com arbustos cortados em formações
geométricas, lembravam bairros de cidades interioranas dos Estados Unidos.
Os detetives atravessaram a rua e foram até a porta da escritora. As
luzes estavam acesas, mas nenhum movimento podia ser visto através das
janelas fechadas com cortinas.
Fred estendeu o dedo para a campainha emoldurada na parede revestida
de madeira branca.
Após o terceiro toque, ninguém atendeu.
O detetive se voltou para a parceira, ansioso.
-Relaxa, Fred, meu Deus, que coisa. Ela deve estar no banho.
O detetive afundou o dedo na campainha de forma ininterrupta.
-Acho que isso tiraria qualquer um do banho – disse ele antes de sacar a
arma e começar a contornar a casa – você fica aqui e espera.
-Fred, por favor, não vá invadir a casa da mulher – pediu Elis.
O detetive não lhe deu ouvidos e seguiu pela lateral do imóvel. A
escuridão do beco não lhe permitiu ver a mangueira que se enlaçou em seus
pés, quase o derrubando, e lhe arrancando um palavrão que foi engolido pelo
barulho da chuva.
Fred desviou de um cortador de grama e chegou até o fim da linha.
Uma grade alta, que preservava o quintal da casa da entrada de curiosos
como ele.
-Merda.
O detetive já se preparava para voltar quando viu um vulto seguir para
os fundos da casa e lançar-se sobre o muro, transpondo-o em uma escalada
hábil.
Fred imediatamente escalou a grade e saltou para o outro lado.
Nos fundos da casa, ele contornou a piscina e a churrasqueira, e
procurou apoio no muro quase liso. Com algum esforço, conseguiu se sentar
no topo da amurada, mas tudo o que viu dali foi uma rua escura, sem
movimento algum. Teriam seus olhos lhe pregado uma peça, enganados pela
escuridão da noite? – ele se perguntou – Não! Eu sei o que vi! – respondeu
pra si mesmo.
O policial desceu do muro e sacou novamente a arma. A porta dos
fundos estava aberta e batia ao sabor do vento.
“Mau sinal”.
Ele caminhou em direção a casa. A Glock apontada, em riste, pronta
para ser usada. Seu dedo deslizando pelo metal molhado de chuva.
Com uma das mãos ele empurrou a porta e entrou. Estava em uma
cozinha, limpa e organizada. A brancura da cerâmica era entrecortada por
móveis de madeira, mesa, armários e bancadas avermelhadas.
A visão do detetive pairou por alguns segundos sobre o faqueiro que
ficava na parede. Pelo espaço deixado, como em uma boca banguela, faltava
uma faca, uma das grandes.
O detetive seguiu com atenção redobrada. O silêncio na casa era
absoluto.
Ele caminhou rumo à sala, a arma segura firmemente em suas mãos.
O que viu primeiro foi a beirada de um círculo, pintado no chão em
vermelho. Antes de dar o próximo passo, ele já sabia que não iria gostar do
que estava prestes a ver.
Dentro do círculo de sangue fora desenhado um pentagrama, e sobre
ele estava o corpo nu da escritora Tatiane Teixeira. Os braços e pernas
abertos, cada um alcançando uma das pontas da estrela macabra. O peito
estava coberto por múltiplas lacerações. A arma do crime estava ao lado do
corpo. Uma grande faca de desossa, cujo metal já não se via sob o sangue
espesso e pegajoso.
Fred caminhou até a porta. Usando a chave que ainda estava
dependurada na fechadura, presa em um chaveiro do Flamengo, ele permitiu
a entrada de Elis.
Não foi necessário mais do que um olhar, para que a parceira entrasse
em alarde.
-Deus! Não... – Elis não conseguiu completar a frase.
Fred abriu caminho para que ela contemplasse a cena bizarra.
-Que merda, Fred! Que merda! Eu não consigo acreditar. Ele pode ter
feito isso nos últimos dias? Antes de ter sido preso?
-Não. Aconteceu agora. Pouco antes de chegarmos.
-Você tem certeza? – perguntou Elis enquanto rodeava o corpo que era
a estrela principal daquela cena, que claramente representava um crime
ritualístico.
-Tenho. Veja o sangue. Está fresco. Além do mais, acho que vi o
assassino fugir pulando o muro para a rua de trás.
-Mas que droga – mas ele não ouviu a última frase dita pela parceira,
sentiu-se zonzo, o estômago embrulhando, teria ido ao chão se não tivesse
escorado no sofá.
-Fred. O que você tem?
-Já passou. Eu estou bem – disse aprumando novamente o corpo.
-Essa não é a primeira vez, você precisa de um médico.
-Quando tudo isso terminar, talvez eu procure um.
-Talvez? – quando Elis pegou o telefone para discar para a central, eles
ouviram um barulho. Vinha de algum lugar no corredor à esquerda.
Fred retomou sua arma e pegou a dianteira, investindo pelo corredor.
Quando passavam por um armário que ficava debaixo da escada,
ouviram novamente o barulho que vinha dali.
Elis ultrapassou o parceiro e estendeu a mão para a maçaneta. Fred
apontou a arma para a porta, pronto para disparar.
A detetive fez uma contagem rápida e silenciosa, usando os dedos. No
três Elis puxou a porta de uma só vez.
-Polícia! – gritou Fred com a arma em riste, mas o homem que estava
caído ali dentro, envolvido pela escuridão, mal conseguia erguer a cabeça.
-Graças a Deus – disse por fim o velho de olhos vermelhos e rosto
cansado, voltando a cabeça com grande dificuldade para o detetive.
-Quem é você? - perguntou Fred.
-Minha filha – o velho tossiu e precisou sugar o ar em grandes golfadas
para terminar a frase – ela está bem?
Fred e Elis se entreolharam.
O detetive ajudou o homem a ficar de pé. Suas pernas pareciam de
borracha, e Elis precisou ajudar. Guiaram-no para o fim do corredor, onde
poderiam encontrar um lugar para conversarem, a fim de preparar o pai para a
imagem brutal da filha morta.
Entraram em um quarto que tinha uma cama grande e confortável. Os
detetives o deitaram ali.
-Minha filha...
-Você pode nos contar o que aconteceu? O que você viu? – perguntou
Fred, esperançoso de encontrar no depoimento do homem alguma pista
concreta.
-Eu estava... coff coff... no quintal..., então, alguma coisa me acertou no
pescoço – ele instintivamente levou a mão ao local – quando acordei estava
num lugar escuro. Eu ouvi barulhos, pareciam móveis sendo arrastados,
depois algum aparelho elétrico, como um aspirador de pó, acho que nesse
momento eu apaguei de novo. Acordei novamente sem saber quanto tempo
tinha se passado, tentei desesperado ficar de pé, mas não tinha forças, então
comecei a chutar a porta.
-Qual o seu nome? – perguntou o detetive.
-Norberto.
-Senhor Norberto, eu sinto lhe informar que sua casa foi invadida –
Fred tinha dificuldade em encontrar as palavras, não havia maneira de
amenizar aquela situação – e o invasor tirou a vida de sua filha.
-Não, não...
-Eu sinto muito.
-Não! Não! Não! – A negação veemente sobrepunha-se ao choro.
-Senhor Norberto, nós realmente sentimos muito – Elis também se
pronunciou.
-Eu quero vê-la. Quero ver minha filha.
-Fred, vá ligar para central, me deixe conversar com ele – pediu Elis –
senhor Norberto, você precisa se acalmar...
O detetive voltou pelo corredor, telefone junto ao ouvido. Lembrou-se
de que faltava algo. Ele olhou para todas as paredes em busca do texto em
letras de sangue, mas não o encontrou. Teriam eles espantado o assassino
antes que ele tivesse tempo para terminar?
Voltou-se então para a vítima, que com olhos mortos olhava para
cima. Fred acompanhou o olhar de Tatiana e, no gesso do teto, ele encontrou
o que faltava.
-Desgraçado...
-Quem é desgraçado, Fred? – era a voz de Maciel do outro lado da
linha.
-Me diga que ainda não fez a besteira de falar diante das câmeras.
-Você está em casa? Ligue a TV, eles ainda devem estar reprisando
nosso final triunfal.
-Triunfal o caralho! Acabei de encontrar outra vítima. Pegamos o cara
errado.
-O quê? Como? Isso é impossível... – a voz do comissário se perdeu do
outro lado da linha. A ligação caiu.
O detetive ficou imaginando o quanto o superintendente tinha se
vangloriado frente às câmeras e microfones das inúmeras redes de TV, rádio
e internet. Ele calculou que depois daquilo a carreira de Maciel estava
acabada, e talvez sobrasse para ele, Elis e para todo o departamento.
Fitando o teto, ele leu:
“ele arrancou a faca com tanta força do coração pulsante que o sangue,
que jorrou para o ar, molhou os livros na parede da livraria a metros de
distância”

-Filho de uma puta – murmurou o detetive, que levou as mãos à cabeça,


completamente sem rumo. Aquela seria mais uma noite em claro.
Capítulo 18

A delegacia estava movimentada. As pessoas passavam apressadas de


um lado para o outro. Maciel tinha se trancado em sua sala e não recebia
ninguém. Algumas pessoas comentavam que ele bateu a porta com força,
assim que seu telefone tocou, e não mais a abriu.
-Fred, por que você não vai pra casa e descansa? – sugeriu Elis.
Faltavam poucas horas para amanhecer – Deixa o pessoal da perícia
trabalhar. Acredito que dessa vez o desgraçado tenha deixado alguma coisa
para trás. Nós devemos ter assustado ele.
-Isso não aconteceu.
-Como você pode saber?
-Eu apenas sei – insistiu o detetive – acho que ele estava limpando a
casa quando chegamos. O barulho que o seu Norberto ouviu deve ter sido de
um aspirador de pó usado pra se livrar de fios de cabelo. Eu consigo imaginá-
lo limpando cada superfície com a qual teve contato. O pessoal do Rogério
não vai achar nada.
-Deixe de ser pessimista, Fred.
-Estou sendo realista.
-Você precisa é descansar. O que foi aquilo lá? Você quase foi ao chão,
e não foi a primeira vez.
-Eu estou bem – o detetive consultou o relógio – Acho que vou seguir
seu conselho. Vou pra casa tentar dormir. Me ligue se houver alguma
novidade.
Ele não esperou resposta, apenas deu as costas à parceira e seguiu pelo
corredor. Elis balançou a cabeça, como uma mãe insatisfeita com um filho. E
ela sequer sabia que Fred não planejava ir para casa. Aquilo nem mesmo
passou por sua cabeça. Ele tinha outro plano em mente, e Elis só iria
atrapalhar.
***
Algumas horas depois.
O motorista de Romero Garcia estacionou em sua vaga privativa
habitual, no estacionamento do prédio do meuídolo.com. O segurança desceu
do carro e abriu a porta para o empresário, que saiu e esticou o corpo,
desamassando o traje esportivo.
Quando caminhava em direção ao elevador, ele viu um homem
encostado em um antigo Civic. Parecia esperar por ele, pois aprumou o corpo
e se colocou em seu caminho. O segurança de Romero imediatamente tomou
a frente do patrão.
-Romero Garcia – falou Fred, cuspindo as palavras com asco.
-Detetive Frederico, bom dia! – rebateu o empresário com a mesma
energia de sempre.
-Eu não saio daqui sem saber o que preciso – as palavras do detetive
eram firmes.
Romero balançou a cabeça.
-Você é mesmo um cara persistente. Não pensei que o veria de novo
depois da surra que meu advogado deu em vocês. Aquilo foi muito divertido.
Fred deu um passo em direção a Romero, seu ódio para com o
empresário, somado às noites sem dormir e todos os seus demais pesares, se
condensavam e se transformavam em fúria cega. O segurança, que
inacreditavelmente parecia mais alto que o detetive, colocou-se à sua frente.
-E você veio até aqui para tirar de mim as informações à força? Como
aqueles policiais fora-da-lei dos seriados americanos? Jack Bauer... adorei!
O empresário bateu palmas, entusiasmado. O som ecoou pelo
estacionamento vazio.
Fred queria muito arrancar aquele sorriso do rosto de Romero. Vinha
sonhando com aquilo. Aquele era seu único pensamento quando tentou passar
pelo segurança.
O gigante tentou detê-lo, levando as mãos ao peito de Fred, mas, com
uma manobra ágil, o detetive torceu o braço do segurança.
-Uou! – exclamou Romero.
Mas o homem era verdadeiramente bem treinado e conseguiu se livrar,
acertando Fred com uma cotovelada.
-Essa foi boa, essa foi muito boa! – o empresário vibrava como um
locutor esportivo.
Fred se desviou de um soco e, com um ataque com a mão aberta,
acertou o pescoço do homem, que recuou sem conseguir respirar, mas,
quando Fred investia contra Romero, o segurança se recuperou e o segurou
pelos ombros. Um chute na parte de trás do joelho esquerdo fez Fred dobrar-
se. Enlouquecido, o detetive puxou a arma e apontou para os testículos do
segurança.
-Cara, você é demais, Fred! Sério! Você realmente conquistou o meu
respeito. Vamos fazer o seguinte, eu vou te propor um acordo onde ambos
saem ganhando. Você já pode abaixar essa arma.
Romero se pôs a caminhar de um lado para o outro. Dava pequenos
saltos de empolgação.
-Você vai seguir o meu carro até uma academia que fica aqui perto.
Eles estão fechados para reforma, mas eu sou o dono, então eu tenho a chave
– disse aquilo em ar conspiratório – e se você conseguir me vencer num
ringue, eu o ajudo. Você luta boxe, Fred?
-Você é um maldito lunático.
-Eu prefiro o termo lifeaholic. Sou apaixonado pela vida, pela minha, é
claro. Vamos todos morrer algum dia, detetive, é preciso aproveitar e se
divertir. Já fiz loucuras que você nem imagina. E então, você aceita? – o
homem sorria de orelha a orelha.
***

Quando pisou na academia, Fred ainda não conseguia acreditar que


tinha aceitado o acordo. O lugar era enorme, os aparelhos eram modernos e
de aparência caríssima. O detetive deduziu que os preços das mensalidades
não caberiam no bolso de qualquer um.
Romero abriu um dos armários que ficava ao redor do ringue e pegou
um par de luvas leves, mediu seu peso e as arremessou para Fred, que estava
sob o olhar atento do segurança.
Para si mesmo, o empresário pegou luvas grandes e acolchoadas.
-Você está de brincadeira? – disse Fred, sentindo-se insultado.
-Não me leve a mal, detetive, mas você é velho e não parece estar
muito em forma – disse com o mesmo sorriso de sempre – considere essa
vantagem como um bônus por ter deixado minha manhã mais divertida. Além
do mais, lembre-se do que está em jogo. Se você não vencer, suas
informações já eram.
“Inacreditável” – pensava Fred – “Esse desgraçado é mesmo maluco,
depois de tudo, ele...”
O detetive apenas balançou a cabeça, ainda sem conseguir acreditar em
quão surreal era aquela proposta, e caminhou em direção ao ringue.
-Vamos logo com isso – disse por fim.
O empresário tirou a camisa e começou um alongamento, os ossos
estalavam alto. Quando Fred percebeu sua compleição física e a extensão
precisa de seus movimentos, soube que tinha se metido em uma enrascada.
Romero podia ser louco, mas aparentava ser um lutador experiente.
-Você gostou da academia? – perguntou Romero enquanto calçava as
luvas – Pretendo abri-la cobrando preços populares. Também vou criar um
programa especial para cuidar de crianças acima do peso, totalmente gratuito.
Eu fui obeso quando criança, sabe... acho isso uma merda. Também acredito
que os pais que permitem essa situação deviam levar uma surra. Você não
acha?
-Por que não cala essa boca e entra logo no ringue? – Fred pensava que
aquele homem era um amálgama que ele jamais decifraria.
-É disso que estou falando, detetive! A cada minuto gosto mais de
você!
Romero tomou seu lugar no lado direito do ringue. Antes de se voltar
para Fred, ele disse ao segurança:
-Não interfira. Não importa o que aconteça. Se você o fizer, está
demitido.
-Sim, senhor.
-E então? Vamos nos divertir ou não?
O empresário tinha o passo leve, ele seguia de um lado para o outro do
ringue com um excelente jogo de pés. O sorriso nunca abandonava o rosto.
Fred foi quem se lançou primeiro ao ataque. O gancho exasperado
passou no vazio. O empresário desviou com facilidade.
-Não, Fred. Não! Assim vai ser muito fácil. Concentre-se, homem.
Romero seguia se movimentando, até que parou bem em frente ao
detetive. Fred tentou novamente, primeiro com um jab, depois um cruzado e
um gancho, todos passando no vazio, enquanto Romero seguia parado. A
parte de cima do tronco se movendo como um pêndulo, desviando pra lá e
pra cá.
O primeiro ataque do empresário veio como um raio, acertando Fred no
baço e o deixando sem ar.
-Uou! Essa foi boa hein detetive? Deve ter doído um bocado!
-Desgraçado – sussurrou Fred.
-O quê? Eu não ouvi – o empresário levou a luva aos ouvidos e Fred se
aproveitou do descuido para se lançar em outro ataque.
Dessa vez não houve tempo para se desviar, mas Romero conseguiu
erguer sua guarda a tempo de proteger a face. Fred seguiu atacando, com
força e precisão redobradas pela fúria que se acumulava em suas entranhas.
Romero não conseguia revidar, então se afastou com agilidade, nenhum
dos golpes tinha lhe acertado em cheio.
-Sim! Sim! É disso que estou falando, detetive. Eu sabia que existia um
animal aí dentro de você, pronto para ser libertado!
-Filho de uma puta!
Fred voou novamente sobre Romero, que se esquivou e contra-atacou
com um direto. Fred conseguiu desviar-se do soco, estava pegando o ritmo, e
revidou com um golpe meio desajeitado, que foi facilmente defendido.
O empresário, que parecia até então estar apenas brincando, se permitiu
aumentar o ritmo, e seus golpes foram ficando cada vez mais rápidos e
pesados, pressionando Fred contra as cordas.
Um gancho passou pela guarda do detetive e o acertou em cheio no
rosto. Se as luvas do empresário fossem mais finas, Fred teria ido a nocaute.
Antes que o prejuízo se tornasse maior, Fred agarrou Romero em um abraço
que era comum aos boxeadores, e o impediu de atacar novamente.
-O que foi? Já se cansou, detetive? Desse jeito o assassino vai continuar
matando por muito tempo ainda.
Com uma fúria cega, emulada pela provocação, Fred se jogou sobre
Romero. Depois de fazer o homem levantar a guarda com inúmeros socos,
ele aplicou uma joelhada na barriga exposta.
Enquanto o empresário se curvava em dor, surpreso por aquela
manobra desleal que quebrava as regras do boxe, Fred lhe chutou as pernas e
o fez cair.
O segurança ameaçou entrar no ringue, mas Romero o deteve com um
gesto.
-Vamos, Fred, é isso o que eu esperava!
O detetive se colocou sobre Romero e começou a socá-lo, inúmeras
vezes. O empresário se defendia da melhor forma possível, mas,
simplesmente, como quem se cansa de apanhar, realizou uma manobra hábil
e, usando as pernas, conseguiu inverter as posições, jogando Fred de lado e
montando sobre ele. Um soco no queixo foi tudo de que ele precisou.
Em meio ao mundo que girava ao seu redor, Fred viu o homem se
levantar, sorrindo vitorioso. O detetive também tentou ficar de pé, mas o
corpo estava mole.
-Te aconselho a ficar aí por alguns instantes, meu amigo – disse
Romero – esse soco pegou em cheio. Você está de parabéns por ainda estar
acordado.
A contragosto, Fred aceitou o conselho, principalmente por perceber
que enxergava três Romeros. Se já odiava um, o jeito era esperar que sua
visão voltasse ao normal e que o mundo parasse de rodar.
Romero tirou as luvas e pegou o notebook que tinha trazido para a
academia.
-Você foi muito bem, detetive. Apesar de derrotado, não vou deixar que
saia de mãos vazias.
Fred se colocou de pé com dificuldade, enquanto o empresário recitava-
lhe um endereço.
-Este é o endereço do tal Batalzar?
-Não, mesmo que você me vencesse, eu não daria informações pessoais
de um cliente.
-Seu desgraçado!
-Acalme-se, detetive, eu disse que iria ajudá-lo. Esse endereço pertence
a uma lan house. O login Baltazar foi acessado de lá, e você pode cruzá-lo
com os horários das mensagens.
-Não vai adiantar nada se o lugar não tiver câmeras – rebateu o
detetive.
-Todos os meus estabelecimentos têm câmeras – o empresário sorriu -
em último caso, eu planejava passar essa informação para a polícia.
-Seu desgraçado. Prendemos o homem errado e outra pessoa foi morta!
-É como eu já disse, Fred, todos têm que morrer um dia. Além do mais,
vou dizer mais uma vez, meu trabalho não é prender criminosos! Esse
trabalho é seu. E por falar nisso, que trabalho porco você vem fazendo –
Romero gargalhou.
-Filho de uma puta!
-Acho que acabamos por aqui. Apareça quando quiser para uma
revanche, mas treine primeiro, do jeito que está, você jamais vai me vencer.
Bata a porta quando sair, ela se trancará sozinha.
Fred estava no máximo da tensão. Queria pegar sua arma e atirar em
Romero pelas costas. Aquela simples ideia absurda o fez sorrir.
***
Fred entrou às pressas na lan house, que também era um café e
livraria. Logo viu que o local tinha muitas câmeras.
Após mostrar seu distintivo para a moça no balcão, ela concordou em
lhe mostrar as filmagens da data que precisava.
Nas imagens, rostos desconhecidos iam e vinham. Um casal de
idosos, uma loira tatuada, outra negra de cabelo afro, um grupo de
adolescentes, um homem de terno...
“Inútil! Tudo isso é inútil” – pensava consigo mesmo, enquanto a
moça que lhe acompanhava tentava entender a situação da qual ele tinha dado
poucas explicações.
Fred estava prestes a decretar aquilo tudo como perda de tempo,
quando viu uma pessoa conhecida passar pela porta. Ficou estático, sem
acreditar no que via.
Consultou suas anotações e viu que a hora do acesso se aproximava.
-Puta que pariu! – exclamou o detetive, fazendo a moça arregalar os
olhos com o palavrão.

Capítulo 19

-Será que dá pra você parar de ficar andando de um lado para o outro,
Fred? Já está me deixando nervosa – pediu Elis.
Sentada de frente para o seu PC, com a cabeça apoiada nos dedos, a
detetive observava as imagens trazidas pelo parceiro. Ao seu lado, Rogério e
Flávio espichavam os pescoços a fim de também conseguirem enxergar a
tela.
-Em nenhum momento ele se aproxima dos computadores – observou
Elis.
-Ele pode ter acessado pelo celular, dá na mesma se ele estiver usando
a rede wifi da lan house – explicou Flávio, especialista no assunto – pelo
tempo em que ele ficou com o aparelho em mãos, é provável.
-Muito bem, o que fazemos então? – perguntou Elis – Isso aqui não
prova absolutamente nada. Ele vai alegar que frequenta o lugar e não
podemos prendê-lo por isso.
-Desgraçado, desgraçado – Fred seguia murmurando para si mesmo,
enquanto continuava com sua caminhada enlouquecida pela sala de Elis, que
era muito mais limpa e organizada que a sua.
-Fred! Que porra! Dá pra você ficar quieto e dizer o que nós vamos
fazer? Aliás, você pode começar explicando como conseguiu convencer o
Romero a nos dar essas imagens. Acredito que tem a ver com essa marca
roxa no seu queixo.
-Isso não importa – respondeu, com uma expressão sombria e
desencorajadora.
Ele finalmente parou e se virou para a parceira.
-Se continuarmos agindo dentro da lei, nunca vamos descobrir porra
nenhuma. Eu tenho um plano para conseguir provas, mas vamos precisar de
você, Flávio.
-Sou todo ouvidos – disse o jovem, empolgado em ajudar.
-Você conseguiria recuperar o histórico do navegador de internet de
um computador? – quis saber o detetive.
-Dependendo da habilidade do usuário, não. Mas se ele tiver
simplesmente excluído o histórico pelos meios comuns, então, sim, posso ser
capaz de conseguir.
-Ótimo. Eu vou convidar o rapaz para dar uma passada aqui, enquanto
isso, você e a Elis vão invadir a casa dele e descobrir tudo o que puderem por
lá. Enquanto ela estiver procurando provas materiais, quero que você
verifique o PC.
-Você está mesmo falando sério? – manifestou-se Rogério.
-Sim, e espero que você não se oponha – contrapôs Fred.
-Bem, se o Flávio topar, não vou tentar impedi-lo, mas pense bem, as
chances de vocês encontrarem alguma coisa são pequenas, e se o rapaz
descobrir, será questão de tempo até um advogado furioso entrar por aquela
porta com uma papelada em mãos, processando o departamento de polícia –
disse Rogério, evocando alguma prudência.
-Nós precisamos nos arriscar – Fred estava decidido – este caso já foi
longe demais. Além do mais, esse rapaz pode muito bem ter armado para
incriminar o amigo. Foi ele quem achou os livros. Como poderia saber que
eles estavam lá?
-Ele falou que os encontrou porque a coleção que os escondia estava
fora de ordem – justificou Elis.
-Sim, mas agora, pensando melhor, isso não me parece suficiente –
argumentou Fred. - Nós estivemos naquela casa, Elis. Eu olhei prateleira por
prateleira e não havia um livro sequer fora de lugar. Tudo estava organizado e
alinhado com perfeição. Não consigo imaginar nosso cirurgião deixando seus
livros à revelia. O que foi usado para nos ludibriar foram aquelas histórias
macabras da infância de Pedro, histórias das quais não podemos comprovar a
veracidade. Além do mais, há outro ponto muito importante.
-E qual é? – faltava pouco para Elis ser convencida.
-A namorada do médico. Nosso amigo era apaixonado por ela.
-E como você pode saber disso?
-Eles discutiram na noite em que a moça foi atropelada. Ela o acusou
de ter denunciado o amigo apenas para separá-los. Eles discutiram feio, bem
na minha frente. Houve tapa e cuspe.
A detetive ergueu as sobrancelhas. Flávio e Rogério também
pareciam convencidos.
-E então, garoto, você está dentro? – Fred se voltou para Flávio.
-É claro que estou dentro – disse ele, ajeitando os óculos com o dedo
indicador.
-Ótimo!
-Fred, você tem certeza disso? – perguntou Elis.
-É como eu falei. Não temos mais tempo para jogar pelas regras. Já
fomos feitos de idiotas vezes demais. Já são quatro pessoas mortas, Elis. Já
experimentou ligar a TV? Somos motivo de chacota nacional.
Elis respirou fundo.
-Acho que você tem razão. Vamos fazer isso – disse enquanto olhava
a imagem do livreiro congelada no monitor. No alto da tela, o horário era
exatamente o mesmo da mensagem enviada para a vítima.
***

O telefone de Luís tocou e a música do The Doors soou alto pela


livraria, reverberando entre as prateleiras e corredores da loja vazia.
-Olá, Luís, boa tarde.
-Boa tarde, é você, detetive? – ele quase não reconheceu a voz.
-Sim. Eu precisava falar com você.
-É sobre o Pedro?
-Sim. Eu tenho uma informação confidencial, que eu gostaria que
você soubesse em primeira mão. A propósito, sobre a sua amiga, eu sinto
muito por sua perda.
-Obrigado. A polícia descobriu quem a atropelou?
-Infelizmente, o dono do carro não foi encontrado. Você não deve
estar muito bem, já que as últimas palavras que dirigiram um ao outro foram
em meio àquela discussão turbulenta.
-Eu realmente estou me sentindo péssimo. Não consigo deixar de
pensar que, se não tivéssemos brigado daquela forma, talvez ela ainda
estivesse aqui.
-Você não pode se culpar por isso. Mas, e então, posso esperar por
você?
-Detetive, eu não creio que possa ajudá-lo em mais alguma coisa. Eu
já disse tudo que sabia sobre o Pedro, e já me sinto mal por isso também.
Meu amigo está atrás das grades por minha causa. Além do mais, esse foi o
motivo da minha discussão com a Barbara. Eu realmente acho que não posso
mais ajudar.
-Tenho certeza de que você pode – o detetive soou confiante.
Após alguns segundos de silêncio, Luís se deu por vencido.
-Posso passar aí à noite, depois de fechar a livraria?
-Sim, claro. Vou esperar por você.
-Ok. Até a noite então.
Luís desligou e ficou olhando para o telefone.
-O que foi, chefe? – perguntou Bianca, que tirava poeira de uma das
estantes.
-Não é nada.
-Tem certeza? Você parece meio tenso.
-Acho que é o estresse com toda essa coisa com o Pedro, e sobre a
Bárbara, que se foi...
-Sim, claro.
-Eu vou subir e descansar um pouco – anunciou.
-Luís, muito obrigada por me aceitar novamente – ela estendeu a mão
para o rosto do livreiro, que aceitou o carinho sem relutar, cansado demais
para combater as investidas de Bianca.

***

Escondidos sob o véu da noite, Elis e Flávio viram o jovem sair da


livraria, entrar em um velho Celta prateado, e dar a partida. Eles atravessaram
a rua assim que o modelo popular desapareceu na esquina.
-Esse lugar não é muito movimentado, mas preciso que você fique de
olho enquanto eu trabalho – disse Elis, que já tinha sacado as ferramentas
necessárias para abrir a porta.
-Sim, senhora.
-Se me chamar de senhora novamente, vou quebrar o seu nariz.
-Sim, senh... desculpe, detetive.
-Elis está ótimo. Agora vigie.
Em menos de um minuto, ela conseguiu destrancar a porta.
-Ainda não acredito que estamos fazendo isso. Estou me sentindo em
um...
-Não complete essa frase, por favor – respondeu a detetive.
Quando a porta se abriu, o inevitável soar do sinete, que ficava sobre
ela, fez os dois pararem, congelados no lugar. O som que deveria fazer-se
amigável soou como um alarme acusador.
-Que merda! – murmurou Elis, passando pela porta e puxando o rapaz
para dentro, fazendo-o tropeçar – Nada de acender as luzes. Nada de falar
alto.
-Sim, sen... Elis.
-Precisamos ser rápidos. O Fred disse que o rapaz mora no piso de
cima. Não acredito que vamos encontrar algo aqui em baixo, então vamos
subir.
Flávio concordou com a cabeça.
A loja estava envolta em uma penumbra amarelada, fruto das luzes dos
postes que eram filtradas pelos vidros da vitrine.
No andar superior, a escuridão era mais intensa. Elis acendeu uma
lanterna de feixe estreito e passou outra para o jovem, que se pôs a procurar
pelo computador de Luís.
Enquanto Elis abria gavetas e portas, tomando o cuidado de devolver
para o lugar exato tudo o que tocava, Flávio encontrou o PC no quarto do
livreiro. O cômodo ficava além da sala e ao lado de um banheiro. Nos fundos,
havia uma pequena cozinha.
Flávio ligou o PC e a claridade da tela iluminou o quarto, revelando
um ambiente grande e confortável. Quando o logo do Windows se fez
presente, o jovem abriu um sorriso. “Um lugar comum”. Tudo o que ele
precisava.
Flávio tomou o mouse em sua mão ao passo em que o primeiro
desafio se anunciou. O computador esperava pela senha do usuário. Ele
estalou os dedos.
-Muito bem, vamos trabalhar. É preciso muito mais do que isso para
me deter – sorriu ao pensar em quantos crimes digitais tinha cometido antes
de se juntar à polícia.
Alguns minutos depois, já verificava o histórico de navegação do
aplicativo de internet. Havia algumas coisas ali, nada demais. Um site de
receitas culinárias, outro de notícias, um grande portal de entretenimento e
alguns sites pornográficos. Nada mais saudável.
-Esse é dos bons. – falou baixinho pra si mesmo – Eu devia anotar.
-Anotar o quê?
O jovem tomou um susto que quase o derrubou no chão. Desde que
ligara o computador, tinha se esquecido completamente de Elis.
-Meu Deus! Você quase me matou de susto.
-Só estamos nós dois aqui, Flávio. Quem você achou que poderia ser?
E então, já encontrou alguma coisa?
-Ainda não, mas estou só começando.
Elis apertou o ombro do rapaz de forma encorajadora e voltou para
sua busca. Incessantemente, ela abriu guarda-roupa, escrivaninha, verificou
debaixo da cama e até mesmo debaixo do colchão. A cada segundo de
fracasso, ela passava a considerar aquela ideia mais e mais absurda.
Ela voltou para a sala deixando o rapaz sozinho, imerso em sua
concentração.
Encontrou na estante onde ficava a TV diversos porta-retratos.
Segurou um deles nas mãos. A luz branca da lanterna revelava a foto de um
feliz grupo de amigos. Pedro e Luís estavam imortalizados em um abraço que
provavelmente jamais se repetiria. Ao lado deles havia uma bela moça ruiva,
um rapaz negro e a morena que falecera. Todos sorrindo, sentados em um bar
com copos nas mãos, erguidos em um brinde.
Elis devolveu o porta-retratos ao seu lugar e lançou o feixe da
lanterna sobre as demais fotografias. Nada mais lhe chamou a
atenção.
-Elis!
Ela correu para o quarto quando ouviu o chamado.
-Você precisava gritar dessa maneira? Quer que todos os vizinhos
saibam que estamos aqui? – protestou ela.
-Me desculpe, acontece que eu consegui recuperar os dados apagados
do navegador e encontrei uma coisa, várias, na verdade. Veja só por onde ele
andou navegando.
Elis correu os olhos por diversas páginas que vendiam a substância
encontrada nos corpos das vítimas. Em sequência, viu pesquisas sobre
lacraias, os animais usados para torturar Átila Fernandes. Havia também
diversas páginas do Google exibindo resultados para os nomes dos escritores
mortos e para outros que ainda não tinham se tornado vítimas.
-Você consegue descobrir algum tipo de pedido de mercadorias nesses
sites?
-Não sei, eu vou tentar, mas é difícil. Muito difícil – respondeu o jovem
com a testa franzida.
-Escute bem. Nada disso aqui tem valor algum se não houver provas
concretas, entende? Se você conseguir um pedido de pancurônio em nome do
rapaz, então nós temos o princípio de um caso, mas se não conseguir, já era,
entende?
Aquelas palavras só serviram para aumentar a pressão sobre os ombros
de Flávio, que já trabalhava acima dos cem por cento de sua concentração e
conhecimento.
-Vamos, vamos! – insistia Elis.
-Detetive, você não está ajudando – disse ele por fim.
Elis ficou caminhando de um lado para o outro no quarto, ansiosa.
Vários minutos depois, o jovem ainda não tinha feito nenhum avanço.
-E então?
-Eu sinto muito, Elis, mas não temos nada.
-Não é possível. Tente mais uma vez.
-Não adianta.
-Eu mandei você tentar – soletrou ela, os sapatos estalando no piso de
madeira como o tique-taque de uma bomba relógio.
Flávio respirou fundo e se pôs a trabalhar novamente, mas depois de
mais alguns minutos, para frustração de Elis, sua resposta foi a mesma.
A policial pegou o telefone e discou para Fred.
-Está tudo aqui, mas ao mesmo tempo não temos nada – disse assim
que escutou a respiração do parceiro.
-Você está brincando – a voz do detetive era carregada de indignação e
de uma fúria incontida.
-Ele navegou por todas as páginas que o assassino teria navegado, está
tudo aqui, o pancurônio, as lacraias, mas não há nada que possamos usar
como prova. Como temos algum tempo, vou pedir o Flávio para revirar esse
maldito computador, mas não tenha esperanças.
O outro da linha ficou silencioso.
-Fred.
Outra dose de silêncio.
-Fred!
-Estou aqui. Tudo bem. Faça isso, continue procurando. Parece que ele
acabou de chegar por aqui, vou ganhar tempo para vocês dois, eu ligo quando
ele se for.
-Ok.
-Vamos ao HD – disse Elis.
-Sim sen... quero dizer... Elis.
-Cale a boca e trabalhe!

Capítulo 20

Fred tentava ao máximo disfarçar sua irritação. Ele tomou um longo


gole do “elixir secreto” que ficava no bolso interno de seu sobretudo antes de
abrir a porta de sua sala para Luís, que o cumprimentou com uma expressão
abatida.
-Venha comigo, vamos conversar em um lugar mais reservado, aqui
não teremos sossego – pediu o detetive, que saiu da sala depois de pegar uma
das pastas no arquivo.
Ele guiou o rapaz até a sala de interrogatórios, entrou e trancou a porta
atrás de si.
-Deve ser mesmo algo muito importante o que você tem pra me dizer –
reagiu Luís ao ranger metálico da fechadura.
-Tenha certeza de que é.
O rapaz tomou a cadeira do outro lado da mesa. O detetive se manteve
de pé, e, por algum tempo, apenas observou Luís.
“Assassino, assassino!”
-E então? – incentivou Luís, mas Fred seguiu apenas encarando o rapaz
por mais alguns longos segundos.
-Acho que você vai gostar de saber que seu amigo é inocente.
Fred concentrou toda a sua atenção em avaliar a reação do rapaz. O que
encontrou no rosto de Luís era difícil de identificar. Havia surpresa, olhos
arregalados, e também uma boa dose de alívio. Se alguma parte daquela
máscara era verdadeira, era difícil de identificar, mesmo para os olhos
treinados do detetive.
“Psicopatas são sempre bons em disfarçar emoções, mas eu vou te
pegar de um jeito ou de outro” – pensava o detetive.
-Que bom. Na verdade, eu mal tenho dormido desde que decidi
denunciá-lo. Ao mesmo tempo em que eu tinha certeza de ter feito a coisa
certa, não conseguia deixar de pensar que foi uma grande traição com o meu
amigo, e acho que ele jamais vai me perdoar.
-Acontece, Luís, que as manchas vermelhas nos livros que você
encontrou eram mesmo de sangue, o sangue das vítimas – revelou Fred.
O rapaz ergueu os olhos para o detetive.
-Mas então... como pode dizer que o Pedro é inocente?
-Outra escritora foi morta na noite passada, e seu amigo está bem aqui
ao lado, trancafiado em uma cela. Ele não foi a lugar algum. A pessoa que
colocou aqueles livros na estante de Pedro Gurgel é o verdadeiro assassino.
O rapaz baixou a cabeça, pensativo. O olhar distante.
-Diga-me, Luís, quem mais teria acesso à casa do Pedro? Além de você,
é claro.
-Bem, eu não sei ao certo – o rapaz pareceu ignorar a insinuação do
detetive – creio que sejam poucos. Nosso grupo mais recorrente era formado
por cinco pessoas, além de mim e o Pedro, há o Bernardo e as meninas, a
Fernanda e a Bárbara, que se foi. Mas com certeza não éramos os únicos, o
Pedro devia ter mais amigos no hospital.
-Sim, entendo.
“Seu merdinha dissimulado.”
O telefone de Fred tocou novamente.
-Me dê um minuto – voltou-se para o telefone.
Luís pôde ouvi-lo dizer:
-Entendo, o filho de uma puta vai se safar – e desligou. O telefone
apertado na mão com tanta força que poderia se estilhaçar a qualquer
momento.
Quando Fred se virou novamente para o rapaz, parecia outra pessoa,
seu rosto era duro como pedra, os olhos vidrados. Ele abriu a pasta que
carregava, pegou algumas fotos e as jogou sobre a mesa.
-O que você pode dizer sobre essas fotografias?
As imagens retratavam as cenas dos crimes e suas peculiaridades
brutais. Natália Brummer e as seringas, Átila Fernandes e suas extremidades
cortadas, Cléo Junqueira e o tiro na boca, e ainda Karina Klein, cujo corpo
esfaqueado estampava o centro do pentagrama de sangue.
-Detetive, você não pode pensar que eu...
-Não posso pensar o quê? – gritou Fred muito alto, perdendo o controle
de vez – Que você matou essas pessoas e tentou incriminar seu melhor
amigo? Que fez isso por que queria comer a mulher dele? É nessa porra toda
que não posso acreditar? Porque parece muito plausível pra mim!
Luís se levantou.
-Eu já disse, não tenho nada a ver com esses crimes – insistiu.
-Por acaso eu mandei você se levantar? – Fred não conseguia mais
parar de gritar – Eu quero saber exatamente onde você estava nestas datas! –
Ele virou as fotos, revelando os números de datas e horários nas costas dos
papéis.
Luís se sentou novamente.
-Você está cometendo um erro, detetive – falou o livreiro enquanto
verificava as datas.
-Responda à pergunta!
Luís tentou se concentrar nos números. Parecia travar uma batalha
árdua contra a memória. A expressão possessa do detetive contribuía para
que ele suasse em profusão, enquanto se forçava a lembrar.
-Na primeira data e hora eu com certeza estava na livraria, pois é um
dia de semana à tarde, mas os outros, eu sinto muito, não consigo me
lembrar. Exceto por ontem, que eu estava em casa.
-Você estava em casa. – repetiu Fred – Deixe-me adivinhar, sozinho,
com certeza – afirmou com escárnio.
-Sim – respondeu Luís, sua voz titubeando.
Fred tinha um sorriso nervoso, lutava para não se lançar sobre Luís e
estrangulá-lo.
-Sobre a primeira data, você disse que estava na livraria, mas você sabe
que dia foi esse?
Luís ficou em silêncio.
-Me diga. Sua livraria por acaso abre nos feriados? – Fred bateu as
mãos na mesa.
Luís não respondeu.
-Pelo visto a resposta é não. Você mentiu! Sua loja estava fechada neste
dia!
-Eu não menti. Eu só não me lembrava.
-Seu desgraçado! – Fred arrancou a mesa do chão e a arremessou contra
a parede, fazendo um enorme estardalhaço metálico. Os papéis caíam em
câmera lenta, dançando no ar de um lado para o outro. Luís estava branco de
susto e surpresa. – Você acha que pode me fazer de idiota? – esbravejou
Fred.
O detetive pegou o rapaz pela gola da camisa e o colocou de pé. Depois
o empurrou até a parede, onde se colocou sobre ele, olhos nos olhos. Fúria
desmedida contra medo e tensão.
-Escuta bem, seu filho de uma puta. Eu quero saber onde você estava
na noite de ontem e é bom que você tenha um álibi, porque se não tiver, e eu
não conseguir nenhuma prova contra você, juro que encerro minha carreira
metendo uma bala bem aqui.
Ele afundou o dedo com força na testa de Luís. O rapaz podia sentir o
hálito de álcool do policial fazendo com que ele não tivesse mais dúvida
alguma de que sua vida realmente correria perigo.
-E então? Onde você estava na noite passada? – gritou Fred, perdigotos
voando para o rosto de Luís.
-Eu, eu...
-Onde, porra? – o detetive deu um soco na parede.
-Eu estava em casa, mas não estava sozinho, havia uma pessoa.
-Então agora há uma pessoa...
-É que... eu fiz algo errado. Algo que eu queria manter em segredo...
-Fala logo, caralho!
-Ontem, eu e minha funcionária... nós dormimos juntos e ela... é menor
de idade. Por isso eu menti.
-Seu merda – Fred aliviou o aperto. Ele deu um passo para trás, depois
outro. Sentiu as pernas bambearem.
“Não, agora não, agora não”.
Sua visão ficou turva. Luís tornou-se dois diante de seus olhos, e ele foi
tomado por uma forte ânsia de vomitar. O detetive usou todas as suas forças
para se manter de pé. Suspirou enquanto os breves segundos da crise
passavam por ele, levando todo o seu ímpeto.
Fred caminhou até a porta e a destrancou.
-É bom que essa garota confirme a sua história.
-Detetive, eu...
-Desapareça da minha frente. – do lado de fora da porta, alguns
curiosos se aglomeravam, atraídos pelo barulho e pelos gritos – E vocês? Não
têm trabalho para fazer?
Rapidamente a aglomeração se dispersou.
Fred ficou sozinho, fitando a bagunça que deixara na sala. Ele pensava
nas consequências que aquela terrível coerção poderia ter.
A resposta que se formou em sua mente foi apenas uma:
“Foda-se. Que vão todos à merda.”
E tomou mais um longo gole de seu cantil.

***
-Desde quando eu preciso que você me leve pra casa? – falou Fred.
-Você bebeu – disse Elis – não podia deixá-lo dirigir.
Fred riu. Começou com uma risadinha sem graça, depois ganhou forma
até se tornar uma gargalhada ressoante. Até mesmo Elis se permitiu um
sorriso, mas no final, era apenas um brado triste de uma garganta
enrouquecida. O riso dos derrotados.
-Estamos ferrados, Elis – disse ele quando se recompôs.
-É, eu sei. Achamos o desgraçado, mas não temos prova alguma.
-Por que você está parando aqui? Ainda faltam dois quarteirões –
perguntou o detetive.
-Porque, pensando bem, eu também quero encher a cara. – respondeu
ela antes de sair do carro e caminhar em direção a um bar.

***
Bernardo estava sentado de frente para o seu PC. Na tela havia uma
dentre as muitas reportagens sobre o assassino de escritores. O rapaz mal
podia acreditar que havia tantos blogs dedicados ao assunto. Afinal, ele não
era o único com um interesse mórbido sobre o caso.
Naquele último, ele encontrou uma teoria interessante de que os crimes
vinham acontecendo pela ordem do sobrenome dos autores.
-Será? Uma coisa assim tão simples não poderia ter passado
despercebida pela polícia – comentou consigo mesmo.
Depois de admitir que já tinha gasto o tempo de toda uma vida
pesquisando sobre aquele caso, decidiu que trabalhar um pouco poderia
afastar seu pensamento daquele assunto. Poderia também afastar seu
pensamento de Pedro, que estava preso como suspeito daqueles crimes
horríveis, algo que ele simplesmente não podia acreditar. Mas acima de tudo,
desejava esquecer a grande perda que abalara e transformara sua vida.
Era estranho pensar que nunca mais veria Bárbara. Que chegaria nos
lugares que costumavam frequentar juntos e a amiga não estaria lá. Lembrou-
se de como era divertido vê-la defender um livro qualquer da Nora Roberts,
como o próximo a ser escolhido para a leitura do grupo. Lembrou-se da
forma apaixonada e com lágrimas nos olhos com a qual ela falava de
Rosamunde Pilcher ou Nicholas Sparks, mas ele simplesmente já não queria
se lembrar. Doía demais, mas isso não o impediu de ligar seu aparelho de
som e colocar um cd da Legião Urbana. Quando a voz de Renato Russo lhe
chegou aos ouvidos, ele precisou lutar para conter o choro.

É tão estranho
Os bons morrem jovens
Assim parece ser
Quando me lembro de você
Que acabou indo embora
Cedo demais
O rapaz caminhou até o armário onde ficavam os aparelhos que
aguardavam conserto. Há muito tempo ele não mexia ali. A vida tinha se
tornado corrida demais.

Quando eu lhe dizia


Me apaixono todo dia
É sempre a pessoa errada
Você sorriu e disse
Eu gosto de você também
Só que você foi embora
Cedo demais!

Ele cantava baixinho, acompanhando a música.


“Maldita Legião Urbana, você tem mesmo uma música para cada
momento da minha vida! Como ousa?”
Quando abriu o armário, viu algo que fez suas mãos tremerem. Ele
ficou emudecido.
O notebook de Bárbara. O aparelho estava com ele esse tempo todo.
Ela o tinha levado à livraria em uma das reuniões e pediu que ele o
consertasse, mas estava tão atarefado que acabou se esquecendo
completamente.

Eu continuo aqui
Com meu trabalho e meus amigos
E me lembro de você
Em dias assim
Dia de chuva
Dia de sol
E o que sinto não sei dizer
Ele pegou o notebook e o segurou nas mãos de forma reverente.
Aquela era uma memória vívida da amiga. Quanto dela poderia haver ali
dentro? Quanto dela ainda poderia viver ali dentro?
Ele colocou o computador sobre a mesa, sentou-se, suspirou e o abriu.

Vai com os anjos


Vai em paz
Era assim todo dia de tarde
A descoberta da amizade
Até a próxima vez

Ele ligou o aparelho, mas apenas meia tela apresentava imagem. Em


sua ansiedade, tinha esquecido que o motivo para o notebook estar com ele
era o fato de apresentar algum problema. “Problema descoberto” – pensou.

É tão estranho
Os bons morrem antes
Me lembro de você
E de tanta gente que se foi
Cedo demais!
E cedo demais

Bernardo mexeu na tela, abrindo-a e fechando-a. Quando ela passava


por certo ângulo, a imagem voltava a ficar completa. Mesmo sendo uma
posição ligeiramente incômoda, ele manteve o notebook aberto daquela
forma, num ângulo de oitenta graus, e encolheu o corpo na cadeira para poder
ver melhor.
-Algum fio partido ou com mau contato, problema fácil de resolver,
mas não agora – disse pra si mesmo.
Ele se pôs a explorar os arquivos de Bárbara, quando encontrou as
pastas onde ela guardava suas fotos, a emoção foi forte demais. Uma
avalanche de lágrimas tomou conta do rapaz. Vez após outra encontrou a
amiga sorrindo, retratada nos grandes momentos de sua vida. A formatura no
colégio, os muitos aniversários, a formatura da faculdade, os diversos
momentos ao lado dos amigos e a infância cheia de vida e inocência. Vida
que se esgotara para sempre.

Eu aprendi a ter
Tudo o que sempre quis
Só não aprendi a perder
E eu que tive um começo feliz
Do resto não sei dizer

Bernardo continuou explorando. Sua curiosidade o fez parar em uma


pasta chamada “meus textos”.
Havia alguns arquivos com nomes de romances melosos, mas um
deles lhe chamou atenção, intitulado apenas como “policial”.

Lembro das tardes que passamos juntos


Não é sempre mas eu sei
Que você está bem agora
Só que neste Ano
O verão acabou

Cedo demais!

Ele pegou o controle remoto e desligou o aparelho de som, precisava


de silêncio para ler. Queria se concentrar, e por isso calou o Renato Russo.
“Bárbara, por que você nunca me disse que escrevia?”
Ele leu boa parte do texto, estava achando a história muito envolvente
e bem escrita. Mal podia acreditar que a amiga, sempre tão doce, estava
escrevendo um romance policial.
Ele leu por duas horas seguidas, quase sem respirar. Até que chegou a
um parágrafo que o fez saltar da cadeira abruptamente, levando o móvel ao
chão. Ele leu e releu diversas vezes. Não conseguia acreditar. Aquilo poderia
mesmo significar o que ele pensava?
Pôs-se a ler em voz alta, como se ouvir a própria voz no silêncio do
quarto pudesse mudar alguma coisa.

“-Ela ainda não podia acreditar em como sua vida tinha se transformado
em tão pouco tempo. Tinha acordado de manhã em plena felicidade, agora
voltava para casa derrotada, entristecida, tão imersa em seus problemas que
sequer viu quando o Audi prateado avançou em sua direção. O carro, que
avançou o sinal vermelho em alta velocidade, não dava sinais de que iria frear
e, quando acertou a moça...”
-Um Audi Prateado... não... não pode ser... meu Deus... não, por favor,
não.
Bernardo ficou rodando pelo quarto. As mãos na cabeça.
-Tem que ser uma coincidência!
“Qual a probabilidade? Quantos carros como esse existem rodando por
aí? Quantos atropelamentos por dia acontecem em uma grande cidade como
essa? Tem que ser uma coincidência” – ele tentava desesperadamente se
convencer, até que um pensamento tomou forma em sua mente.
-Se alguém já leu esse texto, essa pessoa pode ser...
Ele abriu o navegador de internet torcendo para que o provedor de e-
mail de Bárbara fizesse parte dos seus “favoritos” e que ela tivesse
programado o aplicativo para salvar suas senhas e entrar automaticamente.
Por sorte, foi exatamente o que aconteceu.
O rapaz clicou e esperou o site carregar. Tão ansioso que mal podia se
conter.
Quando a tela exibiu a caixa de entrada, com dezenas de e-mails não
lidos, Bernardo os ignorou e clicou em “enviados”.
Ele fez uma busca e encontrou apenas um e-mail com o arquivo do
conto anexado. O arquivo de texto nomeado como “policial” tinha sido
enviado para apenas um endereço de e-mail. Essa pessoa era a única a saber
sobre o Audi prateado.
Ao verificar o destinatário, ele ficou chocado. Deu vários passos para
trás. As mãos levadas à boca emudecida.
Apenas uma pessoa tinha lido aquele conto. Apenas uma pessoa...
A tela de seu PC ainda exibia a lista feita pelo blog, evocando a ordem
dos crimes pelo sobrenome das vítimas. O sobrenome de Bárbara, Karan, se
encaixou perfeitamente na lista.
-Não pode ser... – ainda se agarrava ao pensamento de que tudo era
apenas uma infeliz coincidência, mas chegou à conclusão de que não podia se
omitir.
Ele procurou em suas coisas o cartão que o detetive tinha lhe dado.
Depois de revirar todo o quarto, ele o encontrou e discou apressado. Após
vários toques, ouviu um irritante:
“Deixe o seu recado após o sinal”.
-Merda!
Ele não podia simplesmente ficar parado ali.
Pegou um casaco, as chaves do carro e saiu de casa batendo a porta.

***

Fred ouviu seu telefone tocando em algum lugar, não se importou.


Os detetives tinham entrado no apartamento aos beijos. A cena, que
começou a se desenrolar ainda pelos corredores, arrastou-se para dentro da
sala. A bebida tinha levado de ambos as últimas amarras que os impediam.
-Não devíamos – dizia Elis, entre um beijo e outro.
-Eu sei – respondia ele.
Mas já não havia como parar. Os lábios se encontravam com
sofreguidão, enquanto as línguas se entrelaçavam sedentas, conduzidas pelos
muitos anos de promessas que se disfarçavam em olhares e palavras não
ditas.
Fred mal podia acreditar que aquele momento, tantas vezes desenhado e
idealizado em sua mente, tornava-se real.
Mal sabia ele que a urgência de Elis em arrancar suas roupas,
arranhando sua pele e desenhando veios vermelhos em suas costas, era
explicada por um desejo recíproco.
Quando olhava para o homem grande, forte e com olhos azuis que
pareciam dizer: “não tenho mais nada a perder”, mas que ainda assim
conseguia lhe dedicar tantos olhares de paixão mal disfarçada, a detetive
sentia-se estremecer, desejando descobrir como seria estar entre os braços de
um homem, que, diferente dos demais, era verdadeiramente capaz de
compreendê-la, alguém que conhecia e vivenciava o mesmo estresse e
pressão provocados diariamente pelo trabalho. Alguém que se perdeu, e que
constantemente dizia um sonoro “fôda-se” para a vida. Para a detetive não
havia nada mais sexy do que aquela combinação.
Antes que qualquer um dos dois pudesse perceber, já estavam na cama.
Os corpos nus, misturados. Pelo chão, uma trilha de peças de roupas.
Fred tomou o rosto de Elis entre seus dedos.
-Eu te quero tanto...
-Seu idiota, eu já disse, as mulheres sempre sabem.
Eles se beijaram apaixonadamente. Primeiro de forma lenta e carinhosa,
depois com volúpia e desejo.
Os olhos de um não deixavam de procurar os do outro, hipnotizados.
Seus corpos finalmente se fundiram em movimentos ritmados e frenéticos.
Rapidamente atingiram o ápice, juntos. E todos os seus problemas
desapareceram. Tudo o que havia era o abraço do outro. Os corpos quentes
aninhados. As respirações ofegantes lutando para reencontrar a cadência.
Elis adormeceu olhando para Fred. Olhando para o homem que a
amava. Mas ele não conseguiu pregar os olhos.

***

Fred andava de um lado para o outro da sala, enquanto Elis dormia um


sono tranquilo. Ele podia jurar que a ligeira curva nos lábios da parceira
indicavam o esgar de um sorriso.
Mas ele seguia sem sono. A mente tinha voltado para o reino de
sensações amargas onde a frustração era a grande rainha.
Tinha que haver alguma coisa. Tinha que haver.
Após passar vários minutos relendo os arquivos do caso e forçando sua
visão contra o mosaico macabro que montara em sua parede com as fotos do
crime, ele decidiu que precisava de mais uma bebida. As garrafas de cerveja
foram sendo empilhadas sobre a mesa, enquanto o álcool lhe subia à cabeça.
Quando a garrafa de vodka entrou em cena para ser rapidamente
esvaziada, sua mente entrou em um estado avançado de torpor, que ele
tentava afastar balançando a cabeça.
Ao se sentar de frente para a parede, a fim de seguir com sua
observação, Fred esbarrou em um dos livros que estavam sobre a mesa: era a
obra de Tatiana Teixeira, a mesma que ela havia publicado como Karina
Klein, mas aquela edição, a mais recente e de outra editora, tinha um título
diferente, muito mais criativo.
Fred abriu o livro e procurou o texto usado pelo assassino. Usado por
Luís. Seus olhos cansados, que tendiam a embaralhar as letras, finalmente
encontraram o texto.

“...ele arrancou a faca com tanta força do coração pulsante, que o


sangue que jorrou para o ar molhou os livros na parede da biblioteca a metros
de distância”
Depois de ler quatro, cinco vezes, forçando-se a se concentrar, Fred
notou algo estranho. Ele se levantou aos tropeços e comparou o texto
fotografado no teto da casa de Tatiana Teixeira com o texto do livro, e
encontrou uma palavra diferente:

“...ele arrancou a faca com tanta força do coração pulsante, que o


sangue que jorrou para o ar molhou os livros na parede da livraria a metros de
distância”

-Biblioteca e livraria, biblioteca e livraria. – tomou mais um gole da


vodka, que desceu mais uma vez rascante – Será que...
Com grande urgência, ele pegou os demais livros e começou a
comparar os textos, descobriu que em todos eles havia palavras trocadas,
omitidas ou acrescentadas: “termina, livraria, tudo, na”.

Ele as organizou pela ordem dos crimes e disse em voz alta:


-“Tudo termina na livraria.” Mas o que... Filho de uma puta
desgraçado. Esse tempo todo você estava zombando de mim! – ele pegou
uma das garrafas e a arremessou contra a parede com ódio fervilhante.
-Você acha que isso vai ficar assim? – gritou – Acha?
Ele foi até ao quarto para se certificar que todo aquele estardalhaço
não tinha acordado Elis. O cansaço daqueles dias aflitivos a manteve em sono
profundo.
-Eu disse que vou te pegar – repetiu para si mesmo, o pensamento
voltado para o livreiro como uma flecha mortal e venenosa, prestes a ser
disparada.
Ele vestiu o resto das roupas e procurou pela arma. Com mãos
trêmulas verificou o pente e a trava. Carregado. Não tinha mais nada a perder.
Tudo terminaria naquela noite. Não passaria os últimos dias de sua vida
sendo feito de trouxa.
Pegou uma pasta em uma das gavetas de seu guarda-roupa. De dentro
dela, tirou o diagnóstico que recebera do seu médico, e que até então tinha
guardado apenas para si. Várias palavras se destacavam no relatório: dor de
cabeça, náuseas, visão turva, problemas de equilíbrio, mas eram outras que
mais saltavam aos olhos: tumor inoperável, paciente terminal.
-Elis, eu sinto muito – ele deixou o laudo sobre a cama – mas isso
precisa acabar hoje.
Ao passar pela sala, tomou mais um longo gole de vodka e saiu para a
rua.

Capítulo 21

Bernardo dirigia de forma automática. As luzes da cidade adormecida


passavam por ele em alta velocidade, deixando rastros cintilantes na
escuridão da noite.
Com apenas uma das mãos no volante, desenhando vez ou outra um
arriscado ziguezague na pista, Bernardo discava incessantemente para o
telefone de Luís, mas o resultado era sempre o mesmo, o aparelho chamava
até cair e a moça da operadora de telefonia lhe saudava com a habitual e
irritante felicidade na voz, convidando-o a deixar um recado.
Quando freou e estacionou na rua da livraria, ficou surpreso ao
encontrar luzes acesas àquela hora da madrugada. Já estava se preparando
para arrancar Luís da cama, mas o amigo parecia estar acordado.
“Será que estou imaginando coisas? Será que estou errado? Não, não
pode existir no mundo tamanha coincidência.”
Bernardo tentou enxergar o interior da livraria através do painel de
vidros, colocando-se entre os cartazes de promoção que anunciavam: Festival
Nacional Contemporâneo, Eduardo Spohr, André Vianco, Raphael Montes,
Martha Medeiros e Lya Lyft com 40% de desconto, mas apenas uma das
luzes estava acesa, no fundo da loja. Pela baixa intensidade devia pertencer a
um dos abajures de canto.
O rapaz estendeu a mão para a maçaneta, apenas um hábito,
movimento automático impulsionado pelo costume, pois no fundo ele sabia
que a porta estaria trancada.
Para sua surpresa, a porta se moveu e o sinete amigável o saudou,
convidando-o a entrar.
A penumbra que se arrastava pela entrada da loja o abraçou e
envolveu, enquanto ele caminhava para o fundo da livraria, sob olhares
atentos de Tolstoi, Tchekov, Dostoiévsk, Tolkien e Machado de Assis, que
estampavam em pintura a lateral da estante de clássicos.
Quando ouviu um som abafado vindo da lateral à direita, fora de seu
campo de visão, Bernardo chamou pelo amigo.
-Luís! Precisamos conversar!
O barulho se intensificou, havia urgência nos gemidos e urros
abafados.
Bernardo seguiu a passos trôpegos e incertos. Com medo do que
poderia encontrar após a curva, poucos metros à frente.
-Luís...
Seu chamado foi apenas um sussurro incerto, que combinava bem
com suas pernas bambas.
Ele finalmente venceu a esquina, deixando para trás os clássicos, para
encontrar uma imagem que demorou a fazer sentido e a se encaixar,
transformando-se pouco a pouco em uma cena do mais puro horror.

***
20 anos atrás

A professora entrou na sala de aula. Bastou sua presença para que os


alunos tomassem seus assentos e cessassem a bagunça. Ela organizou o
material sobre a mesa e deu boa tarde para a classe, que respondeu em
uníssono. Em seguida, começou a chamada, desenhava um visto na frente de
cada um dos nomes que era respondido.
...
-Lorena.
-Presente – soou a voz da menina.
-Lucas.
-Presente.
-Maurício.
-Presente, professora – soou a voz do garoto.
-Natália.
Não houve resposta.
-Natália – repetiu a professora levantando o olhar, mas sem encontrar a
aluna e notando que outras meninas também não estavam na sala. “A garota-
problema de novo”.
-Alguém viu a Natália e as outras meninas? – perguntou ela, mas
nenhuma das crianças respondeu.
Como a mãe preocupada que toda boa professora é, dona Mirtes
pressentiu que as meninas estavam aprontando alguma, e se lembrou de todos
os incidentes que elas provocaram no passado, lideradas por Natália.
Lembrou-se com saudade da menina tão doce que mudou de escola
apenas para fugir dos abusos das colegas. Ainda guardava com carinho as
redações prodigiosas, com textos inteligentes e escrita muito acima da média.
Tinha sido duro para ela se despedir da garota, mas ela estava melhor agora.
Segura. Longe daquelas delinquentes, cujos pais acobertavam em vez de
corrigir. Perdoavam em vez de puni-las. Ocupavam-se com suas vidas adultas
sem se preocupar em moldar os adultos do amanhã.
O olhar de Dona Mirtes perdia-se ao longe, encontrando o horizonte
que havia além da janela, até que ela foi despertada por uma das crianças que
chamava seu nome, fazendo-a voltar para a chamada, mas sem conseguir
afastar o mau pressentimento.
***

Fernanda seguia descontraída pela rua. Estava gostando muito da


nova escola, onde quase não havia brigões e valentonas, e os que existiam
não pegavam no seu pé, nem pela cor de seu cabelo, vermelho como fogo,
nem por sua inteligência acima da média, que geralmente despertava inveja.
No princípio ela apenas se encolhia no canto da sala. Toda sua
vivacidade tinha sido roubada pelas lembranças traumáticas dos dias vividos
na escola anterior, onde qualquer resposta certa era convite para um
encontrão nos corredores. Notas altas lhe rendiam alguns tapas, enquanto
elogios diretos das professoras podiam terminar em fugas a passos ligeiros,
ou na pior das hipóteses, quando a agilidade das pernas lhe falhava, em surras
nas ruas desertas atrás da escola.
No caminho de volta para casa, ela sorria ao pensar que fora muito
bem recebida pelos novos colegas, e que pouco a pouco podia voltar a ser ela
mesma.
Mas quando ouviu as palavras gritadas às suas costas, seu sorriso
desapareceu tão rápido quanto surgiu. Ela jamais se esqueceria daquela voz
odiosa.
-Olá, Nandinda. Há quanto tempo não nos vemos? Será que você se
esqueceu de nós?
Ao se virar e encontrar Natália e suas fieis e cruéis seguidoras, todos
os seus piores temores vieram à tona de uma só vez. Ela mal podia respirar.
Seu caminho para casa passava por ruas pouco movimentadas. Não
havia ninguém para salvá-la.
-O que foi, amiga? Por que essa cara de espanto? – insistiu Natália.
-O que vocês querem? – ela conseguiu dizer, gaguejando.
-Você achou que poderia mudar de escola e simplesmente escapar de
nós?
-Você achou? – outra das meninas repetiu as palavras de Natália,
como um papagaio treinado.
-Por tentar fugir de nós, suas melhores amigas, por ter nos
abandonado, vamos lhe dar a maior surra de sua vida – prometeu Natália,
fazendo suas comparsas sorrirem, saboreando por antecedência a carnificina
anunciada.
Fernanda deu dois passos para trás, as pernas relutavam em obedecer.
“Corra, corra, por favor, corra” – repetia pra si mesma, sem conseguir dar
mais do que dois passos trêmulos.
Quando as meninas avançaram sobre ela, o sol da tarde já ameaçava se
pôr e lançava as sombras do grupo em direção aos pés de Fernanda, como
fantasmas negros e desejosos de sangue, que se arrastavam pelo chão
assustando-a tanto quanto as garotas vivas, de carne e osso.
Exigindo o máximo de seu corpo, ela conseguiu vencer o torpor e se
pôs a correr. Correu como nunca tinha corrido, impulsionada pelo que vira
nos olhares daquelas meninas, algo profundo e medonho, que a deixara mais
assustada do que nunca. Ela sentia que, se fosse pega, sua vida estaria
acabada.
Logo descobriu que suas pernas curtas não podiam competir com o
ritmo do bando de garotas que cresciam precocemente, e logo seria
alcançada. Ainda estava longe de casa e as ruas tinham pouco a lhe oferecer.
Foi quando viu a entrada do parque. Pensou que se pudesse se embrenhar
entre as árvores, lançando-se para dentro da mata preservada, talvez tivesse
alguma chance de se esconder.
Ela não ousava olhar para trás, mas podia sentir que as meninas se
aproximavam. A certeza veio em forma de um empurrão, que a derrubou no
chão e a fez ralar os joelhos e os braços. A dor lancinante a fez esmorecer.
Tudo o que conseguiu, ao se colocar de pé, foi dar mais alguns passos em
direção ao coreto que havia ali.
Arrastou-se para dentro da velha estrutura de concreto, cujas telhas
esburacadas deixavam passar vários raios avermelhados de sol. Zombando e
rindo, como hienas se preparando para o ataque, as meninas a cercaram.
Esperavam apenas o aval de sua líder.
-Sua vadiazinha – disse Natália ao chutar as pernas de Fernanda,
derrubando-a de cara no chão, para se colocar sobre ela e cuspir nos cabelos e
no rosto da menina.
Fernanda sentiu todo o lado direito do rosto queimar como fogo,
mediante a força do tombo e a brutalidade da pancada. Dos arranhões
doloridos nos joelhos, o sangue vertia moroso.
Uma das meninas lhe deu um tapa tão forte que as lágrimas brotaram
de imediato, embaçando sua visão.
A sequência de chutes, tapas e arranhões foi cruel e demorada,
enquanto tudo o que ela podia fazer era implorar para que parassem, mas
quanto mais pedia e chorava, mais parecia incitar a crueldade das meninas,
que agiam cada vez com mais violência.
Os ataques cessaram quando um chute extremamente forte acertou a
lateral do rosto de Fernanda e, por alguns segundos, o mundo desapareceu,
tragado para a escuridão. A dor explodiu atrás de seus olhos e o cérebro
pareceu dançar dentro do crânio, como se estivesse chocando-se contra as
paredes que deveriam protegê-lo.
As meninas lhe deram algum espaço. Algumas delas calculavam o
quanto ela ainda podia apanhar, outras simplesmente queriam tempo para
pensar em algo que ia além da violência física, algum tipo de humilhação que
pudesse ferir de forma ainda mais profunda.
Fernanda, que delirava de dor, mal conseguiu ouvir quando as meninas
planejaram deixá-la nua, também não percebeu a chegada de seus salvadores,
duas crianças que ela já tinha visto na escola e que estudavam na sala ao lado
da sua.
Grogue como estava, mal pôde entender que os recém-chegados
desafiavam Natália e suas seguidoras com pau e pedra em mãos, prontos para
salvá-la. Alguns instantes depois estavam ajoelhados ao seu redor, as
agressoras tinham partido. O rapaz lhe oferecia uma mão amiga e lhe
perguntava o seu nome. Ela levou vários segundos para responder, pois sua
audição tinha se reduzido a um zumbido constante.
-Fernanda – conseguiu dizer.
-Nós vamos te levar pra casa, Nanda. Posso te chamar assim? –
perguntou o garoto com um sorriso no rosto.
-Pode, mas, por favor, não me levem pra casa – pensava na mãe que se
derreteria em prantos ao ver a filha chegar em casa daquela forma.

***
Quando a tarde encontrou seu fim, Fernanda já tinha sido apresentada a
todo o grupo. Luís e Bárbara estavam a caminho de se encontrarem com
Bernardo e Pedro, e aquela foi a primeira das centenas de vezes em que
estiveram todos juntos. A garota jamais se sentira tão amada e acolhida.
Pedro era muito bonito com seus cabelos loiros e os olhos claros. Era
meio calado, mas, nas poucas vezes que falava, demonstrava ser muito
inteligente. Já Bernardo não conseguia ficar de boca fechada, fazia piada de
tudo e de todos. Com facilidade, ele levava o grupo às gargalhadas. Fernanda
não se lembrava de outro momento em sua vida no qual tivesse rido e se
divertido tanto, a ponto de perder a conta das horas.
Depois de insistir que estava bem, e de pedir com lágrimas nos olhos
que aquela história não fosse compartilhada com pais ou professores, ela se
levantou da calçada em frente à casa de Luís e disse que tinha que ir embora.
A noite já seguia avançada e ela sabia o que acontecia quando chegava tarde
em casa.
Os novos amigos decidiram acompanhá-la por alguns quarteirões,
para ter certeza de que Fernanda já não correria mais perigo.
Quando se despediu estava verdadeiramente emocionada, e as
palavras lhe faltaram. Ela só conseguiu acenar, enquanto caminhava com
passos ligeiros, preocupada.
Quando avistou sua casa, um sobrado antigo e que precisava de
pintura e reforma, imediatamente soube que teria problemas. A velha Brasília
de seu padrasto já estava estacionada ali.
Assim que colocou os pés na varanda, ouviu a discussão acalorada.
-Cadê aquela puta da sua filha? – a voz estava carregada, arrastada. O
típico embolar característico do dialeto dos alcoólatras.
-Ela deve ter ficado na escola para fazer algum trabalho – a voz de sua
mãe soou baixa e apaziguadora.
-Escuta bem, Joana, essa sua filha vai se transformar em uma puta!
Uma vadia! Igualzinha a mãe! – soluços de bêbado entrecortavam as
palavras.
Não houve resposta, fazendo a menina se lembrar das palavras que a
mãe dizia sempre:
“Quando seu padrasto estiver bêbado, não devemos discutir, apenas
concordar”.
Fernanda estendeu a mão para a porta, juntando toda a coragem que
lhe restava, e entrou em casa.
-Que porra de comida horrível é essa, caralho? – o grito a assustou,
vinha da cozinha.
-Me desculpe – ela ouviu a voz trêmula da mãe.
-Desculpas? Desculpas? É sempre a mesma coisa, sua puta relaxada!
Não dá pra comer essa porcaria que você chama de comida! Vou ter que sair
e arrumar uma coisa decente pra comer! Talvez eu também ache uma boceta
para foder, uma coisa novinha e cheirosa, não essa porcaria velha que tenho
em casa!
Fernanda ouviu uma cadeira sendo derrubada no chão com grande
estardalhaço.
“Violento, ele está violento” – pensou com o medo a se instalar cada
vez mais fundo em seu peito.
Ouviu os passos arrastados indo em direção à sala. Ela tentou se
mover, mas o medo já tinha lhe dominado por completo.
-Eu já cheguei – conseguiu dizer, quando o padrasto a avistou.
-Fernanda, sua vadia! Onde você estava todo esse tempo? Veja só
como estão as suas roupas, e essa cara toda suja, aposto que estava andando
com garotos e dando essa boceta no meio do mato! – o homem cambaleou
em sua direção – Eu devia te dar uma surra por ficar bancando a puta por aí,
ao invés de vir pra casa!
-Baltazar! Não! – gritou Joana – Na minha filha você não toca!
A mulher, que era sempre submissa aos caprichos do homem que a
sustentava, em troca de ser tratada como lixo, pareceu crescer, e mesmo
diminuta em tamanho, comparada ao homenzarrão, grande e forte, colocou-se
entre o alcoólatra, que exalava um fedor azedo de bebida, cigarros e suor, e
sua filha, que era toda medo e terror.
-Como é que é? – Baltazar se virou para Joana, com cara de indignado
– Você acha que pode dizer o que eu posso ou não fazer dentro dessa casa?
O soco foi tão forte e repentino que Joana não pôde se manter de pé. O
sangue escorreu de seu supercílio direito, onde um dos anéis da pesada mão
de Baltazar a acertou em cheio, provocando um novo hematoma no rosto,
onde as antigas cicatrizes já se acumulavam em demasia.
-Mamãe... – Fernanda começou a chorar.
-Vá para o seu quarto, minha filha – pediu a mãe, com a voz baixa e
surpreendentemente calma.
-Quarto? Antes essa garota vai aprender uma lição! Vai aprender a não
me desobedecer!
-Você não vai tocar na minha filha. Fernanda, já para o quarto, agora!
A menina deu alguns passos trêmulos em direção ao corredor, mas a
silhueta do gigante cresceu sobre ela. A mão erguida para o ar. Ela já podia
sentir a dor da pancada. Mais uma para a coleção do dia, mas sua mãe se
atracou com Baltazar, agarrando-o pela cintura e tentando detê-lo.
Fernanda ficou parada na esquina do corredor, observando, aterrorizada
e impotente, a violência dos golpes que a mãe recebia, e tudo o que conseguia
fazer era apenas chorar, trêmula. Mesmo após ter caído no chão e não mais
tendo forças para se defender, Joana continuava apanhando com chutes de
força desmedida, crueldade e violência que ultrapassam o extremo.
“Por quê? Por quê? Por que, ó Senhor, permite que soframos tanto?” –
Ela orava desesperada, com medo de que a mãe não se levantasse nunca
mais. Com medo de que ela estivesse morta.
Quando Baltazar se cansou da mulher mais velha, que não mais se
mexia, voltou-se para Fernanda.
-Agora você vai ver! – prometeu ele. Seus olhos insanos fitavam a
menina que lhe desafiara chegando tarde em casa, quebrando suas regras. As
leis sagradas de sua casa. Ele era o único que trabalhava ali, era ele quem
trazia o sustento para aquelas putas e como elas o recompensavam? Com uma
merda de comida ruim e desrespeitando sua palavra. Mas depois daquela
noite tudo seria diferente, ele tinha certeza.
Joana sentia uma terrível dor no estomago, algo tinha se rompido
dentro de si e ela mal conseguia se mexer. Tentou gritar, mas lhe faltou o ar,
e tudo o que conseguiu fazer com as costelas quebradas foi observar
enquanto Baltazar se arrastava aos tropeços em direção à sua filha. O álcool,
as decepções e amarguras da vida estavam no auge de seu poder sobre ele,
trazendo à tona o mal que é inerente aos seres humanos, mas que em alguns é
como uma porta para os piores demônios do inferno. Demônio este tão
diferente do homem que era quando se conheceram, antes de perder o
emprego e o status, e de se entregar à bebida. Antes de passar a viver de bicos
humilhantes para colocar comida em casa. Ele finalmente tinha se tornado um
demônio. O inferno estava aberto e daquele buraco tudo poderia sair. E a dor
de saber que não seria capaz de proteger a filha era maior do que todas as
outras dores.
“Deus, não, por favor, não”.
-Tranque-se no quarto, filha – mas as palavras mal saíram de sua boca
trêmula. A visão escureceu e ela desmaiou.
Fernanda correu até o quarto e trancou a porta. Ela podia ouvir os
passos arrastados pelo soalho de madeira, bem como os muitos xingamentos.
Olhou para a janela, pensou em pular e fugir, mas se lembrou de que Baltazar
tinha colocado grades em todas as janelas da casa, alegando que o bairro
vinha ficando perigoso.
Ela pensou na última crise do padrasto, quando chegara em casa pela
última vez afogado em álcool e espancou Joana apenas porque ela tinha se
esquecido de tirar as pilhas do controle remoto antes de guardá-lo.
“Você nunca deve guardar um aparelho com as pilhas dentro”. Aquela
estranha fixação a amedrontava.
“O demônio mora nas pequenas coisas” - todas as vezes que ouvia o
padrasto falar das malditas pilhas, lembrava-se dessa citação.
O primeiro baque na porta a fez gritar de susto.
-Você precisa ser punida!
Outra pancada na madeira, fazendo cair um pedaço da massa corrida da
parede.
-Você precisa ser punida!
No terceiro baque, um pequeno estilhaço de madeira voou pelo quarto,
mas a porta, bravamente, ainda se manteve no lugar.
-Você precisa ser punida! Sua puta!
Com um chute derradeiro, a porta foi escancarada revelando a presença
de Baltazar, que cravou seus olhos insanos na menina que jazia encolhida em
um canto do quarto. Tremendo da cabeça aos pés, ela segurava a mochila da
escola junto ao corpo, como um escudo que de nada valeu mediante a força
descomunal do enorme homem adulto.
Quando ele arrancou a mochila da menina, seus materiais voaram pelo
quarto numa chuva de papéis, cadernos e lápis de cor.
Baltazar pegou Fernanda pelos cabelos e a jogou sobre a cama. Ele
juntou com raiva vários dos papéis que estavam pelo chão e os esfregou no
rosto da garota com brutalidade.
-Essa é a porcaria que você vem escrevendo? É disso que você fica se
gabando? Acha que isso vai te levar a algum lugar? Ou você pretende que eu
te sustente pelo resto da sua vida inútil?
A menina se encolheu tentando proteger o rosto. O hálito ardido de
Baltazar fazia seus olhos arderem.
-Você se acha muito esperta.
Ele abriu um dos papéis e depois de muito esforço conseguiu ler
algumas palavras.
“...ela beijou o garoto, a língua dele tinha sabor de...”
-Que porra é essa? Você anda escrevendo putaria?
Baltazar a estapeou no rosto valendo-se de sua força descomunal e
Fernanda viu o mundo girar.
-Você já deve mesmo estar dando essa boceta por aí, mas eu vou te
mostrar como se faz de verdade... ah, se vou...
Ele começou a desabotoar a calça.
-Vamos ver se você geme como a puta arrombada da sua mãe! Vamos
ver.
-Não! Não! – quando a garota entendeu o que estava prestes a
acontecer, lutou para se levantar e correr, mas outro tapa na face a devolveu à
cama, o rosto inchado parecia ter o dobrado de tamanho.
Quando abriu novamente os olhos, ele estava sobre ela. O cheiro de
podridão e sujeira a deixava nauseada. Quando Baltazar forçou sua língua
áspera e nojenta contra a boca de Fernanda, e depois a fez passear por seu
rosto, ela ficou à beira de vomitar, o estômago dava voltas, sentiu o que havia
ali abrir caminho garganta acima.
A menina lutou para manter as roupas no lugar, mas as mãos eram
fortes demais, implacáveis, em segundos estava nua da cintura para baixo.
Ela lutou bravamente, mexia-se tentando evitar o inevitável, mas, por
fim, foi vencida, rasgada, dilacerada.
Baltazar urrava enquanto ia de fora para dentro da criança, que chorava
e implorava para que ele parasse, o que servia apenas para que ele se tornasse
mais e mais violento. Quando terminou, liberando o líquido quente dentro da
menina, ele bateu a mão com força na barriga de Fernanda várias vezes,
enquanto gritava:
-Agora eu estarei para sempre dentro de você, te vigiando! Para
sempre! Bem aqui! – seguia batendo com violência na barriga da menina –
Para sempre! Você nunca vai se livrar de mim! Nunca!– ele se levantou e
esboçou um sorriso. Depois passou pela porta e saiu cambaleando pelo
corredor. O barulho de cadeiras sendo atiradas e vidros se quebrando ecoou
pela casa, como se o espancamento da esposa e o estupro da enteada não
fossem o suficiente para satisfazê-lo.
Fernanda, que já não tinha mais forças, enrolou-se no lençol ensopado
de sangue. O sangue de sua própria inocência maculada, e ficou encolhida
por muito tempo, sem ousar se mexer, com medo de descobrir que tinha sido
partida em duas. Quando a dor excruciante se tornou torpor, e o cansaço
finalmente a dominou, ela dormiu e sonhou com demônios, criaturas com
asas de morcego e dentes enormes, que a perseguiam sem descanso, mas
quando foi alcançada e se preparou para morrer, ficou surpresa ao ver que as
criaturas não lhe atacaram. Elas se aproximaram e a rodearam, sussurrando
em seus ouvidos o que ela deveria fazer.

***
Quando Fernanda abriu novamente os olhos ainda era noite, e havia
uma urgência crescendo dentro de si. Ela ficou de pé, sentindo cada músculo
de seu corpo queimar em dor, mas havia um latejar em sua cabeça que
ribombava ainda mais alto, e que a guiou pela casa.
Na sala, ela viu o padrasto dormindo em uma cadeira, a cabeça apoiada
sobre a mesa. Uma baba espessa escorria pela boca aberta e fedorenta.
Ela olhou para o lado e viu a mãe caída ao chão. Joana não se mexia.
Fernanda ficou preocupada, mas haveria tempo para cuidar dela depois.
Naquele momento, havia algo mais urgente, inadiável.
Ela foi até a cozinha e escolheu a maior faca que encontrou. Quando
seus dedos se fecharam em torno do cabo da arma, sentiu suas forças serem
revigoradas. Não havia mais dor. Caminhou até a sala com leveza. Sentia-se
flutuar.
Aproximou-se de Baltazar e mirou a faca em seu pescoço. Sem pensar,
sem hesitar, ela desceu o enorme cutelo com força e precisão. O metal afiado
enterrou-se até a metade do pescoço delgado do padrasto, que no último e
derradeiro momento abriu os olhos e a encarou.
A menina podia jurar que da boca morta, com a língua exposta e caída
para o lado, ecoaram as palavras:
“Eu estarei sempre dentro de você!”
Capítulo 22

Bernardo olhava desconsertado para aquela cena hedionda.


Luís estava de pé sobre um banco de plástico, apoiava-se na ponta dos
dedos. A corda enlaçada em seu pescoço precisava de apenas alguns poucos
centímetros para roubar-lhe o ar.
Ao lado dele estava Fernanda, com uma arma apontada para o recém-
chegado. A moça sorriu com entusiasmo.
-Bernardo! Que bom que você veio. Eu estava triste e decepcionada por
ter que terminar tudo sem ter ninguém para assistir ao gran finale.
-Fernanda, o que você está fazendo? – ele deu um passo em direção à
moça, que apontou a arma para o seu peito.
-Estou concluindo minha obra de arte. Já vejo a Rede Globo preparando
um roteiro cinematográfico sobre a minha vida. Pensando bem, por que não
Hollywood? Warner ou Paramount?
-Fernanda, pare com essa loucura. Abaixe a arma.
-Na verdade, a Fernanda não está aqui agora – ela coçou a cabeça com
o cano da arma e sorriu de maneira insana – a verdade – sussurrou em tom
conspiratório – é que a Fernanda mais atrapalha do que ajuda.
Bernardo não conseguia entender. Sua amiga parecia ter enlouquecido.
-Por favor, Fernanda, me diga que tudo isso é uma brincadeira. Me diga
que não foi você quem atropelou a Bárbara.
-Eu já disse, a Fernanda não está aqui agora. Pode me chamar de
Baltazar – ela riu de novo - e sim, eu aluguei um carro e atropelei aquela
puta. Tal qual estava no romance que ela escrevia. Aquilo não foi genial?
-Não... não... eu não posso acreditar.
Luís, que tinha a boca amordaçada, fez um movimento brusco e o
banco balançou sob seus pés, quase saindo de seu alcance. A corda que
enlaçava seu pescoço vinha do piso superior e estava amarrada a uma das
pilastras.
-Uuuuh... isso foi perigoso – disse Fernanda – não se apresse, Luís,
logo vou terminar o ritual e então eu mesma vou chutar esse banco, mas,
agora que temos companhia, preciso tomar algumas medidas.
Bernardo deu um passo para trás mediante a aproximação de Fernanda.
-Nanda, por favor, não – implorou ao ver a arma voltar a ser
direcionada para ele.
-Infelizmente eu não tenho mais pancurônio, tampouco tenho cordas
para amarrá-lo, então pedirei gentilmente que se sente ali e fique apenas
observando.
Após captar a hesitação de Bernardo, ela gritou enfurecida:
-Senta logo esse rabo na cadeira!
O rapaz obedeceu. O tempo todo sua cabeça esteve sob a mira da arma.
Assim que ele se sentou, Fernanda voltou a sorrir, em plena felicidade e
êxtase.
-Escute, meu amigo, preciso que você fique quieto, então devo tomar
alguma precaução, mas não leve para o lado pessoal.
Ela disparou contra o joelho de Bernardo, que urrou de dor. O sangue
imediatamente minou e escorreu pela perna da calça.
-Não me faça atirar no outro também, – ela sorriu e se voltou para Luís
– e você, estique mais esses pezinhos lindos, não quero vê-lo morrer antes da
hora.
Ela se dirigiu até a parede que ficava de frente para Luís e prosseguiu
transcrevendo o texto do romance que o rapaz vinha escrevendo em seu
computador. O pincel estava mergulhado no sangue do livreiro, extraído com
a seringa que estava sobre a mesa.
“... a corda foi puxada com força, erguendo do chão o homem que
esperneava, o pescoço não se quebrou por um mero acaso, a vida o
abandonava em golfadas de ar cada vez menores...”
Enquanto escrevia, Fernanda começou a chorar.
-Me desculpem, por favor – disse ela, mas seguia escrevendo – eu não
queria, mas ele é muito mais forte do que eu.
-Fernanda... – Bernardo não sabia o que dizer.
-Ele me obrigou a fazer tantas coisas... A Natália Brummer mereceu,
sim, eu concordei com aquilo, eu dei o meu aval e o ajudei, mas os outros,
todos os outros... – a moça chorava copiosamente.
-Cale a sua boca! – gritou para si mesma – Sua puta, você pertence a
mim!
-Não, eu... não, por favor, me deixe ir – implorava ela no sombrio
monólogo.
-Eu deixarei quando terminarmos! Agora trabalhe. Trabalhe!
Quando terminou de escrever, ela se voltou para Bernardo.
-Dá pra acreditar nessa puta? Depois de todo o trabalho que tivemos,
ela ainda pensa em deixar tudo pra lá.
-Eu não consigo entender – disse Bernardo – você fez tudo aquilo?
Todas aquelas mortes? E ainda tentou incriminar o Pedro...
-Ah, sim, isso foi fácil, na verdade tudo foi muito fácil. Eu observei
Natália Brummer por anos, e as demais vítimas por muitos meses. Aquela
vadia estava vivendo a minha vida. A minha vida! Eu deveria ser a escritora
famosa e rica, não aquela vagabunda que me espancava todos os dias na
escola!
A fúria rapidamente se esvaiu e deu lugar novamente ao sorriso insano,
o cano da arma passeando ao redor de seu próprio rosto.
-Brummer tinha fixação por promover a carreira musical da filha, foi
muito simples me aproveitar disso, o único empecilho era que ela poderia me
reconhecer, mas esses vinte anos foram muito generosos comigo, e ela me
recebeu sem sequer suspeitar de que se tratava da garota frágil da qual ela
costumava se aproveitar nos tempos de escola. Átila Fernandes foi o mais
imbecil de todos. O idiota não podia ver uma boceta. Já Cléo Junqueira
demandou mais tempo e trabalho, eu precisei pesquisar, descobrir que lugares
ela frequentava e me inserir no seu mundo, tornando-me sua amiga. Levou
meses até que passei a ser convidada para suas festas e jantares. Então, ela
não foi capaz de negar ajuda a uma amiga que tinha sido assaltada a alguns
metros de sua casa, e, pela última vez, abriu a porta de sua casa para mim.
Tatiana Teixeira era meu trunfo. Minha chance de despistar a polícia com seu
pseudônimo. Tudo o que eu precisava era saber dos seus hábitos, e com o
armamento correto, sabia que seria fácil invadir sua casa, dar conta daquele
velho gagá e seguir com os trabalhos.
-Você é mesmo louca – disse Bernardo.
-Se me chamar de louca novamente – Fernanda se aproximou de
Bernardo com um olhar flamejante, a voz era um sussurrou gélido, ela
apontou a arma para a testa do rapaz – eu meto uma bala bem aqui, e seus
miolos vão parar na prateleira de romances melosos.
-Não, Fernanda, por favor, não – Bernardo tinha lágrimas nos olhos, a
iminência da morte fazendo-o gelar.
A expressão da moça se abriu novamente e ela começou a gargalhar.
Alimentava-se do terror do amigo.
-Você tinha que ver a sua cara, Bernardo. Relaxa, eu só estava
brincando, eu não mataria você! Por que eu faria isso?
Luís se remexeu novamente no banco, suas forças estavam minando,
não conseguia mais se manter na ponta dos pés. Suava em profusão. Por
detrás da mordaça saíam gemidos, arremedos de pedidos desesperados de
clemência que não se faziam ouvir.
-E você? Já quer mesmo pular daí? Bem, eu já terminei de escrever,
acho que é hora de darmos um fim a isso – ela foi em direção ao banco.
-Por que incriminar o Pedro, por quê? – perguntou Bernardo, que
tentava desesperadamente ganhar tempo para o amigo à beira da morte – Não
havia sentido algum nisso.
Ela se voltou novamente para Bernardo, que tentava disfarçar sua
satisfação ao conseguir desviar a atenção da moça de volta para si.
-Porque eu precisava de tempo, precisava de uma distração para a
polícia. Foi muito divertido jogar com esses dois idiotas, que eram
apaixonados por aquela puta que queria tudo para ela, mas, no final, quem
teve os dois fui eu. Apenas eu.
Bernardo deixava transparecer, propositalmente, que não conseguia
compreender o que Fernanda queria dizer.
-Eu e o Pedro trepávamos em qualquer lugar. No consultório médico,
no estacionamento, no carro a caminho daqui, na cama que ele dividia com a
Bárbara. Inclusive foi assim que o incriminei, só precisei misturar sonífero
em sua bebida, boa noite Cinderela, um clássico. Aproveitando de seu sono
pesado, o fiz colocar suas digitais em todos os livros, que eu logo manipulei o
Luís para encontrar atrás da coleção do Sherlock Holmes, isso foi genial, não
foi? Mais genial ainda foi cometer os crimes em dias que nenhum dos dois
idiotas teriam álibis para protegê-los. De posse da escala de trabalho do Pedro
e ciente de que o Luís era um idiota sem vida social, que só ficava em casa
chorando por não estar comendo a Bárbara, foi tudo muito fácil.
-Meu Deus... você...
-Mas ainda faltava algo para implicar o Luís de maneira mais
contundente e ganhar mais tempo. Só precisei de uma garrafa de vinho e uma
lingerie provocante para seduzir esse idiota que não trepava há tanto tempo.
Nós transamos por toda a livraria antes de eu apagá-lo para poder plantar
vestígios em seu computador. Coisas que nem ele mesmo enxergaria. Depois
veio a cereja do bolo. Convidei-o para um encontro, imaginava que mais
cedo ou mais tarde a polícia chegaria àquela lan house. Eu a escolhi
propositalmente por ela ter câmeras, que filmariam o idiota lá parado,
esperando por mim. Para ter certeza de que ele seria pego usando o celular,
mandei-lhe várias mensagens explicando um motivo idiota para não poder ir,
mas fiz isso apenas a alguns metros de distância dele, com uma peruca loira,
enquanto me conectava em um dos computadores e mandava novas ameaças
para a vítima.
-Você consegue imaginar o quanto eu me diverti? Devo dizer que amei
trepar com os dois. Acho que isso foi um grande bônus, afinal, o Pedro era
delicioso na cama, ele me batia e me tratava como uma verdadeira puta. Já o
Luís tem um pau enorme e muito grosso que será desperdiçado com sua
morte.
Ela passava a língua pelo cano da arma enquanto excitava-se com as
lembranças.
-Você foi o único que não comeu essa boceta. – passou a mão entre as
pernas – Não vai fazer nenhuma piadinha quanto a isso? Algo do tipo: “só
não deu pra mim porque sou negro”? E então, Bernardo, onde está o seu
conhecido senso de humor?
-Fernanda – o rapaz tinha lágrimas nos olhos, sentia-se zonzo pela
perda de sangue e pela dor – você ainda tem tempo pra pôr fim a essa
loucura.
-Loucura? Essa é minha obra de arte. É o trabalho da minha vida! Eu
consegui transcender as páginas de um simples livro. E agora é momento do
encerramento, a hora de cair o pano.
Ela caminhou em direção a Luís e, sem esperar mais, chutou o banco. O
rapaz despencou e começou a sufocar. O pescoço não se quebrou por um triz.
O ar negava-lhe ajuda. As pernas balançavam inúteis. O desespero e a certeza
da morte eram facas agonizantes que afundavam em seu peito arfante.
-Não! – gritou Bernardo, que tentou se levantar, mas Fernanda voltou a
apontar arma para ele.
Naquele momento, um som belo e harmonioso, que não condizia com a
cena macabra que se desenrolava, soou pela livraria. Tratava-se do sinete que
ficava sobre a porta, e pontuava a entrada do detetive Frederico, que tinha
deixado para trás o distintivo e estava pronto para atuar como um verdadeiro
justiceiro.
Ele precisou se jogar no chão quando a arma apontada para ele disparou
estraçalhando a vitrine da loja.
-Você não vai me atrapalhar! – gritou Fernanda – Estou quase
terminando, detetive.
Enquanto os tiros pipocavam pela livraria, vindos dos dois lados,
Bernardo manquitolou até Luís, torcendo para não ser alvejado, e o segurou
pelas pernas, erguendo o amigo e permitindo que ele respirasse brevemente,
tragando o ar com sofreguidão. Ele tentou retirar o laço do pescoço de Luís,
mas estava apertado demais.
-Que bom que veio, detetive – gritava Fernanda – depois de fazê-lo de
idiota por tanto tempo, achei que seria divertido tê-lo aqui para assistir ao
capítulo final. Parece que você encontrou as pistas que deixei.
-Abaixe a arma e entregue-se! – gritou Fred, que ainda não
compreendia o que estava acontecendo. Ele tinha saído de casa pronto para
forçar o livreiro a confessar, estava pronto para matá-lo, mas a cena que se
desenrolava ao seu redor era completamente incompreensível.
Fernanda, que mirava o detetive, percebeu que Bernardo estava prestes
a libertar Luís e voltou-se para ele. Um disparo certeiro na outra perna fez o
rapaz tombar, devolvendo o livreiro à sua agonia sufocante.
-Você não vai estragar a minha obra, Bernardo – gritou para o rapaz e
se pôs a caminhar em direção à escuridão do fundo da livraria.
Bernardo tentou voltar a ficar de pé, mas a dor era excruciante, e ele
caiu novamente. A centímetros dele, o amigo agonizava com o rosto já
perdendo a cor. Os olhos revirando nas órbitas e as pernas se remexendo em
espasmos grotescos.
-Não, por favor, não! Socorro!
Fred correu com a arma apontada em direção aos dois. Assim que viu a
situação, segurou Luís pelas pernas e o ergueu, o rapaz estava inerte. Com
muito esforço, ele conseguiu retirar a corda do pescoço do livreiro e o deitou
no chão. Ele não respirava.
-Para onde ela foi? – perguntou o detetive.
Bernardo apontou para o fundo escuro da livraria, enquanto se arrastava
em direção ao amigo, deixando um rastro de sangue ao deslizar pelo chão.
Fazendo o possível para ignorar a própria dor, ele se colocou sobre Luís e
começou a massagear seu peito de forma desesperada. As pressões se
tornaram socos desesperados.
-Volte pra mim, Luís! Volte!
Então ele ouviu um disparo, imediatamente voltou seus olhos para a
penumbra onde Fernanda e Fred tinham se embrenhado, mas não parou com
a massagem, até que ouviu passos que vinham em sua direção.
Uma silhueta se formou nas sombras.
Fernanda ou Fred?
Longos segundos banhados no mais puro terror.
Bernardo só conseguiu respirar aliviado quando viu a figura do detetive
surgir diante de seus olhos.
-Acabou – disse ele, apressando-se em ajudar Bernardo – me deixe
fazer isso – e tomou o lugar do rapaz que agonizava com suas próprias
feridas.
Fred intercalou as compressões cardíacas com a respiração boca a boca,
e foi naquele momento que ele soprou uma nova vida para dentro de Luís,
que abriu os olhos e tragou o ar com força, engasgando e tossindo.
Desesperadamente vivo.

Epílogo

Alguns dias depois


O sol brilhava com intensidade sobre as alamedas que constituíam o
cemitério.
Luís seguia oferecendo ajuda ao amigo, que manquitolava com o apoio
das muletas.
-Eu preciso fazer isso, cara. Preciso me virar sozinho – insistia
Bernardo.
-Tudo bem. Não está mais aqui quem falou.
-E se me chamar de saci de novo...
-Não fui eu quem disse isso, foi você mesmo – defendeu-se Luís.
Quando se aproximaram do túmulo de Bárbara, a alegria de ambos
cessou, pontuada pela dor ainda latente de sua enorme perda.
Havia mais alguém por ali, de costas para eles. Luís reconheceu a
silhueta alta e esguia de Pedro.
-Então era isso. Aposto que você armou esse encontro – disse Luís.
-Vocês precisam conversar – Bernardo falou alto o suficiente para
chamar a atenção do cirurgião, que desviou o olhar da lápide de Bárbara e se
voltou para os dois. Sua expressão era de pura tristeza, os olhos vermelhos
claramente indicavam que ele estivera chorando.
-Eu não tenho nada para falar com esse cara – disse Luís, com firmeza.
-Seu filho de uma puta, você me denunciou para a polícia! Sou eu quem
não deveria querer olhar para essa sua cara nunca mais!
-Eu fiz o que precisava fazer. O que achei que era certo, já você,
desgraçado! Você estava traindo a Bárbara! Estava trepando com a melhor
amiga dela! Eu devia arrebentar a sua cara!
-E por que não tenta? – Pedro deu passo em direção a Luís.
-Ei, ei, já chega! – Bernardo bamboleou até se colocar entre os dois –
Eu os trouxe aqui para que vocês resolvam suas diferenças. Os dois erraram.
Os dois agiram mal, mas as coisas ainda podem ser consertadas. Pensem em
como a Bárbara se sentiria ao vê-los brigando dessa forma.
Os rapazes pareceram ligeiramente envergonhados, mas nenhum dos
dois deu o braço a torcer. As coisas tinham ido longe demais, não havia como
voltarem atrás. A amizade de toda uma vida deu seu último suspiro em um
lugar muito apropriado. Enterrada em um cemitério.
Bernardo viu os amigos partirem para lados opostos e ficou ali sozinho,
as pernas doloridas pelo esforço. Ele se deixou cair, apoiando as costas na
lápide de Bárbara.
-Me desculpe, meu bem, eu tentei, juro que tentei, mas acho que não
sou capaz...

***
Fred estava arrumando as coisas para liberar seu escritório quando
esbarrou na pasta do último caso.
Ele pegou as muitas fotos e as espalhou pela mesa. Selecionou entre
elas as que estampavam em cores mais vívidas a loucura da cruel e
perturbada assassina.
As fotografias do texto escrito na parede da livraria e do corpo tombado
ao redor de uma poça de sangue o fizeram reviver aquela noite.
No pouco que podia enxergar em meio a penumbra do canto escuro,
entre as prateleiras abarrotadas de livros, ele viu a moça levantar a arma e
apontar para a própria cabeça. Ele poderia detê-la, poderia se lançar sobre ela
e tentar impedi-la, mas não o fez. Teriam sido seus reflexos afetados pelo
álcool que o traíram? Ou tinha sido aquela uma decisão consciente de apenas
observar? Fred se questionava enquanto relia pela centésima vez a mensagem
gravada na parede com o sangue da própria assassina.
“Após certificar-se de ter deixado sua marca no mundo, ela finalmente
calou as vozes em sua cabeça. O disparo certeiro emudeceu Fernanda, a
assassina, calou Baltazar, o estuprador que destruíra sua infância, e com ele,
todos os seus demais demônios, dessa vez, para sempre.”

Ela tinha tudo preparado, não fugira para aquele canto apenas para se
refugiar na escuridão, o texto de seu réquiem, pintado com seu próprio
sangue, estava ali, à sua espera, seu gran finale.

Fred e Elis tinham localizado a mãe de Fernanda. A mulher lhes contou


uma história macabra, que resultou no desenterrar de uma ossada que
repousava há vinte anos no quintal de sua casa, enterrada sob várias camadas
de mentiras, que já emboloravam com o passar dos anos. O homem, dado
como desaparecido pela polícia há duas décadas, estava bem ali, zelando com
esmero pelo infortúnio eterno daquela família.
-Fred, você vai querer uma carona? – disse Elis, quando apareceu na
porta, fazendo o detetive voltar ao presente.
-Hoje não – ele soou entristecido.
-Você já contou pra ela?
-Ainda não.
-Até quando você pretende adiar isso? – Elis soou enfurecida – Ela
precisa saber!
-Elis, eu sou um covarde. Um fracasso total como pai, como homem e
como policial. Essa doença só serve para reforçar isso. E dizer para a Sandra
que vou morrer...
A detetive atravessou a sala e beijou Fred ali mesmo, de forma longa e
demorada.
-Eu amo você, Fred – disse com lágrimas nos olhos.
-Eu também te amo – ele respondeu sem hesitar.
Ao caminhar em direção à saída, Fred passou pelo escritório de
Maciel, que agora era apenas mais uma sala vazia na delegacia. O
superintendente não suportou a pressão e pediu afastamento do cargo depois
de como a imprensa lidou com o desfecho do caso, colocando toda a
contagem negativa sobre seus ombros.
Pensando sobre o infortúnio de Maciel, e ainda com o sabor do beijo
de Elis pesando em seus lábios, a última vez em que ele cruzou as portas da
delegacia foi com um largo sorriso.

***

Fred parou frente à porta da casa que abandonara. Tinha ligado e


avisado Sandra de que iria passar por lá e que precisavam conversar.
Ele pegou sua chave no bolso e a encarou com melancolia, decidiu não
usá-la. Aquela já não era a sua casa.
Tocou a campainha e Sandra atendeu a porta. Ela estava chorando
convulsivamente.
-Sandra, que foi que houve?
A mulher não conseguiu responder. A voz tinha sumido em sua
garganta. Tudo o que ela fez foi guiar o marido para dentro da casa, onde ele
ficou surpreso ao encontrar Romero Garcia.
-Olá, Fred, eu estava esperando por você.
-Seu desgraçado, o que faz aqui? – ele imediatamente cerrou os punhos.
-Eu vim lhe trazer um presente – anunciou Romero, estendendo
algumas fotos para Fred, que as arrancou das mãos do homem que tanto
odiava.
-Meu Deus... – ele levou a mão à boca, lágrimas minaram de seus olhos
e escorreram pela face.
Não havia dúvidas: a criança nas fotos era seu filho, seu Gabriel. Ele
parecia um pouco mais velho, sim, dois anos, dois anos mais velho.
-Eu pedi que uma das ONGs que financio, especialista em procurar por
crianças desaparecidas, voltasse todos os seus esforços para este caso. Temos
agências espalhadas por diversos lugares do mundo. E, por pura sorte,
encontramos seu filho.
Fred não sabia o que dizer, estava emudecido. Tremia tanto que
precisou se sentar para não cair. Simplesmente não podia acreditar que veria
seu filho novamente antes de partir.
-O Gabriel já está em um avião, voltando pra casa, mas é claro que vou
querer algo em troca – disse Romero.
“Sim, claro, com você sempre há algo em troca” – pensou o ex-
detetive. - “Mas acho que dessa vez você pode pedir o que quiser.”
Romero se abaixou e pegou alguma coisa dentro de uma bolsa de
couro. Ele arremessou o par de luvas para Fred e disse com um largo sorriso:
-Te espero na academia daqui a uma hora. Não vá se atrasar, detetive.
O empresário sorriu para Fred e deixou a casa.
“A primavera dos sorrisos macabros”, o novo caso do detetive Borzagli já
está disponível em e-book kindle.

Fale com o autor em suas redes sociais e conte como foi sua experiência com
o livro. Você conseguiu descobrir o assassino antes do final da trama?
@millerbrittoescritor
Agradecimentos:
A todos os amigos da Leitura do BH Shopping, que foram excelentes leitores
beta, torturados pelos capítulos liberados semana a semana:
Ana Flávia, Augusto, Perla, Wesley, Jennifer, Mariana, Marli, Jader, Júlia,
Fernanda, Ronara, Luana, Fabiana, Josilene, Dani e Rodolfo.
A pessoa mais criativa que conheço, Rosana Fraga, por lembrar-me que
muitas vezes menos é mais.
A querida amiga, Maria Palomino, pela carinhosa e valiosa ajuda com a
terceira edição.
Ao estimados amigos de longa data:
O brilhante escritor Eduardo Sabino, pela camaradagem de sempre, traduzida
em conselhos valiosos sobre a escrita.
E Paulo Furtado, pela assessoria nos campos jurídicos onde meu
conhecimento não alcançava, e também por seus comentários entusiastas.
Aos familiares:
Meus irmãos, Anderson, por sua adorável revolta ao não descobrir o
assassino antes do fim. Silvia, por todo seu apoio na reta final, e meu querido
pai, José, pelo investimento que possibilitou a transformação deste livro em
realidade.
A capa é um trabalho de:
Borja Designer, Criação e Pós Produção
www.elo7.com.br/borjadesign/loja
Instagram: @borjadesigncriacao
@luizborja

(31) 9 9219-6202

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